análise da crônica “antigamente”, de carlos drummond de andrade

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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 5 Número 15 Maio 2015 Edição Especial Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES 83 ANÁLISE DA CRÔNICA “ANTIGAMENTE”, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, SOB O ASPECTO DA SOCIOLINGUÍSTICA E ANÁLISE DO DISCURSO: VARIAÇÃO E FUNCIONAMENTO Safira Ravenne da Cunha Rêgo (PPGL-UFPI) 1 [email protected] Ana Maria Alves de Brito (PPGL-UFPI) 2 [email protected] Catarina de Sena Sirqueira Mendes da Costa (UFPI) 3 [email protected] RESUMO: Este artigo pretende analisar a variação social da língua a partir da crônica “Antigamente”, de Carlos Drummond de Andrade, e como ela reflete as características da mudança histórica advindas da sociedade e de seus acontecimentos, sob um enfoque da Sociolinguística, conforme Preti (2003), ao afirmar que “A língua funciona como um elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua” e da Análise do Discurso, de acordo com Pêcheux (1997), em que há o “caráter material do sentido das palavras e dos enunciados”. Nesse pensar, é compreensível entender que a língua passa por modificações no decorrer do tempo e que, mutuamente, corresponde aos anseios de mudança de uma sociedade, sem deixar de ressaltar a importância da ideologia no processo de formação do sujeito e suas particularidades, bem como o caráter discursivo da língua no que se refere a uma dada formação social. Trata-se de uma pesquisa qualitativa baseada em análise bibliográfica da crônica e de aspectos norteadores ao entendimento da língua enquanto variável e em constante mutação. Orlandi (2012) já menciona que “o texto é a unidade de análise”. Tal trabalho, logo, resultou no entendimento de que a variação dos discursos e suas transformações ao longo do tempo merece importância, ao tornar mais ricos e sólidos os processos comunicativos entre sujeitos linguísticos. PALAVRAS CHAVE: Sociolinguística; Discurso; Variação. ABSTRACT: This article analyzes the social change in language from the chronic "Before" by Carlos Drummond de Andrade, and how it reflects the historical change of the characteristics arising from the society and its events, from a perspective of sociolinguistics, as Preti (2003), stating that "The language functions as an element of interaction between the individual and the society in which it acts" and of discourse analysis, according to Pêcheux (1997), where there is the "character material sense words and statements'. In this thinking, it is understandable that understand the language undergoes changes over time and that mutually corresponds to changing desires of a society, while emphasizing the importance of 1 Graduada em Letras - Português (UFPI). Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Superior de Educação Programus. Mestranda em Letras Estudos da Linguagem (UFPI). 2 Graduada em Letras - Português (UESPI). Especialista em Linguistica Aplicada à Educação (UESPI). Especialista em Literatura Brasileira (UESPI). Especialista em Docência do Ensino Superior (FAP). Mestranda em Letras Estudos da Linguagem (UFPI). 3 Professora adjunta IV do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Piauí-UFPI. Mestre em Linguística (UFSC). Doutora em Linguística (UNICAMP).

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ARYON DALL'IGNA RODRIGUES

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ANÁLISE DA CRÔNICA “ANTIGAMENTE”, DE CARLOS

DRUMMOND DE ANDRADE, SOB O ASPECTO DA

SOCIOLINGUÍSTICA E ANÁLISE DO DISCURSO: VARIAÇÃO E

FUNCIONAMENTO

Safira Ravenne da Cunha Rêgo (PPGL-UFPI)1

[email protected]

Ana Maria Alves de Brito (PPGL-UFPI)2

[email protected]

Catarina de Sena Sirqueira Mendes da Costa (UFPI) 3

[email protected]

RESUMO: Este artigo pretende analisar a variação social da língua a partir da crônica “Antigamente”, de

