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ANAIS ELETRÔNICOS DO VI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA, NATUREZA E FRONTEIRAS & I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS TEXTOS COMPLETOS

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ANAIS ELETRÔNICOS DO VI ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA,

NATUREZA E FRONTEIRAS

& I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA TERRITÓRIOS

E FRONTEIRAS

TexTos CompleTos

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Diretoria ANPUH-MT 2008-2010Presidente: Thereza Martha Presotti Guimarães (UFMT/Cuiabá)Vice-Presidente: Flávio Ferreira Paes Filho (UFMT/Cuiabá)Secretário: Ely Bergo de Carvalho (UFMT/Cuiabá)Tesoureira: Cláudia Regina Bovo (UFMT/Cuiabá)Supletente de Secretário: Ana Maria Marques (UFMT/Cuiabá)Suplente de Tesoureiro: Vitale Joanoni Neto (UFMT/Cuiabá)

Organização Geral e dos AnaisAna Maria Marques (UFMT)Cláudia Regina Bovo (UFMT)Ely Bergo de Carvalho (UFMT)Flávio Ferreira Paes Filho (UFMT)Leandro Duarte Rust (UFMT)Leonice Aparecida de Fátima Alves (UFMT)Thereza Martha Presotti Guimarães (UFMT)

Arte da Capa / Projeto Gráfico / EditoraçãoIdée Arte e Comunicação

Observação: A adequação técnico-linguística dos textos é de responsabilidade dos autores.

Comissão Científica Eunice Sueli Nodari (UFSC)Gilmar Arruda (UEL)Hugo Vallenas Málaga (Instituto Andrés Townsend Escurra/Peru)José Augusto Pádua (UFRJ)Paulo Henrique Martinez (UNESP-Assis)Temis Gomes Parente (UFT)Vitale Joanoni Neto (UFMT)

Comissão Organizadora do VI Encontro Regional de História

Organização Simpósios TemáticosCândido Moreira Rodrigues (UFMT)Ernesto Cerveira de Sena (UFMT)Igor de Lima e Silva (UFMT)Kátia Eliana Lodi Hartmann (UFMT)Marcus Silva da Cruz (UFMT)Vitale Joanoni Neto (UFMT)Luciano Carneiro Alves (UFMT/Rondonópolis)Renilson Rosa Ribeiro (UFMT/Rondonopolis)Domingos Sávio da Cunha (UNEMAT)João Edson de Arruda Fanaia (UNEMAT)Maria do Socorro Araujo (UNEMAT)Osvaldo Mariotto Cerezer (UNEMAT)Paulo Henrique Martinez (UNESP-Assis)Anna Maria Ribeiro F. M. Costa (Fundação Nacional do Índio)Giovani José da Silva (UFMS)Nauk Maria de Jesus (UFGD)Temis Gomes Parente (UFT)Vanda da Silva (Arquivo Público de Mato Grosso)

Apresentação

O Encontro Regional de História da ANPUH-MT é o principal evento científico de História realizado no Estado de Mato Grosso, o qual possibilita o intercâmbio entre os pro-fissionais de ensino e pesquisa da área de História de todo o estado. É a principal atividade científica organizada pela As-sociação Nacional de História - Núcleo de Mato Grosso e a cada edição ocorre em diferentes instituições de ensino supe-rior, permitindo a integração entre universidade e a sociedade mato grossense.

Para este ano além do VI Encontro Regional de História, cuja temática é “História, Natureza e Fronteiras”, a ANPUH--MT juntamente com o Programa de Pós-Graduação em His-tória da UFMT promove o I Simpósio Internacional de História “Territórios e Fronteiras”. A partir dessa temática pretende-se estimular a reflexão sobre os processos históricos de estabele-cimento das fronteiras físico-culturais e suas relações com as idéias, valores e percepções sobre o mundo natural. O encon-tro é um momento privilegiado para os debates das pesquisas, bem como da prática de ensino de História que visa apresentar, discutir e avaliar o andamento da produção do conhecimento histórico e sua relação com as necessidades sociais e educacio-nais do Estado de Mato Grosso.

Sob a forma de Anais estão aqui reunidos os textos com-pletos das comunicações apresentadas durante o VI Encontro Regional de História da ANPUH-MT “História, Natureza e Fronteiras” e I Simpósio internacional de História “Territó-rios e Fronteiras”, os quais debatem experiências de pesquisas, questões metodológicas e teóricas sugeridas pelo tema central do evento. O aprofundamento dos debates sobre a historicida-de das relações sociais, políticas e econômicas entre a natureza e as fronteiras aqui apresentados auxiliará os profissionais da pesquisa e do ensino da História na compreensão e renovação do saber histórico. Esse aprendizado repercutirá nas concep-ções e ações que estes profissionais irão desenvolver dentro de seus campos de investigação/ação e na prática de ensino da história na educação básica e superior.

Comissão Organizadora

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SumárioParalelo 13º: Fronteira discursiva e seus efeitos na construção dos contextos discursivos sobre desenvolvimento sustentável na região Norte-Matogrossense da Amazônia Legal 9

Caminhos e Descaminhos que levam à Sonora: experiências, recordações e memórias de migrantes. 17

Entre Cartuns e charges: possibilidade de análise documental historiográfico 25

A introdução do sorteio militar em Mato Grosso (1916-1945) 31

Espaço de Poaia, território Umutina e as “Casas de Rondon” 41

Renovação moral e estruturação dos espaços de intervenção clerical na correspondência de Pedro Damiano 49

Relação da tríade: tempo, eternidade e sagrado 61

Servindo ao Santo Ofício: os seus agentes na América Portuguesa 69

“Homens que vivem de ajustes”: trabalhadores livres em ambientes rurais de Mato Grosso (1808-1850) 73

Geopolítica fronteiriça: entre a ameaça espanhola e o controle dos territórios indígenas 85

Índios: imagens e representações nos Livros Didáticos de História 95

Modernização de Cuiabá no século XX: Reivindicações por água nas páginas do Diário de Cuiabá 103

A Educação de Jovens e Adultos na busca pela Igualdade em uma Sociedade Heterogênea - CEJA Profº Antonio de Figueiredo Cesário Neto 109

O ensino secundário em Mato Grosso (1900 a 1920) 117

Porque matar a galinha dos ovos de ouro? A representação da tecnologia para a elite industrial madeireira no Paraná, 1942-1965 123

Traçando linhas do passado: tratados do Antigo Regime e formação dos Estados nacionais no centro da América do Sul. 131

Coxipó, São Gonçalo, Cuiabá: discutindo fronteiras culturais no século XX 139

Do Estado-Nação ao Estado Plurinacional: o caso da Bolívia pós 2008 147

Contribuições da Fronteira de Sérgio Buarque de Holanda 155

Fonte oral como principal referência para desenvolvimento de trabalho sócio espacial na aldeia Umutina 163

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A política de colonização para a Capitania de Mato Grosso no governo de Rolim de Moura (1751 –1765) 169

Frente Unida de Liberación Nacional (FULNA): Experiência de luta armada no Paraguai (1959-1961) 177

Representações sobre o cargo de Juiz de Fora na capitania de Mato Grosso: Justiça e administração (1750-1785) 185

“Projeto Integrado de Colonização Padre Adolpho Rohl: Movimentos Migratórios e Colonização e a formação do município (1970-1980)” 195

Cartas americanas de Alexander von Humboldt 203

A organização dos assentamentos do INCRA na Região Norte de Mato Grosso: o direito à educação como espaço de resistência 211

Políticas Públicas em Mato Grosso pós 1970: divisionismo, ocupação dos espaços “vazios” e movimento de emancipação (1970-2006) 219

Identidade escrita e poder: o caso de Jerusalém em Flávio Josefo 227

A História Ambiental na obra de Warren Dean: estudos preliminares 235

Festas Cívicas nas Fronteiras do Império: Cultura Política em Mato Grosso na segunda metade do Século XIX 243

A “ameaça” comunista como delimitadora de fronteira segura: uma abordagem sobre a repressão no Cone Sul (1964-1979) 253

Cartas de Jane Vanini: uma trama de subjetivação 265

Caminhos que levam a Nortelândia: movimentos migratório e identidade AMINHOS 273

O Estereotipo Boliviano Na Fronteira Brasil Bolívia na Cidade de Cáceres 281

Etnias, Identidades e Representações no processo de colonização em Cáceres – MT, a partir da obra: “Uma Igreja na Fronteira” do bispo D. Máximo Biennès (1955-1987) 289

Migração e Trabalho Escravo no Araguaia mato-grossense: entre o desenraizamento e a reterritorialização 299

MINAS DO CUYABÁ, ILHAS DO SERTÃO: o papel da metrópole na expansão dos domínios portugueses na América durante o governo de Rodrigo César de Menezes na capitania de São Paulo (1721 – 1728). 307

Cinema e História : uma análise do documentário Guerra do Brasil (Sylvio Back, 1987) apontamentos de pesquisa 315

Ethos distintos, naturezas diferentes: invasão e destruição ambiental da Terra Indígena Xavante Marãiwatsédé e seu impacto sobre o sistema cultural A’uwe. 321

A autoridade episcopal na Antigüidade Tardia: apontamentos historiográficos 331

Igreja e Estado – as cartas pastorais de D. Carlos Luis D’Amour, o ultramontanismo e a secularização do cemitério de Cuiabá no limiar do séc. XX.. 339

A arte como suporte da memória: os Murais da Prelazia SFA na consolidação da identidade de um segmento social vulnerável 1977-2001 347

Política Varguista : os marcos regulatórios e a ruptura de um modelo produtivo. 355

O 13 maio em destaque em jornais Mato-grossenses (1888 A 1920) 361

Escravos negros na fronteira oeste da capitania de Mato Grosso: formação de quilombos 365

Tradição e Modernidade no Cerrado: a cidade de Rondonópolis, a associação comercial, industrial e empresarial de Rondonópolis e a História da sua gente de negócios na imprensa 373

Mato Grosso e a Guerra do Paraguai: um conflito anunciado (1852 a 1864) 383

O Modelo de Reforma Agrária do INCRA em Mato Grosso: Uma análise dos assentamentos na fronteira agrícola do Norte do Estado 395

A diversidade étinico-racial no ensino de História 403

Entre dois Impérios: a construção da Fronteira Oeste da América Portuguesa 413

A Colonização Agroindustrial do Cerraso em Mato Grosso 1970-2000 431

História Ambiental e o Ensino de História: as práticas e representações sobre a natureza dos professores de História da Rede Pública de Ensino de Cuiabá. 439

A Emergência de Mato Grosso nas páginas da História Geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854/1857) 445

O estágio supervisionado na formação de novos professores de História: experiências de observação 455

Algumas considerações teórico-metodológicas sobre a Revolução Cubana e as posições políticas de Jean-Paul Sartre. 463

“A Violeta”: uma bandeira feminina hasteada na imprensa mato-grossense 471

Relatos de Repressão na Região Nordeste de Mato Grosso nos anos de 1970 a 1975 479

Mata Cavalo: o sagrado e a identidade quilombola 485

O Funeral Bororo: patrimônio imaterial indígena e sua relação com a natureza 491

Seus dias de fartura estão contados: pensando a contracultura através de “EDUKATORS” 503

Memórias do Patrimônio Imaterial: manifestações culturais africanas e formas de repressão em Mato Grosso (1719-1889) 511

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Paralelo 13º: Fronteira dis-cursiva e seus efeitos na cons-trução dos contextos discur-sivos sobre desenvolvimento sustentável na região Norte-Ma-togrossense da Amazônia Legal

Tânia piTombo de oliveir a1

CrisTinne leus Tomé2

ana Carrilho romero GrunennvaldT3

Introdução

“ E u n u n c a v e j o a q u i l o q u e é , e u v e j o a q u i l o q u e i m a g i n o d e u m l u g a r d e i n t e r p r e t a ç ã o”

• Miche l Pêcheux

O interesse por este trabalho se deu na observação da prática discursiva dos habitan-tes da região norte do Estado de Mato Grosso, região considerada como faixa de transição entre o cerrado e a floresta amazônica (ACORDO SUDAM/PNUD, 1994), prática discursiva esta marcada por mecanismos de discurso de contestação dos habitantes dessa faixa de tran-sição contra o espaço de restrições criado/controlado por medidas governamentais.

1. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutora em Linguística pela UNICAMP. FAPEMAT.

2. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutora em Educação pela UFRGS. FAPEMAT.

3. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Sinop, Doutora em Educação pela UNICAMP. FAPEMAT.

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras I Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras - ANPUH/MT

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Essa região convive em permanente estado de confronto na sua relação com o Estado, sob o impacto de medidas provisórias, projetos e punições fiscais que incidem sobre a região.

Contextualizando a pesquisa

Tomando como referência para as entrevistas que constituíram o corpus de análise a Medida Provisória (MP) nº 1.511 de 22 de julho de 1996, que normatiza a obrigatoriedade da reserva legal nas propriedades rurais em 80% e o desmate em 20% ao contrário do restante do país em que se preserva 20% e é permitido desmatar 80%; e a Portaria 16/99 do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) publicada no mês de fevereiro de 1999, suspendendo por cento e vinte dias a concessão de novas autori-zações para desmate em toda região amazônica e revogando as concedidas anteriormente; deparamo-nos, na prática discursiva dos habitantes da faixa de transição, com severas críticas às medidas restritivas da MP 1.511/96 e à edição da Portaria 16/99. Esta situação acarreta discussões calorosas favoráveis ao desenvolvimento da região.

Focalizamos a cidade de Sinop, como referência discursiva representativa dos habi-tantes da faixa de transição e a partir das suas falas foram produzidos recortes em que esta se marca pela referência à injustiça e interdição ao desenvolvimento decorrente do discurso jurídico-preservacionista governamental destas restrições, e conseqüentemente incluindo a região em um discurso de preservação da Amazônia.

Enquanto moradoras de Sinop e inseridas nesse confronto perguntamos: o que estaria funcionando neste contexto regional que poderia parecer tão insólito aos olhos de alguém que estivesse fora desse processo? O que estaria tão opaco para que grande parte da popu-lação do país, em especial a mídia, hostilizasse os habitantes da região?

Esta inquietação levou-nos a procurar algo que não estivesse tão visível. E no encontro com a Análise do Discurso (AD) é que nos propomos a pensar discursivamente sobre estes questionamentos e estudar o tema para entender, a partir das relações imaginárias constitu-tivas dos processos discursivos, a oposição ‘entre aquele que pode’ e ‘aquele que não pode’ presente nos discursos dos habitantes, no confronto com o discurso governamental.

Aqueles que podem/ aqueles que não podem

As fontes foram constituídas pelas entrevistas com sujeitos moradores no Norte de Mato Grosso que discorrem sobre os desdobramentos das medidas restritivas da MP 1.511/96 em sua rotina de vida, jornais, periódicos, leis e portarias acerca da questão. Os recortes aqui apresentados foram produzidos, a partir das relações imaginárias constitutivas dos processos discursivos, pela oposição entre ‘aquele que pode’ e ‘aquele que não pode’, presente nos dis-cursos dos habitantes da faixa de transição ou pré-amazônica no confronto com os discursos preservacionistas governamentais.

Veremos que, discursivamente, esses habitantes se identificam como ‘aqueles que não podem’, desmatar, plantar, produzir, trabalhar, sentindo-se injustiçados pelas medidas decor-rentes da nova maneira de pensar da política ambiental que no ver desses habitantes não se aplicaria à faixa de transição.

Observemos o recorte:

[...] eu vim lá do sul. De repente eu chego aqui e a terra não serve pra mais nada, não pode desmatar mais nada, é pra reserva. Isso aí também é que nem pregar prego no mar né [...] 80% ou 50% de reserva pra quem veio pra abrir 80% é muita reserva né, é muito chão.4

A seqüência discursiva “De repente eu chego aqui e a terra não serve pra mais nada [...] é pra reserva” vem carregada de sentidos, em que “de repente” produz um corte, uma divisão que marca dois momentos distintos. Antes e agora, contraditórios em relação ao trabalho com a mata. Isto gera insegurança, incerteza em relação a um futuro, vividas nas constantes alterações da lei através de Medidas Provisórias como vemos em: “80% ou 50% de reserva para quem veio para abrir 80% é muita reserva né, é muito chão”.

“De repente”, neste caso, significa – a qualquer momento – as leis podem ser alteradas, não existem garantias.

Com “não pode desmatar” esses habitantes, discursivamente, se sentem excluídos de uma situação de desenvolvimento, de investir na Amazônia, pois desenvolvimento é o pré--construído do agricultor que está posto na formulação “desmatar” para plantar. Se o desma-te não é permitido, não se tem como plantar, não se produz não se trabalha.

“Mais nada” remete a um vazio. Se o agricultor, o madeireiro, o pecuarista não pode desmatar, não vê alternativas para o desenvolvimento no qual estava inserido. Na memória discursiva desses habitantes, desenvolvimento está relacionado a: desbravar o sertão, desbra-var o cerrado, desbravar a floresta, desmatar, plantar, ganhar dinheiro, investir, enfim, a uma política liberal que se estrutura no trabalho.

Em “a terra não serve prá mais nada, é prá reserva”, vemos uma intercambiabilidade entre “nada” e “reserva”. Preservar a mata para os habitantes desta região significa excluir a utilização da terra – “não serve pra mais nada” – excluir os habitantes dessa relação, excluir o trabalho, algo inaceitável no interior de nossa organização liberal capitalista.

Para Pêcheux (1997:164) o ‘pré-construído’ corresponde ao ‘sempre-já-aí’ da interpela-ção ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma de universalidade (o mundo das coisas), ao passo que a articulação constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito.

Plantar é o posto na formulação do agricultor/produtor. O pré-construído é o desen-volvimento liberal capitalista que se sustenta com o trabalho de cada um. Essa é a política do liberalismo. Trabalhar para desenvolver. O agricultor tem que plantar. Reconstruir áreas é uma outra questão posterior, secundária.

Como nesta formulação: “o agricultor não tem dinheiro sequer para plantar quanto mais para reconstruir uma mata nativa de cerrado”. (REVISTA PRODUTOR RURAL, março de 1999:31).

“Sequer”, tem relações com: ao menos, pelo menos; sendo assim, o básico, o primor-dial, o lógico para esses habitantes é plantar. Existe uma relação de intensidade entre ao

4. Depoimento de um Agricultor. Entrevista realizada no dia 04 de fevereiro de 1999 por Tânia Pitombo de Oliveira.

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras I Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras - ANPUH/MT

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menos e o “quanto mais”. O agricultor deve ao menos plantar. Reconstruir está além de suas obrigações, além de suas possibilidades na verdade.

O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua – com a história. A interpretação é a marca da subjetivação que se realiza na relação do sujeito com a língua, com a história e com os sentidos remetendo à exterioridade porque não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O sentido sempre pode ser/tornar-se outro. Esse outro enunciado é o lugar da interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos.

Desta forma, só é possível entender a posição dos protagonistas do discurso e o con-texto ou a situação na qual aparece o discurso através da noção de “condições de produção” (PÊCHEUX, 1997; ORLANDI, 1999). Assim, quando as condições de produção do discurso não são levadas em consideração, a análise não se mostra capaz de explicar o funcionamento discursivo, apontando para um discurso sem memória, em que a contradição entre as várias formações discursivas que ali se entrecruzam fica apagada (LAGAZZI, 1988).

Consideramos como uma das condições de produção deste discurso, em um contex-to imediato, o texto da Medida Provisória 1.511 que aumenta a área de reserva legal ao norte do paralelo 13º, também o fato da faixa de transição ser limítrofe ao paralelo 13º e esta pro-ximidade aumenta o sentimento de injustiça destes habitantes, e ainda, a cobertura vegetal desta região, permitindo que estes habitantes aleguem que esta é uma região de mata não pertencente à floresta densa amazônica.

As condições de produção em seu contexto amplo trazem para a consideração dos efeitos de sentidos elementos que derivam da forma de nossa sociedade, das Instituições, entre elas o governo, no modo como organiza poder estabelecendo leis que devem ser cum-pridas, neste caso específico, a edição da MP que altera a área de reserva legal.

Ingerência externa/organizações não governamentais

No discurso das lideranças ruralistas:

o jogo de pressões das ONGs precisa acabar (...) mais de 3 mil ONGs estão atuando no Brasil (...) existem ONGs e ONGs, mas a maioria absoluta está dilapidando nosso patrimônio genético”. (Deputado Estadual-MT – Bancada Ruralista)

Nesse recorte, a direção da formulação está no sentido da crítica à atuação das ONGs, mas o que reforça este sentido é a contradição local observada entre “existem ONGs e ONGs” e “maioria absoluta”. Em “ONGs e ONGs”, encontramos o significado de que algumas se pres-tam a pressões ambientalistas com restrições ao desenvolvimento e outras não, o que se contradiz em “a maioria absoluta” em que “absoluta” apaga qualquer outro sentido de ONGs que não seja o de pressões ambientalistas com restrições ao desenvolvimento.

Esta seqüência discursiva, que traz uma contradição local, é aceita com normalidade em um processo discursivo porque, em termos de efeito geral, reforça a idéia de crítica à atuação destas entidades. Apaga-se a contradição local e se reforça a idéia dos interesses das ONGs pelo patrimônio brasileiro.

A contradição não está na posição sujeito e sim na seqüência discursiva. A posição sujeito é a mesma apesar do jogo da argumentação na sua variedade.

No discurso dos moradores da faixa de transição:

As ONGs patrocinadas pela Firestone e Pirelli trabalham contra a insta-lação da hidrovia alegando destruição das margens dos rios e em alguns trechos invasão das reservas indígenas, mas na realidade querem conti-nuar vendendo pneus para os caminhões nestas estradas esburacadas. (Entrevista à radio local – AM – março de 1999).

Na relação discursiva, o que importa são as imagens que resultam de regras de proje-ções e que permitem ao analista considerar não a situação empírica, mas a posição discursiva, sendo que esta posição significa em relação ao contexto sócio-histórico e à memória. Assim, as imagens constituem as diferentes posições na relação discursiva.

Para os habitantes da faixa de transição, as ONGs internacionais atuam no Brasil e, em especial, nas regiões em que se observa a expansão da agropecuária como a região norte do Estado de Mato Grosso, com um discurso preservacionista de opressão, que, nas relações de força, atuam no imaginário destes habitantes constituindo posições para o discurso das ONGs como discurso econômico de opressão.

No discurso dos habitantes da faixa de transição não há lugar para o argumento pre-servacionista. Mesmo movidas por razões diferentes das razões governamentais, as ONGs impõem as mesmas restrições aos habitantes da faixa de transição. Daí que o argumento ambiental fica silenciado pela crítica da submissão econômica.

O desenvolvimento entre um jogo de

A região Amazônica tem suscitado ações opostas/distintas de preservação/explora-ção em nome do desenvolvimento.

Cabe, então, perguntar, quais os sentidos de desenvolvimento em jogo?

Por desenvolvimento podemos pensar a emergência de diversos sentidos dependen-do de como se dá a identificação do sujeito com o discurso e sua inscrição no interdiscurso.

No dizer do Deputado Federal que representa a região da faixa de transição e compõe a Comissão Mista para a elaboração do novo Código Florestal da Amazônia, observamos a seguinte formulação:

Ora, desde que o governo implantou os índices de 80% e 50% não se conteve o avanço dos desmatamentos constatados pelo próprio INPE, Ins-tituto Nacional de Pesquisa Especial (...) não se contém desmatamento por lei ou decreto (...) é a falta de uma política séria e competente para o desenvolvimento do setor florestal que empurra o debate para a guer-ra de índices (...) essa política de desenvolvimento da Amazônica deve ser delineada o mais rápido possível (...) nunca se considerou a imple-mentação de um pólo moveleiro para a região que seria, esta sim, uma forma de agregar, gerar, e distribuir renda, possibilitando retorno de in-vestimento em manejo florestal. (Carta aberta à população, maio de 1999).

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras I Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras - ANPUH/MT

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O sentido de desenvolvimento, neste recorte, ressalta os significados de condições de emprego, trabalho e subsistência encontrados no dizer dos habitantes da faixa de transição e acrescenta uma crítica à política de desenvolvimento para a Amazônia por parte do governo, considerada inexistente e ineficaz.

No discurso dos habitantes da faixa de transição, desenvolvimento está ancorado nas necessidades presentes:

Ninguém vem aqui prá daqui cinqüenta anos tirar alguma coisa. Do jeito que vai esse país ninguém sabe o que vai ser daqui a cinqüen-ta anos. Nós não temos capacidade de investimento a longo prazo. Tudo o que nós investimos precisamos de um retorno a médio prazo: 03, 05 até 10 anos. (Agricultor, entrevista realizada em 04 de fevereiro de 1999).

Esse presente imediato acentua a diferença de sentidos no significado de desenvol-vimento no discurso dos habitantes da faixa de transição em sua relação de oposição ao discurso jurídico-preservacionista governamental.

No discurso dos habitantes da faixa de transição, o significado de desenvolvimento se mostra em formulações como: “retorno a médio prazo”, “03, 05, até 10 anos”, “hoje”.

O discurso jurídico-preservacionista governamental apontaria, no dizer do agricultor, para desenvolvimento com preocupações futuras: “50 anos”, “longo prazo”.

Há uma oposição de sentidos em relação ao tempo: curto prazo/longo prazo, retorno imediato/retorno a longo prazo. O “agora” no discurso dos habitantes da faixa de transição se mostra nas necessidades imediatas, no dia de hoje, com o tempo presente; em oposição à imagem que fazem do discurso jurídico-preservacionista governamental em que reconstruir áreas demanda tempo - a longo prazo.

O “discurso desenvolvimentista” em que se inscrevem os habitantes da faixa de tran-sição prega a manutenção das propostas e garantias oferecidas pelo discurso jurídico-gover-namental à época da colonização da região norte do Estado do Mato Grosso na década de setenta e se coloca em uma posição de oposição às novas medidas de proteção ambiental de caráter restritivo e punitivo no “discurso preservacionista” governamental que se inscreve na “nova ordem mundial da globalização”.

Efeitos de Fronteira

Ao pensar sobre os conceitos de fronteira - visível e invisível - propostos por Pêcheux (1990) e os reportando para o objeto de estudo deste trabalho, consideramos fundamental compreender, neste caso, o paralelo 13º na relação com a linguagem.

Considerado como um marco visível - assinalado em mapas - seria somente mais um paralelo se não fosse o fato de que estabelece uma fronteira discursiva após a edição da Me-dida provisória 1.511/96. Ele redivide o país, os homens e não só o espaço. E é este fato que o torna diferente dos demais.

O paralelo 13º é uma fronteira discursiva que estabelece o sentido de ‘aquele que não pode’ ao “norte/acima” do Brasil, diferentemente do ‘aquele que pode’ ao sul/abaixo5.

Este paralelo carrega um sentido pelo qual ele se torna visível/sentido/discutido/re-jeitado por ‘aquele que não pode’, em sua constituição histórica. ‘Aquele que não pode’/ ‘Aquele que pode’.

O paralelo 13º estabelece o sentido da exclusão. Os habitantes da faixa de transição são excluídos de um processo de desenvolvimento em que estavam inseridos.

Fronteira jurídica visível que impede o desmate e traz como conseqüência a afirmação “agora não posso trabalhar”. Mas os sentidos de trabalhar na ordem global preservacionista não incluem o desmate e assim discursivamente, também, esta afirmação fica desautorizada.

Vemos que, como fronteira, o paralelo 13º demarca limites dentro de uma mesma for-mação discursiva: a estatal capitalista. E, enquanto essa fronteira significar nesses limites, o irrea-lizado, tal como posto por Pêcheux (1990), continuará para além de qualquer discussão global.

Bibliografia

ACORDO SUDAM/PNUD. Manual de Diretrizes Ambientais para Investidores e Analistas de Pro-jetos na Amazônia. Belém: SUDAM, 1994.BRASIL. Medida Provisória nº 1.511, de 25 de julho de 1996. Dá nova redação Art. 44 da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, e dispõe sobre a proibição do incremento da conversão de áreas florestais em áreas agrícolas na região Norte e na parte Norte da região Centro-Oeste, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasí-lia, DF, 25 jul. 1996, nº 144, Seção 1, p. 13839.______ . Portaria nº 16-N, de 17 de fevereiro de 1999. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Brasília, DF, 18 fev. 1999, nº 32, Seção 1, p. 18.LAGAZZI, S. O Desafio de Dizer Não. São Paulo: Pontes, 1988.MORADOR DA FAIXA DE TRANSIÇÃO. Entrevista à Radio AM de Sinop. Março de 1999.ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.PÊCHEUX, Michel. Delimitações, inversões, deslocamentos. Cad. De Est. Ling., Campinas (19): 7-24, jul./dez. 1990.______ . Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.

REVISTA PRODUTOR RURAL. s.n.b. março, 1999.

5. A prática discursiva acima/abaixo se dá pela visualização do mapa e não pela demarcação geográfica que ao norte (aci-ma) do paralelo 13º vem o 12º, 11º, 10º, etc...

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Caminhos e Descaminhos que levam à Sonora: experiências,

recordações e memórias de migrantes.

be aTriz dos sanTos de oliveir a FeiTosa1

A compreensão dos conceitos historiográficos são fundamentais para o trabalho de representação do espaço de Sonora a partir da historiografia. Said (2001) em

seu “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, aponta que “a análise do texto orientalista, enfatiza a evidência, que de modo algum é invisível, de tais representações como representações, e não como descrições naturais do Oriente” (1990:32). É necessário ter em vista que o trabalho do historiador não é o de fabricar, produzir um objeto, é muito mais o trabalho da representação por meio da prática de observação, mediada pelo amadurecimen-to teórico, aliado às práticas dos atores sociais que ocupam aquele espaço, suas vivências, experiências e memórias, juntamente com certas condições materiais que permitiram se or-ganizarem de determinadas formas, trajetórias revividas pelas memórias que trazem à tona e que são ferramentas fundamentais para o trabalho do historiador. “Em qualquer exemplo, pelo menos da linguagem escrita, não existe nada do gênero de uma presença recebida, mas sim uma re-presença, ou uma representação.” (Said, 1990:33). Neste sentido, as produções no campo da historiografia, são representações de quem escreve, a partir do universo daquele que escreve. Essas são questões que se mantiveram muito presentes na tarefa de reconstruir esse passado de Sonora. A opção teórica por determinados conceitos, sempre tendo em vista um universo de possibilidades que normalmente são negligenciados, muito pela problemá-tica do tempo para a realização da pesquisa, mas muito também pela incompatibilidade de determinados conceitos dentro de um projeto de pesquisa que se intentou trabalhar. Optou-se por alguns conceitos tais como: fronteira, território, desterritorialização, migrações

1. Aluna do Programa de Pós-graduação em História - Territórios e Fronteiras da Universidade Federal de Mato Grosso, bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

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temporárias e identidade para, a partir deles, empreender um trabalho de reflexão histórica que primasse pela compreensão do processo de constituição de Sonora.

Prima-se pela necessidade de adentrar a história como experiência, perceber as prá-ticas de poder que instituem a representação da cidade, buscar por meio da pesquisa dar conta do movimento que produz a cidade. Sonora, fruto da experiência, resultados de des-locamentos, uma cidade que não cabe em cadeias interpretativas é o resultado da experi-ência de gente, incluída ou não no processo produtivo, o espaço ao mesmo tempo do lugar daquele que fica e do não-lugar daquele que parte a cada ciclo encerrado no corte da cana. De acordo com Borges (2006) “o não lugar acaba, por sua vez, transformando-se num lugar especial, diferente e com outras características identitárias, desta vez construída por todas as pessoas que fazem a cidade, e não por apenas um segmento, como normalmente acontece nos lugares muito tradicionais”. Há quem afirme ser uma cidade nova, fruto de práticas muito recentes de ocupação capitalista do território, entretanto, para além do fator econômico que motiva a ocupação, esta é o resultado da dinâmica do movimento de pessoas.

Este trabalho é uma oportunidade de compreender a cidade como movimento, visto que “ os lugares amados são os lugares ‘intatos’, e ninguém concorda com esta afirmação com mais veemência do que aqueles que vivem nos lugares ‘estragados’” (Willians, 1989: 341) inten-tando compreender que a experiência é algo que se produz nessa cidade, com diria Willians já estragada pelo movimento, não como construção de uma realidade, natural, irreversível, mas como prática de representação dessa realidade. E, “considerando não haver prática ou estrutu-ra que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (Chartier, 1991), é que se torna possível compreender a dinâmica da ocupação de Sonora, a “Princesinha do Norte”.

No tocante à compreensão sobre fronteiras utilizamos os estudos de Waibel, para quem a questão é se ainda “temos tais zonas pioneiras no Brasil e, em caso afirmativo, onde estão localizadas [...] o que exige uma melhor definição dos conceitos de frontier e pionner” (1979: 281).

De grande relevância ainda para o presente estudo foi a obra de Martins (1997), para quem o termo fronteira, no Brasil, é tratado de forma particular por geógrafos e antropó-logos. Para os primeiros, como um termo que designa uma zona pioneira ou uma frente pioneira. Os segundos, sobretudo a partir dos anos cinqüenta, definiram essas frentes de des-locamento da população civilizada e das atividades econômicas de algum modo reguladas pelo mercado, como frentes de expansão.

A designação de frentes de expansão formulada por Darcy Ribeiro, como “fronteiras de civilização”, tornou-se uso corrente até mesmo entre antropólogos, sociólogos e historia-dores que não estavam trabalhando propriamente com situações de fronteira da civilização. Ela expressa a concepção de ocupação do espaço de quem tem como referência as popula-ções indígenas, enquanto a concepção de frente pioneira não leva em conta os índios e tem como referência o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor (Martins, 1997).

Tais definições parecem apontar que a concepção dos antropólogos sobre a expansão é mais ampla, pois incorpora os índios, desconsiderados por um grupo de estudiosos.

Pierre Monbeig define os índios alcançados (e massacrados) pela frente pioneira no oes-te de São Paulo como precursores dessa mesma frente, como se estivessem ali transitoriamente à espera da civilização que acabaria com eles. A ênfase original de suas análises estava no reco-

nhecimento das mudanças radicais na paisagem pela construção de ferrovias, das cidades, pela difusão da agricultura comercial em grande escala, como o café e o algodão. A partir da reflexão dos conceitos de fronteira, zonas pioneiras e zonas de expansão dos autores supramencionados, Martins (1997) se sente à vontade para fazer uma primeira datação histórica: adiante da frontei-ra demográfica ou da “civilização”, estão as populações indígenas que sofrem as conseqüências dos processos de expansão. Entre a fronteira demográfica e a fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente pioneira, dominada não só pelos agentes da civilização, mas, também, pelos agentes da modernização que se constituem em agentes da economia ca-pitalista que vai além da economia de mercado. São agentes de mentalidade inovadora, urbana e empreendedora (Martins, 1997). Ao que tudo indica essa mentalidade esteve presente entre os agentes de colonização da região estudada, assunto que exigirá uma atividade intelectual de maior profundidade e que por ora são caminhos pelos quais ainda dou os primeiros passos.

A mão-de-obra que fixou residência no núcleo urbano de Sonora, popularmente conhecida como “Princesinha do Norte” , desempenhava funções totalmente voltadas às atividades agrícolas, e foi justamente o trabalho na lavoura que contribuiu para atrair mais migrantes o que resultou em relativa expansão populacional. Segundo informações obtidas em pesquisa de campo foi possível constatar as dificuldades iniciais que se colocavam ao trabalhador que se fixou nessa região a partir dos anos de 1970.

No princípio foi muito ruim porque daqui onde nóis trabalhava dava, mais de 40 Km(...), aí moço nóis ia cedo de madrugada, quando dava 04 horas eu levantava, pegava um trator subia a turma dentro numa carre-ta da roda dura, nóis ai pra lá, quando era de tarde a gente carregava a carreta de madeira e vinha. (...) mais era uma vida sufrida, que eu nunca vi daquele jeito, cedo de madrugada pra lá e de noite pra cá, um frio. (...) Um dia eu disse, essa vida nossa num ta dano não chegá em casa todo arrebentado por dentro.2

Le Goff (1994:143) no tocante ao trabalho com as fontes orais e com depoimento como os supramencionados, afirma que “nenhum documento é inocente. Deve ser anali-sado. Todo documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. O historiador não deve ser apenas capaz de discernir o que é “falso” , avaliar a credibilidade do documento, mas também desmistificá-los. “Os documentos só passam a ser fontes históricas depois de estar sujeitos a tratamentos destinados a transformar sua função de mentira em confissão de verdade”. É desta forma que me disponho a trabalhar com as fontes orais em minha caminhada de pesquisa histórica.

Segundo dados coletados na pesquisa de campo, constatou-se a ação de empreitei-ros encarregados de trazer trabalhadores de outras regiões para o trabalho no corte de cana durante o período de safra. No decorrer da entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais do município o trabalho era contratado por “gatos”. Quando solicitado para que falasse mais a respeito do trabalho das empreiteiras foi obtido a seguinte resposta:

... empreiteira, a gente fala assim empreiteira, pra não maltratar muito sabe, porque na verdade é gato mesmo, o famoso gato. Então o gato é o

2. Entrevista concedida por Sr. Elminio Manoel Rosa, trabalhador aposentado da Companhia Agrícola. Trabalhou por 17 anos na usina.

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seguinte: o que acontece? Quando o trabalhador ganha 10 reais, por exem-plo, o gato ganha 20 em cima do trabalho do trabalhador...3

Thompson (1992) considera que “a História Oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da História. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria História e revelar novos campos de investigação (...) pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a História um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras”. A entrevista com o presidente do sindicato dos trabalhadores rurais é elucidativo da existência desse lugar na história que as pessoas atribuem a si próprias. Halbwachs (1990) discute na obra “Memória Coletiva”, a questão de buscarmos fundamentar questões que já conhecemos por meio do depoimento de outras pessoas, afirma que:

fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já estamos informa-dos de alguma forma, embora muitas circunstâncias nos pareçam obscu-ras. (...) Ora, a primeira testemunha, à qual podemos sempre apelar, é a nós próprios. (...) Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais. Tudo se passa como se confrontássemos vários depoimentos.

Para Bauman (2005) “a metodologia utilizada para abordar um assunto busca acima de tudo “revelar” a miríade de conexões entre o objeto da investigação e outras manifesta-ções da vida na sociedade humana”. São essa conexões que tenho buscado fazer em relação ao estudo da região do Vale do Correntes, onde está localizado o município de Sonora no extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul. No intuito de compreender os “ Caminhos e os Descaminhos que Conduzem à Sonora” bem como as políticas de incentivo ao pro-cesso de ocupação do extremo norte do estado de Mato Grosso do Sul a partir de 1970”, busco entender as questões concernentes ao incentivo governamental na forma de créditos subsidiados que possibilitaram a colonização privada na região do Vale do Correntes, onde atualmente está localizado o município de Sonora ao norte do estado de Mato Grosso do Sul, procuro entender ainda a dinâmica da fronteira que levou à formação daquele espaço, bem como a questão de territorialização, desterritorialização e concepções de identidade com base em autores que trabalham com questões concernentes a Territórios e Fronteiras.

A formação daquele território e das identidades ou do embate entre essas identidades que se encontram ali presentes parecem fazer parte de um quadro geral da sociedade brasi-leira dos anos de 1970 é o que aponta o jornal “Defesa” no ano de 1975.

O norte do Mato Grosso começa a repetir a tristemente conhecida história

3. Entrevista concedida pelo Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sonora-MS, senhor Antônio de Oliveira Neto ( popularmente chamado de Cearazão), que chegou na região no ano de 1983, foi trabalhador no corte da cana por dois anos e meio, durante este período sentindo-se injustiçado pelo trabalho dos gatos, participou da criação do Sindicato cujo objetivo maior era fazer com que a Usina contratasse seus trabalhadores, abolindo desta forma a ação das empreiteiras no processo. Outra questão defendida pelo sindicato, na época foi com relação à utilização das máquinas pela Usina no corte da cana, processo esse que em última instância é o grande responsável pela questão do êxodo rural. Entretanto, sabe-se que a utilização das máquinas no corte da cana só não se deu ainda de forma definitiva porque não realizam todo o trabalho com a qualidade do desenvolvido pelo ser humano e não porque a empresa tenha se solidari-zado com a situação do trabalhador.

da colonização do norte do Paraná , onde a luta pela terra, com o sacrifí-cio físico e sanguinolento dos contendores era lugar comum.

Aqui também, já é comum a luta fratricida por plano de terra. Veja-se a estatística criminal e constate-se que 60% dos crimes ocorridos no norte do estado são oriundo de questões de terras.4

O artigo do jornal Defesa, de 1975 aponta para a questão da formação do território brasileiro e a violência que a constituição desse território teria gerado, isso pode indicar que os embates teriam levado ao fato de que uma parte da população teria tido acesso a esse território enquanto outra parcela desta população teria sido desterritorializada, não nos cabe nos limites do presente texto discutir as questões de formação de propriedades, em que ba-ses e mediante quais métodos, o que interessa nos limites desta produção diz respeito a uma questão de operacionalização de conceitos e ao tratar da questão da desterritorialização, não poderia deixar de citar HAESBAERT (2006), para quem “o mito da desterritorialização é o mito dos que imaginam que o homem pode viver sem território, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se o movimento de destruição de territórios não fosse sempre, de algum modo, sua reconstrução em novas bases (HAESBAERT:2005)”.

O termo desterritorialização é novo, entretanto os argumentos utilizados em torno dessa questão não são inéditos como aponta HAESBAERT (2005), ao afirmar que “muitas posições de Marx em “O Capital” e no “Manifesto Comunista”revelavam claramente uma preocupação com a “desterritorialização”capitalista, seja a do camponês expropriado, trans-formado em “trabalhador livre”, e seu êxodo para as cidades, seja a do burguês mergulhado numa vida em constante movimento e transformação, onde “tudo que é sólido desmancha no ar”na famosa expressão popularizada por BERMAN (1986)”.

Parece-me que a obra de BAUMAN (2005) caminha de um pólo à outro das concep-ções apontadas por Haesbaert, visto que para ele ao mesmo tempo que considera “a questão da identidade como estando ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da sensação de insegurança, com a “corrosão do caráter” que a insegurança e a flexibilidade no local de trabalho têm provocado na sociedade”. Considera também a iden-tidade “como algo revelado a ser inventado, e não descoberto”. Em suma, o discurso que procura estabelecer uma identidade é claramente ideológico, defende interesses que não são necessariamente legítimos.

Enquanto para Haesbaert a desterritorialização é um mito e o que existe na verdade são territórios múltiplos, Bauman fala da existência de desterritorializados “num mundo de soberania territorialmente assentada. Ao mesmo tempo que compartilham a situação de subclasse, eles, acima de todas as privações, têm negado o direito à presença física dentro de um território sob lei soberana, exceto em “não-lugares” especialmente planejados, denomi-nados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas “normais”, “perfeitas”, vivem e se movimenta”.

Ao finalizar este texto compartilho com o leitor, algumas reflexões e analogias que considero possíveis em relação à questão do “não-lugar”, penso que os barracões e alojamen-tos criados especificamente para os trabalhadores do corte de cana-de-açúcar, em regiões

4. SOUZA, Ernane Vieira de. “O Poder Judiciário no Admirável Mundo Novo”. Jornal Defesa da ordem dos advogados ma-togrossenses. Cuiabá: junho de a975, ano I, N. 1. Consulta realizada no Arquivo Público de Mato Grosso (APM) no dia 04 de agosto de 2009 .

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como a do Vale do Correntes, por exemplo, podem ser entendidos como “não-lugares”, pois é o espaço, onde o trabalhador, desterritorializado de seu lugar de origem e sofrendo os efei-tos de uma fragmentação da sua identidade e, em alguns casos até mesmo a perda desta, momentos em que chegam à condição de verdadeiros lixos humanos, habitando a tênue fronteira que os separa da condição de seres humanos, os barracões são espaços de uma vida em suspense, à espera sempre do momento de retorno para os locais de origem onde, em geral o que aguarda a maioria desses trabalhadores é uma situação de marginalização social e pobreza. Destaca-se o fato de que a geração que nasceu nos anos de 1970, está sofrendo os efeitos da formação do mundo contemporâneo, especialmente dos anos de 1990, momento em que as pessoas deixam de ser desempregadas e se tornam “redundantes”, ou seja, passam a não ter mais espaço e conforme as palavras de BAUMAN (2005), passam a ser refugo, lixo. A trajetória dos referidos trabalhadores é marcante, visto que o limite entre exclusão e inclusão é muito tênue.

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. “Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi”. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005

BAUMAN, Zygmunt. “Vidas desperdiçadas”. Tradução de Carlos Aberto Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

BERMAN, Marshall. “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”. Trad. de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

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HAERBAERT, Rogério. “O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritoria-lidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

HALBWACHS, Maurice. “ Memória Coletiva” .São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF. Jacques. “ História e Memória”. São Paulo: editora da UNICAMP, 1994.

MARTINS, José de Souza. “Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano”.São Paulo: Hucitec, 1997.

MONBEIG, Pierre. Os pioneiros. In: Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Polis, 1984.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

THOMPSON, Edward P. “ A Voz do Passado: História Oral”.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

WAIBEL, Léo. As zonas pioneiras do Brasil. In: “Capítulos de geografia tropical e do Brasil”. 2ª Ed., Rio de janeiro: FIBGE, 1979.

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Entre Cartuns e charges: possibilidade de análise

documental historiográfico

bruna dolores WiTTe1

Este estudo é fruto do projeto de pesquisa do trabalho de conclusão de curso, ainda em andamento realizado na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus

Universitário de Rondonópolis, e busca trabalhar com as fontes textos visuais (charges, car-tuns) veiculadas no semanário O Pasquim, entre os anos de 1969-1973.

O objetivo desta pesquisa é analisar o contexto histórico do regime militar, demos-trando como o cotidiano da população brasileira, mais especificamente, como alguns feitos foram retratados através das expressões gráficas de humor, veículadas pelo jornal O Pasquim, entre os anos de 1969-1973. As caricaturas, charges e cartuns, divulgadas pela impressa, são expressões gráficas de humor, por isso são documentos do cotidiano de determinadas socie-dade, pois são publicadas diariamente, ou como no caso do Pasquim, semanalmente, e por isso nos dão a possibilidade de “perceber as representações sobre tempos, lugares e memó-rias de maneira única e, sendo assim, trazem diversos modos e múltiplas formas de olhar os acontecimentos através de narrativas construídas com humor. A opção de trabalhar com as expressões gráficas de humor no semanário O Pasquim (PETRY, 2008, p. 8)” , se deu por serem inseridas, num contexto de repressão e censura.

Num primeiro momento irei discorrer sobre a tipologia das fontes textos visuais e a metodologia de interpretação e, num segundo momento, sobre o jornal O Pasquim. Com os novos estudos em História Cultural, as fontes antes pouco utilizadas para a pesquisa passaram a ganhar visibilidade, tais como as expressões gráficas de humor, pois incluem discursos sobre tempos em memórias, portanto, compõe fontes para a escrita da História. Todavia, são pouco usadas na historiografia, por exigirem uma compreensão própria e formas de tratamento especifico. (PETRY, MAIO, 2009, p.850) Portanto, esta pesquisa tenta

1. Graduanda de Licenciatura em História da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópo-lis, Instituto de Ciências Humanas e Sociais bolsista de extensão, Integrante do grupo de pesquisa arte.com, [email protected].

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demonstrar a possibilidade de articulação entre a produção de charges que foram propaga-das pelo jornal O Pasquim, entre os anos de 1969 – 1973, dentro de um contexto histórico muito especifico, vivido pela sociedade brasileira, ou seja, abrange o período em que o país estava sob a ditadura militar. Nesse sentido, para melhor compreensão do perído em questão será feita uma pequena explanação sobre os principais atos e medidas adotados pelos governos militares.

As fontes textos-visuais são pouco usadas para a confecção de narrativas históricas, pois parecem não serem reconhecidas como fontes únicas de estudos e, sendo assim, preci-sam, “serem analisadas sob alguns pontos de vista que possam nos levar ao alcance de uma interpretação mais apropriada ao encargo de um lugar próprio a elas, como os de sua forma e linguagem.” (PETRY, 2008, p.33)

Quanto à forma, as expressões gráficas de humor percorrem os domínios do visual e do escrito, e parecem estar localizadas em “um ‘ entre-lugar’ nas fontes de produção do conhecimento”. (PETRY, 2008, p. 34)

Nem todas as expressões gráficas são documentos visuais, porque as vezes são só escritos, e noutras, apenas visuais. A fonte texto-visual, pode ser auto-suficiente ou de com-plementaridade.

A seguir, demonstramos as diferenças entre as formas de fontes.

Imagem I

(Imagem I, n ° 162 – Agosto; 1972, p. 77)

O primeiro quadro mostra um homem escrevendo, em frente a um espelho e ao seu lado em cima da mesa tem um revolver; no segundo, uma mulher abre a porta e o supreende com a arma apontada na cabeça; no terceiro, a mulher está correndo em direção ao suicida, com feição de desespero; no quarto, está correndo para salvar o espelho. “Percebe-se que o autor usou meios imagéticos de contar a situação com humor. A mulher esta preocupada em “salvar” o espelho e não a vida do suicida. Quando a imagem exibe um sujeito, situação ou narrativa histórica, sem fazer uso do recurso textual, nomeamos de auto-suficiente.” (PETRY, 2008, p.35)

Agora, passamos a demonstrar como opera a fonte de complementaridade.

Imagem II

(Imagem II, n°146 – Abril; 1972, p.316).

Este quadro mostra um policial correndo atrás de um homem que está sendo cha-mando pelo segundo de: contribuinte, escritor, motorista, eleitor; ao fundo tem uma árvore enorme; e embaixo a frase “todos concordam : Millôr está no melhor da sua carreira’’ A ima-gem aponta claramente o sentido do texto, entretanto, o humor é garantido pela entrada do texto. Desse modo,

“Sem consideramos a composição imagética insuficiente, percebemos a junção do texto à imagem decorreu da escolha do autor em utilizar os variados potenciais de expressão semiótico de ambas as mídias e estabe-lecer, Portanto, uma relação de complementaridade entre eles.” (CAMPOS PETRY, 2009, PRELO)

Portanto, as expressões gráficas, como as caricaturas, charges e cartuns são produções visuais que aceitam a variável inserção ou não do texto, pois a inserção ou não do texto varia de acordo com o autor. Porém, um recurso (escrita ou imagem) não vem pra complementar o outro, é o oposto, os dois recursos juntos permite chegar ao sentido desejado pelo autor, conce-dendo a essa “produção artísticas uma forma única de se fazer” ( CAMPOS; PETRY, 2009, PRELO)

Portanto, “as expressões gráficas de humor exprimem-se como fontes autênticas ca-pazes de obter informações sobre os acontecimentos individuais ou coletivo de uma certa sociedade, convertendo-os em objetos de reflexo e narrativa.” ( CAMPOS; PETRY, 1987, PRE-LO). E como escreve Bakhtim :

O riso tem um profundo valor de concepção de mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totali-dade, sobre a História, sobre o homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe e forma diferente não menos impor-tante. ( BAKTHIN, 1897, p.57)

Sendo assim, ponderamos que toda produção gráfica de humor estabelece uma rela-ção mútua com o processo histórico em que se constitui.

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Ela é dinâmica, sendo sempre reiterada e atualizada pelo contexto e prá-ticas dos sujeitos que a envolvem e a ela estão circunscritos, tornando-se, portanto, um de tradução cultural e representação sobre a história (CAM-POS; PETRY, 2009, Prelo)

Semanário humorístico, O Pasquim (folheto injurioso), foi publicado pela primeira vez no dia 26 de junho de 1969, no Rio de Janeiro, por Sérgio Cabral, Tarso de Castro, Jaguar, Claudius Ceccon e Carlos Prosperi, autor do projeto gráfico, coincidentemente na data do Ato Institucional n° (AI-5). Doze artigos faziam parte desta publicação do governo, que entre outras arbitrariedades, fechava o congresso nacional2.

Todos os setores da vida brasileira, sobretudo a imprensa, criações artís-ticas e culturais, deveriam se submeter ao controle absoluto do governo, e as instituições cívis não poderiam esboçara menor crítica ao comporta-mento das autoridades.” (BARROS; 1998; p. 42)

O Pasquim tinha formato de tablóide e a primeira publicação teve uma tiragem de 14.000 exemplares, com 20 páginas, que se esgotaram em dois dias. Em função disso, editou--se mais 14.000. Sua comercialização era feita em banca de jornais e compunham a publi-cação, entrevistas, crônicas, artigos, poemas, charges, fotonovelas, cartum, e, em 5 meses a tiragem, chegou ao número de 100.000. Os seus leitores tinham entre 18 e 30 anos de idade. “O quadro de anunciantes era composto por Oliveira Lettera e Studio, Rayovac, Shell, Skol, Cartões, Thomas de La Rue e das Casas Ricardo Amaral.” ( AUGUSTO; JAGUAR, 2006, p.8)

O Pasquim pode ser entendido como contrário a cultura estabelecida, e fazia opo-sição ao sistema político vigente na época do seu lançamento, e tinha como característica a linguagem humorística para a comunicação com o seu público. Muitos jornalistas foram afastados dos grandes veículos de informação por serem contrários ao apoio que estes deram a Ditadura Militar. É pertinente ressaltar que houve uma cooperação intensa da imprensa, tais como canais de televisão, programas de rádio, jornais, para a legitimação e manutenção dos governos militares. No entanto, alguns profissionais, como os do Pasquim, procuraram na ‘imprensa alternativa’ uma forma de continuar trabalhando com a comunicação.

Segundo Kucinski, “a ‘imprensa alternativa’ na sua essência tinha quatro significados essenciais: Não ter nada de ligação com a política em voga; escolha de uma coisa entre duas não compatíveis; única saída num momento difícil e o anseio que as gerações dos anos 1960 e 1970 tinham de participar das transformações sociais.” (KUCINSKI, 2003 p.17)

As características da manifestação alternativa eram quase sempre as mesmas: uma imprensa que age paralelamente à imprensa estabelecida, revela-se com maior vigor durante regime discricionários e representa uma pessoa, grupo ou comunidade que deseja fazer ouvir suas posições. (MO-REIRA,1985. p.25)

Portanto o conceito de imprensa alternativa que era domínio comum da sociedade

2. Entre eles: Fechar o Congresso Nacional, as assembléias estaduais e as câmaras de vereadores; Cassar mandatos de vere-adores, deputados estaduais e federais, senadores, prefeitos e governadores; Suspender, por dez anos, os direitos políticos dos cidadãos; Demitir, remover ou aposentar compulsoriamente funcionários públicos municipais, estaduais e federais; Demitir Juizes; Decretar estado de sitio sem consultar os outros poderes; Confiscar bens; Suspender a garantia ao Habbes Corpus; Proibir que AI-5 fosse contestado na justiça.

brasileira nesta época, tinha uma característica cultural e política, manifestavam interesses da média burguesia, trabalhadores e da pequena burguesia, enfim, eram espaços nos quais se pronunciava uma reprovação político.

Assim, pretende-se demonstrar que a interpretação, com metodologia adequada, charges e cartuns vinculadas N’O Pasquim, irá permitir uma interpretação do cotidiano da sociedade nos anos de 1969-1973, é importante ressaltar que:

As charges e cartuns embora são produtos da Vivência cotidiana, e por-tanto, constituídas no “agora” para o “instante já”. Justamente por capta-rem o imediatismo da memória coletiva é que podem ser tomadas como fontes para a Pesquisa para a História. (PETRY,2009, p.848)

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A introdução do sorteio militar em Mato Grosso (1916-1945)

bruno TorquaTo silva Ferreir a1

Com o advento da República operou-se uma verdadeira refundação do Exército brasileiro (CASTRO, 2002, pp. 12-13). Nos primeiros anos do novo regime, os

seus mais altos postos foram expurgados pelas lideranças militares do golpe que pôs fim à monarquia, proporcionando uma renovação do seu quadro de oficiais. Em seguida, ocor-reu a organização do Estado-Maior do Exército (1896-1900) e a Guerra de Canudos (1896-1897), que representaram, para os destinos políticos desta força, um ponto de inflexão (McCANN, 2007, pp. 102-103). Posteriormente, a promulgação da Lei do Sorteio Militar (1908) veio desfechar um conjunto de reformas que visavam modernizá-lo (CARVALHO, 2005, pp. 22-24).

Contudo, essa lei só começou a ser aplicada a partir de 1916, após prestigiada cam-panha nacional pelo serviço militar obrigatório levada a cabo pela Liga de Defesa Nacional, contando com o apoio militante do poeta Olavo Bilac e de outros intelectuais nacionalmen-te projetados, além das simpatias de alguns líderes do Exército e da burguesia paulistana. A forte impressão causada nas elites políticas e militares brasileiras pela brutalidade do conflito mundial de 1914-1918, caracterizado por intensa mobilização material levada a cabo pelos países envolvidos, também constituiu fator ponderável para a tomada dessa decisão. A rigor, já existia lei com este objetivo desde 1874, mas em virtude de forte resistência popular e da falta de condições de sua aplicação tornou-se letra morta (MENDES, 2004). A versão republi-cana dessa lei foi também inicialmente descumprida.

Durante todo o século XIX, o Estado brasileiro viu-se em sérias dificuldades na tarefa

1. Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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de preenchimento dos claros das tropas em virtude da histórica “aversão e resistência ao serviço das armas”, generalizados entre a “gente comum” (MENDES, 2004). Além disso, a debilidade das estruturas burocráticas prejudicava o desenvolvimento de uma efetiva ação recrutadora, calcada em dispositivos racionais e modernos. Na prática, o serviço nas tropas de linha restava aos indivíduos não protegidos pelas relações de dependência aos grupos pode-rosos locais, que detinham privilégios de concessão de isenções delegados pelo poder central (MENDES, 2004, p. 115). Essa dinâmica levou os poderes centrais a se sujeitarem diante dos interesses dos chefes locais, política e economicamente hegemônicos, no tocante ao recruta-mento militar. Pode-se afirmar que essa situação só começou a ser alterada a partir do início da aplicação da Lei do Sorteio Militar, em 1916.

A perspectiva da adoção do modelo de conscrição obrigatória gerava expectativas, entre seus defensores, de que o serviço militar viesse a se constituir num mecanismo disciplinador. Mais que isto, o serviço militar era visto por muitos como uma possibilidade de resolução dos problemas de organização social. Acima de tudo preocupava a muitos pensadores e formado-res de opinião as dificuldades referentes à constituição de mão-de-obra qualificada e obediente aos patrões, num contexto de princípios de industrialização do país e, consequentemente, de expansão das relações assalariadas de trabalho2. Com efeito, o serviço militar, na visão de inte-lectuais da estirpe de Bilac, estava vinculado a valores como disciplinarização, racionalização e individualismo. Além disso, esse modelo disciplinarizador vigorava em vários países europeus e, por essa razão, era visto como um modelo a ser seguido, pois refletia as visões de mundo de muitos homens letrados, as concepções de modernidade, civilização e progresso3.

Há registros da existência de organizações disciplinares em várias sociedades. No en-tanto, para Foucault, o poder disciplinar surgido na época moderna se distingue em relação ao das demais épocas por ser exercido de forma anônima, em nome da sociedade, embora continuasse sendo sofrido individualmente. Trata-se, portanto, de um poder produtor de individualidade, o qual provoca, ao mesmo tempo, a emersão de uma multiplicidade de indi-víduos (FOUCAULT, 1987, pp. 151-152).

Esse projeto disciplinar associado às organizações militares ficou bastante visível, no caso brasileiro, com a adoção do sistema de identificação baseado na impressão datiloscó-pica pelo Exército. Em relatório apresentado em 1914 a respeito das atividades ministeriais desenvolvidas no ano anterior, o titular da pasta da Guerra afirmava que a execução do sor-teio militar estava condicionada à observância de duas providências: 01) cessação dos engaja-mentos, medida que só poderia ser alcançada, admitia, “lenta e gradativamente”, e 02) a não admissão, no Exército ativo, de indivíduos que, sendo reservistas, “verificam praça, alegando falsamente alistamento primário, burlando a lei mediante o simples estratagema de uma mudança ou alteração de nome”. No tocante à última providência, o ministro indicava que a:

única providência capaz de obviar esse grave inconveniente, que pertur-ba e compromete a organização da nossa defesa, é o estabelecimento no exército de um serviço de identificação, não só destinado a vedar a readmissão de reservistas, como a depura-lo dos maus elementos constitu-ídos pelos inferiores mentais e morais; a obstar de modo seguro o ingresso

2. O debate sobre o uso ou não da disciplina militar para fins de organização do trabalho na sociedade brasileira gerou grande polêmica que opôs, entre outros, Olavo Bilac e Alberto Torres. Para uma sumarização desta polêmica ver COE-LHO, 2000 e McCANN, 2007.

3. Encontram-se evidências dessas vinculações e concepções em muitos periódicos mato-grossenses de época.

daqueles que por perniciosos à disciplina e à moral tenham sido expulsos das suas fileiras; a facilitar a instrução do processo criminal e, finalmente, a permitir a confecção de uma real estatística penal militar, vazada nos hodiernos moldes científicos (MINISTÉRIO DA GUERRA, 1914)

Como é possível notar, as lideranças burocráticas do Exército procuravam aperfeiçoar os mecanismos de identificação da população masculina para fins do exercício do controle disciplinar. Tinham como objetivo selecionar, dentro daquele universo, aqueles que mais se adequassem às especificidades da vida em caserna, eliminando os incompatibilizados e os que já houvessem cumprido algum período anterior de serviço militar, pois estes deveriam constituir a reserva mobilizável das forças terrestres.

De acordo com Foucault, a formação dos grandes Estados europeus da era moderna exi-giu esforços semelhantes de seus dirigentes. Os seus exércitos não apenas garantiam a “paz civil” e da “defesa externa”, mas também eram detentores de “uma técnica e um saber que podem projetar seu esquema sobre o corpo social”; sendo que o “sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas há também um sonho militar da sociedade” (FOUCAULT, 1987, pp. 151-152). Portanto, o ideal e o desen-volvimento de técnicas e mecanismos de controle social passam normalmente pela acumula-ção de experiências sociais verificadas nos grupos armados organizados e institucionalizados.

Max Weber, por sua vez, ao descrever as origens históricas da disciplina militar, che-gou a conclusões semelhantes a respeito dos processos que marcaram as transformações das noções de racionalização e burocratização: “A disciplina do exército deu origem a toda a disciplina (...) Nenhuma prova especial é necessária para mostrar que a disciplina militar é o modelo ideal para a moderna fábrica capitalista (...)”(WEBER, 1974, p. 301).

Como se pode observar, atribuía-se grande importância às organizações militares no que se refere ao seu potencial para o desenvolvimento das noções de disciplina e individualis-mo na virada do século XIX para o XX. O Exército brasileiro, nesse sentido, passou a ser visto como fundamental agente no processo de desenvolvimento e inculcação de valores mo-dernos, em meio a uma sociedade ainda imersa em valores tradicionais. Considerando aqui como “moderno”, como lembra Celso Castro, “a afirmação de valores e a implementação de práticas vinculadas ao individualismo, à disciplina, à racionalidade, à organização burocrática e ao mérito” (CASTRO, 1995, p. 41).

Bilac e a Liga de Defesa Nacional, de acordo com a concepção do cidadão-soldado, pro-jetavam a idéia de um Exército “educador do povo”. Em outras palavras, o Exército deveria ser, na opinião desse grupo, um instrumento do Estado na divulgação de princípios ideológicos de disciplina, ordem e nacionalidade, já que o sistema escolar não demonstrava competência para tal. Os chefes militares mais velhos, de formação positivista, a exemplo do ministro da Guerra, Caetano de Faria (1914-1918), tendiam a ver com maiores simpatias essa tarefa.

Os jovens turcos4, mais imbuídos dos valores do profissionalismo militar, por sua vez, viam o serviço militar obrigatório como um instrumento de fortalecimento do Exército e, por extensão, do próprio Estado-nacional. Se possível, inclusive, gostariam de intervir na pró-pria educação primária e secundária a fim de orientá-las no sentido da preparação militar

4. Grupo de oficiais subalternos que havia estagiado no Exército alemão entre 1906 e 1912. Ao retornarem ao Brasil se en-volveram num movimento pela modernização das forças terrestres brasileiras, engajando-se na defesa da implantação do serviço militar obrigatório através de seu principal veículo de divulgação, a revista A Defesa Nacional.

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da população desde a mais tenra idade. Estas perspectivas dissonantes revelam, em última instância, profundas discordâncias quanto à própria função do Exército e o seu lugar na so-ciedade brasileira. Em ambos os casos, no entanto, a perspectiva disciplinar e racionalizadora da expansão do serviço militar não se distanciavam dos horizontes intelectuais.

Em Mato Grosso, as décadas iniciais do século XX representaram um momento de emergência das preocupações referentes à presença do Estado brasileiro na região, na justa medida em que se verificava a possibilidade de secessão da sua porção fronteiriça ou mesmo sua anexação total ou parcial pelas repúblicas vizinhas, particularmente a Argentina. Havia também disputas geopolíticas entre as duas maiores potências sul-americanas que concor-riam pela atração econômica e política da Bolívia e do Paraguai, os dois únicos países sul--americanos que não possuíam comunicações litorâneas.

Por essas razões, sucederam-se ações com o fito de demarcar a presença do governo federal na região. A extensão de linhas telegráficas ligando Mato Grosso à Capital Federal e a construção da ferrovia Noroeste do Brasil (NOB), materializavam, nesse sentido, a presença e a intervenção estatal no território mato-grossense. Ao mesmo tempo, procurava-se reforçar a presença militar, sobretudo, através do aumento do número de unidades e efetivos acanto-nados no Estado, embora as suas condições demográficas e a resistência passiva da popula-ção ao recrutamento constituíssem óbices ao fortalecimento do poder central.

A Lei do Sorteio Militar, de janeiro de 1908, não parece ter sofrido grande oposição da imprensa mato-grossense. O mais notável a esse respeito foi a aprovação geral à medida. Os militares do Exército e da Marinha gozavam de grande prestígio naquela sociedade. Aliás, ao contrário do que ocorria em boa parte do país, há indícios de que membros de famílias socialmente projetadas acabavam abraçando a carreira das armas. Muitos donos de jornais tinham parentesco com militares ou então aceitavam colaborações de oficiais como articu-listas em seus periódicos. No mais, naquelas condições cronicamente limitadas, vividas pela economia mato-grossense, o casamento das filhas das “boas famílias” com oficiais militares não deveria ser algo a se desprezar. Destarte, tudo indica que a sociedade mato-grossense mantivesse uma relação bastante estreita com os destinos dos militares que serviam no seu Estado.

As autoridades locais e estaduais de Mato Grosso, em geral, procuravam manter con-vivência, no mínimo, cordial com os chefes militares ali aquartelados. Essa precaução se reve-lava, em certas ocasiões, mais que uma necessidade política, uma questão de sobrevivência. A luta pelo poder político na região normalmente incluía choques armados, que invariavel-mente contavam com a participação de membros do Exército.

Em pelo menos uma ocasião a falta de apoio da oficialidade do Exército ali estaciona-da foi fatal para um presidente de Estado: Antônio Paes de Barros que, em 1906, foi assassina-do após ter sido apeado do poder por um movimento golpista que envolveu, além de muitos elementos da plutocracia local, todas as unidades militares federais acantonadas no Estado5. Na pior das hipóteses, a presença de corpos do Exército nos municípios mato-grossenses representava um acréscimo para as suas receitas, o que eventualmente gerava disputas entre as lideranças políticas das diferentes regiões pela atração dos quartéis.

Contudo, a realidade militar em Mato Grosso foi tradicionalmente marcada pela pre-cariedade material e carência de pessoal. Os registros administrativos produzidos pelo co-

5. Sobre isso cf. BARRETO, 1907.

mando militar na região constantemente indicavam falta de recursos orçamentários, meios de transportes inadequados e, acima de tudo, diminutos efetivos em termos de praças e oficiais. De modo que, as dificuldades estruturais vivenciadas pelo Exército brasileiro àquela época eram sentidas de maneira ainda mais dramática pelos corpos instalados em Mato Grosso, em função das avantajadas distâncias que separavam aquele Estado dos centros de decisão e do caráter punitivo e de desterro adquirido pelo serviço militar naquelas plagas6. Some-se a isto, o caráter altamente volátil da política estadual naquela quadra, com suas constantes revoluções, que invariavelmente enredavam oficiais e praças ao lado das facções em luta.

Esses fatores contribuíam para o acirramento dos ânimos dos componentes dos qua-dros da hierarquia militar ali presentes, o que refletia no funcionamento da burocracia militar e no padrão disciplinar da tropa, ademais, altamente violento e conturbado. Por outro lado, se não houve resistência aberta ao sorteio, é certo que houve resistência surda ou passiva às ações da burocracia do Exército no sentido de promover o cerco aos cidadãos legalmente sujeitos ao recrutamento. Até porque, de acordo com a legislação vigente, a tarefa do alis-tamento para a seleção do serviço militar era uma atribuição das intendências municipais. Com efeito, as ações afirmativas do poder militar do Governo Federal na região, esbarravam constantemente nos interesses localistas.

Já foi demonstrado, por Max Weber e Norbert Elias, que há relação direta entre o monopólio militar, associado ao monopólio fiscal, e o processo de fortalecimento político do Estado moderno. Sabe-se também que a organização militar moderna se faz acompanhar de um profundo esforço de racionalização administrativa no que toca às necessidades de aprovisionamentos técnicos e materiais (WEBER, 1979, pp. 68-73). Com efeito, a presença de organizações militares no antigo Mato Grosso cumpria importante papel estratégico, moder-nizador e civilizador, no sentido de que atendia aos interesses das forças políticas associadas ao Governo Federal7.

Nesse sentido, uma análise da dinâmica do funcionamento das práticas de recruta-mento efetuadas pelo comando do Exército na região permitiria uma maior compreensão acerca de aspectos importantes das relações políticas que estreitavam ou afastavam os chefes militares das lideranças locais e regionais. Também seria importante verificar os limites da atuação do poder central no tocante à mobilização militar na região e o quanto as lideranças regionais, materializadas na folclórica figura do coronel, agiam nesse jogo de poderes. Por essa razão a análise dos eventos em que a mobilização de forças militares na região se tornou mais necessária, ou seja, durante, os chamados ciclos revolucionários8, quando a capacidade de ar-

6. É importante destacar que, antes da instalação da ferrovia ligando o Sul de Mato Grosso a São Paulo (1914), as viagens menos demoradas entre a então Capital Federal (no Rio de Janeiro) e Mato Grosso demandavam em média um mês através de vias marítimas e fluviais que incluíam escalas nos portos dos países platinos vizinhos, em cidades como Mon-tevidéu, Buenos Aires e Assunção, estuário do Prata acima, até os portos das cidades de Corumbá, Cáceres e Cuiabá (QUEIROZ, p. 14).

7. Como Civilizador entenda-se o processo de centralização política que ensejou a sujeição dos indivíduos ao Estado atra-vés do já referido duplo monopólio (ELIAS, 1993).

8. Refiro-me às guerras civis regionais ocorridas nos anos de 1892, 1899, 1901, 1906 e 1916-1918 e à participação das lideran-ças políticas locais na repressão às forças revoltosas tenentistas entre 1924 e 1927, além da Revolução de 30 e da Revolu-ção Constitucionalista de 1932.

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regimentação dos coronéis de baraço e cutelo se mostrou muitas vezes superior à do próprio governo federal9. Daí os constantes apelos aos “batalhões patrióticos” nessas ocasiões.

Portanto, um estudo direcionado para a análise das transformações nas práticas de alistamento nas décadas iniciais do século XX, mais especificamente, uma reflexão em torno dos elementos que possibilitam uma maior compreensão acerca da dinâmica altamente con-flituosa que envolveu as relações do poder central com os agrupamentos políticos locais no antigo Estado de Mato Grosso, ofereceria importantes contribuições para um entendimento a respeito do papel político desempenhado pelo Exército e pelos militares naquela quadra histórica10.

A modernização do Exército brasileiro passou necessariamente pelo estabelecimen-to de uma lei de serviço militar obrigatório, que tinha a finalidade de melhorar a qualidade dos recursos humanos disponíveis (maior nível de educação formal, boas condições físicas, conduta social “adequada” etc). Ao mesmo tempo, a conscrição militar obrigatória impôs a necessidade da resolução de problemas relacionados às negociações com os interesses locais e regionais, o que também demandou crescente complexificação dos aparelhos burocráticos governamentais. O regime republicano, como mencionado, contribuiu decisivamente para isso a partir de 1916, ano em que o sorteio militar começou a ser aplicado ininterruptamente no Brasil, em cumprimento à referida lei.

Destarte, as práticas de recrutamento efetuadas pelo poder público federal no antigo Mato Grosso nas primeiras décadas de vigência da Lei do Sorteio Militar revelará impor-tantes aspectos estruturais daquela sociedade. Convém destacar também as limitações do poder público federal no tocante ao recrutamento. Desse modo, seria possível supor que as práticas de recrutamento e mobilização militar encetadas pelo governo militar nessa época interferiam nas relações das lideranças militares com as lideranças políticas locais. A observa-ção crítica da dinâmica das mobilizações militares por ocasião dos conflitos localizados no território mato-grossense permitiria compreender melhor a capacidade de arregimentação dos coronéis locais e compará-la com os meios de recrutamento das instâncias estatais na região. É possível que daí sejam extraídos elementos para a elaboração de um modelo inter-pretativo das relações civil-militares e do papel desempenhado pelos militares na sociedade mato-grossense.

A preparação para a guerra, o recrutamento, o balizamento das fronteiras, a repre-sentação do poder central e sua imposição sobre as forças centrífugas locais faziam parte da agenda funcional do comando militar sediado no antigo Mato Grosso. No desenvolvimento de suas atividades profissionais, os militares interagiam com os demais membros da socieda-de e favoreciam o desenvolvimento da identidade nacional, principalmente após o início da aplicação da Lei do Sorteio Militar, a partir de 1916.

A capacidade de recrutar foi importante fator de determinação do poder estatal des-de a época colonial. A partir do início da República observou-se uma crescente ampliação da capacidade estatal de intervenção na vida de seus cidadãos, amparada principalmente no uso das inovações técnicas (telégrafo, navios a vapor, locomotivas etc.), que possibilitaram,

9. A expressão coronéis de baraço e cutelo aparece nas obras de Nelson Werneck Sodré, quando o autor se refere à proje-ção social e ao domínio político exercido pelas notabilidades locais em Mato Grosso nas décadas iniciais do século XX. Ver SODRÉ, 1941 e SODRÉ, 1967, p. 148.

10. Em algumas ocasiões o comando militar procurou desarmar a população do Sul do Estado, sobretudo os habitantes das regiões de fronteira com a república paraguaia, e geralmente fracassou.

muitas vezes através do Exército, uma maior integração geográfica entre as diferentes regiões do Brasil. Com o tempo, graças a esses recursos técnicos, o Estado foi se tornando capaz de, numa feliz expressão de José Murilo de Carvalho, apertar o cerco ao cidadão visando univer-salizar o serviço militar (CARVALHO, 2005, p. 76).

As análises da trajetória política brasileira durante o século XX geralmente privilegia os eventos políticos mais superficiais e aparentes. No campo especificamente militar, evidencia-ram-se, comumente, eventos altissonantes como as revoltas tenentistas, a Revolução de 30, o Estado Novo e o Golpe Militar de 1964.

Entretanto, ainda pouca atenção foi dada a esse aspecto silencioso e subterrâneo da expansão e projeção do poder militar no Brasil. E é necessário frisar que por aumento do poder militar não se entende apenas crescimento progressivo de efetivos e reservas, mas também, o potencial disciplinar e racionalizador que uma atividade tão ampla e complexa como essa é capaz de oferecer. A partir do final dos anos 1910 o Exército erigiu uma estrutura burocrática capaz de controlar mínimos aspectos da organização nacional. Cidadãos que até então poderiam ser considerados invisíveis ao Estado, passaram imediatamente a ser alvo dos oficiais e praças do Exército em busca de “material humano” para preencher as fileiras da sua organização.

O Exército, que já vinha esquadrinhando o espaço geográfico brasileiro com a orga-nização da Carta da República11, passou a catalogar a sua população masculina para efeito de mobilização militar e, particularmente, apertar o cinto do controle social sobre o funcio-namento do chamado organismo nacional. Cabe uma investigação mais pontual, que ajude a desvelar como esse fenômeno se desenvolveu no território mato-grossense nas décadas iniciais do século XX. Diante do exposto, é que o presente texto apresentou a proposta inicial de contribuir para a ampliação das reflexões em torno da história militar no território corres-pondente aos atuais Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e do papel do Exército na construção da identidade regional e nacional através do serviço militar e de suas ações no sentido de fortalecer a presença do Estado naquela antiga unidade federativa.

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Espaço de Poaia, território Umutina e as “Casas de Rondon”

Carlos edinei de oliveir a1

O povo Umutina, denominado anteriormente de Barbado, segundo Jesus (1987) é uma ramificação da nação Bororo, pertencente ao tronco lingüístico Macro-Jê e

à família Otukê. O ritual do culto aos mortos, praticado pelos Bororo é uma de suas manifes-tações culturais mais importantes.

A grafia do nome Umutina é destacada por Arruda (2003:14):

Segundo os estudos etnográficos feitos por Harald Schultz, a grafia correta do nome desta etnia, a partir de sua autodenominação, seria Um u t y n a, cuja pronúncia traz o primeiro “u” nasalizado e o “y” da terceira síla-ba post-palatizado. Todavia, com a intenção de simplificar a pronúncia e a grafia, Schultz decidiu chamá- los de Umutina. Kalervo Oberg e Max Schmidt, que também estudaram sobre os Umutina escrevemem suas publicações Umotina.

Não se sabe quando se deu a separação dos povos Bororo, a hipótese mais aceita, foi a dispersão dos Bororo quando vieram da Bolívia procurando o rio Paraguai, desta forma, os Umutina perderam o contato com o corpo principal dos Bororo. O povo Bororo desceu o rio Paraguai e ocupou os vales do rio Cuiabá, do rio São Lourenço e também do rio Araguaia, es-tes últimos denominados de Bororo Orientais. Os Umutina fixaram nas regiões do rio Bugres, e o rio Sepotuba, na região do Alto Paraguai e nas proximidades do município de Jangada.

1. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT e Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT – Campus de Barra do Bugres. Contato. [email protected]

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Sobre a denominação dos Umutina, Jesus (1987: 72-73) destaca que:

A autodenominação dos Umutina é bastante discutida. Kalervo Oberg afirma que os índios se identificavam como ‘Boloriê’ (homens antigos), enquanto que Max Schimit e H. Schut levantaram denominação de Umo-tina e Umutina, respectivamente, ambas sem significado na língua da tri-bo. O índio Kupooonepá afirmou que eles se denominavam ‘Balotiponé’ e Umutina foi uma designação atribuída a eles pelos Paresí – Imuti em Paresí significa: gente branca ou civilizada (os Umutina são considerados os índios de pele mais clara do Brasil). São conhecidos também como ‘Bar-bados’ devido ao fato de possuírem barbas ou usarem postiças feitas de pelo de macaco bugio ou de cabelos das mulheres da tribo.

Em relação às características físicas, o padre Nicolao Badariotti, que realizou uma expe-dição ao norte de Mato Grosso no final do século XIX, registra que: “Os Barbados são robus-tos, mais claros do que os outros índios. Causa admiração ouvir dizer que elles cultivam em commum immensas roças de milho e de mandioca” (BADARIOTTI, 1898: 51).

O bandeirante paulista Antonio Pires de Campos em busca de índios para transformá--los em escravos, adentrou a região de Mato Grosso chegando até a Chapada dos Parecis, estabelecendo então contato com os Umutina. Estas incursões bandeiristas no território do atual Estado de Mato Grosso resultaram no encontro de ouro provocando durante os sécu-los XVIII uma ocupação significativa para as minas mato-grossenses e o surgimento de vários núcleos urbanos.

Porém, em relação aos Umutina, foram às ocupações extrativistas a da seringueira (Hevea brasiliense), em particular a da Ipecacuanha ou poaia (Cephaelis ipecacuanha) que possibilitou o contato dos Umutina com os não índios. Estas duas fontes extrativistas eram encontradas com abundância nas matas ciliares do rio Paraguai e de seus afluentes, território do povo Umutina.

O Album Gráphico do Estado de Mato Grosso apresenta a Poaia (Cephaeles Ipecacu-anha), no conjunto das plantas medicinais, como um recurso a ser explorado, uma grande vantagem da natureza mato-grossense.2

O texto apresentado no Album Gráphico nomeia cinco características de plantas me-dicinais: tônicas amargas, tônicas estimulantes, depurativas, vomitivas e purgativas. A poaia, considerada como planta vomitiva, é assim conceituada:

Ipecacuanha - Poaia (uragoga ipecacuanha) é uma planta rampante que cresce na sombra das mattas humidas, especialmente na zona pouco ao norte de São Luiz de Cáceres, onde o seu commercio está centralizado; a exportação d’esta planta forma uma cifra bem elevada no quadro da ex-portação do porto de Corumbá. Encontramos no N. º I do “Boletim da As-sociação Commercial de Corumbá” (1912), com relação à esta industria, o seguinte: “Tornando-se decadente a mineração na então Província de Mat-

2. Foi impresso em Hamburgo, com 532 páginas, organizado por comerciantes de Corumbá, cidade de Mato Grosso do Sul no ano de 1914 e publicado com o objetivo de fazer propaganda das riquezas existentes em Mato Grosso na tentativa de eliminar os preconceitos de isolamento do Estado.

to-Grosso, depois do decantado apogeu à que tinham chegado as minas de ouro de Miguel Sutil e as de diamantes do Alto Paraguay-Diamantino, era preciso encontrar um industria extractiva succedanea aquella, pois os valentes pioneiros do desbravamento das nossas pomposas florestas não podiam ficar inactivos, acostumados como estavam a romper os obstacu-los interpostos pela natureza.

Assim foi que José Marcellino da Silva Prado nas suas explorações no rio Areias ou Affonso, subafluente do rio Paraguay, onde descobriu diamantes de valor, teve occasião de notar que alguns de seus garimpeiros usavam, quando doentes, de um chá preparado com a raiz de um arbusto muito frequente n’aquellas paragens e que tinha propriedades vomitivas.

Espirito investigador, tratou logo de colher uma certa quantidade d’aquellas raízes e levou as á um negociante da então Villa Maria, hoje cidade de São Luiz de Cáceres, pedindo-lhe para remetter a amostra para a Europa.

Estava iniciada a indústria extractiva da ipecacuanha.

Em poucos annos centenas de homens dedicavam-se a extrair a raiz d’esse arbusto, encontrando até hoje um lucro compensador as fadigas (ÁLBUM GRÁFICO, 1914: 259).

A poaia é da família da Rubiácea; seu nome científico é Cephaelis Ipecacuanha e tem os seguintes nomes populares: cagosanga, cipó-emético, ipeca, ipeca-cinzenta, ipeca-de-Cuiabá, ipeca-do-rio, ipeca-oficinal, ipeca-preta, ipecacoanha, ipeca-amarelada, ipeca-canela-da-menor, ipeca-do-Brasil, ipeca-legítima, ipeca-verdadeira, papaconha, pecacuem, picacuanha, poaia--cinzenta, poaia-das-boticas, poaia-de-Mato-Grosso, poaia-do-Brasil, poaia-do-mato, poaia-le-gítima, poaia-preta, poaia-verdadeira, raiz-do-Brasil, raiz-preta, raiz-vomitiva. Sua ação: modifi-cadora das secreções, cardíaca, emética, expectorante, anti-desintérica, sedativa, diaforética, hemostática, anti-hemorrágica, antiparasitária. Pode ser usada contra hemoptise, hematúria, hematemese, leishmaniose, dispnéia, difteria, envenenamento, catarro crônico intestinal, cóli-ca, tenesmo, infeção intestinal, disenteria amebiana, irritação da garganta, irritação dos brôn-quios, irritação dos pulmões, febre gástrica e febre biliosa.3

Para Thieblot (1980) que produziu um estudo sobre a mata da poaia e os poaieiros de Mato Grosso o arbusto da poaia se caracteriza desta forma:

A planta não passa de 25 a 30 cm de altura, mas ela sempre se arrasta um pouco, de forma que o caule atinge uns 40 cm. As folhas são opostas, simétricas, de um verde vivo. As flores brancas arroxeadas, de um centíme-tro, dão nascença a um cartuchinho de sementes vermelhas. Mas, é a raiz que interessa ao poaieiro. É uma raiz preta por fora e branca por dentro, formada de anéis bem juntinhos. O trabalho consiste em descobrir e ar-rancar essa raiz de 20 a 30 cm de comprimento que corre horizontalmente

3. Estas informações podem ser conferidas e ampliadas através do site Esalq/USP-Plantas Medicinais. http://WWW.ciagri.usp.br/planmedi/planger,htm. Acesso em 15 dez. 2001. Quanto aos aspectos demográficos da poaia, é importante o TCC de SILVA, Valdethe Prado da. Aspectos demográficos da cephaelis ipecacuanha em Mato Grosso. Cuiabá: Faculdade de Engenharia Florestal /UFMT, 1993. (Trabalho de Conclusão de Curso em Engenharia Florestal).

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debaixo da terra. Extraída a raiz o caule fica no chão e volta a brotar. Qualquer pedaço de raiz que também fique, volta a dar um novo pé. Por ser muito mais fácil mexer com a planta quando a terra está molhada, é costume “poaiar” no tempo da chuva (THIEBLOT,1980: 16).

O contato dos poaieiros com os Umutina faz-se deste o século XIX, neste período também ocorre o povoamento próximo ao encontro das águas do rio Bugres com o rio Paraguai, denominado de Barra do Rio dos Bugres. A mata da poaia, que vai movimentar o núcleo urbano que por volta de 1896 é elevado à condição de paróquia, através da Lei 145, de 08 de abril do mesmo ano, com a denominação de Paróquia de Barra do Rio dos Bugres, per-tencente ao município de São Luís de Cáceres. Barra do Bugres, com esta nova denominação, só foi elevada a município em 1943, conforme Decreto- Lei 545, de 31 de dezembro de 1943.

Fig. 01. Poaia

FonTe: ramos, Jovino s. barra do bugres: história, folclore, curiosidades. Cuiabá: atalaia, 1991.

A exploração da poaia em Barra do Bugres, no século XIX, vai causar a quase completa extinção dos Umutina. A destruição desse povo indígena foi patrocinada por comerciantes que tinham grande interesse pela exploração da poaia, nesta época uma mercadoria valiosa em especial para o comércio de exportação.

Com a fundação de Barra do Bugres e com a excelente cotação atingida pela poaia, que estava sendo exportada para a Europa, nova leva de po-aieiros adentrou o último reduto Umutina e incentivou os comerciantes a patrocinarem grupos de chacinas contra os índios ( JESUS, 1987: 74).

Esta relação agressiva entre poaieiros e Umutina estendeu-se por longos anos até a chegada das linhas telegráficas do Marechal Cândido Rondon a Barra do Bugres. Rondon con-segue manter o primeiro contato pacífico com os Umutina em 02 de agosto de 1912, porém a pacificação só se consolidou com os sertanistas Helmano Mascarenhas e Estigarriba em 1919.

Desde a localização realizada pela Comissão Rondon, os Umutina ocupam a faixa de terras que estão entre os rios dos Bugres e o Paraguai, a 10 quilômetros da cidade de Barra do

Bugres. Geograficamente é uma área de transição entre o Pantanal e a Amazônia. A reserva é limitada por dois rios, o Paraguai e o Bugres, formando uma ilha fluvial, tem uma linha seca ao norte com 12 km de extensão. No período de novembro a abril, na estação chuvosa, parte da reserva fica inundada. A reserva indígena foi demarcada desde 1960, com aproximadamente 24.625 hectares, porém este território está sob constante vigilância dos Umutina, para impe-dir que suas terras sejam invadidas.

Cândido Rondon, dentro da política proposta pelo Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais – SPILTN criado em 1910, em parceria com a Comis-são de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, conhecida, também, por Linhas Telegráficas de Rondon ou ainda, Comissão Rondon, estabeleceu em terras Umu-tina, em 12 de outubro de 1913, o Posto Fraternidade Indígena (ARRUDA, 2003).

No Brasil, devido à herança do discurso positivista do século XIX, para o governo a política de aldeamento, de sedentarização e integração nacional seria a melhor forma para as populações indígenas diante das propostas de progresso a serem implantados no território nacional. Nesta perspectiva, Rondon passou a ocupar o Posto Fraternidade Indígena como índios de etnias diferentes, como afirma Arruda (2003:37):

Dentro desta visão, que vigorava no SPI, acreditava-se que os índios, em geral, eram todos iguais, sem uma singularidade étnica, o que torna com-preensível, do ponto de vista político, para o SPI, a prática de reunir, num mesmo local, índios Paresi, Umutina e Nambikuara. O exemplo disso foi o próprio Posto Fraternidade Indígena.

