análise comparativa brasil eua laranja

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ANÁLISE COMPARATIVA DA POLÍTICA EXTERNA COMERCIAL DO BRASIL E DOS ESTADOS UNIDOS NO CONTENCIOSO DO SUCO DE LARANJA 1 Camilla Silva Geraldello 2 RESUMO Os objetivos deste trabalho são: analisar comparativamente as instituições políticas no Brasil e nos EUA relevantes no processo de formulação de tomada de decisões de política externa comercial; e demonstrar a operacionalização dessas instituições durante o contencioso Brasil X EUA do suco de laranja brasileiro na OMC. Tal análise efetuar-se-á através de três variáveis: mobilização de interesses, funcionamento de instituições e divulgação de informações. Demonstraremos como os interesses dos citricultores brasileiros e estadunidenses se organizaram e manipularam estrategicamente um conjunto de informações visando influenciar a formulação da política externa comercial dos seus respectivos países na defesa de suas demandas no contencioso em questão. Este procedimento nos proporcionará defender a hipótese de que uma maior abertura e institucionalização do relacionamento entre policy-makers e sociedade civil na construção da política comercial, pode possibilitar melhor atendimento às demandas dos grupos de interesses da sociedade brasileira nessa esfera. Paralelamente, pode também aperfeiçoar a qualidade técnica da negociação e contribuir à construção coletiva do interesse comercial a ser defendido pela diplomacia brasileira. Para tanto, realizaremos uma breve discussão teórica sobre o papel da arena doméstica no posicionamento internacional de países democráticos; apresentaremos as demandas domésticas brasileiras do setor citricultor em relação aos EUA na OMC; apresentaremos a posição negociadora ofensiva do Brasil e a defensiva dos EUA, ambas pautadas na lógica dos seus interesses, instituições e informações; e 1 Agradeço ao Profº Marcelo pela revisão deste texto (e de muitos outros), aos amigos do IGEPRI (Aubrey, Barbara, Bruno, Fausto, Fernando, Giovana, Gustavo, Isadora e José Lucas), ao Fernando Aparecido, a Rosemary e ao Fernando Henrique. 2 Graduanda em Relações Internacionais, bolsista PIBIC/CNPq e membro do IGEPRI. 1

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Page 1: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

ANÁLISE COMPARATIVA DA POLÍTICA EXTERNA COMERCIAL DO BRASIL E

DOS ESTADOS UNIDOS NO CONTENCIOSO DO SUCO DE LARANJA1

Camilla Silva Geraldello2

RESUMO

Os objetivos deste trabalho são: analisar comparativamente as instituições políticas no Brasil e nos EUA relevantes no processo de formulação de tomada de decisões de política externa comercial; e demonstrar a operacionalização dessas instituições durante o contencioso Brasil X EUA do suco de laranja brasileiro na OMC. Tal análise efetuar-se-á através de três variáveis: mobilização de interesses, funcionamento de instituições e divulgação de informações. Demonstraremos como os interesses dos citricultores brasileiros e estadunidenses se organizaram e manipularam estrategicamente um conjunto de informações visando influenciar a formulação da política externa comercial dos seus respectivos países na defesa de suas demandas no contencioso em questão. Este procedimento nos proporcionará defender a hipótese de que uma maior abertura e institucionalização do relacionamento entre policy-makers e sociedade civil na construção da política comercial, pode possibilitar melhor atendimento às demandas dos grupos de interesses da sociedade brasileira nessa esfera.

Paralelamente, pode também aperfeiçoar a qualidade técnica da negociação e contribuir à construção coletiva do interesse comercial a ser defendido pela diplomacia brasileira. Para tanto, realizaremos uma breve discussão teórica sobre o papel da arena doméstica no posicionamento internacional de países democráticos; apresentaremos as demandas domésticas brasileiras do setor citricultor em relação aos EUA na OMC; apresentaremos a posição negociadora ofensiva do Brasil e a defensiva dos EUA, ambas pautadas na lógica dos seus interesses, instituições e informações; e efetuaremos a análise comparativa, visando demonstrar a plausibilidade da nossa hipótese e seus possíveis desdobramentos na perspectiva de reformas institucionais na política de comércio internacional do Brasil.

Palavras-chaves: política externa comercial; Brasil; Estados Unidos.

Introdução

1 Agradeço ao Profº Marcelo pela revisão deste texto (e de muitos outros), aos amigos do IGEPRI (Aubrey, Barbara, Bruno, Fausto, Fernando, Giovana, Gustavo, Isadora e José Lucas), ao Fernando Aparecido, a Rosemary e ao Fernando Henrique.2 Graduanda em Relações Internacionais, bolsista PIBIC/CNPq e membro do IGEPRI.

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Page 2: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

O Brasil é conhecido internacionalmente por ser um grande exportador de

commodities, sendo o maior exportador mundial de café, açúcar, suco de laranja, tabaco, soja,

milho e carnes. Contudo, tais produtos brasileiros encontram resistência em alguns países

devido a sua alta competitividade no setor agrícola, o que pode ser manifestado pelas taxas

alfandegárias, direitos antidumping e subsídios a produtores nacionais. Exemplo deste fato é

o suco de laranja brasileiro no mercado estadunidense, o maior e mais lucrativo mercado

nacional deste produto.

O suco de laranja produzido no Brasil conta com uma maior competitividade em sua

cadeia produtiva em relação ao produto estadunidense, e ainda apresenta para o Brasil a

vantagem de ser uma commodity com um valor agregado maior que outras. Os Estados

Unidos (segundo produtor mundial de tal produto), por sua vez, para tentar proteger seus

produtores nacionais, os quais possuem custos mais elevados na produção da commodity em

questão, aplicam taxas de direito antidumping sobre o produto importado do Brasil. Sendo

que seria mais interessante para a economia estadunidense não dar este auxílio.