Carlos Drummond de Andrade, e como ela reflete as características da mudança histórica advindas da

sociedade e de seus acontecimentos, sob um enfoque da Sociolinguística, conforme Preti (2003), ao

afirmar que “A língua funciona como um elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade em que

ele atua” e da Análise do Discurso, de acordo com Pêcheux (1997), em que há o “caráter material do

sentido das palavras e dos enunciados”. Nesse pensar, é compreensível entender que a língua passa por

modificações no decorrer do tempo e que, mutuamente, corresponde aos anseios de mudança de uma

sociedade, sem deixar de ressaltar a importância da ideologia no processo de formação do sujeito e suas

particularidades, bem como o caráter discursivo da língua no que se refere a uma dada formação social.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa baseada em análise bibliográfica da crônica e de aspectos

norteadores ao entendimento da língua enquanto variável e em constante mutação. Orlandi (2012) já

menciona que “o texto é a unidade de análise”. Tal trabalho, logo, resultou no entendimento de que a

variação dos discursos e suas transformações ao longo do tempo merece importância, ao tornar mais ricos

e sólidos os processos comunicativos entre sujeitos linguísticos.

PALAVRAS CHAVE: Sociolinguística; Discurso; Variação.

ABSTRACT: This article analyzes the social change in language from the chronic "Before" by Carlos

Drummond de Andrade, and how it reflects the historical change of the characteristics arising from the

society and its events, from a perspective of sociolinguistics, as Preti (2003), stating that "The language

functions as an element of interaction between the individual and the society in which it acts" and of

discourse analysis, according to Pêcheux (1997), where there is the "character material sense words and

statements'. In this thinking, it is understandable that understand the language undergoes changes over

time and that mutually corresponds to changing desires of a society, while emphasizing the importance of

1 Graduada em Letras - Português (UFPI). Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto

Superior de Educação Programus. Mestranda em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). 2 Graduada em Letras - Português (UESPI). Especialista em Linguistica Aplicada à Educação (UESPI).

Especialista em Literatura Brasileira (UESPI). Especialista em Docência do Ensino Superior (FAP).

Mestranda em Letras – Estudos da Linguagem (UFPI). 3 Professora adjunta IV do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras – Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Piauí-UFPI. Mestre em Linguística (UFSC). Doutora em Linguística

(UNICAMP).

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ideology in the process of formation of the subject and its particularities, and the character of the

language discourse with respect to a given social formation. This is a qualitative research based on

literature review of chronic and guiding aspects to the understanding of language as variable and

constantly changing. Orlandi (2012) already mentions that "the text is the unit of analysis." This work

thus resulted in the understanding that the variation of the discourse and its changes over time deserve

importance, to make it rich and solid communications processes between linguistic subjects.

KEYWORDS: Sociolinguistics; Speech; Variation.

1 Introdução

A linguagem falada não é um elemento fixo e imutável. Ao contrário, reflete

mudanças do meio e vem se transformando através dos tempos e – o mais notável –

pode mudar, dentro de uma mesma época, de acordo com as circunstâncias sociais.

A Sociolinguística, como uma ciência autônoma e interdisciplinar, teve início

em meados do século XX, embora haja vários linguistas que, muito antes dos anos de

1960, já desenvolvessem em seus trabalhos e teorias de natureza claramente

sociológica, como é o caso de Millet (1866- 1936), Bakhtin (1895-1975) e membros do

Círculo Linguístico de Praga.

Pretende- se, com o enfoque da Sociolinguística e da Análise do Discurso,

analisar a crônica “Antigamente”, de Carlos Drummond de Andrade, enfatizando a

variação, sob a vertente social e histórica, observadas as mudanças que estão

relacionadas à língua e às modificações por que passa no decorrer do tempo. Deseja-se,

ainda, ir mais além ao mostrar um olhar simbólico no que tange ao Discurso e suas

manifestações na sociedade, bem como ao que se refere ao aspecto literário, que

envolve o título da crônica e as palavras e seus diversos sentidos.

Carlos Drummond de Andrade, poeta Modernista que viveu no século XX

(1902-1987), em sua crônica, Antigamente, publicada na obra “Quadrante” (1962),

utiliza-se de várias palavras utilizadas pelos falantes daquele momento, sendo possível,

hoje, perceber as diferentes transformações sofridas pela língua e como elas refletem o

comportamento e os hábitos em comunidade linguística.

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São notáveis as transformações, visto que já não se fala da mesma forma que os

avós ou até mesmo os pais, para tanto são evidenciadas as palavras e expressões

correspondentes na atualidade. Aplica-se, hoje, em discursos diários, uma linguagem

mais despojada e apta à compreensão dos grupos vigentes. Tende-se, logo, a ignorar,

por exemplo, quando alguém fala “caché” e outras palavras ou expressões em desuso

por não se adequarem mais à tendência da língua atual.