Segundo o cacique, em 2009, do povo Umutina Luiz Fernando Calomezoré4, a criação do Posto Fraternidade Indígena foi positiva, pois ajudou a “pacificar” os índios e ao trazer ou-tras etnias para o espaço dos Umutina ajudou a fortalecer o território, assegurando a posse das terras para a comunidade Umutina.

Fig.02. Aldeia Umutina e perímetro urbano de Barra do Bugres

FonTe: elaboração ricardo rodrigues barros, 2009.

Antes do contato com não índios a população era estimada em mais de mil índios.

4. Entrevista realizada em novembro de 2009 na aldeia Umutina em Barra do Bugres.

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Em 1911, o SPI encontrou aproximadamente 300 pessoas, e em 1945 Schultz encontrou 23 Umutina independentes e cerca de 50 índios órfãos que foram adotados pelo SPI. Em 1980, Antônio João de Jesus recenseou-os e enco ntrou 75 pessoas que se identificam como Umutina, sendo 36 Umutina e 39 mestiços de Umutina com outros grupos étnicos, como os Paresí, Bakairi, Nambikwara e Kayabí, levados para lá pelo SPI na época da colonização e unificação dos povos. Em 2009 a FUNASA declarou a existência de 426 habitantes na aldeia.

Conforme vários relatos de expedicionários e da própria Comissão Rondon o número de índios Umutina era bastante reduzido na época da criação do Posto Fraternidade Indíge-na, depois a população manteve um lento crescimento, atingindo atualmente 420 pessoas, sendo descendentes de diferentes etnias como: Umutina, Paresí, Bakairi, Bororo, Nambiquara, Irantxe e Kayabi.

As casas tradicionais Umutina eram de palha com trançado Umutina, com a presença de estruturas arqueadas, completa ausência de janelas, sem portas com uma cortina de pa-lha para a entrada na habitação, planta livre e os seus moradores dormiam em redes ou em esteiras, usando a moradia, basicamente para dormir.

Para a consolidação do Posto Fraternidade Indígena foram feitas, pelos próprios índios, com recursos naturais da região como tijolos e madeira, materiais trazidos de outras regiões como o cimento, em um espaço plano da aldeia várias casas na primeira metade do século XX, uma data registrada no piso externo de uma das edificações foi o ano de 1943. O traba-lho dos índios nestas construções foram orientados e fiscalizados pelos líderes não índios do Posto Fraternidade Indígena.

Nesta arquitetura, conhecida como “Casas de Rondon” estão dispostas as práticas cotidianas dos Umutina. As casas foram feitas para a residência de famílias de não-índios, ou para algumas famílias indígenas que exerciam alguma atividade junto a Comissão Rondon. Além das casas de moradias, foram construídas uma casa para a administração do Posto Fraternidade Indígena, uma escola e um posto de saúde. Todos os espaços, com exceção de uma casa de moradia, por estar em ruínas, são ocupados pelos índios Umutina.

Neste espaço circundado pelos rios Bugres e Paraguai estão as “edificações de Ron-don” contrastando com as casas de taipa ou de madeira que também servem de residências para algumas famílias Umutina. Entre elas está um imenso espaço gramado, usado para fes-tas, corridas, brincadeiras com arco e flecha e para o jogo de futebol.

Esta arquitetura, denominada “Casas de Rondon” está em ruínas, faz-se necessário a revitalização desta arquitetura de tijolos, construída pelos índios para os membros do Posto Fraternidade Indígena, que são marcas na memória e na história do povo Umutina e fundamentais para entender o papel do mato-grossense Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon na história do Brasil, assim como, pensar sobre a história da arquitetura pro-duzida pelos órgãos oficiais com utilização de mão-de-obra indígena, técnicas construtivas não indígenas com uma parte significativa de materiais extraídos ou produzidos em espaço Umutina.

Bibliografia

ÁLBUM GRÁFICO do Estado de Mato Grosso (EEUU do Brasil). Corumbá/Hamburgo, Ayala & Simon Editores, 1914.

ARRUDA, LUCYBETH CAMARGO. Posto Fraternidade Indígena: Estratégias de Civilização e Táticas de Resistência – 1913-1945. Cuiabá, 2003. Dissertação. (Mestrado em História) – Depar-tamento de História, Universidade Federal de Mato Grosso.

BADARIOTTI, Nicolao. Exploração no norte de Matto Grosso: região do Alto Paraguay e pla-nalto dos Parecis. Apontamentos de História Natural, Etnographia, Geographia e impressões. Cuiabá: Biblioteca Katukulosu – Missão Anchieta, 1898.

JESUS, Antonio João de. Os Umutina. In: Dossiê Índios de Mato Grosso. (Org.) OPAN/CIMI. Cuiabá: Gráfica Cuiabá, 1987.

LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção Primei-ros Passos, 51).

MORAES, Cleonice Aparecida de. História e trajetórias: um estudo sobre o cotidiano dos po-aieiros em Barra do Bugres (1930-1960). 2004. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.

PORTOCARRERO, José Afonso Botura. Arquitetura indígena: uma história da morada Bororo. Territórios e Fronteiras. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso. V.4, n.1. p. 99 a 118. jan-jun/. Cuiabá, 2003.

RAMOS, Jovino S. Barra do Bugres: História, folclore, curiosidades. Cuiabá: Atalaia, 1991.

REIS FILHO, Nestor Goularte. Quadro da Arquitetura no Brasil. 10 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

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THIEBLOT, Marcel Jules. Poaia, ipeca, ipecacuanha: a mata da poaia e os poaieiros do Mato Grosso. São Paulo: Escola de Folclore/Livramento, 1980.

TOCANTINS, Amidicis Diogo. Rondon – meio século a serviço da pátria. Revista do Instituto histórico e geográfico de Mato Grosso – 1980. Tomos CXIII – CXIV – Ano LII.

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Renovação moral e estrutura-ção dos espaços de intervenção clerical na correspondência de

Pedro Damiano

Cl áudia reGina bovo1

Pedro Damiano (1007-1072), eremita e cardeal-bispo foi por muito tempo valori-zado pela historiografia medieval como fonte indispensável na compreensão do

movimento sócio-político que ficou conhecido como “Reforma Gregoriana”. A maioria dos estudos sobre a vida e obra desse religioso, reconhece que sua participação nos entraves diplomáticos entre o papado e o império no século XI, bem como sua reflexão teológico--doutrinal sobre a vida eremítica contribuíram para o desenvolvimento Institucional da Igreja e o contínuo movimento de purificação presente nela2. Para essa historiografia, devido a sua inserção num contexto de disputas ferrenhas entre o poder imperial, o poder senhorial dos

1. Professora do departameto de História da Universidade Federal de Mato Grosso, pesquisadora do Vivarium (Laboratório de pesquisa da Antiguidade e Medievo da UFMT) e membro do Laboratório de Estudos Medievais/LEME – Unicamp.

2. FLICHE, Augustin. Le mouvement prégregorien: Pierre Damien. In: ______.La Reforme Grégorienne.V. 1. Paris: Librairie ancienne honoré Chanpion, 1924. (Spicilegium sacrum Lovaniense. Études et documents 6, 9 e 16. 1924-1937). BLUM, J. Owen. St. Peter Damian: his teaching on the spiritual life. Washington D.C.: The Catholic university of America Press, 1947 (“Studies in Mediaeval History”, new series, vol. X). IDEM. The monitor of the popes. Studi Gregoriani, V. 2, 1947, p. 459-476. PRETE, Serafino. San Pier Damiani, le chiesa marchigiana, la riforma del secolo XI. Studi Picena, n. 19, 1949, p. 119-128. MONGHERI, Raffaello. I teorici della riforma della chiesa: Umberto di Silvacanda, Pier Damiani e ilde-brando. In: ______. Medioevo Christiano. Bari: Laterza e figli, 1951, p. 100-119. LECLERQ, Jean. Saint Pierre Damien ermite et homme d’Êglise. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1960 (“Uomini e dottrine”, 8). MICCOLI, G. Chiesa gregoriana: richerche sulla riforma del secolo XI. Firenze: La nuova Italia, 1966. LUCCHESI, Giovanni. Per una vita di san Pier Damiani. Componenti cronologiche e topografiche. In: San Pier Damiano nel IX centenario della morte (1072-1972). Cesena, Centro studi e ricerche sulla antica provincia ecclesiastica ravennate, 1972, V. I. p. 13-179; V. II. p. 13-160. MORISSON, Karl F. Tradition and authority in the western Church. 300-1140. Princeton: Princeton University Press, 1969. BULTOLT, Robert. Quelques réflexions à propos de l’historiographie de saint Pierre Damien. Revue d’histoire ec-clésiastique, 70 (1975), p. 743-749.

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condes de Túsculo e a autoridade pontifícia, Pedro Damiano buscou emitir em seus textos considerações a respeito da renovação moral e institucional da Igreja, destacando o papel preponderante da Sé Romana nessa ação. Como a maioria dos papas desse período eram nomeados pelos potentados italianos (os Túsculos e os Crescenzi) ou pelo Imperador, os interesses políticos seculares imperavam na administração da Igreja Romana, provocando sua perversão e o desvio de sua missão institucional, qual seja “a salvação do povo de Deus”.

Diante deste quadro irretocável, a proposta de estudo dos primórdios da “Reforma Gregoriana”, bem como da obra epistolar de Pedro Damiano pareceria desnecessária, uma vez que correríamos o risco de produzir apenas uma reprodução dessa abordagem. No en-tanto, quando nos deparamos com as novas perspectivas da historiografia medieval, as quais questiona as formas de constituição dessa sociedade a partir de sua relação com o cristianis-mo, entendido não como uma religião em seu uso contemporâneo, mas como fundamento prático da vida social, entendemos porque as temáticas no estudo da História não se esgo-tam3. Buscando a dinâmica de organização e reprodução das práticas sociais do medievo e, porque não, as contradições presentes no estabelecimento da vida em sociedade dos seus diversos grupos humanos, essa nova historiografia de origem euro-americana questionou até mesmo um dos conceitos mais cristalizados da História do cristianismo: o conceito de Reforma4. Dessa maneira, parece-nos inevitável transportar tais questionamentos para o que se convencionou chamar de um dos movimentos “institucionais” mais importantes da Idade Média Central e seus representantes, quais sejam a “Reforma Gregoriana” e Pedro Damiano.

Além disso, com a reunião cronológica da produção epistolar desse eremita, empreen-dida por Kurt Reindel no final do século XX5, podemos igualmente olhar para esse objeto a partir de novos elementos, especialmente em busca do movimento de produção de concep-ções doutrinais e políticas que envolve tanto entendimentos ordinários quanto extraordiná-rios das representações sociais do medievo. Desde que assumiu o priorado de Fonte Avellana (1043), Damiano produziu e divulgou inúmeras cartas de combate à corrupção eclesiástica da região do Marche e da Emilia-Romana6. Ao que tudo indica esses escritos alcançaram ampla circulação nos territórios papais e imperiais7. Feito bispo e cardeal de Óstia (1057-1065) pelo

3. Uma organização social polissêmica e heterogênia, que pensa suas relações político-econômicas a partir dos fundamen-tos da moral cristã, os quais se aplicam à totalidade das atividades humanas. Para explorar mais a questão ver: GUER-REAU, Alain. L’avenir d’un passé incertain. Quelle histoire du Moyen Âge ao XXI siècle? Paris: Seuil, 2001; IOGNA-PRAT, Dominique. Ordonner et exclure: Cluny et la société chrétienne face à l’heresie, au judaisme et à l’Islam (1000-1500). Paris: Aubier, 2000. IDEM. La Maison Dieu. Paris: Seuil, 2006. LAUWERS, M. La mémoire des ancêstres, le souci des morts. Morts, rites et société au Moyen Âge. Paris: 1997. IDEM. Naissance du cimetière. Lieux sacré et terre des morts dans l’Occident médiéval. Paris: Aubier, 2005.

4. CAPITANI, Ovidio. Esiste un’età gregoriana? Considerazione sulle tendenze de uma storiografia medievistica. Rivista di Storia e Letteratura Religiosa, V. 1, p. 454-481, 1965. CONSTABLE, Giles. The reformation in the twelfth century. Cambridge/New York, CUP, 1996. CUSHING, Kathleen. Papacy and law in the Gregorian Revolution. Oxford: Oxford University Presse, 1998. IDEM. Reform and the papacy in the eventh century. Spirituality and social change. Man-chester: Manchester University Press, 2005.

5. PEDRO DAMIANO. Epistolae. Monumenta Germaniae Historica. Die Briefe der Deutschen Kaiserzeit. Tomo IV. IV Vol-umes. K. Reindel (ed.). Munchen: 1983-1993. Toda a coleção da MGH encontra-se disponível para consulta on line no sítio eletrônico http://bsbdmgh.bsb.lrz-muenchen.de/dmgh_new/. A partir de agora utilizaremos a abreviação MGH Briefe para nos reportar à correpondência de Pedro Damiano.

6. A obra de Pedro Damiano é vasta e bastante diversa. Composta de textos hagiográficos, como a celebrada Vita de São Romualdo, sermões, cartas e canções (Carmina em honra aos santos, aos apóstolos e à virgem). Cf. LUCCHESI, Giovanni. op. cit.

7. REINDEL, K. Petrus Damiani und seine korrespondenten. Studi Gregoriani, V. 10, Roma, 1975, p. 208.

papa Estevão IX (1057-1058), o avellanita teve seu raio de ação estendido, sendo convocado a arbitrar várias disputas que envolviam membros da clero por toda a Cristandade Latina.

Dilectíssimo, porque sei bem qual é a situação atual de Roma e por muito

ouvir sobre o teu temperamento, faço esta simples reflexão: só aquele que

pode dar nascimento a um lírio entre os cactos pode mostrar-se como um

lírio no meio das intrigas de Roma. Saiba, portanto, que eu estou dese-

jando teu amor [caritas], uma grande ânsia de ver-nos unidos um com o

outro numa particular familiaridade e com sólido vínculo de amizade. E o

meu desejo não pode ser minimamente prejudicado pela distância. [...] De

fato, se a Sé Romana não retornar ao estado dos retos costumes, é certo

que o mundo inteiro continuará a decair no próprio erro. É necessário que

esta mesma Sé, que no início foi o fundamento da salvação do mundo,

seja agora o princípio de renovação8.

A referida passagem está numa brevíssima carta de 1045, endereçada a Pedro, chan-celer da Sé Romana. No que diz respeito aos sentidos atribuídos aos vocábulos redire e re-novandae principium observamos que a transformação ansiada faz referência à busca de um estado social já experimentado, num momento inicial da própria igreja, quando ela era o “fundamento da salvação do mundo”, métafora para os tempos de Cristo. Portanto, mais do que anunciar no que consiste esse “princípio de renovação”, Damiano está preocupado em compartilhar com o chancelar Pedro a condição atual da Sé Romana: dominada pelas intrigas e pelo ação de homens pouco hábeis em fazer perpetuar a missão de “salvação do mundo” para a qual ela foi erigida. Não por acaso, Damiano anuncia o desejo de aproximar-se do chanceler romano e estabelecer com ele um vínculo de amizade.

Também eu não posso ver sobre meu rosto o olho com o qual vejo as

coisas, mesmo assim me valho do seu útil serviço; e da mesma forma que

minha visão vem me auxiliar quando devo pronunciar palavras exempla-

res, sejas tu o meu olho, sejas tu o meu mestre, a fim de que através de

ti eu possa contribuir com a sugestão de qualquer coisa aos ouvindos do

beatíssimo sucessor apostólico9.

Seria essa uma tímida auto-candidatura para servir ao papado? Tal atitude nos reme-te a pensar que, no momento inicial de seu priorado, Damiano ainda não tinha entrada no ambiente episcopal romano. Certamente, buscava através dessa carta constituir uma ligação direta com a Sé Romana e seus principais representantes. Não se sabe ao certo se no momen-to de composição desta carta o papa era Bento IX ou Gregório VI, mas independentemente de quem era o representante pontifício o que está em evidência é a tentativa de Damiano de tecer sua trama de relações com Roma, reportando Fonte Avellana a uma área de influência extra-local. Essa hipótese é corroborada pela identificação dos destinatários das três cartas seguintes em seu epistolário: o papa Gregório VI (carta 13 e 16, ambas da transição de 1045-

8. PEDRO DAMIANO. Epistola XI, MGH Briefe, V. 1, p. 138-139. 9. Ibidem.

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1046) e o senador romano Almerico e sua mulher Emilina (carta 15 de 1046)10. Dessa manei-ra, mais do que anunciar um projeto ou “programa” de reformas, esta epístula juntamente com as outras três confirmam a vontade do avellanita de estreitar os vínculos políticos com o episcopado romano e seus aliados laicos.

Para além da potencial rede social que essas primeiras cartas poderiam estabelecer para Damiano e Fonte Avellana, a epístola onze traz uma informação fundamental sobre de onde deve partir o “princípio de renovação” e os responsáveis por essa ação, quais sejam, a Sé Romana e os sucessores de Pedro. A carta treze, endereçada ao recém empossado Gregório VI, apresenta de forma mais clara essas atribuições:

Reverendíssimo senhor, dou graças a Cristo, Rei dos reis, pois eu sempre sedento e minha garganta seca por um desejo de ouvir coisas boas sobre a Sé Apostólica, finalmente posso beber um grande copo de louvor a vós, pelo que já muito trouxeram vossos lábios. Esta bebida realmente recria o estômago da minha mente com tanta doçura e delicadeza, garantindo que, com essa alegria interior, a língua irrompa imediatamente nesta ex-pressão de louvor: Gloria a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. É Ele quem faz, como está escrito, mudar os tempos e as circunstâncias, depõe os reis e os enaltece; é Ele que preenche agora admiravelmente, diante do mundo, aquilo que havia previsto há muito tempo a boca do profeta: o Altíssimo domina sobre o reino dos homens e pode dá-lo a quem lhe apraz. Alegrem-se os Céus e exulte a terra, se alegra a santa Igreja por ter finalmente reconquistado o antigo privilégio que lhe compete por direito. Foi finalmente esmagada a cabeça multiforme da serpente venenosa; pare o comércio das más negociações; nenhuma moeda o falsário Simão fabrica mais na Igreja, nenhuma furtiva doação restitua Giezi pela ausência prolongada de seu professor. Retorne a pomba à arca e com o ramo da oliveira anuncie que finalmente está restaurada a paz na terra. Renova a áurea época dos Apóstolos e sobre a presidência de vossa prudente sabedoria refloresça a disciplina Eclesiástica. Reprima a avareza daqueles que aspiram às vestes episcopais; são derrubadas as mesas dos cambistas e a banca dos que vendiam pombas11.

Num claro elogio à eleição de Gregório VI, Pedro Damiano contextualiza nessa epís-tula a situação em que estava submetido o papado: dominado pela presença da simonia. Durante a primeira metade do século XI, a Sé Romana passou por tempos difíceis. Por mais de trinta anos os condes de Tusculum (Túsculo) exploravam a Sé Romana como um domínio senhorial, ocupando-a sucessivamente com seus representantes e dispondo de sua estrutura material e imaterial (bens simbólicos) para uso particular. Os irmãos, Bento VIII (1012-1024) e João XIX (1024-1033) e seu sobrinho, Bento IX (1033-1048) foram os papas que ao ocuparem o trono de Pedro, transformando-no numa grande feira de ofícios sacerdotais. Particularmen-

10. “Ao santíssimo papa Gregório, Pedro, monge pecador, apresenta respeitosamente seu serviço devido”. PEDRO DAMIA-NO. Epistola XIII, MGH Briefe, V. 1, p. 142; “Ao senhor Amelrico, senador e a Ermilina sua sereníssima esposa, Pedro, monge pecador, apresenta sua saudação”. PEDRO DAMIANO. Epistola XV, MGH Briefe, V. 1, p. 151; “Ao santíssimo papa Gregório, Pedro, monge pecador, apresenta respeitosamente seu devotíssimo serviço”. PEDRO DAMIANO. Epistola XVI, MGH Briefe, V. 1, p. 153;

11. PEDRO DAMIANO. Epistola XIII, MGH Briefe, V. 1, p. 143-144;

te o papa Bento IX foi o protagonista de uma série de escândalos e disputas armadas pela trono pontifical. Ele teve seu pontificado contestado em 1044, quando foi forçado a deixar Roma. Mas retornou menos de uma ano depois fortalecido pelo apoio militar de seus fami-liares, expulsando o então papa Silvestre III em abril de 1045. Logo em seguida, abriu mão de seu pontificado pelo casamento, vendendo o trono da Sé apostólica a João Graciano, então nomeado papa Gregório VI (1045-1046)12.

Foi durante esses controverdidos pontificados que Damiano se aproximou da Sé Apostólica. Conhecedor da má fama de Bento IX, Damiano o descreve no Liber Gomorrhia-nus como “um demônio do inferno dissimulado de sacerdote”, que “regozija-se em imorali-dade”. Diferentemente, como nos mostra as cartas treze e dezesseis, Gregório VI surge em seu epistolário como uma centelha de esperança em meio a desordem sócio-moral da Sé Roma-na. Certamente, quando inviou essa carta a Gregório VI Damiano ignorava as condições de sua ascensão ao papado, vislumbrando-o como um aliado na “restauração da paz” na Igreja.

Todavia o que nos interessa nessa carta é o papel atribuído a Roma e a ação pontifícia no movimento de condenação da simonia e consequente renovação das práticas cristãs, especialmente pelo combate ao episcopado corrupto. Tal perspectiva foi considerada pela historiografia Damianense. Mas, de acordo com essa historiografia, a carta onze assinalaria a entrada do avellanita na história institucional do papado, estabelecendo um “verdadeiro e próprio programa de reforma” que acompanharia toda a sua tragetória eclesiástica13. Contu-do, o problema dessa abordagem reside no caráter generalista e definitivo atribuído a esta epístola que, em termos das demandas requeridas referencia prioritarimente problemas de ordem local, cujas boas soluções encaminhadas poderiam ser corrompidas se a Sé apóstilica resolvesse restituir o infrator ao seu ofício. Caso esse nada incomum para o período.

Definindo a extensão de seu raio de influência, Damiano diz:

No entanto, se for permitido ao mundo ter boa esperança sobre o que eu escrevo, primeiramente a Igreja de Pesaro dará clara indicação deste indício. Com efeito, se essa igreja não for removida das mãos daquele adúltero, in-cestuoso, perjurador e predador, a esperança da renovação do mundo que estava nascendo entre as pessoas vai desaparecer; já que todos aguardam este fim, que todos ouvidos esperam ouvir esta notícia. E se ele, envolvido em tantos crimes, for restituído ao refúgio episcopal, se negará absoluta-mente que a Sé Apostólica possa em seguida fazer qualquer coisa de bom.

Se exite algum programa próprio do avellanita ou um projeto de reforma vindo de Roma na referida carta, ele está encoberto pelos cânones de uma consumada retórica que comportava a inevitável felicitação pelo advento de Gregório VI ao trono petrino e seu con-vite ao combate à simonia. Retórica essa que pode nos levar a considerar que o combate à simonia não era iniciativa que partia da Sé Apostólica, mas expressão de demandas locais que recorriam ao papado em busca de apoio e sustentação para suas requisições. O que exigia daqueles que a requeriam ou que já a praticavam a destreza para convencer o sucessor de Pedro da necessidade de arbitrar a favor dos demandantes e não do acusado.

Mas nesta primeira fase do epistolário Damianense não apenas o papa e sua entourage foram solicitados a se incorporarem nos movimentos locais de combate a simonia e a cor-

12. VIOLANTE, Cinzio. Studi sulla cristianità medioevale. Milão: Vita e Pensero, 1975.13. LUCCHESI, G. Per una vita... op cit., p. 70.

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rupção episcopal. Também a figura política laica de maior expressão do período – o Impera-dor Henrique III – foi chamada a colaborar com as iniciativas de renovação da cristandade, punindo a corrupção episcopal:

Louvores infinitos a Cristo, rei dos reis, pois a santidade e os dons de virtu-de da majestade real que chegaram a mim pelo testemunho de muitos, eu vejo comprovado não nas palavras, mas por fatos concretos. Na expulsão de Widger, em verdade, se eleva ao céu, em louvor ao Criador, a voz de todos, a Igreja foi retirada da mão do predador violento e a vossa salutar decisão é motivo de salvação para o mundo inteiro. Alegram-se os céus, exulta-se a terra!: Se reconhece que no teu rei reina o próprio Cristo e com o fim de um tempo cruel vem a renovação do áureo tempo de Davi14.

Nesta epístula escrita em maio de 1046, pouco depois das cartas enviadas ao papa Gregório VI, Pedro Damiano declara seu total apoio a Henrique por ter deposto Widger, arce-bispo de Ravenna. Animado com com a deposição do rival, com quem manteve discussões de conduta pelas exações que o arcebispo cobrou do monastério de São Apolinário in Clas-se15, o avellanita compara Henrique III com dois personagens que encarnam o modelo bíblico da realeza cristã: Cristo e Davi. Segundo Cinzio Violante, Henrique III possuiu “uma política operante na direção da reforma imperial, através de um rígido controle sobre a hierarquia eclesiástica”16. O soberano e também seus contemporâneos não concebiam como ilícita a intervenção nos assuntos eclesiásticos, reconhecendo essa prática como extensão de uma longa tradição – Eigenkirche (Igreja própria) – a qual considerava como “legítima e útil à Igreja tal ingerência”. Nesse sentido, não era novidade a intervenção do soberano na resolução de disputas entre o clero.

No caso específico de 1046, quando coexistiram três papas – Bento IX, Silvestre III e Gregório VI – a intervenção de Henrique para a resolução do cisma resultou na deposição dos três requerentes e numa nova eleição regular. No Sínodo reunido em Sutri, em dezem-bro de 1046, não parecia uma prática extraordinária a conferência do direito de indicar o nome do candidato a eleição papal ao soberano germânico. Tanto que Henrique recebeu o principatus in electione pontificis dos numerosos bispos ali reunidos. Nesse sentido, não é de se estranhar que Pedro Damiano já tivesse reconhecido o peso da colaboração imperial na renovação da sociedade cristã, principalmente por partilharem um interesse comum: coibir a corrupção episcopal.

Ao se despedir do imperador na carta, o avellanita conclui: “Deus onipotente, que te confiou o governo do império terreno, te conceda vida longa a fim de que antes defendas os teus direitos e te conduza, ao fim de tua vida mortal, ao reino celestre”17. Como nos lembra D’Acunto, a referência do avellanita ao conceito gubernacula terreni imperii, largamente utili-zado na reflexão política medieval, permitiu-lhe requisitar o soberano germânico no seu de-

14. PEDRO DAMIANO. Epistola XX, MGH Briefe, V. 1, p. 199-200;15. Em benefício do monastério de São Apolinário in Classe, onde se encontrava recluso, Damiano compôs a carta sete ao

arcebispo de Ravenna, Widger: “não queirais pressionar novamente esse santo lugar, levando seu dinheiro, quando sabeis que já sofreu a perda de tantos outros bens eclesiásticos”. PEDRO DAMIANO, Epistula VII. MGH Briefe, v. 1, 1983, p. 117.

16. VIOLANTE, Cinzio. Aspetti della politica italiana di Enrico III prima della sua discesa in Italia (1039-1046). In: ______. Studi sulla cristianità medioevale. Milão: Vita e Pensero, 1975, p. 251.

17. PEDRO DAMIANO. Epistola XX, MGH Briefe, V. 1, p. 202.

ver de defender a Igreja, numa clara alusão a herança legada pelo modelo de realeza sacra de origem carolíngia, o qual tinha por obrigação sócio-moral a garantia da renovação da Igreja18.

A partir dos conteúdos apresentados nas cartas enviadas durante o priorado Pedro Damiano podemos qualificar as iniciativas de renovação cristã da seguinte forma: primeira-mente, a ação de renovação da Igreja e da Societas Christiana referia-se à retomada de uma condição moral/social original e imaculada, a qual se remetia ao exemplo fundador do Cristo e de seus apóstolos; em segundo lugar, essa condição original ilibada dependia do comba-te à simonia, particularmente ilustrada pelos casos do episcopado de Pesaro e Ravenna19; finalmente, o combate às práticas simoníacas significava garantir a retomada da disciplina eclesiástica, ação esta que dependia do controle do pontífice romano, mas também da cola-boração imperial. Durante seu priorado Damiano construiu o sentido de renovação da Igreja baseado no combate a corrupção eclesial e na incorporação dos laicos nessa luta.

Muito diferente da perspectiva de renovação cristã adotada em seu priorado, durante seu cardenalato Damiano defendeu a primazia da Igreja Romana em definir a tônica dos mo-vimentos clericais e laicos de renovação moral, condenando algumas ações laicas. Vejamos a carta sessenta e cinco, enviada em dezembro de 1059 ao arquediácono romano Hildebrando de Soana. Damiano diz:

Quanta força possui o primado da Igreja Romana para conservar a regra da justiça e a observância dos cânones e qual é o seu vigor em ordenar a disciplina da instituição eclesiástica, pode compreende-lo claramente so-mente quem tem familiaridade com os problemas eclesiásticos20.

Esta carta trata da missão de Damiano em Milão, durante o inverno de 1059 quando o movimento conhecido como Pataria já há tempos travava uma luta contra o clero simo-níaco e concubinário da região, particularmente contra o arcebispo Guido de Velate21. A carta de Damiano foi escrita pouco depois do sínodo Latranense de treze de abril de 1059, no qual o papa Nicolau II promulgou o decreto In nomine Domini, relativo ao formato da eleição do bispo romano, restringindo a eleição do pontífice aos cardeais, especialmente aos cardeais-bispos e anulando a função do imperador de designar o candidato ao trono petrino. Possivelmente, a Sé apostólica representada pelo papa Nicolau II se viu em ocasião de afirmar a primazia petrina, inserindo-se no embate como árbitro da disputa milanesa. Mas tanto o grupo patarino, quanto o anti-patarino insuflavam o povo milanês contra os legados papais (Pedro Damiano e Anselmo de Baggio) para afirmar a autonomia da sua igreja. No entanto, o próprio Damiano afirma na carta que conseguiu passar o povo para o seu lado ao explicar claramente os princípios do primado petrino e seu fundamento no Verbo Divino.

Qualquer posição de liderança de um patriarcado, cada primazia metro-politana das igrejas, cada cadeira da diocese, toda a dignidade de qual-quer ordem da igreja, foi criada ou pelo rei ou pelo imperador, ou por um homem simples, de qualquer condição, que pela própria vontade ou po-der decidiu suas prerrogativas especiais; Mas somente a Igreja Romana foi

18. D’ACUNTO, N. I laici nella Chiesa e nella società secondo Pier Damiani. Ceti dominanti e riforma ecclesiastica nel secolo XI. Roma: Istituto Storico Italiano per il Medio Evo, 1999. (nuovi studi storici, 50).

19. PIAZZONI, Ambrogio. Riforma della chiesa e Eigenkirche nell’azione dei papi tedeschi. Studi Medievali, ano XLIV, 2003, p. 1175-1190

20. PEDRO DAMIANO. Epistola LXV, MGH Briefe, V. 2, p. 228.21. VIOLANTE, Cinzio. Studi sulla cristianità... op. cit

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fundada e construída sobre a rocha da fé, que era apenas um broto, por Aquele que conferiu os direitos do império terreno e do império celeste ao abençoado depositário das chaves da vida eterna. Portanto, não foi uma decisão terrena qualquer, mas a mesma Palavra que criou o céu e a terra, e todos os elementos, fundou a Igreja Romana22.

Mas vamos lá, ignorando todo o resto, do que hoje se trata, em vossa san-ta devoção não deveis ignorar que os abençoados príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo, consagraram pelo seu sangue a Igreja Romana e, quando a fé cristã deu seus primeiros passos, Cristo ganhou pela obra de seus pró-prios discípulos a igreja de Milão. [...] Sabemos bem que os Santos Gervásio e Protaso também tiveram como mestre e preceptor o bendito Apóstolo Paulo, como afirma o bem-aventurado Ambrósio: “aqueles que seguem os meus conselhos, desprezam os bens mundanos e a riqueza, e seguem o vestígios de Nosso Senhor”. Como, então, nosso Salvador enviou anterior-mente seus discípulos dois a dois, então de certa forma, o santo Apóstolo designou um e outro, conjuntamente, como pregadores da santa fé forma-dos para o ensino nesta cidade. Assim, como aqueles que estão na origem de vossa salvação somos expressão da disciplina da Igreja Romana, segue--se, de acordo com um critério de equidade, que a Igreja Romana é a mãe e a igreja Ambrosina a filha23.

Desta maneira, esta epístula traz a tona toda a argumentação de Damiano para afir-mar a primazia romana e, consequentemente, seu privilégio de jurisdição universal. Ou seja, a condição de Roma em determinar a normatização da vida clerical, colocando-se em corres-pondência direta com o movimento teleológico de Criação e Salvação do homem. O apelo que Damiano faz a fundação apostólica e a ascendência dos santos milaneses aos alicerces sagrados da Igreja Romana se aproximam muito dos mecanismo ideológicos utilizados em suas cartas redigidas no priorado para o estabelecimento de Fonte Avellana como um locus de onde emanava a autoridade cristã24. Numa clara referência a possibilidade de redefinição do passado, promovendo a identidade dele com o presente vivido, novamente Damiano busca afirmar, agora sob a influência de sua posição enquanto cardial-bispo e legado papal, a autoridade fundante do episcopado romano não só no que diz respeito aos referenciais doutrinais do cristianismo, mas substancialmente sua condição de jurisdição sobre a regula-mentação e disciplinamento da vida clerical.

Diante da extensão de sua obra, seria coerente considerar que Pedro Damiano alterou seu entendimento sobre os objetivos e significados das ações reformadoras conduzidas pela liderança imperial, pelo pontífice romano ou mesmo por grupos clericais estabelecidos em pequenas comunidades. Nesse sentido, se atribuirmos a Pedro Damiano o mesmo papel di-

22. PEDRO DAMIANO. Epistola LXV, MGH Briefe, V. 2, p. 233.23. Ibidem, p. 234-235.24. O que aqui nomeamos como lugar (locus) não diz respeito apenas a circunscrição de um espaço físico e sua identifica-

ção, mas engloba um conjunto de atribuições sociais que adquirem reconhecimento público de membros externos à comunidade monástica, tais como: as funções exercídas pelos eremitas em suas relações espirituais e seculares; o reco-nhecimento de sua autoridade espiritual; autonomia na administração do patrimônio material-simbólico das ermidas; intervenção em questões que envolviam a comunidade cristã e o episcopado romano.

plomático-conciliador durante toda sua trajetória eclesiástica restringiremos sua colaboração eclesiológico-política a um momento muito preciso de sua atuação enquanto legado papal.

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Relação da tríade: tempo, eternidade e sagrado

Cl audionor aGuero dos sanTos 1

Introdução

A modernidade líquida, da qual nos fala Zygmunt Bauman, é um tempo histórico ca-racterizado pela fluidez com que as mudanças ocorrem, tanto nas relações dos individuas com a sua sociedade, quanto nas relações desses indivíduos com aquilo que tende ao sagrado.

Se compararmos a sociedade moderna de Bauman com a sociedade cristã ocidental durante a Idade Média, na qual a felicidade solidificava na eternidade e não nas coisas pere-nes, identificaremos mudanças significativas nas noções do tempo e do sagrado.

Com a finalidade de trabalhamos historicamente essa comparação usaremos Agosti-nho de Hipona como referencial do pensamento cristão medieval e Zygmunt Bauman como referencial do pensamento atual.

O tempo: do paganismo ao cristianismo

Numa rápida pincelada em outras culturas, como a dos Bárbaros ou das sociedades agrárias, notaremos que o tempo é ditado pelos ritmos da natureza, pela vida orgânica; o calendário era observado pelas mudanças das estações e das ocupações agrícolas. Na Anti-guidade, o tempo também não se desenvolve fora do homem e cada fatia de tempo estava

1. * Aluno Especial do programa de Mestrado em História da UFMT

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cheio de um conteúdo preciso, sempre específico e determinado. O tempo seguia um movi-mento circular de repetição periódica e constante.

Para os bárbaros dos países nórdicos, o tempo não era uma entidade vazia, estava in-trinsecamente ligado ao gênero humano. A mudança substituição das épocas dependia das ações dos homens e o tempo tinha uma qualidade própria e concreta: “Se o tempo de rei bárbaro era um bom, então as colheitas eram boas, a paz reinava, o gado multiplicava-se, e a pesca era boa” (GOUREVITCH, 1994: 99).

A concepção do tempo nas sociedades agrárias mostra a dependência do homem face às mudanças dos períodos anuais e a estrutura específica da sua consciência. Os indi-víduos destas sociedades atentavam na rotação de fenômenos cuja rotina não conseguia dominar e, são estas ideias que dão forma à vida material e espiritual na Antiguidade e em parte da Idade Média.

Por conseguinte, a transformação é sempre entendida como repetição e só os atos e fenômenos consagrados pela tradição e reiterados regularmente tinham valor próprio: “na sociedade antiga negava o individualismo e o comportamento inovador. Ser normal e valente era agir como todos” (GOUREVITCH, 1994: 100).

Só o comportamento tradicional poderia conferir uma força moral e a vida dos ho-mens era uma constante repetição de atos já antes efetuados por outros. Submetido aos ciclos da natureza, emanação divina, o tempo e as ações dos homens ligam-se ao sagrado. O tempo real está vazio de autonomia e o homem move-se num tempo mitológico que apare-ce fortificado na consciência histórica daquela época. Progressivamente, a memória do grupo social transforma em mitos dos eventos ocorridos: os acontecimentos tornam-se conceitos e os indivíduos passam a arquétipos e veiculam modelos de comportamento. Assim, o passado é o conteúdo real do presente e acaba por durar eternamente através do mito.

As mudanças começaram ocorrer na divisão do Mundo Antigo para o Mundo Medie-val. Na passagem do paganismo para o cristianismo originou-se uma profunda reorganização da estrutura e representações do tempo. Porém, nem tudo o que caracterizava a relação antiga com o tempo foi rejeitado: tudo estava agora ligado à religião e o ano era organizado segundo os acontecimentos da vida de Cristo, por isso o calendário pagão, que refletia os ritmos da natureza, foi adaptado às necessidades da liturgia cristã; as celebrações festivas da igreja tomaram lugar da origem do tempo pagão.

Nesse período as mudanças não são rápidas. Mesmo na Idade Média, ainda têm-se a ideia de um movimento cíclico e o ritmo da sociedade agrária continuou também a fazer-se sentir, dentro da esfera popular que era regido pelo ambiente natural. “O revezamento do dia e da noite, o ciclo das estações e do crescimento vegetal nutria a impressão coletiva que este mundo dava voltas, girando sempre em redor dos mesmos eventos” (RUST, 2010: 3).

As estações agrícolas, como as gerações dos homens, representam as raízes de uma mesma e única árvore da vida. Na tradição ocidental, ganha relevo efetivo na genealogia de Cristo. Na Idade Média, o tempo terrestre era entendido como o tempo material. No entanto, só o tempo sagrado possuía uma verdadeira autenticidade.

Na concepção cristã de tempo, este está separado da eternidade e esta não se mede. O tempo, por sua vez, teria sido criado e teria um princípio e um fim. O tempo histórico as-sume, portanto, uma estrutura específica que se funde ao cristianismo: a história anterior re-latava os acontecimentos que ocorreram antes do nascimento de Cristo e a história posterior àqueles que tiveram lugar depois do nascimento de Cristo. O tempo do Cristianismo avança

na direção do Criador eterno, não se isentando de um caráter cíclico dentro dos limites da criação do mundo. O homem e o mundo acabam por voltar ao Criador.

Conceito de Tempo na Idade Média

Domingues diz que na Idade Média havia vários conceitos sobre o tempo: O primeiro conceito medieval de tempo é expresso através do termo latino tempus, que designa du-ração, ou seja, uma noção de tempo genérico que apenas delimita espaços de tempo. Esse termo está próximo às noções de época, era, período, hora, instante, estação do ano, mas sobretudo esse termo tempus se assemelha ao kairós grego, pois também indica o momen-to oportuno ou favorável. Essa reafirmação do kairós grego desempenha papel importante na teologia cristã dos primeiros séculos. O apostolo João usara este termo para designar o instante primordial de uma decisão divina, por exemplo, o kairós do nascimento, morte e ressurreição de Cristo.

O segundo conceito de tempo pensado na Idade Média é expresso através dos ter-mos “aeternitas (subst.) e aeternus (adj.), os quais designam eternidade, duração infinita de tempo” (Domingues, 1996: 36). É interessante perceber que os pensadores cristãos, inclusive Santo Agostinho, interpretam esta expressão como designando uma ordem eterna transcen-dente ao tempo, uma ordem divina.

Existe ainda, segundo Domingues, a expressão aevum, cujo significado se aproxima do de tempus. Os romanos empregavam esta expressão para designar desde o “tempo em sua duração continua e ilimitada”, como em Horácio, passando por “duração da vida”, como em Cícero, até virar, na teologia cristã, uma ordem intermediária entre o tempo e a eternidade.

Estes três termos correspondem às três modalizações de tempo que Santo Agostinho desenvolve em suas obras, dentre as quais Confissões é a mais significativa e conhecida. Essa obra foi escrita dez anos depois da conversão de Santo Agostinho ao cristianismo e compõe--se de 13 livros. No décimo primeiro livro das Confissões, Agostinho, seguindo a linha de aná-lise “tempo da consciência”, expõe a questão do tempo da forma que o pensamento cristão tende a colocá-la, associada às ideias de criação e de eternidade.

Implicações do tempo em Agostinho

Tudo que está no tempo se transforma e está sujeito à mudanças, ou seja, diferente do Deus criador que é imutável e eterno. A depravação, o desgaste e o envelhecimento evi-denciam a fugacidade, a transitoriedade do mundo criado, então, mostram sua imperfeição. Pois para Agostinho, só as coisas incompletas mudam, justamente tendo em vista alcançar sua perfeição, sua plenitude.

A mudança, entretanto, é pensada por analogia ao problema do mal. Agostinho diz que o “mal é a privação do bem” (AGOSTINHO, 1973: 64), podemos assim pensar que a mudança como privação de perfeição, cujo correlato é o devir temporal. O tempo não corre em vão. “As coisas belas nascem e morrem, e nascendo começam a existir, e crescem para se aperfeiçoarem, e quando perfeitas, envelhecem e morrem” (AGOSTINHO, 1973: 80). Essa é a condição das coisas criadas. O que Agostinho está falando é justamente sobre a brevidade da beleza terrena, aplica-se à ela todas as coisas temporais. Passam e morrem; crescem e desapa-

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recem; surgem e somem com a rapidez de um raio que nasce no oriente e some no ocidente, “passam para dar lugar a outras” (AGOSTINHO, 1973: 80).

A concepção judaico-cristã de que no tempo tudo se perde, nada pode se manter para sempre, a vida do homem aqui é apenas uma transição para uma eternidade que será boa ou ruim, dependendo do que se crê ou se serve. Para o Bispo de Hipona todos que esta-mos aqui na terra somos infelizes, imperfeitos e mentirosos, na medida em que estamos fora da verdade divina. E a total felicidade, perfeição e verdade está em Deus que é eterno.

Se Deus é a suma existência feliz e a suma perfeição verdadeira, os seres, para alcançar a felicidade verdadeira, teria que procurá-lo. Julgar que o caminho para se atingir a verdade seja humano, ou dependa apenas de esforços humanos constitui soberba, pois a verdade é externa e independente do homem. Para Agostinho, o conhecimento da verdade, e o alcance da felicidade depende em última instância da Graça Divina, que agracia os indivíduos que são fieis a Ele.

A noção do tempo e a ligação do sagrado para o mundo medieval tinha sua solidez na eternidade, era lá que o homem teria sua recompensa. O sofrimento e as privações do tempo presente não podiam amedrontar aqueles que teriam tudo no futuro eterno. “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser compara-dos com a glória a ser revelada em nós” (ROMANOS 8: 18). O que se passava aqui na terra não teria tanta importância por que nos céus tudo seria bom, como verificamos também no trecho bíblico a seguir:

E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras (APOCALIPSE 21).

De certo modo as promessas da “Escritura Sagrada” de uma vida feliz na eternidade eram capazes de fazer o homem medieval cristão mudar ou manter seu comportamento reli-gioso. Mudar consistiria em abandonar praticas pagã e manter sua vida em uma moral sólida aqui na esfera do tempo, para que na esfera da eternidade se pudesse gozar as recompensas.

Modernidade líquida e o descrédito na eternidade

Do mundo Medieval, passando pela modernidade, até a modernidade líquida pro-posta por Zygmunt, podemos perceber várias mudanças ocorridas na sociedade ocidental.

É possível identificar, no escopo das crenças medievais, a valorização da eternidade. Esse conceito se perpetuou em parte da modernidade, e sem dúvida, mesmo tendo sido tra-tado aqui como um conceito religioso, pode ser visto filosoficamente como uma ideologia que a modernidade assumiu e que, ao mesmo tempo, mostra um caminho a ser seguido pelos homens modernos.

Segundo Bauman, um dos fatos que mostram, com certa clareza, esse rompimento do que era solido na Idade medieval e parte da Idade Moderna e se tornou fluido na modernida-de líquida, é a constatação de uma sociedade que deixou de acreditar na eternidade passou a

viver a infinitude. Não se têm em mente os valores eternos, ou os valores de uma religião que está atrelada com a eternidade, mas sim de eventos que se repetem no tempo:

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com faci-lidade... Enquanto os sólidos têm dimensões especiais claras, mas neutrali-zam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (BAUMAN, 2005a: 8).

Essa mudança contribui para uma instabilidade, nada mais é seguro ou sólido, tudo está em plena mudança, às relações humanas se tornam em mais um produto de consumo, “A vida liquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2005b: 8) e essas precariedades influenciam na forma que essa sociedade liquida moderna lida com o sagrado, que em muitos casos deixa de ser sagrado e se confunde com o profano.

Já Agostinho ao falar sobre tempo e eternidade fazia uma distinção essencial, mostra-do que no tempo as coisas são falíveis e na eternidade não há mudanças. “Se é correta a dis-tinção entre tempo e eternidade, baseada em que o tempo não existe sem alguma modalidade mutável e na eternidade não há mutação alguma” (AGOSTINHO, 2002, cap.VI), claro que no mundo liquido o que é estático e que não pode ser mudado, como a eternidade, se torna pouco atrativo e perde seu status de sagrado trazendo a expectativa que estava só no futuro para o dia de hoje.

Segundo o professor Paolo Cugini2 o conceito infinito de Bauman, que substitui o conceito de eternidade, não é de metafísico, religioso, mas sim existencial. O infinito pode ser, assim, entendido como uma série contínua de tempos presentes, não como a eternidade a “soma de todos os tempos”, sem precisar pensar na existência de mundos futuros, mas sim-plesmente aceitando no contínuo movimento do tempo. A infinitude é o tempo presente tornado mais longo, esticado. “O dia de hoje pode-se esticar para além de qualquer limite e acomodar tudo aquilo que um dia se almejou vivenciar apenas na plenitude do tempo.” (Bauman, 2005b: 15).

Se por um lado o tempo em Agostinho estava firmado na eternidade, o tempo liqui-do de Bauman não precisa mais de eternidade, o que sustentava o conceito ideológico era a metafísica que desmoronou como a fluidez do pós-modernismo.

Parece-nos que o Bispo de Hipona, ao postular um Deus criador do tempo, e afirmar que esse Deus está na eternidade: “As Escrituras dizem que Deus criou o céu e a terra, dando a entender que antes nada fez, pois se houvesse feito algo antes do que fez, diriam que no princípio o houvera feito” (AGOSTINHO, 2002, cap. VI), conseguiu ruir a ideia de um eterno retorno como criam os gregos.

Para nós que somos temporais é difícil entender que existe um Deus que não sofre pela passagem dos anos. Os nossos anos têm sucessão, vão e vêm ao contrário dos de Deus, que estão conjuntamente parados, reunidos em um só instante eterno. Se não houve uma crença nesse Deus, o sagrado eterno perde sua importância. Agostinho, falando de Deus, sobre o caráter do tempo dele, escreveu assim: “é um perpétuo ‘hoje’, porque este ‘hoje’ não se afasta do ‘amanhã’, nem sucede ao ‘ontem’. O Vosso ‘hoje’ é a Eternidade, soma de todos os ontens e amanhãs” (AGOSTINHO, 1973: 242). Analisando o trecho de Confissões de Agostinho podemos tirar alguns indícios que é possível acreditar nesse Deus eterno se tiver

2. Doutor em Filosofia (Bologna Itália), professor de filosofia da religião na FAFS.

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a esperança de um dia encontrar com ele, ou seja, que tudo foi criado na eternidade e, para ele, tudo vai voltar “Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente, amém” (ROMANOS 11).

Sendo assim, no mundo líquido essa teleologia se perde passando a ser apenas uma ilusão, como podermos constatar em Bauman:

Da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um télos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa... da ordem perfeita em que tudo é colocado no lugar certo... do com-pleto domínio sobre o futuro (BAUMAN, 2005a: 37).

Portanto, finalizando nosso artigo, na sociedade líquida não existe a ilusão que tudo foi criado por um Deus, um ser eterno que mora nos céus, e que um dia voltaremos para ele. Também não se tem a ideia que tudo veio do nada, mas sim que nas suas próprias transfor-mações a sociedade foi se formando. As ideais modernas não eram nada mais que o resul-tado de uma elaboração conceitual que a vida não pode ser desvinculada da realidade que pode ser confirmada. Foi-se ruindo, derretendo o que era solido e se tronando cada vezes mais liquido. Tudo isso foi elaborado pela modernidade e culminou em um mundo onde existe quase uma aversão no que é estático.

Bibliografia

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Trad. Oscar Paes Lemes. 7º ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. Parte I.______________. Confissões/ De Magistro. Trad Angelo Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção os Pensadores).BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005a.______________. Vida Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005b.Bíblia. João Ferreira de Almeida Corrigida e Fiel - Sociedade Bíblica do BrasilDOMINGUES, Ivan. O fio e a trama. Reflexões sobre o Tempo e a História. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.GUREVITCH, Aron. As categorias da cultura medieval: Lisboa: Caminho, 1994.REIS, J.C. Tempo, história e evasão. Campinas: Papirus, 1994.RUST, Leandro Duarte. Além das formas: aproximações entre a história política e a filosofia contem-porânea à propósito do papado medieval. Revista eletrônica História e-história: Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. Disponível em: <http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=97>. Acesso em: 06/07/2010.

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Servindo ao Santo Ofício: os seus agentes na

América Portuguesa

débor a CrisTina dos sanTos Ferreir a1

O Santo Ofício lusitano

O Tribunal do Santo Ofício em Portugal foi estabelecido através da Bula Cum ad nihil magis expedida pelo papa Paulo III, em 1536, na qual nomeava três bispos como inquisidores--gerais e concedia ao rei d. João III a possibilidade de nomear um quarto. Segundo Francisco Bethencourt, na obra História das Inquisições, desde a instalação do Santo Ofício português o Rei exerceu grande influência sobre o mesmo, demonstrando, assim, a ambição da realeza em centralizar o poder de todos os campos da vida de seus súditos em suas mãos, intervindo na Justiça inquisitorial de forma explícita. A Inquisição seria subordinada aos dois grandes poderes constituídos na Terra, o temporal, tendo como símbolo o Rei, e o espiritual, na figura do Pontífice.

O Santo Ofício era alicerçado na hierarquização de seus agentes, tanto eclesiástico quanto civil, tendo o objetivo de homogeneizar as consciências. Entre os mesmos figuravam donos de altos cargos eclesiásticos e também leigos de posses. Para regular as suas ações, na Metrópole e nas distantes colônias, o Santo Ofício desde os primeiros anos de sua insta-lação no território lusitano se preocupou em elaborar um conjunto de regras que visavam normatizar as relações hierárquicas do Tribunal, tal apreensão, como salienta Siqueira, era

1. Graduanda em História na Universidade Federal de Mato Grosso. Na América Portuguesa apuraram-se várias visitas do Santo Ofício durante o período colonial. E visitas diocesanas e pasto-

rais ocorreram em vários pontos da Colônia, tendo o mesmo caráter que as inquisitoriais.

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para torná-lo uma instituição “votada à manutenção de um elenco de valores, calcava suas estruturas numa hierarquia definida, indispensável à própria sobrevivência da instituição”, e, ainda, a burocracia produzida seria um “subproduto” da máquina inquisitorial. (SIQUEIRA, 1978: 123-124)

Os olhos da Inquisição Portuguesa nas terras brasílicas

Na América Portuguesa não houve um Tribunal instalado, mas esta inexistência não fez com que os seus residentes passassem despercebidos aos olhos da Inquisição lusitana, esta agia através de Visitas�, que tinham a finalidade de encontrar desvios da conduta cristã, e, ainda, mantinha no além-mar uma rede de agentes incumbidos de denunciar os delitos contra a fé, sendo estes remetidos ao Tribunal de Lisboa�.

Muitos foram os que serviram ao Santo Ofício em terras brasílicas, sendo eles clérigos e leigos, mesmo que fora dos quadros inquisitoriais, os Bispos, vigários e demais membros da hierarquia eclesiástica deviam cooperação e obediência ao Tribunal, sendo assim, ao mes-mo tempo em que cumpriam suas funções junto às igrejas, também vigiavam seus fiéis, e detectando alguma heterodoxia deveriam remeter tal denúncia ao Reino. O Santo Ofício constituía seu corpo de agente em dois níveis, o eclesiástico e o leigo, o primeiro era respon-sável pelos altos cargos e pelo aparato jurídico e religioso, enquanto o último tinha funções menores e por conta de sua colocação social – em geral homens de negócio – que faziam circular a moral inquisitorial.

Os agentes diretamente subordinados ao Santo Oficio necessitavam preencher alguns requisitos para servir ao Tribunal, sendo eles, a comprovação da pureza de sangue, em que o candidato deveria demonstrar que em sua genealogia e de sua esposa não haveria “manchas impuras” com sangue indígena, mouro ou cristão-novo, tal comprovação seria uma “espécie de ‘inquisição dentro da Inquisição’, isto é, o mecanismo regulador do ingresso no aparelho inquisitorial era quase o mesmo que o Tribunal utilizava para detectar e punir seus hereges”, e ainda, outras condição como sua conduta e valores cristãos, o domínio das letras, além de guardarem segredo�, deveriam ser atendidas. (CALAINHO, 2006: p. 119)

Sônia Siqueira afirma que nem todo o corpo de agentes do Santo Ofício português foi implantado no Brasil colonial, entre os que aqui exerceram suas funções, em sua maioria, eram clérigos, que ocupavam os seguintes cargos: deveriam ser clérigos. Comissários, Notário, Qualificadores, Visitadores das naus e Visitadores. Cada um destes cargos era responsável por inspecionar um componente da vida na Colônia. Ocupado o maior degrau da hierarquia, os Comissários eram auxiliares diretos do Tribunal nas localidades distantes das suas sedes. O cargo de Notário se incumbia da escrita de todos os autos dos processos inquisitoriais. Os Qualificadores policiavam “a integridade da ortodoxia em todas as exteriorizações do pensa-mento na literatura e na arte”. (SIQUEIRA, 1978: 169)

Os Visitadores das naus deveriam revistar as embarcações que aportavam na colô-nia em busca de elementos não católicos, cargo este resultante do medo engendrado pelo contato e disseminação das heterodoxias religiosa. Os Visitadores, estes diferentemente dos responsáveis pelas naus, deveriam visitar e vistoriar as consciências da cristandade em dife-rentes localidades, estes eram encarregados de apontar o caminho para a salvação e arrepen-dimento.

O Santo Ofício português também contou com os agentes leigos, os Familiares, para disseminar o ideal da homogeneização da consciência, suas funções eram vigiar a população

e delatar seus crimes contra a fé, tarefa esta que suscitava o medo da repressão do Tribunal nos habitantes, Daniela Calainho utiliza a denominação de Bartolomé Bennasar, na qual en-tende que os mecanismos de repressão empreendidos pela Inquisição eram “métodos da pedagogia do medo”, que “se instrumentalizou pelo segredo que envolvia o processo, pela infâmia que carregavam os condenados pelo resto de suas vidas e pelo temor da miséria e do confisco de bens”. (BENNASAR, 1983: 177-178 apud CALAINHO, 2006: 135)

O medo promovido pela presença dos Familiares era um dos alicerces da ação inqui-sitorial em Portugal e nas colônias. Quanto ao status conferido, Calainho acredita que tenha sido o principal motivo da ânsia por conseguir uma Carta de Familiatura estava ligada à posi-ção social e as benesses conferidas pela função, entre elas a isenção de impostos e a utilização de armas. Grande parte dos Familiares estavam ligados ao comércio, o cargo no Santo Ofício lhes era, então, “altamente enobrecedor, minorava bastante o estigma inerente à atividade comercial”. (CALAINHO, 2006: 97)

Considerações finais

Entendemos que os agentes do Santo Ofício lusitano dispersos pelo Brasil colonial, tiveram o papel de disseminar os princípios da homogeneização das crenças, construindo no imaginário colonial o medo da difusão das heterodoxias que colocariam a salvação da Cristandade em risco. Movidos pelo status conferido pela ação junto ao Tribunal, que lhes traziam o prestígio social que não obtinham sem a mesma, no caso específico dos Familiares, estes seriam, em sua maioria, ligados à atividade comercial que no período estudo, era enten-dida como uma atividade menos honrosa.

Em nossa pesquisa, atemo-nos à ação dos Familiares, agentes que contribuíram para a difusão da intolerância às condutas divergentes das pregadas pela Inquisição, visto que auto-ras como Anita Novinsky e Daniela Calainho apuraram que uma vasta rede de agentes leigos do Santo Oficio atuaram em terras brasílicas no período colonial, inclusive no Mato Grosso dos setecentos, a ação dos mesmo nesta Capitania é o alvo de nossa investigação. Devemos, pois, retificar que este trabalho é fruto inicial da pesquisa em andamento, apoiamo-nos para este trabalho somente na pesquisa bibliográfica, tendo em vista que a análise documental será realizada em um segundo momento.

Bibliografia

BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha, Itália – séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colo-nial. Bauru: Edusc, 2006.

NOVINSKY, Anita W. “A Igreja no Brasil colonial – agentes da Inquisição”. Anais do Museu Pau-lista. São Paulo, tomo 33, 1984. (p. 17-34).

SIQUEIRA, Sônia A. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.

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“Homens que vivem de ajustes”: trabalhadores livres em

ambientes rurais de Mato Grosso (1808-1850)

divino marCos de sena1

Pensar o rural significa muito mais que relacioná-lo à simples presença de um local rude e longe de qualquer mudança significativa no seu dia a dia. Nele se configura

relações econômicas, sociais e culturais características de ambientes em que a vida segue rumos distintos daqueles presentes nos espaços urbanos.

Muitas vezes distante, mas de forma alguma desvinculado da cidade, o campo apre-senta características peculiares ao ambiente natural com hábitos, costumes, crenças, traba-lhos e famílias surgidas tipicamente do contato com a terra.

No território de Mato Grosso, na primeira metade do século XIX, os ambientes rurais eram formados por fazendas, sítios, chácaras etc. Esses lugares eram ocupados por pessoas de diferentes camadas sociais, sejam elas pertencentes às elites, à escravaria, ou ao estrato livre e pobre. Nos espaços rurais eram realizadas as mais diferentes atividades, tais como extração, la-voura, criação de animais, fabricação de açúcar, aguardente, rapadura, tecelagem, entre outras.

Nesse rol de pessoas e afazeres é que podemos inserir os homens livres e libertos que viviam por ajustes de trabalho. Nesse sentido, o objetivo deste texto é fazer algumas discus-sões sobre a presença e participação desses sujeitos que trabalhavam em ambientes rurais por acordos de trabalho, para desenvolver atividades específicas ou diversas.

1. Mestre em História pela Universidade Federal da Grande Dourados, Professor Substituto na UFMS/CPan. E-mail: [email protected]. Este texto faz parte de reflexões surgidas a partir da elaboração da minha dissertação de mestrado. SENA, D. M. Camaradas: livres e pobres em Mato Grosso (1808-1850).

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Trabalhadores livres e pobres em ambientes rurais

Quando se pensa na camada livre e pobre, deve-se ter em mente complexidade. Pes-soas que faziam parte dela eram distintas e estavam inseridas em diferentes situações do co-tidiano familiar ou do trabalho. Dessa camada faziam parte homens e mulheres, seja criança, jovem, adulto ou idoso, cada qual com sua idossincrasia, e desenvolviam os mais diferentes tipos de serviço, que contribuíram para a dinâmica do território conhecido pelo nome de Brasil.

Nos ambientes rurais de Mato Grosso, na primeira metade do século XIX, as pessoas livres e pobres estavam envolvidas nos afazeres de lavoura, criação de gados vacum e cavalar, condução de tropa, navegação fluvial, atividades extrativas e de prestação de serviços. Nessa última modalidade, podem ser inseridas aquelas que “viviam de suas agências”, da lavagem de roupa, do pequeno comércio, etc. Além dessas, existiam pessoas que viviam de “ajustes de trabalho”, e aí pensar nos empregados contratados para desenvolver atividades específicas ou diversas.

Contudo, o que significava a expressão “viver de ajuste”? A palavra ajuste no Vocabu-lário portuguez e latino significa convenção, pacto, concerto.2 Portanto, viver de ajuste por parte do livre e pobre significava fazer um acordo, um trato, convenção, pacto com um con-tratante, ou seja, ajuste pode ser usado para definir uma combinação entre duas partes, em que serviços seriam prestados em troca de um soldo.

Aquele (a) que contratava os serviços de uma pessoa livre era chamado (a) de patrão/patroa. Os acordos de trabalho ocorriam quando o contratante necessitava de alguém para desenvolver atividade (s), ou quando o contratado se apresentava para oferecer sua mão de obra. Nesse compromisso de acordo de trabalho entre as partes, serviços seriam prestados em troca de um soldo, que poderia ser complementado pelo fornecimento de materiais de trabalho, alimentação, vestuário e, em alguns casos, moradia enquanto realizasse a labuta na propriedade do patrão.

Diferentes eram as ocupações desenvolvidas por homens livres e libertos que viviam de ajustes. Dentre elas estavam a de arrieiro, camarada, capataz, celeiro, feitor, ferreiro, serviços de lavoura, carpinteiro, pedreiro, tocador, vaqueiro etc.

O distrito de Serra Acima (atual município de Chapada dos Guimarães-MT) era um lugar com considerável concentração de propriedades rurais, com a presença de lavouras, engenhos e criação de animais. Parte de sua produção era comercializada nos mercados cuia-banos. Para o ano de 1809, existiam naquela localidade 80 homens que trabalhavam como camarada, 16 como carpinteiro, 11 como feitor, 6 ferreiros e 6 arrieiros,3 o que demonstra a presença e participação de homens livres e pobres nas propriedades rurais.

Esses dados são significativos ao considerar que naquele ano, Serra Acima tinha nú-mero maior de população escrava (2092 cativos entre crianças, jovens, adultos e idosos) em relação à população livre (1688 entre crianças, jovens, adultos e idosos).4 O que evidencia a

2. BLUTEAU. R., Vocabulário portuguez e latino – (1712-1728).3. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.4. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.

expressiva utilização da força cativa, e que mesmo assim não isentou que homens livres e pobres conseguissem trabalho nas propriedades locais.

Os camaradas eram homens livres e pobres que poderiam desenvolver atividades es-pecíficas ou diversas, como por exemplo, trabalhar nas etapas da lavoura (preparação da terra, plantio, colheita etc.), ou em atividades diversas, como cuidar da manutenção da pro-priedade do patrão, trabalhar na condução de parte dos víveres produzidos etc. Mas, exis-tiam trabalhadores que desenvolviam serviços específicos e poderiam ser contratados para desenvolvê-los, conforme o ofício ao qual eram práticos. Quanto a estes últimos os números e os tipos eram os seguintes para o distrito de Serra Acima, em 1809.

Tabela 1: Trabalhadores de ofício – Distrito de Serra Acima (1809)

OcupaçãoFaixa etária estadO civil

tOtal18 - 30 31-40 41-... s c

Alfaiate .... 1 .... .... 1 1

Arrieiro 1 3 2 4 2 6

Capateiro 1 .... 1 1 1 2

Carpinteiro 8 7 1 9 7 16

Celeiro .... .... 1 .... 1 1

Feitor 2 6 3 6 5 11

Ferreiro 3 2 1 3 3 6

Latoeiro 1 .... .... .... 1 1

Seleiro .... .... 1 .... 1 1

Tecelão .... 2 .... 1 1 2

Fonte: mapa de população do distrito de serra acima, tirada pelo Capitão da 3ª Companhia das ordenanças apolinário de oliveira Gago. 1809. br mTapmT.sG. map. 4440 Caixa nº 075 | referência anterior: s/nº Fundo: Governadoria. lata: 1809.

Como exposto na tabela, em Serra Acima existiam homens livres especializados em algum ofício. O maior número era o de carpinteiros, seguidos pelo de feitores, ferreiros e arrieiros. Alguns desses homens listados, conforme apareceram relacionados no Mapa de Po-pulação daquela localidade poderiam estar como empregados de algum patrão ou poderiam trabalhar em sua oficina/propriedade.

Antes de partir para a análise dos dados sobre esses trabalhadores listados, é preciso fazer algumas considerações sobre a fonte em destaque. O Mapa de População do Distrito de Serra Acima, de 1809, é uma fonte manuscrita e censitária. Ela está dividida em duas sessões, uma contendo o rol da população livre, e a outra a população cativa.

Com relação à sessão da população livre, conforme a disposição das pessoas, parece ter sido organizada/levantada por fogo, domicílio ou propriedade. Não existe qualquer se-paração visível entre os domicílios. Porém, numa análise minuciosa, prestando atenção na disposição das pessoas elencadas, é perceptível que os habitantes daquele local foram elen-cados a partir de núcleos familiares e/ou residenciais (propriedades). De maneira geral, foi organizada com as seguintes informações: nome, estado civil, idade e ocupação de algumas pessoas relacionadas, principalmente os (as) chefes dos fogos. Logo abaixo aos nomes destes (as), foram elencados o nome de esposas (para aqueles que eram casados), filhos (as) (para

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aqueles (as) que os possuíam), demais membros da família, agregados e empregados (quan-do os possuíam), não aparecendo necessariamente nessa ordem.

Na lista correspondente à população escrava, apareceram as seguintes informações: nome, idade, e para alguns sujeitos, especificações do tipo pardo (a), crioulo (a), cabra. Porém não existe referência aos proprietários dos escravos, e separação dos cativos por propriedades.

Conforme as informações fornecidas pelo referido Mapa de População, ele foi con-feccionado por Apolinário de Oliveira Gago – Capitão da 3ª Companhia das Ordenanças no ano de 1809, a mando do Excelentíssimo Sr. General, possivelmente o Capitão-General da Capitania de Mato Grosso João Carlos Augusto D’Oeynhausen e Gravenberg.5 As pessoas elencadas foram aquelas que residiam no Distrito de Serra Acima.6

Após apontar as características do Mapa de População do Distrito de Serra Acima, é possível fazer algumas considerações sobre os trabalhadores listados na tabela anterior. Foram elencados 6 homens que tinham como ocupação o ofício de ferreiro. Dentre eles, exis-tiam homens que estavam ligados a algum proprietário, sendo empregado deste, e existiam também os ferreiros que poderiam trabalhar em sua oficina, sendo independentes.

Três ferreiros foram listados junto ao fogo/propriedade do seu patrão/patroa, possi-velmente eles firmaram acordos de trabalho para realizar atividades relacionadas ao ofício na propriedade do contratante. Nessa situação estava o ferreiro Antônio Crioulo, casado, de 30 anos de idade, que em determinado momento do ano de 1809 trabalhou para a lavradora Maria Thereza de Jesus, de 58 anos de idade, mãe de Antônio Correa da Costa, que na década de 1830 chegou a ser presidente da província de Mato Grosso. Além do citado ferreiro, Maria Thereza de Jesus tinha 3 camaradas e 2 carpinteiros como empregados, possuindo também 3 agregadas e 1 agregado.7 Nesse sentido, trabalhadores livres e pobres firmavam ajustes de trabalho com lavradores (as) abastados (as) no distrito de Serra Acima. Tendo em vista que Maria Thereza de Jesus era uma proprietária com considerável número de cativos e com pro-dução agrícola naquela localidade.8

Os outros dois ferreiros que possivelmente estavam como empregados de outra pes-soa era Francisco de Paula Arruda, solteiro, de 40 anos de idade, e Francisco Graces, casado, de 40 anos de idade, que em 1809 trabalhavam para o lavrador Faustino Dias Barboza no distrito de Serra Acima. Esse lavrador tinha também 1 arrieiro, 4 camaradas e 1 feitor como empregados, além de possuir 1 agregado.9

Pelos tipos de trabalhadores que Faustino Dias Barboza tinha como empregados, é possível apontar que ele possuía escravos, além de que poderia se empenhar em lavoura e na condução de tropa. As ocupações de arrieiro, camarada e ferreiro faziam parte da condução

5. Não foi mencionado o nome do General que mandou levantar as informações do mapa de população. Porém, pelo ano de elaboração do mesmo, é possível que tenha sido a mando do então Capitão General João Carlos Augusto D’Oeynhausen e Gravenber. Oeynhausen era Marquês de Aracaty, e sua nomeação para governar a capitania de Mato Grosso data de Carta Régia de 09/06/1806; permaneceu naquela condição até 06/01/1819, totalizando 11 anos, 1 mês e 19 dias. SILVA, P. P. C., Governantes de Mato Grosso.

6. A análise sobre a população livre e escrava de Serra Acima a partir dessa fonte pode ser consultada na minha dissertação de mestrado. SENA, Divino Marcos de. Camaradas: Livres e pobres em Mato Grosso (1808-1850).

7. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.8. Sobre os proprietários abastados em Serra Acima, ver o trabalho de SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira. Slaves and planters

in western Brazil: material culture, Identity and power.9. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.

de carga e/ou pessoas em carros de boi ou em muares. Possivelmente esse lavrador tinha es-ses trabalhadores para realizar o transporte de parte dos produtos cultivados/produzidos em sua propriedade agrícola para os centros de comercialização, como os mercados cuiabanos, por exemplo.

Ferreiro era aquele trabalhador que criava objetos de ferro manipulados por meio de ferramentas. Esses objetos poderiam ser desde panelas, e demais elementos utilizados no contexto doméstico, como também, ferramentas usadas na lida no campo e no transporte de carga em muares. Importante notar é que os homens que trabalhavam como ferreiros em Serra Acima poderiam ser libertos ou descendentes de escravos, como era o caso de Antônio Crioulo citado anteriormente. Porém, isso não isenta que na sociedade escravista da qual fa-zia parte o território de Mato Grosso, existisse escravos especializados em ofícios, dentre eles o de ferreiro, carpinteiro etc.

Dois dos três ferreiros que firmaram acordos de trabalho junto a um contratante, citado acima, eram casados. Porém, não existe qualquer referência sobre suas parceiras. Possi-velmente eles foram recenseados quando trabalhavam na propriedade do contratante, e por isso não aparece menção às suas respectivas esposas. Além disso, esse dado fornece pistas de que trabalhar como ferreiro era uma ocupação de homens solteiros e casados, e que pode-ria ser um viés para conseguir meios vitais para si ou para suas famílias, para aqueles que as possuíam.

Os outros três ferreiros, do total de seis listados em Serra Acima, não apareceram re-lacionados junto a um possível patrão, o que possível indica que eles trabalhavam em suas oficinas/propriedades/residências. Nessa situação estava o ferreiro João dos Reis, de 58 anos, casado com Catharina Maria de 60 anos de idade, com quem teve duas filhas, uma com 32 e 8 anos de idade.10

Retomando os dados da tabela 1, os carpinteiros também se encontravam na mesma situação em trabalhar em suas oficinas/residência, ou firmar ajustes de trabalho para realizar atividades na propriedade do contratante. Deve-se levar em consideração que mesmo os que tinham suas oficinas, poderiam ser contratados para realizar determinados serviços na propriedade de outrem, como consertar ou construir peças/objetos/estruturas de madeira.

O ofício de carpinteiro corresponde à realização dos mais diversos tipos de trabalho em madeira, desde ferramentas, móveis, artigos para estrutura residenciais etc. Esses traba-lhadores no Mato Grosso poderiam realizar atividades em suas carpintarias (oficina onde trabalhava o carpinteiro), lugar em que recebiam os serviços para serem feitos, ou poderiam ser contratados por outra pessoa para realizar serviços na residência/propriedade do contra-tante.

É possível imaginar que esses profissionais firmavam acordos de trabalho para realizar tarefas nas propriedades rurais de Serra Acima, como construir coberturas de madeira, soa-lhos, forros das casas etc.

Do total de 16 carpinteiros, conforme a disposição no Mapa de População, é possível apontar que 7 deles pudessem ter sido recenseados quando realizavam algum serviço na pro-priedade do contratante, enquanto 9 teriam sido recenseados quando realizavam atividade em suas oficinas.

10. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.

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Assim como os ferreiros, o trabalho de carpintaria era desenvolvido por homens li-bertos ou descendentes de escravos, como era o caso de Guilherme Crioulo, solteiro, de 30 anos de idade. E também, essa era uma ocupação de homens solteiros e casados como pode ser visualizado na tabela 1, o que nos possibilita pensar que esse ofício era uma prática que ajudava a manter aqueles homens e suas famílias, quando as possuíam. Situação esta do carpinteiro Manoel Gomes, 43 anos de idade, casado com Antonia Maria dos Santos, que possuía 4 filhas e 1 filho, com idades entre 16 e 1 ano. Os carpinteiros constituíam famílias compostas por esposas e filhos, ou apenas esposa, como era o caso de Luciano, casado com Rufina de Oliveira, ambos com 22 anos de idade.11

Os dados da Tabela 1 demonstram que diferentes eram as faixas etárias de homens especializados em algum ofício. Dezesseis deles tinha entre 18 e 30 anos, vinte e um tinha entre 31 e 40 anos e dez com idades acima dos 40 anos. O ferreiro mais novo tinha 24 anos e o mais velho 58, o carpinteiro mais jovem tinha 19 anos e o mais velho 43, o feitor mais novo 26 e o mais velho 50, o arrieiro mais novo 20 e o mais velho 80 anos. Essas diferenças nos possibilitam perceber que a habilidade em algum ofício ou prática de trabalho poderia iniciar cedo e ser praticada por homens com idade mais avançada.

Esses trabalhadores, mesmo que fossem hábeis em algum ofício, poderia cultivar um pequeno roçado em suas propriedades para complementar a subsistência da família. O culti-vo de alimento em Mato Grosso, na primeira metade do século XIX, não era uma especifici-dade apenas de lavradores (as), ele poderia ser desenvolvido por pessoas que estavam empe-nhadas em outras modalidades de trabalho. Nesse caso pode ser citado o carpinteiro Manoel Veríssimo Barbosa, de 40 anos de idade, natural da província de Mato Grosso, analfabeto, que em 1838 morava em seu sítio localizado além do rio Coxipó Mirim.12

Além da atividade de ferraria e carpintaria, homens livres e pobres poderiam trabalhar por acordos de trabalho, em Serra Acima e outras localidades rurais do Mato Grosso, como feitores, pedreiros, arrieiros e celeiros (homens que trabalhavam no depósito de grãos e cere-ais). Os demais ofícios, como o de alfaiate, seleiro (aquele que fazia selas ou selins) e tecelão, por exemplo, possivelmente não eram contratados por ajustes, eles realizavam tarefas em suas oficinas/residência a partir de encomendas e/ou para uma produção a ser comerciali-zada. Chamo atenção para a necessidade de estudos sobre os trabalhadores de ofício para o Mato Grosso no período colonial e imperial, bem como as possíveis confrarias, irmandades, associações que pudessem ter existido na mencionada região.

Homens livres que desenvolviam esses ofícios poderiam ser encontrados nos am-bientes rurais e urbanos das diferentes espacialidades que compunham o território de Mato Grosso naquele período histórico. Em Camapuã, situada no sul da região, em 1822, existiam pessoas que desenvolviam os ofícios de tecelão, ferreiro e carpinteiro, por exemplo. O tecelão Victorino Alvez, “homem vermelho”, casado, tinha sessenta e nove anos de idade, e era na-tural de Camapuã, lugar em que vivia até aquele momento. Ele, assim como outras pessoas de Camapuã e de outros lugares do Mato Grosso, nasceu, fixou no território e desenvolveu atividades no seu local de origem. Informação essa que contrapõe a ideia de população itine-rante, que por muito tempo permeou a historiografia sobre a região. Nessa mesma situação estava o ferreiro, Francisco Alvez, crioulo forro, casado, de cinquenta e dois anos de idade, e que também era natural daquela localidade.13 Além disso, é perceptível nesse último sujeito,

11. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.12. Processo 145, Caixa 05, 1838. APMT.13. Processo 103, caixa 04, 1822. APMT.

que desenvolver o ofício de ferreiro foi uma ocupação, também, de homens que consegui-ram alforrias, ou seja, como uma forma de ganhar alguns meios para uma vida longe das ordens de senhores e feitores.

A presença de alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pedreiros, oleiros, seleiros também se deu na vila do Diamantino, na freguesia de São Luis de Vila Maria, em Cuiabá, e ambientes rurais próximos a essas localidades, por exemplo.14 O que indica a presença de homens livres especializados em algum ofício e que poderiam trabalhar nas suas oficinas e/ou firmarem ajustes de trabalho com outrem, para realizar serviços na propriedade do (a) contratante.

Esses trabalhadores, nos processos crimes e cíveis, quando interrogados pelos juízes sobre os meios pelos quais viviam, informavam que viviam de ajustes de trabalho para desen-volver uma determinada atividade, ou informavam que viviam de seu ofício de carpinteiro, de ferreiro etc. e que aquela era a sua profissão. Os processos judiciais são importantes por-que em alguns momentos é possível “ouvir” os depoentes por meio da escrita deixada pelo escrivão. Ao fornecer informações pessoais, logo antes de iniciar o interrogatório sobre uma situação investigada ou julgada, os depoentes acabavam por fornecer pistas de como eles se identificavam e/ou eram identificados. Ao mencionar que viviam de ajustes ou de algum ofício, eles se classificavam como trabalhadores especializados em um serviço ou que pode-riam desenvolver várias atividades. O que de certa forma, servia como uma identificação ou características de identidade daqueles homens livres.

Quanto à ocupação dos arrieiros, estes eram condutores de tropa, que poderiam pos-suir bestas de cargas e alugar os serviços das mesmas para uma determinada condução, ou poderiam apenas possuir os conhecimentos em tal atividade. Nesse último caso, estavam aqueles arrieiros que eram contratados por outrem para realizar uma condução de tropa na qual as mulas não lhes pertenciam. O patrão poderia ser um tropeiro, que era dono dos animais, ou poderia ser um proprietário rural ou urbano, que contratava os serviços daquele homem livre e pobre para conduzir cargas/mercadorias.

Os arrieiros tiveram participação em ambientes urbanos e rurais do Mato Grosso na primeira centúria do XIX. Ao conduzirem cargas, juntamente com camaradas que trabalha-vam também na condução de tropa, levavam informações e eram portadores de mensagens, recados, de modo que habitantes do campo recebiam notícias daqueles que moravam na cidade e vice-versa.

O arrieiro, assim como os outros tipos de ocupação listados aqui, também poderia constituir famílias. Nessa situação estava José Dias, de 38 anos de idade, casado com Faustina, com quem teve 3 filhas e 1 filho, com idades entre 13 e 1 ano. Uma de suas filhas foi listada como crioula, possivelmente sua mulher ou o próprio José Dias eram libertos ou descenden-tes de escravos.15 É importante ressaltar a mestiçagem entre da população do Mato Grosso nos século XVIII e XIX.16

Trabalhar como vaqueiro e como lavrador na propriedade de outrem eram também ocupações desenvolvidas por homens livres e pobres que viviam de ajustes. Os acordos entre

14. Processo 105, caixa 04, 1823. APMT.; Processo 135, Caixa 05, 1836. APMT; Processo 142, Caixa 05, 1838. APMT.; Processo 146, Caixa 05, 1838. APMT.

15. Mapa de População do Distrito de Serra Acima, 1809. APMT.16. Sobre a mestiçagem na população de Mato Grosso no século XVIII ver, SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de Cores. Para o

Mato Grosso do século XIX, ainda existe carência de estudos sobre demografia histórica, mas é possível verificar aspectos dessa mestiçagem em SENA, Divino Marcos de. Camaradas: livres e pobres em Mato Grosso (1808-1850).

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as parte estabeleciam os serviços a serem cumpridos. Os afazeres de vaqueiro circunscreviam ao trato do gado, desde marcação, castração, conduzir, matar, descourar, e demais afazeres como cuidar de ferimentos, por exemplo.

Homens que trabalhavam como vaqueiros poderiam ser encontrados em proprieda-des de criação de gados vacum e cavalar situadas em diferentes locais do Mato Grosso. Eles estavam presentes em propriedades próximas ao rio São Lourenço17, em Vila Maria (atu-al Cáceres-MT) e na fazenda Jacobina18, como também na região de Albuquerque (atual Corumbá-MS), do Presídio de Miranda (atual Miranda-MS) e, após 1830, no Planalto Sul de Mato Grosso, nas propriedades próximas à Santa Ana do Paranaíba (atual Paranaíba-MS).

Outro tipo de ocupação que era desenvolvida por homens livres e pobres que viviam de ajustes, era a de camarada. Como dito anteriormente, camarada era um homem livre e pobre que firmava acordo de trabalho com outrem para desenvolver atividades específicas ou diversas.

Camaradas trabalhavam nas mais diferentes atividades e localidades, e, também, em diferentes ambientes, tais como urbanos, rurais e de mineração, que faziam parte do territó-rio de Mato Grosso. Eles estavam empenhados na extração da ipecacuanha, na condução de tropa, nas propriedades de criação de gados vacum e cavalar, em propriedades com lavoura e engenho, nas explorações pelo interior do território, na abertura de estradas e reconheci-mento de demais vias de comunicação etc.

Nessas atividades os camaradas poderiam ser contratados para realizar atividades es-pecíficas, como auxiliar na condução de uma tropa, ao ficar responsável por pequenos lotes de animais, e nos serviços que, também, eram desenvolvidos por vaqueiros, por exemplo. Do mesmo modo, poderiam firmar acordos de trabalho para realizar atividades diversas.

Nas propriedades com plantação de cana, feijão e demais gêneros alimentícios, cama-radas realizavam serviços nos afazeres de lavoura, no trato de animais e no transporte dos gêneros produzidos. Assim como para as demais ocupações, eles poderiam morar ou não na propriedade do contratante. Os acordos de trabalho poderiam durar alguns períodos do ano, como as etapas da lavoura, como a preparação da terra, semeadura, colheita e condução de parte do que foi produzido para os locais de comercialização, por exemplo.

Igualmente, camaradas que trabalhavam na navegação fluvial eram empregados do contratante o tempo suficiente para percorrer locais internos ou externos do Mato Grosso. Nessa atividade, os camaradas realizavam os mais diferentes afazeres que extrapolavam as lidas dentro da canoa. Eles desenvolviam todo tipo de trabalho que pudessem aparecer ao longo do trajeto, desde a busca de comida, a condução de carga, abicar canoas, carregar e descarregar, conserto de embarcações,19 transposição de cachoeira, preparação para passa-gem em varadouros, caça, pesca, coleta, etc.

Nesse sentido, homens livres e pobres que trabalhavam como camaradas ou que pos-suíam outra ocupação encontraram nos acordos de trabalho meios para sobreviverem numa sociedade escravista.

17. SOUZA, C. X. O., Descrição diária dos progressos da Expedição destinada à capitania de São Paulo para fronteiras do Paraguai, em 9 de outubro de 1800, p. 53.

18. FLORENCE, H., Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829, p. 232-233.19. CASTRO, M. J.; FRANÇA, A. T., Abertura de communicação commercial entre o Districto de Cuyabá e a cidade do Pará

– 1812-1813.

Conclusão

Pelo que foi exposto, foi possível perceber a presença e participação de homens livres e pobres em ambientes rurais do Mato Grosso na primeira metade do século XIX. Firmar acordos de trabalho para prestar serviços, específicos ou diversos, para outrem foi uma forma de homens livres e libertos pobres garantirem meio vitais numa sociedade escravista. Aqueles sujeitos, tanto os que eram hábeis em algum ofício, ou que estivessem disponíveis para de-senvolver as mais diferentes atividades que pudessem aparecer durante o acordo de trabalho, foram cruciais para a dinâmica interna do Mato Grosso no período indicado.

Nesse sentido, é possível perceber os ambientes rurais daquela região e momento histórico, como lugares dinâmicos, com a presença de pessoas com distintas características, e pertencentes a diferentes estratos sociais. Pessoas que estavam envolvidas em afazeres de produção e/ou manutenção, e que fizeram parte da configuração social, econômica e cultu-ral do Mato Grosso nos oitocentos.

Bibliografia

BLUTEAU, Raphael de. Vocabulário portuguez e latino – 1712-1728. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/online/. Acesso: mar. 2009.

CASTRO, Miguel João de; FRANÇA, Antonio Thomé de. Abertura de communicação commer-cial entre o Districto de Cuyabá e a cidade do Pará, por meio da navegação dos rios Arinos e Tapajós, empreendida em setembro de 1812 e realisada em 1813 pelo regresso das pessoas que nessa diligência mandou o governador e capitão-general da capitania de Mato-Grosso. In: Revista Trimensal do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil. Tomo XXXI. Parte Primeira. Rio de Janeiro: B. L. Garnier Livreiro-Editor, 1868. p. 107-160.

FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Tradução de Visconde de Taunay. 2. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1948.

Mapa de População do Distrito de Serra Acima, tirada pelo Capitão da 3ª Companhia das Orde-nanças Apolinário de Oliveira Gago. 1809. BR MTAPMT.SG. MAP. 4440 CAIXA Nº 075 | Referência Anterior: S/Nº Fundo: Governadoria. Lata: 1809.

Processo 103, caixa 04, 1822. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

Processo 105, caixa 04, 1823. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

Processo 135, Caixa 05, 1836. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

Processo 142, Caixa 05, 1838. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

Processo 145, Caixa 05, 1838. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

Processo 146, Caixa 05, 1838. Fundo Tribunal da Relação. Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT).

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SENA, Divino Marcos de. Camaradas: Livres e pobres em Mato Grosso (1808-1850). 2010. 201 f. Dissertação (Mestrado em História). UFGD, Dourados.

SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores : política de povoamento e população na capitania de Mato Grosso-Século XVIII. Cuiabá: UFMT, 1995.

SILVA, Paulo Pitaluga Costa e. Governantes de Mato Grosso. Cuiabá: Edição APMT, 1993.

SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira. Slaves and planters in western Brazil: material culture, Identity and power. 2006. 343 f. Tese (Doutorado em Filosofia). University of Florida, Florida.

SOUZA, Candido Xavier de Oliveira. Descrição diária dos progressos da Expedição destinada à capitania de São Paulo para fronteiras do Paraguai, em 9 de outubro de 1800. In: Revista do Institu-to Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 202. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, Jan.-Mar. 1949. p. 1- 132.

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Geopolítica fronteiriça: entre a ameaça espanhola e o controle

dos territórios indígenas

dreiCo esli de souza1

O presente estudo faz um resgate geopolítico de um dos assuntos que até o presen-te momento ainda permite análises criticas do ponto de vista teórico-metodoló-

gico. Trata-se de uma análise histórico-geográfica de um dos períodos da formação territorial brasileira, onde os principais protagonistas, - explorações militares e sociedades indígenas, - travaram conflitos pela conquista territorial e de fronteiras, principalmente no século XVIII e XIX. O principal objetivo foi levantar algumas questões pertinentes aos conflitos fronteiriços nos atuais estados do Mato Grosso do Sul e Paraná, onde as questões culturais e militares foram envolvidos na questão da posse e domínio territorial. Na estruturação do artigo, os principais tópicos tratados nos capítulos abrangeram questões geopolíticas, militares e sócio--culturais, tendo como protagonistas, os atores vinculados ao processo de formação dos estados brasileiros em terras onde os principais habitantes eram os indígenas.

Iniciamos apresentando o contexto internacional dos conflitos fronteiriços entre Por-tugal e Espanha, envoltos com a questão do Tratado de Madri.

A seguir, foram apresentadas as expedições brasileiras direcionadas para averiguar a presença dos espanhóis na conquista do território nessa região. Os indígenas presentes nessas terras apresentaram alguns entraves, como também, colaboraram com inúmeras expedições organizadas.