Este protecionismo estadunidense levou a diversos impasses comerciais, fazendo com

que a questão chegasse a Organização Mundial do Comércio (OMC). A vitória foi brasileira,

como em outros casos: do algodão e das patentes farmacêuticas. Assim, por que mesmo

perdendo disputas no âmbito da OMC, e com a probabilidade de perder outras, os produtos

brasileiros continuam sofrendo restrições no mercado estadunidense? Como um setor com

pequena participação na economia estadunidense consegue superar as preferências de livre

comércio das indústrias de exportação de alto valor agregado?

Para nós, parte das respostas encontram-se no lobby que alguns setores agrícolas

exercem sobre os políticos dos Estados Unidos (EUA). Desta forma, procuramos responder a

tais questionamentos através da análise comparativa das instituições políticas do Brasil e dos

Estados Unidos relevantes no processo de formulação de tomada de decisões de política

externa comercial. Demonstrando a operacionalização dessas instituições durante o

contencioso Brasil X EUA do suco de laranja brasileiro na OMC de 2008.

Tal análise efetuar-se-á através de três variáveis: mobilização de interesses,

funcionamento de instituições e divulgação de informações. Demonstraremos como os

interesses dos citricultores brasileiros e estadunidenses se organizaram e manipularam

estrategicamente um conjunto de informações visando influenciar a formulação da política

externa comercial dos seus respectivos países na defesa de suas demandas no contencioso em

questão.

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Page 3: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Este procedimento nos proporcionará defender a hipótese de que uma maior abertura e

institucionalização do relacionamento entre policy-makers e sociedade civil na construção da

política comercial, pode possibilitar melhor atendimento às demandas dos grupos de

interesses da sociedade brasileira nessa esfera. Paralelamente, pode também aperfeiçoar a

qualidade técnica da negociação e contribuir à construção coletiva do interesse comercial a

ser defendido pela diplomacia brasileira.

Para tanto, realizaremos uma breve discussão teórica sobre o papel da arena doméstica

no posicionamento internacional dos EUA e do Brasil; apresentaremos as demandas

domésticas brasileiras do setor citricultor em relação aos EUA na OMC; apresentaremos a

posição negociadora ofensiva do Brasil e a defensiva dos EUA, ambas pautadas na lógica dos

seus interesses, instituições e informações; e efetuaremos a análise comparativa, visando

demonstrar a plausibilidade da nossa hipótese e seus possíveis desdobramentos na

perspectiva de reformas institucionais na política de comércio internacional do Brasil.

Questões Teóricas

O contencioso entre Brasil e EUA sobre o suco de laranja ilustra o aumento da

interação entre as políticas domésticas e o contexto internacional na contemporaneidade,

envolvendo vários atores tanto brasileiros quanto estadunidenses. Devido a isso escolhemos

como suporte teórico o Jogo de Dois Níveis (JDN) de Putnam (1993) complementado pela

análise de Milner (1997).

Em seu modelo teórico, Putnam (1993) considera os governos (negociadores

internacionais) como os responsáveis pela política externa dos Estados, que atuam em

conjunto aos seus interlocutores domésticos, negociando com eles a ratificação e entrada em

vigor dos acordos. Logo, é a dinâmica interna que definirá as possibilidades e opções da ação

internacional do Estado. E ela é determinada pela formulação e pela acomodação das

preferências domésticas em coalizões políticas (win-sets) que podem ou não ser favoráveis à

ratificação e implementação do acordo internacional.

Estes win-sets podem ser estabelecidos por ONG’s, movimentos sociais, lobbies,

partidos políticos, parlamentares, governos subnacionais, dentre outros. Neste contencioso,

temos como win-sets estadunidenses seus citricultores favoráveis à taxação ao produto

brasileiro, responsável por forte lobby para tanto, e como win-sets brasileiros as indústrias

exportadoras contrárias a tais medidas.

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Page 4: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Como reflexo disto, temos nos EUA políticas relacionadas à importação de sucos

cítricos que visam proteger os produtores locais, através da utilização de medidas como o

Imposto de Equalização (no caso do contencioso de 2002)3 e de barreiras não tarifárias, como

as medidas antidumping, calculadas muitas vezes pelo método do zeroing4 (no contencioso de

2008), enquanto no Brasil as políticas de exportação visam favorecer a indústria local, através

do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Nos Estados

Unidos, tal política foi implementada em decorrência das pressões dos citricultores junto ao

Congresso, e aplicadas pelo Departamento de Comércio (USDOC – United States

Department of Commerce) e por sua alfândega (USCBP – United States Customs and Border

Protection). Como veremos adiante, tais interesses são atendidos devido ao financiamento às

campanhas eleitorais.

No Brasil, a articulação já tradicionalmente menor dos atores internos, neste caso é

ainda mais difusa pela existência de uma falta de concordância entre as organizações de

representação dos produtores de frutas cítricas e dos industriais produtores do suco. Contudo,

se isto poderia parecer um problema para alguns, para Putnam (1993) um governo dividido,

ou seja, naquele em que não há consenso amplo entre os interlocutores domésticos, pode

obter maior sucesso em acordos internacionais do que aquele governo que incorpora e

representa um consenso doméstico mais amplo. Em outras palavras, as dissensões internas

são benéficas ao governo enquanto negociador internacional no momento da negociação

internacional ao tornarem evidentes ao seu parceiro durante a realização dos acordos que caso

estes não forem ao encontro do seu win-set ele não será ratificado no Parlamento.