Na crônica Antigamente, o autor retoma de maneira reflexiva e saudosista uma

descrição sociológica do aspecto da variação linguística em seu contexto histórico,

fazendo uma abordagem de maneira despretensiosa da linguagem que já não se usa

mais, enfocando as mudanças nas escolhas linguísticas que os grupos sociais fazem pelo

uso da linguagem no decorrer do tempo.

2 O texto, o discurso e a variação como entendimento de expressões e suas

variações com o passar dos tempos

Sendo o texto a unidade propícia à análise e a discussões, convém ressaltar a sua

importância no intuito de que o leitor aí pode encontrar sentidos, coerência e

pertinência, não se limitando à simples decodificação de palavras nem tampouco à mera

decifração de significados, mas à compreensão, à interpretação.

É nesse sentido que se deve considerar a língua como uma unidade aberta, efeito

de sentidos entre locutores, conforme Orlandi (2012, p. 64), um “objeto simbólico”,

disponível a diferentes formas de leitura.

O que proponho pensar é que, na textualização do discurso, há uma

distância não preenchida, há uma incompletude que marca uma

abertura do texto em relação à discursividade. A multiplicidades de

leituras, vista a partir dessa relação “imperfeita” do texto com a

discursividade, deixa de ser algo psicológico, da vontade do sujeito,e

passa a ter uma materialidade: a textualidade , enquanto matéria

discursiva, dá ensejo a várias possibilidades de leituras.

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Por isso, é necessário se salientar a relação existente entre o discurso e o

ambiente aberto e propício a mudanças, e uma dessas mudanças se refere às diferenças

pertinentes à faixa etária, aos grupos sociais e até mesmo ao tempo.

O fato de as línguas passarem por mudanças no tempo é algo que pode

ser percebido de mais de uma forma. Uma delas é o contato com

pessoas de outras faixas etárias. Quanto maior a diferença de idade

maior a probabilidade de encontrarmos diferenças na forma de falar de

duas pessoas. Ambos poderão perceber diferenças, por pequenas que

sejamde vocabulário, construções diferentes, pronúncia diferente de

certas palavras ou de certos sons. (FIORIN, 2012, p. 140).

A necessidade teórica de se manifestar a língua não como algo transparente, mas

opaco, passível de se materializar, é tarefa de estudos aprofundados relacionados ao

entendimento de seu sentido, ou seja, o aspecto semântico, que comporte, em sua

discursividade, os termos linguagem, história, política, ideologia, dentre outros.

É por isso que a língua se constrói como algo mutável no tempo, porque a sua

natureza está intimamente ligada ao uso que os indivíduos fazem dela em sociedade, dos

contatos com os indivíduos entre si e sua necessidade de interação, ao passo que não

supre, outras palavras e expressões vão surgindo para condizer com a realidade

presente.

A Análise do Discurso é a disciplina que vem ocupar o lugar dessa

necessidade teórica, trabalhando a opacidade do texto e vendo nesta

opacidade a presença do político, do simbólico, do ideológico, o

próprio fato do funcionamento da linguagem: a inscrição da língua na

história, para que ela signifique. (ORLANDI, 2012, p. 21)

Considerando a interpretação como objeto de reflexão, faz-se mister enfatizar

que a inscrição da língua na história é o ponto determinante para que ela tenha, de fato,

significado, deixando de ser um simples produto do acaso e passando a corresponder a

um funcionamento.

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A ideia de funcionamento supõe a relação estrutura/acontecimento (in

Pêcheux, 1988), articulação do que é da ordem da língua e do que

deriva de sua historicidade, relação entre o que, em linguagem, é

considerado estável com o que é sujeito a equívoco.

Michel Pêcheux, filósofo e estudioso da Análise do Discurso de orientação

francesa, propôs um estudo da linguagem por meio dos estudos dos entremeios,

alojando os princípios teóricos por ele mesmo estabelecidos em regiões que podem

parecer contraditórias, fazendo trabalhar a desconstrução e a construção em busca de

uma compreensão incessante de seu objeto teórico.