Os principais personagens pesquisados foram às atividades e os projetos executados pelo Barão de Antonina, ao navegar os rios do atual território do Paraná e Mato Grosso do Sul, ao enviar seus encarregados, com destaque para Joaquim Francisco Lopes.

1. Mestrando pela Universidade Estadual de Londrina – [email protected]

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Expedições, explorações, políticas de enfretamento e apaziguamento permearam as políticas públicas imperiais e provincianas, nos territórios dos atuais norte do Paraná e sul do Mato Grosso do Sul. A constante preocupação imperial em ocupar o denominado “sertão do Tibagi”, a abertura de caminhos, o receio do avanço espanhol sobre tais regiões, a relação dos conquistadores com as sociedades indígenas demarcaram geograficamente e historicamente as relações e embates fronteiriços pelo controle territorial nos séculos XVIII e XIX.

O controle fronteiriço estabelecido no Tratado de Tordesilhas já não era mais respei-tado na prática. Em uma tentativa de por fim às disputas territoriais e definir os limites e as fronteiras entre Portugal e Espanha, D. João V e Fernando VI, afirmaram um acordo em 13 de Janeiro de 1750, o Tratado de Madri. O acordo utilizou-se do princípio romano de uti possidetes, ita possideatis. Mediante a posse da terra, seria também por direito o domínio ter-ritorial. Após este tratado de 1750, a metrópole portuguesa dedica cuidadosa atenção com relação às fronteiras ao procurar impedir os avanços espanhóis e se projetar por áreas ainda não ocupadas.

Assim, desde o século XVIII, já se demonstravam claro os objetivos políticos do gover-no imperial, a defesa das fronteiras, o povoamento das mesmas e tornando-as lucrativas. Fato que resultou na escolha de um capitão-general, o Morgado de Matheus, como governador da província de São Paulo, detentora ainda no período, do espaço territorial que seria futura-mente a província do Paraná. (LACHESKI, 2009 p. 22).

Percebe-se que as expectativas de Pombal para o desenvolvimento de seu plano econômico na colônia estava centrado em defender a fronteira do sul contra os espanhóis e consequentemente a conquista dos sertões des-conhecidos. Iniciasse assim a ocupação do território indígena, gerando o confronto entre os colonizadores e os índios. (LACHESKI,2009, p.23)

O Ministro do rei de Portugal D. Jose I, o Marques de Pombal, receoso com as questões territoriais na região, após o Tratado de Madri, e, visando definir as fronteiras do Brasil, recebe “ordens expressas”:

Foi nessa difícil situação que D.Luís foi nomeado Governador e Capitão--General da Capitania de São Paulo. Trazia ordens expressas de organizar a defesa do sul e se possível planificar a invasão do Paraguai.

[...]

D. Luis (Morgado de Mateus) aproveitou-se da carta régia de 26-1-1765, que autorizava a conquista do sertão do Tibagi para sondar as possibili-dades de agressão ao Paraguai. (WACHOWICZ, 1969, p.293)

Segundo Brasil Pinheiro Machado, em seu livro, Sinopse da História Regional do Paraná, haveria um ordem processual para que houvesse com sucesso a conquistas desses sertões. Primeiramente, busca-se reprimir as sociedades indígenas, expulsando-as das terras, ou as con-quistando. Depois, com ou sem a ajuda dos indígenas, procura-se reconhecer o território e suas possíveis potencialidades econômicas, para então construir e efetivar vilas, colônias militares e aldeamentos, povoando o território. A construção de caminhos, estradas e vias tornavam-se imprescindíveis para a execução e realização desses interesses imperiais e provincianos.

O processo consiste, primeiro, no esmagamento dos localismos e liberdades locais, depois, o descobrimento dos lugares desabitados e seu povoamento

compulsório, pela fundação de vilas e criação de fazendas e estâncias e pela construção de estradas de ligação dos vários núcleos. (MACHADO, 1951, p.11)

De acordo com Altiva Pilatti Balhana, Morgado de Mateus planejou expedições em direção a Buenos Aires e ao Paraguai, considerados pontos fundamentais da administração da coroa espanhola, buscando garantir a posse de Mato Grosso e Rio Grande, expandindo assim, as linhas fronteiriças brasileiras e provincianas. Em “1768 e 1774 foram empreendidas onze expedições militares”, para as regiões do “Iguatemi, Tibagi e campos de Guarapuava”. (BALHANA et al, 1969 p.77) Com pequenas variáveis, essas informações também são apre-sentadas por Reinhard Maack, quando o autor assim, retrata as expedições:

As expedições militares para o reconhecimento das grandes sistemas flu-viais e da constituição geográfica realizaram-se principalmente durante a época das relações belicosas entre Portugal e Espanha, de 1761 até 1777, após a anulação do tratado de Madri. Os objetivos principais das expe-dições eram os sistemas dos rios Ivai, da ubatuba ou ria Reail. do Piquiri, do Iguaçu, Grande ou rio Grande de Curitiba), assim como as regiões de matas e campos do terceiro planalto. A totalidade da extensa região do segundo e terceiro Planaltos era denominada naquela época como “Sertão de Tibagi”. (MAACK, 1981, p.46 e 47)

Foi através dessas expedições, que foram feitas as importantes descobertas, sobre os campos de Guarapuava, rios da região, com destaque para o Ivaí, sendo essa região denomi-nada de campos de Mourão, em função do nome de Morgado de Mateus, Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, hoje conhecida como Campo Mourão. (WACHOWICZ, 1969, p.293) As expedições constituem-se um marco referencial no reconhecimento do oeste e norte do atual Paraná, pois contribuíram para a descoberta por parte imperial dos sistemas fluviais, vegetativos, climáticos e da constituição espacial-fronteiriça desse território em disputa com a coroa espanhola. Principalmente Afonso Botelho “pode verificar, que os castelhanos não haviam eregido estações ou fortes nestes campos, como se havia temido. Após um sério choque com os índios, Afonso Botelho recuou a 11 de janeiro de 1772”. (MAACK, 1981, p.50)

sendo, essa regi Guarapuavaas e grandes descobertas sobre os sertaaaAA resistência dos índios impedia a dominação e a posse portuguesa sobre esse território, fato que só mu-daria significativamente com a chegada da corte portuguesa.

A ameaça das tribos indígenas que habitavam a região fez com que ele voltasse ao Porto da Vitória.

A estratégia de se retirar dos Campos de Guarapuava pelo temor dos índios não foi bem recebida pelo comandante da expedição Afonso Bo-telho, que determinou seu retorno de imediato à região, para que fosse consolidada a posse desse território, visto que o Morgado de Mateus tinha ordens de Portugal para que o reconhecimento fosse feito com brevidade, evitando dar tempo aos espanhóis

[...]

A resistência dos índios por um período de quarenta anos impediu a posse portuguesa do território de Guarapuava [...](LACHESKI,2009, P.26)

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Já no século XIX, com a vinda da Coroa, se efetivam tais interesses, tanto que umas das primeiras determinações de D.João VI, em relação a essa questão, para a província de São Paulo foi:

D. João oficiou em 05 de novembro de 1808 ao governador e capitão ge-neral de São Paulo, Antônio José da França e Horta que considerava como “principiada a guerra contra esses bárbaros índios”. Essa determinação além de autorizar o extermínio, determinava que os índios capturados poderiam ser escravizados.(LACHESKI, 2009, p.27)

Entretanto, o próprio D. João VI, percebendo a importância estratégica que as socie-dades indígenas, naquele momento, poderiam representar as intenções da coroa portuguesa, ao invés de manter sua decisão e acirrar suas relações como os povos indígenas, volta atrás, e modifica em 1º de abril de 1809 sua determinação. “D. João passava a considerar (os) índios (como) elemento importante para se manter a segurança das fronteiras com os países vizi-nhos”. (LACHESKI, 2009, p.28)

Ações que ficaram nitidamente perceptíveis nas importantes expedições realizadas, pelo Barão de Antonina, nos territórios e rios, até então ainda pertencentes à província de São Paulo, e pela província de Mato Grosso. Quando em 1840, através das intencionalidades imperiais, provincianas e pessoais, vinculadas novamente à posse territorial portuguesa e a ameaça eminente dos países vizinhos, realizam-se as explorações de uma rota fluvial, ao per-correm toda a bacia hidrográfica do rio Tibagi, adentrando até a província de Mato Grosso. Além da busca pelo melhor traçado, os encarregados do Barão deveriam estabelecer alianças com os povos indígenas. Na região da bacia do Paraná, o contato de um dos seus encarrega-dos, com os índios é descrito desse modo por Lúcio Tadeu Mota.

Lopes que já tinha passado na região dois anos antes tinha conhecimento da presença ali dos Kayowá e certamente dos seus caciques, assim nessa expedição, além de estar traçando o caminho, sua missão era de estabe-lecer contato com as lideranças desses índios, isso justifica os presentes levados especialmente para isso e a deferência especial ao poderoso ca-cique Libanio que comandava sete outros caciques subordinados, num total de quatro mil índios conforme as informações de Lopes. Na sua volta, depois de ter explorado os rios que correm para o rio Paraguai como os que correm para o rio Paraná, e buscar o melhor lugar para o varadouro, Lopes passou mais alguns dias no aldeamento do cacique Libanio onde o aconselhou a não molestar os viajantes brancos que por ali passassem pois dessa forma ele não seria importunado. (MOTA, 2007, p. 59 e 60)

Ao invés de ter os povos indígenas como inimigos, tornando grandes entraves para a conquista portuguesa, alguns povos indígenas passaram a ter e receber uma postura de povos aliados nessa conquista. Alem do que, podemos constatar ainda, um importante be-nefício alcançado nessa expedição do encarregado Lopes, pois este acertou com o cacique Libanio a livre passagem pelos rios em território indígenas, pelos brancos europeus. Fato que permitiria uma facilitação para as entradas das explorações vindouras.

Ao Barão de Antonina eram extremamente benéficas essas alianças indígenas, pois elas vinham de encontro aos interesses portugueses de domínio territorial. Elas favoreceriam a ocupação, pois buscava-se civilizar os índios, e consequentemente formar aldeamentos

e núcleos sobre o controle imperial. Mas, também é sabido que as intencionalidades e as cordialidades dos povos indígenas eram mediante as barganhas, não baseadas somente pelo recebimento de presentes e agrados. No caso das terras percorridas pelos rios Paranapanema e Paraná, havia um grande disputa entre índios Kayowá e Kaingang. Libanio, chefe indígenas dos Kayowá, não somente desejava manter seus atuais territórios, mas visava expandi-los, assim, encontrava o auxilio e a proteção necessários no Barão. Libanio, deslumbrava nesse acordo a possibilidade de ganho territorial e a sobrepujança dos Kayowá, contra seus inimi-gos Kaingang.

Nessa viagem Lopes, além de explorar o melhor caminho para o Mato Grosso, os campos de criação nos divisores dos rios Paraná e Paraguai que seriam apossados pelo Barão, ele estabeleceu a aliança com o cacique Libanio, chefe dos Kayowá que viviam nos territórios do Ivinheima, acer-tando com ele a livre passagem dos comboios dos brancos por seus terri-tórios e os convidou para aldearem nas margens do rio Tibagi no Paraná sob a proteção do Barão de Antonina. Libanio se mostrou interessado na proposta de Lopes, indicando a ele que talvez alguns dos seus caciques subordinados pudessem se mudar para o Tibagi, mesmo porque os seus territórios no Ivinheima já estavam saturados com muita gente. Um dos motivos que despertou o desejo de Libanio alargar seus territórios até a bacia do Paranapanema era o crescimento demográfico de seu povo, en-tão ele vislumbrou a possibilidade de expandir seus territórios para o outro lado do rio Paraná, com a proteção do Barão, sem deixar seus antigos territórios no Ivinheima. (MOTA, 2007, p. 60)

As disputas e guerras tribais, entre os povos indígenas localizados próximos aos rios Paranapanema, Itararé, Tibagi, Ivaí e Paraná, contribuíram somente para o enfraquecimento de tais tribos, facilitando a entrada e domínio e a ocupação dos brancos portugueses e seus encarregados. O Barão de Antonina, correspondendo as intencionalidades imperiais, utilizou--se dos índios estrategicamente, a princípio, a idéia seria transformá-los em homens civiliza-dos, mas de qualquer forma, com ou sem a aceitação dos hábitos, aos costumes culturais portugueses, os índios Kayowá serviriam, no mínimo, para defender as populações brancas dos ataques Kaingang.(MOTA, 2005, p.11 e 12)

Por sua vez os Kayová faziam uma política de boa vizinhança com os brancos das adjacências para terem acesso aos seus bens, não apenas ferramentas e roupas como relata Antonina, mas inclusive armas de fogo que os possibilitava sustentar a guerra com os Kaingang e semanterem em suas terras. Por outro lado às populações brancas aproveitavam da guerra tribal entre Kaingang e Kayová para expandirem suas conquistas e apossarem-se das excelentes terras dos vales dos rios Paranapanema e Itararé.( Mota, 2005, p.11)

Em contrapartida, o Barão de Antonina, almejava obter dos Kayowá ajuda necessária para abrir uma via rumo ao Mato Grosso, proporcionando-lhe a posse das extensas terras, localizadas a esse projeto de via, atendendo, ao mesmo tempo, os interesses imperiais e pro-vincianos de ocupação da região.

Assim, aos poucos eles foram mantendo contato com os índios de língua Guarani que habitavam a margem ocidental do rio Paraná, seguindo a

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estratégia do Barão de Antonina de povoar o vale do Paranapanema e Tibagi com os índios aliados naquele momento.

No ano seguinte, em outubro de 1848 Joaquim Francisco Lopes embarcou no rio Congonhas, afluente do Tibagi, novamente rumo ao Mato Grosso para verificar as possibilidades da via fluvial do Paraná a essa província. (MOTA, 2005, p. 15 e 16).

O próprio encarregado do Barão, Joaquim Francisco Lopes, em seus relatos, nos for-nece informações a respeito dos objetivos de ocupação, procedentes da construção de um caminho rumo ao Mato Grosso pelos rios, promovendo concomitantemente, uma aproxi-mação dos índios com os brancos europeus. Um outro aspecto que podemos abstrair em seus comentários, é com relação as intencionalidades e benefícios provindos com a efetiva-ção da via.

Exm. Sr. Barão de Antonina – Havendo-se V.Ex. dignado de encarregar-me de ir fazer a sétima exploração por conta do governo para verificar a pos-sibilidade de abertura de uma via de comunicação do porto de Antonina e a Província de Mato Grosso pelo baixo Paraguay, tenho a honra de po-der certificar a V. Ex. que esta gigantesca empreza se acha realisada com incalculáveis vantagens para o comércio e para a civilização dos índios. (LOPES, 1872, p.313)

A constante preocupação imperial em ocupar o denominado “sertão do Tibagi”, em um primeiro plano perpassa pelas relações políticas provenientes do Tratado de Madri, que estimularam expedições pelo sul do Brasil, em um segundo plano, resultam nas relações ocorridas entre os primeiros ocupantes territoriais, as sociedades indígenas, como os “con-quistadores” europeus. Expedições, explorações, políticas de enfretamento ou apaziguamen-to, permearam as políticas públicas imperiais e provincianas. As tribos indígenas apresen-tavam modos de defesa que dificultavam a ocupação, além disso, por vezes, essas tribos de Xetá (botucatu), Kaingang e Kayowá inviabilizaram a passagem, o meio de entrada dos conquistadores europeus portugueses para as terras ainda não conquistadas.

Um desses episódios aconteceu com o explorador inglês, Bigg-Witter. Segundo Lúcio Tadeu Mota (2008), em meados de 1874, sua comitiva teve que abandonar a exploração sobre a bacia do rio Ivai. Quando, aproximadamente uns 500 índios kaingang enfurecidos inviabilizaram a sua passagem, próximo a Corredeira de Ferro. Anteriormente, uma das expe-dições havia entrado em choque como os índios, resultando na morte de dois deles, perten-centes ao grupo indígena que agora prometiam vingança, colocando medo nos exploradores e dificultando a continuação do projeto de exploração.

Bigg-Wither achou lamentável o choque no qual dois Kaingang foram mortos a tiros. No entanto, não emitiu juízo nenhum pelos vinte e seis Xetá que capturou e levou a morte. O que o engenheiro inglês estava lamentan-do na verdade não foi à morte dos Kaingang e sim o que esse fato causou: o ajustamento de 500 Kaingang na corredeira de Ferro. Isso impossibilitou a continuidade dos trabalhos do traçado da Paraná - Mato Grosso, tanto que, em seguida, ele abandonou a obra e viajou pra o vale do rio Tibagi para estudar a viabilidade da entrada seguir por um novo roteiro, caso os índios Kaingang inviabilizassem de vez o trabalho pelo Ivaí.(p.160)

Exemplos como esses demonstram quão importante era o papel de animosidade ou de harmonia nas relações que se estabeleciam em um território, entre as sociedades indíge-nas e os pretensos conquistadores europeus. Os índios contribuíram, em determinados mo-mentos, através dos benefícios ofertados em trocas, participaram de inúmeras expedições de engenheiros e exploradores, permitiram a passagem pelos caminhos naturalmente abertos, os rios, de seus territórios. Ofertavam a estadia a encarregados e a comitivas exploratórias. Entretanto, também se opuseram quando se sentiram ameaçados, ou quando insatisfeitos com os utensílios e materiais que recebiam em troca, perseguiram, entraram em confronto com os conquistadores “brancos” europeus, por vezes também, mataram, roubaram, às vezes ambos, mataram visando roubar os pertences de exploradores, e negaram-se a embrenhar em expedições que colocariam suas vidas em risco, não somente pelos eminentes perigos na-turais, mas por adentrarem em territórios, onde havia conflitos com outras tribos indígenas.

Esses conflitos enfraqueceram inúmeras tribos. Os embates tribais os tornavam mais vulneráveis aos conquistadores europeus, ficam suscetíveis às determinações de um Barão, às ordens de um presidente de província, aguardavam as ajudas e armas provenientes desses que apenas visavam o território como uma conquista para encontrar as riquezas minerais e extrair os recursos naturais. Com relação aos índios, buscavam civilizá-lo, encaixá-los no modo de produção cultural dos europeus, pois estes corresponderiam como importante força de trabalho e legitimação da ocupação portuguesa, em território em disputa com a coroa espanhola.

Desde modo, as sociedades indígenas possuem importante papel, como de entrave às passagens, em outras ocasiões foram permissíveis com as transições das explorações pelos seus caminhos, em outras circunstâncias, foram além, contribuíram na abertura de novas rotas, auxiliaram nas expedições, guiaram naturalistas e viajantes, e conduziram à construção de caminhos por entre os sertões do Brasil. Aliás, muitos dos caminhos hoje constituídos já eram percursos e rotas utilizados pelos índios.

Considerações finais

Mediante o Tratado de Madri de 1750 a coroa portuguesa viabiliza expedições, polí-ticas militares e explorações no intuito de conter qualquer expansão espanhola, consequen-temente se depara com a necessidade de conquistar as sociedades indígenas para assegurar sua posse sobre o território dos atuais estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. O primeiro objetivo foi alcançado, as expedições revelam que a conquista espanhola não havia se fixado ainda na região, porém, a consolidação do domínio português ainda carecia da efetivação lusitana sobre os territórios ainda ocupados pelos indígenas. Entre embates, conflitos, enfreta-mentos, infortúnios, mas mediante as políticas e ações de apaziguamento, acordos, os portu-gueses conquistam a confiança de algumas tribos indígenas legitimando sua posse frente aos espanhóis. As rivalidades existentes entre as tribos e os conhecimentos natural-geográficos dos indígenas, adquiridos há séculos, foram utilizados pelos portugueses, para conhecer, des-bravar e ocupar os territórios do vale do rio Paraná, próximo às regiões espanholas.

Todas essas expedições e a geopolítica adotada pelos governos colonial-português no século XVIII e imperial-brasileiro no século XIX, retratam um momento histórico de con-quistas territoriais e a definição fronteiriça entre portugueses e espanhóis, onde os indígenas representaram um papel social, político e estratégico fundamental na configuração das fron-teiras brasileiras.

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LACHESKI, Edilane. Guarapuava no Paraná: discurso, memória e Identidade (1950 -2000) (1950-2000) Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História.Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Univer-sidade Federal do Paraná. Curitiba. 2009

LOPES, Joaquim Francisco. Itinerário de Joaquim Francisco Lopes encarregado de explorar a me-lhor via de communicação entre a província de S. Paulo e a de Matto-Grosso pelo Baixo Paraguay. RIHGB, Rio de Janeiro, 13:315-335, 1850.

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Índios: imagens e representa-ções nos Livros Didáticos de

História

edilene barros lima1

Atuando como professora de história, demonstro o meu interesse e oportunidade em abordar a questão ameríndia, no sentido de rever a produção historiográfica

em livros didáticos nesta temática. Contribuir para análises e compreensão das distorções construídas pelas imagens e ideologias subjacentes nos livros didáticos de história acerca do “índio” no Brasil é um dos objetivos mais claros desta exposição.

Nos estudos proporcionados pelo curso de Especialização em Metodologia da Pes-quisa Histórica “Mato Grosso: temporalidades e espacialidades”, oferecido pelo ICHS/UFMT (1998/1999), tive a oportunidade de aprofundar conhecimentos sobre a historia da conquista desta área de fronteira, os processos de colonização e povoamento desta parte mais central da América do sul.

Nesse percurso, como procedimento metodológico, desenvolvi pesquisa bibliográfica em que consultei as produções de professores da UFMT que buscaram em fontes manus-critas e transcritas, cronistas, autoridades e outros documentos que pontuaram as relações sociais manifestadas na época da conquista colonial e nos processos mais recentes de coloni-zação de Mato Grosso. Também foram consultados livros didáticos de história do Brasil que são adotados nas escolas de ensino básico neste Estado.

Outra intenção é contribuir para a construção do reconhecimento das diferenças e do respeito aos “índios”, procurando visualizar os subterfúgios ideológicos expressos em livros

1. Professora de História (SEDUC). Especialização em Metodologia da Pesquisa Histórica “Mato Grosso: temporalidades e espacialidades” (UFMT, 1998/1999).

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didáticos de história, como os silenciamentos ou ausências na historiografia, promovendo reflexão sobre a responsabilidade que temos, enquanto educadores e professores de história, em estar abordando essas questões, de modo que os alunos vislumbrem distorções cons-truídas nos livros, expressos nos discursos historiográficos que se referem à história e cultura ameríndia.

“O interesse em educar para a cidadania global requer a compreensão da multicul-turalidade, o reconhecimento da interdependência com o meio ambiente e a criação de espaço para o consenso entre os diferentes segmentos da sociedade”. É o que está posto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, buscando esclarecer aos educandos o sentido das origens do povo brasileiro, da plurietinicidade, da diversidade cultural.

Assim coube-me perguntar: como o livro didático tratou e ainda trata da temática indígena atual? Como os índios estão representados nos livros didáticos? Quais as origens dessas representações? Essas indagações são preocupações que vem sendo bastante ques-tionadas por educadores, escritores e historiadores que buscam refletir sobre a atual situ-ação das sociedades indígenas e como ela é vista pela sociedade brasileira, principalmente pelos estudantes da educação básica. Pesquisadores já demonstraram que desde a “desco-berta” da América, espanhóis e portugueses construíram distorcidas imagens dos povos ameríndios em seus relatos de viagem, crônicas, correspondências e também nos mapas por eles produzidos.

As imagens desenhadas se adequaram nos padrões ou valores morais, políticos, re-ligiosos, enfim culturais, daqueles que procuravam dar uma identidade a quem pensavam que não a tinha, segundo as concepções dos europeus, maioria cristãos, transformando o ameríndio em algo “conhecido”. A imagem do índio como um animal feroz vai se sobressair ao de um ser humano através de representações, onde se vê destacado o canibalismo prati-cado como sendo uma prática demoníaca. Essa prática foi muitas vezes representada pelos europeus como verdadeiros rituais satânicos, o que redundou na justificativa das “guerras justas” e na dominação cultural e religiosa, efetivando a conquista da América para as coroas portuguesa e espanhola.

Outra forma de representação do ameríndio foi a construção do mito do “bom sel-vagem”. A origem do bom e mau selvagem remonta aos primeiros anos do contato com as populações americanas, quando do célebre debate ocorrido em 1550 entre o sacerdote espanhol dominicano Bartolomeu de Las Casas e o jurista Sepúlveda, ou nas preposições filosóficas do século XVIII representadas por Rousseau e Hobes. Luis donisete Benzi grupioni faz uma importante reflexão a esse respeito:

O primeiro, argumentando que os índios representariam um estágio pri-mitivo da humanidade, vivendo basicamente pelos instintos e o segundo, propagando a teoria da degenerescência, onde os índios viveriam num passado, numa era sem ordem e que só a civilização os levaria para o progresso. (GRUPIONI, 1995: 491)

Foram várias as gravuras que ilustraram a América e seus habitantes, onde está evi-dente a dificuldade de se produzir o corpo do ameríndio em suas reais expressões pois alguns desenhistas que ilustraram essas narrativas não estiveram presentes na Américas, tais como as descrições de Hans Staden, ilustradas por Theodor de Bry, de maior divulgação na Europa Moderna que contribuíram para a compreensão dos projetos coloniais. Muitas destas ilus-trações foram reproduzidas em livros didáticos, trazendo cenas dos rituais antropofágicos, mas sem uma discussão de cunho relativista, antropológico, causando distorções e mesmo

“medo” e repulsa diante destas características que contribuíram para a compreensão dos projetos coloniais.

As produções de Debret foram as que mais se reproduziram nos livros didáticos de história do Brasil. Jean Baptiste Debret, em seu livro “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” mostrou o “índio brasileiro” reproduzindo aquilo que era convenientemente aceitável à épo-ca. Ao definir os “índios” pode-se perceber a sua concepção sobre estes povos que reproduzia em suas ilustrações:

Selvagem, habitante e conhecedor das imensas florestas virgens, vivem fe-lizes em seu estado primitivo, se alimentam de frutas e plantas vigorosas cujas raízes substanciais bastam à alimentação de seus filhos, embora os homens naturalmente cheios de engenho e agilidade, se entreguem à caça para obter um alimento suplementar (...) nas gigantescas árvores das florestas brasileiras, cujas abobadas espessas são impenetráveis aos raios do sol, nesse labirinto obscuro e fecundo está a habitação do selvagem. (DEBRET, 1940:09)

Essas representações são reproduzidas pelos livros didáticos de história, até hoje, onde os índios são retratados como homens primitivos no estado natural como a própria natureza, desprovidos de humanidade, como um animal. Observa-se que era interessante ao viajante da época a preocupação em tornar até certo ponto misteriosa e atraente a vida do selvagem, enaltecendo a idéia de paraíso, já divulgada na Europa no século XVI.

Debret ficou conhecido como o maior formador de retratos da expedição Langs-dorff. Tekla Hartmann pesquisou as imagens produzidas por Debret e esclarece sobre esse assunto:

Em geral, Debret não cometeu o erro de tantos outros pintores viajantes, anteriores ou contemporâneos, ou seja: de dar fisionomias européias aos seus tipos exóticos. Se ele nem sempre é verídico do ponto de vista pura-mente antropológico, pode-se dizer que, na maioria dos casos, depara-se realmente com indígenas sul-americanos (...) Debret contribuiu em grande escala para a idéia errônea e fantasiosa que se faz do índio ate os dias de hoje e que figuram nos compêndios escolares como documento ilustrativo de hábitos indígenas. (HARTMANN, 1997:70-73)

Esse pode ser um dos motivos pelo qual os livros didáticos, em sua maioria, ainda pontuam a representações do índio no passado, em função das obras de Debret. No entanto, essas representações afirmam cada vez mais as conquistas do colonizador, situando o índio como um ser estranho, diferente, onde a sociedade não o reconhece como cidadão brasileiro, digno de atenção. São vistos como tutelados, de forma paternalista, onde sua cidadania não é considerada e o respeito às diferenças, muito menos.

Com base nessas ideologias da civilização, as representações foram construídas se-gundo as versões dominantes que visavam atender aos interesses dos conquistadores. Mas como essas ideologias envolveram a mentalidade da nação conduzindo comportamentos e pensamentos? Através da classe dominante que detém o poder. A ideologia da classe dominante é a elaboração da “falsa consciência” que conduz à necessidade de ocultar as verdadeiras relações de classe e assim garantir seus reais interesses, através de uma represen-tação falsa a falseadora. Jamil Cury cita o pensamento de J. Gabel para esclarecer a questão

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da elaboração da falsa consciência, que conduz a uma visão histórica degredada, feita pela classe dominante:

A falsa consciência não é mais do que o pensamento não-dialético na escala dos grupos sociais, é a própria dês-realização da percepção do mundo, introjetada pela classe social dominante em todas as classes. Essa “reificação ideológica” desfavorece a resistência, à mudança e sua determi-nação de classe implica na deformação do real e na visão fragmentária e parcial das coisas. (Apud. CURY, 1988:05)

A alteridade e o etnocentrismo no ocidente fundaram-se numa suposta superioridade autocentrada na religião cristã, onde os cristãos viam os outros, como “bárbaros”, os que es-tavam fora dos limites do mundo cristão, como alienados da virtude, isto é da “humanidade”. A inferioridade do espírito – e supostamente a do corpo – dos outros não apenas caracteri-zava o seu distanciamento da plenitude da forma humana, mas também tornava viável, por exemplo, a sua escravidão.

Os livros didáticos, principalmente os atuais, não explicam a questão da alteridade, que foi composta no processo da conquista e colonização do território americano pelo eu-ropeu, em cujo cenário iconográfico foi inserido uma imagem de índio bárbaro, selvagem, antropófago, incapaz de gerir a própria vida, e justificando sem maiores problemas, a domi-nação européia, como discute Laura de Mello e Souza, no prefácio da obra de Raminelli e acrescenta:

A tradição européia buscou em um passado remoto argumentos para consolidar essa relação pautada pela desigualdade. Os europeus não eram iguais aos ameríndios: a superioridade dos primeiros respaldava a conquista, a colonização e a catequese. Os nativos desconheciam o cristia-nismo, menosprezavam o ouro e a idéia de trabalho tal como concebida pelos colonizadores. Portanto eram considerados seres degenerados de-caídos e necessitados da intervenção européia para tomar os rumos de uma vida melhor, uma vida pautada nos mesmos princípios e valores da cultura ocidental. Esta abordagem está ausente dos estudos dedicados aos primeiros contatos entre os índios e brancos. (SOUZA, 1996: 09-13)

Com isso, a origem dos povos indígenas no continente americano, seu cotidiano, suas relações de trabalho, de cultura e de religiosidade, deixaram de ser questões abordadas nos livros didáticos que buscam preferencialmente enfatizar somente as conquistas alcançadas pelo branco europeu.

O estudo de Everardo Pereira Guimarães Rocha mostra esta realidade exposta nos livros didáticos, onde os discursos aparecem de forma simplista, isolados e descontextuali-zados dos documentos históricos e da própria realidade vivida hoje pelos povos indígenas:

Hoje temos que as representações ameríndias nos livros didáticos são tra-tadas geralmente pela negação de traços culturais considerados significa-tivos para a classe hegemônica: falta de escrita, falta de governo, falta de tecnologia para lidar com os metais, nomadismo, etc. Um segundo modo de operação deste mecanismo de simplificação é a apresentação isolada e dês-contextualizada de documentos históricos que falam sobre índios. Assim, cartas, alvarás, relatos de cronistas e viajantes são fragmentados,

recortados e, porque não dizer adulterados e apresentados como eviden-cias, como relatos do passado, sem que sejam fornecidos ao aluno ins-trumentos para que ele possa filtrar aquelas informações e reconhece-las dentro do contexto no qual elas foram geradas. É assim que, fatos etno-gráficos retirados do seu contexto, bem como iconografias da época, são apresentados, criando um quadro de exotismo, de detalhes incompreensí-veis, de uma diferença impossível de ser compreendida e, portanto aceita. (ROCHA, 1984:133)

A questão do genocídio americano, justificado pelas chamadas “guerras justas” em-preendidas pelos colonizadores europeus, bem como o processo de resistência ameríndia frente ao conquistador, dificilmente são temas abordados nos livros didáticos. Aracy Lo-pes da Silva faz pertinentes pontuações a respeito da postura assumidas pela maioria das escolas:

Nas escolas as questões das sociedades indígenas são freqüentemente ig-noradas nos programas curriculares e quando são abordadas em sala de aula, os professores revelam-se mal informados ou com uma visão “defor-mada”, já construída em sua maioria, sem entender as diferenças entre os povos indígenas. Como poderiam ser iguais, se cada grupo humano atribui significados próprios para suas experiências? Como poderiam ser iguais, se cada cultura cria seus próprios símbolos para mostrar os signifi-cados que dá às coisas? (SILVA, 1995:318-320)

Darlene Yaminalo Taukane, na sua obra A História da Educação Escolar Entre os Kurâ--Bakairi, faz pontuais reflexões a respeito das diferenças culturais entre as sociedades indíge-nas e dos colonizadores:

Quando somos parte de uma sociedade com organização social, política, econômica e uma educação tradicional muito própria, não imaginamos o quanto somos diferentes em relação a outras sociedades (...) A ótica etnocêntrica dos colonizadores e catequizadores não admitiram ao longo do processo, que no contexto social dos povos indígenas existisse educação. Eles trabalharam com um único objetivo de transformar os indígenas em “mão-de-obra escrava”, a serviço de seus “senhores”. Nunca se deram conta de que nós tivemos a nossa maneira própria de organização, de acordo com a nossa educação. (TAUKANE, 1999:18-61)

Assim os materiais didáticos colaboram para formar uma visão equivocada e distorci-da sobre as sociedades indígenas, onde o preconceito e a discriminação são constantes. Luis Donisete Benzi Grupioni aponta essa visão equivocada:

A imagem de um índio genérico, estereotipado, que vive nu na mata, mora em ocas e tabas, cultua tupã (Sol) e Jaci (Lua) e que fala tupi-guarani permanece predominante, tanto na escola como nos meios de comunica-ção. Daí a responsabilidade que o professor de historia deve ter, em estar refletindo com os alunos uma nova postura, para que todos percebam e reflitam sobre as simbologias que são construídas em torno do índio. (GRUPIONI, 1995: 483)

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Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em conformidade aos dispositivos cons-titucionais de 1988, estabelece alguns deveres da escola em relação a esta questão, no sentido de levar ao alunado condições de conhecer e respeitar as diferenças:

A escola deve posicionar-se criticamente em relação ao reconhecimento do valor inerente a cada cultura (...) tratar da presença do índio pela inclusão de conteúdos que informem sobre a riqueza de suas culturas e a influencia delas sobre a sociedade, conforme disposto na Constituição de 1988 (art. 210, parágrafo 2.º). Valorizar esta presença é reafirmar os direitos dos ín-dios como povos nativos, de forma que corrija uma visão deturpada que os homogeneíza como se fossem de um único grupo, devido à justaposição aleatória de traços retirados de diversas etnias. (PCN, 1999:43-44).

Essa é uma vitória conquistada pelas sociedades indígenas do Brasil e também pelos não-índios que se interessaram e levantaram bandeiras em defesa do respeito aos direitos indígenas e das plurietnias nacionais. É bom lembrar, no entanto, que existem questões mais recentes sobre os livros didáticos que estão sendo revistas por especialistas nas instituições educacionais, no sentido de acompanhar os novos paradigmas propostos pela educação voltados a responder as incontáveis interrogações, que por tanto tempo ficaram silenciadas. Sabe-se que nesta ultima década implantou praticas de se avaliar as formas de elaboração e apresentação dos livros didáticos, pelo MEC. Conteúdos e imagens estão passando por revi-sões criticas.

Hoje a conquista da escrita pelos povos indígenas é uma realidade, que vem se concre-tizando com esforços dos próprios índios que sabem o quanto dela necessitam para preparar as novas gerações, diante das novas realidades que terão que enfrentar. A educação escolar indígena no Brasil vem focalizando os entraves e os recentes avanços conquistados por esses povos no âmbito educacional.

É interessante ressaltar a grande necessidade que ainda temos, em estar conhecendo melhor os povos indígenas e principalmente aqueles que estão mais próximos de nós, no nosso Estado. Permitir que haja uma educação voltada para a construção da cidadania de forma global, para que possamos conhecer melhor as nossas origens e compreender a nossa história, no sentido de trazer transformações que visem o desenvolvimento de uma consci-ência de fraternidade, solidariedade e a compreensão de que a evolução é individual e, ao mesmo tempo coletiva. Prepará-los para exercer a cidadania de forma global, compreenden-do que acima do individual, deverá sempre prevalecer o coletivo.

Que as escolas abram espaços para debates, cursos, palestras sobre esta questão. Se-gundo Aracy Lopes da Silva, a questão indígena está longe de ser um “problema de índios”. Ela diz a respeito de todos nós. Cabe a todos nós decidirmos se queremos uma nação justa e respeitosa dos direitos das pessoas. Cabe a nós todos pensarmos um momento sobre a riqueza das experiências humanas de que desfruta um país que sabe respeitar as diferenças culturais e se construir através de modos mais simétricos de relacionamento entre seus mui-tos segmentos. O desafio está aberto.

Bibliografia

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Editora Martins Fontes, São Paulo: 1940.

GABEL, Joseph. Sociologia de la Alienación. In. CURY, Jamil. Ideologia e Educação Brasileira: católi-cos e liberais. Ed. Cortez, São Paulo: 1988.

GRUPIONI, Luis Donisete Benzi Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades in-dígenas do Brasil. In. SILVA, Aracy Lopes da. (Org.) A temática indígena na Escola: Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. MEC/MARI/UNESCO, Brasília: 1995.

HARTMANN, Tekla. A contribuição da Iconografia para o conhecimento de índios brasileiros do século XIX. Editora EDUSP, São Paulo: 1997.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias. MEC/SEF. Brasília: 1999.

SILVA, Aracy Lopes da. (org.) A temática indígena na Escola: Novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. MEC/MARI/UNESCO, Brasília: 1995.

SOUZA, Laura de Mello e. Prefácio. In: RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representa-ção do índio de Caminha a Vieira. Ed.Jorge Zahar Rio de Janeiro: 1996.

ROCHA Everardo Pereira Guimarães. Um índio didático: nota para o estudo de representações. Editora Zahar, Rio de Janeiro: 1984.

TAUKANE, Darlene. A História da Educação Escolar Entre os Kurâ-Bakairi. Editores: SEC-MT, DA-MATA, Cuiabá: 1999.

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Modernização de Cuiabá no sé-culo XX: Reivindicações por água nas páginas do Diário de Cuiabá

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Foi na década de 1960 e 1970 que houve um “despertar” para as questões globais do meio ambiente. Demorou quase dois séculos, desde o início da Revolução Indus-

trial, para que os países entendessem que as chaminés do progresso econômico precisariam de limites. Diversas convenções como a de Kyoto, foram feitas, mas o difícil era então “falar a mesma língua” a cerca das questões ambientais. Gerando assim jogos diplomáticos difíceis e conflitos econômicos. Pois de um lado, estão os países industrializados, principais poluidores, como os EUA. Estariam eles dispostos a pagar agora a maior parte da conta para solucionar futuros problemas ambientais do planeta?

De outro, estão os países em desenvolvimento, como o Brasil. Eles concordariam em se submeter às regras internacionais que os obriguem a conservar os recursos naturais das florestas tropicais e a adotar tecnologias menos poluentes, dominadas pelas nações ricas? Um fator bem complicado! Mas mesmo assim, muito se vem “tentando” buscar soluções.

Deste modo percebemos então que o nosso mundo está passando por uma crise ambiental. A partir de tal crise surgiu a História Ambiental. Tal denominação pode sugerir uma história do ambiente, do “mundo natural”, ou ainda uma genealogia dos problemas ambientais contemporâneo. Como se os problemas ambientais só tivessem ocorrido em nossa civilização. (CARVALHO, 2007, p.2). Mas o que vem a ser História Ambiental? A História Ambiental é parte de um esforço revisionista para tornar a disciplina da História muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem tradicionalmente sido. A idéia de uma História Ambiental começou a surgir desde a década de 1970. (WORWTER, 1991, p.2). Daí em diante ela se abrange, e hoje está institucionalizada em todo o mundo.

1. Graduanda em História da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT.

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Percebemos então que o nosso planeta está atravessando um período de crescimen-to drástico e inúmeras mudanças. (NOSSO, 1991.p.2). E que a questão da água é um fator também muito importante em tempos atuais. Em todo o mundo, domina uma cultura de desperdício de água, pois ainda se acredita que ela é um recurso ilimitado. A água é cada vez mais um bem escasso no planeta, e notadamente em nosso país. Em todo mundo para cada mil litros de água utilizados pelo homem, resultam dez mil litros de água poluída. As indústrias poluem os corpos d’água, quando neles lançam 70% de água não tratada. Nos rios brasileiros são lançados cerca de 10 bilhões de litros de esgoto bruto, e, desse volume, apenas 5% recebem algum tratamento anterior. (1991.p.2).

Assim nos últimos tempos, atos simples e corriqueiros como tomar banho e escovar dentes passaram a ser motivo de reflexão em muitos países. Economizar água para manter o nível dos reservatórios e evitar racionamento virou tema permanente de campanha de conscientização em grandes cidades, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil. A questão não é só garantir água nas torneiras.

Percebemos então que há uma enorme guerra para se obter o controle da água potá-vel no mundo. Pois a água só é considerada potável quando pode ser consumida pelos seres humanos. Infelizmente, a maior parte da água dos continentes está contaminada e não pode ser ingerida diretamente. Limpar e tratar a água é um processo bastante caro e complexo, destinado a eliminar da água os agentes de contaminação que possam causar algum risco para a saúde, tornando-a potável. Em alguns países, as águas residuais, das indústrias ou das residências, são tratadas antes de serem escoadas para os rios e mares. (ÁGUA, 2010).

A constante guerra para se ter o poder sobre a água potável tem gerado três situações de calamidade em todo o mundo:

1° O mundo está ficando sem água doce. A humanidade está poluindo, desviando e esgotando as fontes finitas de água da terra, em um ritmo pe-rigoso que aumenta constantemente. O uso excessivo e o deslocamento da água são o equivalente, em terra, às emissões de gases de efeito estufa e, provavelmente, uma das causas mais importantes da mudança climática.

2° A cada dia, mais e mais pessoas estão vivendo sem acesso á água limpa. Pois o numero de crianças mortas devido á água suja supera o de mortes por guerra, malária, AIDS e acidentes de trânsito. A crise global da água se tornou um símbolo muito poderoso da crescente desigualdade no mundo. Enquanto os ricos bebem água de alto nível de qualidade sempre que desejam, milhares de pessoas pobres têm acesso apenas á água con-taminada de rios e de poços locais.

3° Um poderoso cartel corporativo da água surgiu para assumir o controle de todos os aspectos da água a fim de obter lucro em beneficio próprio, ou seja, as corporações fornecem água para beber e recolhem a água residual; colocam enormes quantidades de água em garrafas plásticas e nos vendem a preço exorbitantes; as corporações estão desenvolvendo tecnologias novas e sofisticadas para reciclar nossa água suja e vendê-la de volta para nós.Elas extraem e movimentam a água através de enormes dutos, retirando-a de bacias hidrográficas e aqüíferos com o objetivo de vende-la para grandes cidades e indústrias; elas compram, armazenam e

vendem água no mercado aberto, como se fosse um novo modelo de “tênis de corrida”.( BARLOW, 2009, p.15).

Em meio a tudo isso que nos encontramos ainda temos o elevado crescimento da população que a cada dia tem se tornado maior e assim dificultando o acesso a água potável. A conseqüência disso será o significativo aumento na captação de água dos mananciais para suprir o consumo doméstico e, principalmente, a produção de alimentos em cultivos agrí-colas com o uso também de maior quantidade de agrotóxico, que é uma fonte fortemente poluidora da água e do solo.

No entanto ainda tem uma alternativa para deter esses cenários de conflitos e guer-ras. Que se vem ocasionando em todo mundo. Poderíamos começar com um pacto para a água. Inserindo então três componentes fundamentais: Um pacto de conservação da água por parte das pessoas e dos governos que reconhecem o direito da terra e de outras espécies á água limpa e se comprometem a proteger e conservar os suprimentos de água do mundo; um pacto de justiça da água entre aqueles no hemisfério norte que têm água e recursos e aqueles no hemisfério sul que não os têm, para trabalhar de modo solidário em prol da justiça da água, da água para todos e dos governos, reconhecendo que a água é um direito humano fundamental para todos. (BARLOW, 2009, p.161). Portanto, os governos não devem apenas fornecer água limpa a seus cidadãos como um serviço de utilidades públicas, mas também devem reconhecer que os cidadãos de outros países também têm direito á água e devem encontrar soluções pacíficas para as disputas de países pela água. (2009, p.161).

Assim para diminuir a crise seria a conservação da água doce, criar mecanismo para a água das chuvas serem utilizada e parar com a poluição. Em seguida diminuir o acesso desi-gual a água, obter um controle corporativo da água. Esta, então, é a tarefa: nada menos que reivindicar a água como um bem comum para a terra e para todas as pessoas, que deve ser compartilhado de modo sensato e sustentável e protegido, se quisermos sobreviver. (BAR-LOW, 2009, p.161).

Deste modo saímos deste contexto mais amplo e entramos em um problema de pes-quisa que é o abastecimento de água em Cuiabá. Assim o fornecimento de água só passou a acontecer em Cuiabá, logo após a guerra com Paraguai que então se implantou em Cuiabá um processo de modernização e, portanto a implantação de tubulações de água. Mas que logo após tal implantação a mesma começou a falhar e gerar assim diversos problemas de insuficiência, algo que se estenderia até os dias atuais. Assim a falta de água potável atingia toda a área da cidade que deveria estar sendo servida. Sendo que nos tempos de secas (de Junho a Setembro), com muita dificuldade de se obter um pote de água. O povo sofria com o enteso mormaço existente até os dias de hoje. Assim passavam se os anos. E um novo pro-cesso de modernização acontecia na cidade de Cuiabá agora nos anos de 1900. E a mesma então começa a crescer e a desenvolver deixando para trás “casarões assombros”, e toda uma história urbana da cidade colonial. (FREIRE, 1997, p. 33).

Com a ampliação da cidade, os bairros proliferaram e, conseqüentemente o aumento do número de habitantes. Foi assim que em 1940, no governo do interventor Júlio Muller, Cuiabá inicia os projetos para a construção da primeira Estação de Tratamento de Água – ETA, de Cuiabá. A ETA foi construída em Cuiabá, ainda, quando a administração do abaste-cimento público de água potável era de responsabilidade da EFLA – Empresa de Força, Luz e Água. Assim isso tudo acontecia na cidade. (SANECAP, 2010).

Mas nada comparado ao que viria na segunda metade do século XX. Para entender isso, passemos para a questão da “ocupação” ao norte do estado de Mato Grosso no ano

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de 1970, pois tal processo migratório está na raiz do crescimento da capital. Deste modo Cuiabá passaria a ser chamada de portal da Amazônia. E faria a implantação do Programa de Integração Nacional (PIN) que tinha por objetivo expansão das fronteiras econômicas e agrí-colas. Ou seja, era suprir a carência de mão-de-obra na região com programas de colonização dirigidos especificamente para o excedente populacional nordestino, que de acordo com as estratégicas da operação Amazônica, ocupando as margens das rodovias transamazônicas e Cuiabá-Santarém. (JOANONNI NETO, 2009, p.19-20).

Seria também um período onde haveria um peso significativo [...] é um período de intenso movimento populacional no estado e em Cuiabá. A cidade de Cuiabá se constitui como um ponto de entrecruzamento dos deslocamentos sociais para as áreas de “frentes agrícolas” e de mineração em todo o Mato Grosso. Um tempo de acentuadas e rápidas transforma-ções sociais, econômicas, políticas que marcam este período nomeado de tempo do “progresso”, da modernidade e do desenvolvimento. (SOUZA, 2007, p.32-34).

Desta forma os anos 70 são um marco no processo de (re)ocupação de Mato Grosso. E assim Mato Grosso apresenta, entre 70-80, uma taxa de crescimento populacional de 6,6% ao ano, o triplo da registrada pelo Brasil, no período, ocupando o quarto lugar na taxa de incremento, sendo superado apenas pelos Estados de Rondônia, Distrito Federal e Roraima.

Nesse contexto de crescimento populacional apesar de Cuiabá contar com um sis-tema de abastecimento de água o povo continuava a sofrer com os diversos problemas de abastecimento. E nesse ponto adentro o objetivo especifico dessa pesquisa “o abastecimen-to de água nas páginas do jornal “Diário de Cuiabá”, 1970-1989”. E a buscar de tentarmos responder as seguintes questões: Como a questão do abastecimento de água aparecia? Como a questão se alterava de acordo com o tempo?

O abastecimento de água em Cuiabá parecia meio que inalterado ao longo de todo o período estudado e as reclamações era sempre da população que desejava obter um forne-cimento de água de melhor qualidade. Bom exemplo disso é o artigo que afirma o seguinte:

A reportagem acompanhou o trajeto de várias donas de casa a procura de água para abastecer suas casas. Elas só têm duas saídas: ou pegarem água de uma manilha com vazamento por sinal é o local mais procurado, ou andarem aproximadamente dois quilômetros e pegarem água do Rio Coxipó. Analisando a situação, os moradores, principalmente as donas de casas se mostravam inconformadas com a falta de providência da SANE-MAT que para muitos continua indiferente aos angustiantes apelos feitos pelos moradores do Tijucal. (FALTA, 1983).

Por meio do jornal percebemos que os problemas do abastecimento eram diversos e em vários bairros, sendo que constatamos que as reclamações eram feitas principalmente por falta d’água nos bairro periféricos da cidade.

Considerando que a maioria do período estudado ainda era a época em que estava vigente a Ditadura Militar no Brasil, e devido a isso os jornais em suas páginas abordavam e forma mais “cuidadosa” sobre o assunto em questão.

Deixando transparecer que às vezes os mesmo não queriam falar mais sobre a necessi-dade de obter água, só que eram obrigados a expor as reclamações em seus artigos.

Podemos supor que a pressão popular, com reclamações constantes ao jornal, a em-presa fornecedora de água, tenha sido um fator importante para tal problema assumir uma maior visibilidade nas páginas do jornal.

Por fim destacamos que na cidade havia a contradição de estarem banhadas por rios e perto de abundantes fontes de água e a população passando por necessidades por não ter um abastecimento de melhor qualidade e eficácia. O que ainda hoje ocorre.

Deste modo este trabalho trás um leque de discussão acerca dos problemas relaciona-dos à água e como referencia trás a cidade de Cuiabá.

Bibliografia

ÁGUA. Disponível em: <HTTP://www.webciencia.com/21_agua.htm -> Acesso em 10. Ago. de 2010.

BARLOW, Maude. Água Pacto Azul: A crise global e a batalha pelo controle da água potável no mundo. São Paulo: M.Books do Brasil, 2009.

CARVALHO, E. B. A História Ambiental e a crise ambiental contemporânea: um desafio políti-co para o historiador In: História, Natureza e Território. Governador Valadares: Ed.UNIVALE, 2007. E-Book. Disponível em: < http://www.univale.br/sites/editora/e_books/detalhes/?CodigoArquivo=8&Titulo=Historia--Natureza-e-Territorio---Coletanea-de-Historia-Ambiental >. Acesso em: 28 abr. 2010.

FALTA de água no Tijucal e moradores reclamam. Diário de Cuiabá. Cuiabá, p. 9, 01. mai. de 1983.

FREIRE, Júlio de Lamonica. Por uma Poética popular da Arquitetura. Cuiabá: EDUFMT, 1997.

JOANONNI NETO, Vitale (Orgs.). História, terra e trabalho em Mato grosso. Ensaios Teóricos e resultados de pesquisas. Cuiabá: EDUFMT, 2009.

NOSSO Futuro comum: Comissão Mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1991.

SANECAP.< hTTp://www.sanecap.com.br/Tnx/index.php?sid=2 - >. Acesso em: 11 ago. 2010.

SOUZA, Ana Maria. Relatos da Cidade: Normadismo, territorialidades Urbanas e Imprensa. Cuia-bá: Entrelinhas, 2007.

WORWTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8. p. 198-215, 1991.

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A Educação de Jovens e Adultos na busca pela Igualdade em uma

Sociedade Heterogênea - CEJA Profº Antonio de

Figueiredo Cesário Neto

elisanGel a maria de amorim1

A educação sempre esteve presente na vida das pessoas e está relacionada ao pro-cesso de transformação histórica da sociedade, de modo informal ou formal. O

acesso à educação por muitos séculos ficou restrito a determinados grupos sociais. Mas sua transformação acontece no contexto histórico geral, isso porque a educação é atingida pe-las ideologias e por políticas em vigor. A educação acompanha as transformações políticas, sociais, culturais e econômicas desde a antiguidade, passando pela idade média, moderna, contemporânea até dias atuais.

Dentro do quadro amplo da educação e, ainda, do Brasil, esta pesquisa volta o olhar para a educação de jovens e adultos. A escola para jovens e adultos é uma prática, mesmo que não regulamentada, que vem desde o período colonial - fato evidenciado primeiro com os índios e depois com os escravos, os jesuítas além de evangelizar também procuravam educar. Todavia, de fato mesmo a ação educativa se exprime na Primeira Constituição do Brasil, em 1824, no Império, a qual passa a garantir instrução primária e gratuita para todos os cidadãos. No entanto, devemos lembrar que quando se falava em educação para todos pensava-se no direito à escola para crianças, o que não incluía negros e índios.

Essa distância entre o proclamado e o realizado foi agravada por outros fatores. Em primeiro lugar, porque no período do Império só possuía cida-dania uma pequena parcela da população pertencente à elite econômi-

1. Graduanda em História pela UFMT. Pesquisa para Trabalho de Conclusão de Curso. Orientadora: Profª Dra. Ana Maria Marques.

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ca à qual se admitia administrar a educação primária como direito, do qual ficavam excluídos negros, indígenas e grande parte das mulheres. Em segundo, porque o ato adicional de 1834, ao delegar a responsabilidade por essa educação básica às Províncias, reservou ao governo imperial os direitos sobre a educação das elites, praticamente delegando à instância administrativa com menores recursos o papel de educar a maioria mais carente. (HADDAD & DI PIERRO, 2000, p.109)

O Império passava a responsabilidade da educação para as províncias e estas não possuíam recursos suficientes para manutenção da educação local, então muitas crianças ficavam fora da sala de aula. Havia um percentual muito grande de analfabetos. Assim como na Europa, a educação no Brasil privilegiava apenas uma pequena parcela da sociedade – a elite. José Murilo de Carvalho deixa claro que havia um número significante de analfabetos e que havia uma apatia política, deixando decepcionados homens como Aristides Lobo e Raul Pompéia. Tanto é que ele afirma: “(...) na proclamação da República a participação popular foi realmente arranjada de última hora e de efeito apenas cosmético” (CARVALHO, 1987: 70). A sociedade era marcada e constituída por valores de hierarquia, de desigualdade, e principalmente pela ausência de cidadania. Isso chega a ser contraditório com o objetivo do Império que era o de equalizar a educação, promovendo a igualdade educacional dentro da diferença, da heterogeneidade. Lembrando que a igualdade que se buscava não tinha relação com igualdade política, econômica ou cultural para todos os cidadãos. A Professora Elizabeth Madureira (2000: 33) afirma:

O sistema estatal de educação imperial [...] objetivava oferecer a cada seguimento a parcela instrucional e educacional correspondente ao papel que ele desempenhasse no contexto social. Assim, às elites coube trafegar por todo o processo – do primário elementar, passando ao complementar, ao secundário e atingindo o superior -, sendo que, aos demais homens li-vres, porém cidadãos não ativos, restava usufruir apenas o seu piso básico.

Ao cidadão livre pobre cabia apenas o piso básico, ratificando que estavam excluídos os negros e índios. Nesse período, a província de Mato Grosso, que se encontrava com os “cofres vazios”, apresentava problemas com a instrução pública. As reformas, parte do obje-tivo macro, eram elaboradas com diretrizes traçadas pelo governo central e com andamento mais lento que o da corte.

Já na Primeira República, o ponto relevante com relação à educação é que na consti-tuição de 1891, havia um favorecimento a uma classe social, essa constituição excluía os anal-fabetos do direito de votar, sendo que a maioria da população era analfabeta. Foi um período também caracterizado por reformas educacionais, embora boa parte ficasse só no texto da lei, nenhuma mudança significativa no cenário brasileiro. Na verdade havia uma ação legisla-tiva, mas não havia instrumentos que fizessem com que essa ação se tornasse eficaz e efetiva. O cenário muda a partir da década de 1920:

(...) o movimento de educadores e da população em prol da ampliação do número de escolas e da melhoria de sua qualidade começou a estabelecer condições favoráveis à implementação de políticas públicas para a educa-ção de jovens e adultos. (Haddad & DI PIERRO, 2000, p.110)

A industrialização teve papel importante na educação, pois a profissionalização tam-bém se dava pela escola, e essa por sua vez assegurava a cidadania. Mas o marco da educação

de jovens e adultos começa a partir da Revolução de 30, no período de Vargas, quando se adota divisão de competências entre Estados, União e Municípios.

O Estado deveria proporcionar educação para todos e gerir um orçamento para ma-nutenção educacional. A educação de jovens e adultos entrou no rol dos problemas políti-cos sociais e de acordo com o Plano Nacional de Educação, deveria ser incluído entre suas normas o ensino primário integral gratuito. Isso representava um marco, porque significava o reconhecimento e efetiva preocupação com a educação de jovens e adultos.

Depois, mais um passo foi dado pelo governo através do programa progressivo de ampliação (incluindo 25% dos recursos) da educação primária com a inclusão do Supletivo para adolescentes e adultos. Campanhas de erradicação do analfabetismo foram organizadas (Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos – CEAA – em 1947, a Campanha Nacio-nal de Educação Rural,em 1952, e Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, em 1958), fazendo cair os índices de analfabetismo “das pessoas acima de cinco anos de idade para 46,7% no ano de 1960” (HADDAD & DI PIERRO, 2000: 111).

Talvez esse fato esteja relacionado com o modelo de educação adotado pelo Brasil, baseado no modelo proposto pelos Estados Unidos da América: educação técnica com pou-ca instrumentalização teórica e filosófica - a idéia era despolitizar o sujeito e imprimir neste a consciência de que era responsável pela construção desta nova nação, segundo Rosângela Antonini e Leonildes Maria Catellan (2009). Durante muito tempo a educação de adulto tinha ainda características da educação infantil, pois o material didático era elaborado para crianças de 05 (cinco) a 07 (sete) anos de idade.

Mas o período, caracterizado por Sérgio Haddad, de luzes para educação de adultos, foi o de 1959 a 1964. Um ponto nos chama atenção quando o autor afirma que o adulto sofria preconceito por ser analfabeto, era visto como ignorante. Também há outro ponto: nesse momento os trabalhos voltados para educação de jovens e adultos tiveram uma nova vertente: o debate ampliado com a sociedade, não mais somente com interesse político, há uma busca pela renovação pedagógica, em meio a um momento turbulento. Em face de toda transformação política do momento em que vivia o Brasil, nas décadas que antecedem a ditadura militar, a educação de jovens e adultos buscou legitimidade através das propostas políticas advindas dos setores populares.

As coisas se complicaram com a ditadura militar. Os movimentos de base de edu-cação de adultos (Movimento de Educação de Base, da Conferencia dos Bispos do Brasil, estabelecido em 1961, e Movimento de Cultura Popular do Recife, a partir de 1961, Centros Populares de Cultura, órgãos culturais da UNE e o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura que contou a presença do Professor Paulo Freire) foram duramente repreendidos pelo governo militar. Todavia, isso não significava que a educação de jovens e adultos tinha sido abandonada pelo Estado, até porque sabiam que era uma me-diação que tinham com a sociedade.

O governo militar precisava criar um instrumento para dar ‘legitimidade’ ao direito de cidadania e ao mesmo tempo acabar com níveis baixos de escolaridade, uma vez que não tinha bons olhos internacionalmente, além de ir contra o que pregavam que era a construção de uma grande nação. Como diz HADDAD & DI PIERRO (2000: 114):

As respostas vieram com a fundação do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização- em 1967, e, posteriormente, com a implantação do Ensi-

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no Supletivo, em 1971, quando da promulgação da Lei Federal 5.692, que reformulou as diretrizes de ensino de primeiro e segundo graus.

Ainda ratificando os autores supracitados: O MOBRAL2 tinha duas proposições fun-damentais: diminuir o analfabetismo e atender aos objetivos dos militares que estavam no poder. O MOBRAL possuía orçamento próprio oriundo de recursos obtidos através do Im-posto de Renda devido pelas empresas que destinava 1% e 24% da Renda Líquida da Loteria Esportiva para o referido programa. Haddad & Di Pierro também apresentam três caracterís-ticas do MOBRAL: o paralelismo com os demais programas de educação; a sua operaciona-lização de modo descentralizado feita por comissões municipais através de convênios com as Secretarias de Educação e com instituições privadas; e a direção do processo educativo centralizado por uma Gerência Pedagógica.

O MOBRAL teve incentivo e colaboração de empresários por dois motivos, primeiro porque descontava do seu Imposto de Renda 1% e segundo porque acreditavam que isso iria ajudar na profissionalização técnica de seus funcionários. Além disso, para a sociedade seria o fim do preconceito do analfabetismo. Vejamos parte do discurso do então Presidente Médici: “O MOBRAL chega com a promessa de acabar em dez anos com o analfabetismo, classifica-do como ‘vergonha nacional’” (Apud HADDAD & DI PIERRO, 2000:115-116).

Essas palavras mostram que o MOBRAL foi algo imposto sem ser comunicado à socie-dade e sem um caráter pedagógico, ratificando o período em questão, o da ditadura militar. No final o MOBRAL já estava totalmente desvinculado de seu objetivo inicial, passando pelas mais variadas metamorfose atendendo até as crianças.

Finalmente o período da ditadura militar foi marcado também pela criação do Ensino Supletivo, através da Lei nº 5.692 de 11/08/1971 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional, Capítulo IV. Tratava-se de um subsistema integrado e independente do Ensino Regular, foi apresentado à sociedade como escola do futuro onde qualquer pessoa poderia ter acesso, criado no governo do Presidente Médici, tinha como proposta política desse governo “a pre-ocupação com a educação como elemento prioritário dos projetos para o desenvolvimento (HADDAD & DI PIERRO, 2000: 118).

Então, após esse período, segue-se o processo de democratização do país. Muitos filósofos e pedagogos - profissionais da educação - começam a questionar os currículos es-colares.

A história da educação de jovens e adultos do período da redemocratiza-ção, entretanto, é marcada pela contradição entre a afirmação no plano jurídico do direito formal da população jovem e adulta à educação básica de um lado, e sua negação pelas políticas concretas, de outro. (HADDAD & DI PIERRO, 2000:119)

Considerando o breve histórico da educação de jovens e adultos e as políticas histori-camente estabelecidas para elevar os índices de escolaridade de uma parcela significativa da população que não teve acesso ou não permaneceu no ensino regular em idade apropriada, percebemos as mudanças ocorridas. Todavia, ainda temos um grande número de analfabetos

2. Art. 1º O Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) fundação instituída pelo Poder Executivo nos termos do art. 4º da Lei nº 5.379, de 15 de dezembro de 1967 e vinculada ao Ministério da Educação e Cultura, terá por finalidade a execução do Plano de Alfabetização Funcional e Educação Continuada de Adolescentes e Adultos, aprovado pelo Artigo 3º da mesma lei e sujeito a refor-mulações anuais, de acordo com os meios disponíveis e os resultados obtidos.www6.senado.gov.br/legislação

funcionais3 e muitas pessoas que por vários motivos ficaram muito tempo fora da sala de aula e do sistema regular de ensino. Se avanços quantitativos foram conseguidos, entretanto o Brasil ainda se encontra em patamares inferiores comparados a países desenvolvidos. E aí cabe uma critica ao governo que por vezes deixa sua responsabilidade de lado e acaba be-neficiando outros setores, deixando de oferecer instrumentos importantes para manutenção da educação, sobrecarregando os estados e municípios que diante da pressão de demanda, acabam repassando para as organizações civis, recorrendo até ao ensino a distancia e termi-nando por não apresentar um nível de aprendizagem satisfatório.

Sabemos que a educação de jovens e adultos perpassa por vários momentos dentro do contexto histórico, como foi dito no início, então vale ressaltar que neste século XXI, os desafios estão em encontrar caminhos onde se possa convergir as metodologia e práticas da educação, para um bem maior que é a superação dos problemas educacionais, que são his-tóricos. Há muito que se fazer para alcançar a tão sonhada universalização da alfabetização.

Paulo Freire, considerado educador incomum, tinha um projeto político-educativo, que buscava libertação cultural e política. Sua proposta e prática pedagógica voltavam-se para possibilitar ao analfabeto, principalmente o adulto, falar ao mundo através da escrita. Ele teve seu projeto interrompido no Brasil da ditadura militar por força do exílio, mas em 1989, no governo de Luiza Erondina, ele assumiu a Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo e implantou o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos da cidade de São Paulo – MOVA-SP. O governo Municipal oferecia recursos financeiros e as entidades conve-niadas responsabilizavam-se pela criação dos núcleos de alfabetização. Como fazia parte de uma estratégia política, esta foi extinta em 1993, quando houve mudança de governo.

A conclusão que se tem é que a educação de jovens e adultos vem sofrendo transfor-mações conceituais, e pode derivar de incentivos públicos ou particulares, podendo ser ora conservadora ora transformadora. Não podendo ser colocada de forma paralela ao sistema, muito menos como forma compensatória, mas como uma modalidade de ensino voltada para uma determinada clientela, cujas prerrogativas de classe estão claras.

Cabe salientar um ponto relevante da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº 9.394/1996): o acesso seguro e indiscriminado ao ensino fundamental da educação bá-sica. A destinação da Educação de Jovens e Adultos tem uma seção especifica na LDB, nos artigos 37 e 38 que, esta colocada “para aqueles que não tiveram acesso ou não conseguiram dar continuidade aos seus estudos, será assegurado ensino gratuito e deverá articular com a educação profissional”.

Neste contexto pela busca de mudança e como modalidade de ensino específica - o CEJA4 Profº Antonio Cesário de Figueiredo Neto, foi instituído através do Decreto nº. 1.126/08, substituindo o que era antes as Instituições de Educação Básica “Prof. Antônio Ce-sário Figueiredo Neto” e “Profª. Emília Fernandes de Figueiredo”, localizado na Rua Francisco de Siqueira, s/nº, Bandeirantes, Cuiabá-MT.

3. Em geral, uma pessoa é considerada analfabeta funcional quando possui menos de 4 anos de estudo completos. Essa definição leva em consideração que o processo de alfabetização somente se consolida, de fato, entre as pessoas que completaram a 4ª série, em razão das elevadas taxas de regressão ao analfabetismo entre os não-concluintes desse nível de ensino. Nesse sentido, o Brasil apresentava, em 2002, um total de 32,1milhões de analfabetos funcionais ou 26% da população de 15 anos ou mais de idade. (IBGE, 2003)

4. A proposta político pedagógica da Educação de Jovens e Adultos está baseada nas seguintes legislações: LDB (Lei 9.394/96), Parecer 11/00 CNE, resolução 150/1999 CEE-MT, Resolução 180/2000 CEE-MT, Resolução n.118/01 CEE-MT, LC n.49/98, e Regimento Interno da Comunidade Escolar.

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Sua Proposta Pedagógica tem como objetivo:

(...) cumprir satisfatoriamente sua função de preparar jovens e adultos para o exercício da cidadania e para o mundo do trabalho, a Educação de Jovens e Adultos necessita de mudanças significativas essas mudanças de-vem ser norteadas, sobretudo, pelos valores apresentados na Lei 9.394/96 e no Parecer 011/00, do Conselho Nacional de Educação, que estabelecem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. (Projeto Político Pedagógico do CEJA – Profº Antonio Cesário de Figueiredo Neto).

Ainda de acordo com o Projeto Político Pedagógico do CEJA – “Cesário Neto”, este prioriza a aprendizagem dos alunos, levando em conta suas experiências e saberes adquiridos em suas vivências fora da sala de aula, diferente de uma pedagogia tradicional. Fazem um tra-balho no qual os conteúdos culturais relevantes devem estar articulados à realidade em que o aluno está inserido, formalizando um processo integrador dos diferentes saberes.

Outro ponto caracterítico do CEJA – “Cesário Neto” é que essa escola de Jovens e Adultos não atende exclusivamente a questão da faixa etária, mas a escolarização está volta-da para a “(...) articulação desta modalidade com a diversidade sócio-cultural de seu público (...)” (Projeto Político Pedagógico do CEJA – Profº Antonio Cesário de Figueiredo Neto, p. 17).

O CEJA – Profº Antonio Cesário de Figueiredo Neto trabalha com forma presencial por área de conhecimento com duração trimestral e por disciplina. O ensino está dividido em três áreas: exatas, humanas e linguagens.

Fazendo uma pequena análise do perfil dos alunos matriculados no CEJA - Profº Anto-nio Cesário de Figueiredo Neto, a partir de um questionário utilizado como instrumento para a coleta de dados e aplicado entre estudantes do período noturno, por livre adesão, obteve--se uma amostra, da qual se tem as seguintes informações: sobre idade 5% estão com menos de 18 anos, 15% dos 18 a 20 anos, 25% dos 21 a 23 anos, 35% dos 24 a 26 anos e 20% com mais de 26 anos; 62 % dos entrevistados são do sexo feminino e 38% do sexo masculino, o que demonstra que há mais mulheres do que homens matriculados; sobre filhos 14 % declararam não ter, 39 % têm dois filhos, 22 % têm um filho e 8 % têm 3 filhos e 17% têm 4 ou mais filhos; sobre coabitação 42 % moram com os cônjuges, 30 % moram com os pais, 8 % moram com familiares, 15% moram com sozinhos e 5 % moram com amigos; com relação ao estado civil 51 % são casados ou tem relacionamento estável, 30 % declaram solteiros, 18 % declararam separados e menos de 1% declararam viúvos; com relação ao principal meio de transporte utilizados pelos alunos 85% declararam utilizar o transporte coletivo e/ou ir à escola a pé, apenas 15 % possuem veículos próprios; sobre a renda, 35% possuem rendimento mensal de 1 a 2 salários mínimos, 17 % de 2 a 3 salários mínimos, 23 % de 3 a 5 % salários mínimos, 10% até um salário mínimo e 5 % mais de 5 salários mínimos; sobre evasão do ensino regular, 95 % declararam que já trancaram matricula ou pararam de estudar por mais de um ano: 38 % por impedimento financeiro, 30 % por maternidade, 25 % por motivo de mudança, 3 % por difi-culdade na aprendizagem e 4 % por motivo de saúde; quando a pergunta era sobre preten-sões futuras: 30 % pretendem continuar no trabalho que exercem, 42 % pretendem conseguir um trabalho melhor remunerado, 20 % pretendem continuar estudando e 8 % não sabem.

A pesquisa ainda encontra-se em fase inicial. Alguns dados coletados não foram de-vidamente analisados e os resultados são, por ora, parciais. Todavia, é possível perceber que são muitos os desafios enfrentados pela política de estruturação dos CEJAs, em especial o

“Cesário Neto”, objeto específico desse estudo. Precisam-se levar em conta os contextos vi-venciados pelos educadores, educandos e a comunidade para o entendimento da constru-ção desses processos pedagógicos.

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O ensino secundário em Mato Grosso (1900 a 1920)

elTon CasTro rodriGues dos sanTos1

marineide de oliveir a da silva2

A História da Educação brasileira é composta por inúmeros momentos educacio-nais, que contribuíram ou não para o desenvolvimento do sistema educacional

do Brasil. Um desses momentos foi a implantação do Ensino Secundário em Cuiabá – MT, o qual, constitui-se em um marco educacional repleto de acontecimento instigantes e que suscita inúmeras reflexões sobre o contexto educacional brasileiro. Uma delas é sobre como o ensino secundário, tido como um projeto inovador, em Mato Grosso, encontrou em sua trajetória inúmeros problemas estruturais/organizacionais.

Para responder esta e outras indagações elaborou-se um trabalho que pudesse desve-lar alguns dos principais problemas decorrentes da implantação do Liceu Cuiabano, primeira instituição de ensino público secundário de Mato Grosso (ZANELLI, 2002), no período de 1900 a 1920.

Teoricamente, para esse trabalho, realizou-se o método histórico em que se anali-saram fontes documentais no Arquivo Público de Mato Grosso, como: jornais, Relatórios de Diretores e inspetores da Instrução Pública, Atas Escolares e o Regimento interno do Liceu Cuiabano, Legislação do Ensino e Mensagens dos Presidentes da Província de Mato Grosso.

Não há como refletir sobre a história do Ensino Secundário em Cuiabá sem se lembrar

1. Universidade Federal de Mato Grosso, graduando do Curso de Pedagogia. Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória/GEM/IE/UFMT - [email protected]

2. Universidade Federal de Mato Grosso, graduanda do Curso de Serviço Social - Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória/GEM/IE/UFMT - [email protected]

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da missão dos jesuítas que aqui chegaram em 1549, na expedição de Tomé de Souza. Uma vez que, os primórdios deste tipo de ensino, tinha sua fundamentação nos preceitos religio-sos, sendo ministrado no Seminário Episcopal da Conceição.

Segundo Di Santos (2007) a finalidade educacional jesuítico que perdurou aproxima-damente duzentos anos, tinha como prioridade, à catequização e instrução dos que eram considerados pela igreja católica como infiéis. Para isso, foram criadas algumas escolas, que além de ensinar as primeiras letras, propagavam os ideais católicos. Criaram, também, colé-gios destinados a formar clérigo, bem como preparar para os estudos superiores jovens que não buscavam a vida sacerdotal.

O poderio hegemônico do Seminário Episcopal da Conceição por ser a única institui-ção de ensino secundário em Mato Grosso, recebia apoio e repasse de verbas do Governo Imperial para seu funcionamento. Segundo Sá e Siqueira (2006, p.134) o poder hegemônico do Seminário foi pleno até 1880, ano que se inaugurou o Liceu Cuiabano, instituição pública que ministrava o mesmo nível de ensino. “A partir desta última data até a República, os dois estabelecimentos disputaram, corpo a corpo, os minguados alunos secundaristas”.

Após 15 anos decorridos da inauguração do Liceu Cuiabano, além do problema com a disputa por alunos e pela hegemonia do ensino secundário, sua criação trouxe outras com-plicações, como a de ordem econômica, pois o custo para manter um estabelecimento do porte do Liceu Cuiabano, era muito alto para a província mato-grossense. Desse modo, seria mais vantajoso, a criação de uma Escola Normal, pois além de custar menos a província, abarcaria um número maior de estudantes, sua maioria mulheres, que propusessem seguir a carreira do magistério.

Essa preocupação fica claramente especificada na mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso, Dr. Manoel José Murtinho em maio de 1895, em que ele explica que seria mais rentável criar uma Escola Normal.

Não concordamos com a primeira parte da indicada reforma, por enten-der que o Estado, pela distância em que se acha dos grandes Centros de Instrução deve possuir um instituto de preparatórios no qual se habilitem os aspirantes aos cursos superiores, penso, todavia que será de muito mais vantagem para o ensino a criação de uma Escola Normal á parte tão logo nossas circunstâncias financeiras o permitam. Sendo muito oneroso aos professores catedráticos do Liceu Cuiabano do Liceu reger cada um três aulas no corrente ano letivo, que é o terceiro do curso, tratou-se de prover quanto possível, os lugares de substituto que com aqueles repartem os encargos do ensino secundário.

Isso porque, de algum modo, a Escola Normal contribuiria para a formação de cida-dãos subordinados a nova Lei e Ordem Republicana e como também para o desenvolvi-mento da sociedade. Segundo Sá e Siqueira (2006, p.133:134) esse era o precipício do projeto moderno e,

deveria antecipar ou seguir pari passu a proliferação das escolas, porém isso não ocorreu, mesmo levando-se em conta as tentativas e esforços despendidos pelos Presidentes que administravam as províncias na pri-meira metade do século passado. O exemplo de Mato Grosso pode servir de ilustração.

Em 1908, o Presidente do Estado de Mato Grosso Exmº Sr. Coronel Generoso Paes Leme de Souza Ponce reafirma em Mensagem enviada à Assembléia Legislativa em 13 de maio de 1908, a finalidade para que o Liceu Cuiabano fora criado.

[...] O Liceu cuiabano, criado pela Lei n. 536, de 3 de dezembro de 1879, organizado pelo regulamento de 4 de março de 1880 e reorganizado pelos de 20 de junho de 1896, de 2 de janeiro de 1903, de 13 de janeiro de 1912 e pelo atual, é um estabelecimento estadual de ensino secundário que tem por fim ministrar aos estudantes sólida instrução fundamental que os ha-bilite não só a desempenhar cabalmente os deveres de cidadãos, como a prestar, em qualquer academia, rigoroso exame de admissão.

Em 1919, foi decretado pelo Conselho Superior do Ensino, concedida a equiparão do Liceu com o Colégio Pedro II, acabando com os entraves gerados pela disputa entre a igreja e o diretor Geral da Instrução pública. Nesse mesmo período, foi nomeado um Inspetor Fe-deral para realizar a fiscalização do ensino no Liceu, o Dr. Floriano Lemos, que empossado a 12 de Outubro de 1919.

Credita-se que a implantação do ensino secundário na província de Mato grosso, em toda sua história, foi recheada de relações conflituosa entre os eclesiásticos e os governantes locais, pois ambos almejavam a hegemonia do Ensino Secundário. Os governantes ambicio-nar a construção de um prédio que abrigasse esse nível de ensino e colocasse a província de Mato Grosso no cenário educacional que se instaurou a partir da criação do Colégio Pedro II. Já a igreja católica não queria perder o poder e os recursos advindo do Império para que o ensino secundário continuasse ser ministrado no Seminário Episcopal da Conceição em Cuiabá.

Bibliografia

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras

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Porque matar a galinha dos ovos de ouro? A representação da tecnologia para a elite in-

dustrial madeireira no Paraná, 1942-1965

ely berGo de Carvalho1

A idéia que a população do Brasil é perdulária com seus recursos naturais dada a abundância da sua natureza é presente no imaginário nacional. E muitas vezes

utilizada como fator explicativo de processos históricos. No caso da história das florestas, após a Primeira Guerra Mundial o Brasil passou de importador à exportador de madeira, isso graças a um complexo industrial madeireira que se formou no Sul, para explorar, basica-mente, a Mata de Araucária. Alguns trabalhos apontam que a ampliação da fronteira agrícola e a abundância da floresta era um dos principais fatores para a ampliação do setor sem a preocupação com a sua “sustentabilidade” (LAVALLE, 1974; MAACK, 1981). Mas ao analisar os relatórios do escritório regional do Paraná do Instituto Nacional do Pinho – INP., órgão criado em 1942, o que pode ser percebido é que havia uma preocupação com o esgotamento das Mata de Araucárias, mas que era minimizado pois havia uma crença e uma aposta que o desenvolvimento tecnológico do setor de silvicultura solucionaria todos os problemas da industria madeireira. Tal crença no progresso se mostrou infundada e o setor entrou em crise devido a falta de matéria-prima, somente com a nova legislação florestal, 1965, e, principal-mente, os incentivos fiscais dariam base para um novo salto do setor madeireiro.

O Instituto Nacional do Pinho foi instituído pelos Decretos Leis números 3.124, de 19 de março de 1941, e 4.813, de 8 de outubro de 1942. O artigo primeiro do decreto de criação do INP previa que ele seria o “órgão oficial dos interesses dos produtores, industriais e expor-tadores de pinho”( DECRETO-LEI federal n. 3.124, de 1941). Sendo que se constituiu aprovei-

1. Prof. Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected]

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tando a estrutura do Serviço do Pinho, da extinta Comissão de Defesa da Economia Nacional, tendo o Serviço do Pinho substituído ou encampado o Sindicato da Indústria de Serrarias (INP, 1956). Dessa forma, segundo histórico publicado no periódico oficial do INP, o Anuário de Econômica Florestal, o INP “não foi delineado, projetado e definido preventivamente, mas somente tomou forma oficial, como órgão autárquico, após impor, pelo imperativo das ne-cessidades, a razão e a forma de sua constituição.” (INP, 1956: 32). O citado histórico assim narra a situação que levou à criação do INP:

A destruição sistemática e ininterrupta de nossas reservas florestais, ob-servada, principalmente, no planalto meridional brasileiro, onde se insta-lou uma poderosa indústria de exportação madeireira, vinha causando profundas e justificadas apreensões quanto ao destino que estava reserva-do a tão preciosa riqueza.

Generalizou-se, assim, por quase todo o território nacional, um grande clamor contra as derrubadas inclementes das nossas florestas, ao mesmo tempo que se reclamavam medidas urgentes sobre o reflorestamento.[...]

Por sua vez, a iniciativa particular, sem preparo nem assistência técni-ca para proceder a exploração e, muito menos, a reconstrução florestal, pouco ou nada podia realizar, mesmo porque, manda a verdade dizer, o imediatismo dos negócios e a improvisação da indústria não lhe permitia pensar na solução de tão grave quanto importante problema. [...]

Cumpria, portanto, uma providência do Estado, capaz de garantir condi-ções de sobrevivência para nosso já tão dilapidado patrimônio florestal. A adoção de uma política orientada nesse sentido teve como conseqüência a criação do Instituto Nacional do Pinho (Anuário Brasileiro de Economia Florestal, 1948: 401).

A organização do INP era formada por uma Junta Deliberativa, constituída pelo presi-dente do INP, nomeado pelo presidente da República; um representante, para cada um dos governos estaduais, dos 3 grandes estados produtores de pinho, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná; e por um representante dos industriais e exportadores de pinho, de cada estado envolvido, indicados por órgãos de classe reconhecido pelo Estado. Nos estados a diretoria regional era constituída pelo representante do respectivo Governo Estadual e por dois representantes dos empresários do setor (WENTZ, 2004: 122-123).

O chefe do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura, A. de Miranda Bastos, narra em 1961, que quando entrou no Serviço Florestal em 1930 havia no Paraná “uma febre con-tagiante de derrubar pinheiros, arrastar toras, montar serrarias, sem ninguém se importar de saber se havia transporte e compradores para toda a madeira produzida.” (BASTOS, 1961: 73).

Em 1939, a situação chegara a um ponto dramático: 1.350.000 metros cúbicos de pinho serrado esperavam que 45.000 vagões viessem apanhá--los. Não havia possibilidade de transporte e de consumo se não para um terço desse volume, mas as serrarias continuavam trabalhando e se multiplicando (BASTOS, 1961: 73).

Apesar da criação do INP conseguir “debelar essa crise” (BASTOS, 1961: 73), o setor madeireiro continuou a sofrer com crises periódicas de superprodução. O setor econômico

madeireiro foi marcado pela instabilidade. Os preços internacionais eram baixos devidos à baixa qualidade do produto brasileiro e à grande oferta do produto, ao mesmo tempo em que os meios de transporte eram insuficientes, causando freqüentemente a deterioração da madeira a ser exportada por falta de transporte. As políticas de cotas e autorização de produ-ção, para adequação da produção à demanda e à capacidade de transporte, foram medidas tomadas pelo INP, mas a ação do Instituto não foi suficiente para otimizar o setor (LAVALLE, 1974: 140 e passsim).

Um jornal sul-rio-grandense expressa bem tal situação na época da criação do INP:

A criação do Instituto Nacional do Pinho era uma imperiosa necessidade. Era imprescindível uma organização autônoma para pôr ordem, à desor-ganização da indústria e comércio de madeiras, pois, estávamos destruin-do a esmo, sem proveito para o país, as suas reservas florestais, numa con-corrência desenfreada e descabida, em proveito do comprador estrangeiro. [...] [O que] corresponde perfeitamente, aos anseios da classe madeireira. Era, mesmo, preciso que os negócios do pinho fossem devidamente regu-lados, em benefício não só dos produtores, exportadores e beneficiadores, como também, e principalmente da própria riqueza nacional (CRIAÇÃO do Instituto Nacional do Pinho. Jornal da Serra, Carazinho, n. 765, 24 mar. 1941. p. 11. apud WENTZ, 2004, op. cit., p. 125).

A “riqueza nacional” deveria ser racionalizada com o controle e regulação da produ-ção. A criação do INP marca uma conjuntura em que já estava clara, pelo menos para as lideranças do setor madeireiro e políticos, a escassez da Floresta Ombrófila Mista, para a qual tanto a legislação florestal quanto o INP se voltaram. Sua estratégia para resolver o “problema florestal” era fomentar o reflorestamento.

Mas tal reflorestamento industrial massivo somente se efetivaria após a promulgação do Código Florestal de 1965 graças ao acúmulo técnico até então realizado, e, principalmen-te, a incentivos fiscais do Governo Federal. Sendo que o órgão responsável, na esfera federal, pela política florestal passaria a ser o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF, 1968; 2).

No ano de 1953 ocorreu na cidade de Curitiba o I Congresso Florestal Brasileiro. Reu-niram-se políticos, como o governador do Estado, cientistas e técnicos na área florestal e empresários do comércio e indústria madeireira para debater o futuro das florestas brasileiras (INP, 1954: 116-117). O Congresso foi promovido pelo INP, sendo que tal evento juntamento com os relatórios do escritório Regional no Paraná do INP, basicamente as fontes aqui explo-radas.

A exploração florestal apresentava uma classificação das florestas, entre as florestas homogêneas e as heterogêneas. Segundo Bohn (1990) o “espírito da comissão que elaborou o anteprojeto do” primeiro Código Florestal brasileiro, de 1934, poderia assim ser sintetizado:

O Brasil, talvez o país que possua maior área florestada é pobre de floresta homogêneas. Verdadeiramente merecedora desse qualificativo só temos os pinhais da chamada Araucarilândia, nos Estados do Paraná e Santa Catarina.

Ora, só as florestas homogêneas permitem exploração industrial em gran-de escala com vantagem econômica, porque a mão-de-obra nas hetero-

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gêneas, é muito dispendiosa, encarecendo o custo da produção (PEREIRA, Osny Duarte. Direito florestal brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1950. p. 140, apud BOHN, 1990: 140-141).

O chefe do Serviço Florestal do Ministério de Agricultura, A. de Miranda Bastos, afir-mava que a solução para o “drama da floresta de pinho” não era proibir o corte e sim seguir a estratégia de efetuar reflorestamento:

Não se trata de proibir o corte. Segundo a ciência florestal, as árvores produtoras de madeira devem ser cortadas assim que apresentem as di-mensões próprias a cada indústria.

Uma floresta tecnicamente explorada tende a produzir maior volume de madeiras de melhor qualidade, que o volume que produzia no começo (BASTOS, 1961:79).

Tal como na legislação florestal, tanto as florestas heterogêneas como as florestas ho-mogêneas poderiam ser “melhoradas” quando “tecnicamente exploradas”.

Todavia, no início da atuação do INP não havia, no Brasil, um arcabouço de conheci-mentos tecno-científicos capazes de sustentar um reflorestamento industrial. Nem mesmo os critérios técnicos de padronização para a exportação do pinho brasileiro haviam sido esta-belecidos, sendo este um dos elementos que se buscou estabelecer para ampliar o mercado externo, já que isto garantia um padrão de qualidade ao comprador estrangeiro. Mais tarde, em meados da década de 1950, foi estabelecida a padronização de medidas e classificação para a peroba rosa (INP, 1956).

Quanto à tecnologia para o plantio, uma série de instituições, estatais e privadas, em esforços esparsos, foram reunindo elementos que vão, dos espaçamentos até os cuidados técnicos necessários para o cultivo em especial do pinheiro brasileiro. O INP participou desse esforço, mas em 1948, ainda poderia se afirmar que eram necessárias pesquisas básicas:

Necessitamos com presteza de conhecimentos gerais do problema [do re-florestamento] que ainda não foram sequer iniciados. A organização de um programa de estudos preliminares florísticos, geográficos, geológicos, pedológicos, entomológicos, zoológicos em geral e, finalmente, metereológi-cos, o I.N.P. está dedicando sua melhor atenção (INP, 1948: 408).