Portanto, quanto menor o win-set, ou ainda, quanto mais posições difusas no nível

doméstico (situação do Brasil), mais força terá o governo na negociação internacional. E

quanto maior o win-set, maior é a possibilidade de se alcançar um acordo, em contrapartida,

3 Em 2002, o Brasil acionou o Órgão de solução de Controvérsias da OMC para que o Imposto de Equalização (Equalizing Excise Tax – EET), aplicado às importações brasileiras de suco de laranja concentrado pelo Estado da Flórida, fosse avaliado. Este imposto era uma medida para compensar o Florida Box Tax cobrado dos produtores da Flórida, o maior produtor de laranja dos EUA, que incide sobre as caixas de laranjas colhidas. O Brasil julgava-o como improcedente, tanto pelo fato do seu imposto equivalente para os nacionais ser cobrado no produto não processado quanto pelo fato dos produtores de outros Estados dos EUA não estarem sujeitos ao imposto, demonstrando um desrespeito ao princípio do tratamento nacional da OMC. Todavia, o painel não chegou a ser aberto devido a falta de consenso entre as partes sobre a escolha dos painelistas; as boas negociações entre os países; e a solução de um processo judicial na Flórida, no qual um juiz decidiu que a isenção aos produtores de outros Estados dos EUA era inconstitucional (LIMA, 2009). Assim, o EET passou a ser aplicado a estes produtores, porém sendo o valor cobrado menor que o de produtores de outros países. Por fim, Brasil e EUA anunciaram em 2004 que haviam chegado a um acordo e a Flórida tornou facultativo o pagamento de parte do imposto, a qual era destinada a propaganda do produto floridiano.4 Zeroing é um procedimento que consiste em anular (“zerar”) quaisquer ocorrências em que o preço dos produtos importados seja superior ao “valor normal”, ou seja, as transações nas quais o preço do produto é maior que seu valor no mercado interno do exportador não são consideradas. Onde apenas as transações nas quais o preço é menor que seu valor normal são válidas para o cálculo do dumping.

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Page 5: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

diminui a capacidade de barganha do governo vis-à-vis outros negociadores (situação dos

EUA).

Isto significa que a negociação internacional para ser favorável a um determinado

Estado não exige que haja consenso em torno dela, mas sim o oposto. Porque, na medida em

que haja mobilização doméstica em torno de assuntos de política externa, ao invés do Estado

enfraquecer-se, ele torna-se mais poderoso, visto que desde antemão fica claro que se o

acordo internacional for contrário aos interesses de grupos econômicos e sociais ele não será

ratificado no Parlamento e não poderá entrar na ordem constitucional do país.

O oposto também é verdadeiro. Uma negociação internacional que tenha sido

amplamente discutida com a sociedade, em sendo aprovada pela mesma terá legitimidade

democrática e, portanto, dificilmente deverá ser alterada. Em outras palavras, a discussão

democrática da política externa com a sociedade garante credibilidade5.

Podemos, portanto, afirmar que os laços entre policymakers no nível do Estado, atores

políticos e grupos de interesse presentes na sociedade são fatores indispensáveis que podem

tanto garantir maior poder de barganha ao negociador internacional ou ser um elemento que

causa debilidade no instante da negociação internacional.

A vitória brasileira nos mostra o quão benéfica pode ser para o statesman a dissensão

interna, com poder de barganha maior, que o reduzido poder dos negociadores

estadunidenses. Apresentaremos a seguir o setor citricultor em ambos os países.

A Citricultura no Brasil

Até 1920 as exportações brasileiras baseavam-se em um único produto: o café.

Todavia, com as crises econômicas entre as décadas de 1920 e 1940, alguns cafeicultores

preferiram mudar de commodity, e a produção de laranja foi uma das novas escolhas. Assim,

em 1959 surge a primeira indústria de suco concentrado, já que o consumo da fruta in natura

não absorvia toda a produção brasileira (NEVES, 2010).

A consolidação desta indústria ocorreria anos depois, na década de 1970, após uma

série de geadas no Estado da Flórida, nos EUA (1977, 1981, 1982, 1983, 1985 e 1989).

Desde 1962, os EUA, que eram o maior produtor de laranja e de suco de laranja, sofriam

prejuízos com geadas, impulsionando a exportação do suco concentrado pelo Brasil. Deste

modo, na safra de 1981/82, o Brasil assume a liderança no setor6.

5 Nos EUA esta discussão é comum, contrariamente do Brasil, onde estas discussões são raras. Apenas assuntos muito polêmicos, de direitos humanos, como o caso da iraniana Shakine Mohammadí Ahstiani, acusada de trair o marido e condenada ao apedrejamento, cujo governo brasileiro interviu, é que geram tais discussões.6 Vale destacar que em nenhum outro setor o Brasil possui liderança mundial tão grande quanto na citricultura.

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Page 6: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Atualmente, o Brasil é responsável por 26% da produção mundial de laranja e por

53% da produção mundial de suco de laranja, sendo ainda o responsável pela exportação de

85% do suco de laranja consumido no mundo – ou seja, três em cada cinco copos de suco de

laranja consumidos no mundo são provenientes do Brasil. De acordo com dados da

Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos do Brasil, a CitrusBr, o setor

responde por US$ 6,5 bilhões do PIB e representa 3% das exportações do agronegócio (US$

1,84 bilhão), das quais 70% são para a Europa (US$ 1,29 bilhão), 20% são para os EUA

(US$ 400 milhões), 3% para o Japão (US$ 55 milhões), 2% para a China (US$ 37 milhões) e

o restante para outros 82 países.