Pêcheux propõe o estudo da língua considerando a estrutura e o acontecimento,

perfazendo um percurso de análise dos acontecimentos tidos como positivos, numa

abordagem positiva, a fim de que se atribua sentido aos fatos, bem como às

diversasformas de manifestação sociolinguísticas neles ocorridos.

Orlandi (2011, p 125), representante de Michel Pêcheux aqui no Brasil, trata do

funcionamento ao ressaltar que “em um discurso não só se representam os

interlocutores, mas também a relação que eles mantêm com a formação ideológica”.

Trata-se, assim, de inserir valores e conceitos no processo de interpretação.

Ao discutir essa interpretação e o acontecimento, Michel Pêcheux evidencia a

relação do meio histórico com o linguístico, e a importância do sujeito do enunciado.

Orlandi (2011, p 52) enfatiza que “um tipo de discurso resulta do funcionamento

discursivo, a atividade estruturante de um discurso determinado “, numa analogia à

existência de interlocutores , falantes e finalidades específicas . Não obstante, é

relevante o papel da interação na construção do sentido discursivo, uma vez que não se

pode desconsiderar a reciprocidade dentro do processo de comunicação.

“configuração”:

Consideramos [...] que a atividade de dizer é tipificante: todo falante

quando diz algo a alguém estabelece uma configuração para seu

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discurso. Não há discurso sem configuração como não há fala sem

estilo. Da perspectiva da atividade, não se trata de um modelo que o

falante preenche ,mas sim de uma configuração que ele estabelece:

não é um dado anterior, é o que se define na própria

interação.(ORLANDI, 2011, p. 153)

Pensando-se, pois, na ideia da interação, pode-se relacionar a Análise Discursiva

e a Sociolinguística num casamento entre o estudo dos sentidos do texto e as suas

diversas formas de manifestação e transformação, na sociedade, em suas influências

históricas, sociais e regionais.

Ademais, Jean-Jacques Courtine, ao tratar das “Condições de Produção”,

reconhece que as origens dessa noção são de três ordens: primeiramente, a análise do

conteúdo; depois, a sociolingüística e, por último, a referência a uma origem implícita.

Quando se refere, pois, à sociolinguística como imprescindível à formação desse termo,

Courtine, segundo LOPES (2009, p. 51), trata de uma

Origem indireta, pois visa a colocar em evidência o caráter sistemático

da covariância de estruturas linguísticas e sociais e, eventualmente, a

estabelecer uma relação de causa e efeito, admitindo como variáveis

sociológicas o estado social do emissor, o estado social do

destinatário, as condições sociais da situação de comunicação e os

objetivos do pesquisador.

Não se pode, dessa forma, referir os aspectos linguísticos sem interligá-los aos

sócio-históricos, e sem relacionar o dizer aos seus elementos exteriores, afinal, as

condições de produção, na acepção de Orlandi (2006), compreendem o sentido estrito: o

aqui e o agora do dizer, e o sentido lato: o contexto sócio-histórico, ideológico.

Considerar a variação da língua sem tratar das condições de produção torna

inviável a análise em termos de fundamentação discursiva, uma vez que eles são

relevantes no sentido das abordagens histórica e social, em face de sua explícita relação

com o contexto.

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3 Variação: uma abordagem histórica e social da língua

Associando, pois, a Análise Discursiva à Sociolinguística, é possível perceber

que há uma fusão da língua enquanto algo concreto que se realiza e seu uso no discurso.

As escolhas que fazemos num dado momento, o encaixamento no contexto social e em

sua história.

A língua é considerada propriedade de uma comunidade, porém os indivíduos,

ao se apoderarem dela, estabelecem um contrato que lhes permite entender ela deve ser

organizada para seu uso. As mutações são regimentadas por regras mútuas estabelecidas

à medida que os falantes sentem necessidade de utilizá-las. Isso é percebido no decorrer

do tempo quando essa língua vai sendo transformada e ficando perceptível na memória

escrita e oral.