Durante o I Congresso Florestal Brasileiro, o madeireiro Ruy Itiberê da Cunha afirma, com um pouco de exagero, que: “Saímos do marco zero, em matéria de florestamento, pois até aparecer o Instituto Nacional do Pinho, não tínhamos nada feito.” (INP, 1954: 133). E narra um acontecimento emblemático: uma reunião que foi a “semente” do INP na qual apresen-tou um trabalho sobre o reflorestamento do pinheiro brasileiro, baseado no técnico Navarro de Andrade, durante a qual apresentou um trabalho e narra que:

Enquanto procedia à leitura daquele trabalho, notei que Navarro de An-drade sorria e fiquei intrigado com aquele sorriso. E pensei: teria copia-do alguma coisa errada? Teria interpretado algo errado? E cada vez que olhava para Navarro de Andrade, ele sorria. Quando terminei de leer [sic] o meu trabalho, perguntei-lhe porque tinha rido enquanto eu falava e ele me respondeu que tinha feito exatamente aquilo que eu dizia e que havia escrito, mas que tinha sido um fracasso, por isso tinha achado gra-

ça, quando falei em fazer exatamente o que estava em sua obra e que, infelizmente, já ele mesmo havia condenado. Vejam por isso, como tudo era difícil. Acompanhando o Instituto desde a sua fundação, nele tenho trabalhado algumas vezes e me permito, empregando uma palavra pouco parlamentar, dizer-vos que todas as ‘burradas’ em matéria florestal que o Instituto tenha feito, as fez para evitar que os particulares e os interessados viessem a fazê-las (INP, 1954: 132-3).

Houve um debate no I Congresso Florestal sobre se a formação de pessoal qualificado para a silvicultura deveria ser feita por agrônomos que se especializariam na cultura florestal ou por cursos específicos de engenharia florestal. Sendo que, nas conclusões do Congresso, foi feita constar a necessidade da “criação em regime de urgência, da cadeira específica de Silvicultura, nas escolas agronômicas do Brasil” ((INP, 1954: 111). Isto porque “a quem cabe o lado natural do reflorestamento é ao agrônomo: ao comércio e à indústria cabe o amparo ao técnico.” (INP, 1954: 143).

A estratégia de reflorestamento racional estava pautada em uma confiança na tecno--ciência que não poderia ser questionada. O que se expressa na afirmação exemplar de Car-valho Araújo quando enfatiza que era “preciso usar da técnica na questão florestal. E que a ciência já tinha dito o que era possível fazer (grifo meu).” (INP, 1954: 136) A tecno-ciência não seria capaz apenas de orientar o sistema de produção, mas, também, disciplinar os tra-balhadores, como “diz o dr. Castro Velloso”: os industriais precisavam “de agrônomos capazes de elevar o nível intelectual do homem do campo.”(INP, 1954: 143). Mas a gritante falta de trabalhadores qualificados até mesmo para os poucos Parques Florestais indicava a impossi-bilidade de uma ação mais sistemática de tais técnicos.

Quanto à pesquisa para o reflorestamento, nos anos seguintes cada vez mais elas iriam se direcionar para o estudo de espécimes exóticas que apresentavam crescimento mais rápi-do e forneciam um maior retorno econômico diante do “rápido desaparecimento dos nossos pinhais” ((INP, 1954: 70). Como se afirmou durante o Congresso Florestal: “Entre as muitas experiências realizadas, surgiu como esplêndida solução o ‘pinus elliottii’, trazido para o Brasil pelo eminente Engenheiro Florestal Dr. Helmuth Paulo Krug da Secretaria de Agricultura de São Paulo.” (INP, 1966: 17)

Um outro ponto que a estratégia de reflorestamento racional e a tecno-ciência indi-cam é o abrandamento da idéia de uma natureza cornucópica. Não era a aposta em uma inesgotabilidade que aparece nos anais do I Congresso Florestal Brasileiro ou nos relatórios do INP.

Liliane I. M. Wentz afirma, para a região norte do Rio Grande do Sul, que:

Geralmente, não havia uma exploração racional, ou seja, não se dava importância ao reflorestamento por se acreditar na permanente abun-dância do mato; assim, os madeireiros e afins iam derrubando as florestas (WENTZ, 2004: 14).

Mas o que aparece nas fontes citadas pela referida autora, em especial de artigos de jornais, é que havia uma forte condenação dos “desflorestamento irracional”, em termos con-servacionistas/utilitáristas, bem próximo da condenação presente nas fontes aqui abordadas. Indica a própria autora, inclusive, que houve a formação de cooperativas de madeireiros vi-sando o reflorestamento e a execução do Código Florestal (WENTZ, 2004). Evidentemente, tais atividades não foram amplamente e calorosamente apoiadas pelos madeireiros. Mas elas,

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como a presença e discurso das elites do setor madeireiro, representado em seus sindicatos, apontam que, já nos anos 1930 e 1940, estava clara a limitação da “floresta natural” enquanto fonte de madeira.

Dessa forma, tão ou mais importante que uma crença em uma natureza cornucópica, para entender a ação da elite madeireira e da tecnoburocracia a ela associada, era a crença que o reflorestamento ordenado poderia resolver o “problema florestal”, ou seja, a certeza na tecno-ciência.

Luiz Alberto Langer afirma que o I Congresso Florestal Brasileiro foi um marco impor-tante para o desenvolvimento de uma “consciência florestal” e que o “otimismo abstrato com que a indústria madeireira sempre considerou as reservas florestais industrializáveis, passou a ser substituído por uma recente atenção à realidade evidenciada nas discussões daquele me-morável certame.” (INP, 1956:17). Langer, em 1966, argumentou ainda que, com “o correr dos anos, foi aos poucos se diluindo a ilusória euforia antiga, que as enormes reservas de pinheiros no sul do país eram suficientes ao suprimento das nossas necessidades de madeiras de pinho durante séculos.” (INP, 1966: 16). Por mais que ainda hoje a indústria madeireira pareça se comportar como se as florestas fossem inesgotáveis, os modelos de ação e cognição são mais complexos do que podem aparentar.

Em tal caso é em uma visão de mundo moderna mecanicista, que este estudo se pauta para poder entender tamanha confiança em que transformações tão radicais nos ecos-sistemas poderia trazer resultados apenas “positivos”. Desta forma, no caso estudado, mais do que uma confiança na inesgotabilidade dos recursos naturais, encontrei nos relatórios da tecnoburocracia e nas explanações da elite madeireira uma confiança na tecno-ciência como “salvação”.

Apesar da reprodução da imagem de uma terra paradisíaca, de um Eldorado, não era exatamente um “sentimento de inesgotabilidade do meio-ambiente” que estava presente nas fontes abordadas, pois tanto entre setores da elite madeireira e dos lavradores estava presen-te, também, a certeza da positividade da ação tecno-cientificamente orientada, ou seja, uma confiança no progresso.

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Traçando linhas do passado: tratados do Antigo Regime e

formação dos Estados nacionais no centro da América do Sul.

ernesTo Cerveir a de sena1

No antológico filme “Aguirre, a Cólera dos Deuses”, de Werner Herzog (1972), um grupo resolve se insurgir contra a monarquia espanhola e seguir viagem contra as

ordens do chefe imediato com a intenção de encontrar o país do Eldorado e fundar um novo reino. O rei então escolhido era um nobre europeu, Don Fernando de Guzman, mas quem passou a comandar de fato a expedição foi Lope de Aguirre, um veterano de muitas batalhas que dizia terem sido em favor dos Habsburgos. No processo de “conquista” territorial o novo rei escolhido por Aguirre apontava para terras à direita e à esquerda do rio em que estavam navegando, nomeando-as como pertencentes à sua realeza. Sabia que no lugar moravam muitos incrédulos indígenas, mas isto de forma alguma era obstáculo para dizer que as terras eram naquele momento suas. Na verdade, ao nomeá-las pensava que estaria usurpando--as de Castela e não de seus habitantes aborígenes. Assim fazia gestos como que litúrgicos, acompanhados de palavras, parecendo bastar isto para incorporar as terras em que via como território onde teria soberania sobre as coisas e pessoas. No entanto, não foram homens leais ao rei ibérico que rechaçaram a conquista de um punhado de europeus em terras america-nas, e sim os índios que habitavam o lugar. Os membros da tropa insurgente foram mortos, sem enterro cristão, na inóspita floresta amazônica, lugar que demonstrava sua hostilidade em ser transformado em “território branco”.

Mais sorte tiveram dois fugitivos franceses do filme “A grande ilusão” de Jean Renoir (1937), filho do pintor Pierre Renoir. A película também aborda as questões de territórios e faz uma referência pouco convencional, mas incisiva sobre as construções de fronteiras. Eis

1. Doutor em História. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso.

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que durante a Primeira Guerra dois franceses fugiam de um pequeno grupo de soldados alemães. Todo o cenário é branco de neve. Um fugitivo diz para o outro que deveriam seguir em tal direção, pois mais à frente estaria a Suíça. O outro, na dúvida, pergunta para o parceiro se teria certeza que adiante é o país dos relógios, pois “É tudo tão parecido!”. Como se saberia então que estaria lá? O primeiro, então, responde: “Ah! O que você quer? A natureza não dá bola para isso. Fronteira é coisa que não se vê, é uma invenção dos homens”. Quando entram no que seria o território suíço, os alemães, que estavam no encalço, desistem de alcançá-los e de atirar, mesmo tendo-os sob a mira logo após cruzarem a suposta fronteira.

Nos dois filmes há uma territorialização, ou seja, a concepção sobre a transformação de determinado espaço em um território por grupo humano. Os territórios apresentam-se como contingência, lugares a serem vividos, perpassados e apropriados para um domínio seguido de seus corolários, no primeiro caso fílmico, para a sobrevivência dos fugitivos, no segundo. Mas, sobretudo, os dois ilustram o caráter artificial e logo humano da territoriali-zação e a conseqüente invenção de suas fronteiras. Nesse sentido, são pertinentes as idéias de Haesbaert (2002: 119-121) nas quais o território é a tentativa por um indivíduo ou grupo de influenciar, atingir ou controlar pessoas, usando da delimitação e afirmação do controle de uma área geográfica. Essa produção de espaço não gera necessariamente uma fronteira linear entre Estados, pois participa também dessa política de tomar território para si povos sem Estado o que coloca em questão algumas hipóteses e reiterações sobre a apropriação e concepção territorial.

Os territórios e suas fronteiras receberam e recebem concepções diversas. Certamen-te, os trabalhos de Turner (2004) publicados entre o final do XIX e início do século XX se tornaram referências para a percepção de uma faixa de terras ao Oeste dos EUA que era pro-gressivamente incorporada a um novo modo de vida. A fronteira não seria o limite com um pais vizinho, mas uma frente de expansão que caracterizaria sobretudo a transformação de um modo de vida em determinada região. Uma das fortes características dos Estados Unidos estaria justamente na possibilidade de se mover para novos territórios. As teses de Turner se tornaram ponto de partida para várias pesquisas. Mas não seria análogo, ou próximo disso, a produção de fronteiras na América do Sul, que é o nosso caso. O contato com indígenas não foi o de total repúdio ou eliminação tal como ocorreu nas ex-colônias inglesas. Era característica das colônias espanholas criarem repúblicas indígenas nas cidades, ao mesmo tempo em que portugueses fundavam vilas povoadas praticamente por índios que passavam a ser “vassalos” do rei português, de acordo com a perspectiva lusitana. Os índios de lugares periféricos, como São Paulo e Paraguai, de linhagem tupi, apresentavam formas de convívio bastante mescladas com os descendentes de europeus até, pelo menos, a metade do século XVIII, incluindo a língua falada comumente pelos habitantes de Assunção e do planalto de Piratininga.

Nas áreas centrais da colonização espanhola a separação entre brancos e índios era bem institucionalizada, as terras indígenas em muitos casos foram mantidas, seja através de acordo com os espanhóis e portugueses, seja devido à impossibilidade dos descendentes de europeus ocuparem esses lugares. No século XIX, de modo geral, podemos dizer que os mo-vimentos de feições liberais que passaram a ocorrer em vários países da América Latina, após as independências, trouxeram políticas indígenas conflitantes com a que existia na época colonial. Não foram raras as vezes em que presidentes republicanos encabeçaram tentativas de transformar a terra comunal indígena em mercadorias. No Império do Brasil, os índios eram aldeados para serem futuros trabalhadores da nação. Mesmo com a explícita ordem de não fazerem expedições para matarem os indígenas, os conflitos eram numerosos e suas terras eram alvos constantes de particulares. O governo imperial, por sua vez, na tentativa de

formar aldeamentos, preservava, mesmo que momentaneamente, território indígena, mas incutia neles profissões, escolas e ferramentas que possibilitassem sua integração ao mundo do trabalho do não índio.

Como mostra Baud (2006:177-193), nem sempre os índios foram passivos às políticas liberais que procuraram disponibilizar as terras indígenas para o mercado na América Latina, típicos do século XIX. Houve resistência às essas intenções, o que possibilitou que territórios de povos originários fossem preservados até os dias de hoje. Ao lado de muitas perdas nos processos de formação dos Estados nacionais e nas tentativas de transformação de áreas in-dígenas em terras de e para negócios, grupos indígenas, nessa mesma época, também soube-ram tirar proveito participando das possibilidades de transações, seja adquirindo mais terras, seja conseguindo ou alocando minas de exploração, ou simplesmente ampliando e viabili-zando sua produção para as demandas citadinas. Inclusive, em alguns casos (não muitos), conseguiram ficar em termos vantajosos em relação a outros produtores não índios, por con-tarem com isenção de taxas, além de disporem de terras mais apropriadas para a produção e escoamento. Também houve situações que conseguiram impor obstáculos à concorrentes por dominarem acesso a determinadas áreas, conforme sugere o americanista.

Certamente essa resistência e oposição às várias manifestações dos Estados nacionais em marcha tornaram premente a identificação de indígenas que tinham já em seu território um fator, amiúde, de congregação e identificação, ligando-os aos seus ancestrais, diferen-ciando-os de outros índios e não índios, colocando-os por isto em risco, em supremacia ou em beligerância na área geográfica considerada sua. Se espanhóis e portugueses, durante a colônia, conquistaram terras e povos para suas coroas e sua religião, no século XIX o interesse se fixou em definir o “território nacional”. O problema na América Latina pós-indepentência, então, era o que fazer com índios e negros como se fossem um empecilho aos projetos nacio-nais. Os negros escravos tiveram tratamentos diversos em relação ao indígena, passando mui-tas vezes por uma lei do ventre-livre para que fosse postergado por pelo menos uma geração o domínio pela escravização no momento em que os princípios liberais eram apresentados como os melhores para se formar um novo país, ao romperem com séculos de colonialismo.

O indígena, por outro lado, possuía terras ou dominava rotas de acesso a outras áreas. Mas eram justamente terras indígenas que os Estados nacionais preconizavam como suas e como fundamentais para a sua existência. Ou seja, necessitavam de um território demarcado para que o Estado articulasse e instituísse o poder dos que promoveram o novo país. Seria no território que a soberania iria ser exercida, mas aquele precisaria ser delimitado, conhecido, controlado o máximo possível, e principalmente ser possuído.

Se no Antigo Regime não havia necessidade de um território contínuo e linearmente demarcado, que garantisse a soberania das dinastias, isto muda acentuadamente com os no-vos Estados nacionais, notadamente na América. Uma realeza como a que estava na Espanha ou em Portugal exercia sua autoridade em várias partes do mundo residindo neles próprios o princípio da autoridade para governar e exercer o poder de Estado. Com as revoluções do final do século XVIII e início do XIX, notadamente a de Cádiz na Espanha, em 1812, o prin-cípio de que a soberania morava nos povos ganhou força incontornável na América Latina, fazendo grande reflexo entre os espanhóis e descendentes de espanhóis no “Novo Mundo”. Finalmente, com as independências nas América Latina, não era mais no corpo do rei, mas no povo e no seu território que emanaria a soberania para o exercício político (Guerra, 2003: 53-60). A idéia de zona fronteiriça, portanto, começou a perder espaço, para uma necessidade real de elaborar um território onde o novo Estado se faria presente em nome desse povo que rompeu com dinastias e recorreu a si mesmo (como povo em ação) como justificativa para

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o bem-estar e segurança da sociedade. Certamente eram elites políticas as que conduziram o processo de ruptura da metrópole e de formação (ou pelo menos tentativa) do Estado nacional e de forjamento de uma nação. Mas no momento de independência contaram com participação popular, mestiços, negros e indígenas não só no campo de batalha mas também nas guerras de representações para se distinguirem dos metropolitanos. Como mostra Rebec-ca Earle (2007, p. 101-132), na América Espanhola, durante o processo de independência e nos primeiros anos dos novos países, os indígenas eram saudados como a referência principal contra o colonizador, içado a herói desde os pré-colombianos, receberam homenagens desde cunhagem de moedas até citações e temas em hinos nacionais. De celebrados passaram a ser franco obstáculo aos projetos modernizadores. Povo “inculto” e “atrasado”, foram prati-camente apagados das iconografias nacionais já antes da metade do século XIX (161-182).

Na elaboração da população dos novos Estados nacionais, poder-se-ia aceitar a mis-cigenação, mas o modo de vida indígena carecia de cuidados civilizacionais. Forjavam-se nações, e assim as políticas públicas tendiam ao “assimilacionismo” quando não à rejeição. O ideal seria que indígenas virassem trabalhadores dos novos países, como o Brasil, conside-rando a dificuldade de imigrantes. As “nações” dentro da “nação” eram, de alguma maneira, reconhecidas, mas, quando não havia guerra de fato, deveriam ser integradas. Suas terras, inclusive, melhor seriam se passassem a produzir de maneira não índia, participando dos progressos tecnológicos e voltando seus braços e produtos para as necessidades mercantis.

No entanto, nas elaborações nacionais existiam grupos que ficavam à margem desses ideais, sabotando, muitas vezes sem saberem, a narrativa linear de histórias e geografias que fundamentariam as nações que construíam (ver Bhabha, 2003;198-214). Quando os criollos se imaginam uma comunidade na América, na acepção de Anderson, faltavam contar com os vários grupos que não se aceitavam, nem se imaginavam como partícipes dessas mesmas comunidades. Assim, havia uma elaboração de nações em muitos países da América latina, mas havia grupos, notadamente os indígenas, que poderiam minar dois fundamentos sob os quais procurariam erigir os novos corpos políticos: a história e a geografia. Ora, o século XIX é o século de formação das nações modernas, e por isto também é o século das histórias e geografias nacionais (Magnoli, 1997: 110). A história procuraria fundamentar a nação naquele momento recorrendo a um passado que já indicaria a existência ou a pré-determinação da existência daquele país na América. Quanto mais indícios remotos mais fundamentavam-se a presença do país . A geografia era a base onde aquela história se assentaria e se justificaria. A ocupação territorial era preconizada já pela característica única daquela nação, com suas paisagens já indicativas das identificações de que aquela entidade política, mais cedo ou mais tarde, se libertaria de sua metrópole e se realizaria como instância autônoma.

Seria sobretudo através da história e da geografia que um país procuraria se diferen-ciar do outro. Essa diferença não somente para caracterizá-lo mas também para estabelecer fronteiras. Tornar-se-ia necessidade dos modernos Estados nacionais, mais do que das antigas metrópoles, delimitar os espaços de cada país de maneira linear. Assim, as supostas heranças coloniais apresentar-se-iam como se fossem fundamentais para traçarem a linha que separa-ria um país de outro. Assim, dentre vários, ganharam força os famosos tratados, desde o de Tordesilhas, de 1494, passando pelo de Madrid, de 1750 e pelo de Santo Ildefonso, de 1777. Seria como se os novos países pós-independência tivessem um território prescrito anterior-mente por suas metrópoles. Não é raro achar na historiografia brasileira a evocação de que o Tratado de Madrid legitimava os esforços e a argúcia portuguesa, ultrapassando o caducado acordo de Tordesilhas assinado entre Espanha e Portugal. No entanto, como argumenta o historiador Mário Clemente Ferreira (2007, p. 66-69), os ibéricos desconheciam muitas partes da região representada em mapa, idealizando rios, montes, topônimos diversos sem saberem

o que existiam. Além do mais, como mostra Uacury Bastos (1972), havia uma grande área dominada por índios, tais como os Guaicuru e os Paiaguá que impediam as pretensões de portugueses e espanhóis se estabelecerem em suas áreas no vale do rio Paraguai. O traçado mágico estabelecido pelos mapas era antes de tudo eurocêntricos. Os chiquitanos, estudados por Moreira de Costa (2006) e Joana Fernandes Silva (2008) também explodem o nacionalis-mo que recorre a uma história e geografia pré-existente e indicativa da nova nação moderna envolta em uma identidade. No século XIX, os grupos chiquitanos não se reconheciam nem como “bolivianos” nem como “brasileiros”, ocupando sua terra por mais de século, ao mesmo tempo em que autoridades do Brasil e da Bolívia procuravam forjar uma comunidade imagi-nada horizontalmente por todos os habitantes de um suposto território.

Recorriam aos tratados antigos das metrópoles, mas os próprios tratados eram vistos de várias maneiras diferentes pelas autoridades que representavam os países que formavam. Ou seja, os tratados por si não eram uma referência unívoca e insuspeita. Além de descon-siderarem os povos que não faziam cartografia e que de fato dominavam dado espaço, os acordos metropolitanos nunca chegaram a ser efetivamente cumpridos, surgindo frequen-temente algum que anulava outro, sem que chegassem a se efetivar consensualmente pe-las próprias monarquias ibéricas. Com as independências, povos indígenas não deixaram de dominar determinada parte, áreas enormes continuavam desconhecidas, mas se nos novos países necessitavam formar fronteiras, ainda assim eram aos antigos tratados que por vezes recorriam. Contudo, se antes da Guerra do Paraguai, Buenos Aires defendia o que pretendia o tratado de Santo Ildefonso, também o país guarani desejava a contemplação do mesmo acordo. Mas ambos tinham visões diferentes sobre o que fora a convenção metropolitana. A leitura paraguaia via uma saída de seu novo pais franqueada para o mar, além de uma fron-teira favorável em relação aos rios Apa e Branco, elementos de discórdia com o Império do Brasil. Já a Argentina se percebia amputada do que fora o Vice-Reinado do Prata e desejava a incorporação não só do Paraguai, mas também Uruguai, parte da Bolívia e o controle das regiões interioranas de Corrientes e Entrerios. A situação somente ficaria mais definida após o conflito com a república guarani.

Assim, muitos dos acordos sobre fronteiras saíram por guerras, pressões, ameaças se-guidas das negociações, o que estava longe da presunção de qualquer “fronteira natural”, sendo portanto construídas, inventadas. Mas a idéia de Uti Possidetis, como um princípio que teria balizado a “astúcia” portuguesa frente aos espanhóis não era também um argumento válido universalmente. Acontecia que muito dos territórios fronteiriços não eram possuídos pelos vários países, tendo indígenas e ribeirinhos vivendo e se identificando como pertencen-tes a outras comunidades, diferentes das nações que surgiam no século XIX, exigindo terras e lealdades.

Se no filme de Herzog o rei Guzman desce o rio apontando para as províncias de seu suposto reino, esses territórios não acabaram não sendo reconhecidos pelos seus habitantes, ao passo que no filme de Renoir, o perseguidor germânico respeitou comicamente a linha de fronteira num imenso branco de neve e gelo, poupando a vida dos fugitivos. No século de-zenove, os governantes criollos dos novos países imaginariam territórios como Guzman, mas não se deteriam ante os limites de povos como o sargento alemão. A fronteira, por mais artifi-cial que fosse, guardava um limite que se corrompido poderia levar a outros enfrentamentos. Sobreporia por ela, na magia das pinceladas cartográficas, a fronteira linear e didática, exposta nas narrativas pedagógicas das nações, que procuraria esconder o agonismo e a dissonância territorial dos que não se sentiam imaginados nas conformações imperiais do século XVIII e nas nacionais, do XIX.

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Coxipó, São Gonçalo, Cuiabá: discutindo fronteiras culturais

no século XX

FabriCio da silva verri1

Coxipó em seus primeiros anos como distrito de Cuiabá

O nome Coxipó é originário da tribo indígena Coxiponés que vivia na região no sé-culo XVIII. O Coxipó sempre pertenceu ao município de Cuiabá, mas nos tempos de sua criação como distrito em 1929, era bem afastado do núcleo central cuiabano. Enquanto o Coxipó formava um misto de pequenos vilarejos com propriedades rurais, a Cuiabá urbana compreendia uma cidade com o atual Centro histórico e o bairro do Porto com meios de transportes motorizados, embora com poucas ruas calçadas e construções arquitetônicas ainda em estilo colonial. Em 1897, foi inaugurada sob o Rio Coxipó a ponte de ferro pelo então governador Antônio Correa da Costa, passando assim o povoado do lado sul próximo ao rio ser conhecido como Coxipó da Ponte. Nas palavras de Estevão de Mendonça: “Era de inicio um ponto onde muitas famílias residentes na capital mantinham sítios e chácaras a beira do rio Coxipó para descansarem ou fazer piqueniques” (Apud ALENCASTRO. Aníbal, 2005: 184).

O senhor João Pinheiro, morador antigo da região do Coxipó e descendente de uma das mais tradicionais famílias da região, contou-me que o bairro Chácara dos Pinheiros teve origem a partir das reuniões que a família fazia periodicamente numa praia do Rio Coxipó.

1. Graduando em História, Universidade Federal do Mato Grosso, campus Cuiabá.

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Segundo Zanorf Leite, nesta época, meados do século XX, dominavam na região duas famílias: Os Dorileo e os Pinheiros, que tinham pequenos comércios de secos e molhados denominados de bolicho e algumas propriedades rurais naquela localidade. A praça central do Coxipó da Ponte, localizada próximo a ponte e as margens da Av. Fernando Correa leva em homenagem a família Pinheiro o nome de seu descente mais antigo que ali viveu Ema-nuel Pinheiro, político de renome no estado de Mato Grosso. Os Dorileo são conhecidos por seu descendente mais ilustre na região - o Senhor Gratidiano Dorileo, conhecido tam-bém como Totó Dorileo e dono de um armazém de secos e molhados entre as décadas de 1940 e 1960.

No comércio, como já citado, os bolichos eram típicos meios de renda para vários moradores da região e muitos comerciantes vinham de outras localidades para ali fazer ne-gócios. O morador Zanorf Leite, que diz ter nascido no Coxipó e ali vivido sua juventude entre os anos 40 e 70 do século passado, relata que o Rio Coxipó à época era farto de peixe e navegável por balsas que descarregavam o cimento Corumbá num porto próximo a ponte de ferro, esse produto era comercializado por seu Altair de Mattos que por sua vez o reven-dia a comerciantes no centro da capital. Outros comerciantes lembrados por seu Zanorf foram Apolônio Fernandez, conhecido também como o principal animador das festas locais e Dona Mariana Gratidiano Dorileo que era a responsável pela confecção de roupas para os moradores locais.

As festas tradicionais a santos sempre foram características da cultura cuiabana e de suas comunidades por mais afastadas que estivessem. Ainda hoje muitas delas são mantidas em nome da tradição e da fé dos mais devotados. Se no Centro histórico de Cuiabá celebra--se a Festa a São Benedito, no Coxipó mantém-se desde meados do século XX a Festa a Nossa Senhora de Santana, como cita outro antigo morador da região do Coxipó, o Sr. José Pinheiro, pai de João Pinheiro:

A Festa de Santana durava de quatro a cinco dias na região do atual Chá-cara dos Pinheiros, com levantamento de mastro e a reza e depois tinha baile e dança de siriri e cururu. No cardápio laranja para o doce, carne assada e lingüiça, arroz com piqui e farofa de banana além do licor de piqui e o furundu (do pau de mamoeiro).

Na Festa à Santana sempre vinha gente de outras comunidades como de São Gon-çalo, Engenho Velho e até de Livramento, bem como de Cuiabá. Apesar do isolamento as festas eram um momento que se promovia uma interação entre as comunidades A religio-sidade e as festas estavam quase sempre ligadas no Coxipó. Seu Zanorf diz como fica hoje impressionado com a transformação na região em tão pouco tempo. Ele relatou que, nos tempos de criança e mesmo adolescente, a região do Coxipó era considerada pela maio-ria dos moradores como tranqüila no sentido de poucas ocorrências de violência e que a partir da construção da primeira pista asfaltada da Av. Fernando Correa e da ponte de concreto, em 1958, com a abertura da rodovia para o sul do estado, o Coxipó logo perdeu aquela característica de calmaria. Tornou-se um novo núcleo urbano integrado à Cuiabá devido a expansão urbanística entre as décadas de 1960 e 1970, principalmente em direção sul, localização do distrito do Coxipó, com construções de diversos núcleos habitacionais expandindo o perímetro urbano coxiponês. O estabelecimento da universidade federal e o complexo industrial na saída para o sul do estado de Mato Grosso também contribuíram significativamente. Os moradores entrevistados apontam mais benefícios com esta expan-são do que prejuízos para a região, no sentido de melhor acesso aos serviços públicos e ao

centro da capital, onde estavam os principais estabelecimentos comerciais, educacionais e jurídicos.

Coxipó e sua identidade com Cuiabá

A distância do centro da capital e a dificuldade de locomoção por falta de transporte contribuíram para que o morador do Coxipó neste momento, ou seja, meados do século XX, não tivesse ainda uma visão do ser cuiabano, assim me relataram tanto Sr. Zanorf quanto Sr. Altair Pedroso. Eles disseram que para chegar ao atual centro de Cuiabá os moradores coxipo-nenses que estudavam nas escolas de lá iam a pé e cortavam trechos de propriedades rurais até alcançar a região do Morro da Luz. No trecho da atual Av. Fernando Correa havia poucas casas e maior parte era composta de áreas rurais com chácaras ou sítios. Embora já existisse a divisão do Coxipó em lado de cima da ponte e lado de baixo este chamado de Coxipó da Ponte, por ter maior povoado próximo do Rio Coxipó, existia o isolamento com o núcleo urbano de Cuiabá que na época era constituído do Centro histórico e do bairro do Porto. A maior dificuldade para os moradores dos dois lados do Coxipó, segundo Zanorf, era trans-porte para ir ao centro estudar ou para algum tipo de divertimento como o cinema, que na época era uma das principais atrações para entretenimento. O transporte só chegou à região na década de 1960. Até 1965 rodava uma jardineira de propriedade de Nagib Saad que fazia o trecho entre o centro de Cuiabá e a cidade de Santo Antonio do Leveger. Ainda nos anos 60, passou a operar uma linha com um ônibus de propriedade de João Lopes que saía de frente a Santa Casa da Misericórdia até a atual praça Emanuel Pinheiro no Coxipó da Ponte. A partir de 1974, o ônibus do Gil, passou a operar na linha em três horários distintos: um de manhã, outro ao meio dia e outro à tarde (Revista Coxipó 70 anos, 1999:15).

Se o contato entre os moradores do Coxipó com o centro da capital era complicado, o mesmo não acontecia entre os moradores dos dois extremos do Coxipó. Seu Altair Pedro-so e Seu Zanorf relatam que estudaram no colégio Souza Bandeira, na época localizado na mesma área onde hoje está a Escola Estadual Raimundo Pinheiro. Eles dizem também que a convivência era muito boa entre os moradores do lado de cima e os do lado de baixo do Rio Coxipó a não ser por algumas rixas entre jovens que, reza a lenda, não aceitavam que garotos de um lado namorassem meninas do outro lado do rio. Segundo o que deu para observar pelos relatos destes moradores antigos, as famílias mais influentes da região residiam na parte de baixo, ou Coxipó da Ponte e por toda a região notam-se as homenagens a nomes que compunham as duas famílias mais importantes consideradas por seu Zanorf como fundado-ras da comunidade do Coxipó: os Pinheiros e os Dorileo. O bairro Chácara dos Pinheiros que por relatos de seu Altair Pedroso e se João Pinheiro (filho de José Pinheiro) é homenagem à família Pinheiro que usufruía de uma praia à beira do Coxipó para lazer e ali foram se insta-lando. Seu José Pinheiro, descendente direto desta família, diz que seu pai tinha uma olaria na localidade de Parque Ohara próxima dali. A Escola Raimundo Pinheiro é uma homenagem a seu tio que era um comerciante de bolicho no Coxipó da Ponte, além de político e um dos fundadores da comunidade do Coxipó da Ponte. Seu Emanuel Pinheiro foi homenageado com seu nome na praça central do Coxipó, localizada logo após a ponte. Para Antonio Dori-leo ou Totó Dorileo, importante comerciante da região, foi dada em homenagem: a avenida que dá acesso à Av. Fernando Correa e ao São Gonçalo Beira Rio.

Fica evidente que existe uma memória viva na localidade. Segundo relatos, a popu-lação era unida e alegre. Segundo Zanorf, a região era pacata e o poder público de Cuiabá pouco se fazia presente. Alguns se identificavam como cuiabanos, ou como diz seu Zanorf,

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o coxipoano. Tinha de tudo no Coxipó segundo os entrevistados, pois suas roupas eram confeccionadas ali mesmo, os bolichos supriam o comércio e havia fartura na pesca pelo Rio Coxipó.

Existia na região do Coxipó da Ponte mais ao sul e isolada uma comunidade conhe-cida como A Volta (próximo a saída para Santo Antonio do Leveger) onde os moradores tinham seu próprio comércio, celebravam festas religiosas e tinham como lazer a prática de corrida de cavalo, segundo relato de seu José Pinheiro.

Comunidade São Gonçalo Beira Rio: uma história à parte na região do Coxipó da Ponte

O São Gonçalo Beira Rio é uma comunidade que em meados do século XX fazia sua historia à parte, tinha mais contado com o núcleo urbano de Cuiabá do que como a comunidade do Coxipó. As razões estariam também na questão da dificuldade de contato. Perguntado sobre a identidade com Cuiabá, o morador Odenil Valeriano diz que sempre se considerou cuiabano, mas os mais antigos costumavam variar essa idéia alguns se diziam co-xiponenses, outros pela questão municipal, pelos contatos e influências, assumiam-se como cuiabanos. Segundo Odenil um tio dele sempre dizia “vou para Cuiabá”, referindo-se ao cen-tro da capital. Há algumas controvérsias quanto a ligação dos moradores de duas comuni-dades nos relatos dos ribeirinhos de São Gonçalo. Julia Rodrigues moradora de nascença diz que quase não havia interação com os moradores do Coxipó e suas festas eram bastante individuais, muitas vezes sem participação nenhuma de gente de fora devido a dificuldade de acesso. O Sr. Ivo Pereira, outro antigo morador, confirma a dificuldade de acesso dizendo que a estrada que ia para o Coxipó passava dentro de propriedades rurais e era necessária autorização para passar por duas porteiras, o maior contato era mesmo com a Cuiabá urbana pela navegação em canoas até o bairro do Porto, mas ele mesmo costumava ir ao Coxipó fazer compras nos bolichos, principalmente de roupas. Seu José Pinheiro afirma que os mo-radores do Coxipó sempre participavam dos festejos de São Gonçalo. Para Seu Ivo Pinheiro, um momento que ficou marcado foi quando pegaram a jardineira para o centro de Cuiabá para acompanhar pelo radio, lá na Av. Getulio Vargas, os jogos da Copa de 1970. O São Gon-çalo, pelos relatos de seus moradores, estava mais ligado culturalmente à Cuiabá também por causa do Siriri e o Cururu, ambos fazem parte de sua tradição tendo como primeiro grupo o “Chapéu de Palha” que durou por mais de 50 anos até 1996, e que tinha como componentes: Seu Basílio, sua esposa Maria Leite, a filha Julia Rodrigues, mais recentemente, e o finado Seu Cândi que cantava e tocava viola, entre outros.

São Gonçalo Beira Rio tem sua história ligada ao século XVIII, quando na região fora instalado o primeiro acampamento de bandeirantes comandados por Pascoal Moreira Ca-bral até a subida do Rio Coxipó. A localidade denominada por eles de Forquilha foi onde fundaram um arraial com mesmo nome ao encontrarem ouro na região (hoje Coxipó do Ouro), com a descoberta de ouro por índios no córrego Prainha os bandeirantes deslocaram--se para aquela região e ali fixaram o Arraial de Bom Jesus de Cuiabá. A esta altura os dois primeiros povoamentos se mantiveram com minúsculas populações que vivam de economia de subsistência através de roças.

O pequeno núcleo de São Gonçalo abrigava uma população voltada para a eco-nomia de subsistência garantida pelas roças de gêneros de abastecimento e pela pesca. O São Gonçalo Velho ficou assim conhecido quando as autoridades eclesiásticas e civis transferiram a capela de São Gonçalo para o Porto geral de Cuiabá no século XIX, tornando-

-se freguesia de São Gonçalo do Pedro II(hoje Paróquia São Gonçalo do bairro do Porto) (VOLPATO, 1999: 05).

São Gonçalo mantém ainda hoje uma tradição cultural e econômica muito forte liga-da à produção artesanal de cerâmica e à pesca. Nota-se que apesar das alterações de infra--estrutura, como água encanada, eletricidade, novas atividades econômicas como peixarias e até um clube, o modo de viver da maioria dos moradores ainda é característicos da tranqüi-lidade e do trabalho artesanal.

A cerâmica ainda é umas das maiores fontes de renda dos ribeirinhos de São Gonçalo e que segundo Julia Rodrigues, que nasceu e viveu sempre ali (hoje ela ocupa a presidência da associação de moradores do bairro), o desenvolvimento de Cuiabá desde a segunda me-tade do século XX foi um dos responsáveis por um melhor poder aquisitivo dos ceramistas. Antigamente, até a década de 70 e chegando a de 80 comercializava-se tanto os utensílios e cerâmica como o pescado praticamente no mercado do Porto e sendo feito o trajeto a canoa como já citado levava mais de hora para cumprir o percurso. Hoje vem gente de lugares do Estado e até de outras regiões do país e eles podem adquirir os utensílios dos ceramistas na loja de artesanato local. Julia fala que muitos artesãos locais chegaram a fazer cursos profis-sionalizantes em instituições como SENAC e SEBRAC, mas adverte que o profissional deve conhecer todas as técnicas e questões ambientais ao impacto do trabalho ceramista, para não tê-lo como perdido.

Se o artesanato recebeu incremento, não se pode dizer o mesmo da pesca, forte traço do ribeirinho de São Gonçalo. Julia Rodrigues afirma que décadas atrás não vencia o excessi-vo número de pescado nas águas do Rio Cuiabá. O pescado era exposto ao sol e curtido com caldo de laranja azeda e sal, daí era preparado um prato típico da região: o peixe seco com mandioca. Outros pratos típicos relatados nas entrevistas foram: a paçoca de peixe seco com sabor semelhante ao do bacalhau e a feijoada de paçoca de peixe. Ela atribui muito a queda no pescado à instalação de dragas na região já existentes desde o início dos anos 80 e a po-luição das águas do Cuiabá. O pescador teve uma queda no seu rendimento, principalmente por conta da pesca predatória que forçou o defeso da Piracema.

Dentre as festa locais predominava a religiosidade católica. A mais importante das festas ainda é a de São Gonçalo, comemorada em 10 de janeiro. Teriam inicio através das moradoras Lurdes, Derci e Terezinha há mais de 50 anos. Comemora-se também as festas a São João, São Pedro e a rota do peixe. Celebrações religiosas eram feitas até poucos anos nas residências, por falta de uma capela. Havia também tradições nas festas de outros gê-neros, como nos aniversários, costumava-se comemorar com o tradicional chá com bolo, bem cuiabano e brincadeiras de roda. Para animar as noites costumava-se fazer serenatas e bastante prosa em rodas de amigos, segundo conta Seu Ivo Pereira, iluminada pelo brilho das estrelas.

Na época a comunidade de São Gonçalo era considerada dos dois lados do rio Cuiabá. O lado várzea-grandense existia uma usina de açúcar que beneficiou muitos oradores das comunidades próximas. Seu Ivo Pereira diz ter trabalhado lá como vigiador de couro de boi, usado para secar o açúcar. A usina que funcionou da segunda metade do século XIX até 1952 teria na época de Seu Ivo um quadro de 80 ou mais funcionários.

As alterações de infra-estrutura na região trouxeram transformações bem distintas entre os moradores do Coxipó e os do São Gonçalo. Nota-se hoje no Coxipó uma expansão da iniciativa privada que praticamente descaracterizou aquela paisagem harmoniosa e pacata da região que predominava até meados do século XX. Comparada as condições de comuni-

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dade tranqüila e de harmonia que Zanorf e Altair Pedroso relataram referindo-se ao Coxipó de meados do século XX, criou-se um status de cidade onde as pessoas não conhecem mais um vizinho e o distanciamento geográfico de bairros tirou aquela característica de festivida-des entre os moradores locais. Um complexo industrial, grandes núcleos habitacionais e uma avenida justamente no trecho da Praça Emanuel Pinheiro, onde à sombra de uma grande figueira comerciantes de fora estacionavam seu carros de boi, tem hoje um dos pontos mais críticos de trânsito na capital.

São Gonçalo ainda hoje mantém o aspecto tranqüilo e suas tradições bastante pre-servadas, os moradores apontam tanto vantagens como prejuízos com o expansionismo urbano a estilo dos grandes centros do sul do Brasil dos anos 60 e 70 que chegou à região neste período. A eletricidade trouxe maior conforto e todos confirmam que depois da che-gada da televisão praticamente acabou-se as rodas de prosas e água encanada não significa que houve melhora no abastecimento de tal serviço, pois constantemente a falta d’água na região. Seu Ivo Pereira aponta que as peixarias instaladas na entrada do bairro melhoraram o comércio e a instalação da loja de artesanato contribuiu para o aquecimento nas vendas dos ceramistas.

Na década de 1960, o grupo político dirigente do Estado de Mato Grosso, sente-se abalado, não só pelo crescimento da cidade de Campo Grande, candidata a ser a nova Capi-tal do Estado, como também pelas mudanças ocorridas anteriormente em Goiás e em Minas Gerais, onde as capitais coloniais perderam o status de capital. O moderno afirmou-se como apanágio do novo, diferente do velho, que independentemente da sua qualidade, tornava-se ultrapassado.

No centro de Cuiabá, a derrubada de muitos prédios centenários e coloniais deu lugar às edificações verticais ou modernas. A expansão urbana foi levada às regiões leste e sul do município, tendo já na década de 1970 integrado com o Coxipó do lado de cima da ponte, que ficou na região leste e o Coxipó da Ponte na região sul. Zanorf diz que a primeira ponte de concreto erguida sob o Rio Coxipó data de 1958, e, junto com a instalação da Uni-versidade Federal de Mato Grosso, em 1970, foram os pontos iniciais para a modernização padronizada ao estilo sulista brasileiro, pois se instalaram muitas famílias vindas dos sudeste e sul brasileiro principalmente quando da criação dos núcleos habitacionais como o Tijucal, Cophema e Parque Cuiabá, ou ainda instalação de empresas por grupos vindos de outros estados.

Bibliografia

Fontes Orais:

Zanorf Leite, Atair Garoy Pedroso, João Pinheiro, José Pinheiro, Julia Rodrigues, Ivo Pereira Odemil Valeriano.

Estudos

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LACERDA, Leila Borges de. Catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: um olhar a sua demolição. Cuiabá: KCM, 2005.

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Do Estado-Nação ao Estado Plurinacional:

o caso da Bolívia pós 2008

Fl ávio ConChe do nasCimenTo1

A diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” [...] Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade, hetero-geneidade e hibridismo, sendo vista como enriquecedora. (SILVA, 2007: 50)

Este artigo resulta num esforço da tentativa de entendimento do atual Estado boli-viano, considerado aqui como potente objeto de reflexão no tocante as diferentes formas de estabelecimento e manutenção de identidades, citadas como em permanente processo de re-significação. Embora conceituais e exatamente investigadas partindo de suas possibi-lidades de conceitualização, continuarão dentro de possibilidades, portanto, em questões cabíveis de mudanças e movimento

Em outubro de 2008 foi promulgada a atual Constituição do Estado Plunacional Del Bolivia, pautada em ideais Pluriétnicos e amplamente ligada aos processos de reivindicações dos movimentos sociais indígenas e laborais.2

A atual Constituição não será aqui esmiuçada sob um prisma formalmente jurídi-co, mas sim considerada como fruto e tentativa de pensar uma nova sociedade. Portanto, embora tenhamos que buscar no Direito algumas de suas discussões para o entendimento

1. Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.2. Falar em índio não pode ser confundido em comparações que muito mais impedem o entendimento do que o instru-

mentaliza, falo aqui de um indígena do campo e urbano, participante de sindicatos e tendências políticas, construtor de Partidos e “tradicional”, em uma relação onde temporalidades se mesclam em processos distintos, embora não necessa-riamente desarmônicos.

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do aparato legal, não é ele (não somente) quem fornece as principais ferramentas ao escla-recimento disto enquanto processo. Tal diploma é por mim visto como movimento, onde discursos sobre certezas e idéias imutáveis não são negligenciados, mas problematizados no trânsito em que são efetivados. Ademais, concebemos o direito como produto de relações sociais concretas, de tal forma que iremos considerar transformação e estrutura como pontos que não são necessariamente contrários, mas que se opõem.

Na medida em que observamos o Estado Pluriétnico, considerando a pluralidade étni-ca enquanto potencial de transformação, não se pode deixar de lado o entendimento sobre algumas características do Estado-Nação, pois é este aquilo que a atual Bolívia diz não querer ser, portanto, aquilo que de alguma forma esta também se identifica.

Inicialmente devemos informar a incipiência do Estado Pluriétnico, bem como da fragilidade do Estado-Nação, assim como da necessária interlocução entre pluralidade/mul-ticulturalidade e políticas da diferença, informando ainda que o Estado-Nação já se mostra incapaz de dar conta da diversidade presentes nos diferentes Estados, uma vez que:

Redefinir a vida humana, configurada na historicidade de sujeitos singu-lares e coletivos com dignidade, com identidade e com reconhecimento à diferença, implica ter consciência e lutar contra imposições padronizadas que caracterizam a sociedade mundial, estremecidas com o enfraqueci-mento dos Estados-Nacionais. (MARTÍNEZ, 2008: 183)

A diferença sobre a ótica da retórica da multiculturalidade mostrou ter potencial de camuflar as desigualdades, tendo sido importante para o Estado Moderno se utilizar disto como mera retórica, visto que diferentes identidades foram arbitrariamente encaixadas em normativas que historicamente não se relacionaram tranquilamente com a diferença - na medida em que esta já criara certo desconforto, ameaçando alguns dos ideais ocidentais para pensar a nação3.

A atual Constituição Boliviana se origina dentro de um quadro que expressamente propõe rupturas com padrões constitutivos dos Estados balizados em pressupostos eurocên-tricos. Já em seu primeiro artigo encontramos a seguinte passagem acerca da definição do Estado da Bolívia: “Constitui um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional, comunitá-rio, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autono-mias” (grifo nosso). No segundo parágrafo do mesmo artigo encontramos:

[...] dada a existência pré-colonial das nações e povos indígenas originários campesinos e seu domínio ancestral sobre seus territórios, será garantida sua livre determinação [...] que consiste no direito a autonomia, ao au-togoverno, à cultura, ao reconhecimento de suas instituições e entidades territoriais (CF. Boliviana, 2008). (grifo nosso)

Repare que a questão do pluralismo étnico não aparece em qualquer ponto do docu-mento. Diferente do discurso da multiculturalidade mais usual (feito pelo Estado Ocidental), sua existência, no caso boliviano, não ganha menção de forma programática ou “pontual”,

3. Embora saiba o risco desta simplificação, é aqui brevemente apresentada como conjunto de práticas que culturalmente são aplicadas em uma estrutura de organização social que, embora não necessariamente anulem as diferenças, criam ou legitimam práticas em comum e de onde um território é visto como “lar” - portanto, não sendo sinônimo de nenhuma forma de Estado.

mas é apresentada logo no início do texto legal, dando conta da centralidade da questão para aquele país. Tal característica, se considerada a ótica do Estado-Nacional e de um direi-to, “menos formal”, indica um esforço nesse propósito, construindo uma nova configuração da população , apresentando o pluralismo como algo que não necessariamente o contraria – sem negar a participação dos povos originários e da existência da nação- mas “pluralizan-do” seu ambiente, desconectando-se da similaridade com os chamados Estados imperfeitos, denominação essa que já fora muito usual por parte da ciência política ao tratar a heteroge-neidade como fragilidade de Estados ainda em fase formativa.

É certo que não podemos enxergar o direito positivo (escrito) como algo tranquila-mente aplicável visto que vivemos cotidianamente situações onde fica evidente a reduzida efetividade de algumas medidas jurídicas. Como bem assevera Bobbio:

[...] Apesar das inúmeras tentativas de análise definitória, a linguagem dos direitos permanece bastante ambígua, pouco rigorosa e freqüentemente usada de modo retórico. Nada impede que se use o mesmo termo para direitos apenas proclamados numa declaração, até mesmo solene, e direi-tos efetivamente protegidos num ordenamento jurídico [...] uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente. A linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função prática, que é empres-tar uma força particular às reivindicações dos movimentos que deman-dam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos. (BOBBIO, 1992: 09-10)

Inobstante a essas considerações podemos afirmar que não se trata de uma negação à postura de organização estatal, mas sim uma re-significação, com a diversificação dos con-teúdos presentes nesse contexto, o que até bem pouco tempo era absolutamente negado. Assim, podemos refletir sobre a intensidade de tais diferenças: até que ponto falamos de rup-tura e onde a mesma pode ser vista como continuidade? Qual a real efetividade de tal plano? A resposta, com certeza, passará pelo entendimento dos movimentos sociais envolvidos no processo - pressupondo embrionário, antevendo-se em algo lento e gradual de mudança institucional.

A afirmativa feita anteriormente pode parecer lógica, mas não é. Afirmar a processu-alidade do fenômeno implica em perceber que alguns grupos tratam-no como imutável ela-boração discursiva, onde poder de fato e de direito são fortemente ligados a uma “verdade” baseada em idéias de consenso, em contato umbilical entre identidade e poder de um grupo predominante ou mais influente, partindo destes o aval para se dizer o que é.

Considerar o que é em diálogo com a transformação é também dar voz para outras formas de consensos, potencializando outras “verdades”, de tal sorte a pluralizar os territórios e dinamizar as organizações. O Estado Pluriétnico, se visto sob a ótica da reivindicação, não é somente a pluralização, mas também a voz do plural-marginal: este não necessariamente pluraliza, em um território onde a tempos existem tais povos, o aparecimento é literalmente aparecimento, sendo a redundância conseqüência da voz marginalizada que conquistou es-paço (pois já existira desde antes).

Uma afirmação com relativo consenso é citar que não foram poucas as tentativas de incorporar o indígena à comunidade nacional, visto ser possível, não entrando no desgaste da polêmica, mas dando sua devida importância, vale a pena nos apegarmos com a idéia que a própria incorporação implícita, ou seja, o dentro e o fora.

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[...] admitindo que a sociedade ora denominada Estado é, na sua essência, igual à que existiu anteriormente, embora com nomes diversos, dá essa designação a todas as sociedades políticas que, com autoridade superior, fixaram as regras de convivência de seus membros. (DALLARI, 1995: 43)

Logicamente que esta não é a única forma de enxergarmos o conceito de Estado, mas sim uma que nos permite rapidamente fazer a ponte com a pluralidade posta aqui em dis-cussão. A língua e as tentativas de controle sobre as variações de signos e significados, a com-plexidade em torno da territorialidade, o monopólio da violência e da tributação, a própria organicidade atribuída a um centro, de onde vêm ou por onde passam os avais para as regras de convivência social, entre outras, foram marcas do Estado Ocidental, sinônimo de Estado--Nacional e difusor da “igualdade” e democracia moderna, embora esta não necessariamente represente em sua totalidade a diversidade conceitual de Estado e nação.

Faz-se interessante também relacionar esta “ausência” de respostas com algumas an-gustias que de alguma forma apresentaram-se a ela como ameaça. Quando se fala em crise deste modelo de Estado, também é possível relacionar sua crise de identidade, neste caso, sendo a relação de identidade nacional, mais precisamente nacionalidade com a estrutura adotada pelo Estado. Cogita-se um drama:

[...] os principais atores [...] são ‘termos de comércio’, ‘demandas do mer-cado’, ‘pressões competitivas’, padrões de ‘produtividade’ e ‘eficiência’, to-das encobrindo ou negando de modo explícito qualquer conexão com as intenções, a vontade, as decisões de pessoas reais, dotadas de nomes e endereço. (BAUMAN, 2005: 54)

É comum escutarmos que enquanto a classe social era o paradigma predominante nos estudos sociológicos (da mesma forma que os Estados nacionais sofriam poucas críticas) era possível afirmar a existência de uma identidade “mais una”. Seguindo este apontamento, passaremos agora a contextualizar o caso boliviano.

Na década de 1950 ocorreu na Bolívia a chamada Revolução de 52, um processo de transformação social que permitiu a constituição de um Estado administrador/gerente, esta-tizante, recebendo de forma significativa para a época as demandas oriundas da voz indígena. Ainda diante de uma menor ou maior participação destes povos, fato é que os mesmos fo-ram cruciais para o processo provocado por dito movimento. Feita essa consideração, no que se refere à nossa discussão do momento, é importante brevemente trabalharmos o “acesso” que estes grupos tiveram no Estado boliviano.

Foi na década de 50 que ocorrera o denominado campesinamento dos indígenas na Bolívia, que consistiu num esforço de torná-los camponeses. Este processo é aqui citado evi-denciando o temor da estrutura estatal com a falta de vinculo de pertença nacional do índio - até o momento inexistente, visto que ser indígena era sinônimo de ausência de patriotismo, sob a ótica do Estado-Nação, ameaçando a integração e integridade da comunidade nacio-nal, ao passo em que o campesino estaria mais próximo de trabalhador do campo do que ao nativo, esse último menos sujeito às formas de controle do Estado.

Não menos importante é enxergar os anos 50 como marco do estabelecimento do índio político, pois este, embora mergulhado na marginalidade desde os tempos coloniais, também estabeleceu contatos com práticas sócio-políticas que aos poucos foram incorpo-radas a sua realidade – falo especificamente da formação de grandes cooperativas mineras,

agrupações sindicais, proximidades práticas e conceituais entre etnia e classe, construindo novos sujeitos e estreitamentos entre idéias oriundas de processos e territórios distintos.

Avançando duas décadas, pode-se dizer que os anos de 1980 não foram específicos apenas no caso boliviano. Houve reiteradas interferências econômicas na Bolívia que carac-terizaram medidas freqüentes para os chamados países subdesenvolvidos ou em desenvolvi-mento – áreas como a América Latina, Europa Oriental e parte da Ásia. Ocorreram tentativas e consolidações de interferências comumente identificadas pela redução de autonomia dos Bancos Centrais em relação às regulamentações dos sistemas financeiros; dolarização de suas moedas; desregulamentação do mercado interno e interdependência dos financiamentos internacionais contratualmente atrelados às políticas restritivas de direitos sociais.

Segundo alguns estudiosos, a dívida externa dos países em desenvolvimento sofreu grandes acréscimos durante o período de 1980 à 1994, o que provocou a desestruturação de setores vulneráveis de muitas sociedades latino americanas. Ainda que:

[...] incorporando um discurso altamente moral e ético, que se concentra no ‘desenvolvimento sustentável’ e na ‘diminuição da pobreza’ [...] Esse enfo-que ético e as questões subjacentes (por exemplo, diminuição da pobreza, questões ligadas a gênero, equidade, etc.) [...] fornecem uma aparência de compromisso com as mudanças sociais. (CHOSSUDOVSKY, 1999: 34-35)

Por mais divergentes que possam ser as orientações político-econômicas, há um con-senso na percepção que tais medidas não possibilitaram efetivamente o desenvolvimento para a Bolívia. Com base em dados estatísticos, pode-se observar uma diminuição drástica do emprego no período pós 80, em razão de uma reorientação produtiva inegavelmente excludente. Na busca de trabalho, diversos bolivianos passaram a se deslocar no interior do país, ou imigraram internacionalmente, sendo expressivo o seu afluxo para o Brasil. O Estado boliviano se deparou com uma economia interna fragilizada pela ineficiência de vários pla-nos, passando a administrar uma informalidade crescente.

Ao estudar o Estado boliviano, podemos verificar que 1950 e 1980 não podem ser pensados sem considerarmos a marginalização do índio - visto como sinônimo de pobreza e parte da análise de uma diferença amplamente ligada às relações que envolvem o poder. A Constituição Boliviana assumindo o Estado como Plurinacional, embora não seja impermeá-vel a possibilidade de críticas, disponibiliza novas faces para este processo.

Cogitadas como sinônimos Pluriétnico e Plurinacional, não se pode também dissociar a categorização de etnia do poder de quem a conceitualiza. Para exemplificar a reflexão, pen-semos em etnia e na relação que esta tem com a população de ascendência branca, sendo importante referir que nos é pouco familiar a referência a etnia branca, visto que na América Latina, quase sempre, quando é pensada a etnia, somos remetidos aos grupos negros, mesti-ços e indígenas, uma vez que:

[O] processo de adiamento e diferenciação lingüísticos por meio do qual elas (as identidades) são produzidas, está longe de ser simétrico [...] isso significa que sua definição [...] está sujeita a vetores de forças, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmonicamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas [...] A afirmação da identidade e a enunciação da di-ferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente

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situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais.[...] questionar a identidade e a diferença com relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam. [...] normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. (SILVA, 2007: 81) (grifo nosso)

Nas palavras do autor, embora o normal e o anormal tenham entre si dependências, não se pode garantir que ambos tenham o mesmo poder de definir. Normal e anormal estão inseridos em uma relação de poder diferenciados, de tal sorte que é o normal quem claramente “sustenta” a estrutura (as instituições, como exemplo, o próprio Estado). Esta afirmação lida com uma idéia de hegemonia e normatizações, onde o normal é visto como topo e, embora o anormal tenha ampla ligação com a estrutura (que o nega), é esta última o sinônimo de normal e não o contrário.

Por fim, neste caso, a identidade aparentemente oscila entre dois movimentos: de um lado estão aqueles processos que tendem a fixar e estabilizar a identidade; de outro os que tendem a subvertê-las e desestabilizá-las.

Faticamente a atual Constituição da Bolívia representa o desejo da coletividade de reconhecer a diversidade, típica de seu contexto social, de tal sorte a provocar transforma-ções efetivas no próprio conceito de Estado e conseqüentemente de ser boliviano, o que inegavelmente somente será alcançado com a conscientização da coletividade, bem como a organização dos diferentes grupos e segmentos sociais, de tal sorte a efetivamente trans-formar os dispositivos constitucionais em realidade efetiva, o que inegavelmente demandará um longo processo.

Bibliografia:

Livros:

BAUMAN, Zygmunt: Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2005.BOBBIO, Nobert: A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.CAMARGO, Alfredo José Cavalcanti Jordão: Bolívia – A Criação de um Novo País a Ascensão do Poder Político Autóctone das Civilizações pré-Colombianas a Evo Morales. Brasília: FUNAG/Minis-tério das Relações Exteriores, 2006.CHOSSUDOVSKY, Michel: A globalização da pobreza: impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial; tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Moderna, 1999.COSTA, Rogério Haesbaert da: O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterri-torialidade. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2006.DALLARI, Dalmo de Abreu: Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1995.HALL, Stuart: A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

MARTÍNEZ, Alejandro Rosillo... [et al.]: Teoria Crítica dos Direitos Humanos no Século XXI. Porto Alegre: EDIPURCRS, 2008.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org.): Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de

Fontes Impressas:

ALMEIDA, Miguel Vale de: Estado-Nação e multiculturalismo. Disponível em: http://manifesto.com.pt/pdfs/m16.pdf. Acesso em: 18 jul. 2010.

BOLÍVIA. Nueva Constitución Política Del Estado – Asamblea Constituyente de Bolivia. Congreso Nacional, 2008. Disponível em: <http://www.bolivia.de/es/noticias_imagenes/nueva_cpe_tex-tofinal_compatibilizado_version_oct_2008.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2010.

Fundo Monetário Internacional em espanhol: http://www.imf.org/external/spanish/index.htm. Acesso em: 20 set. 2009.

GONÇALVES, L.A.O.; SILVA, P.B.G.: O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. Disponível em: <http://www.google.com.br/#hl=pt-br&source=hp&q=o+jogo+das+diferen%C3%a7as+multiculturalismo+e+seus+contextos&aq=1&aqi=g2&aql=&oq=o+jogo+das+diferen&gs_rfai=&fp=55ed94796e412f06>. Acesso em: 20 jul. 2010.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de: Plurinacionalidade e cosmopolitismo: a diversidade cultural das cidades e diversidade comportamental nas metrópoles. Disponível em: http://jusvi.com/arti-gos/42486. Acesso em: 18 jul. 2010.

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Contribuições da Fronteira de Sérgio Buarque de Holanda

Gabriell a lima de assis1*

Introdução

A obra Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda é um estudo acerca da ocupação territorial promovida pelos bandeirantes paulistas a partir do século XVII. Por meio, principalmente, das atas da Câmara da vila de São Paulo, como também de algumas cartas jesuíticas, inventários e testamentos, o autor descreveu, nesta obra, o pioneirismo paulista no processo de expansão territorial, focando a cultura material resultante dos caminhos percor-ridos e das fronteiras formadas a cada novo contato com nativos.

O foco da discussão deste artigo é construção do conceito de fronteira feita por S. B. de Holanda na obra citada. Pretende-se aqui, através da análise da narrativa de Caminhos e Fronteiras, saber das contribuições desta fronteira para a formação e consolidação da nossa sociedade.

Para tanto, apresentaremos em primeiro lugar sucintamente S. B. de Holanda e sua relação com a historiografia brasileira, em seguida algumas discussões sobre a teoria da fron-teira de Frederick Jackson Turner, dada a sua importância para o entendimento da fonte em questão, e por fim, mais longamente percorreremos trechos da obra e da bibliografia tomada como referência para concluir nosso objetivo.

1. Mestranda em História da Universidade Federal de Mato Grosso, bolsista Capes.

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O historiador paulista

A escolha de Caminhos e Fronteiras como nossa fonte está relacionada ao peso do dis-curso de S. B. de Holanda para a historiografia brasileira. Na visão de José Carlos Reis (2007), o nosso autor parece ter sido um “intelectual feliz”, nascido em São Paulo em 1902, se tornou catedrático de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, publicou obras muito importantes, que não criam polêmicas e tensões graves, e é sempre lembrado como o modelo de historiador brasileiro.

Segundo seus biógrafos e analistas, S. B. de Holanda possuía enorme erudição em ciên-cias sociais, literatura e artes. Ainda na Alemanha, onde trabalhou como jornalista, escreveu um livro sobre o Brasil intitulado Teoria da América, que deu origem mais tarde a publicação de Raízes do Brasil em 1936. Já no Brasil como professor na Escola de Sociologia e Política e na Universidade de São Paulo, publicou Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão de Paraíso (1959).

S. B. de Holanda é identificado como tendo um projeto de pensar o Brasil moderno, para tanto rompeu com a historiografia tradicional produzida pelo Instituto Histórico Geo-gráfico Brasileiro. Se durante o século XIX “a realidade brasileira excluía e o pensamento his-tórico a legitimava, agora a realidade continua excluindo, mas sem a legitimação cúmplice do pensamento brasileiro” (REIS, 2007: 118) que, a partir da década de 1930, passou a defender a inclusão dos indígenas, negros e mestiços na história nacional, acreditando que o Brasil não poderia caminhar modernamente excluindo sua própria população do acesso a cidadania.

Sendo assim, o pensamento de S. B. de Holanda concedeu importância para a con-tribuição daquelas populações, que pelo diálogo na fronteira com outros grupos permitiu a formação da nossa nação compósita.

A teoria da Fronteira

Para Robert Wegner (2000), a adaptação ao ambiente da fronteira e o retorno ao primitivo são momentos importantes da tese de Frederick Jackson Turner sobre a História americana, da qual partiu S. B. de Holanda para a escrita da obra Caminhos e Fronteiras.

Ao se distanciar de uma explicação genética que postulava a origem de toda institui-ção norte-americana como sendo tão somente européia e germânica, F. J. Turner propôs a introdução do elemento da fronteira para explicar sua tese da nação americana como uma nação compósita formada por meio da adaptação e do retorno ao primitivo.

No caso de S. B. de Holanda, a associação ao conceito de fronteira permitiu a elabo-ração de um modelo explicativo para o Brasil que, por um lado passou a privilegiar o legado das populações nativas para a história da nossa nação, e por outro efetivou a superação da antiga historiografia que ressaltava somente as nossas raízes ibéricas.

Para Turner, a fronteira nos Estados Unidos era a linha divisória entre a terra povoada e a terra livre, bem como entre o civilizado e o primitivo. Para este autor, a especificidade da fronteira americana estaria na sua dinâmica. Sendo a fronteira emancipadora, ela libertaria os pioneiros das pressões da tradição e permitiria a experimentação de práticas e instituições melhor adequadas às necessidades criadas pelo ambiente fronteiriço.

Para S. B. de Holanda (1994: 12-13), a fronteira no Brasil era também uma fronteira cul-tural “entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos

ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos ele-mentos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados”.

De modo mais pontual, o núcleo da tese de F. J. Turner “compreende a dinâmica da fronteira que pode ser esquematizada em três estágios distintos” (WEGNER, 2000: 100), que levaria sempre à transformação do ambiente como também do pioneiro na fronteira propi-ciando a formação do americano.

O primeiro momento é o da adaptação do pioneiro ao ambiente e aos nativos. O adventício é levado pelas circunstâncias a aprender com os nativos meios e técnicas para não ser dominado pelo ambiente forte e hostil da fronteira.

O segundo momento na fronteira é o da transformação na qual a retomada do legado europeu permite tanto a modificação do ambiente quanto a transformação do pioneiro.

Por último, o terceiro momento é o resultado da própria dinâmica da fronteira, a consolidação do povo americano como fruto do rearranjo da tradição européia sobre um fundamento de adequação aos padrões primitivos.

No caso de Caminhos e Fronteiras, como S. B. de Holanda (1994: 12) explicou na sua introdução, que “a própria divisão em três seções distintas procura, nele, obedecer a uma seqüência natural”. Na seção “Índios e Mamelucos” o autor trabalhou o contato entre a po-pulação adventícia e os naturais da terra, bem como a subseqüente adoção pelos adventí-cios de utensílios e técnicas indígenas. Na segunda parte intitulada “Técnicas Rurais” foram abordadas a herança indígena especialmente para as atividades agrícolas. E na terceira seção “O Fio e a Teia” estão descritas as atividades com tendência a utilização em meios urbanos.

Contribuições da Fronteira de Sérgio Buarque de Holanda

Para explicitar quais são as contribuições da fronteira de S. B. de Holanda para a histó-ria do Brasil precisamos entender, primeiro, as motivações da migração paulista, uma vez que formação da fronteira ocorreu durante as viagens dos bandeirantes para o sertão. Também precisamos compreender os hábitos paulistas que foram transformados durante a migração, para assim, verificarmos como a fronteira marcou a nossa sociedade.

De maneira mais específica, S. B. de Holanda em Caminhos e Fronteiras analisou São Paulo nos tempos coloniais, que são privilegiados para descobrir as raízes mais fundas da pe-culiaridade deste como o pólo modernizador do Brasil. O trecho a seguir foi selecionado da passagem que abre a segunda seção da obra, ela reforça São Paulo como o objeto de estudo da fonte em questão e, ao dizer do fenômeno lingüístico, concede destaque ao papel das migrações que formaram a fronteira:

Em São Paulo, por exemplo, e nas terras descobertas e povoadas por pau-listas, que constituem de preferência o objeto do presente estudo, ates-tam numerosos documentos a permanência geral do bilingüismo tupi--português durante todo o século XVII. E há motivos para supor-se que a assimilação lingüística, favorecida mais tarde pelo crescente afluxo de imigrantes e correspondente diminuição do gentio manso, só se completou verdadeiramente nos primeiros decênios do século XVIII (HOLANDA, 1994: 155-156).

É compreensível, pela citação, o papel considerável dos migrantes para a formação e consolidação da sociedade fronteiriça dos paulistas. Da intimidade das relações entre bran-

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cos e índios, as nossas produções culturais foram enriquecidas, entre bandeiras e monções, os paulistas avançaram nossas fronteiras territoriais, contribuindo para a formação do nosso Estado.

Segundo S. B. de Holanda (1994), a sociedade constituída no planalto da capitania de Martim Afonso foi particularmente diferente dos núcleos formados no litoral da colônia portuguesa na América. A sociedade paulista avançou para além da Serra do Mar, e com ela também o Brasil. Enquanto o litoral exprimia sua riqueza na sólida habitação do senhor de engenho, os paulistas demonstraram pelas bandeiras e pelas monções que “sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na grande propriedade rural que forma indivíduos sedentários” (HOLANDA, 1994: 9).

Para Wolfgang Köllmann e Peter Marschalck (apud NODARI, 2009) as condições eco-nômicas e sociais do local de origem dos migrantes são fatores decisivos para o aparecimento de movimentos migratórios, juntamente com o esforço de remover as disparidades entre a área de origem e a de destino.

Nesse sentido, vale lembrar que preocupado em encontrar novas fontes de lucros, o governo português reforçou a busca de metais preciosos. Desde o começo do século XVII, muitas expedições se aventuravam pelo interior. A Coroa incentivava com promessas de recompensas a quem descobrisse tais riquezas. Porém, como o próprio S. B. de Holanda des-tacou na passagem que se segue, o objetivo de aprisionar índios para vender como escravos, a preços muitas vezes mais baixo que os escravos africanos, portanto mais acessíveis aos co-lonos de áreas pobres, como São Paulo o era naquela temporalidade, foi o motivo primordial, em detrimento da busca pelo ouro, das primeiras migrações paulistas em direção ao interior:

Mas não era essa riqueza que a princípio impelira os sertanistas para o re-moto sertão. Durante a maior parte do século XVII, as terras a oeste do rio Paraná foram consideradas grandes reservatórios de índios domesticados ou brabos, que os paulistas iam prear para as suas lavouras. (HOLANDA, 1994: 14)

Ainda sobre as migrações paulistas, Caminhos e Fronteiras apresentou informações acerca das vivências deles durante as entradas e sobres as experiências de adaptação no am-biente fronteiriço, como podemos perceber no seguinte trecho: “O retrocesso a condições mais primitivas, a cada novo contato com a selva e com o habitante da selva, é uma etapa necessária nesse feliz processo de aclimação” (HOLANDA, 1994: 21), como também no frag-mento selecionado abaixo:

Em São Paulo, cuja população, particularmente a população masculina, se distinguiu durante todo o período por uma excessiva mobilidade, a mistura étnica e também a aculturação, resultante do convívio assíduo e obrigatório, seja durante as entradas seja nos sítios de roça, deram ao indígena um papel que será impossível disfarçar. (...) Seu sustento ordiná-rio nas viagens, além da farinha de guerra, de que não se separavam, ao menos nos primeiros tempos, era quase somente o que dá a terra sem a lavragem, como sejam caças e frutas. (HOLANDA, 1994: 60)

Os dois trechos demonstram a concepção do autor sobre a fronteira e sobre o pro-cesso de adaptação vivido pelos migrantes paulistas. O primeiro fragmento reforça a noção de estágios existentes na dinâmica da fronteira, S. B. de Holanda destaca em sua obra que,

para sobreviver a “selva” sertaneja, o bandeirante precisou “retroceder” ao uso dos recursos indígenas, e o segundo traz a idéia da adaptação aos hábitos indígenas, especialmente no que diz respeito a alimentação.

Sobre o pioneirismo paulista no processo de expansão da fronteira, nos tempos co-loniais, como explicou S. B. de Holanda (1994), eles puderam assegurar algumas vantagens inestimáveis na migração para o sertão devido “a capacidade e o costume de vencer à pé longas distâncias, que só se explicam pela afinidade com os indígenas” (p.125)

O fragmento a seguir também revela a “superioridade” paulista nas migrações de frota comercial que, para S. B. de Holanda, garantiu a dilatação das nossas fronteiras e o aproveita-mento do nosso território:

As monções representam, em realidade, uma das expressões nítidas da-quela força expansiva que parece ter sido uma constante histórica da gen-te paulista e que se revelara, mais remotamente, nas bandeiras. Força que depois impeliria pelos caminhos do Sul os tropeiros de gado, e que, já nos nossos dias, iria determinar o avanço progressivo da civilização do café (HOLANDA, 1994: 135).

Em seu estudo sobre o processo de migração alemã e italiana para o Oeste do estado brasileiro de Santa Catarina nos anos de 1917 a 1954, a autora Eunice Nodari (2009) descre-veu como a renegociação das práticas cotidianas desses grupos migrantes ocorreram em prol da sobrevivência da etnicidade deles, mais do que uma manutenção da cultura, a atitude de renegociação prevaleceu como reação diante do diferente.

Essa atitude de renegociação também foi trabalhada por S. B. de Holanda. A citação abaixo nos lembra como os hábitos dos migrantes se transformavam ao longo do cami-nho percorrido. Podemos verificar um processo de renegociação na situação descrita por S. B. de Holanda (1994) no fragmento selecionado abaixo, que fala sobre o uso das redes indígenas:

O europeu recém-chegado adotou imediatamente o costume de dormir e descansar em redes, e em toda a capitania de São Paulo representaram elas, por longo tempo, as verdadeiras camas da terra. Ainda em princí-pio do século passado, pareceu seu uso, ao naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, um traço distintivo dos paulistas, em confronto com os mineiros, que tinham sido atingidos mais em cheio pelas influências ultra-marinas (HOLANDA, 1994: 171)

Sobre o uso dessas redes, para S. B. de Holanda (1994: 247) a sua importância para a população paulista colonial de algum modo estava associada a própria mobilidade dessa po-pulação, “em contraste com a cama e mesmo o simples catre de madeira, trastes sedentários por natureza, e que simbolizam o repouso e a reclusão doméstica”.

Outra discussão teórica importante, que amplia nossa análise da fronteira de Cami-nhos e Fronteiras, foi realizada pelo autor Paul E. Little (1994). Ele estabeleceu que o fenômeno da territorialização está associado ao espaço e a memória, enquanto o fenômeno da desterri-torialização está ligado ao espaço e a migração. Sendo assim, para ele a teoria da reterritoria-lização é esboçada pela união da memória com a migração.

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Partindo disso, a civilização do milho, trabalhada por S. B. de Holanda no terceiro capítulo da segunda seção que divide Caminhos e Fronteiras, se encaixa naquilo que Little estabeleceu como fenômeno da reterritorialização.

Durante a fase colonial, comparado a outros gêneros de alimentação, a gramínea in-dígena foi largamente utilizada em São Paulo e nas áreas de expansão paulista. A principal contribuição do milho para a dieta dos paulistas era a farinha produzida com os grãos já amadurecidos, ela foi, juntamente com o feijão e o toucinho de porco, o mantimento que obrigatoriamente ia nas expedições (HOLANDA, 1994).

A preferência dada ao milho pode estar relacionada com a própria mobilidade que, por longo tempo distinguiu os paulistas. Podendo ser transportado em grãos a distâncias consideráveis sem perder o poder germinativo, o milho tinha também a vantagem de come-çar a produzir em poucos meses após o plantio. Assim, no roteiro entre São Paulo e as minas de ouro haviam muitas roças de milho feita pelos migrantes que saiam já com a intenção de retornar (HOLANDA, 1994).

A simplicidade e a rusticidade das técnicas necessárias à elaboração dos produtos do milho, “acomodavam-se mais facilmente à vida andeja e simples de parte notável da popula-ção do planalto” (HOLANDA, 1994: 188) paulista. Para a fabricação dessa farinha de milho o pilão de madeira, também indígena, foi aperfeiçoado nos vários tipos de monjolo originários do Extremo Oriente.

Como podemos perceber, a ocupação dos espaços indígenas pelos paulistas significou um processo de reterritorialização, uma vez que, os migrantes paulistas apropriaram-se de elementos da cultura indígena manipulando e incorporando também a sua cultura de mobi-lidade. Portanto, “cada povo deslocado procura, de uma ou de outra forma, sua recolocação no espaço” (LITTLE, 1994: 11), notamos que no processo de ajustamento ao novo local, os migrantes paulistas apropriaram-se do milho indígena e foram capazes de “tornar mais efi-cazes, sem, alterá-las substancialmente, as técnicas indígenas de elaboração de um produto indígena” (HOLANDA, 1994: 189).

De maneira geral, Caminhos e Fronteiras traz uma descrição consistente, baseadas em muitas fontes, sobre a migração paulista da época colonial, que permitiu a formação de uma fronteira cultural. Primeiramente trata da empresa das bandeiras e do modo como os ser-tanistas paulistas conseguiram “imitar” os hábitos dos indígenas e mamelucos para resistir a hostilidade do meio por onde passavam. Depois descreve as monções, que partindo de São Paulo com acentuado caráter comercial desenvolveram o transporte fluvial e consolidaram um sistema de comunicação regular com o centro do continente. Enfim, focando a cultura material produzida nesses caminhos fecundos percorridos pelos paulistas, a obra de S. B. de Holanda apresentou o cotidiano dos roteiros da penetração paulista, sem a pretensão tão somente de “aplicar os esquemas de F. J. Turner às condições que se criaram no Brasil e se associaram à sua expansão geográfica” (HOLANDA, 1994, p.13), tratou das contribuições da nossa fronteira, e com isso produziu-se um texto singular na historiografia brasileira.

Bibliografia

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3ºed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

LITTLE, Paul E. Espaço, memória e migração. Por uma teoria de reterritorialização. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, Brasília, v.2, n.4, p.5-25, 1994.

NODARI, Eunici Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no Oeste de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2009.

REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9ºed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 115-143.

WEGNER, Robert. A Conquista do Oeste. A fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.

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Fonte oral como principal referência para desenvolvimento

de trabalho sócio espacial na aldeia Umutina

Gisele CariGnani1

maisa da silva do amar al2

IntroduçãoO estudo aqui apresentado baseia-se no levantamento realizado através da disciplina de

Projeto de Urbanismo II, no dia 14 de maio de 2010, pelos acadêmicos do 8° semestre do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado do Mato Grosso. Trata-se de um levan-tamento histórico, estrutural, cultural e social, realizado na Aldeia Umutina, que está localizada aproximadamente 15 km da cidade de Barra do Bugres/MT, entre os rios Bugres e Paraguai.

O estudo iniciou-se com uma visita de campo à aldeia, onde foram realizados os le-vantamentos: estrutural, socioeconômico, paisagístico, topográfico, hidrográfico e climático. Estes dados foram coletados através da aplicação de questionários, entrevistas, fotografias, mapeamento das moradias com GPS, onde a fonte oral foi de grande importância para que fossem levantadas diversas informações, principalmente sobre a cultura e tradição Umutina não registradas ou relatadas em publicações.

Origem e História do Povo Umutina

Jesus (2010) relata que “ os Umutina pertencentem ao grupo Bororo, sendo ela uma

1. Professora.Assistente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT Campus Barra do Bugres

2. Acadêmica do 9º semestre de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Barra do Bugres/MT.

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ramificação dessa grande nação indígena.” (JESUS, 2010). Contudo não se sabe ao certo como houve essa divisão, porém acredita-se que quando eles vieram da Bolívia pelo rio Paraguai aconteceu uma dispersão, fazendo assim com que um grupo se fixasse na região do rio Paraguai, enquanto os Bororos desceram o mesmo rio até o vale do rio Cuiabá, do rio São Lourenço e do rio Araguaia. “A deduzir de suas lendas, os Umutinas viviam antigamente na margem direita do rio Paraguai, aproximadamente entre os rios Sepotuba e Bugres. Sua área de domínio, entretanto, estendia-se aquelas paragens até o rio Cuiabá.” (SCHULTZ, 1952: 82).

Hoje, “a Terra Indígena Umutina está situada na área de confluência dos rios Paraguai e Bugres, no municípios de Barra do Bugres - Mato Grosso, numa faixa de transição entre a Amazônia e o Pantanal.” (CUPUDUNEPÁ, 2002: 4). A terra da reserva do povo Umutina (fi-gura 1), “[...] foi regularizada através do decreto número 98.144/89, com uma área de 28.120 hectares.” (FRANCISCO, 2004). Destes, como mostra a figura 2 “[...] apenas 500 hectares são áreas abertas, onde os índios residem, cultivam lavouras e criam animais, como: galinhas, pa-tos, suínos, ovinos, eqüinos e bovinos.” (FILHO, 2007: 2).

Figura 1 e 2 - Demarcação do Território indígena Umutina e Aldeia Umutina. Fonte: Google Earh.

Em relação à língua Umutina, Melatti (1997), relata que “os bororos não são jês. Sua língua, junto com a dos Umutinas (incluídos em outra área, a do Alto Juruena), faz parte de outra família, que, tal como a jê, está incluída no tronco macro-jê” (MELATTI, 1997). O fato de pertencerem ao mesmo grupo lingüístico dos bororos (figura 3), fez com que se tornasse mais fácil a implantação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e do Posto Fraternidade Indí-gena, no local onde hoje esta localizada a Aldeia Umutina.

Figura 3: Grupo lingüístico dos bororos e Umutinas. Fonte: ARRUDA, 2003.

O Serviço de Proteção ao Índio e o Posto Fraternidade Indígena foram fundados em 1913, pela Comissão Rondon. O Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, mais conheci-do como Marechal Rondon deveria construir vários ramais do telégrafo pela região, iniciando na estação dos Parecis até Barra do Bugres, mais especificamente à margem direita do alto Paraguai, passando pela mata da Poaia, (MISSÃO RONDON apud SENADO FEDERAL, 2003: 225). Nessa região viviam os índios conhecidos por Barbados. Segundo Cupudunepá (2002), “antigamente os homens Umutinas eram conhecidos como Barbados, porque tinham costu-me de usar longas barbas” (CUPUDUNEPÁ, 2002:4).

Segundo a Missão Rondon apud Senado Federal (2003), essa localização trouxe uma dificuldade máxima para construção do ramal, pois os Barbados eram conhecidos desde o tempo da colônia, por sempre repelirem com violência todas as tentativas de aproximação. Porém, esse fato não abalou a confiança de Rondon, pois ele buscava primeiro a amizade e as boas relações com os povos indígenas. Assim, mesmo com o local já estabelecido em Barra do Bugres, Rondon primeiro providenciou a instalação de serviço destinado a pacificação da-queles índios, suas medidas para contato e pacificação do povo Umutina foram tão acerta-das que em 1913, seu objetivo estava conseguido, e foi possível o contato para construção do ramal, sem o derramamento de sangue dos Barbados. (MISSÃO RONDON apud SENADO FEDERAL, 2003: 225).

Após a pacificação feita por Rondon, era necessária a manutenção desse contato entre os Umutinas e o não-índio, pois aquela região de mata da poaia estava sendo visada para prá-tica de extração da erva, o que possibilitaria possíveis conflitos com os Umutinas. Tentando evitar tal conflito o Marechal Rondon solicitou a posse daquelas terras para o grupo indígena.

Em 1913, a aldeia Umutina tinha em sua totalidade somente índios Umutinas, já nos anos 20 o posto contava com um Bororo, que era intérprete e funcionário do posto. Em 1932 foram registrados quatro índios Nambikuara, em 1934 houve a chegada dos Parecis e entre 1950 e 1960 chegaram os Irantxe e Xavantes, (ARRUDA, 2003: 37). “No mesmo posto indí-gena vivem cerca de 60 índios Umutinas civilizados ao lado de índios Paressi e Nanbiquara.” (SCHULTZ, 1952: 82).

Segundo Schultz apud Arruda (2003), em 1928 o povo indígena Umutina próximo a Barra do Bugres era dividido em três outros grupos: Humaitá que viviam no Posto Fraterni-dade Indígena, correspondendo a 4 índios, além dos Masepo e Chikipo com 22 indivíduos. A população Umutina em 1913, logo após o primeiro contato com Rondon, era de cerca de 300 índios tendo uma redução de 96% do total de Umutinas. Em 1920 esse número cai para 200 e em 1923 para 156, chegando em 1928 a 48 índios, o que demonstra sua redução drástica na década de 20, número que ia diminuir ainda mais. Pouco se sabe sobre o motivo dessa diminuição, porém as hipóteses mais aceitas são que as chacinas e as epidemias (Sarampo, Gripe, Pneumonia e Coqueluche) tenham afetado o Povo Umutina que até então não tinha muito contato com o não-índio (ARRUDA, 2003: 63). Jesus (2010) também relatou essa drás-tica redução do Povo Umutina:

Com o passar dos anos, o povo Umutina que ainda vivia na mata foi mudando para o posto, em 1938 eram cerca de 90 índios, entre eles haviam os Umutinas, os Paresis e os Nambi-quara, formando assim a aldeia com vários grupos indígenas e posteriormente chegaram ou-tros povos, Bakairi, Ka iabi, Irantxe, Terena e Bororo, compondo as 8 etnias da aldeia Umutina.

Mesmo com a diversidade de povos indígenas, a aldeia ainda se denomina Umutina, e hoje tenta resgatar a língua, o canto, dança, cultura material e imaterial, e outras tantas coisas perdidas com o tempo e pela falta de homogenia de etnias.

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Cultura Umutina e a Importância da Fonte Oral

A cultura indígena Umutina é tão rica quanto qualquer outra, apesar de ter suas ma-nifestações reduzidas com o passar do tempo. Possuem suas tradições, ritos, cantos, língua, entre outros. Mesmo que hoje muito dessa cultura tenha se perdido, é preciso ser feito um grande esforço para que ela seja resgatada e perpetuada pelas próximas gerações.

Para tentar resgatar parte de sua história e diagnosticar as áreas de conflito e poten-ciais áreas para intervenções foram utilizados métodos quantitativos e qualitativos. Algumas informações foram obtidas por análises correlatas (observação de edifícios consolidados e material fotográfico), questionários com perguntas e pesquisa documental, através dos quais possam ser realizadas leituras da área e a escolha dos sítios de intervenção. Com a visita em campo ficou evidente o papel que a própria comunidade Umutina desempenha para o le-vantamento de sua história, pois pouco existe documentado sobre a história deste povo. Pela realização das entrevistas, foi possível conhecer como os Umutinas realmente são e como os seus antepassados realmente viveram.

Com a utilização da fonte oral é possível obter qual a real percepção do processo his-tórico de um determinado grupo, onde existe um maior aprofundamento da própria história, pois se torna fonte obtida através dos próprios indivíduos envolvidos. No caso da Aldeia Umutina, os moradores mais velhos são os poucos que ainda guardam a cultura e conhecem o modo de vidas dos Umutinas. Estes fazem parte do projeto para resgate da cultura, já que é através deles que a língua e outras importantes tradições estão sendo ensinadas e fixadas novamente na vida do povo da aldeia.

Umas das ferramentas metodológicas utilizadas para produção do trabalho foi a apli-cação de questionários, esses foram de grande importância para identificar alguns dos aspec-tos relativos à vida atual dos Umutinas, identificando seus problemas, anseios e cultura atual. Com uma população de aproximadamente 445 pessoas e cerca de 90 famílias, foi utilizada uma amostragem de 26% da aldeia, sendo aplicado para 23 famílias com média de 5 pessoas.

Considerações Finais

O Povo Umutina possui uma histórias triste de conquista do território indígena, sua população foi intensamente atingida pelas doenças trazidas pelo não-índio, o que provocou o abandono de sua aldeia e consequente refúgio no Posto Fraternidade Indígena para tentar sobreviver, provocando a perda de sua cultura e tradição.

Hoje, mesmo com a tentativa de resgate da cultura e tradição Umutina, é difícil a rea-lização de um levantamento histórico aprofundado sobre o modo de vida que eles possuiam antes do contato com o não índio, pela falta de registros e fontes escritas e iconográficas. Sen-do assim, a maior parte do que é possível levantar é através de poucos autores que retrataram o início dos conflitos com os Umutinas e pricipalmente através dos próprios moradores da aldeia, que conseguem relatar o processo através de história oral passada de pai para filho. Da mesma forma que a língua e cultura quase extintas entre os moradores da aldeia estão sendo buscadas e retransmitidas nas escolas.

Deste modo o estudo proporciona uma nova fonte de pesquisa documental e fo-tográfica do Povo Umutina, sendo auxiliada pelo recurso da fonte oral para o registro de

informações importantes para a divulgação e permanência dessa cultura indígena, sempre tomando os devidos cuidados para a interpretação oriunda deste tipo de fonte.

Bibliografia

ARRUDA, L. C. Construções Discursivas - A Indialidade Umutina sob as Lentes do Etnólogo do SPI Harald Schultz. Cuiabá, 2003.

ARRUDA, L. C. Posto Fraternidade Indígena: Estratégias de Civilização e Táticas de Resistên-cia. Cuiabá, 2003.

CUPUDENEPÁ, M. A. S. Educação Escolar Indígena Entre Os Umutina. CIMI: Cuiabá, 2002.

FRANCISCO, N. Com apoio do Estado, Umutinas lutam pela preservação da cultura. 2004. Disponível em: http://www.secom.mt.gov.br/imprime.php?cid=8043&sid=25. Acessado em: 17/05/2010.

FILHO, H. F. Estudantes indígenas do curso de direito no mato Grosso: limites e possibilidade para a formação. Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas Desafios para uma educação superior. Pará, 2007.