Esta posição vem sendo mantida devido a grande competitividade brasileira no setor,

graças às boas condições de clima e solo do país, bem como de técnicas avançadas e da

infraestrutura logística e estratégica do setor7, como por exemplo, o aumento no número de

pomares, com diminuição da área plantada (NEVES, 2010). As condições naturais

possibilitam o cultivo de diferentes variedades de laranja, tornando possível a produção

durante todo o ano8, o que facilita a produção em larga escala e, consequentemente, a

liderança brasileira (CitrusBr).

Diferentemente dos EUA, onde a produção sofre até hoje com fortes geadas e

furacões na região da Flórida, ocasionando uma queda no número de árvores em 19%,

juntamente com uma ausência de renovação das árvores, em decorrência da valorização

imobiliária da região9 (NEVES, 2010). Fatores que refletem em sua produtividade, que vem

diminuindo nos últimos 20 anos, sendo atualmente a metade da brasileira.

O produto brasileiro resulta da integração de uma complexa cadeia e da expertise

brasileira na produção de laranja e suco de laranja construída ao longo de muitos anos

(CitrusBr), além da reconhecida qualidade do produto. A citricultura movimenta 15 bilhões

de dólares anualmente e gera 230 mil empregos, pois a colheita é inteiramente manual, fato

que torna seu custo de produção menor que os dos EUA: em 2002/03 foi 3,3 vezes menor e

em 2008/09 1,9 vezes menor. Isto compensa o menor rendimento das laranjas brasileiras (São

Paulo e Minas Gerais), que é 13,72% menor que o das laranjas da Flórida10.

7 Segundo a CitrusBr, a tecnologia empregada toma os cuidados para que o suco, que sai do interior paulista para o resto do mundo, não entre em contato com o oxigênio, não permitindo a oxidação da vitamina C.8 A safra brasileira dura de julho a junho seguinte.9 Muitos produtores venderam seus pomares próximos às cidades, nos quais foram construídos condomínios residenciais (NEVES, 2010).10 O rendimento industrial, ou a vocação da região, é medido através da quantidade de caixas necessárias para produzir 1 tonelada de suco concentrado e congelado a 66º Brix. Na safra de 2009/10, foram necessárias 226 caixas de laranjas produzidas na Flórida para alcançar essa quantidade e 257 caixas produzidas em São Paulo e Minas Gerais. No restante do Brasil foram necessárias 264 caixas (NEVES, 2010).

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A produção brasileira concentra-se no interior de São Paulo (85% da produção) e no

Triângulo Mineiro, a chamada região do Cinturão Citrícola – o Citrus Belt brasileiro (ver

figura 1). “É nessa região que ocorreram as maiores mudanças no padrão tecnológico da

citricultura” (CitrusBr). Nenhuma outra fruta é produzida no Brasil para fins industriais no

mesmo volume que a laranja: em São Paulo 70% das laranjas são destinadas a produção do

suco concentrado e em Minas Gerais, 86% são para esse fim11. De acordo com Neves (2010),

tal indústria possui um caráter empreendedor e na década de 1990 indústrias brasileiras

instalaram-se em outros países, comprando inclusive fábricas de processamento na Flórida12 –

isto também visando superar as restrições estadunidenses.

Segundo dados da CitrusBr, houve um aumento de 45% na produção de laranja no

Brasil entre 1988 e 2010, enquanto que no segundo maior produtor de laranja mundial, os

EUA, houve uma redução de 9% no mesmo período. Com relação ao suco, também houve

aumento na produção brasiliera (55%) e queda na estadunidense (11%) (ver tabela 1). Sendo

a queda na produção mundial de 13%, dos quais 90% por parte da Flórida.

Como 98% da produção brasileira de suco de laranja é destinada a exportação, a

indústria assume papel de financiadora deste processo, pois compra do citricultor à vista e

vende no exterior a prazo (NEVES, 2010). Quem também tem de financiar sua atividade é o

citricultor, que sofre com as oscilações no preço da caixa de laranja, a qual para venda in

natura é mais lucrativa que a venda à indústria. Os pequenos produtores são os que mais

sentem essa variação por não contarem com a ajuda do Governo Federal13. Enquanto nos

EUA, como veremos adiante, quem financia parte do processo é o governo estadunidense,

com auxílios a seus citricultores.

Tabela 1. Produção de laranjas e de suco de laranja no Brasil e nos EUA.

SafraProdução (milhões de caixas

de 40,8kg)Produção de Suco de Laranja

(mil toneladas 66 brix)

11 Nos EUA 78% das laranjas produzidas são para o processamento e 96% destas para suco concentrado (NEVES, 2010). Porcentagem parecida, a diferença fica por conta da quantidade produzida.12 Das 5 maiores indústrias brasileiras, 4 compraram fábricas na Flórida. Ao mesmo tempo, algumas empresas estadunidenses investem na produção brasileira, todavia de forma superficial (LANGEVIN, 2006).13 De acordo com Neves (2010), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento em seu Plano Agrícola e Pecuário para 2010/2011 não cita diretrizes específicas para a citricultura com relação a preço mínimo, linha especial de crédito (LEC), crédito rural para custeio e comercialização, limites de adiantamento de custeio e empréstimo do Governo Federal – o qual se enquadra nas diretrizes da Fruticultura. Enquanto que nos EUA, a Flórida possui um órgão governamental para auxiliar o setor dos cítricos (o Florida Department of Citrus - FDOC), o que equivaleria, no Brasil, a uma junção das entidades privadas Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura), Associtrus (Associação Brasileira dos Citricultores) e CitrusBr (Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos).