O caráter social de uma língua já parece ter sido fartamente

demonstrado. Entendida como um sistema de signos convencionais

que faculta aos membros de uma comunidade a possibilidade de

comunicação, acredita-se, hoje, que seu papel seja cada vez mais

importante nas relações humanas, razão pela qual seu estudo já

envolve modernos processos científicos de pesquisa, interligados às

mais novas ciências e técnicas como, por exemplo, a própria

cibernética. (PRETI, 2003, p. 11)

De cunho social, a língua se convenciona naturalmente, sendo os usuários

submetidos às suas regras, a fim de se envolverem nas situações de comunicação e

interação com outros indivíduos. Tal aspecto da língua faz os indivíduos repensarem sua

constituição e os processos nos quais estão envolvidos, firmando-se, assim, a

comunicação como algo científico.

A língua funciona como um elemento de interação entre o indivíduo e

a sociedade em que ele atua. É através dela que a realidade se

transforma em signos, pela associação de significantes sonoros a

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significados arbitrários, com os quais se processa a comunicação

linguística. (PRETI, 2003, p 12)

Pensar na língua é pensar também na comunicação humana, na interação e nos

propósitos pelos quais nos os sujeitos se apropriam para a transmissão de seus

discursos. Pela língua, em qualquer de seus aspectos, não somente como fala, mas como

um todo, signos e sons, o falante se constitui enquanto sociedade. “A literatura

acompanha os padrões estéticos da linguagem, vigentes nas várias épocas. A sua

tendência será aproximar-se ou afastar-se da fala, adquirindo feição purista ou popular.”

(PRETI, 2003, p 30)

Embora veja a linguagem em um aspecto configurado, a literatura não deixa de

observar como ela é utilizada para compreender o mundo. Apesar de usá-la como termo

alegórico é na literatura e pala literatura que se pode avaliar como a língua valoriza uma

cultura e como é por ela valorizada, conseguindo-se, inclusive, distinguir seu uso ao

longo de várias épocas “A rigor, pode-se dizer que as grandes conquistas modernas, no

plano literário, têm procurado aproximar a língua literária da língua falada, no sentido

de descobrir-lhe valores expressivos e originais.” (PRETI, 2003, p 30)

A língua literária, na sua essência, procura a aproximar-se da realidade, daquilo

que é compreensivo por todos, ao contrário se trataria apenas da língua, excluindo-se o

literário. É por isso que no trabalho de compreensão de sentidos e entendimento da

variação, busca-se a fala em sua realidade, uma vez que o contexto e sua variação é que

possibilita essa formação discursiva.

4 Análise da crônica “antigamente”: uma interface variacionista do discurso como

acontecimento

Pretende-se, doravante, analisar a crônica do poeta modernista Carlos

Drummond de Andrade, “Antigamente”, em suas duas partes, I e II, parte da obra

“Quadrante”, publicada em 1962.

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ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e

muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas,

mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficava longos

meses debaixo do balaio. E levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em

outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era de tirar o pai da forca, e não

caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos

paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse

em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-

diogo. Os idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também

tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais

tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os

quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira

que dessem com os burros n’água.

HAVIA OS QUE tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior

consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o

portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o

chapéu, exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o Reverendíssimo

correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava – sinal de defluxo

– eram impelidos a exortar: “Dominus Tecum.” Embora sem saber da missa a metade, os

presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca.

Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida

com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artiloso.

Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da

igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.

ANTIGAMENTE, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram

pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo

amassou, lá onde judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns

ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham

conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque

do tabuleiro, quase sempre um “cabrito”, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita

do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do Rio de

Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete

roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro.

Infelizmente, alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.

ACONTECIA o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio

chamar o doutor e, depois ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas.

Doença nefasta era phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações,

os meninos lombrigas, asthmas os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma,

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a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas

retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.

MAS TUDO ISSO era antigamente, isto é, outrora.

II – ANTIGAMENTE, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de

arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia

também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de bater na corcunda do

padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas,

ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre,

mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava

botina de botões para comparecer todo liró ao copo d’água, se bem que no convescote apenas

lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois

bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho

diante de um treteiro de topete; depois de fintar e de engambelar os coiós, e antes que se pusesse

tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: que somava a

candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que

não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.

BOM ERA TER costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor

ainda, ter uma caixinha de pós de pirlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na

pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se

lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça,

no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca Barbante, isso não: a mocinha dava o

cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia um doutor pomada, todo cheio de nove horas;

ia-se ver, debaixo de tanta farafo era um doutor mula ruça, um pé rapado, que espiga! E a

moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens.

Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméia, um alcaide

que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.

EM COMPENSAÇÃO, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo

vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo.

Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do Degas! Macacos me mordam se

estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no

prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-barata, o dr.

Fiado que morreu ontem, o Zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a

polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras… Depois

de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca,

ou simplesmente a bota, sem saber como descalçá-la. Mas até aí morreu o Neves, e não foi no

dia de São Nunca de tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos

da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?

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FONTE: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Volume único. Revisão

modificada. São Paulo: Copyght, 1993.

A crônica “Antigamente” retrata uma época em que a linguagem era repleta de

expressões figurativas para representar a realidade da língua, utilizada pelos indivíduos

na comunicação verbal. O autor, ao produzir sua crônica vale-se da linguagem de

“antigamente” para comprovar a variação linguística social e histórica de uma época,

utilizando-se de uma linguagem bem simples, porém, com muitos recursos alegóricos

para se comunicar.

Carlos Drummond, em sua crônica, retrata a língua de um grupo social que, ao

se comunicar, utilizava-se de sua forma mais simples e corriqueira, usando expressões

coloquiais para estabelecer sua comunicação no dia-a-dia. O autor mostra as variações e

transformações sofridas pela língua e como as pessoas dessa época usavam a

linguagem de forma natural e espontânea e sem perceber faziam suas escolhas no

estabelecimento de comunicação e o entendimento com outros indivíduos.

É possível, pois, observar como as mudanças que ocorreram no tempo

modificaram a cultura e a linguagem da sociedade, ao se evidenciar, no texto, recortes

destacando as palavras e expressões que remetem a um tempo passado para acentuar

esse fato da língua em sua mudança histórica. Fiorin (2012, p. 140) ressalta esses

aspectos da variação quando diz que:

O fato de as línguas passarem por mudanças no tempo é algo que pode

ser percebido de mais de uma forma. Uma delas é o contato com as

pessoas de outras faixas etárias. Quanto maior a diferença de idade

maior a probabilidade de encontrarmos diferenças na forma de falar de

duas pessoas.

O pensamento de Fiorin corrobora com as descrições de Drummond a respeito

da variação da língua no decorrer do tempo, ao mostrar que é no contato com outras

pessoas de mais ou de menos idade, que essas mudanças ou variações se propagam na

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sociedade. Umas permanecem, outras se transformam ou se modificam em sua história,

porém, isso dependerá das escolhas que os falantes fazem para melhor se comunicarem

em seu grupo social.

Deve-se, com isso, observar como os indivíduos produzem seus discursos, e se

suas escolhas contribuem para a transformação e para seus propósitos comunicativos.

Drummond nomeia várias situações em que são usadas algumas palavras ou expressões

variadas no tempo, permitindo que para cada situação haja uma expressão específica,

compreendida pela sociedade que dela se apodera para poder se comunicar,

transformação tida como um fluxo muito natural na língua, o que não significa que as

pessoas ao fazer suas escolhas linguísticas não conheçam outra forma de falar, além da

retratada em seus ambientes pessoais de conversas com o outro.

Ao começar pelo título “Antigamente”, o que chama a atenção é o fato da

produção textual ser constituída pelas expressões figuradas da época. É um texto escrito

em prosa, característico do gênero crônica, porém com traços discretos da literatura,

quando o autor escolhe compor seu texto sobre os registros da língua, em seu uso e na

sua estrutura física. Observa-se que é esse registro da variação social da língua,

associado à forma de sua composição ,que torna o texto reflexivo, sobretudo no que se

refere â mudança linguística.

Verifica-se, outrossim, uma riqueza muito grande na língua, uma diversidade de

palavras e expressões utilizadas na comunicação para falar de situações e fatos da vida,

com destaque ao aspecto da língua em sua variação,como por exemplo, algumas

palavras próprias do vocabulário da época : mademoiselles, janotas, “pé- de –alferes”,

“tirar o cavalo da chuva”, “levar tábua”, “pregar em outra freguesia”, “arrastando a

asa”, e uma enorme gama que constroem o texto..