JESUS, A. J. A Linha do Tempo, do Tempo Umutina, 2010. Disponível em: http://www.over-mundo.com.br/overblog/a-linha-do-tempo-do-tempo-umutina#-overblog-12041. Acessa-do em: 17/05/2010.MELATTI, J. C. Tocantins-Xingu, 2007. Disponível em: http://orbita.starmedia.com/~i.n.d. i.o.s/ias/ias28-33/30tocxin.htm. Acessado em: 17/05/2010.

 _________Missão Rondon: aponta mentos sobre os trabalhos realizados pela Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas/sob a direção do Coronel de Engenharia Cândido Maria no da Silva Rondon, de 1907 a 1915. Brasília: Senado Federal, Con-selho Editorial, 2003.

SCHULTZ, H. Vocabulário dos Índios Umutina. 1952. Disponível em: http://www.persee.fr. Aces-sado em: 15/05/2010

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A política de colonização para a Capitania de Mato Grosso no

governo de Rolim de Moura (1751 –1765)

Gl auCe oliveir a marques1

Para realizar o empreendimento de erigir a sede do governo na recém criada Capi-tania de Mato Grosso (1748), e garantir seu povoamento, efetivando a posse dessa

região ao Império Português, foi nomeado o primeiro governador e capitão general Antonio Rolim de Moura Tavares, por meio de Decreto de D. João V, rei de Portugal:

Sendo consideração as qualidades, merecimentos e serviços que concor-rem na pessoa de D. Antonio Rolim de Moura, e a que dará inteira satis-fação a tudo o que lhe for encarregado, hei por bem nomeá-lo governador e capitão general da capitania do Mato Grosso por tempo de três anos. O Conselho Ultramarino o tenha assim entendido, e lhe mandará passar os despachos necessários. Lisboa 26 de Julho, de mil setecentos e quarenta e oito (NDIHR, AHU, doc-237).

Em carta de 27 de junho de 1751 a Diogo de Mendonça Côrte Real, o primeiro gover-nador Rolim de Moura reafirmou a importância de ocupar a fronteira oeste da Capitania de Mato Grosso:

O Mato Grosso é de uma importância pela situação em que está tão vizi-nha aos castelhanos, cujos missionários se vêm chegando muito para nós, e já têm três aldeias assentadas da banda de cá do Rio Guaporé ou do Madeira, e por nos segurar a navegação deste mesmo rio e do Jauru para

1. Universidade Federal de Mato Grosso. Mestranda, bolsa Capes.

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o tempo vindouro e da conseqüência que Vossa Excelência não ignora, pelo que será a muito conveniente dar-se-lhe um estabelecimento firme e durador, cujas qualidades se não encontram nas terras formadas pela concorrência dos mineiros que o enriqueçam se lhe percam as esperanças, sempre a retirada esta certa, o que é fácil por trazerem consigo todo o seu cabedal (PAIVA; SOUSA; GEREMIAS:31).

Neste contexto, com objetivos bem explícitos foi criada, na margem direita do Gua-poré, a vila capital, Vila Bela da Santíssima Trindade, em 19 de março de 1752, com habitantes majoritariamente indígenas, e segundo Rolim de Moura com poucos escravos, que come-çaram a chegar em maior número a partir da criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão2.

A Capitania de Mato Grosso era formada por dois distritos ou repartições, com admi-nistrações distintas: o Cuiabá e o Mato Grosso. A capital da Capitania passou a ser Vila Bela da Santíssima Trindade, localizada no Mato Grosso.

Em viagem pelo rio Guaporé abaixo, Rolim de Moura Tavares se encantou com a beleza de um sítio chamado “Pouso Alegre”, encontrando ali todos os requisitos exigidos: boa água, campos, floresta e via de comunicação adequada. O capitão general justificou que o local escolhido era “considerado menos doentio que outros arraiais, e era propício para a criação de animais, com matas para o fornecimento de lenha e madeiras para as construções, com terras agricultáveis e, principalmente ocupava uma posição estratégica defensável em relação aos vizinhos hispânicos” (ANZAI, 2004: 98).

As dificuldades de acesso para a região do Vale do Guaporé faziam parte das preocu-pações dos capitães generais, e mostra disso é a correspondência enviada ao então Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Côrte Real, em 1751, na qual o capi-tão general Rolim de Moura discorreu sobre os problemas encontrados para o fortalecimen-to e o aumento da nova vila da repartição de Mato Grosso:

Tem dois arraiais, o da Chapada de São Francisco Xavier, e de Santa Ana, ambos doentio, o que é ordinário nos descobrimentos novos, enquanto a água e o gado é pouco e faltam os meios, os remédios. [...] No Mato Gros-so, aproveitando-se do bando há de ser sempre o preço mais subido pelo transporte de terra do porto até a vila. (NDIHR, AHU, doc-344).

Concessão de Sesmarias na Vila Capital

O novo núcleo urbano, Vila Bela da Santíssima Trindade passou a acolher uma popu-lação de burocratas. Fora fundada com a concepção de defesa da fronteira oeste, motivando e comprometendo os colonos nessa empreitada, balizando-se na estratégia de ocupar e colo-nizar. Nessa perspectiva, a vila Capital ofereceria vários atrativos para os colonos de quaisquer condições, vislumbrando que a sede gozasse de regalias jurídicas e dispensas fiscais.

2. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão foi criada na segunda metade do século XVIII. Para saber mais ver, RODI-GUES, Nathália Maria Dorado. A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e os homens de negócio de Vila Bela (1752-1778). Cuiabá: UFMT/PPGHIS. Dissertação de Mestrado em História – ICHS/ UFMT, 2008.

Uma das medidas marcantes referente à política de colonização na região do Guaporé foi o sistema de sesmarias, adotado para obter um controle de ocupação legal sobre as terras na Capitania de Mato Grosso. A iniciativa produziu uma vasta legislação que tinha como objetivo ordenar o processo de concessão de terras na América portuguesa, e também pro-curando garantir a posse das terras pertencentes à coroa lusa, evitando possíveis invasões: “As concessões de sesmarias na Capitania de Mato Grosso criada em 1748, foram precedidas por práticas similares nas “minas do Cuiabá” desde 1726 e, a partir de 1727, no termo da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, por Rodrigo César de Menezes” (SILVA, 2008:25).

Ao chegar à região do Guaporé no ano de 1751, o primeiro governador e capitão ge-neral Antonio Rolim de Moura Tavares lançou vários bandos que procuraram regulamentar a posse das terras na repartição do Mato Grosso. O primeiro bando, publicado em 20 de janeiro de 1751, convocou os ocupantes de terras que não tivessem títulos legais, a regulariza-rem sua situação junto ao governo. As extensões de terra não poderiam exceder “meia légua em quadra e havendo alguma sesmaria confirmada por Sua Majestade que se apresente na secretaria desse governo para se registrar nos livros delas” (BANDO, apud SILVA, 2008: 27).

Antonio Rolim de Moura fez tornar público um segundo bando, no ano de 1751, ex-pressando nesse a tentativa de “coibir a venda de terras na Capitania em função dos abusos cometidos por seus moradores, que as vendiam sem lhes pertencerem, sendo uma prática comum” (SILVA, 2008:28). E ordenava que:

... ninguém comprasse terras de outras [pessoas] que as possuíam sem carta de sesmaria e não só convenientemente, mas ainda em praça públi-ca e por qualquer juízo que seja e, que nenhum tabelião não passe escritu-ra alguma de semelhantes vendas sem lhe ter o vendedor sesmarias dela (BANDO, apud, SILVA, 2008:28).

Ao expedir os bandos, o capitão general demonstrava caráter de sentido disciplinador em suas ordens, e o objetivo de obter um mapeamento das terras que estavam sendo ocu-padas na Capitania, uma vez que já trazia em suas instruções a “obrigatoriedade de aumentar e fortalecer a povoação deste território” (INSTRUÇÕES aos Capitães-Generais. Publicações avulsas n° 27. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001 apud SILVA, 2008:12).

Os ‘gentios’ no mosaico do Mato Grosso no Setecentos

A preocupação da coroa portuguesa em relação à ocupação das terras da fronteira oeste era grande, e o capitão general já havia recebido Instruções Régias em 1749 informando como deveria ser o tratamento a ser ministrado às nações indígenas consideradas ‘mansas’, que se achavam sob a administração de particulares:

Pelo que toca aos Índios das nações mansas, que se acham dispersos ser-vindo aos moradores a título de administração, escolhereis sítios nas mes-mas terras donde foram tirados, nas quais se possam conservar aldeados, e os fareis recolher todos às aldeias, tirando-os aos chamados administra-dores, e pedireis ao provincial da Companhia de Jesus do Brasil vos mande missionários para lhes administrarem a doutrina e sacramento. Igualmen-te lhes pedireis para a administração de qualquer aldeia ou nação que

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novamente se descubra, não consentindo que se dissipem os índios ou se tirem das suas naturalidades ou se lhes faça dano ou violência alguma, antes se apliquem todos os meios de suavidade e indústria para os civi-lizar, doutrinar, em tudo como pede a caridade cristã (INSTRUÇÕES aos Capitães-Generais. Publicações avulsas n° 27. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Mato Grosso, 2001 p.16).

Rolim de Moura havia trazido em sua companhia dois religiosos, Estevão de Castro e Agostinho Lourenço, ambos da Companhia de Jesus, conforme registrado nos Anais de Vila Bela do ano de 1759, e que:

... conforme as ordens de Sua Majestade deviam empregar na fundação das aldeias que fossem necessárias para se agregar o gentio manso que se achasse disperso pelos moradores do Cuiabá e Mato Grosso e continuar, depois, na conservação do mesmo que ainda se achava nestes sertões (AMADO, ANZAI, 2006:72).

Durante sua viagem de São Paulo à Cuiabá, o primeiro capitão general teve demons-trações da presença indígena pelos caminhos, e Rolim de Moura registrou as principais ca-racterísticas de alguns grupos, e o modo como atacavam os viajantes (PAIVA; SOUSA; GERE-MIAS:4-5).

O Diretório dos índios na Capitania do Mato Grosso

Outra medida adotada pelo primeiro capitão Antonio Rolim de Moura como forma de incentivo ao crescimento da população na Capitania de Mato Grosso baseava-se nas ins-truções recebidas de Sebastião José de Carvalho e Melo, ordenando que ‘os naturais da terra’ fossem bem tratados, tanto os existentes no território da nova Capitania quanto os vindos do lado espanhol, conforme prescrito no “Diretório dos Índios 1757-1798”3, “instrumento jurídi-co criado para viabilizar a implantação de um projeto de civilização dos índios na Amazônia, em suma, um objeto de intervenção amplo, que abrange a pretensão de construir uma nova ordem social” (ALMEIDA, 1997:13-14).

O Diretório dos Índios, documento redigido por Francisco Xavier de Mendonça Fur-tado trazia as Leis de 6 e 7 de junho de 1755, que concedia liberdade aos índios do Grão-Pará e Maranhão, e o Alvará de 8 de maio de 1758, que estendia essa medida para todo o Brasil (NDIHR, AHU, doc-583). Com sua aplicação, aldeias e povoados seriam transformados em lugares portugueses, e os índios em vassalos de Sua Majestade, sem distinção, teoricamente, em relação aos demais habitantes da região. Nesses lugares portugueses os índios seriam co-mandados por um administrador, e

... deveriam produzir para o sustento de sua família, e também um exce-dente, além de serem obrigados a prestar serviços para o Estado em ati-vidades ligadas a obras, públicas e particulares; trabalhavam, sobretudo, como remeiros, atividades pelas quais deveriam receber pagamento, o que raramente acontecia (BLAU, 2007:38).

3. Legislação assinada por D. José I – rei de Portugal – em 3 de maio de 1757.

Os Anais de Vila Bela, de 8 de março de 1762 trata das ordens reais sobre a liberdade dos índios:

Se fez público o bando, ou as ordens, que Sua Majestade mandou a res-peito dos índios brasílicos, cujas eram: de sorte nenhuma fossem tratados como cativos, mas como libertos que eram; poderiam ocupar postos hon-rosos, segundo tratamento que tivessem, e se admitissem nas Câmaras, naqueles empregos que costumam por, em grau de nobreza, os sujeitos beneméritos. (AMADO, ANZAI, 2006:85).

Apesar das tentativas de implantação das leis estabelecidas no Diretório é preciso considerar a possibilidade do seu não cumprimento, pois “o Diretório, regulamentando as condições em que se fazia legítima a liberdade dos índios, ainda deu margem à continuidade de certas práticas de escravidão” (ALMEIDA, 1997:15). Diz o Diretório, sobre as punições aos que não obedecessem as leis:

... e aos Principais, no caso de haver neles alguma negligência ou descuido, a indispensável obrigação que têm por conta dos seus empregos, de cas-tigar os delitos públicos com a severidade que pedir a deformidade do in-sulto, e a circunstância do escândalo, persuadindo- lhes, que na igualdade do prêmio e do castigo, consiste o equilíbrio da Justiça e bom governo das Repúblicas. Vendo porém, os Diretores, que são infrutuosas as suas adver-tências, e que não basta a eficácia da sua direção para que os ditos Juízes Ordinários e Principais castiguem exemplarmente os culpados; para que não aconteça, como regularmente sucede, que a dissimulação dos delitos pequenos seja a causa de se cometerem culpas maiores, o participarão logo ao Governador do Estado, e Ministro da Justiça, que procederão nesta matéria na forma das Reais Leis de Sua Majestade, nas quais recomenda o mesmo Senhor, que nos castigos das referidas culpas se pratique toda aquela suavidade e brandura que as mesmas Leis permitirem, para que o horror do castigo os não obrigue a desamparar as suas povoações, tornan-do para os escandalosos erros da gentilidade. (BLAU, 2007:2).

Em carta do ano de 1758 enviada a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, gover-nador e capitão-general da Capitania do Grão-Pará e Maranhão, o capitão general de Mato Grosso assim se expressou:

Recebi a carta de Vossa Excelência escrita em 12 de agosto do ano pas-sado, em que Vossa Excelência me refere o grande trabalho que lhe tem dado pôr em execução leis tão justas e tão pias como são as que por que Sua Majestade houve por bem declarar as liberdades dos índios (NDIHR, AHU, doc-590).

E continuou a manifestar sua opinião a respeito dos que eram contrários à aplicação do Diretório:

Não sei qual deva fazer maior compaixão, se a desgraça e miséria desta gente, se a cegueira dos que se opõem à sua felicidade, embaraçando por tais meios e com tal tenacidade aquela mesma liberdade que eles faziam profissão de defender. Mas, que absurdo há neste mundo, em que não pos-

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sa precipitar a ambição? Essa para mim é a verdadeira causa de se não fazerem hoje as conversões que faziam São Francisco Xavier e o padre An-chieta e outros varões apostólicos, por que os fins e os meios com que bus-cavam os índios eram totalmente diferentes daquelas de que se servem os missionários do tempo presente da mesma religião (NDIHR, AHU, doc-590).

Aos administradores das Capitanias caberia o incentivo aos casamentos interétnicos como medida para o aumento demográfico na fronteira oeste, em certos momentos “tole-rando-se situações como a mancebia e a mestiçagem” (BLAU, 2007:47).

Considerações finais

A preocupação da coroa lusa em ter como seus os territórios pertencentes aos domí-nios espanhóis de acordo com o Tratado de Tordesilhas, e a continuar avançando a fronteira oeste, levou a publicações de ordens régias que os capitães-generais adotaram durante suas administrações.

A Capitania de Mato Grosso, sob o governo do capitão general Antonio Rolim de Moura Tavares executou uma política de colonização confirmada através da distribuição de terras que foi importante para fixar pessoas, sendo necessário ocupar para possuir este terri-tório fronteiriço na parte ocidental da América portuguesa. Essa política que visava atender aos interesses da coroa lusitana, tentou fazer valer a legislação para a regularização de posses de terras, e manter de domínio português a estrutura fundiária.

Outra política de colonização foi a de aplicação do Diretório dos Índios, que previa a retirada dos índios da administração dos jesuítas e a possível inserção ao convívio português, já que se necessitava de mão-de-obra e de pessoas para a defesa das fronteiras do território. Nes-se contexto, os casamentos interétnicos eram incentivados, visando o crescimento demográ-fico, para assim poderem participar da defesa da fronteira oeste, contendo o avanço espanhol.

Desse modo, a partir das medidas adotadas pelo capitão general houve um novo arranjo na dinâmica social da capitania que contribuiu para garantir ao Estado português a posse de territórios da fronteira oeste luso-espanhola na América.

Bibliografia

ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. pp. 14,19.ANZAI, Leny Caselli. Doenças e práticas de cura na capitania de Mato Grosso: o olhar de Alexan-dre Rodrigues Ferreira. Tese de doutorado, UNB – Brasília, 2004.

BLAU, Alessandra Resende Dias. O “ouro vermelho” e a política de povoamento da Capitania de Mato Grosso: 1752-1798. Cuiabá: UFMT/PPGHIS. Dissertação de Mestrado em História – ICHS/UFMT, 2007.

ROGRIGUES, Nathália Maria Dorado. A Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e os homens de negócio de Vila Bela (1752-1778). Cuiabá: UFMT/PPGHIS. Dissertação de Mestrado em História – ICHS/ UFMT, 2008.

SILVA, Vanda da. Administração das terras: a concessão de sesmarias na capitania de Mato Grosso (1748-1823). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá. 2008.

Fontes manuscritas

Arquivo Histórico Ultramarino / Núcleo de Documentação e Informação Histórico Regional

AHU, 1748, Julho, 26, Lisboa – Decreto de D. João V em que nomeia Antonio Rolim de Moura

Tavares Governador e capitão general da capitania de Mato Grosso. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 04, Doc. 237.

AHU, 1751, Junho, 27, Vila de Cuiabá – Ofício do [governador e capitão general da capitania

de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [secretário de estado da Marinha e Ultra-mar] Diogo de Mendonça Corte Real sobre o que é preciso para o aumento e fortalecimento da nova vila de Mato Grosso. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 05, Doc. 344.

AHU, 1758, Agosto, 31, Lisboa – Ofício do [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa Côrte Real ao [governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares em que envia exemplares das leis publicadas sobre a liberdade dos índios do Grão-Pará e Maranhão. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 10, Doc. 583.

AHU, 1758, Dezembro, 6, Vila Bela – Ofício do [governador e capitão-general da Capitania de Mato Grosso] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [governador e capitão general da capitania do Grão-Pará] Francisco Xavier de Mendonça Furtado em que exprime a sua opinião sobre a lei que declarou a liberdade dos índios. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 10, Doc. 590.

AHU, Junho, 30, Vila Bela – Ofício do [governador e capitão general da capitania de Mato Gros-so] Antonio Rolim de Moura Tavares ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar] Diogo de Mendonça Corte Real em que reclama da sua prolongada estada em Mato Grosso, de não ter quem o aconselhe em matérias importantes e afirma ser útil a recente lei sobre os casamentos de índios com brancos e negros. CT: AHU-ACL-CU-010, Cx. 10, Doc. 525.

Arquivo Público do Estado de Mato Grosso

BANDO expedido pelo governador e capitão-general Antonio Rolin de Moura. 20/01/1757. Fo-lha 03 F. Livro de registro da Capitania de Mato Grosso C-05, APMT.

BANDO expedido pelo governador e capitão-general Antonio Rolin de Moura. 20/04/1751. Fo-lha 14 F e V. Livro de registro da capitania de Mato Grosso C-05, APMT.

Fontes impressas

AMADO, Janaína, ANZAI, Leny Caselli (Orgs). Anais de Vila Bela 1734 – 1789. Cuiabá: EdUFMT, 2006.INSTRUÇÕES aos Capitães-generais. Publicações Avulsas n° 27. Cuiabá: IHGMT, 2001.

PAIVA, Ana Mesquita Martins de.; SOUSA, Maria Cecília Guerreiro de.; GEREMIAS, Nyl-Iza Vala-dão Freitas. D. Antonio Rolim de Moura, primeiro Conde de Azambuja (correspondências). Compi-lação, transcrição e indexação. (Coleção Documentos Ibéricos – Série: Capitães-Generais,2). Vol. I. Cuiabá: NDIHR, Imprensa Universitária, 1982.

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Frente Unida de Liberación Nacional (FULNA):

Experiência de luta armada no Paraguai (1959-1961)

Gr aziano uChôa p. da silva1

Introdução

O presente texto tem como objetivo suscitar um exercício de reflexão sobre as mais recentes discussões da chamada “Nova História Política”. No decorrer da construção de nos-sa narrativa, o intuito é utilizar conceitos e idéias debatidos nesse campo, alvitre dos mais recentes apontamentos. Em especial, chamamos atenção ao conceito de “Cultura Política”, consideração que nos parece bastante coesa nesta ligação entre categorias de análise do que a historiografia chama de História Cultural e História Política.

Para pensar sobre o conceito supracitado tomei como ponto de partida um dos as-pectos que proponho a desenvolver em minha pesquisa, que tem como foco um estudo de caso sobre a Ditadura instaurada no Paraguai e a atuação do General Alfredo Matiu-da Stroessner nos primeiros anos de seu regime autoritário (1954-1961). Na comunicação ora apresentada, pretendo analisar a participação do Partido Comunista Paraguaio (PC-PY) na construção da Frente Unido de Liberacíon Nacional (FULNA), uma agrupação armada (guerrilha), organizada por vários partidos opositores ao então presidente e que tinha como principal objetivo o fenecimento do stronato, mas que, no entanto, teve um curto período de atuação (1959-1961).

1. Mestrando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso e bolsista da CAPES.

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Nos anos pós Segunda Guerra Mundial, a historiografia fala de um esgotamento de modelos totalizantes, ou globalizantes. Os modelos correntes de análise –a exemplo dos ad-vindos do Marxismo e da Escola dos Annales- necessitaram tratar com uma nova realidade, boa parte desse exercício para novas reflexões, deve-se ao surgimento no cenário mundial, de duas grandes nações como protagonistas pela disputa de influência nas diversas esferas da sociedade, os Estados Unidos (EUA) e a União das Repúblicas Soviéticas (URSS), no período da Guerra Fria.

É dentro do contexto supracitado, que veremos surgir com maior vigor o debate sobre cultura política. Uma obra é considerada basilar para esse feito; The Civic Culture: political attitudes and democracy in five countries, dos cientistas políticos norte-americanos, Gabriel Almond e Sidney Verba, este livro foi produzido em meados da década de 60 do século XX, no volume descreveram o que concebiam enquanto cultura política.

Segundo artigo escrito pelos autores Henrique Carlos de Oliveira de Castro e Daniel Capistrano, o conceito começa a ser posto em debate com a obra de Gabriel Almond e Sid-ney Verba, assim descrevem a obra pioneira:

Com a publicação, na década de 1960 nos Estados Unidos, do livro The Ci-vic Culture: political attitudes and democracy in five countries, de Gabriel Almond e Sidney Verba (1965),o conceito de Cultura Política se tornou famoso dentro da Ciência Política e gerou um grande impacto na maneira de se estudar este tema até então (CASTRO E CAPISTRANO, 2008:76).

A maior crítica feita por historiadores e antropólogos ao conceito, adivinha de um pretenso teor desenvolvimentista contido em suas primeiras aplicações, defendendo uma “cultura cívica” e colocando peso entre as diversas culturas estudadas, dando por fim, uma visão “etapista”, “evolucionista” do processo histórico.

Fazendo alusão aos autores Karina Kushnir e Leandro Piquet Carneiro, a cultura polí-tica aponta as “atitudes, crenças e sentimentos que dão ordem e significado a um processo político, pondo em evidências as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores” (KUSHNIR e Carneiro apud SENA, 2009:09).

Ainda pensando nas representações que determinada agrupação faz de si, me apoio na idéia do historiador Ernesto Sena de não “cair no perigo da gênese, como que por uma visão retrospectiva chegasse mecanicamente ao início de um fenômeno” (SENA, 2009:12). Especificamente por não poder abarcar tudo (como sabemos ser impossível), não procuro construir uma análise que vincula à atuação do PC-PY as tradições mais antigas do pensa-mento marxista, muito menos de procurar motivos ancestrais para caracterizar a situação do Paraguai. No entanto encontro a necessidade de contextualizar, colocar em pauta alguns acontecimentos necessários para visualizar o que acorreu neste país nos anos em que me proponho considerar.

Na escolha do recorte vou dar maior atenção a atuação do Partido Comunista entre 1959-1961 tentado entender um pouco das negociações feitas por este grupo, como se en-xergavam e por fim como isso culminava em uma prática política, dentro de uma frente em que o Partido Liberal e também o Partido Febrerista participavam com ideários totalmente distintos, com o único propósito de depor Stroessner, tornando a composição da FULNA bastante interessante.

O Paraguai no contexto das ditaduras:

No âmbito da história contemporânea latino-americana, peculiarmente no contexto em que os militares se consolidaram como protagonistas no cenário político no Cone Sul (1960-1970), a “nação mediterrânea do prata” teve o seu desempenho estratégico muito pouco valorizado.

As constantes disputas entre oligarquias locais imergiu a sociedade paraguaia em su-cessivos conflitos. Essas contendas pelo controle político tinham como principais represen-tantes os dois maiores partidos paraguaios o Partido Liberal e a Associação Nacional Repu-blicana (ANR) que ficou popularmente conhecida como Partido Colorado. A ininterrupta luta entre essas agrupações afundaram o Paraguai em sucessivas guerras civis2, faço menção ainda, que durante a primeira metade do século XX o país envolveu-se em um conflito com a Bolívia, este conhecido como Guerra do Chaco (1932-1935) agravando ainda mais a situ-ação paraguaia. Toda essa conjuntura delineou um panorama de atraso tecnológico e de constante crise econômica, criando uma situação de extrema pobreza, fragilizando assim as instituições de representação democrática e tendo como resultado uma situação permanen-te de instabilidade política.

O contexto exposto acima permitiu que em 1954 o general Alfredo Stroessner lideras-se um golpe bem sucedido que culminou com a derrocada do governo de Federico Chaves3. O descontentamento de alguns setores, principalmente os militares com as medidas econô-micas e políticas adotadas pelo governo então no poder, consentiu espaço para uma conspi-ração e permitiu que o Comandante-Chefe das Forças Armadas o Gel. Stroessner o tomasse.

O caso paraguaio, muito tem haver com a situação vivida na América Latina dos anos 50, para melhor descrever a circunstância, faço referência ao historiador Enrique Serra Padrós:

[...] uma conjuntura prematura se formos pensar em termos de conca-tenação com os golpes que, no Cone Sul, impuseram as ditaduras de se-gurança nacional no transcorrer dos anos 60 e 70. De qualquer forma, não podemos esquecer que essa conjuntura da primeira metade dos anos 50 é marcada por fortes movimentos de direita que concluem em golpes e intervenções, como no caso do fim da Revolução Boliviana (1952), da violenta interrupção do programa de reformas que vinha sendo aplicado na Guatemala de Jacob Arbenz (1954) (com particular participação dos Estados Unidos e da empresa multinacional United Fruit) assim como dos golpes que forçaram a saída de cena de Getúlio Vargas, no Brasil (1954) e de Juan Domingo Perón, na Argentina (1955). Portanto, colocada nes-sa perspectiva, a ascensão de Stroessner no Paraguai, independente das

2. A primeira guerra civil ocorreu em 1904, os liberais afastaram os colorados do poder. Depois em 1922 acontece uma guerra entre facções do próprio Partido Liberal pelo controle do Estado. Por fim a guerra de 1947, também conhecida como Revolução de 1947 que definitivamente consolidou o Partido Colorado no poder e mudou o curso da história contemporânea do Paraguai.

3. Federico Chaves foi eleito para cumprir um mandato de quatro anos (1953-1958). No entanto, segundo o jornalista paraguaio Roberto Paredes, no começo de 1954 já havia um prenuncio do fim do mandato. A essa altura Chaves estava totalmente isolado, pois era de um setor democrata do Partido Colorado. Na teoria o presidente contava com o apoio do partido, mais na verdade existia vários descontentes articulando-se para derrubá-lo do poder.

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questões específicas da política interna do país, está emoldurado por uma dinâmica de instabilidade que se projeta sobre a região, particularmente pelas pressões dos interesses dos EUA assim como pela disputa de influên-cia entre Argentina e Brasil (envolvendo fatores econômicos – agrícolas e industriais, como processamento de algodão ou de sementes oleaginosas, e frigoríficos - e geopolítico. (PADRÓS,2008:01)

O Paraguai aparece como uma espécie de “precursor artesanal dos regimes de Segu-rança Nacional” (ROSSI, 1980:37), vale lembrar que só a partir da década de 1960 teve início os regimes militares nos outros países do Cone Sul: no Brasil em 1964, na Bolívia no mesmo ano, no Uruguai e no Chile no ano de 1973 e em 1976 na Argentina.

Toda essa situação auxiliou na implementação de um governo ditatorial que tinha como principal característica o cerceamento de direitos básicos, deixando uma margem mui-to pequena para aquelas vozes que destoavam das medidas tomadas por Stroessner, é dentro desse mosaico que surge a FULNA.

A Frente Unida de Liberación Nacional (FULNA):

A FULNA começa a atuar no final de 1959, tendo em suas fileiras integrantes de várias facções políticas (liberais, febreristas, comunistas), era o grupo que detinha um planejamen-to mais eficaz e maior leitura sobre a realidade paraguaia daquele período o que melhor aparelhava esta frente.Tem seu surgimento ligado a insatisfação dos jovens, uma juventude universitária que se uniria a uma elite intelectual e começariam a questionar a situação vivida no Paraguai.

Como já havia citado anteriormente, os ideários que compunham o quadro da FUL-NA eram variados. A conjuntura internacional vivida na época era marcada com a chamada Guerra Fria, período caracterizado pela constante confronto entre duas superpotências mun-diais (EUA X URSS) disputando áreas de influência para suas políticas e ideários (capitalismo x socialismo).

Em 1959 com o sucesso da experiência cubana em depor o então presidente Fulgên-cio Batista, a possibilidade de tomar o poder pela via armada começa a aparecer como um caminho para se opor, no começo sem levantar a bandeira socialista, mas tendo no cerne desse levante elementos que defendiam tal idéia, vão começar a influenciar experiências similares, principalmente na América Latina. Frente à situação estabelecida no Paraguai de Stroessner, essa perspectiva parecia viável ao Partido Comunista Paraguaio.

Chamo a atenção nesta parte do trabalho, que no começo da ditadura no Paraguai, não havia uma real preocupação com o avanço comunista, de maneira tática, Stroessner vai começar a se utilizar deste para legitimar uma ‘proteção’ a nação e legitimar seu violento re-gime. Nas palavras que tempos depois seriam proferidas por Adan Godoy Jimenez, Ministro da saúde e bem estar social do governo stronista, o modelo “republicano democrático de governo” se daria através de uma “democracia sin comunismo”, esse modelo se caracterizava por uma inviabilidade da convivência pacífica com tal ideologia. Segundo Jimenez “El Co-munismo solo sirve a los intereses de una potencia imperialista empeñada en conquistar y sujuzgar a los pueblos libres, soberanos, democráticos y nacionalistas como es el Paraguay del presente” (JIMENEZ,1987:23).

O discurso anticomunista não era feito apenas pelo regime, também era feito pelos liberais e febreristas 4. Pensando nisso, como foi possível a criação da FULNA? Colocados na ilegalidade e sem a possibilidade de se articularem, os outros partidos não viam alternativa senão a de juntar forças com o Partido Comunista Paraguaio, esta premissa também serviu ao PC-PY. Aqui convido a pensarmos em negociação que segundo o autor Homi Bhabha:

Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História teleológica ou transcendente (BHABHA, 1998:51).

O autor descreve um hibridismo que evidenciaria a mudança política. Nem o Um nem o outro. Penso que a linha de raciocínio caiba muito bem no caso proposto, isso era a Frente Unida de Liberacion Nacional, algo híbrido, novo na política paraguaia, não era nem comunista, nem liberal, nem conservador. Era uma articulação de tais ideários que tinham como objetivo comum o fim do governo de Stroessner.

Marca a especificidade desta guerrilha a sua organização desde fora do território pa-raguaio, o que tornava esta questão de identidade, de pertencer a determinado partido ou outro uma questão mais delicada. O número de exilados era grande, a ditadura de Stroessner caçava a qualquer indivíduo ou organização que se opusesse ao regime. Para a maioria dos que fugiam da ditadura à Argentina aparecia como um dos poucos refúgios para os persegui-dos pelo regime. A antropóloga Diana Arellano descreve da seguinte maneira a situação dos exilados paraguaios na Argentina:

Si el exílio es um hecho doloroso por múltiples factores, La situación de una gran parte de los paraguayos se compliba aún más. Para muchos el guarani era su única lengua, solo manejaban el castellano para los ‘asuntos com la autoridad’. Em esos casos, trataban por todos los médios de asen-tarse em las províncias argentinas [...], enpleándose como peones rurales o dedicándose a diversas tareas del sector informal (ARELLANO,2004:82).

O movimento guerrilheiro foi sufocado em um curto período de tempo (1959-1961). Segundo Oscar Creydt líder do PC-PY a luta armada seria suspendida “hasta que se crien mejores condiciones para esta forma superior de lucha en nuestro país” (CREYDT, 2007:326). Na verdade quando alude a essas condições, faz referência a um maior apoio das massas na luta contra o regime. O terror instaurado pela ditadura amedrontava enormemente o povo:

Na luta guerrilheira paraguaia não houve sobreviventes: pelo menos todos os lideres foram mortos e a maioria dos combatentes morreu em combate ou torturas que se efetuavam em plena selva. Os métodos de intimidação não ficavam apenas para os combatentes da guerrilha: os camponeses da região eram espancados, torturados e até assassinado preventivamente. Assim que os guerrilheiros estavam numa determinada zona, era inevitá-vel que os militares da ditadura matassem alguns camponeses e torturas-sem outro tanto, como exemplo para os demais, que não deveriam lhes dar apoio. (CHIAVENATO, 1980:120).

4. O primeiro de tendência liberal como o nome diz e o segundo de tendência progressista.

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Com muito pouco sucesso em seu investimento, a FULNA pereceu de maneira muito rápida. Isso se explica pela forte repressão que sofreu, com a procura de seus líderes além das fronteiras, e da ação contra insurgente do regime de Stroessner que pode contar com o apoio dos EUA e do Brasil para isso. Segundo Chiavenato, Stroessner “recebeu muito dinheiro, ar-mas aviões e veículos, mandou seus militares treinarem nos Estados Unidos e teve instrutores dentro do Paraguai” (CHIAVENATO, 1980:166) esses instrutores muitos deles eram brasileiros.

Considerações Finais:

Na representação social que aspiravam, os comunistas paraguaios contavam com a teoria marxista, pensamos que teoria não deva ser abordada aqui como uma lei ou algo parecido, mas referente a um pensamento especulativo, de como se viam, uma construção simbólica. Dentro disso para tentar alcançar essas aspirações, tiveram que articular-se com outros atores que não compartilhavam com o mesmo ideário que defendiam o que influen-ciou diretamente em sua ação política que se materializou com a construção da FULNA. Se especular, tem como sinônimos observar, enxergar, pensamos que isso influenciou de ma-neira peculiar o PC-PY, as idéias não são imóveis, engessadas, estão constantemente sendo apropriadas, ressignificadas.

Essas novas apropriações geram novas negociações e dinamizam o processo histórico, mostrando uma não ortodoxia o que amplia a perspectiva da análise do objeto. Os vários discursos, as várias representações e um olhar minucioso despendido pelo historiador, fazem emergir as várias articulações entre diversos grupos componentes de um lugar social, faz com que reflitamos sobre um leque rico de possibilidades. Mas faz também colocar em pauta algo que se materializa dentro disso. No caso paraguaio isso se mostra de maneira concreta com a consolidação de Stroessner no poder, se fixando como chefe de Estado por um período de 35 anos (1954-1989) e estabelecendo um sistema ditatorial marcado pela falta de liberdade, deixando os civis por mais de três décadas longe do poder.

Bibliografia

Livros:

ARELLANO, Diana. La lucha no termina: Movimiento 14 de mayo para La liberación del paraguay (1959-1961). In: LACHI, Marcelo. Insurgentes: La resistência armada a la dictadura de Stroessner. Asunción/PY: Arandurã editorial, 2004.

BHABHA, Homi K. O compromisso com a teoria. In: O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalvez. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CHIAVENATO, Julio José. Stroessner: retrato de uma ditadura. –São Paulo: editora brasiliense, 1980.

CREYDT, Oscar. Formación histórica de la Nación Paraguaya. Asunción, Paraguay: Servilibro, 2007.

JIMENEZ, Adan Godoy. Stroessner: Um modelo Republicano y democrático de gobierno. Asunción.

Ed Che Retá; 1987.

ROSSI, Clóvis. Militarismo na América Latina. ED Brasiliense, coleção tudo é história, 1980.

SENA, Ernesto Cerveira de. Entre anarquizadores e pessoas de costumes: a dinâmica política nas fronteiras do Império: Mato Grosso (1834-1870). Cuiabá, MT: Carlini e Caniato, 2009.

Internet

CASTRO, Henrique Carlos Oliveira de e CAPISTRANO, Daniel. In: Cultura política pós consenso de Washington: o conceito de cultura cívica e a mudança política na América Latina. In: REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v. 2, n.1, p. 75-97, jan.-jun.2008. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/debates/article/viewFile/3139/2883> Consulta em: 25/01/2010.

PADRÓS, Enrique Serra. O Paraguai de Stroessner no Cone Sul de Segurança Nacional. In: Vestí-gios do passado; a história e suas fontes. IX encontro estadual de história; Associação Nacional de História-Seção Rio Grande do Sul-ANPUH-RS. Disponível em: <http://www.eeh2008.anpuh-rs.org.br/resources/content/anais/1212375776_ARQUIVO_ANPUHtextoEnriqueSerraPadros.pdf> Consulta em: 14/06/2009.

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Representações sobre o cargo de Juiz de Fora na capitania de

Mato Grosso: Justiça e administração (1750-1785)

GusTavo balbueno de almeida1

O cargo de juiz de fora, é um dos mais importantes na hierarquia de administração e justiça do Antigo Regime, e passou a ganhar importância a partir da primeira

metade do século XVII – mais precisamente 1640, apesar de seu surgimento remeter à Idade média. Para os territórios brasileiros o cargo se fez presente a partir do fim do século XVII, com sua instauração nas principais cidades litorâneas (JESUS, 2006: 94). A vinda desse oficial representaria a inserção do direito letrado no interior da colônia e, consequentemente, uma maior “legitimação dos atos da Coroa” (BICALHO, 2003, p. 347-348). Nas colônias portugue-sas, até então, as elites locais tinham certa autonomia em relação à Coroa portuguesa – a ponto de Maria Fernanda Bicalho caracterizá-la como um “autogoverno2”. E o principal espa-ço onde essa população se fazia representar era a câmara municipal. A mesma autora ainda faz referencia às câmaras como sendo a contrapartida do absolutismo caracterizado pela centralização monárquica (2003: 346).

Ao mesmo tempo, Charles Boxer afirma que as câmaras municipais, assim como as santas casas de misericórdia, eram as principais responsáveis pela manutenção do poder por-tuguês nas suas colônias. Grosso modo, podemos dizer que, devido à grande rotatividade de oficiais na ocupação dos mais diversos cargos por toda a extensão do Império, e ao pouco tempo em que eles deveriam permanecer no cargo – no caso dos governadores, ouvidores e juiz de fora, por exemplo, a duração do mandato era de três anos -, as duas instituições

1. Mestrando em História no PPGH/UFGD, orientado pela Prof. Dra. Nauk Maria de Jesus.2. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império – O Rio de Janeiro no séc. XVIII. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira,

2003. Especialmente os capítulos 11 e 12.

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continuavam sempre a existir. (Apud BICALHO, 1998) E, uma das funções dos juízes de fora se constituía na presidência das câmaras municipais. Se até então a prática do direito nessas localidades baseavam-se nos costumes, a chegada dos juízes de fora representava a introdu-ção do direito letrado (BICALHO, 2003: 347-348).

Outra mudança que deveria ser realizada pela chegada desses oficiais era a neutra-lidade com que aplicaria a justiça, já que era exógeno à localidade em que serviria, já que não poderia ter qualquer laço, afetivo ou familiar; e também ao pouco tempo em que de-veriam ficar no cargo (SCHWARTZ, 1979: 6). Porém, autores mostram que muitas vezes não era isso o que acontecia, pois os prazos de mandato muitas vezes se excediam – tanto em Mato Grosso como em outras localidades, esses oficiais chegavam a ultrapassar décadas no exercício de um cargo -, e muitas vezes a neutralidade perdia terreno para as relações sociais adquiridas e interesses pessoais, tomando partido a favor da população local ao invés de de-fender os interesses reais (MONTEIRO, 1993: 312). Tendo como base essa relação entre juízes de fora, elites locais e câmaras municipais, trataremos nesse trabalho, de analisar algumas das representações acerca do cargo de juízes de fora, e do imaginário que circulava sobre ele e a câmara municipal.

As câmaras municipais e o imaginário acerca das elites locais

A câmara municipal era uma instituição que poderia ser encontrada em todos os pontos do Império português, desde o reino até os mais remotos pontos do Ultramar. Elas eram constituídas, em geral, por dois juízes ordinários, (magistrados sem qualquer formação em direito) eleitos localmente, um juiz de fora nomeado pelo rei, dois a seis vereadores (con-forme a natureza e a importância do local) e um procurador. (JESUS, 2006: 250). As funções da câmara municipal da Vila de Cuiabá foram especificadas por Carlos Alberto Rosa, no pe-queno texto de introdução aos Anais de Cuiabá:

normatizar o espaço urbano, o fornecimento de gêneros alimentícios e moradores da vila, o exercício de ‘ofícios mecânicos’ na vila e seu termo por meio de ‘exames de mestres de oficio’ a saúde, contratando cirurgiões para atender as camadas mais pobres do ‘povo’ e seus ‘escravos’, devido à ‘construção do país’, a concessão de terras e sesmarias. (2007, p. 23)

A ocupação dos cargos concernentes aos moradores locais das vilas e cidades – tanto os vereadores, juízes ordinários, almotacéis, etc. - apresentava uma série de restrições em re-lação à sua elegibilidade. Em geral, os ocupantes dos cargos eram os chamados de “homens bons”. Esses homens bons eram os homens brancos e proprietários de riquezas, comerciantes, etc. As restrições à elegibilidade da grande parcela da população ocasionavam o que Nuno Gonçalo Monteiro qualificou de “cristalização das oligarquias” no poder das câmaras muni-cipais (1993: 324). Assim como o cargo de juiz de fora servia de degrau para a obtenção de maiores cargos no interior da administração do Império, e com isso, privilégios, maior remu-neração, etc., a participação das atividades camarárias servia para as elites locais como uma via de acesso para as mesmas honras, reconhecimento e privilégios. Esse aspecto interessava especialmente à parcela de comerciantes e outros homens que enriqueceram e que, devido às suas condições de nascimento não podiam usufruir dos privilégios dos nobres, viam nas câmaras municipais as condições para se nobilitar, já que essa instituição possibilitava essa nobilitação, e, consigo as honras e privilégios de um nobre.

Na colônia, a formação da identidade dessa “nobreza da governança” – que recebe esse nome por não ser uma nobreza que não recebeu esse titulo de forma natural, e sim através do trabalho artesanal e/ou comercial e que, portanto, não tem a “pureza de sangue e de mãos - deu-se porque, de acordo com Luciano Figueiredo [Apud BICLHO, 2003, p. 389]:

As demandas dos colonos ancoravam-se num “patrimônio memorialísti-co” – de enfrentamentos, privações, e empenho de suas vidas e cabedais – em suma, de absoluta vassalagem que se calcava (...) na condição colonial ‘onde o passado de lutas contra as adversidades forjara uma noção de direitos que sustentaria as demandas da metrópole.

Em decorrência disso, os colonos utilizavam-se desse “patrimônio memorialístico” como argumento para o pedido de graças e mercês a serem distribuídas pelo rei. É impossível entender o porquê da posição dos vassalos em recorrerem à coroa em busca de honras e privilégios sem uma discussão em torno do conceito da “lógica do dom”, considerado por Bicalho (2003: 391-392) como o imaginário social e político que regia as relações no Antigo Regime. Luciana Gandelman, em artigo dedicado às considerações em torna das mercês faz uma discussão interessante acerca dessa lógica. Nele, ela caracteriza essa lógica ao que chama de “economia da dádiva” – conceito desenvolvido pelo sociólogo Marcel Mauss – que con-siste em uma tríade de obrigações (dar, receber e retribuir) (2005: 113).

Aplicando esse conceito a essa mudança da relação vassalo-rei, podemos dizer que, ao defender e reconquistar territórios do Império, os vassalos retribuíram ao rei às terras da-das por este. O rei, então, deveria retribuir a eles, atendendo a alguns dos pedidos desses e distribuindo-lhes as graças e privilégios pedidos, firmando, assim um pacto com os recepto-res. Os vassalos, então, sentindo-se gratos ao reconhecimento régio acerca dessa “nobreza da terra”, estariam prontos para fazerem mais e maiores serviços para o rei, formando-se, assim, uma espécie de círculo vicioso. Vale lembrar, aqui, que as retribuições a um favor sugerem que sempre sejam maiores que a graça recebida. Na ponta dessa relação estaria sempre a fi-gura do rei. De acordo com Gandelman, a qualidade dos governantes era medida a partir do seu grau de generosidade. O rei que não fosse generoso com seu povo era considerado um tirano, um mau governante. Portanto, o rei, como um ser dotado do poder e de riquezas – ainda que tenha que gastar mais do que os cofres lhe permitem -, tem sempre a obrigação de retribuir de forma maior que os vassalos3.

Os juízes de fora no interior da rivalidade entre Vila Bela e Vila do Cuiabá

O cargo de juiz de fora foi criado, para a capitania de Mato Grosso, no ano de 1748, porém, o primeiro oficial chegou à Mato Grosso apenas em 1751, assim como o primeiro governador e capitão general D. Antonio Rolim de Moura Tavares (1751-1765). Apesar de Cuiabá vila ser a única da recém fundada capitania, e ter a maior população, ordens reais trazida por D. Antonio Rolim de Moura determinaram a criação de uma nova vila destinada

3. Gandelman, Luciana. “As mercês são laços que se não rompem”: liberalidade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime. In: BICALHO, Maria Fernanda; SOIHET, Rachel; GOUVEA, Maria de Fátima Silva. (Org.). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. 1 ed. Rio de Janeiro: MAUAD / Faperj, 2005.

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a ser capital na região mais ao norte da capitania4. Essa determinação partiu da necessidade da Coroa em manter a fronteira melhor defendida, tanto militarmente quanto de forma sim-bólica. Diversas medidas foram tomadas pela Coroa para que Vila Bela fosse um local digno para receber o nome de capital, ou seja, que pudesse corresponder os requisitos – tanto físicos quanto simbólicos - que se esperava de uma capital de capitania. Tamanhos esforços se explicam devido à sua recém fundação – e, portanto, de sua pequena população e tama-nho – frente à Vila de Cuiabá, então já estabelecida e em processo de crescimento financeiro e populacional. No imaginário do Antigo Regime, a vila ou cidade que fosse capital deveria ser maior e mais imponente que as demais, pois hierarquicamente, ela estava em um nível superior5.

A valorização de Vila Bela em detrimento à Vila de Cuiabá rendeu à primeira diversos privilégios pedidos pela segunda desde muitos anos antes e que nunca foram atendidos, assim como a transferências de alguns pedidos privilégios da segunda para a recém criada vila. Isso contribuiu para que se acirrasse uma rivalidade entre as duas vilas – a primeira para se manter como capital e a segunda para tentar trazer a capital para si. A Vila de Cuiabá aproveitou-se de certas representações já existentes acerca do distrito do Mato Grosso, e utilizou-as como forma de denegrir a vila capital, numa tentativa de compensar as perdas de alguns dos privilégios, e trazê-los de volta para sua localidade6. Então, no século XVIII, ainda que quase inexplorada – antes da criação de Vila Bela havia apenas dois povoados com pou-cos moradores -, o distrito do Mato Grosso, no qual a capital se tornou cabeça-de-distrito, sempre levou consigo a fama de não “ter bons ares” propícios para se viver, e, portanto, para ser a capital.

Os governantes, e entre eles os juízes de fora, também eram envolvidos nessa relação conflituosa entre as duas vilas. A própria instalação/manutenção/criação de um cargo em determinada vila representava um aumento de importância deste local dentro da hierarquia da capitania – aumentando ou diminuindo a diferença de importância entre a capital e Cuiabá – e mesmo em relação às outras localidades da América portuguesa e outros pontos do Império7. Durante toda a segunda metade do século XVIII podemos perceber essas carac-terísticas nas cartas de ambas as vilas ao Conselho Ultramarino. Por todo esse período tanto Vila Bela da Santíssima Trindade quanto Vila Real de Cuiabá fazem pedidos ao Conselho ou diretamente ao rei pedindo a criação dos cargos que existiam em uma localidade e não exis-tia na outra – mais especificamente os juízes de fora, ouvidores e provedores. A Coroa portu-guesa soube manipular essas vilas magistralmente ao, em respostas a essas cartas, prometer

4. Para um maior entendimento acerca do início da história da capitania de Mato Grosso, assim como de sua emancipação e da criação de Vila Bela da Santíssima Trindade ver: Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da Amé-rica portuguesa (1719-1778). Tese (Doutoramento em História). UFF, Rio de Janeiro, 2006

5. Essas questões podem ser vistas em: ELIAS, Norbert. Op. cit. Ainda que não se refira a territórios urbanos, faz referencias aos nobres e suas hierarquias, no tocante às representações acerca de posições nobiliárquicas e estruturas de moradia, e que consideramos podermos nos utilizar para a questão específica de nosso trabalho. Ver também: JESUS, Nauk Maria de. Boatos e sugestões revoltosas: a rivalidade política entre Vila Real do Cuiabá e Vila Bela - capitania de Mato Grosso (segunda metade do século XVIII). In: COSTA, Wilma Peres; OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. (Org.). De um império a outro: Formação do Brasil, séculos XVIII e XIX. 1 ed. São Paulo: Aderaldo&Rothscild/FAPESP/HUCITEC, 2007, v. 1, p. 275-296.

6. Jesus, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos: a administração na fronteira oeste da América portuguesa (1719-1778). Tese (Doutoramento em História). UFF, Rio de Janeiro, 2006

7. Op. cit.

uma futura criação de cargo como recompensa à continuação dos bons serviços prestados ao Império – recompensas essas que raras, ou nenhuma vez foi proporcionada8.

O cargo de juiz de fora também pode ser relacionado a essa trama de rivalidades. Após a criação da vila-capital, o cargo ficou instalado nessa localidade por oito anos, tempo no qual foi ocupado por dois oficiais, até sua extinção em 1759. Pelo tempo de três anos – até 1762 -, a capitania de Mato Grosso ficou sem juiz de fora, assim como a Vila de Cuiabá sem nenhum oficial letrado de maior importância. Como havia algum tempo o governador D. Antonio Rolim de Moura vinha pedido para que fosse transferida a ouvidoria para Vila Bela e, a ela foi assumida em 1759 pelo então juiz de fora Manuel Fangueiro Frausto – que tinha moradia na capital -, a sede da ouvidoria foi transferida, então, em definitivo, para Vila Bela. Quando, em 1762, chegou à capitania Constantino José da Silva Azevedo (1762-1766), este já rumou diretamente para Cuiabá, criando novamente o cargo de juiz de fora nessa vila. Apesar de sabermos algumas informações sobre a transferência do juizado de fora de uma vila para a outra, não podemos fazer afirmações concisas sobre o assunto.

O que importa, nesse caso é que, a partir de então, a vila-capital passou a contar com a sede dos dois principais cargos administrativos: a governadoria e a ouvidoria. Nauk Maria de Jesus argumenta que um dos motivos para que tal transferência ocorresse era para que, sendo membros de grande poder e influencia na capitania, e estando na mesma vila, eles pu-dessem vigiar um ao outro, já que, historicamente, desde o inicio da ocupação da capitania do Mato Grosso, os ocupantes desses cargos acabaram se envolvendo em alguns conflitos9. A Coroa, assim, acabaria tendo um maior controle sobre esses dois oficiais, partindo da lógica que um viesse a policiar o outro, o que poderia diminuir a incidência de formação de grupos motivados por interesses comuns e contrários aos da coroa, principalmente em relação ao contrabando de metais preciosos e escravos (JESUS, 2006: 240).

Essa atitude, por parte da Coroa, de confrontar dois oficiais de grande poder jurisdicio-nal na hierarquia administrativa pode ser utilizada também para servir como um dos fatores de explicação para a rivalidade entre as duas vilas, já que as medidas tomadas em relação a elas deixavam-nas sempre na esperança de que fossem instituídos novos cargos em suas loca-lidades, dependendo do bom serviço que essas fizessem ao Império. Apesar de que, devemos considerar a partir de Nauk Maria de Jesus que, as medidas tomadas pela Coroa beneficiaram muito mais Vila Bela que a Vila de Cuiabá, devido à necessidade de fazer dela uma grande capital aos olhos espanhóis10.

Entre os oficiais também ocorriam problemas em relação às rivalidades envolvendo sobreposição de importâncias, ou então pelo desejo de ocupação em posições que, simbo-licamente representariam maior importância, tais como posições especificas em reuniões, festas ou procissões, por exemplo. Podemos dar o exemplo de como essas representações manifestam-se a partir das procissões e festas religiosas. O uso de trajes, a cor das roupas, a utilização de adereços – tais como bastões ou varas de madeira, entre outros detalhes pode-

8. Sobre a manipulação régia nos baseamos, mais uma vez, no obra de Norbert Elias. A partir do capítulo dedicado à eti-queta e de que como o rei se utilizava dela para privilegiar e/ou diminuir um nobre, o autor nos dá possibilidade de aplicar os exemplos para a relação entre o rei e as Vilas de Mato Grosso. ELIAS, Norbert. Op. Cit.

9. Os conflitos que ocorreram entre as décadas de 1720 e 1750 foram identificados por: JESUS, Nauk Maria de. Na trama dos conflitos...

10. JESUS, Nauk Maria de. Boatos e sugestões revoltosas...

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riam dizer a respeito da importância dos oficiais no interior da administração11. A posição que cada participante devia ocupar nas procissões era outro dos pontos de distinção de poder.

Antonio Rodrigues Gaioso, juiz de fora entre 1781-1784, nesse ponto faz queixas con-tra o Mestre de Campo Antonio José Pinto de Figueiredo. Em carta à rainha, argumentou Antonio Gaioso que o mestre de campo estaria ocupando “o primeiro lugar nas funções públicas e solenes, apesar da razão e da autoridade quem em mim reside como sendo minis-tro de Vossa Majestade.”12 Já nas procissões do enterro do senhor e na da ressurreição, tem ele ido com seus auxiliares à mão direita do ministro, quando aparentemente ele deveria se posicionar na mão esquerda. Para evitar confusões quanto ao posicionamento, o juiz de fora parou de ir às procissões e perguntou à rainha Dona Maria qual a posição exata que o mestre de campo deveria ocupar. Juntamente com a carta de Gaioso, vai uma carta de seu anteces-sor José Carlos Pereira, referente ao mesmo tema, onde este disse que fugiu às discussões so-bre o posicionamento dos oficiais por temer desordens, mas que sempre o mestre de campo procurava ir à sua direita nas procissões. Para conservar a harmonia, dizia o ex-juiz de fora, que decidiu aceitá-lo naquela posição. Esse exemplo nos mostra como o simbólico se fazia presente nessas festas e como ele regulava os seus rituais de organização a fim de mostrar a hierarquia dos poderes das autoridades das vilas e cidades do Império português.

A trajetória administrativa de Teotônio da Silva Gusmão

Por último, queremos discutir algumas considerações acerca do primeiro juiz de fora da capitania, Teotônio da Silva Gusmão, e de como este se utilizou da possibilidade de pedir mercês ao rei em troca de serviços prestados e os argumentos usados por ele para legitimar seu pedido. Acompanhar a trajetória administrativa de oficias ao longo de todo o Império Ultramarino nos revela uma grande oportunidade para entender alguns pontos dos estudos do Império português. Esse tipo de abordagem vem sendo feito há pouco tempo, de acordo com Maria de Fátima Gouvêa (2001: 287). E o primeiro juiz de fora da capitania de Mato Grosso nos permite realizar essa reconstituição. Teotônio da Silva Gusmão atuava em territó-rios brasileiros desde o ano de 1734, quando assumiu o mandato como intendente em Goiás, então distrito da capitania de São Paulo, e cumpriu esse mandato até o ano de 1738 – por-tanto quase vinte anos antes de assumir o juizado de fora em Mato Grosso. E, vale ressaltar, Teotônio Gusmão criou o cargo da Intendência, fato que torna ainda mais importante ainda sua contribuição para o Império português13.

Após o fim do mandato no cargo ele voltou à metrópole, onde por alguns anos traba-lhou como advogado. Enfim, anos depois foi chamado para servir de juiz de fora na Vila de

11. Para maiores detalhes sobre festas e procissões ver JESUS, Nauk Maria de. A “cabeça da república” e as festividades na fronteira oeste na América portuguesa. In: A terra da conquista: a história de Mato Grosso colonial. Cuiabá, Ed. Adriana, 2003.

12. Carta do juiz de fora da Vila de Cuiabá Antonio Rodrigues Gaioso à rainha D. Maria em que pede seja aclarado o lugar que deve ocupar o mestre de campo Antonio José Pinto de Figueiredo nas procissões. Vila do Cuiabá, 28/08/1783. AHU. Projeto Resgate. Cd 5. Pasta 022. sub pasta 001. fotos 178-181.

13. Carta do governador e capitão general da capitania do Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura Tavares, ao rei [D. José] sobre o merecimento do juiz de fora Teotônio da Silva Gusmão ao pedido de ajuda de custo para as grandes despesas na criação da vila de Mato Grosso. Vila do Cuiabá, 04/07/1751. Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate. Cd 2. Pasta 006. Subpasta 001. Fotos 0087-0096.

Itu, na capitania de São Paulo, cumprindo-o de 1747 a 175014.Antes do fim do seu mandato já foi designado para servir novamente o cargo de juiz de fora na capitania de Mato Grosso, onde, assim como no seu mandato em Goiás, criaria o cargo15. No Mato Grosso atuou entre os anos de 1751 a 1756. Logo após, fundou o povoado de Nossa Senhora da Boa Viagem do Salto Grande no norte da capitania, para servir de contato com a capitania do Pará. Essa é a ultima localidade na qual s documentação nos permite acompanhar o oficial.

Desde o período em que serviu como intendente em Goiás, mais precisamente quan-do finalizou seu cargo, empenhou-se em pedir vaga para atuar no Tribunal da Relação da Bahia, estância superior da justiça na parcela americana do império. Como já foi dito, os cargos de menor importância na hierarquia da administração e justiça serviam como requi-sitos básicos para se atingir posições importantes no governo português. Porém, seu pedido não foi aceito pelo Conselho Ultramarino, obrigando, então sua volta para a corte. Durante o período em que serviu o cargo em serviu na Vila de Itu, novamente fez pedidos para que pudesse servir na Relação da Bahia. Ao passo que foi ordenado a criar o cargo de juiz de fora e auxiliar na criação de Vila Bela, mandou algumas cartas ao Conselho Ultramarino pedindo que revisassem sua situação e não lhe mandassem para Mato Grosso16. Essas cartas revelam, de forma interessante, como o imaginário atua em relação à ocupação dessas esferas admi-nistrativas por parte dos oficiais. Como formas de legitimar seus argumentos a favor de sua escolha para a Relação da Bahia e a sua não ida para a capitania de Mato Grosso, ele se utiliza de alguns argumentos que nos permite revelar alguns desses pontos.

Primeiramente ele cita os cargos anteriores em que esteve à frente, na América por-tuguesa. Ressalta o fato de ter vindo com o objetivo de ter criado o cargo de intendente em Goiás, assim como o de juiz de fora do Mato Grosso e de ter atuado por três anos em Itu, também como juiz de fora. Ele pede o acesso ao cargo na relação, pois “Vossa Majestade costuma sempre determiná-lo a qualquer que vai a criar lugar, ainda no reino, quanto mais a um sertão doentio, sumamente descômodo”. Argumenta também que alguns outros oficiais cumpriram apenas um mandato como ouvidores ou juízes de fora no Brasil e já receberam uma vaga na Relação da Bahia, como por exemplo: “José Rodrigues de Burgo Villa Lobos [que] indo para a ouvidoria do Cuiabá levou o assento para a Relação do Porto. João Gon-çalves Prado que depois foi para a mesma ouvidoria levou o assento para a Relação da Bahia. Desses exemplos podemos citar inumeráveis”, enquanto que ele, devido a todos os anos que atuou como advogado na corte, adicionado aos anos em que cumpriu o cargo, tinha uma experiência muito maior para esses assuntos17.

Também utiliza como argumento o fato de estar repleto de “achaques”, doenças no peito que o fazia expelir sangue pela boca e tosses contínuas. Como anexo de uma dessas cartas, envia atestados de três médicos diferentes, um da Vila de Itu e dois de São Paulo, em que todos confirmam as mesmas doenças. De acordo com Teotônio Gusmão, a viagem longa de Itu até Cuiabá, mais o caminho desconhecido que teria de enfrentar para chegar ao local onde Vila Bela se situaria poderia ser letal para sua saúde que, inclusive, poderia piorar

14. Idem.15. Idem.16. Carta do governador e capitão general da capitania do Mato Grosso, Antonio Rolim de Moura Tavares, ao rei...17. Requerimento do juiz d fora de Itu, bacharel Teotônio da Silva Gusmão, nomeado para o Mato Grosso ao rei [D. João V]

em que pede seja graduado o lugar que vai criar com o titulo de ouvidoria, com o mesmo ordenado e aposentadoria que tem o da Vila do Cuiabá, e juntamente administre as ocupações de intendente ao provedor real com propina anual, ajuda de custo, e vença seu ordenado desde o dia do embarque em Itu. 21/01/1751. AHU. Projeto Resgate. Cd 02. Pasta 005. Subpasta 002. Fotos 275-282.

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com os “maus ares” do distrito do Mato Grosso. Mas enfim, ele argumenta que aceitou fazer a viajem e cumprir a ordem do rei, para que o “bom serviço” fosse feito18. Como já foi explici-tado acima, os esforços empreendidos, no sentido de provação e dificuldade pelos ocupantes em terras americanas – oficiais ou civis - eram utilizados como justificativas para os pedidos de mercês e graças. Por isso, Teotônio da Silva Gusmão argumenta que, mesmo doente esta-va pronto para fazer o serviço real, e por isso merecia, após o cumprimento e criação do cargo de juiz de fora no Mato Grosso, que fosse indicado para a Relação da Bahia.

Assim, nesse trabalho procuramos mostrar como algumas representações se davam no Antigo Regime acerca dos cargos administrativos e de justiça, além do imaginário criado acerca das câmaras municipais e elites locais, onde as primeiras representavam, para as se-gundas, as formas de ganhar maior reconhecimento e nobreza, assim como a maior porta voz – ainda que não a única – dessas para com o poder central. Vimos também, no caso mais específicos de Mato Grosso a rivalidade entre as duas vilas da capitania – Vila Bela da Santíssima Trindade e Vila Real do Nosso Senhor Jesus do Cuiabá -, e de como a segunda contribuiu para cristalizar um imaginário pejorativo acerca da primeira e de como a Coroa portuguesa estimulava essa rivalidade e manipulava, de acordo com seus interesses, dando, ora pra uma, ora pra outra, privilégios que aumentavam seu prestigio e importância entre outras localidades do Império. Por ultimo vimos a trajetória do juiz de fora Teotônio da Silva Gusmão através de diversos cargos administrativos e de justiça e de como o imaginário acer-ca dos serviços prestados ao rei servia como justificativa para a obtenção de graças e favores, que seriam proporcionados por uma promoção para um cargo mais importante na hierar-quia administrativa do Império português.

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“Projeto Integrado de Coloniza-ção Padre Adolpho Rohl:

Movimentos Migratórios e Colonização e a formação do

município (1970-1980)”

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A partir da década de 1970 houve no Brasil, principalmente nos estados do Mato Grosso e Rondônia, um fluxo migratório considerável, este foi incentivado pelo

Estado para ocupar essas regiões que, o autor Cosme Ferreira Filho, em seu livro “A Amazônia em Novas Dimensões”, tinha por objetivo levar a cultura brasileira para os chamados “espaços vazios” antes que os estrangeiros tomassem posse da região. O estado de Rondônia teve um crescimento populacional gigantesco, se comparado aos anos anteriores, e doze projetos de colonização foram criados dirigidos por órgãos particulares e privados, como a CALAMA e o INCRA. De todos esses projetos esse texto terá como ponto central de discussão o “Projeto Integrado de Colonização Padre Adolpho Rohl”, localizado na região central do estado e as margens da rodovia BR-29, atual BR 364. Esse PIC recebeu mais de sete mil famílias somente entre o decênio de 1970-80, conforme citou Teófilo L. Lima, e com a súbita expansão da área, no final dos anos 1980 surgia a Vila de Jaru, posteriormente emancipada. Como ponto central da discussão aqui proposta tentar-se-á mostrar a importância econômica e política propor-cionada pelos imigrantes, em sua maioria famílias e conterrâneos que vinham em caminhões de pau-a-pique, que procuravam assentamentos próximos uns aos outros e mantinham ain-da preservada a sua cultura. O agente fundamental para toda essa construção foi o INCRA, responsável pela manutenção do PIC e dos colonos ou parceleiros como eram chamados por essa entidade. Este era o único órgão federal em toda a área durante um longo período de tempo, até a chegada das secretarias de Saúde (a antiga FUNASA) e Meio Ambiente além

1. Acadêmico do oitavo semestre do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Estadual do Estado do Mato Grosso, campus de Cáceres..

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da Polícia; sendo que os servidores do INCRA faziam o papel de policiais e médicos, além de conciliadores nas disputas por terras entre os colonos.

Já o processo migratório na região foi proporcionado após a construção da rodovia BR-29, ainda na década de 1960, como será mostrado no decorrer desse texto. (LIMA, 2001) O autor Esron Penha de Menezes afirma em seu texto que a área geográfica do Território Fe-deral de Rondônia teve a sua ocupação começada no século XVII com umas poucas missões jesuíticas, atraídas pelo comércio das chamadas “drogas do sertão”, mas os primeiros núcleos populacionais da região conhecidos têm origens no atual município de Ji-paraná e na região que ficava às margens da estrada de ferro Madeira-Mamoré, isso já no início do século XX. Quanto ao atual município de Jaru e os seus primeiros núcleos populacionais o autor escreve, ao citar Vitor Hugo, que

os seringueiros teriam chegado a esta região em 1883; ‘Frei Iluminato reti-rou-se definitivamente do Rio Machado ( Ji-paraná) deixando a adminis-tração em mãos do morador Amâncio Farias da Cruz. ’ A missão teria sido fundado (sic) há 40 léguas acima da Cachoeira de ‘Dois de Novembro’, abrangendo terrenos ocupados pelas tribos dos Jarús e Urupás. (MENE-ZES, 1988: 23).

A tribo do Jarús também é citada pelo sertanista Marechal Cândido Rondon em seu diário, quando este estabeleceu uma linha telegráfica na região. Segundo o relato ele havia estabelecido o primeiro contato com os indígenas desta tribo no dia 22 de Janeiro de 1915, quando “encontrei dois ranchinhos dos índios jarús – resto de grande tribo que dominara o baixo Tramak.” (LIMA, 2001:105). Entretanto essa tribo, com a chegada dos primeiros serin-gueiros ainda na virada do século XIX para o XX, foi expulsa da região onde hoje se localiza o município. Atualmente não há vestígios dela, de acordo com os moradores mais antigos da região ela foi exterminada. Quanto aos primeiros seringueiros que chegaram à região eles eram oriundos, em sua grande maioria, do nordeste brasileiro e estabeleceram-se na comu-nidade administrada por Ricardo Catanhede, chamada Seringal do Monte Nebo. De acordo com o depoimento prestado por Odete Borges de Moraes, nascida naquele seringal no dia 14 de novembro de 1920, havia no máximo 50 famílias em torno do seringal, ficando assim até a instalação do INCRA na região e a chegada dos primeiros colonos nos anos 1960.

Quanto a ocupação e distribuição de terras feita por incentivo do Estado o historiador Fiorelo Pacioli, que estudou os Projetos de Colonização desenvolvidos pelo INCRA no estado do Mato Grosso na década de 1970, afirma que desde o golpe militar de 1964 ela era incen-tivada. Entretanto foi com a construção da rodovia Transamazônica, que tinha uma extensão total de mais de 5.400 km, que aumentou o número de imigrantes nordestinos a essa região do país, como será mostrado no decorrer desse texto. Para que fossem ocupadas todas essas áreas vazias da região Amazônica o Governo passou a incentivar a imigração para elas e para isso foi criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, no dia 09 de Julho de 1970. Esse órgão Federal, derivado do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA - tinha por finalidade garantir aos colonos o que estava no Estatuto da Terra, ou seja, tinha a função de “garantir as melhores condições de fixação do homem a terra e seu progresso social e econômico” (conforme reza o Capítulo II, Art. 63 do Estatuto da Terra). Quanto ao termo colonização, que aparece no nome do INCRA, e é utilizado para designar esse processo de povoamento na Amazônia, Sueli Pereira Castro, que estudou o processo de colonização no estado do Mato Grosso, afirma que essa expressão, no seu sentido mais amplo, poderia repre-sentar o processo de ocupação de uma área, realizados por indivíduos de outra localidade, esses indivíduos seriam os colonos. Ainda segundo a pesquisadora, em um conceito mais

amplo, colonização se confundia com povoamento, mas fazendo a distinção entre os termos ela observa que “colonização é o povoamento precedido de planejamento governamental ou privado.” (CASTRO, 1994: 47). E foi exatamente isso o que ocorreu em estados como Mato Grosso, Amazonas e Rondônia. Nesse último, a política de colonização ocorreu com recursos tanto da área governamental, através do INCRA, quanto com recursos da área privada, por meio de empréstimos feitos pelo Banco Mundial e empresas que tinham interesses em áreas da região para a extração de madeira, estanho, pedras preciosas e cassiterita. (OLIVEIRA, 1990)

Mas antes do INCRA iniciar suas atividades na região norte do Brasil foi criada pri-meira a rodovia federal BR-29, ocorrido anos antes na região, que no traçado original ligaria Rio Branco-AC a Cuiabá-MT. Essa rodovia tinha por finalidade escoar os produtos do Acre e de Rondônia para o Centro-Sul do país, além de ser uma tentativa de aumentar o fluxo migratório para a região. A construção da rodovia foi realizada no ano de 1960 e a cerimônia de inauguração da nova rodovia, realizada em Janeiro de 1961, foi simples sendo realizada no final do governo de Juscelino Kubitschek. Embora em 4 de Julho do ano anterior houve uma cerimônia em que JK, dirigindo um trator, retirou da estrada uma árvore simbolizando que havia retirado o último obstáculo que impedia Rondônia de se ligar ao restante do país. (MARTINS, 1971)

Retornando aos propósitos do INCRA este tinha por função, quando fora criado, pres-tar assistência aos colonos nas áreas da rodovia Transamazônica. O objetivo era de assentar as famílias de colonos em uma área de 10 km de cada lado da rodovia por toda a sua ex-tensão. Após isso novas localidades de assentamentos foram escolhidas dentro do território de Rondônia. O INCRA atuaria nessas localidades criando Projetos de Assentamentos para ajudar os imigrantes, distribuindo lotes de terras entre eles de forma organizada e seletiva. Após um processo de triagem os colonos eram instalados em seus respectivos lotes, ao qual o INCRA vinculava a posse definitiva aos colonos que fizessem benfeitorias nos mesmos, sendo que o desmatamento era a benfeitoria mais utilizada pelos assentados, conforme afir-maram Antonio Cláudio Rabelo e Leonardo Felizardo Ferreira ao citarem Orlando Valverde. De acordo com os planos originais desses projetos os colonos, recém-chegados às áreas de atuação do INCRA, seriam submetidos a um exame médico e receberiam um salário míni-mo durante seis meses para as suas instalações inicias além de uma casa rústica, um lote de 100 hectares escolhido por consentimento mútuo, preços garantidos para a sua produção agrícola e educação para as crianças. Entretanto Louc Mougeot, ao citar Murilo de Carvalho, alerta que poucos desses planos foram realizados, principalmente os de fornecer educação às crianças dos assentamentos. Uma das dificuldades enfrentadas pelo INCRA e pelos colonos foi a falta de conhecimento sobre a região a ser ocupada. Isso porque a política de coloniza-ção do governo era de deslocar famílias para áreas de fronteiras, para que elas ocupassem e explorassem a região modificando os chamados vazios demográficos. Mas ao criar projetos de assentamentos nessas localidades o INCRA não levou em conta o relevo e a hidrografia da região e acabou assentando colonos em áreas de pântano e de terras impróprias para a agricultura. Como afirmou Mougeot, foram inevitáveis esses erros do governo por pressa ou falta de estudo planejado.O autor ainda destaca que muitos dos imigrantes que chegavam eram analfabetos, por isso teve-se que construir uma escola alfabetizadora para eles. Ainda de acordo com Martins o plano inicial da Calama era de plantar café no centro de Rondônia, embora os imigrantes que chegavam à região através da companhia começaram um novo tipo de cultura ainda pouco conhecida pelos rondonienses: a agropastoril. Entretanto a Cala-ma foi comprada pelo grupo Vigorelli e esse grupo optou por transformar os lotes de terras

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em pequenos sítios para depois vendê-los aos colonos através de financiamentos a curto e longo prazo. (idem)

No antigo Território Federal de Rondônia, criado pelo Decreto-Lei nº. 5.812, de 13 de Dezembro de 1943, houve doze Projetos de Colonização oficiais desenvolvidos pelo INCRA entre o período de 1970 e 1984. O primeiro deles, e um dos que mais atraiu migrantes para Rondônia, foi o chamado Projeto Integrado de Colonização Ouro Preto ou PIC-OP. Ele havia sido desenvolvido pelo IBRA, Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, órgão que originou o INCRA. O PIC-OP foi criado de acordo com o Decreto-Lei nº. 281-70, em uma área desapro-priada de antigos seringais, de 15 de Agosto de 1968. De acordo com Ariovaldo Umbelino de Oliveira o intuito dos Projetos Integrados de Colonização desenvolvidos em Rondônia era ocupar a região, para isso o INCRA iria assumir a responsabilidade de organizar e administrar os PICs, bem como realizar o assentamento e a titulação dos beneficiários. De acordo com documentos obtidos por Teófilo L. de Lima, pesquisador da Universidade Luterana do Brasil, os planos do INCRA para Rondônia eram constituídos de criar assentamentos às margens da BR-364, conforme especificava o Artigo 1º do Decreto 63.104, do dia 15 de Agosto de 1968, e segundo esse Decreto, o segmento da BR-364, entre as cidades de Ariquemes e Ji-Paraná deveria abranger uma faixa de seis quilômetros de cada lado da rodovia destinada aos assen-tamentos. Porém devido o grande fluxo migratório que houve na região essas demarcações foram posteriormente modificadas, aumentando a área a ser demarcada para os assenta-mentos. Oficialmente, segundo dados apurados por Lima, foi no dia 19 de Julho de 1970 que começaram os Projetos de Colonização em Rondônia e para atender a todos os imigrantes que chegavam à região – segundo cálculos de Ariovaldo Umbelino de Oliveira foram entre os anos de 1973 e 1984 mais de 110 mil famílias para Rondônia – os escritórios do INCRA se dividiram em três diferentes áreas de atuação: Organização Fundiária, Organização Agrária e Promoção Agrária. A primeira tinha por objetivo observar a situação jurídica das terras a serem distribuídas, delimitando os loteamentos, distribuição das parcelas de terras e fixação dos limites de projeto, no caso dos PICs eram 100 hectares por família ou colono. O segundo escritório tinha a função de mobilizar e organizar recursos comunitários para depois distri-buí-los entre os assentados. E o último era designado para organizar as unidades agrícolas e distribuí-las entre os colonos. (LIMA, 2001:140)

Os PICs de Rondônia eram parte de um projeto ainda maior, o Programa Polonoroes-te. Este havia destinado recursos financeiros para empreendimentos como a construção da BR-29 e outros projetos particulares de colonização na Amazônia. Esse projeto contava com recursos de particulares que tinham interesse na exploração da cassiterita e ouro na região norte do então Território Federal de Rondônia. É importante salientar que para se conseguir um lote de terra através do PIC, ainda nos anos 1970, o colono deveria preencher uma série de requisitos do INCRA, sendo que o pretendente a terra teria que possuir pouca ou nenhu-ma experiência de lavoura e não poderia ter terras ou caso as tivesse deveria estar abaixo do nível de subsistência da lavoura familiar. Como apontou Mougeot isso excluía automati-camente as pessoas dotadas de boa educação, capital ou aptidões gerenciais, fazendo com que a grande maioria dos colonos fosse de áreas atrasadas do Nordeste. Em uma tentativa de melhorar a qualidade dos recursos humanos nos PICs e para encorajar o intercâmbio de idéias, ainda segundo Mougeot, o INCRA passou a misturar colonos, ou seja, passou a co-locar colonos oriundos do Centro-Sul juntos com colonos do Nordeste com a finalidade de que eles trocassem suas experiências na agricultura. Mesmo assim o INCRA passou a fazer uma mistura de 20% de colonos do Centro-Sul com 80% de colonos do Nordeste. O moti-vo, segundo Mougeot, era a de que esses colonos trocassem experiências sobre o cultivo e

plantio da terra em uma tentativa de que essas trocas ajudassem todos a melhorar a suas produções. (OLIVEIRA, 1990)

Quanto ao número de imigrantes que chegaram a Rondônia durante as décadas de 1970-80, houve a cada ano um aumento significativo. Antes de serem iniciados os PICs a den-sidade demográfica do Território era de 0,4 habitantes por quilômetros quadrados segundo dados feitos pelo próprio Governo Federal nesse período. Entretanto após o Estado começar a fazer propaganda de que o Território era possuidor das terras mais férteis do país, onde se afirmava que a região era o novo Eldorado, o fluxo migratório para Rondônia alcançou um crescimento recorde se comparado ao restante do país: 14,9% ao ano, e foram mais de 110 mil famílias que se dirigiram aos PICs nesse período e até o ano de 1976 mais de 29 mil famí-lias migraram para Rondônia, sendo que maioria deles eram oriundos do nordeste e sul do país, todos atraídos pela propaganda estatal. Por esse motivo o orçamento do INCRA para o Território era superior do que o próprio orçamento federal para Rondônia. (idem)

Já analisando o Projeto Integrado de Colonização em Ouro Preto pode-se afirmar que devido ao fato dele ser um dos maiores, senão o maior, ele também foi o que mais recebeu colonos. Inicialmente a sua área para assentamento era de 512.585 hectares, sendo que so-mente nos seus dois primeiros anos de atuação, segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, ele recebeu cerca de cinco mil famílias. Porém a sua área de atuação, se é que se pode definir assim, foi aumentada passando a ter mais de cinco setores sobre a jurisdição de Ouro Preto D’Oeste. Por causa das distâncias desses PICs acabou sendo criados novos PICs. Entre eles o que teve crescimento mais rápido foi o Projeto Integrado de Colonização Padre Adolpho Rohl, PIC-PeAR, que entre o decênio 1973-83 assentou 5.821 famílias. Outro motivo que aju-dou a aumentar o número de imigrantes para a região foi a elevação do Território Federal de Rondônia para a condição de Estado. Isso ocorreu em 1981. Sob uma nova forma político--administrativa o agora estado de Rondônia atraiu um número maior de imigrantes para as suas terras e, como já citado acima, o PIC-OP era o local que mais atraía colonos em busca de terras e foi também o que mais prosperou; e por estar localizado em uma área muito grande, com assentamentos distantes mais de 100 km um do outro, o INCRA resolveu criar novos assentamentos como o já citado PIC-PeAR. Este estava localizado a 50 km da sede de Ouro Preto e tinha duas mil famílias assentadas até então. Segundo dados oficiais do INCRA a data da criação desse novo Assentamento é de 11 de Novembro de 1975. De acordo com Teófilo L. Lima esse novo PIC foi o que mais prosperou entre todos os existentes nesse mesmo perí-odo, devido à alta fertilidade de seu solo e a sua localização no centro do Estado.

De certa forma esse foi o ponto inicial do surgimento do município de Jaru, ainda sen-do um Projeto de colonização pertencente ao também projeto de colonização Ouro Preto.

Bibliografia

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LIMA, Teófilo L. Do Monte Nebo a Jaru: Um passado a ser conhecido. Canoas: Editora ULBRA, 2001.

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Cartas americanas de Alexander von Humboldt

iGor anTonio marques de paiva

16 de Julho de 1799. Os viajantes naturalistas Alexander von Humboldt e Aimé Bonpland deram início aos seus percursos no continente americano ao chega-

rem ao porto da cidade de Cumaná – a capital da província de Nueva Andalucía – a bordo da fragata espanhola Pizarro. No espaço da atual Venezuela, os sábios foram recebidos pelo, então, governador da província de Cumaná – Don Vicente Emparán – e levados às acomo-dações alugadas pelo barão de Humboldt (MINGUET, 1985: p. 126). A partir de então, ao início das primeiras explorações, o geólogo e barão prussiano – Humboldt – inauguraria a séria americana de comunicações epistolares que mantinha sábios e posteriormente, com o envio dos textos das cartas aos periódicos, o público de leitores europeus informados dos acontecimentos vivenciados por Humboldt e Bonpland no trânsito científico nas colônias espanholas.

Nosso foco neste estudo é uma epístola de Alexander enviada em 16 de Julho de 1799 para o seu irmão, Wilhelm von Humboldt, importante filólogo e diplomata prussiano. Neste texto, temos por propósito estabelecer relações entre a descrição da paisagem da costa cumanense presente na carta de 16 de julho de 1799 e o debate filosófico setecentista sobre a essência da natureza da América; e, depois, enfatizar o posicionamento do viajante prussiano na disputa intelectual.

Os primeiros momentos vivenciados nos trópicos americanos resultaram na ocasião de alojarem-se, de criar laços com as elites locais e de contemplarem a paisagem que seria o cenário do início da exploração. Em 16 de julho de 1799, recém-chegado à costa de Cumaná, o naturalista descreveu para Wilhelm von Humboldt os seus planos iniciais e compôs uma cena do seu encontro com a paisagem dos trópicos.

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Relatou o viajante epistolier:

Nós permaneceremos alguns meses em Caracas; estamos de entrada no mais divino e rico país. Plantas maravilhosas; gymnotos [enguias], tigres, tatus, macacos, periquitos; e uma quantidade de índios semi-selvagens, raça muito bela e interessante [...]

No mesmo exemplar, continuou:

Que árvores! De coqueiros de 50 a 60 pés de altura, a Poinciana pulcher-rima, com ramalhetes de um pé de altura de flores de um vermelho vivo magnífico; de bananeiras e uma massa de árvores de folhas monstruo-sas e flores perfumadas da grandeza de uma mão, da qual não sabemos nada. Recordo que este país é tão desconhecido que um novo tipo que Mutis (ver Cavanilles, Icones, Tom.IV) publicou, há apenas dois anos, é uma árvore de grande sombra de 60 pés de altura. Estávamos tão felizes de encontrar esta magnífica planta [...] Quanto são numerosas também as plantas pequenas ainda não observadas! E que cores possuem os pás-saros, os peixes, até mesmo os caranguejos (azul de céu e amarelo)! Até agora passeamos como loucos; nos três primeiros dias não podemos de-terminar nada, porque se rejeita sempre um objeto para interessar-se por outro. Bonpland assegura que perderá a cabeça se as maravilhas não ces-sarem de aparecer. Mas o que é mais bonito ainda que estas maravilhas tomadas particularmente, é a impressão que produz o conjunto desta natureza vegetal potente, exuberante e contudo tão suave, tão fácil, tão serena. Sinto que serei muito feliz aqui e que estas impressões congratular--me-ão frequentemente daqui para frente. (HAMY 1905, p.25-27).

A carta enviada para Wilhelm teve como motivo principal o encontro dos viajantes com a natureza americana na costa de Cumaná. No texto da missiva, os viajantes naturalistas estão descritos num cenário natural, ao qual se misturavam, tendo suas subjetividades dilu-ídas, por meio de uma linguagem contemplativa e que limitava-se a separar porosamente homem e paisagem, ciência e sensibilidade.

Propomos a leitura da cena do encontro de Humboldt e Bonpland com a paisagem da costa cumanense representada na narrativa epistolar às luzes de uma dupla temática. O cenário primeiro revela a riqueza das cores, formas e variedade das relações dos elementos dos reinos naturais e humano (“índios semiselvagens”) na composição da paisagem naquela costa. No mesmo sentido, os gestos, as impressões e as sensibilidades expressas pelos via-jantes são postas em cena para contribuir com a construção da imagem da exuberância da natureza na América. No outro tema, as descrições do cotidiano ilustram a presença – in situ – de Humboldt e Bonpland nos lugares descritos aos que foram os seus correspondentes durante o tempo da viagem. A presença destes temas ilustra uma antecipação de problemas orientadores da literatura americanista produzida por Alexander von Humboldt; por meio das cartas escritas no trânsito, o prussiano posicionava-se nos debates intelectuais sobre a natureza do continente americano emoldurando a narrativa do cotidiano nas colônias em cenários paisagísticos: ricos, coloridos e variados.

A descrição da cena do encontro de 16 de julho de 1799 remete aos debates intelec-tuais setecentistas que pretenderam definir a representação mais adequada para a América.

O prussiano viu e representou a si mesmo a paisagem dos trópicos americanos a partir da grade constituída pelo debate sobre o significado e o lugar do dito Nouveau Monde dentro da ordem planetária pensada por filósofos e naturalistas do século XVIII e XIX.

O debate permeava, por um lado, a tese que postulava a América como espaços enlanguescidos ocupados por povos vagabundos sem cultura e donos de corpos débeis e frígidos. O cenário obscurecia-se com a flora selvagem que impedia que a luz do sol chegasse ao seu solo infértil e pantanoso. Neste mesmo contexto, a fauna apreendida em comparação aos animais europeus, africanos e asiáticos – o dito l’Ancien Monde – afigurava-lhes como despojada de grandes mamíferos e apinhada de insetos, répteis e pequenos vermes. No outro lado da disputa, a América era representada como um espaço de natureza fértil, variada e monumental. Os seres humanos perdiam os ares doentios e as edificações e monumentos pré-hispânicos nos Andes e no México eram vistos com algum traço de relevância para a teorização da história da humanidade (GERBI, 1996: p.19-334).

A tese da debilidade americana entrou para o estatuto da racionalidade ilustrada atra-vés da pena do naturalista francês, encarregado do Jardin du Roi, Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon. O filósofo enciclopedista postulava o continente americano como uma for-mação geológica que havia emergido das águas num período posterior ao resto do mundo. A imaturidade geológica americana servia como a causa lógica da paisagem alagada e inós-pita às formas nobres da configuração da vida. Isso significava, na classificação do aristocrata francês, que o quadro natural lânguido sufocava o crescimento das populações de grandes mamíferos e fazia propagar insetos, répteis e outros seres de sangre frio e de pequena talha. Na América representada nos volumes da Histoire naturelle, de Buffon: “a natureza viva é [...] bem menos ativa, bem menos variada e podemos até dizer bem menos forte” (Apud. GERBI, 1996: p.20).

Humboldt desenvolveu e posicionou-se frente ao debate em torno da representação do continente americano, nas cartas e depois nos livros de viagem, numa vertente contrária à visão sintética buffoniana. Remetendo a leitura para os escritos posteriores aos relatos das cartas, aproximamo-nos de uma versão verossímil da lógica interna e dos debates intelectuais que nortearam a realidade vista, experimentada e descrita nas cartas do prussiano durante a viagem pelas colônias americanas.