7

Page 8: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

São Paulo e Triângulo Mineiro

Flórida TotalSão Paulo e Triângulo Mineiro

Flórida Total

1988-89 214,0 146,6 360,6 687,8 627,8 1315,61989-90 311,2 110,2 421,4 1007,6 474,0 1481,61990-91 246,8 151,6 398,4 823,5 632,5 1456,01991-92 256,0 139,8 395,8 898,0 582,9 1480,91992-93 318,1 186,6 504,7 1070,0 799,7 1869,71993-94 302,2 174,4 476,6 1048,1 748,3 1796,41994-95 307,3 205,5 512,8 1047,7 853,2 1900,91995-96 356,3 203,3 559,6 1095,8 858,0 1953,81996-97 371,0 226,2 597,2 1098,0 981,8 2079,81997-98 428,2 244,0 672,2 1340,0 1051,4 2391,41998-99 338,5 186,0 524,5 1152,9 816,5 1969,41999-00 436,0 233,0 669,0 1324,2 1005,9 2330,12000-01 349,7 223,3 573,0 1089,0 959,7 2048,72001-02 272,8 230,0 502,8 894,5 1000,7 1895,22002-03 367,5 203,0 570,5 1429,7 854,4 2284,12003-04 278,6 242,0 520,6 1072,5 1024,0 2096,52004-05 377,8 149,8 527,6 1369,3 644,5 2013,82005-06 303,4 147,7 451,1 1164,5 653,3 1817,82006-07 351,0 129,0 480,0 1369,2 577,3 1946,52007-08 356,0 170,2 526,2 1362,7 782,5 2145,22008-09 323,3 162,4 485,7 1132,9 731,8 1864,72009-10 317,4 133,6 451,0 1064,7 562,7 1627,4Fonte: CitrusBr (dados selecionados).

É dentro deste quadro que os citricultores e os industriais tentam formar o

Consecitrus, um conselho que servirá para regular tais preços, inspirado no modelo do

CONSECANA (Conselho dos Produtores de Cana-de-Açúcar, Açúcar e Álcool do Estado de

São Paulo). Para isso as indústrias terão que informar seus custos médios reais de produção

industrial, logística, distribuição internacional e de venda, os quais serão deduzidos do preço

de venda internacional. O que trará transparência para o setor (NEVES, 2010). Embora tais

custos de 2009 já foram divulgados, o Consecitrus ainda não é uma realidade14. Assim, a

distância entre produtores e industriais persiste.

Tabela 2. Participação da América do Norte no destino das exportações brasileiras de suco de laranja.

Exportação de FCOJ para Exportação de NFC para 14 O Consecitrus poderia ser entendido como a parte reguladora do FDOC.

8

Observatorio, 23/08/11,
Falta liga com o próximo paragráfo.
Page 9: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

América do Norte América do Norte

AnoTons Brix Original

ParticipaçãoTons Brix Original

Participação

2000 261,356 20% - -2001 190,008 14% - -2002 194,872 16% 29,644 21%

2003 228,953 17% 73,564 26%

2004 147,143 12% 78,630 24%

2005 204,360 15% 83,033 18%

2006 183,541 15% 134,478 24%

2007 252,434 20% 256,590 32%

2008 159,254 14% 206,670 22%

2009 141,505 13% 280,112 30%Fonte: NEVES, 2010 (dados selecionados).

A exportação brasileira de suco de laranja até 2001 foi apenas do chamado suco

congelado e concentrado (FCOJ – Frozen Concentrate Orange Juice), mas a partir de 2002 o

Brasil passou a exportar o suco não concentrado (NFC – Not-from-concentrate). Mudança

ocorrida devido aos próprios consumidores: o NFC é mais parecido com o suco espremido na

hora, assim a maior parte dos países importadores do suco brasileiro passou a importar mais o

NFC. Os sucos, porém, não apresentam diferença somente com relação ao sabor, mas

também com relação a sua taxação. Nos EUA, que sempre importaram mais o FCOJ do que o

NFC (até 2006), o FCOJ importado é taxado em US$ 415/ton e o NFC importado em US$

42/ton (NEVES, 2010).

Figura 1. Divisão das regiões do Cinturão Agrícola brasileiro.

9

Observatorio, 27/08/11,
Vc acha que fica bom colocar um mapa parecido sobre os EUA?
Page 10: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Fonte: NEVES, 2010, pág. 40.

De acordo com a CitrusBr, de 2000 a 2005 o valor das exportações brasileira oscilou

em torno de US$ 1,047 milhão, com uma ligeira queda em 2001 (US$ 845 mil) e um ligeiro

aumento em 2003 (US$ 1,193 milhão). Em 2006 houve um crescimento no valor exportado

para US$ 1,469 milhão. Crescimento que manteve-se até 2009, tendo atingido US$ 2,252

milhões em 2007. Vale ressaltar que as quantidades exportadas mantiveram-se estáveis para o

FCOJ, em torno de 1,3 milhão de toneladas, e aumentaram substancialmente para sucos não

concentrados (NFC), mais que triplicaram.

Contudo, o consumo no mercado interno brasileiro do suco concentrado ainda é

pequeno. Os brasileiros consomem mais o suco natural ou a fruta in natura. Contrariamente

nos EUA, quase 80% do consumo é de suco 100% concentrado, sendo este o maior

consumidor mundial do suco.

10

Page 11: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Em 2010, a laranja esteve valorizada devido a queda na oferta, por uma colheita

reduzida tanto no Brasil quanto nos EUA, atingindo o maior patamar nominal desde 1995.