Ainda no texto, Drummond aborda de forma irônica o desuso das palavras e

expressões usadas na crônica, como se a linguagem tenha perdido uma pouco da sua

essência delicada ou respeitosa das pessoas ao se comunicarem. Acredita-se, inobstante,

que neste aspecto da abordagem da variação da língua, o autor tenha tentado, embora

que de forma sutil, tratar do aspecto literário da língua, mostrando que ela, em seu uso

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comum e simples entre as pessoas, caracteriza-se como mais carregada de sentimentos,

de respeito e entendimento, e que em seu uso cotidiano pode ser muito mais expressivo

e significativo.

Expressões como “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, “Para sempre seja

louvado” e “onde Judas perdeu as botas” revelam um caráter religioso ao texto,

correspondendo a ditos populares associados a crenças. Em termos como “constipação”,

“doutor” e “botica”, nota-se um apego à sabedoria popular para resolução de doenças ou

problemas de saúde, numa referência aos traços drummondianos de conhecimento de

mundo e de ligação ao popular, ao corriqueiro.

Em “dar as cartas com a faca e o queijo na mão”, “ficar na pindaíba” e fazer de

“gato-sapato”, reconhece-se o traço coloquial e, ao mesmo tempo, imediatista do autor,

que, visivelmente, nessa crônica, consegue tirar proveito de situações do dia-a-dia ao se

utilizar de outras conotações, o que põe sua linguagem num âmbito literário, sem que se

perca o sentido original, em situações de fala.

Preti (2003), ao tratar da aproximação da língua literária e da língua falada, a fim

de descobrir-lhe valores e expressões, permite a análise da linguagem de Drummond ao

trabalhar com o aspecto da variação da língua em um contexto social, aproximando o

campo da literatura, seus discursos e a variação, preconizando os valores da língua,

materializadas em suas expressões escritas e orais.

5 Considerações finais

Conclui-se, portanto, com esse estudo, que a língua tem em sua própria natureza

o caráter da evolução temporal e social, ao passo que compreendê-la como algo que

muda no tempo possibilita acompanhar a sua evolução, processo tão natural e

espontâneo no qual, muitas vezes, os usuários evoluem sem perceber, apenas

acompanham essa transformação.

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Ao manter contato com textos antigos percebem-se hábitos e costumes da língua

de um tempo psicológico, a exemplo das reminiscências postas pelo autor como

materialização de um tempo remoto. As expressões idiomáticas que aparecem dispostas

no texto caracterizam certa geração precedente e estão ligadas ao seu modo de vida, sua

cultura e o momento da história em que esse grupo social estava inserido. Assim, o

autor faz uso de expressões antigas para conferir ao texto uma atmosfera de passado.

Podem-se evidenciar, ao trabalhar esse caráter variacionista da língua, as

modificações sofridas, as quais, de certo modo, refletem as transformações

operacionalizadas nas sociedades, responsáveis pelo surgimento e desaparecimento de

palavras, ou seja, pela sua variação social ao se movimentar com o passar dos anos e

permitir que os seres humanos se adaptem às escolhas de sua comunidade.

A língua muda conforme mudam os tempos e o seu caráter, por si, é propício a

mudanças. Ela é esse bem social, de caráter móvel, capaz de atingir os mais diversos

propósitos comunicativos.

É, logo, com base na análise do texto como um todo e em suas associações com

o meio discursivo e a própria ideia de variação, chega-se à compreensão de que o

enfoque de Drummond no texto não seja tão somente abordar a variação, mas destacar

uma certa nostalgia de que a língua se utilizava, e que hoje já não se usa mais.

Referências

LOPES, M. 2009. Folha de São Paulo: da produção de sentidos acerca da Guerra do

Iraque. São Carlos, Pedro e João Editores, 2009.

FIORIN, J. L. Introdução à Linguística. 6. ed. São Paulo, Contexto, 2012.

ORLANDI, E. P.; LAGAZZI, S. R. Introdução às Ciências da Linguagem: Discurso

e Textualidade. Campinas: Pontes, 2006.

ORLANDI, E. P. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 4. ed.

Campinas, Pontes, 2012.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed.

Campinas, Editora da UNICAMP, 1997.

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PRETI, D. Sociolinguística: os níveis de fala. São Paulo: Editora da Universidade de

São Paulo, 2003.

Recebido Para Publicação em 23 de fevereiro de 2014.

Aprovado Para Publicação em 29 de abril de 2014.