Os enredos cotidianos da viagem eram construídos a partir de temas do repertório fornecidos pelo debate americanista. Os viajantes são representados transitando – com a série aberta pela missiva para Wilhelm von Humboldt de 16 de Julho de 1799 – em cenários paisagísticos construídos sob emblemas da variedade, riqueza e imponência natural dos tró-picos no continente americano. Estranhava-se, como na carta a Forell de 16 de julho de 1799, a síntese da América buffoniana com descrições de encanto do viajante pelas variedades das paisagens tropicais: “Deus!” – disse Humboldt – “Que país possui o rei católico, que porto majestoso de plantas, que pássaros, que cimas cobertas de neve [...]” (HAMY, 1904: p.30). Esta mesma variedade aparece no recado que o prussiano manda ao seu professor em Gotinga – Blumenbach –, por meio de carta ao barão Franz Xaver von Zach de 1° de setembro de 1799. Vulcões, fauna e flora colossal de ceibas aparecem pontualmente na descrição dos cenários paisagísticos vistos por Humboldt e comunicados ao então editor (o barão de Zach) do Monaltliche Correspodenz (HAMY, 1904: p.43). Em carta enviada a Forell de 3 de fevereiro de 1800, Humboldt denotou a vegetação cumanense, a sua imponência, lembrando o herbário publicado nas obras de Nilolaus Joseph Jacquin – o viajante holandês que percorreu o Caribe e América central de 1754 a 1759 e era encarregado do Jardim Botânico de Viena desde 1768. Na mesma carta expressa ainda o temor pelos miasmas que se acreditava se formar pela

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combinação dos climas chuvosos e quentes; contudo, a apreensão do clima fresco e salutar da costa cumanense afastava semelhanças profundas com a imagem síntese do Nouveau Monde de Buffon (HAMY, 1905: p.65). Na carta para Wilhelm de 17 de outubro de 1800, estes climas e paisagens levaram o viajante a dizer: “pode ser que não exista país em todo o Universo o qual se possa viver de um modo tão agradável e tranquilo em comparação com a vida nas colônias espanholas” [...] (HAMY, 1904: p.86); logo, pinta-se um claro contraste com a tese buffoniana sobre os efeitos degenerativos dos ares americanos.

O debate americano orientava o olhar de Humboldt, inclusive, no ensaio que acom-panhava a coleção de minerais, enviada a Clavijo y Fajardo em 3 de fevereiro de 1800, que deveriam demonstrar a paridade da constituição geológica de Europa e América (MINGUET, 1988: p.42); assim, comprovando pelos recursos da ciência que não existiam duas naturezas geológicas antepostas, como queria Buffon. A inclusão da América numa ordem planetária do mundo natural figura ainda nos comentários sobre os crocodilos tão grandes e ferozes quanto os da África: “eles devoram de boa vontade tanto um branco como um negro [...] não devem nada aos carnívoros africanos”; escreveu para Zach em 1° de setembro de 1799 (HAMY, 1904: p.43). Humboldt, opondo-se, ainda, a argumentação buffoniana, com exem-plares de fósseis de mastodonte coletados nos Andes, salientou para membros do Institut de France a presença de grandes quadrúpedes no território de América (HAMY 1904, p.139). Na esfera antropológica havia comentários parcialmente elogiosos sobre a cultura urbana andina (HAMY, 1904: p.136), mas, em carta para Wilhem von Humboldt, no âmbito da antropologia física, lê-se uma resposta direta à tese do efeito degenerativo da América. Em missiva ao ir-mão, Alexander von Humboldt comentou em 21 de setembro de 1801: “os Caribes é o povo mais forte e mais musculoso que já vi; por si só contradizem as ilusões de Raynal e de Pauw sobre a fraqueza e a degeneração da espécie humana no Novo Mundo. Um Caribe adulto assemelha-se a um Hércules fundido no bronze” (HAMY, 1904: p.122). As epistolas de Hum-boldt apresentam séries de exemplos vistos, tocados e experimentados in loco como uma primeira confrontação à tese da degeneração causada pelos efeitos da essência contaminante da natureza da América.

Os leitores das epistolas puderam ver desenvolvido o posicionamento de Humboldt neste debate após a publicação dos livros de viagem. No Essai sur la Geographie des Plantes (1807), o prussiano definiu o seu modelo de apreensão das paisagens dos trópicos. A contra-pelo da síntese da América buffoniana:

As formas vegetais próximas ao Equador – escreveu o viajante epistolier – são em geral mais majestosas, mais imponentes; o verniz das folhas é mais brilhante, o tecido parênquima das plantas é mais variado, mais suculento. As árvores mais elevadas e são constantemente enfeitadas com flores mais bonitas, maiores e mais odoríferas que aquelas herbáceas nas zonas temperadas (HUMBOLDT, 1990: p.33).

No prefácio do livro Vues des Cordilléres, publicado em 1810 e 1813, o prussiano de-senvolveu crítica à síntese da representação filosófica da América como um espaço de natu-reza hostil e povoada por hordas selvagens:

Escritores famosos, mais impressionados pelos contrastes que pela har-monia da natureza, tinham escolhido descrever a América inteira como um país pantanoso, contrária à multiplicação dos animais e ultimamente habitada por hordas tão pouco civilizadas quanto os habitantes dos ma-res do Sul [...] eles [os defensores da tese da debilidade americana] confun-

diram as descrições declamatórias de Solis e alguns outros escritores que nunca haviam deixado a Europa, com as relações simples e verdadeiras dos primeiros viajantes; parece o dever de um filósofo negar qualquer coi-sa que há sido observada pelos missionários. (HUMBOLDT, 1810: p.II)

Alguns anos depois, na narrativa de viagem, Humboldt prosseguiu o desenvolvimento da crítica sobre o enunciado da debilidade do continente americano consagrado pelas publi-cações buffonianas. Nas páginas de abertura da Voyage aux régions équinoxiales du Nouveau Continent, publicada em três tomos, em 1814, 1819 e 1825, ponderou:

Se a América não ocupa um lugar distinto na história do gênero humano e das antigas revoluções que o têm agitado, ela oferece um vasto campo aos trabalhos do Físico. Em nenhum outro lugar a Natureza não o chama com mais vivacidade às idéias gerais sobre a causa de fenômenos e so-bre o seu encadeamento mútuo. Não citarei esta força da vegetação, este frescor eterno da vida orgânica, estes climas dispostos por andares sobre a inclinação das Cordilheiras, e estes rios imensos que um escritor célebre [referia-se a Chateaubriand] pintou-nos com uma admirável fidelidade. As vantagens que oferece o Novo Mundo para o estudo da geologia e da física geral estão reconhecidas desde muito tempo. Feliz o viajante que pode ter aproveitado de sua posição, e ter acrescentado algumas verdades novas à massa daquelas que já adquirimos! (HUMBOLDT, 1814: p.33-34)

A crítica de Humboldt – presente em sua obra e vida intelectual – ao enunciado da imaturidade geológica do continente americano e das teses que se desdobraram daquele dis-curso tem duas vias. Opunha-se ao olhar dualista que atribuía ao continente americano uma natureza pobre e degenerada ao ser colocada em contraste com a Europa. Depois avançava para a desqualificação daquela representação como saber especulativo e evocava a presença do observador no habitat do objeto de pesquisa como procedimento de validação para a representação do verdadeiro.

O sentido dado a algumas palavras desvela uma profunda separação entre a geografia mental de Humboldt e o pensamento de Buffon. O uso do termo Nouveau Monde na escrita humboldtiana foi esvaziado do significado anterior – da lógica buffoniana – de anteposição e reflexo degenerado e inferior das formas de vida do Ancien Monde. No lugar do conceito que fazia alusão à imaturidade geológica do continente americano, Humboldt o capturou como um espaço dentro das linhas hemisféricas – planetárias – dos trópicos.

O naturalista francês havia montado a sua visão filosófica do mundo a partir da sepa-ração em linha vertical, antepondo, numa forma dicotômica o Nouveau ao Ancien Monde, enquanto Humboldt apreendia os lugares americanos que havia visitado a partir das linhas paralelas dos trópicos que envolviam a esfera do planeta Terra. Trocou-se, portanto, uma apreensão geral orientada pela linha vertical formadora de uma imagem dual do mundo por outra orientada pelas linhas que acompanham o círculo planetário. Nesta segunda configura-ção da representação geográfica do mundo, abriu-se caminho para uma apreensão filosófica, no olhar europeu, harmonizadora e unificadora das heterogenias culturais e paisagísticas for-madoras do planeta. A América dos trópicos, finalmente, figurava como um lugar específico – sem dicotomias e dualidades imanentes – dentro da trama geográfica de espaços hetero-gêneos e harmoniosamente complementares da composição do planeta.

A diferença desdobrava-se na versão do realismo da leitura humboldtiana do mundo. Buffon atribuía realidade às macro-narrativas elaboradas a partir da inspiração do espírito

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racional e filosófico. O viajante prussiano, por outro lado, buscava a autorização das suas descrições como verdadeiras na afirmação de empirismo. A observação dos fenômenos de-veria ocorrer no próprio local de sua ocorrência, pois, revelar-se-ia aos olhos treinados do naturalista a imagem viva e verdadeira em oposição às versões empobrecidas dos fenômenos parcialmente retidos em estufas, coleções e laboratórios.

O estudo de animais, plantas e minerais, in situ, era para esse estudioso o meio pelo qual seria possível determinar as leis das relações entre o mundo animado e inanimado – aná-lises de tipos de paisagem com parâmetros estabelecidos nas alterações do relevo e distância do nível do mar – e verificar a influência da paisagem sobre o intelecto do homem. A ciência concebida pelo prussiano, enfim, atribuiu ao estudo feito in situ um papel definidor para o discurso verdadeiro. Neste sentido, Humboldt desdobrou a sua crítica aos discursos da infe-rioridade americana ao defini-los como saberes especulativos, pois, feitos sem a proximidade que só – em suas palavras – a posição do viajante poderia oferecer.

A epístola enviada a Wilhelm, antecipando-se aos livros de viagem, portanto, teatrali-zava o debate intelectual sobre a suposta debilidade do continente americano desenvolvido por Alexander von Humboldt em sua bibliografia. O cotidiano e o sentimento nas descrições epistolares remetiam à dupla contraposição de Humboldt ao continente descrito por Buffon e depois De Pauw, Raynal, Robertson e outros mais ou menos influenciados pelo enunciado da América degenerada (GERBI, 1996: p.310-316).

Bibliografia

GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

HUMBOLDT, Alexandre de. Essai sur la géographie des Plantes. Nanterre: Éditions Erasme, 1990.

HUMBOLDT, Alexandre de. Relation historique du Voyage aux régions équinoxiales du nouveau continent, fait en 1799, 1800, 1801, 1802, 1803 et 1804, par Al. de Humboldt et A. Bonpland. Paris: Casa F. Scholl, 1814.

HUMBOLDT, Alexander de. Vues des Cordillères et monumens des peubles indigènes de l’Amerique. Paris: Shimit, imprimerie Shimit, La librarie Grecque - Latine - Alemande (1810) 1816, 2 volumes.

HAMY, E. T. Lettres Américaines d’Alexander von Humboldt (1798-1807). Paris: Librarie Orientale & Américaine Guilmoto, 1904.

MINGUET, Charles. Cartas Americanas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1988.

MINGUET, Charles. Alejandro de Humboldt historiador y geógrafo de la América española (1799-1804). México, Imprenta Universitaria, 1985.

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A organização dos assentamen-tos do INCRA na Região Norte de Mato Grosso: o direito à educa-ção como espaço de resistência

irene Carrillo romero beber1

odimar João peripolli2

ana Carrillo romero GrunnenvaldT3

José TarCisio GrunnenvaldT4

helio vieir a Júnior5

Este artigo propões uma discussão sobre o modelo de organização dos assenta-mentos de Reforma Agrária do INCRA na região Norte de Mato Grosso, em espe-

cial os municípios de Sinop, Claudia, Vera e Santa Carmem, buscando compreender como os sujeitos do campo se mobilizam para garantir o direito à educação das crianças. A pesquisa utiliza-se de dados de natureza documental, história oral, entrevistas e diário de campo. Os resultados apontam que o modelo de reforma agrária imposto pelo Banco Mundial aos pa-íses periféricos, mais especificamente, na região da Amazônia norte de Mato Grosso, cujos reflexos se fazem sentir na forma como estas terras vêm sendo ocupadas/re-ocupadas, como é o caso dos assentamentos de reforma agrária do INCRA para a região. Esta forma de gestar as políticas públicas para o campo representa, hoje, o que há de mais perverso no atual mo-delo político voltado para o campo: a transformação da terra em mercadoria.

Os dados evidenciam o fracasso deste modelo, pois não garante aos sujeitos do cam-po o direito à saúde, à educação, moradia, bem como o direito de produzir e viver no/do

1. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutoranda em Educação pela UFRGS. FAPEMAT.

2. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutor em Educação pela UFR-GS. FAPEMAT.

3. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Sinop, Doutora em Educação pela UNICAMP. FAPEMAT.

4. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Sinop, Doutor em Educação pela PUC/SP. FAPEMAT.

5. Universidade do Estado do Mato Grosso ( UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, mestre em Sociologia.

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campo, no entanto a escola tem-se constituído como um espaço privilegiado de encontro, resistência e fixação deste sujeito no campo. Os dados aqui apresentados fazem parte das discussões propostas pelo projeto de pesquisa: Educação do campo e o direito da criança: as relações constitutivas nas escolas dos assentamentos na Região Norte de Mato Grosso, e tem financiamento aprovado pela FAPEMAT6- (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Mato Grosso). Os procedimentos metodológicos adotados neste estudo nos remetem a necessidade de articular as possibilidades de estabelecer uma relação dialógica entre: os pesquisadores, suas compreensões e visões sobre a problemática estabelecida, o campo de pesquisa e os conhecimentos e saberes científicos produzidos na forma de teorias sobre o tema a ser desvendado. Neste sentido afirma Becker (1997: 13) que “Toda pesquisa tem o propósito de resolver um problema específico que, em aspectos importantes, não é parecido com nenhum outro problema, e deve fazê-lo dentro de um ambiente específico diferente de todos os que existiam antes”.

Portanto, a aproximação na realidade do campo de pesquisa no sentido de favorecer a inserção do pesquisador no espaço-tempo de pesquisa, o registro das observações no diário de campo, segundo Bogdan e Biklen, (apud LUDKE E ANDRÉ, 1986) o conteúdo das obser-vações deve envolver uma parte descritiva e uma parte mais reflexiva. Estamos numa fase introdutória no campo de pesquisa em que se faz necessário uma composição e compilação dos dados documentais e históricos destes assentamentos.

Para tanto estamos recorrendo à revisão de estudos que caracterizaram o modelo de reforma agrária implantada nesta região. A realização de entrevistas com os sujeitos do cam-po, dirigentes, líderes nestas comunidades, secretários municipais de educação e responsáveis pela aplicação das políticas públicas para o campo nestes municípios.

Busca-se, neste processo compreender como se caracterizam as organizações políti-ca, cultural, social e educacional, traçando articulações entre os estudos já produzidos e os dados da realidade empírica atual. Como já mencionamos anteriormente, estes dados são preliminares e apresentam algumas das situações vividas pelos assentados (parceleiros) e são capturadas pelo grupo de pesquisa em quatro projetos de Reforma de Agrária do Incra na Região Norte de Mato Grosso.

Pretende-se apreender também que modelos de educação/escola que vêm sendo construídos a partir das políticas impostas pelo projeto neoliberal para o campo e, conse-qüentemente, para a escola, tomando como caso uma região de fronteira, a Mato-grossense como estes sujeitos do campo se mobilizam para garantir o direito à educação as crianças.

Sendo assim os dados parciais nos remetem a algumas percepções: a) em Mato Gros-so o programa do Banco Mundial voltado para o meio rural/campo7, que deu origem à chamada “reforma agrária de mercado”, é uma realidade8; b) os movimentos sociais voltados

6. O Projeto de pesquisa: Educação do campo e os direitos da criança: as relações constitutivas nas escolas dos Assenta-mentos da Região Norte de mato Grosso é financiado pela FAPEMAT, é coordenado por Ms. Irene Carrillo Romero Beber, na equipe de pesquisadores participam: Dra. Jaqueline Pasuch ( UNEMAT), Dr. Odimar Peripolli ( UNEMAT), Dr. Alceu Zóia ( UNEMAT), Ms. Hélio Vieira Júnior (UNEMAT), Ms. Ivone Cella (UNEMAT), Dra. Ana Carrillo Romero Grunnen-valdt (UFMT- Sinop) e Dr. José Tarcísio Grunnenvaldt (UFMT- Sinop)

7. Alguns autores ressaltam a expressão “campo” em substituição ao “rural”, concebendo-o como um espaço social com vida, identidade cultural própria e prática compartilhadas por aqueles que a vivem e não mais como um espaço territo-rial, demarcador de área (FERNANDES, 2002).

8. Começaram a serem criados durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002). Hoje, quase todos os muni-cípios do Estado têm assentamentos de Reforma Agrária.

às questões do campo ainda encontram grandes resistências, por parte do capital, para se or-ganizarem9; mas, c) este silêncio vem sendo quebrado. Tanto que, hoje, os latifundiários (bur-guesia agrária) sentem-se ameaçados frente à possibilidade de terem o “sagrado” direito da propriedade privada da terra ser questionado. Às margens da BR 163 (Cuiabá/MT-Santarém/PA), a exemplo de outras rodovias estaduais, já existem diversos acampamentos de sem-terra liderados/organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os assentamentos de Reforma Agrária do Incra10 na região amazônica foram criados na década de 1990 durante o governo de FHC (1985 – 2002), na perspectiva de desmorali-zar e criminalizar os movimentos sociais que se punham em marcha frente às muitas crises desencadeadas pelo projeto em curso/neoliberal, em detrimento dos interesses da classe trabalhadora, tanto do campo quanto e da cidade11.

Esta prática de “distribuir” terra (longe de uma proposta de Reforma Agrária) vem materializar as políticas agrária, agrícola e educacional impostas pelo Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial (BM) nos países pobres, sobretudo América Latina, Ásia e África, ou seja, estes assentamentos de Reforma Agrária obedecem e refletem a política fundiária imposta pelo Banco, voltada para atender os interesses do capital. Capital esse que se move em direção a novos mercados, extrapolando fronteiras físicas, políticas e culturais do planeta. Estamos, portanto, na rota/caminho que vem sendo construído pelo mais novo projeto do capital para o campo, a terra, única e exclusivamente, vista como mercadoria.

Sampaio (2004: 13), ao se referir ao programa do BM para o campo, diz que este, “após décadas de tentativas de substituir a reforma agrária por programas de desenvolvimento rural desenhados com o intuito precípuo de evitar a desapropriação em massa de terras declarou--se convencido da necessidade de alterar a estrutura fundiária dos países latino-americanos”.

Esta política, pretensamente dita de “ajuste estrutural”, defendida pelo BM, têm esti-mulado, segundo Mendonça e Resende (2004: 07), a privatização das terras públicas e co-munitárias, bem como das florestas e das águas. É importante perceber que as atenções do BM estão direcionadas e voltadas mais para o campo. Isso se deve ao fato de que as maiores regiões concentradoras de recursos naturais – como água, terra, minério e biodiversidade – estão justamente no campo. Portanto, estas regiões passaram a ser o centro das políticas de agências financeiras internacionais. O que nos leva a concluir que não é por acaso que, hoje, em nível mundial, os principais projetos do BM estejam voltados para o campo.

Dentro das políticas fundiárias para o campo, os principais programas do BM incluem, entre outros aspectos: a privatização de terras públicas e comunitárias; a mercantilização da reforma agrária; o cadastro/georreferenciamento dos imóveis rurais; o mercado de terras e a integração dos camponeses ao agronegócio (MENDONÇA e REZENDE, 2004). É o que po-deríamos chamar de “pacote” de medidas políticas para o campo. Estas têm como finalidade implantar, nos países periféricos, o “mercado de terra”, transformando a terra de trabalho em terra de negócio (MARTINS, 1985).

9. Talvez essa seja uma das razões para que o norte de Mato Grosso seja conhecido como “terra do silêncio” (BECKER, 1998).

10. Ao me referir “do Incra” quero apenas distingui-los dos assentamentos provenientes dos movimentos sociais ligados ao campo.

11. Mais de 3 milhões de empregos destruídos nos anos 90 (MATTOSO, 1999).

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A educação escolar: lugar de reprodução ou de resistência?

Assim como as políticas agrária e agrícola, a política educacional também está sob a vigilância e às regras impostas pelo BIRD. Melo (2004: 148), ao falar da globalização – mun-dialização do capital -, que é o que se propõe o projeto neoliberal, diz que, “esta globalização se dá de forma cada vez mais seletiva, atribuindo vocações comparativas aos países e, em conseqüência, às suas políticas educacionais, transformando os países subdesenvolvidos em mercados a serem explorados e em terceirizadores de mercadorias e serviços”.

No projeto neoliberal mundializado, sustentado pelo paradigma de acumulação fle-xível, os trabalhadores precisam adquirir novas competências e habilidades individuais, que irão substituir a antiga qualificação profissional. A este projeto interessa trabalhadores aptos, capazes, que atendam aos interesses do capital. Cabe, neste caso, à escola, desenvolver estas aptidões, estas capacidades.

Ao que nos parece, aquela escola que tinha como preocupação os valores sociais, cul-turais e políticos, passou a ter outra tarefa, qual seja: “a formação de caracteres adaptáveis às variações existenciais e profissionais em movimento” (LAVAL, 2004: 23). Ou seja, uma escola cada vez mais voltada a instrumentalizar os trabalhadores para que possam desempenhar melhor sua função em uma economia orientada pela competitividade.

Em suma, busca-se construir uma escola que esteja voltada para atender os interesses burgueses, cujo valor se resume ao saber-fazer e aos “saberes úteis supostamente melhor adaptados aos jovens vindos das classes populares e correspondendo às necessidades das empresas” (LAVAL, 2004: 24).

Qual o resultado desta política? Esta política de reformas educacionais conduzidas pelo FMI e pelo BM/UNESCO provocaram um “desmonte” dos sistemas educacionais locais (MELO, 2004: 257). Este ocorreu também nas escolas rurais, ou seja, nas poucas que ainda restaram.

Acreditamos que estas considerações devam ser levadas em conta ao nos propor trabalhar a escola do campo. Uma forma de não corrermos o risco de separarmos a “parte” do “todo”, produzindo um discurso meramente político ou uma produção panfletária. Até porque “[...]os fatos educacionais só podem ser convenientemente entendidos quando ex-postos conjuntamente com uma análise sócio-econômica das sociedades em que têm lugar’’ (PONCE, 2001: 10). Não basta que se pense a educação simplesmente como prática. É pre-ciso pensá-la sob uma perspectiva de globalidade, ou seja, vista como prática inserida num processo político-social, não mecanicamente, mas articulada com intencionalidade de classe.

Os valores transmitidos nas escolas são valores burgueses e têm como objetivo difun-dir a ideologia burguesa. Daí a necessidade da universalização da educação para todos. Até mesmo para os filhos dos assentados em um assentamento de reforma agrária situado nos mais distantes rincões do país, como é o caso do Assentamento Gleba Mercedes V, Sinop/MT, passaram a ter este “direito”. A escola, neste caso, serve como instrumento para que os sujeitos que ali vivem e trabalham tenham um mínimo de formação que vem ao encontro com os valores e projeto burguês.

Em que pese todas as críticas à escola, quer urbana/cidade, quer à rural/campo, com todos os limites, esta ainda se mostra como um espaço onde se produzem também as con-tradições sociais; um lugar de ação, de luta, de possibilidades e de conquista da cultura e da

ciência como meios, como forma e instrumento de enfrentamento. Libâneo (2002: 07)nos coloca que: “Não creio que haja outro lugar mais adequado para o desenvolvimento da razão crítica, formação de cidadãos participativos, críticos, à medida que lhes possibilite armas de luta contra o domínio cultural, intelectual, político e econômico, de que é vítima nesta socie-dade capitalista do que a escola”.

Portanto, a importância da escola está no sentido de que esta venha a possibilitar às populações pobres, da cidade e do campo, o acesso ao conhecimento, capaz de fazê-las interpretar o mundo e atuar na sua transformação. Enfim, que as faça sujeitos capazes de participar das relações de poder na sociedade, de influir nas decisões que afetam sua própria existência e interferir criticamente nos espaços de construção da democracia.

As falas em parte caracterizam a forma de abandono em que se encontram, criados pelo Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (INCRA), na década de 1990, estão sob custódia (responsabilidade) do Estado e/ou dos municípios.

Porém, apesar do descaso das políticas públicas, paradoxalmente, a escola se apre-senta como um espaço de encontro da comunidade, um espaço de resistência e fixação dos sujeitos do campo. O lugar que em grande medida “acontecem” as mobilizações, reuniões da comunidade. A educação é para estes um direito que deve ser conquistado pelo coletivo e não apenas pelos pais, alunos e professores. A escola é a garantia de qualidade de vida, é con-dição de permanência nestes assentamentos. Escolas estruturadas e organizadas propiciam a permanência dos parceleiros, ao contrário dos assentamentos que pela precarização do ensino e do não acesso destas crianças se constituem como mais um elemento de expulsão destes assentados.

No entanto os dirigentes municipais de educação têm reiterado as dificuldades en-frentadas em garantir e propiciar as condições de acesso a crianças nos assentamentos.

O assentamento é totalmente irregular, foi uma invasão que acontece numa área de reserva e que enquanto não for regularizado, fica difícil fazer alguma construção lá [...] a prefeitura tem responsabilidade fiscal.(Fala de uma secretaria municipal de educação sobre um assentamento que fica a 35 Km da sede do município)

Esta escola atende cerca de 35 alunos, da educação infantil ao 5º ano, numa sala mul-tisseriada, em apenas uma sala de aula.

[...] enquanto os pequenos estão na sala de aula fazendo as atividades, os outros alunos estão na varanda da escola fazendo atividades de desenho, pintura com o instrutor do projeto PET, que também exerce a função de motorista do transporte escolar. (Fala da professora)

[...] eu queria que minha filha fosse estudar na cidade, ela não está apren-dendo nada aqui [...] ela esta desaprendendo o que sabia. [...] já que o ônibus, o ônibus, o transporte escolar leva os outros alunos para estudar na cidade, passa por ali mesmo, minha filha poderia ir junto. ( fala de uma mãe da aluna no 3º ano)

Apesar das péssimas condições da escola os lideres do assentamento se mobilizaram para garantir organização desta escola que funciona precariamente numa casa da fazenda que foi abandonada e posteriormente invadida pelos assentados. Por ser um assentamento

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segundo a fala da secretaria “irregular” o poder público municipal não poderia investir em construções em espaços que não foram demarcados pelo Incra.

O transporte escolar leva os alunos de 6º ano ao 9º ano e ensino médio para as escolas urbanas na sede do município. Temos presenciado situações como na Gleba Mercedes em que a comunidade se reúne e se articula em torno da escola, as reuniões da comunidade acontecem na escola e o processo de escolarização dos estudantes tem se apresentado como elemento de fixação do sujeito no campo. A comunidade se organizou e se mobilizou para garantir no inicio de 2010 a organização de turmas de EJA – campo como mais uma oportu-nidade de fixar o jovem no campo.

Considerações finais

Quando a escola se torna um elemento de mediação, como um centro de articulação das ações que acontecem na comunidade, esta pode se apropria dos espaços físicos da escola e neste promover envolvimentos necessários a estes integrantes, buscar melhorias para este ambiente, e construir um acordo sobre a importância da escola para a vida da comunidade.

Neste sentido, o projeto que traz ainda dados preliminares das realidades vividas pelos assentados nestes municípios, neste momento aponta para alguns questionamentos: por que o poder público, ainda não entendeu a função que escola tem nestes assentamentos, ou não valoriza ou prioriza a permanência destes sujeitos no campo? A que importa a vida destes assentados? E com suas crianças? Porque alguns resistem e outros desistem? Como os assentados em Claudia estão se mobilizando para cobrar a garantia do direito à educação de seus filhos? O que está acontecendo com os assentados em Vera que estão recebendo e ou receberam seus títulos definitivos, estão vendendo, ou resistindo? Porque a escola neste assentamento está reduzindo o número de turmas e alunos. A escola é um espaço de resis-tência, mas que resistência? Resistência ou teimosia?

O que podemos perceber até esta ocasião é que, a política fundiária proposta pelo projeto neoliberal, financiada pelos organismos financeiros internacionais (BIRD, BM, FMI) impede a realização ou a efetivação de uma Reforma Agrária que venha, de fato, atender os interesses dos trabalhadores do campo. Ou seja, uma reforma Agrária que consiga promo-ver uma transformação social no campo. Um reforma agrária que leve vida ao campo e não morte.

Bibliografia

LIBÂNEO, José Carlos. Prefácio. In: Educação, Cultura e Sociedade: abordagens críticas da esco-la. Goiânia – Goiás: Edições Germinal, 2002.

LUDKE Menga; ANDRE Marli E. D. Pesquisa qualitativa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

MARTINS, José de Sousa. A militarização da Questão Agrária no Brasil (terra e poder: os pro-blemas da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

MATTOSO, Jorge. O Brasil desempregado: como foram destruídos mais de 3 milhões de em-

pregos nos anos 90. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.

MELO, Adriana Almeida Sales de. A Mundalização da Educação: consolidação do projeto neo-liberal na América Latina. Brasil e Venezuela . Maceió: EDUFAL, 2004.

MENDONÇA, M. Luisa e RESENDE, Marcelo. As Políticas do Banco Mundial são iguais em todo mundo. In: MARTINS, Mônica Dias. O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na Amé-rica Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004.

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Políticas Públicas em Mato Grosso pós 1970:

divisionismo, ocupação dos espaços “vazios” e movimento de

emancipação (1970-2006)

ivoneTe GiaChini leiTe1*

Mato Grosso se constitui em um amplo espaço a ser pesquisado, como é o caso dos anseios separatistas presentes no Estado desde o final do século XIX, esses

anseios levaram inclusive ao desmembramento de seu território�.

Na década de 1990, surgiram no Estado Projetos-Lei que pretendiam, a partir do de uma re-divisão do território mato-grossense criar uma, ou, mais unidades federativas. Além da iniciativa de segmentos políticos, outros membros da sociedade também passaram a apoiar a separação, estes em sua maioria pertencentes a região Norte do Estado, denominado pela população local como: “Nortão”.

O objetivo deste texto é analisar como a política adotada, no pós 1970, pelos gover-nos militares condicionou uma nova configuração para Mato Grosso, como a mudança do mapa (desmembramento de parte de seu território) e aberturas de novas fronteiras agrícolas. Nesse contexto, buscamos compreender ainda, como o desenvolvimento econômico passa novamente a fazer parte de argumentos separatistas, pautados na idéia de uma suposta su-perioridade dos homens “progressistas” que vieram para o norte e transformaram o espaço, agora por eles ocupado, em “celeiro do Brasil” em detrimento aos que aqui estavam e não teriam tido “competência” para tal feito.

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado de Mato Grosso (UFMT). Bolsista Capes. Sob orientação do Prof. Dr. João Carlos Barrozo.

Além do desmembramento de parte das terras localizadas ao Sul do Estado que culminou com a criação de Mato Grosso do Sul a partir da Promulgação da Lei n. 31 de 11 de outubro de 1977 em 1943 e 1944, o Governo Federal, criou o Terri-tório Federal de Guaporé e de Ponta Porá, através do Decreto n. 5.812. Mais informações ver: Silva, 1996.

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Consideramos importante compreender os anseios divisionistas, que contribuíram para a divisão de 1977, uma vez que, os discursos favoráveis a re-divisão, constantemente fazem alusão a esse desmembramento e, em muitas ocasiões utilizam-se dos mesmos argu-mentos. Além disso,

a prática discursiva mato-grossense formula a divisão territorial ocorrida em 1977, como “a primeira divisão estadual” de Mato Grosso. Divisões territoriais anteriores como a criação do Estado de Rondônia que foi des-membrado parte de Mato Grosso e parte do Estado do Pará em 1943, não se apresentam como acontecimento discursivo (PITOMBO OLIVEIRA, 2007:34).

Sobre este contexto, em depoimento a TV Centro América - que foi ao ar por ocasião dos 30 anos da criação de Mato Grosso do Sul - José Garcia Neto, governador de Mato Gros-so de 1974 a 1977, ressalta a fala do Presidente da República Ernesto Geisel sobre a Promul-gação da Lei n. 31 de 11 de outubro de 1977:

Eu vou dizer aqui uma expressão que ele me falou: - resolvi dividir Mato Grosso, porque Mato Grosso tem tantas potencialidades que quando for um São Paulo, poderá afetar o equilíbrio da federação brasileira (TVCA, depoimento de José Garcia Neto, 08 de outubro de 2007).

Garcia Neto ressalta que Geisel estava preocupado com os desfechos que o desen-volvimento das potencialidades de Mato Grosso poderia resultar. Nesse contexto, a menção a São Paulo era referente à Revolução Constitucionalista (1932), momento em que aquele Estado almejou autonomia, colocando em risco a soberania nacional.

Matérias veiculadas em jornais de Cuiabá apontavam a desaprovação pelo fato de não ter nenhum representante da política mato-grossense na equipe que realizou os estudos técnicos sobre a viabilidade do desmembramento. As críticas ressaltavam a ausência de uma consulta popular, através de um plebiscito, e o fato de não terem levado em conta os motivos enaltecidos pelo governador do Estado, Garcia Neto, sobre as implicações que a divisão po-deria causar, bem como, os argumentos favoráveis à manutenção do Estado Uno. Conclui-se que a decisão teria sido tomada pelo alto escalão do governo federal 2.

Considerando essa hipótese, da decisão ter sido um ato do governo federal, ou seja, não levando em conta a opinião da população que vivia no Estado e nem mesmo o posi-cionamento do governo estadual, as problemáticas a seguir nos parecem pertinentes. Seria um interesse que visava a Lei de Segurança Nacional? Ou a divisão seria uma forma de via-bilizar a administração? Ou de outra forma: foi preciso separar para melhor administrar ou a aplicação sem a divisão - logo o desenvolvimento de potencialidades presentes no espaço - poderia colocar em risco a Segurança Nacional? Na tentativa de buscar respostas, mesmos que provisórias para estas questões, vamos tentar compreender a configuração política que os militares instauraram no país.

Apesar de Geisel (1974-1979) fazer parte da facção militar denominada de Modera-dos, e estar comprometido com a idéia de abertura política, no caso da Promulgação da Lei que criou Mato Grosso do Sul, o ato não pode ser apreendido a partir concepção de demo-

2. Para mais informações a respeito do papel das Forças Armadas no processo político brasileiro (1964-1985) ver: Borges, 2003.

cracia que conhecemos. A “nação-potência deveria estar acima dos interesses individuais (...)”, sendo uma constante nos discursos que pretendiam legitimar ações não “tão democráticas” (SANT’ ANA, 2009:52).

Apesar de Geisel estar comprometido com uma política de “abertura”, ainda assim, poderia ter optado por realizar a divisão a partir de um decreto, pois governou dentro dos ditames de um regime autoritário. Em contrapartida, também não escolheu o viés da demo-cracia, o que implicaria em um plebiscito. Optou por uma política, autoritária, mas “sutil”, ou seja, a divisão teria sido resultado de “estudos”, lembrando que não havia nenhum mato-gros-sense na comissão e também não foram levados em conta os argumentos que justificariam a manutenção do Estado Uno, estes amplamente defendidos pelo governador do Estado, Garcia Neto. Mas, tudo em prol a Segurança Nacional.

Também em nome da Segurança Nacional fazia-se necessário, dentro da perspecti-vas apontadas, tornarem os espaços mais homogêneos para que fosse possível uma melhor canalização dos recursos para cada pólo, atendendo as suas diferentes “vocações” ou poten-cialidades, é neste contexto que nos interessa apontar alguns aspectos referentes as políticas públicas adotadas a partir de 1970 para a (re) ocupação dos espaços considerados “vazios”.

Desde os anos 80, são divulgados, em jornais tanto da capital quanto do interior, maté-rias que retratam o norte de Mato Grosso3 como um espaço de “progresso”. Ressaltando que o “progresso” em questão estava relacionado ao desenvolvimento técnico e material. Esse desenvolvimento será utilizado como algo que o diferenciava do restante do Estado, sugerin-do até mesmo a emancipação dessa região com a criação de mais uma unidade federativa.

A colonização do Norte do Estado, considerando a configuração geográfica pós 1977, tem sido tratada como algo relevante para se compreender uma suposta gênese das discre-pâncias entre um Norte desenvolvido (nos moldes do capitalismo) e um Sul dependente economicamente, desse Norte. Ressaltando nesse contexto, as constantes alusões aos termos “colonização” e “progresso”.

Em Mato Grosso, na região norte, foi implantado dois modelos de colonização dirigi-da: a realizada pela iniciativa pública e a elaborada em conjunto de empresas privadas/gover-no federal (PACs). Em relação ao conceito de colonização, percebemos que a sua concepção tomou novas proporções obedecendo a diferentes temporalidades e paradigmas aos qual o saber historiográfico considerava como o mais apropriado para o momento.

Fazendo um breve retrospecto, a partir de Reis (2007), podemos dizer que Varnhagem atribuiu a colonização, no caso, realizada pelos portugueses, o status de um grande feito, des-considerando os povos e a cultura dos que aqui viviam. Freire preferiu atribuir à colonização uma áurea harmoniosa onde os conflitos supostamente não existiam. Holanda destacou a importância da criação de novos padrões para a sociedade brasileira que se distanciassem dos elaborados durante a colonização, operando uma ruptura com a visão mítica da coloni-zação portuguesa. Prado Junior propõe uma visão economicista, enfatizando que a realidade brasileira, mesmo após um século da colonização, teria como referencia ainda o processo colonizador.

É fato que colonizar no Brasil, sempre teve um significado aliado a exploração e impo-sição cultural do colonizador perante os que habitam o espaço a ser (re) ocupado. De acordo

3. Localização - O Norte de Mato Grosso faz parte das cinco mesorregiões homogêneas que foram agrupadas pelo IBGE e conforme o censo demográfico de 2000, conta com 707.262 habitantes.

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com Bosi, “colonizar significa ocupar um novo chão, trazer a memória da terra antiga (...) e transmitir práticas e significados às novas gerações (a cultura)” (1992:12).

A colonização, tal qual empreendemos uma tentativa de compreensão, apresenta-se como um processo realizada em áreas já habitadas, configurando num cenário de exploração e domínio. A exploração entendida nos moldes do capital, como foi o caso da abertura das fronteiras agrícolas no Norte de Mato Grosso4.

Esse cenário, muitas vezes é permeado por intensos conflitos, chegando até a violência física, pois não basta apenas impor seus valores, seus ideais é preciso controlar fisicamente o espaço e seus habitantes, caso estes demonstrem alguma resistência. Bosi enfatiza: “O traço grosso da dominação é inerente as diversas formas de colonizar e, quase sempre, as sobre determina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só em cuidar, mas também em mandar” (1992:12).

Diante dessas premissas, consideramos coerente a idéia de Gilberto Dupas: “A capa-cidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer e assume plenamente a assunção de progresso; mas, esse progresso, ato de fé secular traz também consigo exclusão, concentração de renda e subdesenvolvimento” (2006:11).

No caso do processo de colonização na Amazônia, de acordo com Ianni:

O primeiro a ser expropriado é o índio; e o segundo é o posseiro. Os gran-des negociantes de terras (grileiros, latifundiários e empresários, nacionais e estrangeiros) monopolizam a terra em escala crescente. Vencem os ín-dios, caboclos, sitiantes e posseiros, com base em seu poder econômico, pela burocracia ou pela violência (1979: 23).

Salientamos que a idéia de progresso, no processo de colonização do norte de Mato Grosso, estava atrelada a ideologia hegemônica do acúmulo do capital, pois foram desconsi-derados os grupos que vivam nestas áreas e colocados a um segundo plano as pessoas que não tinham posses suficientes para conseguirem sobreviver aos adventícios dos primeiros anos. Assim, colonizar e progredir apesar das diferenças inerentes a semântica das palavras pode ser compreendido como similares se consideradas a ligação intrínseca ao modelo capi-talista de produção.

É dentro desse contexto, que a partir da década de 70 do século XX, foi promovida a política de ocupação da Amazônia. A “Operação Amazônia” tinha como propósito a inte-gração da Amazônia e torná-la produtiva, a operacionalização desse objetivo fez com que fossem criados vários órgãos e programas federais, destacando-se: Superintendência do De-senvolvimento da Amazônia (SUDAM); Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrá-ria (INCRA); Banco da Amazônia S. A. (BASA); Plano de Integração Nacional (PIN); Pólo da Amazônia (POLAMAZÔNIA); Pólo do Noroeste (POLONOROESTE); Pólo dos Cerrados e o Programa da Borracha (PROBOR).

A política desenvolvida pelo governo federal compreendia a Amazônia como um espaço “vazio”, “desabitado”. Esse posicionamento fez com que fossem desconsiderados os habitantes que viviam nos lugares incluídos na política de colonização. Contudo, podemos

4. Sobre isso ver: Oliveira, 1993.

dizer que a concepção de “vazio” da política governamental, não era em termos demográfi-cos, mas em termos produtivos.

Além do PIN, devemos citar ainda a SUDAM e o BASA, estes órgãos favoreceram ca-pitalistas que viviam na região sul e sudeste através de incentivos fiscais e créditos para que estes adquirissem grandes porções de terra na Amazônia e Centro-Oeste. Assim, as vantagens oferecidas para estes empresários compensavam os gastos iniciais que poderiam ter, pois estes obteriam “terras abundantes e de baixo custo, e pelo crédito farto e barato” (Barrozo, 2008: 20).

Ao passo que nesse “vazio demográfico” o incentivo à ocupação de terras, hipoteti-camente promissoras, se estabelecia, na região sul do país, uma espécie de conflito fundiário em razão de problemas de ordem agrária, como da superprodução cafeeira, do esgotamento da fertilidade do solo e da dificuldade de modernização do minifúndio, logo, o governo pre-feriu “ocupar a Amazônia com agricultores do sul, que tivessem vocação para a agricultura” (Idem).

Souza (2004) aponta para a utilização das propagandas como um recurso estratégico para atrair famílias daquela região do Brasil para uma terra produtiva e apropriada para o plantio do café. Assim, migrar para Mato Grosso significaria encontrar terras férteis, lucros fáceis e ascensão social.

Apesar das colonizadoras serem de origem particular, era importante para estas o aval do governo, pois grande parte dos recursos para viabilizar os projetos foi obtida a partir de fi-nanciamentos conseguidos nos órgãos estatais, como podemos verificar na fala do então Pre-sidente do Brasil, João Figueiredo no ano de 1980, quando este visitou as áreas de colonização:

Apesar das dificuldades econômicas por que passa o nosso país, os poucos recursos que meu governo tem posto a disposição desta área não tem di-minuído o entusiasmo dos que aqui labutam, em particular o colono que, em prazo curto a de fazer dessa região o celeiro de nossa pátria. ( Jornal do Dia. Cuiabá, 03 de julho de 1980:03).

A decisão de atribuir a iniciativa privada a colonização da região norte do Mato Gros-so, deve-se a uma estratégia, cujo objetivo era centralização do poder executivo, com vistas a estabelecer uma ordem social que excluía o povo da participação pelas vias institucionais. É neste contexto, que “o empresário do sul o bandeirante moderno que se interessava pelas riquezas da Amazônia, revela-se o comandante ideal para preencher os espaços vazios” (Gui-marães Neto, 1986 apud Oliveira, 2008:42).

Hannah Arendt: acrescenta que em uma “(...) uma sociedade que havia escolhido o caminho da aquisição contínua, tinha de engendrar uma organização política dinâmica capaz de levar a um processo contínuo de geração de poder” (ARENDT, 1978 apud GUIMA-RÃES NETO, 2002:153).

Passadas aproximadamente quatro décadas de todo esse processo colonizador – tem-po relativamente curto de constituição de um espaço - ocorre que o discurso que coloca essa região dicotomicamente em relação ao estado por inteiro, ganhou novos significados e tem se calcificado no consciente coletivo dos indivíduos natos da região e daqueles que a adotaram como morada.

Propostas de retalhamento do estado de Mato Grosso ganharam força nos anos de 1990, sendo a extensão territorial, nos discursos de políticos da região, o principal motivo

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para a necessidade de divisão, pois acarretaria a inviabilidade de se governar uma extensa área; dificuldades das cidades do interior, devido à distância para com a capital – Cuiabá - e por fim as diferenças culturais que existiriam dentro do próprio Estado.

No ano de 1995, foi proposto o primeiro Projeto de Decreto Legislativo nº 55, pelo Deputado Federal de Mato Grosso, Weliton Fagundes em co-autoria com o Deputado Rogé-rio Silva. Posteriormente outras iniciativas foram tomadas em relação à proposta de divisão, como o Projeto Decreto Legislativo 18/99, do Senador Federal Mozarildo Cavalcanti (PFL – RR) que propôs à criação do Estado do Araguaia, este chegou a ser aprovado pelo Senado Federal e pela Comissão da Amazônia e Desenvolvimento Regional.5

Apesar destes Projetos não terem alcançado êxito, não podemos deixar de apreendê--los como partes de uma retórica sobre a necessidade de retalhamento do Estado. O discurso anunciava elementos que se articulavam em função do convencimento da necessidade de divisão. Enfatizando que é do interesse de todos os habitantes da região norte a divisão do Estado, “(...) o anseio da população norte mato-grossense é plenamente favorável à divisão e criação do Novo Estado de Mato Grosso do Norte6.

Alguns periódicos fizeram menção ao anseio separatista:

Campanha pela divisão de MT

Na ultima sexta-feira foi lançada a campanha pela criação do Estado do Araguaia, durante jantar que teve a presença do senador Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, e autor do projeto. No ano passado o projeto foi votado no plenário do Senado. Está na Câmara dos Deputados. Lá ele deverá ser apreciado, votado no plenário, e devolvido ao Senado para votação e o andamento da aprovação do plebiscito (...) ( Jornal A Gazeta. Cuiabá, segunda-feira, 18 de março de 2002:02).

Apesar, de a matéria ser datada do ano 2002, período recente, é possível a partir de um levantamento de periódicos da década de 80, percebermos que já eram cogitadas, na região Norte de Mato Grosso manifestações em prol da emancipação da região, é claro que devemos pontuar que não havia qualquer projeto ou organização pró-divisão mais elabora-da. Contudo, esse anseio separatista já se fazia presente:

Nortão quer ser independente de MT

(...) a questão da necessidade da criação de um novo Estado, ou mais especificamente dividir Mato Grosso e, com essa parte associar terras do Amazonas e do Pará, criando assim o Estado do Mato Grosso do Norte. (...) é significativo o descontentamento das populações dos municípios do chamado Nortão pelo descaso e discriminação que vem sofrendo a região (...) ( Jornal Folha de Colíder: O Jornal do Vale do Peixoto. Colíder-MT, 12-18 de fevereiro de 1988: 02).

A re-divisão, não chegou a se efetuar como aconteceu em 1977, ocasião esta em que o

5. Deputado Federal Ricarte de Freitas (PSDB), foi o relator desse projeto, que ainda possui uma emenda, que propõe a criação do estado de Mato Grosso do Norte.

6. Projeto de Decreto Legislativo n. 55, de 1995. Deputado Federal/ MT, Sr. Weliton Fagundes. Câmara dos Deputados – Brasília/ DF, 1995, p. 2 – 3.

desmembramento de parte das terras mato-grossenses criou o estado de Mato Grosso do Sul. Contudo, interessa-nos lançar um olhar para as práticas que levam a construção da clivagem norte/sul. A percepção que nos orienta é a de que anterior ao esforço de se entender como ocorre a definição de uma nova fronteira geográfica há a necessidade de uma abordagem com relação à elaboração de outras fronteiras que de certa forma dão sustentabilidade para uma busca pela construção da linha física, como a fronteira política, econômica e cultural.

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Identidade escrita e poder: o caso de Jerusalém em

Flávio Josefo

Joabson xavier pena1

Podemos afirmar que nos últimos tempos, historiadores das mais diversas especia-lidades tem dedicado direcionar suas pesquisas para temas ligados às questões

identitárias; de forma prática basta analisarmos o crescente número de discussões realizadas nos últimos anos em encontros nacionais da ANPUH. Como o “o papo do momento”, no dizer do sociólogo Zygmunt Bauman (2005, p. 23), essa questão que vem sendo amplamente discutida na História, não se restringe somente a ela, mas se apresenta em todas as ciências humanas de forma geral.

Segundo Kathryn Woodward, para entender o que faz da identidade um conceito tão relevante, precisamos analisar as preocupações atuais com essa problemática em diversos níveis.

Na arena global, por exemplo, existem preocupações com as identidades nacionais e com as identidades étnicas; em um contexto mais ‘local’, exis-tem preocupações com a identidade pessoal, como por exemplo, com as relações pessoais e com a política sexual (2007, p. 16).

Os processos históricos que, exteriormente asseguravam a estabilidade de algumas identidades, estão entrando em crise e novas identidades estão sendo fabricadas, muitas vezes por meio da força e da contestação política. Woodward argumenta que essas “crises

1. Mestrando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), bolsista da CAPES. [email protected].

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de identidade são características da modernidade tardia [...] e sua centralidade só faz sentido quando vistas no contexto das transformações globais que tem sido definida como caracte-rísticas da vida contemporânea” (p. 20).

Esse complexo de processos de força e mudança pode ser resumido a “globalização”, que segundo Stuart Hall, citando Anthony Giddens,

Se refere àqueles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organiza-ções em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo em re-alidade e em experiência, mais interconectado (2006, p. 67).

A globalização tem ruído os velhos pilares de sustentação dos Estados e das comunida-des nacionais. Woodward argumenta que a globalização “envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de consumo, as quais por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas” (2007, p. 20). Dessa forma, como afirma Bauman, as identidades recebem um novo curso, cabendo agora “a cada individuo, homem ou mulher, capturá-las em pleno voo, usando os seus próprios recursos e ferramentas” (2005, p. 35).

Em um mundo de “vida líquido-moderno” como expressa Bauman, “as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência”, estando seguramente ajustadas “no próprio cerne da atenção dos indivíduos líquido-moderno e colocada no topo de seus debates existenciais” (2005, p. 38).

Como historiador da Antiguidade, o antiquista não se encontra de forma alguma in-diferente a essas discussões, já que parte de suas experiências para dirigir a sua interpretação sobre os acontecimentos da Antiguidade. Essas experiências são de grande relevância por ex-pressarem importantes indicativos para se repensar a Antiguidade de uma forma mais vivaz e atuante em nossas discussões sobre a contemporaneidade.

Até algum tempo atrás ao visitar-se a questão da identidade judaica na Antiguidade – em particular nos primórdios da Era Cristã – era habitual a constatação da ideia de um “judaísmo padrão”, em que o judaísmo era apresentado apenas, como argumenta Paulo No-gueira, a partir de “uma estrutura ideal de organização da vida religiosa”, o que esta tese pa-recia colocar em evidência era, “muito mais a estrutura esperada de grupos religiosos a partir de uma definição abstrata do que a descrição de grupos concretos” (2010, p. 24). Ligadas a essas questões, como bem pontuadas por Nogueira, insere-se a ideia de um judaísmo fixo e imutável, se apresentando como um produto pronto e inegociável.

Em contrapartida a essa ideia da identidade como um produto pronto e inegociável, Tomaz Tadeu da Silva nos mostra que a identidade,

Não é uma essência, não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, perma-nente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, incon-sistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identi-dade tem estreitas conexões com relações de poder (2007 pp. 96-97).

Para Pedro Paulo Funari, “esse movimento afetou de forma decisiva, o estudo do mun-do antigo, que ainda era marcado pelos modelos normativos e pela analogia direta entre antigo e moderno” (2010 pp. 12-13). Tomando por base as ideias apresentadas acima, novas perspectivas vêm se abrindo para o estudo da identidade judaica na Antiguidade, passando a mesma a ser considerada dinâmica e no plural.

Partindo dos pressupostos até aqui apresentados, este artigo tem como propósito entender como o historiador judeu romano Flávio Josefo estabelece, através de seus escritos, a centralidade da cidade e do Templo de Jerusalém para a identificação dos judeus.

O caso de Jerusalém em Flávio Josefo

Yosef ben Matitiahu ha-Cohen, ou Titus Flavius Josephus, nasceu no ano 37 d. C. na cidade de Jerusalém. Com base nas afirmativas de Henry Thackeray, podemos dividir a exis-tência de Josefo em dois momentos, sendo a Guerra dos Judeus contra os romanos (66-73 d. C.) o grande divisor de águas: os primeiros trinta e seis anos de Josefo foram despendidos na Judeia, como membro da classe sacerdotal, embaixador, general e prisioneiro de guerra; após a Guerra, um período de relativa calmaria, vivendo em Roma com a cidadania romana, sob a proteção da família imperial Flavia como um homem das letras (THACKERAY, 1929).

A importância de seus escritos e a sobrevivência dos mesmos se deve inicialmente ao patrocínio da família imperial da qual ele estava subordinado. Seu primeiro livro, a Bellum Judaicum, foi oficialmente sancionado pelos imperadores Vespasiano e Tito, que ordenaram o depósito dos escritos na Biblioteca Imperial. Seus subsequentes livros parecem ter recebido o mesmo tratamento (Vita 428-9). Mas o que permitiu que seus escritos continuassem a ser preservados e que chegassem até nossos dias, foi à apropriação dos livros pela Cristandade. Dois intelectuais cristãos em particular, Orígenes (185-254 d. C.) e Eusébio (265-339 d. C.), ci-taram extensivamente Josefo em suas obras, popularizando dessa forma seus livros no círculo cristão (MASON, 1992).

A primeira obra de Josefo, a Bellum Judaicum (Guerra dos Judeus), foi original-mente escrita em aramaico (Bell. 1. 3). Com ajuda de assistentes gregos, ele reescreve a sua obra e subsequentemente as outras em grego ático, língua na qual a maior parte dos clássicos gregos até então eram escritos. Segundo Mireille Hadas-Lebel, publicar em grego representava vantagens, pois além de Roma, ela chegaria à Grécia e à Ásia Menor (HADAS-LEBEL, 1992).

Diante da visibilidade da primeira obra, Josefo concebe não muito tempo depois, a escrita de um segundo livro, de maior envergadura, Antiquitates Judaicae (Antiguidade dos Judeus). Este livro, fazendo um paralelo com a Bíblia, sintetiza a história dos judeus, abrangen-do a criação do primeiro homem, até a conquista romana da Judeia (Ant. 20. 259-60).

A terceira obra, Vita (conhecida como Autobiografia), segundo Louis Feldman, “é a mais antiga autobiografia que nós possuímos da Antiguidade em sua forma original” (1999, p. 913). Devotada à vida do historiador e a sua liderança na Galileia no período da Guerra, Vita, é um apêndice da Antiquitates (Ant. 20. 266).

O último livro, Contra Apionem, é um trabalho apologético, nele Josefo faz uma defesa da antiguidade do povo judeu, com a apropriação de fontes egípcias, fenícias, babilônicas e gregas.

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Após apontarmos alguns importantes aspectos da vida de Josefo e da redação de seus escritos, pontuaremos a seguir, algumas evidências que nos levam a acreditar na significativa importância de Jerusalém e do seu Templo para a centralidade da identidade judaica em Flávio Josefo.

Não seria surpresa para nós descobrirmos que Jerusalém possuía uma centralidade no pensamento de Josefo, todos os seus escritos fazem referência a essa cidade. Josefo se refere a Jerusalém, como a famosa cidade (Ant. 11. 303) de renome mundial (Bell. 7. 4), afirmando ainda que o Templo de Jerusalém é muito comentado em todo o mundo (Ant. 20. 49). Uma larga porção de sua Bellum é cedida para uma delicada descrição da cidade de Jerusalém (Bell. 5. 176-183) e em particular, para o Templo (Bell. 5. 184-237). Após fazer uma longa referência à cidade e ao Templo, Josefo indica duas vezes na mesma obra a intenção de voltar a falar do mesmo assunto (Bell. 5. 237; 247).

Em Josefo subentende-se que para os judeus não poderia haver outra capital como Jerusalém. Como sede do sistema religioso judaico, o Templo deveria ser o foco dos judeus em todo o mundo. Lugar no qual os judeus direcionavam as suas ofertas e visitavam anu-almente para os três grandes festivais religiosos (Páscoa, Pentecostes e Tabernáculo). Nestes festivais – como pode ser verificado no livro de Atos dos Apóstolos – a cidade de Jerusalém fervilhava de

Partos, medos, elamitas, e os naturais da Mesopotâmia, Judeia, Capadó-cia, Ponto e Ásia, da Frigia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia, nas imediações de Cirene, e romanos que aqui residem, tantos judeus, como prosélitos, cretenses e arábios (At. 2: 9-11).

Segundo Josefo, a cidade de Jerusalém contabilizava na Páscoa de 65 d. C. (um ano antes da revolta judaica), 2.700.000 pessoas (Bell. 6. 420-427). Embora haja na atualidade con-tradição entre os pesquisadores a respeito da grande quantidade de pessoas relacionadas por Josefo em sua obra (GOODMAN, 2007), podemos ao menos compreender a relevância atribuída por Josefo à Jerusalém, através do grande número de pessoas que visitavam anual-mente a cidade.

Para Josefo o espaço físico da cidade de Jerusalém era santo (Apionem 1. 282). A santi-dade da mesma se devia em sua quase totalidade pela presença do Templo. Segundo Simon e Benoit,

A presença do santuário único conferia a Jerusalém, cidade santa, um prestígio também único, atestado pela amplitude das peregrinações que, a cada ano, para ali conduziam multidões provenientes de todos os setores da diáspora, com o fito de assistir ás grandes festas (1987, p. 203).

Desenvolvendo a ideia da santidade de Jerusalém, o historiador Martin Goodman afirma que,

Para a maioria dos judeus que tratavam o Templo de Jerusalém como o centro de suas devoções, a santidade era vista como se propagando do Santo dos Santos numa série de círculos concêntricos. O mais sagrado era o santuário interior, depois vinha o Pátio dos Sacerdotes, o Pátio dos Israelitas, o Pátio das Mulheres, o Pátio dos Gentios, a cidade santa de Jeru-salém, a terra de Israel e, finalmente, o mundo secular lá fora (1994, p. 113).

A centralidade de Jerusalém para o pensamento josefiano pode ser verificada, em sua constante paráfrase da Bíblia. Em adição aos textos bíblicos, Josefo identifica, por exemplo, que Salém, do qual Melquisedeque foi rei (Gn 14: 18), era Jerusalém (Ant. 1. 180). Ele também relaciona a montanha no qual o patriarca Abraão levou seu filho para ser sacrificado como o local onde o rei Salomão ergueria futuramente o Templo de Jerusalém (Ant. 1. 226).

É possível constatarmos ainda nos escritos de Josefo que onde a Bíblia menciona algu-mas localidades sem dar uma localização exata, Josefo menciona a localidade dando como referência a cidade de Jerusalém. Como exemplo, o pilar do Vale dos Reis construído por Ab-salão (2 Sam 18: 18), do qual Josefo toma como distância dois estádios da cidade (Ant. 1. 243).

A respeito da destruição da cidade e do Templo de Jerusalém em 70 d. C. pela força romana, Feldman acredita que,

Em vista de seu nascimento e educação e especialmente em consequência de seu estado sacerdotal, supor-se-ia que Josefo estivesse profundamente pesaroso [...] pela captura de Jerusalém por Tito e pela destruição do Se-gundo Templo (2006 pp. 683-684).

Os detalhes sobre a destruição desses símbolos podem ser encontrados de forma por-menorizada na Bellum. Para Josefo, a cidade de Jerusalém juntamente com o Templo estava sendo destruídos como punição divina pelos pecados praticados.

Quem não sabe que os escritos dos antigos profetas e do oráculo pronun-ciavam contra esta infeliz cidade e que agora está para ser cumprido? Eles profetizaram o dia de sua queda, o dia em que alguns homens começa-riam o massacre de seus compatriotas. É Deus, é Deus quem está trazendo com os romanos, fogo para purgar o Templo e está apagando a cidade, cheia de corrupção, como se ela nunca tivesse existido (Bell. 6. 113).

A destruição, ou limpeza, desses símbolos para Josefo, se faziam necessário, já que o fogo apagaria a perversidade existente na cidade. É possível ainda nesse trecho da Bellum alimentar a ideia de que Josefo tinha esperança de que a cidade e o Templo seriam recons-truídos; esperança essa da qual ele não viveu para poder ver se concretizar.

Com o poder da escrita concedida pela família imperial romana, e com a futura sobre-vivência de suas obras, Josefo, um leitor privilegiado, pode através de suas obras, determinar e definir a identidade judaica passando pela cidade e pelo Templo de Jerusalém. Acreditamos que a identificação de Jerusalém por parte de Josefo não foi neutra, nem reflexa ou simples-mente objetiva, mas implicou atribuições de sentidos em conformidade com relações sociais e de poder.

Concluímos a ideia presente neste texto com um trecho da historiadora Sandra Pe-savento, que sintetiza bem a situação de Jerusalém para a centralidade dos judeus no pen-samento de Flávio Josefo: “Enquanto construção imaginária de sentido, as identidades for-necem como que uma compensação simbólica a perdas reais da vida. Identidades gloriosas confortam e suprem carências na vida social e material” (2005 pp. 91-2).

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A História Ambiental na obra de Warren Dean:

estudos preliminares

João r aFael mor aes de oliveir a1

As questões ambientais ganharam maior destaque no debate sobre os destinos da sociedade, no nível mundial, a partir da década de 1970, à medida que cresciam

os movimentos ambientalistas e se sucediam conferências contra uma crise global. Como resultado da tentativa de explicar as relações humanas com o mundo natural, muitos pes-quisadores brasileiros e estrangeiros, de forma sistemática ou esparsa, passaram a refletir as relações sociedade-natureza sob uma nova óptica, defendendo, dentre outros aspectos, que “a gestão de novas formas societárias de relacionamento homem-natureza, em níveis mais harmoniu osos, impõe-se como grande desafio à modernidade” (CUNHA, 2000: 115).

A História Ambiental, como campo específico de estudo, de modo geral, foi fruto dessa tentativa de explicar a crise ambiental que se abateu sobre o planeta a partir da segun-da metade do século passado. Os historiadores, organizados em núcleos acadêmicos espe-cializados nesses temas, não ficaram de fora do debate, oferecendo explicações às diversas questões ambientais que surgiam.

Vale ressaltar que o despertar desse movimento historiográfico não resultou somen-te desse aspecto cultural, mas também de uma “renovação” historiográfica ampla e signifi-cativa. Pioneiro entre os historiadores ambientais norte-americanos, Donald Worster avalia que “a história ambiental nasceu de um objetivo moral, tendo por trás fortes compromissos políticos, mas, à medida que amadureceu, transformou-se também num empreendimento acadêmico” (WORSTER, 1991: 199). Isso quer dizer que além da influência dos fatores exó-

1. Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Assis, Bolsista Ca-pes.

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genos, a História Ambiental representou um esforço revisionista interno ao próprio campo, ampliando seu leque de narrativas, uma vez que as variáveis físicas e naturais sempre foram tratadas, predominantemente, por outras áreas do conhecimento, que não as ciências sociais.

Levados a responder aos questionamentos de seu tempo, o objetivo principal dos historiadores ambientais tornou-se, segundo Worster, “aprofundar o entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural, e, inversa-mente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados” (Idem, Ibidem: 200). Como novidade temática, as pesquisas passaram a se interessar no exame das relações entre as so-ciedades e o mundo natural, tratando do papel e do lugar da natureza na vida humana, des-cobrindo “forças” muitas vezes independentes às nossas vontades, que estimulam reações, defesas e ambições.

A proposta de mudança historiográfica não foi insignificante. Como afirmou José Au-gusto Drummond a respeito dessa “naturalização” dos estudos históricos, em artigo escrito no início da década de 1990: “trata-se de uma mudança séria de paradigma nas ciências sociais. Significa que o cientista social dá às ‘forças da natureza’ um estatuto de agente condi-cionador ou modificador da cultura” (DRUMMOND, 1991: 181).

Por conta da natureza de seu objeto e abordagem, a História Ambiental adquiriu um caráter multidisciplinar, forjando-se num imbricamento de métodos das ciências sociais e na-turais – como a ecologia, botânica e a climatologia. Nesse terreno, brotaram trabalhos histo-riográficos diversos, com propostas revisionistas e mesmo paradigmáticas, dos quais as obras pioneiras do “brasilianista” Warren Dean são exemplos significativos para a História brasileira.

A introdução da História Ambiental no Brasil não é a história de uma derrocada, pelo contrário, sua produção tem crescido significativamente nos últimos anos. Esse campo de pesquisa está bem consolidado e dispõe de cursos em diversas universidades do país, além de um bom número de pesquisadores engajados nessa área. Entretanto, cumpre destacar, que mesmo crescente, a produção de História Ambiental entre os brasileiros ressente-se de reflexão e debate mais aprofundados, no intuito de conhecer a “novidade temática” trazida pelos intelectuais que trabalharam com o meio ambiente ou de fortalecer as linhas de inves-tigação criadas. Essa modalidade historiográfica tornou-se um problema epistemológico que deve ser enfrentado pelos pesquisadores brasileiros.

Diante disso, exige-se identificar, entre outros aspectos, as raízes teóricas e historiográ-ficas que deram base à formação desse campo de pesquisa no país e, consequentemente, de seus principais escritores. Há que se investigar e conhecer, ainda: quais resultados têm sido produzidos e qual a amplitude alcançada? Que expectativas pretenderam atender os historia-dores ao elaborarem estudos sobre essa temática? Enfim, quais os limites desse campo e quais são os pontos de contato com outros fazeres historiográficos e com outras ciências sociais?

De modo geral, os trabalhos sob a temática ambiental que foram elaborados no/ou sobre o Brasil refletiram parte do debate travado nas academias norte e latinoamericanas. Como pólos geradores de idéias, teorias e metodologias, muitos pesquisadores estrangeiros começaram a pensar, escrever e publicar livros sobre a História do Brasil, numa velocidade muito acima da produção nacional. Assim, a História Ambiental do Brasil não foi, inicialmen-te, um movimento propriamente “brasileiro”. Foi, inicialmente, no bojo das experiências aca-dêmicas norte-americanas que ela aterrissou no Brasil, pelo trabalho de Warren Dean (1932-1994). Nesse sentido estamos de acordo com John R. Mcneill, historiador que traçou um importante panorama do desenvolvimento mundial da História Ambiental, quando afirmou que as obras de Warren Dean, dos anos 1987 e 1995, foram as pioneiras na historiografia bra-sileira e que foi o autor, dentre outros pesquisadores, o historiador ambiental mais completo que estudou a região (MCNEILL, 2003: 24).

A pesquisa à qual este pequeno texto se articula tem como objeto de análise a História Ambiental do Brasil na obra de Warren Dean, que embora bastante divulgada foi ainda pou-co estudada e considerada em seus pormenores. Apresentamos, por ora, o resultado prévio de estudos sobre o autor, focando nos aspectos biobibliográficos e na sua trajetória intelec-tual. Nosso intuito é esboçar um sentido da construção de sua obra, buscando apreender o contexto no qual o autor passou a dedicar às questões ambientais maior interesse.

A respeito da obra e da trajetória de Warren Dean, pressupomos, grosso modo, dois momentos distintos: um primeiro fortemente marcado pela História econômica, com preo-cupações com o processo de desenvolvimento econômico e industrial na América Latina; e um segundo, quando o autor incorpora em seus estudos as variáveis ambientais, inovando a leitura da História do Brasil.

Por se tratar de um autor estrangeiro, sua obra não deve ser dissociada do fenômeno historiográfico denominado “brasilianismo”. Entendemos que os “brasilianistas” estão indisso-luvelmente ligados à vida interna das ciências sociais e da historiografia dos Estados Unidos. A apreciação conjugada de dois fatores – a orientação teórica no estudo da América Latina e a política educacional – permitiu a José Carlos S. B. Meihy verificar significativas transforma-ções dos estudos norte-americanos sobre outros países, principalmente após o lançamento do satélite Sputnik, em 1957, e a Revolução Cubana de 1959. No ano de 1958, a Casa Branca criou o National Defense Education Act, que viria a revolucionar o ensino universitário, au-mentando significativamente o número de estudos sobre a América Latina e também sobre o Brasil. Com a Revolução Cubana, o conhecimento passou nitidamente a ser revestido de um caráter político, defensivo e anticomunista (MEIHY, 1990: 44).

Outro aspecto que merece ser levado em consideração é o financiamento de pesqui-sas de áreas pouco conhecidas pelo governo dos Estados Unidos, como era a América Latina durante o período da Guerra-Fria. Dessa forma, jovens estudantes interessados em desen-volver pesquisas de pós-graduação começaram a encontrar apoio nas diversas instituições educacionais estadunidenses, cujo processo Warren Dean fez parte.

No âmbito específico do “fazer História”, é relevante considerar o fato de que entre os brasilianistas norte-americanos “vigorava a noção de uma História mais presencista, isto é, vinculada à interpretação do imediato, garantindo ao conhecimento de História um sentido pragmático” (Idem, Ibidem: 41). Resulta dessa postura que as escolhas temáticas integrantes do elenco dos estudos dos historiadores norte-americanos valorizaram a especificação se-gundo as questões que eram apresentadas ao país naquele determinado momento. Sugere Meihy, que por essa razão, explica-se como, ao lado dos tópicos culturais, o racismo e as questões de gênero, por exemplo, reportavam para o Brasil pesquisas sobre a ecologia e o meio ambiente.

Warren Dean: aspectos biobibliográficos21

Nascido em 1932 na cidade de Passic, Nova Jersey, Estados Unidos, Warren Dean gra-duou-se em História pela Universidade de Miami, em 1953. Ainda nessa época submeteu-se

2. 1 Pouco foi publicado sobre a biografia de Warren Dean. Baseamo-nos, especialmente, para escrever este texto, nas infor-mações de José Carlos Sebe Bom Meihy (1990 e 1994), de Robert M. Levine (1994) e no Occasional Papers, editado pelo Center for Latin American and Caribbean Studies sobre Warren Dean em 1996.

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ao serviço militar obrigatório, sendo patenteado como segundo-tenente da força aérea. Após esse período trabalhou como comerciante em Nova York.

No início da década de 1960, Dean voltou aos estudos históricos elegendo a América Latina como objeto de pesquisa. Foi aceito na Universidade da Flórida, campus de Gainesville e, aproveitando-se de uma bolsa de estudos, passou um verão na Universidade de Havana, vivenciando a Revolução Cubana “em primeira mão”. Em 1961, defendeu seu “mestrado” so-bre a História Econômica de Cuba nos anos 1930, intitulado Cuba in the Great Depression. No entanto, dado o crescimento da crise entre Estados Unidos e o país caribenho, o historiador teve que mudar o foco de sua pesquisa, embora conservando-se interessado pela América Latina “potencialmente revolucionária”. Motivado, dentre outras razões, pela leitura de a Pré--Revolução Brasileira, de Celso Furtado, tornou-se, então, um “brasilianista”.

Antes de embarcar para o Brasil, Warren Dean passou um semestre na Universidade de Colúmbia, financiado pela Foreign Area Trainning Program, programa da Fundação Ford, participando do curso do sociólogo alemão Albert Hirschman. Merece destaque o fato de que, na década de 1960, Colúmbia era um reduto importante de especialistas sobre o Brasil, principalmente pela presença do antropólogo Charles Wagley.

Com a bolsa de estudos, Dean mudou-se para o Brasil para pesquisar o processo de industrialização implementado em São Paulo. Para esse fim, freqüentou aulas na Escola de Sociologia e Política, onde manteve forte contato com Florestan Fernandes, Fernando Henri-que Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Bolaffi, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros.

Sob orientação teórica básica nos trabalhos de Joseph Schumpeter (idéias sobre ciclos e desenvolvimento econômicos), o autor voltou para os Estados Unidos, onde defendeu sua tese de “doutorado” em 1964, com o título São Paulo’s industrial elite, 1890-1960. Nesse mesmo ano foi para a Universidade do Texas, em Austin, destacado centro de estudos latino--americanos. Alí permaneceu até 1970, quando se mudou definitivamente para o Center for Latin American and Caribbean Studies da Universidade de Nova York.

Dean esteve algumas vezes no Brasil como professor visitante, o que demonstra sua forte ligação com pesquisadores brasileiros e a rica atividade de pesquisa empírica que de-senvolveu no país. Além das novidades teórico-metodológicas e temáticas, o historiador norte-americano também ficou conhecido pelo seu engajamento político contra os regimes ditatoriais na América Latina e, sobretudo, no Brasil.

Numa de suas viagens, entre junho e agosto de 1975, permaneceu na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Na ocasião, realizou seminários e conferências nos cursos de graduação e de especialização abordando, especialmente, a historiografia norte-americana sobre o Brasil. Colaborou ainda com o Centro de Documentação do Departamento de His-tória, dando início a um levantamento de fontes históricas locais.

Sua pesquisa sobre o surgimento do empresariado e da burguesia nacional foi seguida por um estudo sobre Rio Claro, cidade do interior de São Paulo, numa perspectiva de História Econômica. Antes mesmo da publicação desse livro em 1976, já havia escrito um artigo, onde desenvolvia de forma preliminar, uma análise sobre os possíveis resultados ecológicos cau-sados pelo contínuo desenvolvimento da economia mundial, particularmente da economia latino-americana, e questionava: “Is it possible for standards of consumption to rise and for

population to continue to increase, if the Earth’s resources are finite and if the biosphere is incapable of sustaining further interventions by man?”32 (DEAN, 1972: 278).

Embalado nas “ondas ecológicas” que invadiram a historiografia norte-americana na década de 1970, Dean começava a dar sinais de uma guinada teórico-metodológica signifi-cativa. Voltava-se para as consequências da expansão de uma economia industrial, na pro-blemática histórica dos obstáculos ao desenvolvimento industrial, sob um viés ecológico. Conforme revela o próprio autor em entrevista: “conscientizei-me da gravidade e do risco implicado no tipo de desenvolvimento econômico que o mundo tem experimentado nos últimos cem anos” (In MEIHY, 1990: 277). A partir de então, incorporou em suas pesquisas os conhecimentos da botânica e da ecologia. Fez especialização nessas áreas no New York Bo-tanical Garden, assinalando de vez sua virada para uma História Ecológica ou Ambiental. Essa fase de seus estudos é também balizada pela geografia, principalmente pela obra do geógrafo norte-americano Carl Sauer (1889-1975), que fez estudos sobre a América Latina.

A seqüência de seus trabalhos marcou o início da História Ambiental do Brasil, es-pecialmente os livros Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history (A luta pela borracha no Brasil) e With Broadax and Firebrand: The destruction of the Brazilian Atlantic Forest (A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica), de 1987 e 1995 (publicação póstuma), respectivamente. Com esses dois trabalhos e uma série de artigos rela-cionados ao tema, deixava para a historiografia estudos inovadores, fruto de profícuo diálogo que mantinha com a Environmental History.

Warren Dean morreu em 1994, no Chile, quando se preparava para desenvolver um projeto de pesquisa de três meses sobre a Amazônia ocidental.

Enfim, cumpre concordar com a afirmação de que as ciências sociais no Brasil já produ-ziram, no passado, diversos trabalhos cujo enfoque recaiu sobre as relações entre a sociedade e o mundo natural. Contudo, ao longo das últimas décadas, vários fatores fizeram surgir ele-mentos novos, revelando, por um lado, a importância da reflexão constante sobre as bases da exploração econômica e do desenvolvimento sócio-ambiental do país; por outro, a necessida-de de conhecer e avaliar as contribuições que os historiadores ambientais têm oferecido para a compreensão dessa realidade. Nesse sentido, as obras de Warren Dean ganham destaque, uma vez que representam um marco importante desse debate na historiografia brasileira.

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3. 2 “É possível continuar aumentando o padrão demográfico e de consumo, sendo os recursos do planeta finitos e a bios-fera incapaz de sustentar novas intervenções humanas?”. Tradução minha.

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Festas Cívicas nas Fronteiras do Império: Cultura Política em Mato Grosso na segunda metade

do Século XIX

Jonh ériCk auGusTo da silva1

maria adenir per aro2

O texto ora apresentado tem por objetivo analisar as festas cívicas realizadas na pro-víncia de Mato Grosso, entre os anos de 1850 a 1864. Neste sentido, partimos da

premissa de que as cerimônias cívicas faziam parte do processo de reprodução de uma cul-tura política, criada pelo Estado Imperial brasileiro no século XIX, através da qual se difundia valores e ideais políticos. Analisaremos ainda, o papel desempenhado pela Guarda Nacional em tais rituais.

Para atingir tal propósito, tomaremos como fonte principal o periódico A Imprensa de Cuyabá, que circulou na capital provincial em meados do século XIX. Esta se encontra mi-crofilmada no Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR/UFMT). Utilizaremos também algumas correspondências expedidas pela presidência da província de Mato Grosso registradas, sobretudo em dois livros, a saber: o Livro destinado ao Registro da Correspondência entre a Presidência da Província e os Comandantes Militares, Guarda Nacio-nal e Arsenal de Guerra e o Registro dos Avisos Expedidos a Presidência desta Província pelo Ministério da Justiça, ambos se localizam no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT). Por último, teremos como subsídio a Coleção das Leis do Império do Brasil, esta está digitalizada e pode ser facilmente acessada através da página da Câmara dos Deputados na Internet.

1. Universidade Federal de Mato Grosso. Discente do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado. Bolsista CAPES.2. Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, Coordenadora do Grupo

de Pesquisa Instituições, Família e Memória.

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras I Simpósio Internacional de História Territórios e Fronteiras - ANPUH/MT

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Inventando uma Tradição: a importância das festas Cívicas no Brasil Imperial

No afã de situar as festas cívicas realizadas na província de Mato Grosso no seu con-texto nacional, torna-se oportuno discutirmos, mesmo que brevemente, o sentido de se fes-tejar determinadas datas no Brasil oitocentista, mas antes cabe a seguinte indagação: o que estamos entendendo por festa?

Ao estudar a festa estamos pensando-a como “um trabalho social, específico, coleti-vo, da sociedade sobre si mesma” (GUARINELLO, 2001: 974). Dessa maneira, o festejar está intimamente relacionado com o cotidiano, ou seja, com o não - festejar de maneira que os dois se interpenetram. Essa noção é bastante apropriada para a análise das festas cívicas, pois estas são “ritos do poder”, liturgias através das quais as autoridades representam sua legitimi-dade. Podemos comparar essas cerimônias ao teatro no qual o Estado encena o poder que efetivamente exerce.

Realizar cerimônias públicas com o intuito de se festejar aniversários, casamentos, exé-quias e ascensão dos monarcas e de outros membros da família real é um costume no Brasil, herdado do período colonial. Com a emancipação política em 1822, o Estado Imperial Brasi-leiro - através de seus legisladores - soube muito bem lançar mão dessa prática, adaptando-a a nova realidade que surgia. Cabia agora erigir uma cultura política nacional, ou seja, era ne-cessário conceber um conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas que seria partilhado por determinado grupo e expressaria uma identidade coletiva que forneceria tanto leituras comuns do passado, como inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro (MOTTA, 2009: 21).

Tendo como berço e centro de irradiação a Ciência política norte-americana dos anos 1960, o conceito de Cultura Política foi retomado e consequentemente relido pela historio-grafia a partir da década de 1990. Uma das razões para o crescente interesse em seu estudo reside no fato do conceito permitir explicar e interpretar comportamentos políticos de atores tanto individuais como coletivos, privilegiando suas percepções e sensibilidades (GOMES, 2005: 30).

No processo de formação de uma cultura política brasileira coube à tradição um papel de destaque. Nesse sentido, Eric Hobsbawm traz que toda a tradição é inventada, já que se trata de um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simbólica, que tem por objetivo inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição (HOBSBAWM, 1984: 9). Ousamos dizer que tal asser-tiva resume bem o objetivo de se comemorar algumas datas no Brasil oitocentista, ou seja, através de certas práticas rituais o Estado Imperial difundia valores e normas que deveriam ser apropriados pelo conjunto dos súditos, tanto os residentes na corte imperial como os habitantes dos “sertões”.

O caráter repetitivo com que foram celebradas as festas cívicas não era uma opção ingê-nua, e nem tão pouco um dado que deve ser desprezado ao analisar esse tipo de manifestação. O repetir deve ser considerado como dotado de um sentido pedagógico já que servia para facilitar o trabalho das instituições responsáveis pela realização dos festejos. As festas deveriam, sobretudo, ensinar e assim criar vínculos de lealdade entre o governante e o povo local, e com isso incutir no espectador sentimentos e valores políticos (SOUZA, 1999: 245). Entre os valores que deveriam ser difundidos figura-se a unidade, a lealdade e a ordem (KRAAY, 2001: 63-90).

Por ser um dos braços do Império na constituição de uma tradição, tais comemora-ções deveriam ser grandiosas e memoráveis como bem salienta Lilia Schwarcz. Para a autora se não fosse isso não perceberíamos o porquê a agenda do Império é constantemente mar-cada por esses dias especiais ao ponto de fazer parte do próprio corpo da lei (SCHWARCZ, 2001: 07). É recorrente na legislação a adoção e a eliminação de dias a serem comemorados. O período por nós estudado teve suas datas cívicas estabelecidas por meio de Decreto em 1848, no então gabinete Conservador do Marques de Olinda (1848-1850), segundo o texto da Lei, “São somente de festa Nacional os dias vinte cinco de março, sete de setembro, e o anniversario natalício do Imperador: e só estes e os Domingos e dias Santos de guarda serão feriado nas Estações Publicas” (BRASIL, 1848: 11). Cabe aqui salientar que esse decreto sancio-nava os dias de festa nacional, contudo havia as particularidades locais, como por exemplo, o dois de julho comemorado com maior intensidade na província da Bahia.3 Dessa maneira o Estado Imperial definia aqueles dias que seriam ritualizados, marcando assim o calendário do Império.

Ao definir uma noção de calendário, Jacques Le Goff afirma que este é um instrumen-to de medida do tempo individual e coletivo, sendo em qualquer sociedade, por mais diversa que seja um instrumento do poder religioso ou laico, e em particular do poder do Estado. Sendo diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é por excelência um objeto social (LE GOFF, 2003: 477-478).

A noção de calendário de Le Goff nos permite observar que a constituição das datas cívicas brasileiras em meados do século XIX, serviu para marcar um objetivo claro, ou seja, auxiliar na criação de uma tradição na qual o Estado se representava e difundia seus valores e ideais políticos, erigindo assim uma Nação.4

Após essa breve explanação acerca da importância das festas cívicas no Império do Brasil, cabe agora analisarmos esses rituais na província de Mato Grosso. Primeiramente, di-recionaremos nosso olhar para três festas notadamente, o sete de setembro (Independência do Brasil), o dois de julho (expulsão das tropas portuguesas da Bahia) e o dois de dezembro (aniversário natalício de Dom Pedro II). Em seguida vislumbraremos o papel desempenhado pela Guarda Nacional nos rituais cívicos.

Nas fronteiras do Brasil: as festas cívicas na província de Mato Grosso

Se as festas cívicas tinham importante relevância na sustentação e no fortalecimento da monarquia e de seus valores no Brasil, vale dizer de sua cultura política, essa dimensão ga-nhava maior destaque em Mato Grosso. Isso porque a província tinha a peculiaridade de fa-zer fronteira com as repúblicas do Paraguai e da Bolívia, além do mais, sua posição geográfica

3. O dois de julho foi reconhecido pelo governo imperial como feriado a ser comemorado apenas na Bahia, todavia através da documentação levantada no NDIHR/UFMT percebemos que a data era também comemorada na província de Mato Grosso.

4. Ao pensar nação estamos entendendo-a como “uma comunidade política imaginada- e imaginada como sendo ineren-temente limitada e soberana” É imaginada porque os seus membros nunca chegarão a se conhecer mutuamente, todavia em suas mentes está a imagem de sua comunhão. É limitada porque até a maior delas tem limites bem definidos, para além dos quais estão outras nações. É imaginada como comunidade, pois a nação é sempre concebida como um pro-fundo companheirismo horizontal. (ANDERSON, 2008: 31-34).

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a colocava distante da Corte. Dessa forma, além de incutir valores os rituais cívicos deveriam servir como conexão entre a Corte e o sertão. No século XIX o Estado Imperial e seus agentes

procurava fazer com que o homem do mato, abastado ou não, se reco-nhecesse pertencente a uma nação (...). Todos estavam (em tese) em um mesmo território, o território nacional (que deveria ser demarcado num futuro não muito distante) e onde as pessoas eram perfilhadas pelo Im-pério e deveriam reconhecer-se irmanadas numa nação que se construía (SENA, 2009: 200).

Como parte integral da política da época, a província de Mato Grosso celebrou várias datas cívicas, sendo recorrentes na documentação os dias vinte e cinco de março (juramento da Constituição); dois de julho; sete de setembro e dois de dezembro, em muitas dessas datas haviam parada militar, Te-Déuns5 e bailes. Parte do cronograma festivo podia ser alterado em virtude de alguma outra atividade que requeria maior atenção do governo provincial. Foi o que aconteceu nos festejos do sete de setembro de 1860 onde foi celebrado na “Sé Cathedral o solenne Te Deum em acção de graças a Independencia do Brazil. Não houve parada por causa das eleições municipaes” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 09 de setembro de 1860).

A preparação dos rituais cívicos contava com a colaboração de algumas associações como relata um jornal da época que traz a notícia de que “uma associação se forma nesta capital para celebrar os triumphos do faustissimo dia 2 de julho no corrente anno” (A IM-PRENSA DE CUYABÁ 24 de junho de 1860). Durante a comemoração do sete de setembro de 1859, outra associação auxiliou nos preparativos do festejo, segundo a nota publicada no periódico A Imprensa de Cuyabá, “a Sociedade União Cuyabana, tendo de solemnisar o aniversario de nossa independência com um baile de gala previne para isso aos Srs Sócios” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 21 de agosto de 1859). Faziam parte dessas agremiações, princi-palmente, os “ilustres” e “notáveis” da província, ou seja, aqueles homens pertencentes a “boa sociedade” que deveriam contribuir para estreitar distancias, não só física, entre a capital do país e as terras mato-grossenses (SENA, 2009: 238). Um exemplo pode ser elucidado através do Diretor da Sociedade União Cuiabana no ano de 1859 Firmo José de Mattos que exerceu diversas ocupações na província como Chefe de Polícia, Juiz de Direito, Deputado Provincial pelo Partido Liberal, Comandante Superior da Guarda Nacional provincial sendo inclusive laureado já no final da Monarquia (1889), com o título de Barão de Casalvasco (MESQUITA, 1992: 230).

Ao analisar as comemorações do sete de setembro na Corte, Hendrik Kraay afirma que para a celebração dos festejos havia a formação de sociedades como a Sociedade dos Cavaleiros do Ipiranga, fundada em 1855 e cujos objetivos, segundo sua diretoria, não se re-sumia aos pueris folguedos, mas a perpetuar cada ano com um ato significativo o aniversário da Independência (KRAAY, 2007: 9). A formação de sociedades com o intuito de festejar as solenidades nacionais na Corte e na província de Mato Grosso, demonstra traços comuns no que tange as cerimônias nacionais, reforçando assim o argumento de que os rituais cívicos além de ritualizar o poder deveriam também celebrar os laços entre a corte e o sertão.

Duas datas cívicas merecem atenção pelo seu antagonismo, são elas o sete de setem-bro e o dois de julho. Comecemos pela primeira. A data escolhida para se comemorar a Inde-

5. Do latim “Te Deum Laudamus”, cuja tradução para o português é “A Vós, ó Deus, louvamos”. É um hino litúrgico católico entoado principalmente em festas de ação de graças.

pendência do Brasil - sete de setembro foi uma das primeiras a serem definidas pelo calendá-rio imperial, sendo oficializada já no ano de 1823. A rapidez com que o dia foi convencionado guarda relação com a criação de um sentimento nacional, onde emancipado politicamente da tutela portuguesa o país precisava celebrar sua origem monárquica esquecendo o passado colonial e analtecendo seu defensor perpétuo, Pedro I. Contudo, nos chama atenção o fato de na província de Mato Grosso, além do sete de setembro, celebrar também o dois de julho dia em que se comemora a expulsão das tropas portuguesas da Bahia, após dezoito meses de conflito em 1823. A surpresa advém da relação que a data mantinha com o Império brasi-leiro, pois sua versão da independência contrariava aquela apresentada pelo Estado. Tanto o sete de setembro como o dois de julho são representações construídas acerca das origens do Império. Segundo Roger Chartier as representações

tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler (...) As lutas de representações tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus e o seu domínio(CHARTIER, 1990: 16-17).

A afirmativa de Chartier de que as representações geram lutas é nodal para analisar as duas visões sobre a independência do Brasil, onde de um lado havia uma versão oficial per-sonificada pelo sete de setembro que concebe a emancipação política como uma dádiva de Dom Pedro I e de outro, a versão popular preconizada pelo dois de julho, que acredita que o país só tornou-se independente após meses de luta travada entre as tropas portuguesas e o povo brasileiro, vale dizer baiano.

A notícia da comemoração do dois de julho no ano de 1860 é narrada com riqueza de detalhes pela Imprensa de Cuiabá segundo a mesma, “celebrou-se com pompa e magni-ficiencia o dia 2 de julho, anniversário da Victoria alcançada na província da Bahia contra as tropas portuguezas por occasião da Independencia do Brasil” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de julho de 1860). Nossa surpresa em encontrar o evento noticiado advém, sobretudo pela data não ser considerada como um feriado nacional.