Em 2011, a valorização deve ser ainda maior, mesmo com um aumento na safra, advindo do

incremento na produção paulista.

Esta competitividade brasileira acabou despertando nos Estados Unidos uma busca

por proteção, levando o Ministério das Relações Exteriores a elencar três questões principais

que afetam as exportações brasileiras do produto em questão a serem corrigidas: pico tarifário

para o setor (caso registrado na OMC em 2002); processos de defesa comercial; e

preferências comerciais a terceiros países (como o México). O caso solucionado em 2011,

que abordado neste trabalho, diz respeito a medidas de defesa comercial.

A Citricultura nos EUA

Enquanto apresentávamos a citricultura no Brasil, fizemos vários paralelos com o

setor estadunidense. Apresentaremos a seguir alguns aspectos não citados, entre eles os

fatores que aumentam a competitividade da citricultura estadunidense em seu país:

“a proximidade do parque citrícola e industrial da Flórida em relação ao consumidor americano; o acesso direto do produtor floridiano ao crédito barato no mercado financeiro (tornando desnecessária a realização de adiantamentos de pagamento por parte da indústria para o financiamento do capital de giro da safra); a ausência cambial na moeda; a não incidência de impostos de importação na produção local (da ordem de U$ 415 por tonelada de FCOJ); e o resultado de décadas de investimentos em marketing para convencer o consumidor americano de que o suco de laranja “produzido 100% na Flórida” é um produto de melhor qualidade, o que justificaria preços mais elevados” (NEVES, 2010). [grifos nossos]

Talvez, os principais fatores apresentados sejam o crédito barato, a não incidência de

impostos de importação (embora haja impostos de produção como o Florida Box Tax) e o

marketing de que o suco produzido na Flórida é de melhor qualidade15. É claro, que a

proximidade do setor com o consumidor e o câmbio devem ser levados em conta, todavia,

qualquer produto exportado terá esse tipo de desvantagem com relação ao mesmo produto

nacional – pelo menos na maioria dos casos.

15 Dois terços do EET e o próprio Florida Box Tax eram destinados a isso (LIMA, 2009). Lima ainda destaca que esta propaganda feita pelo FDOC aumentava a demanda, a qual não a produção estadunidense não conseguia suprir, acarretando um aumento das importações. Ou seja, na prática o marketing para consumir produtos nacionais ampliava as importações. O valor gasto com publicidade pelo FDOC só é menor que o valor destinado a pesquisa de doenças dos cítricos (BOUFFARD, 2011).

11

Page 12: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

De acordo com Langevin (2006), o auxílio do governo estadunidense ao setor, através

do crédito aos citricultores e medidas antidumping, é devido ao peso que o Estado da Flórida

representa nas eleições (Congressuais e Presidenciais) e ao apoio financeiro dos produtores a

estas campanhas eleitorais. Para este autor, apenas os setores citricultores e canavieiros é que

desencorajam o presidente estadunidense a utilizar o fast-track16, diminuindo o poder de

barganha dos EUA em disputas nestes setores.

Lima (2009) descreve muito bem como o resultado das ações internacionais dos EUA

em disputas de comércio dependem muito de quais atores domésticos estão envolvidos. Se a

ação depende do Executivo, é mais provável que ocorra, porém, se depende do Legislativo,

este sofre a influência direta dos grupos de interesse da medida em questão, tornando mais

difícil a mudança. Mostra disso, foi depois da ratificação do NAFTA em 1995, os desafios

legislativos que as indústrias de cítricos lançaram para tentar influenciar o Congresso e barrar

a ameaça do livre comércio das commodities agrícolas. Para tanto, contribuíram com grandes

cifras para as eleições do Congresso em 1998 e 200217. Conseguindo a aprovação de uma

“Farm Bill” favorável em 2002 (LANGEVIN, 2006).

Entretanto, com relação à citricultura, até mesmo o Executivo, sente os custos de

descontentar este grupo, pois o setor apresenta “uma capacidade notável para articular seus

interesses, liderar coalizões e assegurar a lealdade das autoridades eleitas” (Avery, 1998;

Baldwin e Magee, 2000 apud LANGEVIN, 2006). Em 1998 e 2002 o setor opôs-se a

negociação de autoridade fast-track dos presidentes Bill Clinton e George W. Bush, e ainda

fez uma contribuição generosa para as eleições presidenciais de 2000 e 200418,

desempenhando um papel-chave de financiamento destas campanhas.

Mas não apenas de financiamento. Os votos da Flórida em 2000 e 2004 foram

decisivos para a eleição de George W. Bush19, o que lhe deu o título de “Estado Campo de

Batalha” ou “Estado Campo de Balanço” (LANGEVIN, 2006, p. 194). Desde 1976, apenas

16 Mecanismo pelo qual o presidente da República dos EUA pode ratificar acordos sem a necessidade de passar pelo Parlamento.17 De 40 setores da economia estadunidense, as contribuições do setor agrícola para estas campanhas ficam entre o 8º e 10º lugares no total de contribuições. Sendo que as indústrias de cítricos ficaram entre as 20 primeiras maiores contribuições dentro do subsetor de frutas e vegetais, tendo um 6º lugar, totalizando o valor de US$ 317.068,00 para as eleições de 1998, 2000 e 2002. Essas contribuições foram para os Partidos Democrata e Republicano, os quais “prometeram proteger as laranjas da Flórida contra o livre-comércio” (LANGEVIN, 2006, p. 185).18 O Executivo estadunidense é eleito através de um Colégio Eleitoral, composto por 538 votos, os quais estão divididos entre os Estados Federados proporcionalmente a sua população. A Flórida, de 1976 a 2004, ampliou de 17 para 27 os seus votos neste colégio, o que representa um aumento de 58,8% (LANGEVIN, 2006).19 Nas duas eleições Bush recebeu todos os votos possíveis da Flórida no Colégio Eleitoral, sendo que em 2000, o Estado foi palco de desconfianças de fraudes e problemas eleitorais. Este apoio da Flórida fez com que Bush perdesse parte de sua margem de manobra com relação ao livre comércio agrícola.

12

Page 13: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

na primeira vitória de Bill Clinton, em 1992, o candidato vencedor na Flórida foi o Presidente

eleito, incluindo a eleição de Barack Obama em 200820. Isto amplia o poder de pressão dos

grupos de interesse do Estado. Desta forma, “cada vez mais o resultado das eleições da

Flórida é incerto” e tanto republicanos quanto democratas “gastam consideráveis quantias de

tempo e dinheiro [...] para assegurar os votos do Estado no Colégio Eleitoral” (LANGEVIN,

2006, p. 194)21.

O Contencioso

Em novembro de 2008, o Brasil solicitou ao Órgão de Solução de Controvérsias

(OSC) da OMC que realizasse consultas aos EUA para averiguação de algumas

determinações do USDOC sobre as importações de suco de laranja das empresas brasileiras

Montecitrus, Cutrale, Fisher e ‘outras’, para averiguar direitos antidumping com relação às

medidas adotadas pela USCBP, e de determinadas leis, regulamentos, procedimentos,

práticas e metodologias dos EUA. De acordo com o documento da OMC que registra a

abertura dessa consulta (WT/DS382/R), para o Brasil, tais medidas seriam incompatíveis com

as obrigações correspondentes aos EUA em virtude dos Acordos da OMC.

Estas medidas estadunidenses prejudicariam as demandas dos exportadores de suco de

laranja brasileiro porque distorceriam o “cálculo da margem de dumping ao ignorar aquelas

operações nas quais o valor de exportação do produto é superior ao seu valor normal no

mercado doméstico” (MRE, 2010), sendo isto conhecido como zeroing. A investigação aberta

pelo OSC para avaliar o fato se daria em três partes: a investigação inicial; o primeiro exame

administrativo (de 24 de agosto de 2005 a 28 de fevereiro de 2007); e o segundo exame

administrativo (de 1º de março de 2007 a 29 de fevereiro de 2008) (WT/DS382/8). Contudo,

houve ainda um terceiro exame, de abril de 2008 a agosto de 2010.

Na primeira reunião do Grupo Especial do OSC foram considerados os documentos

do Federal Register, onde consta a indicação de que um setor industrial nos EUA,

representado pelas empresas Citrus Mutual, Citrus Belle, Citrus World Inc. e Southern

Gardens Citrus, era materialmente ferido pelas importações dos sucos de laranja da

Montecitrus, Cutrale e “outras”. Nestes documentos estão descritos todo o processo de

análise inflado dos EUA para justificar a aplicação das medidas antidumping contra as

citadas empresas brasileiras.

20 Obama recebeu todos os 27 votos possíveis da Flórida no Colégio Eleitoral (PORTAL TERRA, 2008). 21 Refletindo sobre o Colégio Eleitoral, Langevin (2006) ainda levanta uma dúvida pertinente: será que sem o Colégio Eleitoral os plantadores de laranja poderiam reunir tamanha influência para reduzir o conjunto de ganhos dos Estados Unidos?

13

Observatorio, 23/08/11,
Acho que pode estar na conclusão
Page 14: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

Contudo, para o Brasil, as medidas descritas foram feitas pelo método do zeroing, por

não contabilizarem todas as transações feitas, acarretando em prejuízos para as empresas

brasileiras. Acreditando que consultas não mudariam os métodos de cálculo estadunidenses,

em agosto de 2009 o Brasil solicita a abertura de um Grupo Especial no OSC. Crença que foi

confirmada pelo próprio Grupo Especial ao comprovar que o zeroing não era uma medida

ocasional, era aplicada de forma contínua: usada para a importação do suco de laranja

brasileiro de 2005 até 2010 (apenas deixando de usá-la após a divulgação da investigação

inicial), o que para os formuladores da política externa comercial brasileira, caracteriza-a

como prática.

Desta forma, os argumentos utilizados pelo Brasil basearam-se no cumprimento dos

Acordos Antidumping, os quais estariam sendo interpretados de forma equivocada pelos

EUA. Assim, o zeroing seria contrário a forma recomendada pelo Acordo Antidumping, pois

não realizaria uma “comparação equitativa”. Dumping e margem de dumping são definidos

no Acordo “em relação ao ‘produto’ como um todo e não em relação às operações de

exportação individuais”. É “a conduta [de exportação] sobre os preços, refletida em todas as

operações que se fez ao longo de um período de tempo" (grifos nossos) (Argumentação

brasileira constante no WT/DS382/7). Ao utilizar o zeroing boa parte das exportações

ficaram de fora do cálculo, favorecendo a aparição de dumping positivo.

Os EUA, por sua vez, argumentaram que sua interpretação também era correta, pois

nem todas as transações eram pertinentes para o cálculo do dumping, e que utilizar o zeroing

não afetou o cálculo da margem de dumping já que o dumping pode não aparecer em todas as

transações. Argumentou também que existem vários métodos para se calcular o dumping: o

produto em seu conjunto; cada transação individual com o produto; ou ambos critérios;

invocando que no próprio Acordo há a ressalva de que algumas disposições podem ter várias

interpretações. Para os EUA, o zeroing não afetou as empresas brasileiras, já que, em seu

entendimento, este procedimento deve ser analisado com base nos efeitos e não em seu uso;

só havendo infração se houver efeito prejudicial. O Brasil deveria demonstrar o efeito e não o

uso dessa medida.