Na Província da Bahia onde o dois de julho era comemorado com maior animação, os festejos iniciavam-se na noite do dia primeiro de julho, onde o símbolo da festa - um caboclo esculpido em 1826 era levado aos subúrbios da cidade pra uma vigília. Já no dia dois havia um desfile militar, incluindo a guarnição do Exército e da Guarda Nacional, um Te-Déum na catedral, iluminação de prédios públicos e particulares, cortejo ao retrato do Imperador, vivas coletivas ao dia, ao monarca e as autoridades. E pela noite, um espetáculo de gala no teatro (KRAAY, 2001: 68-69).

Em Mato Grosso os festejos assemelhavam-se aos da Bahia, tendo início de madruga-da quando

a brigada de batalhões patrióticos, formada no largo do quartel dirigio-se ao do Arsenal de Guerra para buscar o carro triumphante no qual vinha um caboclo symbolizando o Paraguassú, e dalli fez sua entrada as duas horas e meia. Acompanhada de grande concurso de povo, entre o qual se notava o Sr. Chefe de Policia, percorreo as princiapaes ruas da cidade entre vivas e aplausos as sagradas pessoas de S. S. M. M. Imperiaes, e ao dia 2 de julho(A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de julho de 1860).

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O índio simbolizado pelo caboclo fazia parte dos esforços de busca pela legitimida-de das nações latino americanas, onde através de um passado indígena procurava-se criar uma identidade própria, contudo a figura do aborígine deve ser problematizada já que era detectada como um dos entraves para o Brasil atingir o esplendor da civilização, tendo sido representada de maneira ambígua ao longo do século XIX. Se por um lado o índio ajudava na construção de uma identidade brasileira, sendo apresentado de maneira idealizada prin-cipalmente pelos romancistas como José de Alencar, por outro lado era tido como pagão, atrasado, o próprio homem do mato (SENA, 2009: 202 ). Nos desfiles do dois de julho a visão predominante era a do índio idealizado que com seu arco e flecha triunfava sobre a tirania.

Outro fato marcante na comemoração não só do dois de julho mais de todas as festas do Império eram as missas e os Te-Déuns que eram precedidos por sermões proferidos por exímios oradores que traziam no bojo inúmeras exortações políticas. No dois de julho de 1860 o sermão foi proferido pelo Protonatário Apostólico Pe. Ernesto Camilo Barreto, lente do Seminário Episcopal da Conceição em Cuiabá e um dos líderes do Partido Conservador na província, segundo o periódico,

o Exm Diocesano, todo clero, a officialidade distincta da guarda nacional, e do 2º batalhão de Artilharia a pé, e grande numero de pessoas gradas da capital, a tributarem o insenso puro ao Deos das misericórdias pelo por-tentoso triumpho alcançado na capital da Bahia. A presidência da provín-cia não quis honrar o patriótico sentimento dos bravos, que se propuzerão a comemorar as victorias d’esse dia ditoso para todo o Brasileiro. O Rvdº Oº Mª Ernesto Camillo Barreto apresentou um discurso verdadeiramente patriótico e liberal. (...) Termindo o discurso subirão de em volta com o fumo do insenso as vozes sagradas dos ministros do Sr. entoando, o hynno, altamente, de Ambrosio e Agostinho- Te Deum Laudamus (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de julho de 1860).

Um olhar desatento na documentação acima citada pode suscitar que o presidente da província, delegado maior do poder central, se recusou a participar da solenidade devido à posição do Império em relação à festa, contudo um olhar mais atencioso pode buscar a causa da não participação do presidente Antonio Pedro Alencastro nos festejos, devido ao desentendimento que ele estava tendo com o diretor do Jornal A Imprensa de Cuyabá, o padre Ernesto Camilo. Este juntamente com outros políticos conservadores começou a pu-blicar várias críticas e insinuações de corrupção relacionada ao presidente Alencastro (SENA, 2009: 132).

O episódio envolvendo o padre Ernesto Camilo e o presidente Antonio Pedro Alen-castro foi tido como o motivo pelo qual “o anniversário de S M o Imperador foi festejado este ano [1861] com frieza” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de dezembro de 1861), segundo as páginas do periódico local, a culpa era “só e unicamente ao demittido presidente, que ocu-pou indebitamente esse cargo” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de dezembro de 1861). Nessa altura Antonio Alencastro já tinha sido exonerado pelo governo central após ter prendido e deportado para a corte o referido padre, contudo, ocupava o cargo de presidente provincial enquanto seu sucessor Herculano Ferreira Penna não havia chegado a Mato Grosso. A reper-cussão das atitudes de Alencastro afetou os festejos, sendo que com “execpção de poucos funcionários públicos em número de onze, nenhum particular, quer d’um quer d’outro credo político compareceo, como em outros anos ao Te Deum e cortejo em dia de tanto regozijo” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de dezembro de 1861).

Se não fosse o desentendimento entre o presidente e o padre o dois de dezembro seria comemorado com muita opulência como aconteceu em 1864, onde “foi solemnisado com a pompa e enthusiasmo do Costume o dia 2 de dezembro anniversario natalício de S. Magestade o Imperador. O Te-Deum, a parada e o cortejo forão brilhantemente concorrido” (A IMPRENSA DE CUYABÁ, 08 de dezembro de 1864).

O dois de dezembro era uma festividade importante, pois celebrava a memória de Dom Pedro II aproximando-o dos súditos, não importando a distancia que os separavam. Na Corte o Imperador recebia os cumprimentos em pessoa, todavia como o rei não podia se dividir, cabia nas províncias aos presidentes na condição de representantes especiais da coroa, receber os cumprimentos, auxiliados por um retrato de “Sua Majestade Imperial” (SCHWAR-CZ, 1998: 255). Em Mato Grosso, acreditamos que a efígie do Imperador era muito apreciada, não só no dia de seu aniversário natalício, mas em outras ocasiões, pois segundo Ernesto Sena a realeza exercia um fascínio sobre a população em maior ou menor grau dependendo do momento (SENA, 2009: 2008).

Momento chave de todas as cerimônias cívicas era o das paradas, na qual a Guarda Nacional se apresentava fardada em revista. Para se ter uma noção da importância da milícia para a sociedade brasileira dos oitocentos, basta compreender que foi ela

uma instituição de natureza militar, capaz de agregar hierarquicamente indivíduos de diferentes regiões, em prol de objetivos comuns em torno da defesa da ordem institucional. As fardas, os títulos da hierarquia mi-litar; enfim, toda uma parafernália de elementos em que informavam e revestiam variados tipos sociais, espalhados pelos mais distantes rincões do país, com valores e ideais de organização social capazes de favorecer o movimento de estabilização política em curso (GOUVÊA, 2008: 24).

Criada em 1831 a Guarda Nacional nasceu da apropriação privada de funções que deveriam ser publicas, já que para suas fileiras eram qualificados somente os cidadãos do Império, ou seja, aqueles que tivessem rendas suficientes para serem votantes nas eleições primárias, além do mais no âmbito da instituição o serviço era obrigatório e não remunerado. Assim, diferentemente do Exército considerado como um dos mecanismos utilizados para disciplinar a população livre pobre, para Guarda Nacional concorriam a “boa sociedade” que através do lema “Nação em Armas” defenderia o império combatendo todo tipo de desor-dem.

É recorrente na documentação a presença da milícia nas paradas em dia de festa cí-vica, como aconteceu no dia sete de setembro de 1853 onde se reuniu “pela primeira vez na Capital d’essa Provincia quinhentos Guardas Nacionaes em parada” (MATO GROSSO, 1849-1856: nº111). Estas eram solicitações da presidência da província que dias antes da cerimônia as requeriam como podemos observar em março de 1851, onde o então presidente Augusto Leverger expediu ordens ao Estado Maior da Guarda Nacional “para que no dia 25 do cor-rente, Aniversário do Jumento da Constituição do Império se reunão em grande parada os Batalhões da Guarda Nacional do município da capital” (MATO GROSSO, 1849-1856: nº116). A solicitação de Leverger nos permite observar a hierarquia na qual a Guarda Nacional estava subordinada, principalmente após a reforma de 1850, que a colocou diretamente sob a tutela do governo central devendo obediência ao ministro da Justiça e aos presidentes de província.

Contudo, a realização dos desfiles cívicos exigia que outras tarefas, na qual os mili-cianos estavam empregados, fossem sacrificadas como em 1853, onde tendo de proceder

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ao recrutamento dos moradores em Brotas, o então encarregado da tarefa José Apolinário de Oliveira queixa-se que, como o presidente da província Augusto Leverger “não pode dar andamento aos trabalhos se não por via dos Inspetores de quarteirão e estes se achão todos qualificados na Guarda Nacional e estão se aprontando para o dia 2 de dezembro” (MATO GROSSO, 1853-B).

Durante as paradas não só a Guarda Nacional desfilava, mas também cabia espaço ainda para o Exército de linha. Todavia o lugar de destaque era da primeira, como bem traz a lei 602 de 19 de setembro de 1850 que prescreve que “sempre que a Guarda Nacional concor-rer com as tropas de Linha tomará o lugar mais distincto” (BRASIL, 1850: 329). Nos desfiles os milicianos deveriam se apresentar uniformizados, isto por que o uniforme carregava valores simbólicos de grande importância, pois informava sobre um cidadão investido de responsa-bilidades e objetivos essenciais em uma comunidade política mais ampla, a nação. Assim, a farda deveria ser uma representação do Estado Imperial (FERTING, 2003: 275).

Considerações Finais

Não temos aqui a pretensão de fechar, num espaço de poucas linhas a discussão sobre as festas cívicas. Nosso intuito foi apenas investigar aquelas cerimônias como sustentáculo de uma cultura política, haja vista que esta para se reproduzir no tempo demanda a realização de práticas reiterativas que servem para confirmar o sentido de pertencimento do grupo a comunidade imaginada, denominada nação.

O projeto monárquico-imperial de festejar algumas datas foi facilitado pelo longo costume colonial de se comemorar a família real portuguesa, contudo após a emancipação política cabia ao Estado inventar uma tradição brasileira. Ao longo do texto buscamos co--relacionar as cerimônias cívicas realizadas na província de Mato Grosso com as realizadas em outras províncias do império, como o dois de julho, procuramos também vislumbrar o papel legado a Guarda Nacional nas cerimônias cívicas.

Contudo cabe dizer que muitas questões foram suscitadas dando margem para novos estudos, haja vista que a historiografia sobre as festas cívicas no período imperial é escassa, sendo de grande relevância pesquisas que tratem o tema.

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A “ameaça” comunista como delimitadora de fronteira

segura: uma abordagem sobre a repressão no Cone Sul

(1964-1979)

Julio manGini Fernandes1*

Esse trabalho é um recorte da minha dissertação defendida em setembro de 2009, na qual propus investigar a repressão a brasileiros na Argentina entre os anos de

1964, quando o foi deflagrada a ditadura civil-militar no Brasil e 1979, quando houve abertura política com a Anistia.

Nessa ocasião, pretendo abordar alguns conceitos sobre terror e maneiras de praticar terrorismos, tipificando em especial o Terrorismo de Estado e elucidar alguns aspectos a respeito das práticas repressivas da ditadura civil-militar brasileira aos exilados brasileiros na década de 1970.

Minha intenção quanto ao tema é pensar alguns pontos centrais das práticas repres-sivas organizadas e executadas sistematicamente por militares, respaldados por setores civis que se apropriaram de manifestações de alguns grupos sociais, sobretudo aqueles que faziam parte de uma elite dominante, e quais foram seus usos e para quais finalidades, principal-mente no que diz respeito a lideranças políticas, durante e após o regime ditatorial que se mantiveram no poder sob a carapuça de defensores da democracia.

O golpe civil-militar no Brasil, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional – DSN – e instrumentalizada pela Escola Superior de Guerra estava resguardada a partir de parâmetros dos Estados Unidos no combate ao chamado “comunismo internacional”, cujo maior ícone era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Essa guerra promovida pelos EUA

1. Professor do Centro Universitário UNIVAG e da rede estadual de ensino de Mato Grosso. Mestre em História pela Uni-versidade Federal de Mato Grosso, UFMT.

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instrumentalizou e sistematizou uma aliança interamericana de assistência militar à maioria dos países que compunham o mundo ocidental, com claro intuito de aniquilar as possibili-dades de avanço comunista no mundo ocidental.

Em 1949, a Escola Superior de Guerra foi criada pela Lei nº 785/49, integrando hoje a estrutura do Ministério da Defesa, vinculada ao Instituto de Altos Estudos de Política, Estra-tégia e Defesa2. Teve o apoio estadunidense e francês, cujo maior interesse era formar qua-dros de alto nível com a função de direcionar, planejar e orquestrar a doutrina de segurança nacional no país.

No continente americano como um todo foram criados diversas escolas doutrinado-ras de segurança nacional, tais como a National War College e Industrial College of the armed forces, nos Estados Unidos, e Academia Superior de Seguridad Nacional, no Chile. Nessas es-colas, a língua diferia, porém os conceitos eram idênticos.

Desta forma, é necessário destacar o uso da cultura do medo3, utilizada por parte de civis e militares, antes e durante todo o período autoritário repressivo que se iniciou em 1964 com o Golpe. Dessas, vou me ater a algumas práticas, principalmente aquelas que ocorreram seguidamente ao momento conhecido como “linha dura” da Ditadura Civil-militar brasileira e sintonizada com os países vizinhos latino-americanos do sul, região também conhecida como Cone Sul da América do Sul, formado pela Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil (D’ARAUJO, 2000).

Destaco as relações entre os países do Cone Sul que montaram e arquitetaram a cha-mada Operação Condor, idealizada pelos comandantes da Ditadura Chilena e que teve res-paldo principalmente nos comandos repressivos da Argentina e do Uruguai, mas que tam-bém teve ecos no Brasil, em termos de efetividade. Tais concepções promoveram invasão de domicílios de suposto acusado de “subversão”, seqüestro como detenção, a contra-informa-ção, paranóia generalizada da sociedade, consolidação do termo comunista como sinônimo de, entre outras coisas, “terrorista”, “assassino”, “seqüestrador”. Além disso, houve a criação de centros clandestinos de detenção, tortura, desaparecimento de centenas de pessoas, morte e ocultação de cadáver. As vítimas desses atos ilícitos, clandestinos, ilegítimos e ilegais eram aterrorizadas e foram muitas, mas que podem ser representadas por dois grupos: o primeiro era formado por estudantes, trabalhadores e sindicalistas envolvidos com algum movimento social, seja ele estudantil ou na esfera sindical, todos eles lutando por melhorias estruturais no Brasil, sejam esses movimentos auto-intitulados comunistas/socialistas ou não. O ques-tionamento das desigualdades sociais ou que propusesse mudanças para a sociedade eram taxadas de ideais comunistas, mesmo elas sendo feitas por organizações não-revolucionárias, e até mesmo por aqueles que proclamavam a transformação da sociedade, como era o caso das organizações comunistas que exigiam o fim do capitalismo. Essas atividades eram forte-mente rechaçadas por setores conservadores da sociedade.

Essas manifestações entrariam no rol daquilo que ficou conhecido como “subversão” e “comunismo internacional” e que seria fortemente combatido com a implantação da ditadu-ra civil-militar. Para os militares, qualquer sinal de crítica da sociedade e do período ditatorial

2. Informação veiculada em www.esg.br, acesso em 25 de março de 2009.3. Quanto a esse aspecto é importante destacar o recente trabalho de dissertação de Mestrado de Caroline Silveira Bauer,

sob titulo de “Avenida João Pessoa, 2050 - 3o. andar: terrorismo de Estado e Ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Rio Grande do Sul (1964-1982)”, defendido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2006. A autora discute as práticas repressivas brasileiras como ações terroristas de Estado.

era enquadrado como “terrorismo” e, portanto, considerado crime grave e que deveria ser prontamente reprimido e eliminado.

O outro grupo era mais abrangente, e envolvia desde setores médios, setores mais desfavorecidos social e economicamente. Esses sofriam com a privação das liberdades indivi-duais, a não garantia de efetivação das necessidades básicas e obrigações do Estado (e ainda continuam sofrendo com a ausência estatal em setores básicos, tais como saúde, emprego e educação) e, principalmente o temor de uma personagem criada pelos ditadores e apoiado-res dessa ditadura que são os chamados “comunistas”, figuras “diabólicas” que ameaçavam a ordem da sociedade brasileira, no discurso das autoridades militares, mas que representavam o contraponto da lógica capitalista, ocidental, cristã.

Essa repressão e perpetuação da idéia do comunista que ameaçava constantemente os brasileiros provocava uma paralisia desejada aos civis e militares que impuseram o regime autoritário no Brasil com claro intuito de legitimar as ações dos líderes ditatoriais e eliminar toda e qualquer oposição que não fosse consentida. Em nome da democracia, se destituiu a própria democracia mantendo apenas alguns representantes e instituições de fachada para tentar acobertar o viés autoritário, repressivo e terrorista da ditadura civil-militar brasileira.

A Doutrina de Segurança Nacional e o recurso ao Terror de Estado

Para a defesa dos interesses econômicos dominantes e a execução dos objetivos da Doutrina de Segurança Nacional, o Estado, com funcionários civis e militares, desempenhou papel importante, instrumentalizado pela utilização de mecanismos de controle, componen-tes do seu aparato coercitivo e ideológico, como o Terror de Estado.

Dois fatores confluíram para as ditaduras militares se instalarem na América Latina, nas décadas de 1960 e 1970: de um lado a pressão exercida pelo capital internacional e pelas elites locais para a imposição de um novo modelo de acumulação, e de outro, a radicalização das contradições de classe e do avanço de projetos reformistas ou revolucionários, principal-mente após a Revolução Cubana (PADROS, 2004, p.45).

Uma das principais premissas da DSN foi a rejeição da idéia de uma sociedade na qual havia uma luta de classes. Os princípios dessa Doutrina se baseavam no fato de que o cidadão não se realizava em função de seu pertencimento a uma determinada classe social, mas a identidade e a consciência de pertencimento a uma comunidade nacional. Portanto, os questionamentos que explicitassem interesses de classe, por detrás dos setores políticos dirigentes eram percebidas, pelos agentes dominantes do Estado e dos setores empresariais, como nociva aos interesses da Nação, sendo necessário eficaz combate a tais posturas.

Nessa perspectiva, tentou-se promover o fim do pluralismo político, com intuito de buscar uma “coesão política” preconizada pelos ditadores, condição essencial para a supera-ção dos conflitos sociais e de seus elementos centrífugos.

A inibição da existência real de contradição tinha como intuito a despolitização, se as-sim pode-se dizer, e a desmobilização social, que para Enrique Padrós (2004) corresponderia aos sindicatos e movimentos sociais organizados. A Nação era anunciada como homogênea e uma única vontade, único projeto, obviamente determinado pelo governo ditatorial. Era um Estado, um território e uma comunidade que partilhavam sua concepção de mundo com valores ocidentais e cristãos. Quem, portanto, discordasse era considerado inimigo e deveria ser combatido pelo Estado e excluído do corpo nacional.

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Havia, portanto, um conceito geopolítico de Nação. Segundo Joseph Comblin, para a DSN a Nação é uma única vontade, um único projeto, desejo de ocupação e de domínio de espaço e que age através do Estado. (COMBLIN, 1977, p.28)

Segundo este autor, a Nação acrescenta ao Estado os materiais, ou seja, uma popula-ção, um território, recursos naturais, o corpo passivo dessa entidade. O que faz formalmente a Nação, portanto, não difere do que faz formalmente o Estado. Esse é o conceito adotado pelos doutrinadores de Segurança Nacional. Essa é vista como um todo homogêneo dotado de uma única vontade (COMBLIN, 1977, p.29) que possui vida biológica, a própria personi-ficação da Nação.

Daí vem a idéia do interesse nacional, idéia tão vaga e tão confusa e que ao mesmo tempo parece ser tão clara aos ideólogos da DSN. Para eles, existe apenas um interesse, uma vontade, um projeto de poder. Todos os conflitos sociais desaparecem, assim como todos os problemas da política interna.

No mundo que permanece dividido entre o Capitalismo e o Comunismo, o Brasil, sobretudo após o golpe civil-militar de 1964, escolhe o ocidente por questão moral, ou seja, o ocidente é o melhor. Como justificativa,

Alegam que todos os movimentos de guerrilha, todos os grupos subversi-vos ou terroristas, ou ainda, todos os partidos esquerdistas – que não são nada disso, mas que supõem que possam ser – dirigidos por Moscou; e isso apesar dos fatos e contra todas as evidências. Em conseqüência, o país se vê engajado na bipolaridade sem nem mesmo querê-lo explicitamente. (COMBLIN, 1977, p.31)

Seguindo essa linha, o Brasil adotou uma doutrina propagada pelos norte-americanos, na qual a defesa nacional não é apenas contra eventuais ataques externos, mas sobretudo contra o inimigo interno.

No plano político militar, o Brasil alinhava-se junto à nação norte-ameri-cana na incipiente Guerra Fria, rompendo relações com a União Soviética. Complementando este alinhamento, o Brasil sediou, em 1947, a Conferên-cia Interamericana de Manutenção de Paz e Segurança, que finalizou com a assinatura do Tratado de Assistência Recíproca, o qual permitia a inter-ferência dos Estados Unidos nos países da América onde se revelasse uma situação atentatória à manutenção da paz e da segurança no continente. (PESAVENTO, 1994, p. 59)

O outro é o inimigo, é feio, perigoso, desagradável, o subversivo que deve ser com-batido e eliminado. Nesse sentido, era essencial para a desmobilização política e social que certas políticas promovessem a vitimização do outro. Essa prática que também é possível perceber no trato aos islâmicos na guerra contra o “terror” apregoada por G. W. Bush, no Iraque e no Afeganistão nos primeiros anos do século XXI, desmobiliza e despotencializa como ser autônomo capaz de erguer-se e lutar por si mesmo, funcionando como um modo de enfraquecer o outro, de impedir a eclosão da alteridade disruptora, tão evidente também no Brasil. A exploração da miséria pelo marketing e propaganda social, na solidariedade de fachada expressa pelas classes abastadas, muito presente no assim chamado “terceiro setor”. As alternativas diante da miséria produzida pelo capital globalizado são duas: ou a eliminação calculada e sistematizada ou a vitimização do outro.

O “outro bom”, para ser protegido, só pode ser o outro vitimizado. Nessa situação é necessário, segundo Maria Cristina Franco Ferraz (2006), uma reflexão acerca do outro, cuja tolerância para ser “bonzinho” e solicitar nossa piedade deve ser feita apenas no momento em que ele estiver à beira da morte, despotencializado, totalmente incapacitado para a ação. No máximo se permite que sobreviva para ser anexado às redes de solidariedade, assistencia-lismo e boa vontade, que se associam às alegrias triunfantes do capital.

Agora, no momento em que esse “outro bom” deixe de se comportar como vítima e busca reapropriar seu destino, ele se transforma imediatamente em terrorista, subversivo, comunista, fundamentalista, traficante de drogas ou delinqüente.

Ferraz expõe sua preocupação quanto a despotencialização e morte (também políti-ca) do outro. “Nesse sentido, enquanto não enfrentarmos nosso medo, nosso temor e horror pela diferença e alteridade pelos múltiplos e heterogêneos outros em nós e fora de nós, per-maneceremos reféns da lógica do terror e de suas múltiplas falácias” (FERRAZ, 2006, p.54).

Nesse panorama o Brasil exercia papel estratégico para o Ocidente, obviamente lide-rado pelos Estados Unidos, que estava intimamente ligado a consolidação do Brasil como liderança regional e que por sinal estava ligado ao fim do comunismo. Já aos outros países da América Latina restavam apenas fazer parte do grupo dos amigos do Ocidente.

Em termos de política internacional, os Estados Unidos, sobretudo após o governo de John Kennedy, retomaram uma política de pressão enfatizan-do o combate ao comunismo. Para tanto, a Doutrina de Segurança Na-cional foi intensamente utilizada como instrumento de propaganda para a contenção da ideologia comunista. Gradativamente, a maior parte dos Estados latino-americanos caiu sob o poder de ditaduras militares que iniciaram um novo ciclo político na vida dessas nações. Houve diferencia-ções importantes entre os regimes militares, tanto em termos de projetos nacionais quanto em termos de inserção internacional. (PENNA FILHO, 2006, p. 63)

O antagonismo Norte-sul, o que, social, econômico e politicamente é mais visível de se perceber antagonismos e discrepâncias, foi plenamente abandonado para sustentação deste viés leste-oeste (COMBLIN, 1977, p.31). As nações foram reagrupadas em duas linhas opostas, uma a do bem (o Ocidente), e outra a do mal (o Comunismo), reduzindo as relações internacionais a níveis simplórios e maniqueístas.

O perigo, portanto, foi associado às ideologias ditas “estrangeiras”, ao comunismo in-ternacional e à URSS. A identificação do inimigo interno, que era protagonizado pela “barbá-rie e violência comunista” era vital para a manutenção do discurso de Segurança Nacional. Esse sofreu uma forte ameaça após a Revolução Cubana em 1959 e uma das principais zonas de influência norte-americana, a América Latina, foi abalada, o que levou os Estados Unidos da América a reconsiderar a política interna de cada país da região. Fomentou-se uma forte imposição para que a política de segurança interna desses países seguissem as recomenda-ções de Washington, e que se tornassem uma extensão da própria política externa estaduni-dense (PADRÓS, 2004, p.47).

Desde o fim da 2º Guerra Mundial, os EUA, através da conferência de Bretton Woods e do plano Marshall, deram início a um processo que configurou uma norte-americanização da economia internacional. Assim, permitiram a recuperação subordinada da economia da

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Europa e Japão pós 2º Guerra Mundial e se constituindo como indiscutível supremacia no mundo capitalista.

A Quinta Liberdade, termo cunhado por Noam Chomsky (1988) expressa o direito de saquear e de explorar norte-americano em outras nações, quando os EUA se sentirem minimamente ameaçados, entrando no rol das políticas de incentivo ou imposição da norte--americanização da economia mundial que tinha como base também as intervenções mili-tares e subordinação das economias dos países ditos periféricos.

A DSN foi o corpo doutrinário que materializou as justificativas à aplicação e a es-calada da política de contra-insurgência na América Latina. Nesse sentido, segundo Tapia Valdés (1980), os defensores da Doutrina de Segurança Nacional atacavam principalmente governos legítimos, democráticos. Era, todavia, estabelecido uma ordem repleta de conflitos e contradições e o qual não significavam nem segurança, nem paz e nem liberdade para a população, muito pelo contrário, apregoava a destruição da democracia para posteriormente envolve-la e salvá-la. Seguindo o raciocínio de Tapia Valdés, a DSN considerava que o Estado Democrático era incapaz de autodefender-se pela via democrática frente às distintas formas de subversão, além de ser um caminho aberto para a entrada de ideologias estrangeiras, e que de forma democrática pudessem conquistar o poder4 (VALDÉS, 1980).

Segundo Padrós,

Em nome da DSN, da “unidade nacional”, do anticomunismo e velada-mente, dos interesses explícitos da Quinta Liberdade, as Forças Armadas foram instrumentos de repressão social e cultural que, no Cone Sul, deixou como marca comum a supressão das instituições democráticas e a prática massiva de terror de Estado (2004, p.48)

Nesse sentido, foi-se propagando a idéia e conceito de guerra total generalizada. Para Joseph Comblin (1977) a guerra total ou absoluta não existe, pelo menos as guerras histori-camente reais e concebidas não foram assim. Existem motivos racionais para se manter uma guerra, entre eles é de que a guerra deve ser submissa à política, e a partir do momento que esta guerra se torna ilimitada é decretado o fim do próprio ato de fazer e pensar política, de agir politicamente, que nada mais é do que conceber uma visão apocalíptica da história (COMBLIN, 1977, p.35).

Há, portanto, para Comblin (1977), uma inversão dos preceitos clássicos de guerra de Clausewitz – A guerra é a continuação da política por outros meios. Para Clausewitz, a des-truição física do inimigo deixa de ser ética, quando ele pode ser desarmado em vez de morto.

Nos sistemas de segurança nacional a guerra comanda a política e de certo modo absorve-a e a faz desaparecer. A rigidez dos sistemas políticos aplicados não é devida a cir-cunstâncias acidentais: é devida ao conceito de guerra que está na base da estratégia (COM-BLIN, 1977, p.38-39)

Nessa polarização entre o bem e o mal, Ocidente versus Comunismo, a guerra fria se faz presente em todos os aspectos da sociedade: é uma guerra permanente, que foi travada em todos os planos, seja ele militar, político, econômico, psicológico. Todavia, ambos os lados

4. O caso mais emblemático foi a eleição de Salvador Allende, eleito presidente da República do Chile via eleições demo-cráticas e que foi, após 3 anos de governo derrubado e morto pelas forças golpistas, liderada por Augusto Pinochet.

evitam o confronto armado e a Segurança Nacional é exatamente uma resposta a esse tipo de guerra, conceituada a partir da Doutrina Truman de 1947 (COMBLIN, 1977, p.39)

Cada vez que o status quo fosse questionado em algum lugar, ou surgisse um governo desfavorável aos EUA era porque existia alguma intervenção de Moscou e, para tanto, era preciso reagir no contexto de segurança nacional e de guerra fria, pois se tratava de uma ameaça aos EUA. É possível perceber esse tipo de comportamento nas intervenções da guer-ra da Indochina, quando uma guerra colonial foi tratada como guerra contra o comunismo, e foi “devido a essa doutrina que os Estados Unidos entraram em guerra contra o Vietnã” (COMBLIN, 1977, p.42). Se o Vietnã se tornasse comunista, como queriam os vietnamitas do norte, para os americanos esse era um grande sinal de que a Ásia inteira posteriormente seria conquistada pelo comunismo. É o chamado “efeito dominó”.

Para os americanos, os soviéticos descobriram que a vitória do socialismo passava pelo 3º Mundo, e a luta contra o capitalismo passava por essa região. Portanto, o modelo é o mesmo para compreender todos os movimentos: guerra revolucionária, guerra de libertação nacional, subversão, terrorismo etc.

O Vietnã, nesse contexto, virou campo de estratégia para os dois lados. Para os estra-tegistas americanos os vietnamitas eram apenas meros objetos nas mãos dos russos. Portanto era necessário ser mais engenhoso que os soviéticos, pois para os Estados Unidos as guerras e disputas nada tinham a ver com a história desses povos.

A história da guerra fria é a história das contradições, entre teoria e prática, resultado das contradições incluídas nesse conceito. Na América Latina o conceito de guerra fria é lei. Segundo a DSN, há uma guerra contra o comunismo internacional.

O combate ao comunismo internacional precisa de ações que envolvem espionagem, informação, propaganda, repressão, ou seja, a ação que precede a eliminação.

Era vital, portanto, a localização do inimigo (o comunista, seus parceiros, simpatizan-tes da causa, familiares e amigos), com intuito de liquidar os simpatizantes do ideal revolu-cionário, sejam de partidos e grupos. Um aparato de informação foi criado e sistematizado para detectar o “subversivo” em todos os locais. A tortura e qualquer outro meio para obter informação foi utilizado, custe o que custar. Ou seja, segundo COMBLIN, “Se a inteligência é um dos pólos da guerra contra-revolucionária, o outro pólo é a ação psicológica” (1977, p.46), cultivando estereótipos para manter a população, o povo afastado de qualquer coisa que assemelhe ou lembre a subversão.

A Segurança Nacional é o valor que é defendido e que não precisava de justificativa nem explicação. Ela é anterior a toda reflexão ou discussão, pressupondo-se que todos este-jam conscientes de seu significado. A força do encantamento, uma vez expressa a seguridade dentro e fora das fronteiras, interrompia-se qualquer debate, servindo para calar objeção e qualquer questionamento. Uma vez invocada, todos tinham obrigação de se calar. Esse as-sunto foi e parece continuar sendo a defesa da cultura imperialista, a cultura dos americanos que assumiram o destino do Império.

O combate ao comunismo era a principal plataforma da política externa americana. Os EUA se identificavam com o chamado “mundo livre” e qualquer ameaça a esse mundo é sinônimo de ameaça a sua própria liberdade. A conduta estadunidense utilizada na política externa preconiza que há uma ameaça comunista em qualquer lugar onde um governo deixe de ser favorável aos EUA. Portanto, a segurança dos países satélites está em perigo, e não de-

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pende apenas deles, é necessário entrar nos planos de segurança coletiva dos EUA, pois sua segurança é a segurança dos EUA e elas são inseparáveis. (COBLIN, 1977, p.119)

Devido a guerra fria, uma mística da segurança nacional – que assumia cada vez mais a forma de operações militares a curto prazo – surgiu como um critério infalível para distinguir o bem do mal. Se Chan Kai-Chek , Baptista, Diem e Franco mostravam-se suficientemente anticomunistas, a segurança nacional exigia que fossem apoiados, quaisquer que fossem as conseqüências para seus respectivos povos ou, a prazo mais longo, para a influência dos EUA no mundo (COMBLIN, 1977, p.105)

No Brasil, o exemplo sairia das Forças Armadas, ela quem deveria conduzir e deter, no plano da Segurança Nacional, o monopólio da representação da sociedade. O desejo do exército era visto como o desejo da sociedade, portanto o único desejo da Nação.

As Forças Armadas arquitetaram alguns objetivos nacionais. Neles estavam interliga-dos a integridade nacional, a ordem política atrelada à paz social. Ou seja, é a capacidade que o Estado dá a Nação para impor seus objetivos a todas as forças oponentes. Força do Estado para manter um único objetivo, a sobrevivência da Nação. Algo deve ser posto em segurança, bens materiais e imateriais, mas não se tem a definição do que deve ser protegido e assegu-rado, ficando ao critério das forças autoritárias em definir dependendo do seu belprazer. Essa indefinição é sua eficiência do regime de Segurança Nacional, o conceito é muito flexível, o inimigo pode estar em qualquer lugar.

Onde haja suspeita do fantasma do comunismo, há a presença do Estado de Segu-rança Nacional, conceito esse que não poderia ser questionado, pois caso fosse, sofreria as sanções impostas pelo regime, mesmo a definição sendo extremamente simplória. Todavia, a segurança deve ser obtida independente se é através de forma violenta ou não, pois quem busca a “segurança” não questiona os meios (COMBLIN, 1977, p.56).

Esse é o princípio da segurança nacional, ela não faz distinção entre política interna e externa. O inimigo, o mesmo inimigo está tanto dentro como fora do país. Desaparece a diferença entre polícia e exército.

Nessa perspectiva, todavia, a segurança absoluta tem um preço, que é a insegurança absoluta dos outros. Não existe limite na segurança nacional (COMBLIN, 1977, p.57), a estra-tégia deve orientar, controlar, vigiar todos os setores da sociedade. Todas as atividades hu-manas são necessárias à segurança. Tudo é chamado para contribuir. É a responsabilidade de todos os cidadãos, cuidar e vigiar os destinos de um só corpo, chamado de nação. Se a Nação falha foi porque a população falhou, princípio esse, usado também pela GESTAPO nazista.

o potencial de guerra transforma-se em potencial militar, dependendo da tendência dos indivíduos a trabalhar mais, a consumir, a economizar mais, a aceitar sacrifícios e perigos e a se conformar com um maior controle de suas vidas pelo governo, seja voluntariamente ou de maneira forçada. Eis o programa do poder psicossocial” (COMBLIN, 1977, p.62)

Os atos de violência ou não-violência são empregados indiferentemente em todos os setores, sejam eles econômicos, culturais, políticos, ou a respeito da guerra externa.

O poder político – poder executivo, legislativo, judiciário – o partidário, o poder Psi-cológico – a Moral eram os sustentáculos utilizados para a manutenção da ordem, com

propaganda. A idéia básica é que não há diferença de natureza entre o civil e o militar. A ten-dência é de que as práticas estatais se tornassem militares (ou militarizadas) e que deveriam majoritariamente se tornar objeto da estratégia nacional.

Os regimes militares tomaram o poder para “salvar” a democracia e sua função era preparar sua volta, no entanto tinham um medo terrível de que qualquer abertura democrá-tica pudesse reviver justamente as circunstâncias que os forçaram a tomar o poder. Diante desse temor, o que seria transitório tenderia a se prolongar indefinidamente. Nascera, assim, uma democracia engajada: ela possuía sua doutrina, seus amigos e seus inimigos, e extinguiria as posições neutras e o laicismo, ou seja, uma sociedade idealizada de forma bipolar, carte-siana e que garantisse o desenvolvimento capitalista. Pois, para Robert Mcnamara, não há segurança sem desenvolvimento capitalista.

Os cidadãos dessa nova “democracia” preconizada deveriam participar apenas das ta-refas do Estado, ou seja, não eram ativos para a construção do Estado. Resta apenas participar, e participar é obedecer as regras, as leis e as autoridades, sem questioná-las. Questionar nesse caso é um grande sinal de subversão que precisa ser eliminado. Participa-se na execução do projeto, não nas decisões (COMBLIN, 1977, p. 74).

O ambiente autoritário criado a partir da militarização do Estado desenvolveu no bojo da sociedade situações que não permitiram a participação popular nas decisões políticas e econômicas. Essa situação pode ser percebida também nas práticas autoritárias e repressivas das cadeias superlotadas das grandes cidades brasileiras atualmente. Não ter julgado e inves-tigado o passado recente do país sob égide da Doutrina de Segurança Nacional, dos tortura-dores e repressores traz a tona sempre resquícios violentos marcadamente vinculados a esse passado de autoritarismo e repressão.

Nessa democracia almejada por alguns civis e militares pós golpe, era necessário, entre outras coisas, destituir a autonomia e persistência da população em trilhar seus rumos sociais e políticos. Somente as elites têm capacidade de formular os objetivos da nação, e de inculcá--las às massas. Os militares se consideram superiores e o passado da nação julgam ser um fracasso. Para eles, a Nação precisava ser resgatada, obviamente sob comando deles, pois são a suprema reserva moral nacional da nação (COMBLIN, 1977, p.77).

Considerações Finais

Esse trabalho se propôs a discutir e apresentar algumas maneiras de perseguição e re-pressão aos brasileiros no exterior, e como tais práticas produziram a apatia e impossibilidade de se questionar tais ações arbitrárias, por algum motivo que se remete ao medo e ao terror. Em um Estado no qual as garantias democráticas estão cortadas, mesmo que o discurso uni-formizador estivesse em defesa da democracia, ficou inviável exercer o direito de cidadão de brasileiros que sofreram algum tipo de repressão. Contudo, o silêncio imposto não conseguiu provocar o esquecimento, apenas abafar as aspirações de pessoas que foram forçadas ao exílio ou se exilaram voluntariamente por discordar do regime ou por temor de algo de ruim lhes acontecesse. Tal esquecimento foi e continua a ser combatido através da abertura dos arquivos da repressão na América Latina, sobretudo no Paraguai, onde se encontra o chama-do Arquivo do Terror. Além disso, há necessidade de salientar a importância das memórias subalternas, periféricas e fora do círculo daquilo que é considerado oficial, para o entendi-mento desse período nefasto recente de nossa sociedade. Os projetos do “Nunca Mais” não são revanchismos, como alguns querem crer, mas apenas a necessidade de reparação e justiça

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e, sobretudo, educar as gerações posteriores ao regime contra-insurgente que se instaurou no Brasil e no Cone Sul entre as décadas de 1960 e 1980.

Tais incursões não esgotam as discussões a respeito do assunto. Aliás, o empreendi-mento se configura como início de uma pesquisa que deve seguir adiante, com intuito de analisar o caráter repressivo do regime militar do Brasil, instaurado em 1964, dentro e fora do país. Nesse sentido, foi fundamental apresentar o cotidiano de brasileiros que, mesmo afasta-dos do seu país e de seus familiares, não se distanciaram dos seus ideais e nem deixaram de contestar um regime militar que ultrapassou as fronteiras nacionais e alcançou os brasileiros exilados, através dos serviços de informações do Brasil. Foi importante também debruçar-se sobre as memórias daqueles que sofreram a repressão, por entender a importância delas na construção de um viés diferente sobre o tema, muitas vezes pouco lembrado e valorizado por alguns setores da sociedade brasileira atual. Com isso, levantar questões da memória oficial brasileira permite a elucidação do que foi esse momento conturbado na conjuntura política do nosso país – a formação dos partidos atuais, a atuação da geração passada na redemocratização e as consequências para os dias atuais.

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Cartas de Jane Vanini: uma trama de subjetivação

k áTia Gomes da silva amaro1

No presente artigo apresento algumas reflexões sobre Jane Vanini que se “aventu-rou” no período ditatorial brasileiro e durante a constituição da ditadura chilena2·

Cumpre informar ainda que as reflexões aqui elaboradas dizem respeito a um momento de pesquisa identificado com a graduação.

No período de 1972 a 1974, a personagem política Jane Vanini transitou pela ditadura brasileira instituída por um golpe militar em 1964 e a chilena em 1974, através de suas cartas que ela passou a enviar constantemente para sua família, de um país que estava em tensão política devido à experiência socialista no Chile introduzida pelo presidente Salvador Allende, além da derrubada do mesmo por forças “conservadoras burguesas”, liderado por um militar, Augusto Pinochet.

Tais experiências exigiam de Jane Vanini um cuidado incessante de si, pois no Brasil onde estava a sua família, o regime ditatorial criou uma série de mecanismos de combate a quem contrariasse as idéias do governo, pondo em risco a sua família e a sua vida. Nesse

1. Licenciada em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso/UNEMAT. Mestranda em História pelo Programa de Pós-graduação UFMT, bolsista Reuni. [email protected]

2. Jane Vanini saiu de Cáceres para tentar “nova vida” em São Paulo no período aproximadamente entre 1964 a 1965, perí-odo esse que a empregnou de novas posições e percepções políticas e de mundo. E já em 1968 casada com Sérgio Ca-pozzi se tornaram simpatizantes das ações políticas da Aliança Libertadora Nacional (Organização de Resistência ao Regime Militar no Brasil). Consequentemente começaram a prestar serviços para essa organização, mas logo sentiram o peso da repressão instituída pelo regime militar, através dos órgãos repressores do governo como a OBAN (Operações Bandeirantes) entre outras, tornando-se assim clandestinos.

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mesmo sentido no Chile o cuidado devia ser “redobrado”, à medida que os partidos conser-vadores iam ganhando força, fato recorrente em quase toda a América Latina.

A esse “estado de tensão” existente na “comunicação” entre o Brasil e o Chile, Jane Vanini, estabelecia o trânsito de suas idéias, propostas, anseios políticos vividos em um país que passava por uma experiência socialista para um país ditatorial, como no Brasil daquele período. Apresentando, assim, o “seu corpo” na escrita, quando a militância e o rigor do re-gime ditatorial exigia que fossem apagados todos os rastros e os “elos” com a “vida passada”.

Busco pensar assim Jane Vanini no processo de constituição de si através das cartas, assumindo várias “figuras” fluidas engajadas na resistência, o que representa uma atitude ética na qual, a prática da militância é posta em reflexão na sua escrita apresentando um domínio de si.

Jane Vanini cria o “hábito” de escrever quase constantemente para sua família, quan-do vive o “drama” da clandestinidade, como se através das cartas a mesma pudesse ter um aperfeiçoamento e um domínio de si, criando o elo entre o mundo político e o privado, da qual ela não lançava mão. Atuando através desta prática escriturária - o exercício da pratica de si - na qual denota uma atitude e preocupação com o mundo e com os outros na esfera pública e com a família na vida particular, “transitando” entre esses dois pólos.

(...) Sei que é difícil compreender essa situação para quem é de Cáceres, onde uma mulher que deixou de ser virgem é considerada uma prostitu-ta e não pode entrar em um club. Te consola saber que considero como se fosse solteira e nunca houvesse deixado de ser virgem? Sou a mesma de sempre. Tão pura ou tão sem vergonha como antes e nada mais que isso. Tenho mais segurança sobre o que faço e sobre o que eu quero. Não necessito correr de trás de nenhum homem porque sei viver sem depen-der de ninguém e sempre de forma útil á sociedade. Tão pouco necessito agüentar coisas detestáveis toda vida só para dizer que sou casada com um papel e tudo.

Aqui percebemos uma nova figura de “mulher pública” que já não está mais associada às “prostitutas”, preconceito forjado a partir do século XIX e que fazia parte do pensamento da maioria dos moradores da cidade de Cáceres da época.

Jane Vanini propunha uma outra forma de subjetividade feminina questionando tais valores que ainda estavam presentes na cidade de Cáceres naquele período. Tal crítica é visí-vel na seguinte carta:

(...) Se daqui para frente tenho que viver sozinha, viverei sem nenhum pro-blema. Jamais pedirei ajuda ou ficarei na dependência de nenhum ho-mem. Por esse motivo, nenhum homem me fará sofrer ou algo parecido como a senhora pode imaginar quando cree que não posso ficar só a vida toda(...)

Percebo que as suas cartas além de apresentar conteúdos de caráter revolucionário, também ampliavam a dimensão política de seus escritos produzindo assim, novas relações de atuação feminina, criticando a delimitação histórica que produziu a mulher como um ser frágil destinada somente aos cuidados domésticos, “postura” da qual ela queria se afastar.

(...) E eu quero ser de vanguarda também no trabalho como na trincheira se for o caso.

Me sinto orgulhosa de pertencer a uma classe que cumprirá seu papel his-tórico de luta, de trabalho, de esforço na construção da nova sociedade (...)

Percebemos que Jane Vanini “procura” as cartas para se manifestar, apresentar idéias, colocar seus pontos de vista, mas acima de tudo “produzir” uma imagem de revolucionária, que se pauta na produção e “cuidado de si”, na qual aquilo que se diz foi posto em prática em suas ações cotidianas de luta. As suas escritas não são alheias à sua luta, aos seus combates, às vitórias e às derrotas. Há, portanto, um engajamento ético (FOUCAULT, 2004) entre aquilo que se diz e aquilo que se pratica.

As cartas de Jane Vanini apresentam essas ressonâncias subjetivas de uma nova per-cepção de si e do mundo que se fabricava, constituindo essa personagem em múltiplas figuras fugazes que ela criava (Ana, Carmem, Tereza), mas que se mostravam, se expunham, tendo por finalidade colocar essas personagens frente à sua família e assim deixar algo mais do que simples “recordação” e comunicação.

As cartas para Jane Vanini eram também uma maneira para discutir e amadurecer suas idéias, porque segundo Foucault a escrita é uma ação que precisa ser exercitada e lapidada que o mesmo denomina um “treino de si por si mesmo”. Dessa maneira, a escrita é utilizada como um “exercício pessoal” ocorrendo a meditação que proporciona pensar e questionar o seu real, ou seja, a militância, o socialismo, a ditadura e o mundo onde a mesma está inserida; “se apoiando” na experiência e no exercício do pensamento proporcionando a releitura e a meditação para a aplicação da ação, isto é, a experiência e a reflexão não estão separados.

Portanto, o pensamento expresso nas cartas coloca Jane Vannini num processo de constituição de si como sujeito autônomo, um sujeito ético para consigo mesma e com os outros, cujo conhecimento, valores e ideais; se manifestam na sua ação enquanto militante e a militância enquanto uma forma de pensamento é expressa através de suas cartas.

Na ditadura tratava-se de fazer do exílio um instrumento básico de controle dos in-divíduos que ainda apresentavam um caráter político, tentando-lhes impor um “silêncio”, dessa maneira o exílio seria uma das punições para aqueles que ousavam pensar diferente. O mesmo ganhava o sentido de afastamento, de isolamento e consequentemente perdas dos vínculos com o país, com seus pares e seus objetivos de vida e de luta.

Então me pergunto se o exílio provocava o isolamento e a impotência política à Jane Vanini?

As cartas para Jane Vanini adquirem, uma maneira de driblar a ditadura e também o silênciamento; mesmo que seja escrevendo para a família e amigos, a mesma estava apresen-tando suas idéias, contando experiências, divulgando o movimento revolucionário, apren-dendo a conviver com a ditadura e criando mecanismos de burlar a censura.

(...) As cartas que vocês nos mandam chegam no máximo com uma se-mana desde o dia em que colocam no correio.

Em geral elas vem reengomadas, quer dizer que a abriram e tornaram a fechar. O correio aqui quando vê que a carta vêm com mais cola do que o normal põe a carta em um saco plástico, fechado, e carimbam algo assim como: Esta carta foi recebida recolada. Assim é que eu peço a vocês que

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usem apenas a cola do próprio envelope, por que assim, se vem recolada a gente sabe que a censura abriu ta?(...)

Diante desse “campo de batalha”, onde as relações de forças aconteciam, Jane Vanini se lançava num devir “camaleão” que cria e recria “personagens” e figuras que atendem à sua necessidade de sempre se estar mudando de endereços, “identidades” e “vidas” durante a clandestinidade, manifestando um “nomadismo guerrilheiro”.

Assim Jane construía um “dinamismo do seu eu” como Nietzsche afirmava, não existe um “eu” fixo e estável e um “verdadeiro eu”. O “eu” a que Nietzsche se refere é algo que se almeja e se supera, pois o homem é um ser múltiplo, dotado da capacidade de construir e se utilizar de todas as suas máscaras constituídas e adquiridas. Como o filósofo afirmava:

(...) Por trás de cada máscara, há sempre muitas outras máscaras; por trás de cada pele, muitas outras peles: ‘Se é verdade que a lebre tem sete peles, o homem pode despojar-se de setenta vezes sete peles e ainda não poderá dizer: eis realmente o que você é, não é mais um invólucro’(...). (DIAS, 2003:68)

Dessa forma Jane Vanini via uma maneira de resistir à censura criando e recriando “imagens”, ou seja, pseudônimos que eram um dos seus mecanismos de defesa contra a repressão, mas não podemos deixar de nos determos que apesar de Jane ser Tereza, Ana, Car-mem entre outras, a mesma tentava constituir uma singularidade na militância, bem longe de um individualismo romântico, no qual:

(...) O indivíduo para se constituir como tal, precisa diferenciar-se de todos os outros indivíduos, de modo que possam tornar-se uma singularidade insubstituível, um ser único (...). (DIAS, Op. Cit. 68)

O que devemos nos atentar é que Jane Vanini queria se afastar e distanciar-se da “cultura artificial” burguesa, ou seja, do capitalismo, mas ela não buscava um “eu perdido” no fundo de sua alma, porque a imagem de revolucionária que ela queria instituir era mais uma de suas máscaras: eis que ao afirmar a “REVOLUCIONÁRIA”, não conseguiríamos atingir o cerne da figura emblemática de Jane.

As cartas eram o “Campo” de atuação, onde a mesma exibia o sistema político dita-torial, a censura, as mortes, mas também representava uma “vitória” no sentido de conseguir manter relações com a família e resistir e se sobressair diante da realidade vigiada tanto no Brasil quanto no Chile.

Assim ela criava e recriava as várias faces do seu “origame”, que dobra, redobra e des-dobra como uma constante luta que põem as ações políticas em tensão, onde a mesma constitui e assume figuras de resistência quando alguma força tenta aprisioná-la e silenciá-la, “essas” expressas através de suas cartas.

Esse trabalho é mais uma “manifestação do pensamento”, do cuidado de si discutido por Foucault na sociedade grega; pois as minhas reflexões e questionamentos se “materia-lizaram” na ação da produção e pesquisa deste trabalho, que me fez vislumbrar e arriscar a trilhar “os caminhos” do conhecimento, que na maioria das vezes se apresenta já estabelecido e validado. Como Paula Sibilia afirma:

(...) Se o inimigo é a opinião, o estabelecido, as verdades consideradas eter-nas e universais, a proposta é abrir uma fenda na segurança do já pen-

sado para deixar passar a riqueza do ainda não pensado, como um raio impetuoso capaz de alterar aquilo que é (...). (SIBILIA, 2002:20)

E acredito que esse seja o “papel” do historiador, de encontrar “riquezas”, onde os dis-cursos já são apresentados como “terras inférteis”, dessa maneira o historiador é aquele que jamais procura o finito para os acontecimentos, mas sim aquele que vive de um “devir” ou inesperadas ações.

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Webgrafia

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FONTES

Cartas:

Carta de Jane Vanini, 25 de Maio de 1973, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, sem data, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, 30 de outubro de 1972, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, 25 de Maio de 1973, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, sem data, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, 30 de outubro de 1972, assinada por Ana.

Carta de Jane Vanini, 07 de setembro de 1972, assinada por Ana.

Fontes Institucionais:

DEAP/DOPS, Pasta SNI, 1969.

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Caminhos que levam a Nortelân-dia: movimentos migratório e

identidade AMINHOS

k áTia Terezinha pereir a ormond1

A f e s t a f a z i a n a s e s q u i n a s , n é ? N a e s q u i n a p e r t o d e A n t o n i o V i a n a . Ta m b é m n a e s q u i -n a p e r t o d e T i b ú r c i o , e l e s f a z i a . . . Q u a n d o c h e g u e i e r a a s s i m . P o r q u e e n t r e g a r a m e s s e d i n h e i r o , e s s e d i n h e i r o (d a f e s t a ) s u m i u , n é ? A i . . . m u i t o d i n h e i r o ! D a v a p a r a f a z e r a   i g r e j a f o l g a d o . M a s o d i n h e i r o s u m i u . O p r e f e i t o F r a n c i s c o A n d r a d e f e z o a l i c e r -c e ,   c o m s e n t i d o n e s s e d i n h e i r o , m a s o d i -n h e i r o s u m i u

• (Depo imento . Sra . Joana Gomes Pere ira , novembro de 2009) .

Iniciamos esse estudo com um trecho da fala de um dos sujeitos participantes da pesquisa que realizamos, cujo tema é a festa religiosa de Sant’Ana dos Garimpeiros, da cidade de Nortelândia, estado de Mato Grosso. A relevância da citação está no fato do narrador nos apresentar a sua experiência pessoal e a dimensão existencial do seu viver no que se refere

1. *Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sob orienta-ção da Profª Drª Leny Caselli Anzai.

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aos festejos, objeto de nosso estudo, compreendidas através da sua narrativa. Além disso, en-tendemos, a partir do estudo da narrativa histórica, ser a sua fala um contributo para pensar a construção da nossa própria narrativa sobre a pesquisa.

Segundo a historiadora Maria Isaura Pereira de Queiróz, os relatos de vida a partir do momento que são registrados, passam a constituir-se em documentos. Serão esses docu-mentos a base para o nosso trabalho, daí a importância da narrativa para eternizá-los.

(...) ao utilizar o relato, o pesquisador o fará de acordo com suas preocupa-ções e não com as intenções do narrador, isto é, as intenções do narrador serão forçosamente sacrificadas. (...) desde o início da coleta do material, quem comanda toda a atividade é o pesquisador, pois foi devido a seus interesses específicos que se determinou a obtenção do relato. (...). Na ver-dade tudo quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo, seja história real, seja ela mítica (QUEIROZ, 1988:18-19).

Na conversa com as mulheres que iniciaram a festa de Sant’Ana percebemos que, mais forte que a fé, era a vontade de organizar o espaço urbano, a partir de condições consideradas básicas para a vida em sociedade: era preciso ter uma igreja, um padre, um ritual religioso, símbolo da civilidade.

Essa intenção fica mais ou menos evidente nos relatos das diversas personagens que entrevistamos. O historiador não deve se preocupar somente com o que ouve do entrevis-tado, mas, sobretudo, com as pistas, com o não dito, com aquilo que está subjacente, isso porque, sendo a memória seletiva, muitas vezes a pessoa conta somente aquilo que teve importância para ela, omitindo toda uma teia de relações que se estabeleceram à sua volta.

Quando realiza entrevista, certamente o historiador deve trabalhar segun-do suas técnicas próprias, mas também deve ter em mente dois outros procedimentos (...) não se trata de propor interpretações da mensagem que lhe é comunicada, mas de saber que o não-dito, a hesitação, o si-lêncio, a repetição desnecessária o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato. Não cabe desesperar-se com mentiras mais ou menos fáceis de desmascarar nem com o que pode ser tomado como contra verdade da palavra-fonte (VOLDMAN, 1998:38).

Os relatos, em linguagens simples, nos revelam pessoas que não se detiveram diante da falta de estrutura local e das dificuldades. Pessoas que sonhavam com uma vida melhor. Não sabiam exatamente como fazer, mas buscaram saídas. Através desses relatos entende-mos muito de suas vivências. Maurice Halbwachs (1990), estudioso da memória coletiva afirmou que lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, portanto, ao registrar a história de vida de muitas pessoas que viveram em Nortelândia, estamos dando voz a sujeitos históricos e permitindo que nos contem como construíram a identidade local.

Segundo Regina Beatriz Guimarães Neto, devemos nos lembrar que, quando trabalha-mos com relatos orais, ouvimos narrativas importantes para o narrador-entrevistado, porém ele irá contar os acontecimentos relevantes para sua vida, e que o tempo da memória não segue um tempo cronológico. Portanto, as “histórias relatadas são, antes de tudo, vidas ou acontecimentos lembrados” (GUIMARÃES NETO, 2006:48). Assim sendo, podemos enten-

der até mesmo naquilo que foi omitido, o contexto sócio-histórico no qual o evento pesqui-sado aconteceu.

Desde a descoberta de ouro na região, por volta da segunda década do século XVIII, Mato Grosso tem atraído milhares de pessoas de várias regiões do Brasil e de outros países. A visão mítica do “paraíso” encontrou nessas terras, ao longo do século XX, sua personificação, seja porque foi muito rica em minérios, ou porque é muito fértil e de grande extensão. Certo é que, ao longo da história, a região já teve diversas atividades econômicas principais, e man-teve, no inconsciente coletivo, a imagem de “terra prometida” 2.

A descoberta de diamantes no médio norte de Mato Grosso, mais precisamente nas proximidades do rio Paraguai, por volta de 1930, atraiu muitas pessoas para a região. Poste-riormente, descobriram diamantes nas margens do rio Santana. Dessa descoberta surgiu o povoado de Sant”Ana, que daria origem, alguns anos depois, à cidade de Nortelândia. Portan-to, o surgimento dessa cidade está diretamente relacionado à mineração.

Pessoas das mais diferentes partes do país migraram para Santana - como Nortelândia foi inicialmente chamada – na esperança de ter uma vida melhor. Segundo Ricardo Rezende Figueira, todo movimento migratório é motivado por alguma razão:

É possível empreender uma viagem pelo desejo de conhecer terras e rea-lidades diferentes, adquirir novos conhecimentos, fazer estudos, manter ou criar uma nova relação afetiva ou desfazer uma antiga, pela sedução de algum convite irrecusável, por medo de uma catástrofe, uma seca, um terremoto, uma guerra entre nações, um crime cometido; uma ameaça física, uma perseguição contra determinadas pessoas, grupos religiosos, etnias; uma humilhação sofrida, por razões comerciais, por necessidades econômicas prementes vividas por uma ou mais pessoas ou mesmo pela totalidade de um grupo social, pelo desemprego temporário ou estrutural, pela abundância de mão-de-obra em um lugar e pela escassez em outro. Em todo caso, não se viaja ou se emigra apenas porque se quer, mas tam-bém porque se é obrigado (FIGUEIRA, 1994:101-102).

No caso específico estudado, a migração para Nortelândia aconteceu por uma con-junção de fatores: a maioria dos migrantes era de origem nordestina, portanto, oriundos de uma região onde há concentração de riqueza e carência de empregos. Além disso, em algu-mas partes do Nordeste a seca prolongada obrigava as pessoas a irem para as mais diversas regiões do país em busca de sobrevivência. Segundo João Carlos Barrozo:

As trajetórias individuais são definidas por “momentos-chave”, que mar-cam a sua reorientação e aparecem mais frequentemente em certos mo-mentos, como na passagem da juventude para a idade adulta, numa cri-se, na morte de uma pessoa da família. No caso dos nordestinos, uma seca prolongada, muitas vezes, era decisiva para uma família decidir se

2. Essa idéia de “terra prometida” esteve presente também na contemporaneidade, principalmente durante o processo de (re) ocupação dos espaços considerados “vazios”, política dos governos militares (1964-1985): “Mato Grosso é o terceiro Estado em área da Federação brasileira, com área total de 906.807 km2. Encontra-se na região Centro-Oeste do país, centro do continente Sul-americano” (MORENO, 2005:08).

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permanecia ou não no lugar de origem. Em outros casos, as desavenças e guerras no sertão são o “momento-chave”(BARROZO, 2007:13).

Conversando com pessoas que vieram para Nortelândia, ouvimos relatos de alguns que venderam os poucos pertences que tinham – um pedaço de terra, alguns animais – e vieram para Mato Grosso, trazendo toda a família, na esperança de “melhorar de vida”.

Muitos nordestinos que vieram para Mato Grosso utilizaram um trajeto saindo da Bahia, vindo a pé, em lombo de animais, de vapor e até de trem em alguns trechos onde havia ferrovia. A viagem demorava várias semanas, e dependendo do meio de transporte utilizado, até meses.

O primeiro local a alojar esses migrantes foi o garimpo de Coité, e em seguida Poxoréu. Os relatos de pessoas que vieram para a região seguindo o segundo trajeto são pontuados de detalhes quanto às condições da “viagem”: famílias numerosas, das quais faziam parte muitas crianças, tinham que conviver com a fome e doenças comuns como diarréias, febres, dores de dente, e até mesmo a morte durante o longo trajeto.

Em depoimento o Sr. L.F. esclarece que veio ainda menino, com os pais, e da sua me-mória jamais conseguiu apagar a dor da fome que os levou a comer arroz mal cozido para aplacá-la: “(...) quando a gente parava, meu pai e outros homem fazia um tacuru e as muléres conzinhavam. Quando a água do arroz fervia, nos já chorava querendo cumê. Aí a mãe dava de cumê nós” (Depoimento. Sr. L. F., outubro de 2009).

O relato acima, do senhor L.F, nos remete à saga de Fabiano e sua família, descrita de forma pungente em “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Vidas secas, retrata a aventura de pessoas que, na luta pela sobrevivência, deixam suas terras e perambulam em busca de um lugar onde possam viver. Os sonhos de Fabiano, sinhá Vitória e seus meninos era tão somente encontrar um local onde pudessem descansar, ter abrigo e comida.

Nesse ponto, são convergentes várias histórias de vida pesquisadas por nós: muitos personagens da nossa pesquisa viveram situações semelhantes, às vezes mais e noutras me-nos difíceis que a vivenciada por Fabiano. Em comum com a obra de Graciliano Ramos, te-mos a fuga da seca, carregando, na maioria das vezes somente aquilo que conseguiam levar em mãos:

Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam, cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas (...). Arrastaram--se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingar-da de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai (RAMOS, 1980:09-10).

Nesse ponto, é necessário destacar, que ao contrário dos retirantes descritos em Vidas Secas, muitos nordestinos tiveram conhecimento dos garimpos e possibilidades de vida nova em Mato grosso. Priorizando, portanto a vinda para a região.

Essas pessoas que chegavam na região mineradora tinham que se adaptar a novos

padrões de vida e comportamento, e isso nos remete a Frederick Jackson Turner, que em sua obra sobre a fronteira norte-americana afirmou:

A fronteira permite que os colonos busquem novas condições de vida nas terras livres, o que é um incentivo para o espírito de iniciativa e para a de-fesa da igualdade de oportunidades. (...) A partir da adaptação a padrões primitivos, o pioneiro desenvolve novas técnicas de trabalho, valores e pa-drões de sociabilidade, inclusive recuperando sua bagagem cultural – num primeiro momento abandonada (KNAUSS, 2004:98-99).

Para Turner, a formação da identidade americana deveu-se não ao “olhar” para a costa atlântica, ou à herança cultural européia; mas sim ao viver na fronteira, espaço democrático, onde o colono aprende a conviver com as adversidades e se adapta a esse novo meio. Porém, o abandono inicial de sua cultura funciona, na verdade, como estratégia de sobrevivência, porque, posteriormente, os imigrantes (colonos) farão um amálgama entre a sua bagagem, trazida da Europa e os valores culturais da fronteira, constituindo a identidade norte-america-na. É importante destacar que o trabalho de Turner, por mais importante que seja, considera a fronteira como um espaço desabitado.

Encontramos em “Caminhos e fronteiras”, de Sérgio Buarque de Holanda, influências do pensamento de Turner, quando afirma: “Os adventícios devem habituar-se às soluções e muitas vezes aos recursos materiais dos primitivos moradores da terra” (HOLANDA, 1995:19). Isso significa que, num primeiro momento, as pessoas que chegavam à região tinham que se adaptar primeiro às condições locais para, a partir de então reinventar ou resgatar antigos comportamentos sociais. O choque vivido com a chegada em Nortelândia fica claro no de-poimento de Dona Emília (Nenzinha): “Eu ia pro quintal, lavar roupa e ficava olhando aquela estradinha que perdia de vista e chorava... Mas quando meu marido chegava, limpava os olhos para ele não perceber (...)” (Depoimento. Sra. Emília, fevereiro de 2010).

A leitura de Turner, ainda que em tempo, condições geográficas e culturais diferentes, é pertinente ao nosso objeto de estudo porque nos permite deslocar o foco da História feita por grandes personagens para a história feita por milhares de anônimos que ajudaram a cons-truir, no centro oeste do país uma sociedade mesclada de valores trazidos de várias outras partes do Brasil, milhares de anônimos que consolidaram práticas próprias ao homem que se dedica ao garimpo, à agricultura e à pecuária no médio norte de Mato Grosso. Nesse sentido, vale trazer para a discussão o trabalho de Hobsbawn em co-autoria com Terence Ranger “A invenção das Tradições”, nesta obra a idéia defendida é a de que parte das tradições são resul-tados de invenções, sendo necessário operar dentro de uma criticidade (HOBSBAWN, 1984).

Vista também como instrumento que fortalece a comunidade, através da devoção, os moradores podem dar sentido à vida quando se voltam para as questões religiosas. De acor-do do com Joanoni Neto: “Encontramos em seus relatos sinais de que esta migração ganhou contornos de peregrinação. A fé em Deus e a crença na melhora estiveram presentes e fortes desde sua saída em busca da “terra prometida” até sua fixação na região” (JOANONI NETO, 2007:17).

A Idade Média foi pródiga na realização dos festejos religiosos, como demonstram alguns estudos de importantes medievalistas3. Cada uma das cidades medievais contava com

3. Sobre isso, ver: DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 & LE GOFF, Jaques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção o Homem e a História); ___. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1990.

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um padroeiro, e em sua homenagem eram organizados festejos que chegavam a durar vários dias, portanto o calendário litúrgico marcava a vida dos moradores dessas cidades.

Muitos traços dessas manifestações permanecem, transmutados no tempo, em feste-jos como o de São João, São Pedro e Santo Antônio, além da festa de Nossa Senhora Apare-cida, oferecendo-nos uma mostra da força dessas permanências.

No Brasil colonial, segundo o costume português, desde o despertar o cris-tão se via rodeado de lembranças do reino dos Céus. Na parede contígua à cama, havia sempre algum símbolo visível da fé cristã: um quadrinho ou caixilho com gravura do anjo da guarda ou do santo ; uma pequena concha com água benta; o rosário dependurado na cabeceira da cama.

(...). As famílias um pouco mais abastadas possuíam um quarto especial, o quarto dos santos (MOTT, 1997:164-165).

Como podemos observar, a religiosidade esteve presente no Brasil desde o período colonial, fazendo homens e mulheres creditarem ao divino praticamente todos os aspectos de suas existências, na maioria das vezes marcadas por grandes sofrimentos e dificuldades. A busca do sagrado no ambiente do lar era interpretado como um gesto de fé, devoção, respei-to e temor a Deus. É nesse contexto que se insere a Festa de Sant’Ana.

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O Estereotipo Boliviano Na Fronteira Brasil Bolívia

na Cidade de Cáceres

leil a de souza

João edson de arruda Fanaia1

A representação que se constrói do boliviano na Cidade de Cáceres que compreen-de essa faixa de fronteira, motivou a problematização desse tema, onde a identi-

dade e o deslocamento populacional nos remeteram a leituras e a realização de entrevistas com bolivianos fixados na cidade de Cáceres (1990-2010). Os dados da pesquisa foram obti-dos através de entrevistas formais e informais, história de vida, e gravações em áudio.

Ao surgir a oportunidade de participar do grupo de pesquisa “Fronteira Oeste Brasilei-ra” e analisando os temas dos colegas que estavam com seus trabalhos em andamento, de-parei com uma indecisão referente ao meu recorte histórico, ou melhor, precisava fazer uma escolha e qual? O que poderia dentro da perspectiva proposta considerar Histórico? Busquei leituras que me auxiliassem, e percebi que pela primeira vez estava realmente colocando em pratica, o exercício de pesquisa. As obras vieram como que iluminadas para minhas mãos, começando por Paul Veyne (1930).

Segundo Veyne a partir do momento que chegamos ao impasse da escolha, chega a hora de definirmos o que narrar como evento e trama do enredo escolhido.

... basta admitir que tudo é histórico para que esse problema se torne, ao mesmo tempo, evidente e inofensivo; sim, a história não é senão respostas a nossas indagações, porque não se pode, materialmente, fazer todas as

1. Acadêmica do curso de História – UNEMAT. Campus Universitário de Cáceres – email: leila_souza @hotmail.com; 2 Professor Orientador, Depto de História, UNEMAT. e-mail: [email protected]

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perguntas, descrever todo o porvir, e porque o progresso do questionário histórico se coloca no tempo e é tão lento quanto o progresso de qualquer ciência; sim, a história é subjetiva, pois não pode negar que a escolha de um assunto para um livro de história seja livre (VEYNE:(1930.p-37).

Vamos pensar então nas infinitas possibilidades, e com a preocupação de não incorrer no risco de dispersões de singularidades e uma indiferença de que tudo teria o mesmo valor. Podendo claro, estar escolhendo um campo factual mesmo que não seja tão interessante, podendo ter tomado o mesmo caminho do grupo de pesquisa e ter uma visão diferente e podendo discutir objetivamente as incompatibilidades, e respeitando os temas já expostos.

Para Brandão pesquisar é participar, e a pesquisa participante vai possi-bilitar a recriação de dentro para fora, vai oportunizar a expressão das formas concretas de um grupo, as manifestações próprias das pessoas... Ter no agente que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que foram negados ao povo, aqueles para qual a pesquisa participante onde afinal pesquisadores são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que situações diferentes - pretendem ser um instrumento a mais de reconquista popular.” (BRAN-DÃO, apud VEYNE, 1990:p.09-11).

O objetivo da pesquisa é estudar como o boliviano é percebido e nomeado pela po-pulação brasileira e como o mesmo lida com isso. Começo a pensar no que faz parte dessa trama “Fronteira Oeste do Brasil”, esse individuo que invade e é invadido, que da forma as relações históricas da construção desta região com delimitações de fronteira importantes, desde primórdios da colonização européia. Mas principalmente quero me ater na construção do personagem fronteiriço, como se o deu olhar do colonizador (em relação) a estes povos que permeiam este espaço, tão maravilhoso, mas ao mesmo tempo tão inóspito aos olhos do estranho a terra, e qual os sentimentos dos que habitam e pertenciam à mesma.

Para pensar este pertencimento e entender o conceito que se faz presente na fronteira, apoiamos em Durval Muniz de Albuquerque (2001: p. 20) que discorre sobre classificação da estereotipia como uma prática repetitiva e assertiva; ”(...) onde as diferenças individuais são ignoradas em nome das semelhanças superficiais o grupo.” Como a pretensão de analisar o estereotipo a um olhar e uma fala produtiva, e se incorpora ao outro que é estereotipado reafirmando esse discurso tomando-o como realidade.

A construção e a formação da fronteira

Analisando a colonização da fronteira sócio-espacial Brasil/Bolívia, onde especifica-mente a cidade de Cáceres esta inserida, há uma vasta bibliografia que afirma que tanto a faixa de fronteira brasileira quanto a boliviana, foi definida em um processo de colonização a qual os europeus desde o séc. XVI disputavam pelos caminhos do rio do Prata impulsionados pelo mito do El Dorado, Paytiti e outras lendas retratando riquezas. Neste período ainda não se tinha uma delimitação física, o domínio desse espaço-fronteira, deu-se através de controle dos nativos (escravos) e incursões de missões jesuíticas religiosas, a partir de 1691, onde eram encarregados das atividades espirituais e materiais respectivamente.

Segundo (De Almeida, 2008) os modelos impostos pelos Espanhóis na Bolívia foram os mesmos dispensados pelos Portugueses no Brasil, e os reflexos dessa investidura foram

as várias tentativas de uniformização, construção de estados nações baseados em modelos do velho continente. Na Bolívia as marcas deixadas pelo modelo de colonização européia foram a de afloramento e de divergências entre as populações existentes. Como é o caso de divergências e conflitos entre Collas e Cambas. Os Collas (a mesma etnia dos Bolivianos que atuam nos camelôs de Cáceres) são os bolivianos de maioria indígena que habitam a região dos altiplanos e parte das terras baixas onde estão situadas as cidades de Cochabanba e Chuquisaca. Já os Cambas derivam das terras do oriente onde estão situadas os orientes de Santa Cruz, Pando e Beni. Os conflitos aparecem desde o momento da colonização por parte da Espanha, que define restrito acesso dos Collas a vários bens que historicamente lhes per-tenciam, como acesso inclusive as terras que serviam para o uso de suas atividades agrícolas. Nesse sentido, vários foram os caminhos buscados por essa etnia para reconduzir suas vidas.

A imigração para outras terras se deu, sobre tudo, para lugares onde a influência Cam-ba fosse menor. Uma da rotas encontradas foi descer a altitude e trabalhar nas linhas limites impostas pelos marcos fronteiriço, estabelecido pelo sistema colonizador europeu.

Em 1850, com a promulgação da Lei de Terras no Brasil, e a definição dos limites territoriais da Província de Mato Grosso com a Bolívia em 1867, definiram-se o movimento de ocupação das terras na faixa de fronteira tidas como devolutas, destacamentos militares foram erguidos e alguns implantados em locais onde já existia aldeamento.

Para auxiliar o controle dessa extensa divisa entre Brasil/Bolívia, em sua maioria fron-teira seca e em linha geodésica, o 2° BFron (Batalhão de Fronteira do Brasil) criou ao longo da faixa lindeira uma serie de destacamentos, que funcionam como bases de apoio e atual-mente este Batalhão responsabiliza-se pela soberania nacional ao longo dos 750 km de divisa entre Brasil/Bolívia. A ação militar caracteriza-se pela guarda dos marcos, coibindo a entrada e saída ilegal de pessoas, produtos industrializados e entorpecentes (Moreira da Costa, 2006).

A fronteira do Brasil/Bolívia apresenta uma população caracterizada pela diversidade cultural, através dos grupos ameríndios e, posteriormente, pelos espanhóis e portugueses, para pensarmos a construção cultural desse indivíduo e sua identidade buscamos apoio em Stuard Hall:

(...) a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpe-lado ou representado, a identificação automática, mas pode ser ganhada ou perdida (2005, pág.21), (...) a moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas.(STUART HALL, 2005: p.71).

A forma como Hall (2005) trabalha identidade nos possibilita pensar o boliviano na cidade e Cáceres, sendo assim para ilustrar e enriquecer a pesquisa recebo a participação de uma entrevista oral feita com o Estevan Tapanach boliviano e residente em Cáceres a mais de 20 anos para demosntra-nos suas motivações para esse deslocamento e sua percepção de emigrante aqui em nosso cidade de Cáceres. De acordo com Tapanach, a sua motivação se deu ainda adolescente, no período impulsionado pelos relatos daqueles que conheciam o Brasil e acreditavam assim como o próprio Estevam que se esse país representava a terra das oportunidades e a curiosidade de conhecer como se aplicavam sistema educacional. “Queria saber como e estudo pra cá? Será que o mesmo da Bolívia? (...) não queria ser como meus pais que tem pouco estudo... e passava muito dificuldade”. Vale salientar que Estevan já morava na comunidade de Santa Mônica faixa de Fronteira, e citado pelo próprio a vinda da família do Oriente boliviano se deu pelo anseio de uma vida melhor aqui na fronteira, onde já se tinha

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escolas e expectativa através da fronteira de melhorias sócio-econômicas. Para trabalhar esse tipo deslocamento remeto a colocação feita por Claudia Menezes (1976), em seu trabalho a motivação de deslocamento populacional é direcionada para a migração interestadual de um país, mas ao pesquisar este assunto proposto percebo que a semelhança dos desloca-mentos e interesses bolivianos para imigração nessa faixa fronteira, sendo assim, utilizamos como contribuição teórica para entender esse processo:

(...) como uma busca de melhoria, no seu sentido mais amplo: melhores condições de trabalho, moradia, transporte, conforto, distração, acesso a bens de consumo, educação, assistência medica, (...) a partir do momento em que a mudança foi assumida como necessária e o local de destino pro-gramado, desencadeia-se um processo que tanto pode terminar na fixa-ção de pessoas no local previsto, ou levar, como acontece na maior parte das vezes, a um circuito de mudanças. (CLAUDIA MENEZES,1976: p- 16).

Desde o período de colonização quando os jesuítas escravizavam os nativos, muitos na tentativa de escapar desse controle imposto, fugiram para a faixa de fronteira. Ao visuali-zar esse espaço, o boliviano se integra em uma rede de relacionamentos com brasileiros, mi-litares e bolivianos, ficando crescente o interesse conhecer o país vizinho, se lançando a essa experiência como aconteceu no caso do Estevam. “Quando eu sai de lá minha mãe quase não me apoiava, ela queira que estudasse lá... eu vim assim como clandestino( risos), fala verdade vim propor me esse desafio pra mim mesmo... depois veio um parente mais velho que fui morar com ele...

A representação Boliviana na faixa de Fronteira

Ao tratar deste tema e desenvolve-lo como objeto de pesquisa percebe-se que se trata de uma questão um tanto polêmica. Quando abordamos a imigração boliviana, a visão de estereótipo nos associa personagem embutido a irregularidade, trafico e narcotráfico e mui-tas outras referências na sua maioria negativa. Volto novamente à entrevista feita a Estevan Tapanach, onde ele afirma que a existência vivenciada por ele desse estereótipo do imigrante boliviano. “Naquela época o boliviano era visto como traficante ou ladrão... que até hoje quando ele vem da Bolívia ou ele trás alguma coisa ou vai levar...”. “(...) se você vem de lá e se instala aqui e um modo de tratamento, e se você só vende sua mercadoria já e outro trata-mento... se você se instala já faz parte dessa família... esse vai vem não e bem visto a relação dele e bem diferenciada totalmente”. Daí compreende como um mesmo imigrante, mas com intenções diferentes sente essa aceitação do brasileiro referente à sua condição de imigrante boliviano. Estevan Tapanach salienta que à vinte anos atrás essa inserção como imigrante foi bem mais difícil, havia uma diferença clara de tratamento, valorização profissional e socializa-ção. “A única decepção que tive a desvalorização do trabalho estrangeira, e outra a questão do acolhimento, não e fácil, não foi fácil... e você não podia reclamar, tinha que aceitar você estava precisando deles...” trabalhar o salário era pago diferente, o boliviano em um mesmo traba-lho feito com um brasileiro tinha seu salário pago a menor, pela sua condição de imigrante boliviano, isso se aplicava nas referências do entrevistado muito na área de construção civil, a relação social encontrava em distintos momentos hora ou outra suas diferenças culturais e sociais, hoje ele afirma ser bem diferente a aceitação ela esta bem maior na opinião dele, já se tem uma igualdade de valorização do trabalho boliviano, “(...) hoje você encontra varias comunidades que e do país vizinho, vendem seus produtos aqui... essa relação hoje esta mais

aberta...” atribuindo a facilidade espacial de interagir nessa fronteira estabelecida quase que de forma móvel, onde a nacionalidade fica um pouco despercebida e o que interage são as culturas no sentido da globalização onde conceito ‘fronteira’ se estabelece de forma teórica.

Como são os conceitos e as abordagens em que se tratando da fronteira, a percepção é marcadamente importante, pois é ela que permite entender diversas fronteiras e limites, e os mais variados fluxos estabelecidos nas comunicações e formas de expressões. A fronteira é a faixa de contato, mas também é considerada como limite de aproximação. Observa-se que existe na fronteira uma dicotomia, ao mesmo tempo em que ela representa uma área de separação, apresenta-se também como perspectiva de interação entre povos. Portanto, é no sentido de enxergar a fronteira de forma cristalina e com olhares desprendidos de precon-ceitos, que insere neste texto, as relações existentes entre bolivianos que atuam na cidade de Cáceres e possam ser tratados como instrumentos de aproximação e cooperação entre esses povos, os quais têm objetivos em comuns.

Considerações Finais

A região de faixa de fronteira encontra se em contínuo estado de mudanças sociais, culturais e econômicas. Considera-se a interação permanente desses povos, tanto bolivianos quanto brasileiros cruzando a fronteira cotidianamente, mesclando essa identidade cultural, propondo um olhar historiográfico nessa complexa relação. Trata de um estudo permanen-te porque envolve conceitos polêmicos, como pensar, por exemplo, de como realmente se resolveria essa questão do pré-conceito? Se esse estereotipo vai se reverter de uma forma positiva? Então da para sentir que é um estudo em construção, um desafio.

A integração sócio-cultural deve acontecer juntamente com a integração física para que se busque o desenvolvimento numa dimensão regional. A fronteira pertence ao domínio do povo.

A Bolívia país que faz fronteira com a cidade de Cáceres-MT a qual cuja na sua maio-ria populacional não sabe falar a língua do país vizinho, e não há um interesse nessa difusão de aprendizado nem por parte de políticas públicas, como exemplo o sistema de educação, para compreendermos a cultura de nosso vizinho. Então formulamos perguntas que nos instiga a pensar; Por que tanto desinteresse? Por que subjugamos os nossos vizinhos bolivia-nos incorporando-o uma estereotipia generalizadora? Precisamos abrir nossa compreensão e capacidade de relacionarmos com as alteridades de nossa espécie e entender fronteira como forma de agregar aprendizados e interagirmos com a diversidade humana e tolerância ao diferente de nós mesmo.

Vale lembrar que esta pesquisa está em andamento e num segundo momento tra-balharemos o imigrante boliviano que interage de forma estritamente comercial, onde essa questão da socialização não tem a mesma relevância, diferente do boliviano que veio para ficar de forma permanente.

De qualquer forma essa teia de relações seja social ou econômica, carece de investi-mentos por parte das políticas pública, relações internacionais por parte dos países e a uma urgência em retirar esse véu que propositalmente insistimos em mantê-lo ao ignorar a im-portância dessa socialização e interação de fronteira e buscar formas de interagir de forma saudável e com esclarecimento a respeito da cultura do outro.

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Dissertação de mestrado:DE ALMEIDA, Flávio Luis Paula. Territórios chamados desejos: regulamentos, governança e di-nâmicas territoriais entre bolivianos e brasileiros na cidade de Cáceres oeste Mato-grossenses Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Pós- Graduação em Geografia, 2008.

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Etnias, Identidades e Representações no processo de colonização em Cáceres – MT,

a partir da obra: “Uma Igreja na Fronteira” do bispo D. Máximo

Biennès (1955-1987)

luCiana de FreiTas Gonçalves1

Em 1955, ano da chegada do futuro bispo diocesano de Cáceres, D. Máximo Biennès, àquele município, a Amazônia Legal tornava-se espaço de ocupação por

diversos grupos sociais advindos de outras regiões do país. A política de colonização durante o governo Fernando Corrêa da Costa, sob a incumbência das empresas particulares, marcou um aumento considerável na venda de terras em Mato Grosso. Vislumbrados pela idéia de ocupação dos “espaços vazios” (intensificada após 1964) e a possibilidade de desenvolvimen-to do interior do país, migrantes chegavam à procura de terra e trabalho, impulsionados por propagandas veiculadas em revistas e jornais em seus estados de origem. Levavam desenvol-vimento econômico onde antes haveria apenas sertão. A “fronteira econômica” coincidindo com a “fronteira política”.2 (GUIMARÃES NETO, 2002:49)

Na região de Cáceres houve ampla disputa por terras entre indígenas, posseiros e lati-fundiários (PUHL, 2003:22-23). A partir da década de 1960, com a venda e doação de terras públicas pelo Departamento de Terras e Colonização, a procura por lotes aumentou, mesmo sem a devida medição e demarcação. O resultado foi um maior número de titulação emitida pelo Estado do que a quantidade de terras disponíveis, agravando os conflitos já existentes. (MORENO, 2007:253-258)

1. Aluna do Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).2. Segundo Regina Guimarães (2002:87), a ocupação de terras da Amazônia por empresas privadas significava mais que

uma estratégia de desenvolvimento econômico. Revelava-se, principalmente, como estratégia militar para controlar aquela região. Dessa forma, a colonização não seria apenas “privada”, mas essencialmente “controlada e disciplinada”.

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Este quadro social não passou despercebido aos olhos da Igreja Católica. Conforme D. Máximo Biennès (1987:417), os problemas teriam iniciado na década de 1950, a partir da ven-da de terras pelo governo estadual. Antes disso, o território da Diocese de Cáceres teria sido preservado de conflitos fundiários. A “mata da poaia”, na região noroeste seria aberta a todos que participassem das comitivas de extração da raiz. Esta “liberdade” não seria verificada nas décadas posteriores. Em 1987, ano da publicação de seu livro, o bispo analisa os conflitos de terra na região:

Desde os tempos mais calmos de 1960, os conflitos aumentaram muito na região da Diocese. Um dossiê sobre “os conflitos de terra em Mato Grosso” da Comissão Pastoral da Terra, editado em Cuiabá, outubro de 1985, as-sinala, muitas tensões e situações problemáticas em todas as paróquias da Diocese e, particularmente, em Pontes e Lacerda. (BIENNÈS,1987:429)

Segundo D. Máximo (1987:428), a participação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no município de Pontes e Lacerda teria iniciado na década de 1980, por meio das ações do Pe. Tanguy, ex-vigário local e também da Diocese de Cáceres. Teria sido este padre quem de-nunciou a existência de conflitos na região e solicitou a participação da CPT regional.

Não apenas em Mato Grosso, mas em todo o país – especialmente no Nordeste – a Igreja Católica, através da CPT teve ampla atuação entre os grupos de trabalhadores rurais. Além da evangelização, atuavam durante os conflitos de terras reivindicando reforma agrária e condições mais dignas aos camponeses.

No entanto, a participação da Igreja no meio rural deve ser considerada observando sua contextualização internacional a partir da década de 1950. O avanço do comunismo no continente americano resultou em ações diretas do Vaticano por intermédio do papa Pio XII e depois de sua morte, de João XXIII. A publicação da encíclica Fidei Donum tinha como um de seus objetivos o trabalho missionário de evangelização e combate ao comunismo, ao protestantismo e espiritismo, primeiramente em terras africanas e, posteriormente, latino--americanas. Assim, as dioceses de diversos países europeus foram convidadas a participar, enviando padres aos países que havia poucos sacerdotes. (MONTENEGRO, 2010:95)

Destarte, diversas cidades localizadas em regiões distantes em todo o Brasil passaram a receber padres e missionários estrangeiros. Tinham a incumbência de evangelizar, fundar escolas, hospitais e assim garantir a permanência da Igreja Católica como referência espiritual da população rural, além de combater outras religiões e o comunismo. Para evitar este últi-mo, caberia à Comissão Pastoral da Terra defender os camponeses contra as ações violentas dos fazendeiros, jagunços e do Estado.

Entre as décadas de 1950 e 1980, pelo menos vinte padres franciscanos advindos de outros países (França, Itália, Espanha, Portugal e Estados Unidos) serviram à diocese de Cá-ceres. Entre eles, dois bispos: D. Luiz Marie Galibert e D. Máximo Biennès, ambos de origem francesa. Curioso notar que, os padres estrangeiros que atuaram na diocese, mesmo antes de 1950, todos eram de origem européia, com exceção de um estadunidense.

A partir das considerações de Antonio Montenegro (2010:140) é possível compreen-der esta prática. Ele avalia a Igreja Católica como uma instituição imperial, em que muitos de seus membros dirigentes consideram os problemas religiosos3 de outros países resultado do

3. Poderiam ser acrescentados a estes problemas, outros de ordem política, social e econômica.

atraso civilizatório e cultural dos povos de origem diferente da européia e norte-americana (Canadá e EUA).

Seria, portanto, necessário a presença destes padres e missionários aos lugares mais “atrasados” para, dessa forma, conduzir a população local ao caminho da “civilização”, livran-do-os dos riscos do comunismo, do protestantismo, do espiritismo e “seitas” tribais.