O Brasil, contra-argumentando, afirmou que se existem vários métodos de cálculo de

dumping, então cada membro tem seu conceito de dumping. E, se assim for, o OSC serviria

exatamente para isso: resolver as diferentes interpretações de tratados comerciais. Desta

forma, a delegação brasileira alegou ser fundamental atribuir ao termo o mesmo sentido em

todo o Acordo, pois vários significados contrariariam ele. Os representantes brasileiros

14

Page 15: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

acreditam que o Acordo é claro quanto ao que é dumping. Como mostra do efeito do zeroing,

o pagamento dos indevidos direitos antidumping pela Cutrale e Fisher foram utilizados.

Tanto Brasil quanto EUA valeram-se de casos precedentes para formular suas

posições, o que levou o OSC a alguns impasses. Todavia, mesmo o Grupo Especial

concordando com os EUA no fato de que é possível calcular o dumping em transações

específicas, estas devem ser do produto em seu conjunto, como afirmou o Brasil. O Grupo

Especial também concordou com o Brasil com relação ao zeroing não ser uma comparação

eqüitativa, porque a maioria das transações, neste caso, foi negativa e ficou de fora do

cálculo. Sendo o próprio zeroing uma infração contra o GATT. Outro ponto em que o Grupo

concordou com o Brasil foi com relação ao significado dos conceitos, considerando os

utilizados pelo Brasil como os únicos admissíveis.

Nessa perspectiva, o Grupo Especial do OSC condenou as medidas dos EUA,

considerando-as incompatíveis com os princípios da OMC neste e nos outros 4 pedidos de

consultas abertas por outros países contra o zeroing dos EUA. Esta também foi a 10ª vez em

que se solicitou o exame do conceito de dumping por causa do uso do zeroing pelos EUA.

O Grupo Especial do OSC recomendou que os EUA sigam as normas contidas no

Acordo Antidumping da OMC. E, mesmo podendo recorrer da decisão, pela primeira vez, os

EUA não se utilizaram desse recurso. Assim, dentro de nove meses, contando a partir de

junho de 2011, as autoridades estadunidenses deverão retirar as taxas antidumping aplicadas

ao suco de laranja brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso apresentado demonstra como o Brasil vem cada vez mais se utilizando do

Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, sendo o país em desenvolvimento mais ativo

neste sistema e o quarto entre todos os membros da Organização a utilizá-lo. Demonstrando,

assim, a opção pela participação ativa em órgãos multilaterais (MRE, 2010, p. 18).

“A evidência mostra que a política externa brasileira tem elegido o sistema de solução de controvérsias da OMC como um pilar importante de sua ação na área comercial, de forma coerente com sua tradição de privilegiar a solução pacífica de controvérsias e o multilateralismo” (MRE, 2010, p. 50).

Para o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Brasil não atendeu apenas a

interesses de curto prazo, “mas lançou eixos a serem perseguidos no longo prazo que

contribuem para o desenho de um novo quadro de relações multilaterais” (MRE, 2010, p.18).

15

Page 16: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

De fato, o contencioso analisado se enquadra neste objetivo na medida em que as exportações

de suco de laranja desde a década de 1980, quando o Brasil se tornou o maior e mais

competitivo produtor e exportador, sofrem retaliações de seu maior concorrente – EUA –

através de barreiras não tarifárias, como direitos compensatórios (de 1982 a 2000) e direitos

antidumping (a partir de 1987). Resulta disso que em 2007, 50% da capacidade de

processamento da Flórida (EUA) estava nas mãos de empresas brasileiras (Embaixada

Brasileira em Washington, 2007, p. 19).

O contencioso em questão é uma mostra do “protecionismo seletivo” adotado pelos

EUA, que, juntamente com a União Europeia (UE), utilizam-se constantemente de medidas

antidumping, incluindo o zeroing (muito embora, a UE tenha abandonado o zeroing visando

cumprir os acordos da OMC). Essas barreiras localizam-se nas áreas em que o Brasil

apresenta-se mais competitivo, justamente no setor agrícola (Embaixada Brasileira em

Washington, 2006, p. 3).

Pudemos ver como os interesses de uma minoria organizada num país como os EUA

foram (e serão) defendidos internacionalmente, devido ao apoio político que ela representa –

mesmo não tendo uma contrapartida econômica. Temos, ao contrário, no Brasil, um setor

com uma importância maior, porém não tão bem envolvido com a política nacional - não

tendo políticas específicas de crédito nem de exportação.

Deste modo, a vitória brasileira neste contencioso pode ser encarada como uma vitória

de todos os países que desejam a discussão da pauta agrícola nas rodadas da OMC. Mostra-

nos como um setor, mesmo com problemas internos22, conseguiu fazer valer seus interesses

em um foro internacional, comprovando a tese dos win-sets de Putnam.

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22 Devido a não concretização do Consecitrus.

16

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18

Page 19: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

WORD TRADE ORGANIZATION. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-01.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-02.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-03.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-04.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-05.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-06.

_____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos

antidumping e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja

procedente do Brasil. WT/DS382/R-07.

____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos antidumping

e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja procedente do

Brasil. WT/DS382/R-08.

19

Page 20: Análise Comparativa Brasil EUA Laranja

____________________. Estados Unidos – Exames administrativos de direitos antidumping

e outras medidas em relação às importações de determinado suco de laranja procedente do

Brasil. WT/DS382-7.

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