Uma Igreja na Fronteira: do sertão à civilização

Conforme destaca Lylia Galetti (2000), desde o século XVIII quando o território hoje compreendido pelo estado de Mato Grosso passou a receber os primeiros conquistadores luso-brasileiros, a natureza e populações locais passaram a povoar o imaginário daqueles que se estabeleceram como colonos e dos viajantes estrangeiros ou brasileiros “do litoral”. Desde então, muitas foram as representações construídas sobre este espaço: terras desconhecidas e misteriosas, primitivas, depositário de magníficos tesouros, férteis, caça e água abundantes, florestas intocadas, índios bárbaros ou mansos; portanto, um imenso sertão: ora terrível e repugnante, ora colorido e atraente.

Durante o governo Vargas, a Marcha para Oeste reinventa o sertão. Para Cassiano Ricardo, seria a possibilidade de o país redescobrir suas origens. Segundo ele, o Brasil surge de uma “paisagem colorida, onde predominam homens e pássaros de rica plumagem”. Ao redescobrir a sua “selvageria tropical cromática, sua qualidade natural própria, força criadora viva, obra-prima divina que o homem não corrompera” (LENHARO, 1986:57), a Nação brasi-leira seduziria o colonizador que adentrasse o país pelas suas fantásticas e coloridas riquezas.

A partir de 1950, com a implantação de novos projetos de colonização pública e pri-vada, Mato Grosso volta a ser espaço de múltiplas representações. Para os migrantes era um “ambiente selvagem” a espera do progresso a ser construído pelo pioneiro. Para o governo, a possibilidade de introduzir definitivamente o estado no cenário do desenvolvimento capita-lista. (OLIVEIRA, 2002)

Na década de 1970 a Amazônia seria o Eldorado dos pioneiros. De Getúlio a Médici, reeditando a Marcha para Oeste de Cassiano Ricardo, receberia os “novos bandeirantes”, “soldados da pátria” prontos para conquistar e preencher “vazios demográficos” em nome da “Integração Nacional”. Uma terra de possibilidades, um paraíso que para sair da condição de sertão necessita de homens e mulheres fortes, preparados para o trabalho e que não tenham medo das adversidades. (GUIMARÃES NETO, 2002:29-30)

O tempo também é diferente daquele onde existe civilização. Este não existia até a chegada dos pioneiros, construtores de um futuro de fartura e tranqüilidade. Segundo Lylia Galetti (2000:88), até as três primeiras décadas do século XX, o viajante que percorresse estas regiões “obscuras e desertas” teria sua imaginação impelida para longe, não apenas dos luga-res, mas, principalmente, do tempo “civilizado” em que vivia. Impressões que permaneceram nas décadas posteriores. Neste caso, a noção de “longe” ia se delineando cada vez mais clara-mente como um significado, antes de tudo, cultural.

Ao analisar as mudanças ocorridas na região, D. Máximo ainda às longas distâncias e a pequena densidade demográfica como sendo os principais problemas enfrentados duran-te os trabalhos de evangelização. O isolamento seria responsável também pelo atraso das

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pessoas mantendo-as longe dos benefícios da civilização. Por esse motivo, tradições antigas continuavam enraizadas nos rituais de fé. Mas, conforme avalia o bispo:

As comunicações tornam-se, entretanto, cada dia mais fáceis no sertão, assim como também a transmissão de idéias e costumes. As novidades poderão deixar essas populações desamparadas diante de qualquer opo-sição ou crítica. Por isso, pensamos numa escola central que preparasse os líderes religiosos, sociais e humanos. Foi o que fizeram os primeiros padres franciscanos, quando se instalaram em Cáceres e Poconé, abrindo escolas com alunos internos do sertão. (BIENNÈS, 1987:221)

Para D. Máximo, o atraso das pessoas só poderia ser superado, sem traumas diante da iminente civilização que se aproximava, com “ajuda” da Igreja Católica. Para isso, seria ne-cessária a preparação de líderes religiosos e a instalação de escolas destinadas aos filhos de sertanejos. Dessa forma poderiam garantir que estes jovens superassem o atraso dos pais. A Igreja assumia, portanto, cada vez mais o seu papel de orientadora e condutora da população aos ideais de progresso, garantindo de outro lado, os valores católicos.

Etnias, identidades e representações na fronteira

Segundo Lylia Galetti (2000:106), as representações nos escritos dos viajantes sobre os habitantes de Mato Grosso não se apresentam separadamente das que se referem ao território e seu ambiente. Natureza, hábitos e costumes estariam intrinsecamente ligados ao conjunto apresentado na imensidão rica e “vazia” do sertão. Sobretudo os indígenas, obser-vando-se as suas “diferenças” em relação ao restante da população: sua dispersão geográfica, seus hábitos e costumes “selvagens” e a maneira como se relacionam com a natureza fez com que fossem compreendidos como mais um elemento da paisagem e não um grupo popula-cional distinto dos demais da região.

Por outro lado, conforme ressalta a autora, todos os viajantes, em seus relatos, consi-deram que, cedo ou tarde, os indígenas tornar-se-ão homens “civilizados”. Numa manifesta perspectiva evolucionista, consideravam que “o índio, por ‘selvagem’ que seja, representa um momento na evolução da história da civilização, cujo avanço têm-se como inexorável”. De outro lado, o viajante europeu identificava-se como representante do estágio mais avançado da evolução. Não haveria como, dessa forma, fugir ao sentimento de superioridade em rela-ção ao outro, exótico, primitivo, por vezes repugnante. (GALETTI, 2000:109)

Um grupo identificado pelo bispo foi o dos Chiquitos, de origem boliviana. Estabele-cidos em instalações de criação de gado ou em sítios localizados na fronteira Brasil-Bolívia, estes índios há muito tempo estariam “civilizados”. No entanto, conclui: faltava-lhes muito do que poderia retirá-los de uma situação de inferioridade e abandono.

Sua vida social divide-se entre a “vida de índio” em comunidade na Bolívia e o traba-lho nas terras da fronteira. Neste caso, sua identidade se aproximaria mais a do “caboclo”. No entanto, quando há festas tradicionais na Bolívia, a fronteira brasileira se esvazia. Tornar-se-ia impossível encontrar mão-de-obra entre os chiquitos nestes dias. O labor neste caso merece-ria menos importância que as festividades. Aos olhos do estrangeiro, tal atitude revelaria uma das características marcantes da identidade indígena: a preguiça.

Mas, para o chiquito não se tratava de preguiça, mas oportunidade de socialização e

manifestação de fé. Para entender esta divergência de valores é preciso situá-la, primeiramen-te, na longa duração. O estrangeiro, ou outro indivíduo “civilizado”, inserido na lógica capita-lista do mundo do trabalho, compreende que, para uma sociedade alcançar a modernidade é preciso estabelecer o princípio de que “tempo é dinheiro”. Só com a “disciplina do trabalho” é possível ampliar a produção e assim, atingir o ideal do projeto modernizador (THOMPSON, 1998:269). Dessa forma, nem os indígenas, tampouco os “caboclos” encaixavam-se neste mo-delo, desejado pela nação. Caberia aos migrantes pioneiros durante o processo de coloniza-ção da Amazônia a missão de levar à região progresso e civilização.4

Mas se as festas religiosas são elementos mais importantes aos chiquitos que a dis-ciplina do trabalho, a mais concorrida é a de São Matias, padroeiro da paróquia do vilarejo de mesmo nome localizado na Bolívia, fronteira com o Brasil. A participação dos indígenas é intensa. Para o bispo, isso ocorreria porque, entre os novos costumes advindos dos povos civilizados, a religião se faz bastante presente. Mas adverte: mesmo católicos, há tempos evangelizados, há sacramentos e virtudes que os chiquitos desconhecem facilmente, como o matrimônio e sua santificação. (BIENNÈS, 1987:217)

É possível perceber nas representações tecidas pelo bispo que, apesar da introdução de elementos da civilização, sobretudo a religião, os chiquitos não abandonaram sua condição de “índios”, ou seja, atrasados, ingênuos e incivilizados. Para que pudessem ser “salvos” de sua condição, os trabalhos da Igreja deveriam ser intensificados, ensinando os “valores” do matri-mônio e da vida familiar dentro dos dogmas católicos.

Submetido a julgamento semelhante ao do indígena, o “caboclo” apresenta-se aos olhos do bispo como um indivíduo simplório ligado a terra, com uma cultura eminentemen-te oral e tradições seculares mantidas por conta do isolamento em que vive. No tocante à sua fé, D. Máximo a considera segura e “bem enraizada, embora pouco esclarecida e pouco consciente”. (BIENNÈS, 1987:218)

Faltam-lhe liderança e iniciativa para qualquer novo empreendimento ou tentativa de melhoria do grupo. Seria, por exemplo, impossível construir uma capela ou uma escola sem ajuda externa. D. Máximo considera que, apesar de ser um povo com boa vida moral, cristã e familiar, o atraso e ingenuidade destes sertanejos “caboclos” possibilitariam a aproxi-mação de elementos perniciosos, expondo-os “a toda as influências das seitas, espiritismo ou macumba.” A preocupação do bispo revela a sua forma de identificar os “caboclos”: frágeis o suficiente para terem sua tradição destruída e esquecida diante da introdução de novos elementos culturais.

O terceiro e último grupo identificado por D. Máximo em seu livro é o migrante que, advindo de outros estados, povoou a região, dando origem a diversos núcleos urbanos que mais tarde tornar-se-iam novos municípios. Sobre as primeiras famílias a chegarem, entre 1965 e 1975, o bispo destaca que:

Caminhões carregados de gente atravessavam diariamente a cidade de Cáceres. Às vezes, paravam. Então, medrosas sombras humanas, sujas de

4. Regina Guimarães (2002:30-33) destaca que, diante do constante processo de empobrecimento que atingia os colonos do sul do país, estes foram levados a transformar todo o tempo em tempo útil, aumentando sua carga de trabalho e di-minuindo o tempo livre. Inseridos na lógica do mundo moderno, cada vez mais, substituíam antigos costumes que lhes parecia natural e familiar, modificando concepções de mundo, recriando aspirações e novos projetos de vida. É esta ló-gica que estes colonos carregarão consigo durante a colonização da Amazônia.

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poeira dos caminhos infindos, desciam à terra; as roupas eram pobres, surradas, rasgadas; o frio das andanças noturnas provocava epidemia de gripe. Os homens procuravam água, as mulheres acendiam um fogo e, do fundo dos pobres sacos, tiravam panelas enegrecidas e alguns grãos de arroz. A magra refeição terminada, embarcavam novamente, silenciosos, humilhados, para alcançar o seu sonho. (BIENNÈS,1987:229)

Estes problemas, enfrentados por grande parte dos primeiros migrantes, são apresen-tados como elemento definidor do “heroísmo” daqueles que, deixando sua antiga vida para trás, enfrentaram enormes adversidades para, no fim, colonizarem a região. O que antes era sertão torna-se, gradativamente, civilização. (OLIVEIRA, 2002:68-82)

A política de colonização durante o regime militar contribuiu para a valorização da identidade do migrante como o pioneiro5: o novo bandeirante, responsável pela construção de um novo Mato Grosso, desenvolvido e produtivo. Apenas ele, com seu espírito empre-endedor, que não foge ao trabalho, seria capaz de levar desenvolvimento a todo o estado. (GUIMARÃES NETO, 2002:47-55)

Mas o colono ideal não está localizado em todos os lugares. É preciso buscá-lo em regiões específicas do país. Dessa forma, milhares de paranaenses, paulistas, mineiros, capi-xabas, gaúchos e catarinenses chegaram a Mato Grosso, na condição de colono ideal, com a tarefa de fundar cidades e semear a terra.

Não por acaso, este migrante, de origem essencialmente européia, traz consigo valores que deverão ser fundamentais para o desenvolvimento do estado. É a lógica do trabalho, o “dinamismo” das famílias de agricultores que não fogem ao trabalho, substituindo o atraso, a “incompetência” e a “preguiça” dos índios, caboclos e outros grupos humanos tradicionais no estado.

Considerações finais

As representações acerca da população mato-grossense: índios, “caboclos” e mesmo a parcela “branca”, formada por uma minoria pertencente à classe média urbana ou antigos proprietários de terras, revelam aos olhos de D. Máximo, certa homogeneidade, se compa-radas ao “herói migrante”. As diferenças diagnosticadas entre os diferentes grupos “da terra” tornavam-se irrelevantes diante da “constatação” de que nenhum deles encaixava-se no perfil do “pioneiro”. Apenas este último apresentaria qualidades necessárias para o desenvolvimen-to da região.

A partir desse discurso D. Máximo reforça a idéia da manutenção de um cenário onde diferentes grupos étnicos interagem, definindo, numa relação dialética, atores e atitudes dis-tintas. A cada um destes personagens, o bispo atribui uma importância, definindo valores aos elementos biológicos e culturais. Por conseguinte, a fragilidade e apatia, atribuídas a índios e caboclos, seriam fatores determinantes para a destruição de seus costumes, mormente diante da iminente introdução de novos hábitos introduzidos pelos migrantes.

5. Segundo Léo Waibel (1979:282), “nem o extrativista e o caçador, nem o criador de gado, podem ser considerados como pioneiros; apenas o agricultor pode ser denominado como tal, estando apto a constituir uma zona pioneira.” Somente ele é capaz de edificar cidades e produzir alimentos o suficiente para toda a população.

É preciso, no entanto, relativizar esta análise. Ao considerar os riscos de ter suas tra-dições esquecidas mediante a chegada de novos costumes, o bispo leva em consideração a necessidade de isolamento geográfico e social para a sustentação de sua identidade étnica.

As distinções étnicas não devem ser compreendidas como resultado do isolamento, como se fossem ilhas separadas por elementos biológicos e culturais definidores de uma identidade. Elas são definidas a partir de suas fronteiras. Estas persistem, “apesar do contato inter-étnico e da interdependência dos grupos”. (POUTIGNAT; STREIFF-FERNART,1998:188)

Segundo Fredrik Barth, as categorias étnicas são uma “forma de organização social”. Esta visão pressupõe escolhas, sentimentos de pertença, aceitação ou recusa, como pres-suposto para reconhecimento de si e do outro. No entanto, os elementos a serem consi-derados não devem ser tomados a partir de um conjunto de diferenças “objetivas”, mas apenas “aquelas que os próprios atores considerarem significantes”. (POUTIGNAT; STREIFF--FERNART, 1998:193-194)

Dessa forma, a partir do momento em que os diversos atores sociais identificados por D. Máximo reconhecerem que existem diferenças que os separam, numa relação de alteri-dade entre o “nós e os outros”, aí se definem as fronteiras étnicas. Mesmo convivendo em ambiente comum, as diferenças culturais se mantêm.

Ao se reconhecer como pioneiro, trabalhador e condutor do progresso, o migrante estabelece uma distinção entre ele e os outros grupos, compreendidos como atrasados e preguiçosos. Por outro lado, para os habitantes tradicionais, aqueles que chegaram recente-mente, durante o processo de colonização, são denominados de “pau-rodado”6.

Assumindo ou não esta designação, boa parte dos migrantes manteve seus costumes trazidos de seus estados de origem. Mesmo com elementos locais introduzidos, a sua identi-dade étnica permaneceu. O mesmo ocorrendo aos representantes da cultura “local”.

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GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A Lenda do Ouro Verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuiabá: UNICEN, 2002.

6. “Pau rodado” e “pau fincado” são expressões mato-grossenses que marcam a relação do nativo com o forasteiro. O primeiro define o forasteiro e “pau fincado” o nativo. Essa forma de se expressar indica o conflito simbólico entre os dois grupos, sobretudo após a divisão do estado (1977). No entanto, se adotar os costumes locais, o forasteiro passaria a ser chamado de “pau fincado”. Este exemplo contribui para a compreensão de que as identidades são construídas a partir da relação com o outro. (BENITES,2009)

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Migração e Trabalho Escravo no Araguaia mato-grossense:

entre o desenraizamento e a reterritorialização

luCiene apareCida CasTr aveChi1

O presente trabalho propõe-se a colaborar com a discussão em torno dos efeitos das políticas públicas do Governo Federal para ocupação da Amazônia, sobre a

população tradicional que habitava o Nordeste de Mato Grosso. Fixamos nossa observação na localidade de Santa Terezinha a partir de 1969.

A configuração contemporânea do território mato-grossense, como fronteira2 de ex-pansão do capital, decorreu simultaneamente da (re)ocupação3 a partir da implantação de projetos agropecuários e de colonização, bem como dos conflitos sociais provocados por essa ação que interferiu modificando as estruturas sociais e econômicas vigentes até então.

O recorte temporal que privilegiamos para estudar o Nordeste de Mato Grosso com-preende o período de desenvolvimento e expansão do capitalismo no campo, através da

1. Universidade Federal de Mato Grosso. Mestranda em História – Bolsista CAPS.2. No texto de Guimarães Neto (HARRES e JOANONI NETO, 2009, p. 70-71), a noção de fronteira reflete as dimensões

culturais das situações vivenciadas pelos diversos grupos sociais que se deslocam para as novas áreas, distanciando-se de seu significado geopolítico e, citando Canclini, a autora continua [...]. “A fronteira é pensada como prática social e multi-cultural do processo de reocupação de territórios – especialmente áreas indígenas e de posses antigas -, relacionada aos constantes deslocamentos de grupos sociais”.

3. Remetemos a processo de (re)ocupação, para demonstramos que a Amazônia já era ocupada por etnias indígenas e povos da floresta, antes da entrada das empresas agropecuárias e projetos de colonização implantados durante a dita-dura militar no Brasil, a qual alegava que o interior do país, ou seja, a Amazônia Legal era considerada espaço vazio. A respeito, consultar: (BECKER, 1982), (BECKER, MIRANDA e MACHADO, 1990) e (GUIMARÃES NETO, 2002).

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modernização deste e pela implementação de técnicas agrícolas mecanizadas, para então viabilizar as bases para sua industrialização, o que nos leva a meados da década de 1960. É nesse contexto que analisamos a vinda para o Mato Grosso de migrantes, sendo estes, pe-quenos agricultores e trabalhadores temporários da região Nordeste do Brasil, procuramos elucidar seus estranhamentos e práticas de sobrevivência no novo lugar.

Esta reflexão que tem como recorte espacial o Baixo Araguaia que está localizado na região Nordeste do Estado de Mato Grosso, divisa com os estados do Pará, Tocantins e Goiás e é formada por quinze municípios distantes, em média 1.000 km de Cuiabá capital de Mato Grosso.

Antes de entrar em nosso tema, faremos uma breve abordagem acerca da reterritoria-lização das relações de trabalho no mundo contemporâneo e da permanência de relações de escravização. Kevin Bales aponta que a escravidão é um negócio em ascensão e o número de escravos está a crescer, devido ao seu baixo custo e grande oferta de trabalhadores facilmente aliciados. O trabalho escravo contemporâneo tem sido em geral de curta duração e descar-tável, ao contrário da antiga escravidão (BALES, 2001, p. 12).

Em um artigo no divulgado na internet em julho de 2010 sobre o aliciamento para exploração sexual de meninas na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, os números estimados de vítimas é expressivo. Diz o texto “todo ano chegam cerca de 1.200 meninas de 12 a 17 anos aos bordéis em meio aos imensos acampamentos à beira da estrada que servem de ponto de abastecimento dos garimpeiros” (DANIELS, 2010)

O trabalho escravo geralmente ocorre no interior de propriedades ou em lugares onde o poder do Estado cedeu espaço à relações de violência, o que dificulta o acesso e o resgato das vítimas. Pela mesma razão se torna muito difícil calcular o número de escravos no mun-do. Exemplo disso são os estudos de Kevin Bales, que estimou existirem no mundo 27 mi-lhões de pessoas submetidas à escravidão (BALES, 2001, p.18), apesar de que alguns ativistas das causas abolicionistas e a OIT (Organização Internacional do Trabalho), afirmarem que esse número poderia chegar a 200 milhões de escravos.

Até mesmo o número de escravos em um único país, como o Brasil é incerto, pois a CPT (Comissão Pastoral da Terra) faz o cálculo em torno de 25 mil pessoas escravizadas por ano na zona rural, mas existem estimativas que apontam para até 40 mil pessoas na condição de escravas (FIGUEIRA, 2005, p. 05).

Essa “Gente Descartável” exposta por Bales vive e participa de uma nova escravidão que se engendra como forma de adaptação à globalização. A nova escravidão coloca os indi-víduos sob o domínio de forças econômicas e sociais que a amparam, desde a corrupção dos governos locais até a conivência das grandes companhias nacionais e multinacionais.

A partir do surgimento da sociedade do trabalho, temos que pensar este último como meio de integração ou como veículo para emancipação social. Como nos mostra Silva:

O trabalho, por sua vez, tornou-se o princípio organizador fundamental das relações sociais e, portanto, o meio através do qual os indivíduos ad-quirem existência e identidade social pelo exercício de uma profissão. Isso permitiu, por outro lado, que a sociedade industrial não só se distinguisse das outras formações sociais previamente existentes, mas também que se definisse como uma sociedade de trabalhadores (SILVA, 2003, p. 22).

Desse modo, faz-se mister citarmos Dupas, sobre as relações trabalhistas que moldam a sociedade moderna. Para ele a questão do emprego é um problema de direito humano,

tendo em vista que, “a renda obtida do trabalho é o instrumento pelo qual o homem tem acesso aos bens e serviços essenciais a uma sobrevivência digna” (DUPAS, In: PINHEIRO e GUIMARÃES- Orgs, 1998, p.107). No entanto, a dinâmica da economia mundial tem empre-gado a flexibilidade do trabalho formal, e conseqüentemente modificado o grau e a estabili-dade da renda, ocasionando assim, o agravamento geral no quadro do desemprego em todo o mundo.

Para Ricardo Rezende Figueira a escravidão contemporânea, possui algumas diferen-ças em relação à antiga, mas também guarda semelhanças:

[...] a vítima é sempre uma estranha ou estrangeira ao local onde ela é submetida. O escravo é o outro absoluto, o migrante, o diferente; não é o de casa. Estranhas ao local onde o trabalho é executado, as pessoas ficam mais vulneráveis aos abusos e às coerções dos seus senhores (FIGUEIRA, 2005, p. 03).

O serviço de contratação é realizado por terceiros, empreiteiros, conhecidos também como Gatos, aos quais cabe aliciar os trabalhadores com falsas promessas de alta remune-ração, boas condições de trabalho e todo tipo de assistência. Tal processo se inicia com o recrutamento, transporte, alojamento, alimentação e vigilância. Essa experiência se materia-liza com maus-tratos, fraudes, ameaças e violência física ou psicológica Para que a prática da escravização do trabalhador tenha maior eficácia é necessária determinada condição de legitimidade, conferida à relação entre o Gato e o Peão4.

Ao aceitar a proposta de trabalho do Gato, o trabalhador já se vê endividado, em seu contrato começa a acumular a sua dívida: transporte em caminhão, conhecido como pau-de-arara, hospedagem em pensões e fornecimento de mercadorias. Ao chegar à fazen-da são alojados em lugares insalubres, com péssimas condições de higiene, são obrigados a fazer suas compras nos armazéns da fazenda, e ao final do mês a sua conta é maior que sua remuneração. Essa situação os faz ficarem presos nas fazendas, pois como sempre devem ao Gato, há um sistema de vigilância realizado por pistoleiros para impedir a fuga. Na imensa maioria esses trabalhadores não possuem carteira de trabalho assinada. Toda essa situação de dependência e falta de liberdade, é configurada a condição análoga à de trabalho escravo.

A Campanha Contra o Trabalho Escravo5 define que:

Trabalho escravo é a redução de um ou vários trabalhadores à condição igual a de escravo, consistindo na privação da liberdade destes de sair de um lugar para outro, através da alegação de uma dívida crescente e per-manente e, com efeito, há retenção de salário. Em casos extremos, há utili-zação de violência física ou psicológica contra o trabalhador para obrigá--lo a permanecer no local de trabalho, através de “seguranças”, “capangas”, “fiscais” e outros que portam armas de fogo ou têm acesso fácil a elas.

O Ministério do Trabalho, na Instrução Normativa nº 1 de 1994, conceitua condição

4. Peão: trabalhador, quase sempre, rural que realiza tarefas consideradas de pouca qualificação profissional. É freqüente encontrá-lo migrando por áreas interioranas, agenciado por “gatos”: empreiteiro responsável pela contratação de traba-lhadores, freqüentemente, sem vínculos empregatícios e para tarefas temporárias. É assim chamado por ser visto como alguém esperto, que tira proveito do trabalho do outro através da empreita: forma de contratação de trabalho envolven-do a execução de tarefas com preço previamente combinado.

5. Esta Campanha contra o trabalho escravo à qual nos referimos é uma iniciativa da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

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análoga à de escravo que se dá através de fraude, dívida e retenção de salário e documentos, ameaças e violência, com o fim do cerceamento da liberdade. A Convenção 29 da Organiza-ção Internacional do Trabalho (OIT) de 1932, ratificada por diversos países inclusive o Brasil, define: “Trabalho forçado é todo trabalho ou serviço exigido sob ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente” (FIGUEIRA, 2005, p. 03).

Os proprietários de pensões e comércios locais estabelecem acordos com o empreitei-ro para manter os trabalhadores, em seu estabelecimento até o próximo contrato de serviço. Ao serem contratados, esses peões têm sua dívida saldada junto a pensão. Ela deverá ser paga com seu trabalho na futura empreita. Este pagamento, por vezes, é feito sob a forma de vales, papeis nos quais o Gato declara o valor devido ao trabalhador. Outra prática comumente utilizada pelos donos de comércios é atribuir aos referidos vales um valor muito inferior para depois receberem dos Gatos seu valor de face, integral.

Essa prática provoca o endividamento do peão, que fica preso na fazenda enquanto não quitar sua dívida com o Gato, o trabalhador se vê impedido de vender sua força de tra-balho à outra empresa.

Feitas estas considerações, vamos agora convergir nossa análise para o inicialmente proposto. O estudo da (re)ocupação do Araguaia mato-grossense nos permite compreender alguns dos conflitos vivenciados na década de 1970, com a implantação dos projetos de inte-gração da Amazônia, durante o período ditatorial, e a instalação de empresas agropecuárias com incentivos de órgãos estatais, como a SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), a SUDECO (Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste) e o Banco do Brasil. Como assevera João Carlos Barrozo (BARROZO in: HARRES e JOANONI NETO, 2009, p.90), a região do Araguaia foi, desde tempos imemoriais, habitada por diversas etnias indígenas, como Xavante, Tapirapé, Karajá e Kayapó. De acordo com o autor, a história de colonização da região se deu a partir da marcha para Oeste do governo de Getúlio Vargas. Em fins da década de 1930, as concessões de terras aliadas aos incentivos para as empresas colonizadoras e aos projetos governamentais de reforma agrária fizeram com que a popula-ção na região crescesse de forma substancial.

Conforme Dom Pedro Casaldáliga6, o fluxo de migração para o Araguaia se deu em três momentos distintos, sendo que esta dinâmica da população de adentrar e ocupar a re-gião está na base dos problemas de luta e posse da terra, desde a sua ocupação no início do século XX, que persistem até os dias de hoje. Dom Pedro nos mostra que primeiramente a região teve o contato dos migrantes nordestinos, fenômeno que durou até a década de 1950 quando, por exemplo, atravessavam o rio Araguaia em busca da “Bandeira Verde” (grupos de seguidores da profecia de Padre Cícero), o qual dizia que os nordestinos deveriam ir para um hipotético “sertão verde”, que foi relacionado no período às matas da região do Araguaia, inclusive. Para estas pessoas a Amazônia seria o Vale da Promissão como foi dito anterior-mente. Pelo fato da região não ser um espaço vazio, como alegavam as propagandas políticas, essa população migrante logo se deparou com os grupos indígenas que residiam no local, provocando conflitos.

6. Casaldáliga nasceu em Balsareny, cidade da Província Catalã de Barcelona, no dia 16 de fevereiro de 1928, ingressou na Ordem Claretiana, consagrada as missões, onde foi ordenado sacerdote em 1943 e em 1971 ordenaram-no Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Em 2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga apresentou seu pedido de renúncia à Pre-lazia, como exige o Vaticano de todos os Bispos, exceto ao de Roma, o papa. Acerca da atuação de Dom Pedro Casaldá-liga na Prelazia de São Félix do Araguaia ver: GOMES, 2009.

O segundo fluxo se intensificou por meio da instauração dos projetos de colonização em fins dos anos 60 e da implantação de assentamentos durante os anos 80, estimulando a migração de pessoas da região Nordeste e Sul do Brasil. Vale lembrar, que muitas dessas pessoas vieram para essas novas áreas de fronteira, acreditando nas mensagens publicitárias acerca da fertilidade da terra, da inexistência de qualquer tipo de conflitos e do apoio de infra-estrutura básica para seu estabelecimento nova fronteira agrícola.

Foi a partir de fins da década de 1960, com o terceiro fluxo migratório provocado pela chegada das empresas agropecuárias no Araguaia, que se intensificaram os conflitos, alguns ainda hoje não resolvidos, pela posse da terra, envolvendo posseiros, índios, trabalhadores migrantes trazidos pelas Empresas (peões) e estas últimas. Exemplo desses conflitos foi o ocorrido na localidade de Furo de Pedra no atual município de Santa Terezinha, o qual tem sua fundação no ano de 1910 com a presença das Irmãzinhas de Jesus, Escola e Igreja Católica. Antes da entrada dos empreendimentos agropecuários, também temos na região o estabele-cimento de outros dois povoados, hoje municípios, Luciara e São Félix do Araguaia.

No final dos anos de 1970 tinham sidos aprovados para os principais municípios da região Araguaia - Barra do Garças e Luciara, sessenta e seis projetos do Governo Federal e, posteriormente, outros novos já haviam criados, como o da Bordon S/A (Frigorífico Bordon); Nacional S/A (Banco Nacional de Minas Gerais), cujo presidente era o então ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto; o da Uirapuru S/A (do jornalista-latifundiário, David Nasser), entre outros (CASALDÁLIGA, 1971, p. 09).

No ano de 1955, o governo do Estado de Mato Grosso assinou contrato com vinte empresas caracterizadas como colonizadoras. O contrato disponibilizou 4.000.000 de hecta-res à essas empresas. A venda dessas terras foi denunciada pela oposição do governo estadual como sendo uma fraude à constituição, que iria alienar as áreas públicas de enorme extensão a um pequeno número de comerciantes de terras. Através da denúncia suspenderam-se os contratos de concessão, mas como algumas empresas de colonização e agropecuárias já haviam adquirido compromissos com terceiros, o governo decidiu emitir títulos em seu favor. Foi dessa forma que a CODEARA (Companhia de Desenvolvimento do Araguaia), ad-quiriu as terras do povoado de Santa Terezinha que já haviam passado por várias empresas colonizadoras e imobiliárias até chegar em 1966 à esta empresa ligada ao Banco de Crédito Nacional (ESTERCI, 1987, p. 14).

A empresa teve área do seu projeto de 150.000 ha. (ESTERCI, 1994, p. 15) aprovado pela SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). A área do projeto se estabeleceu dentro do povoado de Santa Terezinha, tanto as casas quanto a área de trabalho dos pequenos agricultores ficaram sob domínio da empresa, a qual segundo Haesbaert assu-miu o caráter de um “produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou o controle político do espaço e sua apropriação simbólica” (HAESBAERT, jan./jun.1998, p. 61).

Desse modo, a empresa se apropriou de territórios que se tornaram para ela utilitários e funcionais em decorrência do estabelecimento de sua dominação, a qual não confere um “verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/ou uma relação de identidade com o espa-ço” (HAESBAERT, jan./jun.1998, p. 61), ou seja, diferente dos antigos moradores, a CODEARA não se identificou com aquele lugar, caracterizado como terra de negócio, do qual ela poderia obter grandes lucros, distanciando-se assim, das práticas de sociabilidade e subsistência que os posseiros empregavam em suas antigas terras de trabalho.

A inserção do campo no processo de acumulação capitalista resultou em uma nova orientação de valores culturais para os sujeitos ali presentes, assim como a reorganização

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do espaço social agrário, modificando a cultura tradicional7 através dos novos métodos de intercâmbio do homem com a natureza, do uso e do cultivo da terra. Este procedimento se entrelaça com a expansão da modernidade no campo sob uma ótica global, na qual os valores, conceitos e significados são remodelados de acordo com as modificações sociais, econômicas, políticas e culturais na sociedade.

O desenvolvimento decorrente do processo de industrialização do campo traz con-sigo a modernidade nas relações produtivas do trabalho, mas ao mesmo tempo, apresenta traços de tempos passados nas suas relações, o que implica no agravamento da ‘questão so-cial’ no Brasil. Percebe-se que a “modernização conservadora articula o progresso no marco da ordem e atribui um ritmo lento às transformações operadas de modo que o novo surja como um desdobramento do velho” (MARTINS, 1994, p. 25).

Sob lógica do assalariamento e das relações de trabalho do mundo contemporâneo, o trabalho escravo é tido como prática condenável e ultrapassada. Mesmo considerando as muitas formas de precarização laboral, elas ainda permitem ao trabalhador sentir-se integra-do, sonhar com o acesso ao mundo ao consumo. Por ironia, é justamente na busca desse so-nho que milhões de pessoas no mundo tornam-se objetos de consumo rápido e descartável.

7. Ao usarmos o termo cultura nos apoiamos no conceito elaborado por Clifford Geertz (1989). Para ele, a cultura é uma teia de significados as quais o homem está amarrado. Sendo assim, elabora um conceito semiótico ao afirmar que “como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cul-tura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições e os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível - isto é, descritos com densidade”. (GEERTZ, 1989, p. 10).

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MINAS DO CUYABÁ, ILHAS DO SERTÃO: o papel da metrópole

na expansão dos domínios portugueses na América

durante o governo de Rodrigo César de Menezes na capitania

de São Paulo (1721 – 1728).

luis henrique menezes Fernandes1*

Este artigo tem por objetivo avaliar o papel da metrópole no processo de dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo, durante o governo do capitão-general

Rodrigo César de Menezes. A relevância dessa conjuntura espaço-temporal para a compre-ensão do objeto proposto está relacionada aos significativos descobrimentos auríferos, reali-zados por sertanistas paulistas, no interior do continente, e a posterior incorporação dessas “novas” regiões aos domínios portugueses na América. Trata-se, portanto, de uma exposição sobre a ação metropolitana na expansão dos domínios portugueses na América em princí-pios do século XVIII, tema este tradicionalmente tributário da história das bandeiras paulistas.

Rodrigo César de Menezes tomou posse do cargo de governador da capitania de São Paulo em 6 de setembro de 1721, perante o Senado da Câmara de São Paulo, no qual per-maneceu até 1728. Era membro de uma família da qual saíram importantes autoridades do vasto Império português. Seu pai, Luís César de Menezes, fora governador do Rio de Janeiro, de Angola e posteriormente governador-geral do Brasil. Durante o período em que esteve encarregado do governo da capitania de São Paulo, seu irmão mais velho, Vasco Fernandes César de Menezes, primeiro Conde de Sabugosa, ocupava o cargo de vice-rei do Brasil, com o qual trocou abundante correspondência.

Rodrigo César foi o primeiro governador da capitania de São Paulo após o desmem-bramento de Minas Gerais em 1720, após recomendações do Conselho Ultramarino. É muito

1. Mestrando do programa de pós-graduação em História da UNESP (FCL de Assis). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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provável que essa reorganização administrativa estava diretamente vinculada ao descobri-mento das minas do Cuiabá, ocorrido em torno de 1718, por sertanistas paulistas comanda-dos por Pascoal Moreira Cabral, os quais encontraram o precioso metal na região mais central da América do Sul e, portanto, muito além do meridiano proposto pelo Tratado de Torde-silhas. Como sabemos, essa linha imaginária deveria delimitar as possessões portuguesas e castelhanas na América, muito embora na prática não fosse respeitada, tanto pela sua cadu-cidade como pela dificuldade em reconhecer sua exata localização. Assim, a nomeação de Rodrigo César de Menezes ao cargo de governador da nova capitania de São Paulo vincula-se a essa conjuntura de descobrimentos auríferos em regiões de soberania duvidosa.

No período analisado, expandiam-se as possibilidades de enriquecimento no interior do território americano, tanto para a metrópole como para os colonos, sobretudo nos ser-tões auríferos de Cuiabá que iam sendo revelados. Por esse motivo, era conveniente que a monarquia portuguesa dilatasse o seu domínio e governança a regiões tão distantes quanto promissoras. Vivia-se um momento de grandes expectativas quanto às explorações auríferas na América portuguesa, e era mister que a Coroa portuguesa assegurasse a governabilidade e a defesa da sua colônia.

De acordo com a nossa hipótese inicial, o que garantiu a incorporação da região das minas de Cuiabá ao Império português, concomitantemente e em harmonia expansão ban-deirante paulista, foi a ação do próprio Estado metropolitano em busca de interesses defini-dos, cuja realização culminou na dilatação territorial da América portuguesa. Sendo assim, supomos que a Coroa portuguesa não entregou a tarefa de ocupação desses espaços exclu-sivamente à iniciativa privada, mas que o processo de dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo, no período analisado, ocorreu como resultado, em grande medida, de uma política de ocupação idealizada e praticada pela metrópole.

A historiografia brasileira apresentou tradicionalmente o processo de formação terri-torial do Brasil como resultado direto e exclusivo da ação particular dos bandeirantes pau-listas nos sertões longínquos da América. Essa interpretação estabeleceu um rígido vínculo entre a exploração dos sertões pelas bandeiras e a dilatação das fronteiras da América portu-guesa. No entanto, supomos que existiram outros aspectos fundamentais que contribuíram para a formação histórica do território nacional, como a própria ação metropolitana, mas que acabaram ignorados ou minimizados por essa interpretação dominante, subsidiária da historiografia paulista.

A exploração dos sertões da América pelos bandeirantes poderia muito bem não ter acarretado a sua anexação aos domínios lusitanos – como muitas vezes de fato aconteceu -, embora não possamos deixar de reconhecer que tenha sido um aspecto fundamental. Neste sentido, o papel da metrópole nesse processo parece ter sido crucial para a bem sucedida anexação desses espaços aos domínios portugueses. Entretanto, a historiografia brasileira her-dou de alguns dos seus intelectuais mais proeminentes que se dedicaram a essa temática, principalmente paulistas, uma perspectiva bastante contraditória com relação à hipótese que confere à metrópole uma importância significativa nesse fenômeno, notadamente Affonso de E. Taunay, Basílio de Magalhães, Washington Luís e mesmo Sérgio Buarque de Holanda.

Entretanto, parece-nos inegável a existência de, quando não uma política muito bem ordenada, ao menos um propósito de ocupação, sobretudo no período dos descobrimentos auríferos em Cuiabá, ainda que suas diretrizes se mostrem de maneira implícita e fragmentada na documentação. A noção de que a metrópole não exerceu papel significativo na expansão das fronteiras luso-americanas está relacionada à verdade de que a maioria das expedições sertanistas foram custeadas por particulares paulistas, sendo essa uma das justificativas capi-

tais para se considerar os bandeirantes como os únicos responsáveis pela formação territorial do Brasil. No entanto, seria inimaginável que a Fazenda Real financiasse todas as expedições sertanistas, quando estas eram em grande parte, sobretudo nos séculos XVI e XVII, destinadas à escravidão indígena ilegal. Para que a linha de Tordesilhas fosse efetivamente “corrigida”, a metrópole pode não ter financiado diretamente as expedições sertanistas, mas provavelmen-te exerceu o seu poder através de outras ferramentas para fazê-lo.

Podemos notar que a balança historiográfica tem pendido exageradamente para o papel das bandeiras paulistas e suas iniciativas privadas no processo de expansão dos do-mínios portugueses na América, enquanto têm sido quase relegados à nulidade os esforços metropolitanos que contribuíram para o mesmo fim. É conveniente, portanto, aquilatar com maior precisão o papel da metrópole nesse processo. Portugal obteve grandes benefícios territoriais, em detrimento da Espanha, através da assinatura do Tratado de Madri de 1750, pelo qual ficou estabelecido o princípio do “uti possidetis” como norteador da delimitação das fronteiras luso-castelhanas na América. Segundo este preceito, cada parte permaneceria com as porções que já haviam efetivamente ocupado. Assim, o anacrônico Tratado de Torde-silhas perdia definitivamente o seu valor político, passando Portugal a possuir legitimamente grandes porções territoriais além da antiga linha imaginária.

Analisando o caso da capitania de São Paulo, durante o governo de Rodrigo César de Menezes, vemos que o processo de dilatação das fronteiras não pode, em vista da docu-mentação consultada, ser considerado como um fenômeno totalmente espontâneo. Houve um claro interesse metropolitano na efetiva incorporação das recém-descobertas minas de Cuiabá aos domínios portugueses, e um conjunto de ordens régias foi elaborado para pro-porcionar uma ocupação organizada.

Bastante ilustrativa a esse respeito é a carta do capitão Rodrigo César de Menezes ao Vice-Rei do Estado do Brasil escrita em abril de 1722, na qual o governador apresenta resumidamente as principais circunstâncias relativas ao seu governo na capitania até então (Documentos Interessantes, 1896, p. 19 – 25). Primeiramente, o governador apresenta o in-teresse da metrópole pelas riquezas que poderiam proporcionar as minas de Cuiabá. O go-vernador também já dá mostras da maneira como pretende estabelecer a governabilidade metropolitana sobre a região cuiabana. Tudo deveria ser feito com “algum temperilho” para evitar revoltas contra o peso da presença do Estado português. A expressão “temperilho” descreve perfeitamente as intenções da metrópole sobre a região, interessada em estabelecer o governo sem que os moradores o sentissem com uma intensidade indesejável. Afirma o governador que:

Do novo descobrimento das minas de Cuiabá tem sido repetidas as notí-cias, e todas são gostosas. […] O povo elegeu por guarda-mor [das minas] a Pascoal Moreira Cabral, que havia sido o descobridor, e por capitão-mor, para os governar, Fernando Dias Falcão, ambos sujeitos de capacidade [...] Eu me conformei com a eleição por ora, assim por entender estava bem feita, como por ser necessário levar aquela gente com algum temperilho, porque em semelhantes ocasiões é o que mais vence. (Documentos Inte-ressantes, XX, 1986, p. 20 - 21)

Logo após, o governador descreve resumidamente o seu intento de passar às minas de Cuiabá, para estabelecer com mais firmeza a governança portuguesa na região. O interesse dos paulistas pela residência de Rodrigo César de Menezes em Cuiabá pode estar relacionado ao fato de que a presença de um capitão-general na região proporcionaria uma defesa consi-

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derável contra os perigos relacionados aos ataques dos índios belicosos e à proximidade dos castelhanos. Por fim, o governador apresenta a força das mercês para que a metrópole atin-gisse seus objetivos para a região. Ele informa ao Vice-Rei que “estes homens estimam mais a honra de um hábito de que toda outra conveniência”. Em seguida, recomenda que “parece deve Sua Majestade, que Deus guarde, contentá-los com estas mercês […] e posso assegurar a Vossa Excelência lhe deve o maior cuidado esta mercê”. (p. 24)

Desse modo, essa carta do governador ao representante maior da metrópole no Es-tado do Brasil nos parece valiosíssima para comprovar a existência de toda uma gama de atitudes metropolitanas para com a região do novo descobrimento de Cuiabá. Essa cor-respondência apresenta de modo resumido os principais instrumentos utilizados pela me-trópole no processo de anexação daquele espaço à capitania de São Paulo: o aumento da governabilidade, o abastecimento interno e a política de mercês. De modo geral, foram esses instrumentos que, elaborados pelo poder metropolitano, proporcionaram, juntamente com a iniciativa sertanistas, a efetiva integração daquele espaço à América portuguesa.

A utilização destes instrumentos pela metrópole, no processo de dilatação das frontei-ras da capitania de São Paulo, é o que estamos denominando “política de ocupação”. Como já foi apontado, é preciso deixar bem claro que, apesar da existência dessas diretrizes metro-politanas no tocante à ocupação sistematizada do território da capitania, essa política não está organizada em uma espécie de tratado e nem explicitamente ordenada em algum papel. De forma diferente, encontra-se difusa em toda a documentação correspondente à adminis-tração de Rodrigo César de Menezes na capitania de São Paulo. Por este motivo, é necessário analisar cuidadosamente o conteúdo de toda a documentação selecionada e organizá-la de modo que se possa visualizar as diretrizes dessa política.

O aumento da governabilidade, a política de mercês e o abastecimento interno são os três grandes instrumentos utilizados pela metrópole para proporcionar efetivamente a incor-poração das minas de Cuiabá à América portuguesa e, portanto, na dilatação das fronteiras da capitania. Sobre esse assunto, o interesse metropolitano aparece na documentação com bastante intensidade. Rodrigo César de Menezes afirmava em outra carta ao Vice-Rei, datada de 24 de dezembro de 1722, que “das esperanças das novas minas de Cuiabá me chegaram confirmadas não só de serem permanentes, mas abundantes de ouro e grande a sua extensão, e [...] esta notícia não pode causar pequeno gosto a Sua Majestade” (Documentos Interessantes, XX, 1986, p. 35).

Em outra correspondência, ainda de modo mais claro o governador demonstra a sua ação sobre a região cuiabana, apresentando desde já os objetivos metropolitanos na incorpo-ração daquele espaço ao seu domínio:

[…] e porque o descobrimento das novas minas do Cuiabá se acha com muitos mineiros e várias pessoas que tem concorrido para elas com gran-de número de escravos, e pelas notícias que tem dado muitas pessoas principais desta capitania que dela tem vindo, se tem a certeza de que a sua extensão é grande e que são permanentes, por cujas razões tenho procurado por todos os meios não só a sua subsistência, mas o seu grande aumento de dízimos e quintos reais. (Documentos Interessantes, XII, 1901, p. 99).

Era urgente que a metrópole elaborasse uma política de ocupação se desejasse aufe-rir lucros consideráveis com aquele descobrimento. Isso porque a distância entre Cuiabá e

as possessões castelhanas era relativamente pequena, e a Coroa temia perder a região para os espanhóis. Depois de informado sobre o assunto, Rodrigo César de Menezes afirmava o seguinte:

Eu tenho procurado examinar de todos estes homens práticos e dos me-lhores sertanistas a distância em que ficam as novas minas do Cuiabá à primeira povoação dos castelhanos, e todos uniformemente assentam que serão três meses de viagem, que além de dificultoso chegarem a eles pela aspereza do terreno, os impossibilita também a falta de água [...], e pelo que a todos ouço, os respeitam os castelhanos, de sorte que basta ouvir o nome de paulista, a quem eles intitulam por feras, para não intentarem nenhum projeto, e a experiência bem tem mostrado foram estes sempre o seu flagelo. (Documentos Interessantes, XX, 1896, p. 25)

Apesar dessa aparente tranquilidade sobre o assunto, após averiguada a real distância entre as possessões portuguesas e castelhanas, além da fama dos paulistas para com eles, ainda era preciso temer o fato de que os próprio sertanistas podiam se submeter à Coroa espanhola, se achassem que isso seria mais proveitoso. Por esse motivo, era necessário que a metrópole elaborasse uma maneira de estender a sua governabilidade à região, respeitando o quanto possível a autonomia paulista, sem que os sertanistas se sentissem ultrajados. Após julgar ter tido bom êxito nesse propósito, Rodrigo César de Menezes informava ao Vice-Rei, em carta datada de janeiro de 1723, que:

Não tem sido pequena felicidade chegar a por as coisas nos termos em que estão, depois de achar tudo desordenado, parecendo não aproveita-ria remédio algum, porque o ânimo destes homens estava bastantemente empedernido, concorrendo o seu avesso gênio para lho fazer endurecer mais, e os que se acham no novo descobrimento lhe excediam, pois publi-cavam que ainda tinham as feridas frescas do que nas Minas Gerais ex-perimentaram, porque havendo sido os descobridores, foram os que sem honra nem riqueza ficaram, e porque assim não consentiriam passasse àquelas minas ninguém, alargando-se alguns a mais, dizendo que se os apertassem, dariam obediência a quem lhes atendesse, pois até aqui o não haviam devido a Sua Majestade, e como se não acham em muita distância dos castelhanos, se fazia este particular bastantemente vidrento. (Documentos Interessantes, XX, 1896, p. 35 – 36).

Ademais, a concessão de sesmarias pode ser também compreendida, assim como a política de mercês e o aumento da governabilidade, como um dos instrumentos utilizados pela metrópole no processo de dilatação das fronteiras da capitania. As terras concedidas por sesmarias eram também recompensas (mercês) oferecidas pela metrópole àqueles que se harmonizassem com o “serviço real de Sua Majestade”. Por esse motivo, encontramos claramente em todas as cartas que o suplicante “pedia lhe fizesse mercê conceder, em nome de Sua Majestade, que Deus guarde, por carta de data de terra de sesmaria, as ditas terras” (Sesmarias, 1937).

Embora houvesse uma espontaneidade no afluxo populacional aos sertões auríferos da capitania, graças às riquezas prometidas pelos descobrimentos, a metrópole obrou no sen-tido de organizar essa ocupação, de modo que houvesse governo e rendimento em Cuiabá, e as fronteiras de fato se dilatassem. Nessa ocupação organizada, visada pela metrópole para

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que cada região proporcionasse os lucros esperados, o abastecimento interno era primordial. Caso não fossem bem estruturados os caminhos para os sertões e as produções agropecuá-rias, destinados ao abastecimento das regiões mineradoras, não haveria “combustível” para o funcionamento do sistema. Após a experiência de carestia nos primeiros anos da exploração aurífera em Minas Gerais, o capitão-general Rodrigo César de Menezes estava consciente da gravidade do problema.

As sesmarias concedidas na capitania de São Paulo durante o governo de Rodrigo César de Menezes demonstram a estratégia metropolitana para o abastecimento interno das regiões produtivas da América portuguesa, sobretudo as regiões auríferas de Cuiabá e Minas Gerais, para que estas pudessem cumprir eficientemente o seu papel enquanto possessão da Coroa portuguesa. As cartas de sesmarias do período apresentam as diretrizes da metrópole relativas à produção agropecuária na capitania, voltadas acima de tudo para o aumento da Fazenda Real.

Desse modo, fica bem clara a existência de uma política de ocupação do território da capitania de São Paulo, durante o governo de Rodrigo César de Menezes. As diretrizes dessa política de ocupação estavam voltadas não somente para o aumento da governabilidade sobre as regiões que se desejava anexar, mas também ao incentivo a novos descobrimentos auríferos, à organização do abastecimento interno e à proteção de espaços já conquistados.

Tendo em vista, por fim, nossa hipótese inicial, podemos concluir que a metrópole exerceu um papel significativo no processo de incorporação das minas de Cuiabá aos do-mínios portugueses, contribuindo, dessa forma, para a dilatação das fronteiras da capitania de São Paulo. Cumpre-nos apontar, todavia, que a existência da ação metropolitana nesse processo não desmerece a ação sertanista – fator importantíssimo e também crucial para a realização da expansão territorial luso-americana – mas apenas equilibra com mais precisão a historiografia, sobretudo a paulista, que heroificou demasiadamente os sertanistas, tornando nula a participação da Coroa. Antes, demonstramos que houve, na realidade, uma confluên-cia de interesses entre a metrópole e os poderosos paulistas – ou, em outras palavras, entre iniciativa pública e privada – na exploração de uma região economicamente atrativa, a qual foi anexada aos domínios portugueses através de uma ação conjunta.

Entretanto, o estabelecimento da governabilidade metropolitana nos sertões objeti-vava principalmente o aumento da Fazenda Real, e não do território. Evidentemente, porém, um fator dependia do outro. Assim, metrópole e colonos agiram naquele contexto de acordo com o que sua própria época lhes apresentava – como não poderia deixar de ser –, e não a favor de interesses que eles nem mesmo conheciam, como a formação do território nacional brasileiro, o qual, todavia, acabaram inconscientemente colaborando para construir.

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Cinema e História : uma análise do documentário Guerra do

Brasil (Sylvio Back, 1987) apontamentos de pesquisa

marCel a irian anGéliCa maChado marinho1

Introdução

O cinema na época do seu surgimento, aos olhos de seus primeiros expectadores, não passava de uma espécie de meio de diversão, uma curiosidade trazida pelo desenvolvimento da técnica. Contudo, com o passar do tempo o cinema acabou transformando-se numa das mais importantes formas de entretenimento de massa do século XX, ampliando cada vez mais seu contato com o público.

Voltada para uma cultura de massas, a indústria cinematográfica investiu profunda-mente no desenvolvimento das suas produções. Com grandes inovações, o cinema teve rá-pida expansão na mídia, atingindo um número significativo de pessoas que, buscando numa linguagem cinematográfica o entretenimento e a diversão como fonte de lazer para seu co-tidiano, encontram paralelamente um enriquecimento dos seus conhecimentos, uma vez que o cinema é por si só uma fonte de informação das mais complexas e diversas, podendo englobar numa única imagem inúmeras mensagens.

Tendo em vista esta expansão de uma cultura áudio-visual (o cinema), é de esperar a preocupação dos historiadores com a produção cinematográfica. Entre as muitas característi-cas desta linguagem destacam-se para o campo historiográfico as produções de reconstrução

1. Estudante do 3º ano do Curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Campus Universitário de Rondonópolis. Esta pesquisa faz parte do projeto de Trabalho de Conclusão de Curso em ela-boração, sob a orientação do Professor Doutor Renilson Rosa Ribeiro.

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da memória – os filmes históricos – que representam períodos, sociedades e suas culturas, tornando-se o cinema um grande transmissor de conhecimentos para muitas gerações, pois ao representar um passado traz uma explicação para o presente de quem o fez e posterior-mente de quem o assiste, surgindo assim uma relação passado/presente.

Sendo assim, o filme tornou-se um aliado dos historiadores, passando a ser um do-cumento de pesquisa para a realização de seus trabalhos em busca de um passado que se encontra registrado em memória, livros e contos.

Inicialmente a presente pesquisa se desenvolverá tendo como eixo primeiro um breve histórico do cinema, trazendo a relação Cinema-História e o filme como documento Históri-co, para que possamos lançar mão do filme/documentário, escolhido para a realização deste trabalho, “Guerra do Brasil”, que evidencia a América do Sul como sendo o palco do maior e mais sangrento conflito armado do século XIX, conhecido como a “Guerra do Paraguai” ou “Grande Guerra”, para os paraguaios. Misturando realidade e ficção, o filme/ documentário debate este “ensaio” da I Guerra Mundial, que envolveu Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, vitimando em torno de um milhão de pessoas. No filme entrelaçam-se a história oficial, o imaginário popular e a crítica de militares, cronistas e historiadores, articulado a um com-plexo painel iconográfico e musical, e a uma reconstituição visual do teatro de operações no Paraguai.

Isso possibilita expressar que faremos um diálogo com a bibliografia acerca do tema e com o filme/documentário “Guerra do Brasil”, tendo em vista as diversas outras fontes con-tidas na produção cinematográfica de Sylvio Back, ou seja, um diálogo com a história oficial, o imaginário popular e com a crítica de militares, cronistas e historiadores. A partir deste dialogo entre as fontes, consegue-se identificar as similitudes existentes entre as mesmas, ou seja, entre a produção cinematográfica e a produção historiográfica.

Esse estudo se desenvolverá, a partir de outras constatações, sendo uma delas a de que, após examinar a produção do filme/ documentário de Sylvio Back, buscarei identificar os interesses que motivaram esta produção e analisar no filme/documentário, dados reti-rados tanto dos documentos (não-ficção) quanto das imagens criadas pela imaginação de atores, ou seja, a ficção (não-história).

Por fim, sabendo-se que um filme histórico permite aos professores sua utilização no campo da prática de ensino, no processo de ensino-aprendizagem, a pesquisa não deixará de ressaltar o filme e sua relação com o professor/sala de aula, identificando as “verdades abso-lutas”, contidas no filme/documentário, que não se expressam de forma explicita, mas que estão presentes na produção. O professor (de História) que fizer uso deste tipo de recurso áudio-visual, no caso o filme/documentário, deve estar atento a essa questão, para que o alu-no não tome a projeção (filme/documentário) como uma “verdade absoluta”, esquecendo de relativizar tempo, espaço e sujeito histórico, isso porque os alunos podem estudar o filme como um testemunho da história e das representações do passado, mas não limitar sua aná-lise a esse documento, pois esse é apenas mais uma interpretação.

Tema e Objeto

Essa pesquisa contempla como tema central “Cinema e História”, tendo como objeto de pesquisa “Um Estudo de Guerra do Brasil” (BRASIL, 1987, Sylvio Back).

A escolha do tema “Cinema e História” parte das relações existentes entre as produ-ções cinematográficas e as produções historiográficas. Vejo que as fontes que os historiadores se utilizam para produzirem seus conhecimentos sobre o passado vão muito além dos do-cumentos escritos, preservados nos arquivos históricos. Do mesmo modo, os meios que os historiadores se utilizam para transmitirem suas idéias sobre o desenvolvimento da história gradativamente deixam de serem apenas os livros e os artigos acadêmicos.

Desde a revolução causada pelos historiadores participantes da francesa Escola dos Annales, a ciência histórica tem incorporado como seus objetos (e sujeitos) não apenas os grandes fatos e personagens políticos, mas também as idéias, os costumes e as mentalidades de cada período. A “História Nova”, como ficou conhecida, foi um movimento surgido inicial-mente entre os membros da revista Annales d’histoire economique sociale – fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch e que, a partir de 1946 passa a se chamar Annales, Economies, Societés, Civilizations – em direção a novas abordagens para a compreensão da história, fazen-do uso de muitos dos métodos e conceitos de outras ciências humanas, como a sociologia, a economia, a psicanálise e, principalmente, a antropologia (cf. BURKE, 1992).

Os estudos do cinema enquanto agente da História, documento historiográfico e nova linguagem para o ensino da História estão entre os objetivos de um dos poucos grupos bra-sileiros que procuram entender a relação entre Cinema e História – Oficina Cinema-História: Núcleo de Produção e Pesquisas da relação Imagem-História. Uma das aplicações, com conse-qüências mais imediatas para a sociedade, do estudo da relação Cinema e História encontra--se no campo da educação. Têm-se incorporado, nos programas pedagógicos das práticas de ensino, o uso do cinema, como recurso áudio-visual, mesmo tendo como um dos obstáculos, no emprego do recurso, a própria concepção dos professores (de História), sobre o que são filmes históricos, o que representam, o que nos falam.

Existe um “Guia de Filmes Históricos”, chamado de “Filmografia Indicada”, desenvol-vido por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no qual os filmes são divididos em tópicos, sendo que estes são: História da América, História do Brasil Colônia e História do Brasil Independente. Este guia é muito usado nas práticas de ensino em várias escolas do Brasil.

O objeto de nossa pesquisa, o filme/documentário “Guerra do Brasil”, de Sylvio Back, se insere neste guia de filmes, pois há o entrelaçamento da história oficial, do imaginário popular e da crítica de militares, cronistas e historiadores, articulada a um complexo painel iconográfico e musical e a reconstituição visual do teatro de operações no Paraguai, para evidenciar o período de entre 1864 e 1870, em que a América do Sul estava sendo palco do maior e mais sangrento conflito armado do século, conhecido como a “Guerra do Paraguai”, ou “Guerra Grande”, para os paraguaios. Ou seja, situa-se o filme/ documentário no tópico da História da América e da História do Brasil.

Cinema e História na Literatura

A Escola dos Annales (1929) rompeu, senão completamente, mas em parte, com a historiografia tradicional e inaugurou uma nova concepção de história, que trouxe no seu bojo considerações enriquecedoras sobre as fontes. Diferentemente dos historiadores positi-vistas, que limitavam suas pesquisas à História de acontecimentos, e que, por isso, utilizavam somente documentos oficiais como fonte, procurando estabelecer fatos através deles, os

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historiadores dos Annales buscavam uma compreensão mais abrangente, densa, profunda e totalizante dos gêneros, o que os levou a incorporar ao seu trabalho novas fontes históricas e também, novos objetos, métodos e abordagens, que diversificaram as maneiras de utilizá--las. Na verdade, assim como partiam de uma nova concepção do Homem, mais integral, os Annales também trabalhavam com uma nova noção de fonte (cf. BLOCH, 2001).

Para a realização desta pesquisa, farei uso de uma fonte cinematográfica, “Guerra do Brasil” de Sylvio Back, que é considerada uma fonte nova, e ao mesmo tempo trabalharei com as fontes bibliográficas, que narram os fatos, sendo elas positivistas ou não.

No que se refere à questão da pesquisa desenvolvida por um historiador junto as informações retiradas de um filme, produção cinematográfica, dialogarei com Alcides Freire Ramos, pois ele afirma que:

Cabe ao historiador, em seu trabalho de pesquisa, adotar uma postura de crítica consoante e minuciosa do material filmado, confrontando, sempre que possível, as informações retiradas dos filmes com aquelas que os do-cumentos considerados “tradicionais” (produzido pelo Estado, jornais, etc.) podem oferecer. Esta é a maneira do trabalho humano – da subjetividade enfim – sempre presentes no material fílmico (RAMOS, 2002: 21-22).

Este trecho respalda um dos objetivos desta pesquisa que será, a partir dos confrontos de fontes (material filmado e documentos considerados tradicionais), buscar as similitudes entre as mesmas.

Quando se admite valor documental ao cinema, o historiador que pretende fazer uso de tal material precisa, necessariamente, responder a uma série de indagações que seguem mais ou menos nesse sentido: “O que a imagem reflete? Ela é expressão da realidade ou é uma representação? Qual o grau possível de manipulação da imagem?” (KORNIS, 1992: 237-250). Essas questões, concernentes a relação do cinema com a realidade, são fundamentais para a pesquisa histórica, na medida em que suas respostas serão os pressupostos teóricos que orientarão a criação e aplicação de uma metodologia adequada.

Para compor a pesquisa, também utilizarei a obra “A produção do conhecimento his-tórico e suas relações com a narrativa fílmica”, de Elias Thomé Saliba, pois

(...) traça um paralelo entre a produção historiográfica das últimas déca-das e a narrativa fílmica, atentando justamente para a natureza construí-da que elas têm em comum. Ele diz que os historiadores perceberam o ca-ráter ilusório da verdade absoluta, intemporal e metafísica difundida pelos positivistas, a qual implicava na ausência de pressupostos ideológicos e na neutralidade do historiador, e passaram a afirmar que, na verdade, era o historiador que construía e recortava seu objeto de estudo. Diz ainda, que negando a objetividade positivista, hoje, a história, “se origina menos da necessidade de demonstrar que certos acontecimentos se realizaram e, muito mais, da necessidade de se verificar o que certos acontecimentos podem significar (SALIBA, in: FALCÃO e BRUZZO, 1993: 87-107).

Elias Saliba, ao afirmar que os historiadores perceberam o caráter ilusório da verdade absoluta, fez-me pensar num outro objetivo contido neste projeto, discorrerei sobre as “ver-dades absolutas” contidas no filme/documentário em estudo.

Neste sentido dialogarei com Pierre Sorlin para demonstrar a relação passado/presen-te existente no filme. Essa relação passado/presente “é a afirmação segundo a qual um filme histórico fala, ao mesmo tempo, do presente (momento de sua produção/distribuição/exi-bição) e do passado (datas/eventos/personagens, etc., que constituem a temática do filme)” (citado por RAMOS, 2002).

Estas leituras irão respaldar a construção de nossas análises acerca do filme em ques-tão, ajudando-nos a articular também questões relacionados aos seus possíveis usos no con-texto da sala de aula no ensino fundamental e médio. Segundo Marcos Napolitano:

Trabalhar com o cinema em sala de aula é ajudar a escola reencontrar a cultura ao mesmo tempo cotidiana e elevada, pois o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sistematizados numa mesma obra de arte (NAPOLITANO, 2003: 12).

Luz, Câmera, Ação, ou melhor, Pesquisa!

Bibliografia

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Ed. Da UNESP, 1992.

FURTADO, Joaci Pereira. A Guerra do Brasil (1864-1870). São Paulo: Saraiva, 2000.

KORNIS, Mônica Almeida. História e Cinema: Um debate teórico metodológico. Estudos Históri-cos. Rio de Janeiro, vol. 5, n.10 1992, p. 237-250.

LOCONTE, Wanderley. Guerra do Paraguai. São Paulo: Ática, 1994.

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na de sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.

RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos. Bauru: EDUSC, 2002.

SALIBA, Elias Thomé. A produção do conhecimento histórico e suas relações com a narrativa fílmica. in: FALCÃO, Antonio Rebouças; BRUZZO, Cristina (coords.). Coletânea lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993, p. 87-107.

Fonte

FILME: Guerra do Brasil (35 mm, cor, 84 min.)

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Ethos distintos, naturezas di-ferentes: invasão e destruição

ambiental da Terra Indígena Xavante Marãiwatsédé e seu im-pacto sobre o sistema cultural

A’uwe.

marCos de mir anda r amires

Os xavantes hoje

Os Xavante são um povo classificado como pertencentes ao tronco lingüístico Macro--Jê e à família lingüística Jê. Constitui, juntamente com os Xerente, o grupo lingüístico Akue~. Há indícios de que esses dois grupos, em um passado não muito distante, formaram a mesma etnia (LOPES DA SILVA, 1992:365; MAYBURY-LEWIS, 1984:40). Segundo dados da FUNAI, a população Xavante perfazia, em 2009, um total de 18.000 indivíduos aproximadamente, dis-tribuídos em 11 Terras Indígenas e subdivididos em 178 aldeias (BEIRIZ, 2009: 02). Habitam o nordeste do Estado de Mato Grosso, que abrange parte da “zona central do cerrado brasileiro em uma complexa eco-zona que combina cerrado e mata de galeria” (GRAHAM, 2008:05).

Esse povo, e os Jê de modo geral, são tidos pela literatura especializada como uma sociedade dualista. O sistema simbólico A’uwe~ referencia a classificação do mundo por meio das categorias waniwimhã (nós) e watsiré’wa (eles), por isso percebem como opostas “as esferas de existência pública e privada, entre o fórum e o grupo doméstico, entre masculini-dade e feminilidade”. (MAYBURY-LEWIS, 1984:06-08). Este modelo diádico permite que a so-ciedade Xavante seja organizada de forma complexa por meio de metades . O matrimônio é regulado por duas metades exogâmicas compostas por três clãs; essas metades matrimoniais são segmentadas de forma transversal por oito classes de idade que compõem outras duas metades de caráter ritual e esportivo; em cada uma destas metades ágamas existem quatro classes de idade; essas mesmas classes de idade ainda são agrupadas em duas categorias etá-

~

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rias; a classificação do espaço socializado também segue uma lógica dual, ou seja, divide-se em espaço público e o espaço privado: espaços distintos, todavia complementares, que cons-tituem um todo: o grupo local, a aldeia. As categorias duais também operam na organização política Xavante, marcada por um forte facciosismo que tem reflexos na composição das facções que “competem eternamente por poder e prestigio assim como pelo prêmio maior: a chefia. (MAYBURY-LEWIS, 1984:250). A aldeia é tida pelos A’uwe~ como uma unidade política autônoma.

Trata-se de um povo tido, historicamente, como seminômade, cuja subsistência se assentava, por ordem de importância nutricional, na coleta, na caça e, em menor grau, na agricultura. Se levarmos em consideração, todavia, os critérios nativos, perceberemos que o quadro da importância atribuída aos alimentos se altera, ou seja, a carne oriunda da caça era o alimento mais valorizado pelos Xavante, em segundo lugar as frutas, cocos e tubérculos co-letados no cerrado e nas matas de galeria, os alimentos cultivados tinham uma importância mais ritual que alimentar. Na verdade os A’uwe~ não eram lavradores muito eficientes, con-sideravam “o trabalho agrícola enfadonho e [...] não [eram] pressionados pela necessidade de complementar sua dieta abundante com produtos cultivados” (MAYBURY-LEWIS, 1984: p. 93). Porém, a sedentarização compulsória em Terras Indígenas com limites definidos e o conseqüente aumento das pressões sobre os recursos naturais nelas existentes resultaram em uma diminuição considerável dos meios de subsistência tidos como tradicionais e impôs, desta forma, uma importância considerável à roça.

Modelo explicativo

O presente artigo caracteriza-se como o produto de uma investigação histórica, en-tretanto, o foco propriamente dito desse intento não são transformações sociais em si, mas o processo de interação de dois grupos sociais com um mesmo espaço. Buscamos descrever “as interações entre os sistemas sociais e os sistemas naturais, e as conseqüências dessas intera-ções para ambas as partes, ao longo do tempo” (CASTRO apud PÁDUA, 2010: 90), porquanto pretendemos escrever uma história ambiental. O componente social é observado em sua dimensão mais resistente a transformações.

Antes de passarmos a descrever e articular os conceitos que servirão de fulcro para a construção de nosso modelo explicativo, explicitaremos como concebemos o mesmo. Se trata de “um instrumento de trabalho que, orientado teoricamente, é capaz de estabelecer homologias (construir isomorfias) entre dados que, à primeira vista, são díspares, fazendo ressaltar o sistema que os ordena.” (FONTES, 1997: 355-356). Nesse sentido, nos permite

captar a dinâmica – movimento de um conjunto – ou a estrutura – for-mas de articulação de um conjunto de fenômenos. Mas, em sua elabora-ção, o modelo remete necessariamente a formas específicas – a priori – de apreensão da realidade. (Ibdem: 356, grifo nosso).

Durante a elaboração de nosso modelo lançamos mão de teorias advindas de al-gumas ciências sociais e sua aplicação, que é a outra dimensão do conceito de modelo (Ibdem:356), nos permitiu identificar variantes nos padrões de relação dos Xavante e dos não-índios, mormente brasileiros, com o meio ambiente, bem como perceber com maior profundidade o impacto da transformação acelerada de um território determinado sobre o sistema Xavante.

Passaremos a tratar dos conteúdos de alguns termos que comporão nosso instrumen-to de trabalho. Iniciamos pelo conceito de paisagem, entendido como “o reflexo exterior do meio geográfico, o qual nos informa sobre muitos aspectos desse meio” (KULA apud SILVA, 1997: 208). Esse termo é apropriado por nós, seguindo as considerações de Silva (1997: 208), como um sistema aberto, submetido “permanentemente a fatores aleatórios [...] entre os quais os variados tipos de ação humana”. Duas características emergem daí. A primeira indica que paisagem é a imagem que do meio ambiente tem um grupo particular, esta imagem é fruto da percepção de aspectos do mundo. Nesse processo cognitivo “vegetais e animais, por muito humildes que sejam, não fornecem apenas ao homem a sua subsistência, tem sido também, desde o começo, a fonte das suas emoções estéticas mais intensas e, na ordem intelectual, das suas primeiras e já profundas especulações.” (LEVI-STRAUSS, 1986:170). Esta percepção dos elementos constituintes do espaço corresponde

a experiência de sujeitos humanos, [...] [que] envolve uma apropriação de eventos em termos de conceitos a priori. A referência ao mundo é um ato de classificação, no curso do qual as realidades são indexadas a conceitos em uma relação de emblemas empíricos com tipos culturais. (SAHLINS, 2003: 182).

O conceito de evento a que o autor se refere, não se reduz apenas a acontecimentos extraordinários, mas é extensível a fenômenos cotidianos, pois um “evento é de fato um acontecimento de significância, é dependente na estrutura por sua existência e por seu efei-to”. Qualquer acontecimento pode ser considerado um evento, desde que identificado por um dado sistema simbólico, pois “é a forma empírica do sistema.” (Ibdem:190), é sua realiza-ção. Nesse sentido, e seguindo as colocações de Descola (2001:106-107), entendemos esse todo lógico que impregna os indivíduos que compartilham um mesmo sistema simbólico, como um “conjunto finito de invariantes culturais” que media as formas como um povo es-pecífico identifica, classifica e se relaciona com o mundo, ou seja, como aspectos de seu siste-ma simbólico, que é subjetivo, se objetificam socialmente. Importante ressaltar as limitações desses padrões significativos em organizar algo incomensurável como o mundo, observando este fato Levi-Strauss (1986:151) pondera que cada

cultura constitui em traços distintivos somente alguns aspectos do seu meio ambiente natural, mas não há quem possa predizer-lhe quais nem para que fins [...] os materiais brutos que o meio ambiente natural oferece à observação e à reflexão são, ao mesmo tempo, tão ricos e tão diversos que, de todas essas possibilidades, o espírito não é capaz de apreender senão uma fraccão.

A segunda faceta do conceito de paisagem nos mostra que esta é fruto de “práticas espaciais, isto é, um conjunto de ações espacialmente localizadas que impactam diretamen-te sobre o espaço, alterando-o no todo ou em parte ou preservando-o em suas formas e interações espaciais” (CORRÊA, 2003:35), mas não apenas delas, ressalte-se. Essas práticas correspondem a objetivação da ordem cultural de cada povo no espaço, buscam satisfazer suas necessidades econômicas, logísticas, cosmológicas, estéticas, etc., com vistas a moldar esse espaço de acordo com o ideal de paisagem e as técnicas disponíveis. A transformação da paisagem nesses moldes corresponde a um processo de territorialização de um sistema determinado sobre um espaço particular. Para Souza (2003:106), o território é “catalisador de uma identidade cultural e, ao mesmo tempo, continente de recursos”; é a projeção de um sistema simbólico particular sobre um espaço determinado, onde se reproduz. Diferencia-se

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do espaço, pois, “não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referen-cial.” (Ibdem: 97, grifos no original). É o suporte material de uma identidade cultural, um

campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alterida-de: a diferença entre ‘nós’ (o grupo, os membros da coletividade ou “comu-nidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders). (Ibdem: 86).

Esboço de uma História Xavante

Documentos indicam que desde meados do século XVIII os Xavante vinham se deslo-cando cada vez mais a oeste da região localizada entre as margens esquerda do rio Tocantins e direita do rio Araguaia, no centro da então capitania de Goiás. Esta movimentação dos Xavante foi ocasionada pela crescente pressão de não-índios, sobre seu território tradicional, que afluíam aquelas bandas em busca de ouro. Já no fim do século XIX, aproximadamente, os Xavante encontravam-se estabelecidos na margem esquerda do rio Araguaia e em ambas as margens do Rio das Mortes, em aldeias relativamente autônomas. Ali experimentaram um período de relativa tranqüilidade, pelo menos no que diz respeito a presença de não-índios. (CARNEIRO DA CUNHA, 1992:363-365)

Na década de 1940, com o incentivo do Estado brasileiro, inicia-se um movimento de ocupação do oeste do Brasil. Esta expansão da fronteira agrícola desalojou diversos grupos indígenas de suas terras tradicionais, alguns grupos chegaram mesmo a beira da extinção. Os Xavante, embora tenham resistido o quanto puderam, aceitaram o contato pacífico com a sociedade nacional. Este processo de “pacificação”, porém, não se deu de modo homogêneo e nem de uma só vez devido, principalmente, a dispersão dos vários grupos Xavante em um território extenso e de difícil acesso, além da resistência violenta de alguns grupos ao contato. Este processo, que se iniciou em 1946, quando uma equipe do Serviço de Proteção aos Ín-dios – SPI fez contato pacífico com os Xavante da atual TI Pimentel Barbosa, chegou ao fim em agosto de 1966, justamente com a transferência dos 236 remanescentes de Marãiwatsédé para a Missão Salesiana de São marcos, 400 km ao sul de seu antigo território. (CARNEIRO DA CUNHA, 1992:372; RODRIGUES, et al, 1992:67; CASALDÁLIGA, 1971:16)

Após a transferência, cerca de 80 índios de Marãiwatsédé vieram a óbito devido a contração de sarampo (ALVES, et al, 1966). Após esse período difícil, parte dos A’uwe~ de Marãiwatsédé tiveram que se mudar para outras TIs Xavante, devido a animosidade entre os recém chegados e os que já se encontravam na Missão. Após anos de peregrinação em terras “emprestada pelos parentes”, ocorre a fundação, em 1984, na atual TI Pimentel Barbosa, da Aldeia Água Branca, que serviu de base para o reagrupamento dos filhos e descendentes de Marãiwatsédé (RODRIGUES, et al, 1992:67). Após a fundação de Água Branca e a reunião de parte do povo de Marãiwatsédé nesta aldeia, aqueles índios conseguiram, junto com a FUNAI e representantes da sociedade civil organizada, articular a identificação, demarcação e homologação da TI Marãiwatsédé com 165.241 ha, localizada entre os municípios de Bom Jesus do Araguaia, Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia, no Nordeste do Estado do Mato Grosso.

Invasão e destruição ambiental da TI MARÃIWATSÉDÉ

Poucos meses após a identificação da área indígena, em abril de 1992, o território delimitado, que pertencia a Agip do Brasil S/A, filial da corporação italiana Agip Petroli, foi invadido por pequenos posseiros e grandes fazendeiros estimulados por políticos da região. Inicia-se aí o processo de invasão e desmatamento da TI mais degradada da Amazônia bra-sileira atualmente, processo este que não cessou. Mesmo com sua terra invadida, os Xavante conseguiram retornar para parte do território para eles demarcado em 10 agosto de 2004, amparados por uma sentença do Supremo Tribunal Federal – STF. Ao chegar depararam--se com uma paisagem bem diferente da que esperavam encontrar, mesmo da que estavam acostumados em Água Branca, como podemos inferir a partir dos mapas abaixo. Atualmente vivem 700 pessoas na TI aqui em foco.

Evolução Histórica do uso do território da TI MARÃIWATSÉDÉ

Os mapas nos mostram que em 1992 Marãiwatsédé era constituída por 66% de mata, 11% de cerrado, 13% são classificados como degradados e apenas 10% de sua área total esta-vam desmatados. Em menos de duas décadas o quadro se modificou drasticamente, 42% da área estava desmatada e outros 25% apresentavam um estado considerado como de elevada degradação, restavam apenas 7% de mata e 7% cerrado em pé. Em 17 anos 103.628 ha de mata e cerrado foram derrubados. Se compararmos o mapa de 2009 com outro de qualquer uma das TI Xavante no mesmo período perceberemos uma enorme discrepância. Por maior que seja a pressão sobre os recursos naturais dentro dessas áreas indígenas, a relação que os Xavante estabelecem com seu território é bem diferente da forma como os não índios con-cebem essa mesma interação, é uma questão ontológica. Para Pádua (2010:83), desde muito tempo, e de

maneira geral, na medida em que as sociedades humanas se territoriali-zaram - construindo seus ambientes a partir de interações com espaços concretos de um planeta que possui grande diversidade de formas geoló-gicas e biológicas -, emergiram incontáveis exemplos de práticas materiais e percepções culturais referidas ao mundo [...] A produção de um enten-dimento sobre esse mundo tornou-se um componente básico da própria existência social.” (PÁDUA, 2010:83).

Esta colocação ajuda-nos explicitar o viés histórico pelo qual os sistemas simbólicos são construídos, além de emoldurar o quadro onde se desenrolaram os fatos aqui descritos. Os invasores de Marãiwatsédé, responsáveis diretos pela transformação radical daquela pai-sagem, são portadores de uma ordem cultural que tem suas raízes na matriz cristã ocidental, que coloca o homem no centro do mundo e o aparta da “natureza”; que vê a si mesma como algo que “se auto-constituiu sujeita da história terrena, criando a visão de progresso ligado ao domínio crescente sobre a natureza.” (ALMEIDA, et. al., apud MANTOVANI, 2009:03). Este aspecto do ethos ocidental, “esse entendimento sobre o mundo” natural caracteriza-se como um traço resistente a mudança, uma estrutura que nas palavras de Braudel (1976:21) constitui-se em

uma organização, uma coerência, relações suficientemente fixas entre realidades e massas sociais [...] uma estrutura é, indubitavelmente, um

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agrupamento, uma arquitectura; mais ainda, uma realidade que o tempo demora imenso a desgastar e a transportar. Certas estruturas são dotadas de uma vida tão longa que se convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história, entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer.

Adiante, o mesmo autor pondera sobre esses limites “dos quais o homem e as suas experiências não podem se emancipar” e após elencar alguns se refere as “reacções espiri-tuais” pois “também os enquadramentos mentais representam prisões de longa duração.” (Idem:21). Esses enquadramentos mentais, essas estruturas ou sistemas simbólicos se obje-tivam socialmente em um espaço determinado, dessa forma os invasores de Marãiwatsédé materializaram seu sistema simbólico ao passo que se territorializavam, reproduziam sua or-dem cultural na qual, ontologicamente, são apartados do mundo natural, cujo motivo de existir é servi-los.

De modo inverso, os Xavante se esforçam muito atualmente para reproduzirem-se em um território que não oferece os recursos necessários para sua subsistência e cuja paisagem está longe de representar o ideal a’uwe~ de belo, de agradável e de rico. Em sua cosmologia a origem dos três patriclãs é mítica. Os “fundadores [...] saíram da terra, no começo, quando não havia nada [...] eles eram três e fundaram os clãs Poredza’ono, de um lado, e os Ö wawe~ + Topdató, de outro” (MAYBURY-LEWIS, 1984:220, grifo nosso). Não foram criados apartados da “natureza”, mas saíram dela. Sua continuidade enquanto grupo, tanto física como cultural, estão atreladas ao cerrado, as matas, aos rios e aos seres que nesses nichos habitam. Dife-rentemente dos não índios com que dividem seu território, suas práticas espaciais tem um impacto muito pequeno sobre o meio ambiente. No pequeno pedaço de terra que ocupam, os Xavante de Marãiwatsédé não têm acesso a nichos ecológicos necessários, o que os im-possibilita de atualizarem efetivamente seu sistema social por meio das expedições de caça e coleta, tão caras aos A’uwe~, pois em seu território predomina o capim. Este mesmo capim impede a produção suficiente de alimentos provenientes das roças, porquanto estas com-petem com o pasto. Sem caça e coleta, e devido à limitação de sua agricultura os Xavante se vêem obrigados a lançar mão de outros recursos para subsistir. São obrigados a recorrerem aos mercados das cidades vizinhas, onde compram os gêneros necessários com dinheiro das aposentadorias e dos salários existentes na aldeia. Isso se torna claro durante os rituais, que exigem uma grande quantidades de alimentos.

Para ilustrar nossas assertivas passamos a descrever um fato representativo. Em junho desse ano pude presenciar o Ubdö Warã, uma corrida com toras de buriti na qual as duas metades cerimoniais/esportivas competem. Ao final dos quase 12 km, cada uma das metades se dirigiu a um local diferente para onde seus parentes, quase que instantaneamente, levaram muita comida. Ao invés de carne de caça e bolo de milho, alimentos tidos como tradicionais para esse ritual, afluíram para os corredores esteiras e panelas carregadas de frango assado e bolo de trigo, além de fardos de refrigerante.

Como os postos de trabalho em Marãiwatsédé são limitados, restringem-se a empre-gos na Escola, na FUNAI e no Posto de Saúde da aldeia, e o número de aposentados não é muito grande, o dinheiro que entra ali não é muito. Após a “orgia carnívora, para usar um termo de Maybury-Lewis, que se seguiu a corrida, boa parte das famílias tiveram algum tipo de problema financeiro por terem direcionado um pedaço significativo de seus recursos para a parte que lhes cabia no ritual. Não obstante tenham conseguido, a duras penas, realizar o Ubdö Warã, que atualiza o pertencimento dos homens a uma metade cerimonial/esportiva específica, as atividades pré-rituais, como a caça e a coleta de insumos vegetais, que atualizam

outras esferas da ordem cultural Xavante, não foram realizadas. Esses conhecimentos tradi-cionais sobre essas atividades não foram passados para essa nova geração que cresce em um ambiente inadequado a objetivação de sua cultura.

Considerações Finais

A TI Marãiwatsédé, identificada em 1992 e homologada em 1998, sofreu um processo drástico de transformação ambiental levado a cabo por não índios que iniciaram sua invasão poucos meses após o término de sua identificação. Os índios Xavante para os quais a TI foi demarcada só retornaram para parte de seu antigo território em agosto de 2004, quando se depararam com uma paisagem completamente diferente da que imaginavam. De meados de 1992 a 2009 103.628 ha de mata e cerrado foram convertidos, em sua grande maioria, em pas-to e uma pequena parte em lavoura. Esse processo de territorialização de um grupo portador de uma concepção ocidental do que seja a natureza, transformou a paisagem de modo a per-mitir sua acomodação em um espaço tido antes como impróprio para sua reprodução física.

Os A’uwe~ de Marãiwatsédé encontram grandes dificuldades para realizar seu sistema simbólico, pois, para tanto, dependem de recursos inexistentes em seu território. Como estra-tégia, para objetivar sua ordem cultural, lançam mão dos meios que têm, principalmente dos parcos recursos financeiros existentes na aldeia. Essa prática permite que atualizem apenas parte de seu sistema simbólico, mas não consegue sanar o vácuo que está se criando entre as gerações que cresceram em uma paisagem propicia a objetivação de seu sistema e as que estão se formando em Marãiwatsédé.

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A autoridade episcopal na Antigüidade Tardia:

apontamentos historiográficos

marCus silva da Cruz1

O imperador, o homem santo e o bispo eram as figuras com maior autoridade du-rante a Antiguidade Tardia. Dentre elas nenhuma consegue sintetizar de forma

mais emblemática as mudanças e transformações da antiguidade tardia melhor do que o bispo cristão. Neste trabalho nossos objetivos são por um lado analisar o lugar do bispo e do autoridade episcopal na Antigüidade e por outro fazer uma discussão, ainda que sucinta, desta problemática na historiografia.

A liberdade de culto concedida pelo Estado tardo romano, no início do IV século, tornando o cristianismo uma religio licita significou a abertura de amplo campo de possibili-dades de desenvolvimento institucional, material e doutrinário para a Igreja cristã.

Em relação a posição do bispo durante a Antigüidade Tardia inicialmente podemos perceber um processo de multiplicação do número de sedes episcopais. No famoso Con-selho de Niceia, em 325 pouco mais de 200 bispos participaram. Esses bispos eram em sua maioria das províncias do Leste, com apenas uma minoria advindos da parte ocidental do Império Romano(EDWARDS, 2008:552-567). Se nos séculos anteriores o número de bispos que tinha sido limitados, depois da conversão de Constantino e da liberdade de culto obtida pela religião cristã praticamente todas as cidades do império passaram a contar com um bispo (LENZENWEGER ET alli,2006: 36-37).

1. Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso.

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O aumento do número de bispo nos coloca o problema do recrutamento desses ho-mens, ou seja qual a origem social daqueles que decidiam consagrar suas vidas a liderança de uma comunidade cristã. Esse recrutamento ocorria em diversos grupos sociais, porém com a expansão da rede episcopal os bispos passaram a advir principalmente das elites urbanas locais o que trará um forte impacto nas cidades durante a Antigüidade Tardia (VAN DAM, 2007:346-347).

Em termos institucionais a Igreja cristã passa a se organizar cada vez mais pelo mo-delo administrativo do Estado tardo romano, isto significou que a cátedra episcopal assu-miu paulatinamente as características de uma magistratura (VAN DAM, 2007:350). Os bispos passaram a assumir muitas funções oficiais, incluindo a seleção e supervisão dos clérigos, a administração das finanças da comunidade cristã e a gestão das atividades de caridade, assim como tornam-se os patronos locais que representavam suas cidades e os cidadãos perante magistrados imperial. No entanto, é importante destacar que a principal tarefa episcopal continua a ser o seu ministério espiritual, em especial a celebração da liturgia e a pregação.

Durante a Antiguüidade Tardia a Igreja cristã foi impelida a assumir um papel cres-cente na vida pública do Império Romano tardio, e seus representantes, os bispos, foram confrontados com crescentes funções públicas. Portanto, é necessário discutir a questão da natureza do autoridade episcopal neste momento(MARAVAL, 1997:168-170).

Comecemos essa discussão contemplando a problemática a partir da historiografia. Os estudos acerca dos bispos da antiguidade Tardia se dividem, basicamente, em três grupos distintos: a) histórias da evolução do múnus episcopal no seio da igreja, que normalmente termina com o reinado de Constantino; b) as investigações da função pública dos bispos dentro de seu contexto urbano ou regional, que geralmente começam com a legislação de Constantino em favor do clero; c) e as biografias de homens importantes da igreja, baseada em não pequena medida sobre o próprio registo literário do bispo. Cada uma dessas áreas de estudo realizaram importantes contribuições sobre aspectos específicos do papel dos bispos na Antiguidade Tardia (RAPP, 2005:13).

No cerne dos estudos acerca do autoridade episcopal durante a Antigüidade tardia enocontramos duas hipóteses fundamentais, uma de caráter cronológica, e outra de cunho ideológica. O pressuposto cronológico consiste em destacar o reinado de Constantino como um ponto de mudança radical, como o momento em que um passado idealizado e carismá-tico do início do cristianismo chegou ao fim e a Igreja tornou-se contaminada, corrompida e decadente devido a sua ligação com o Estado romano e sua integração nas estruturas tardo imperiais, um declínio que é concomitante ao processo de aumento da autoridade dos bis-pos (RAPP, 2005:13-14).

No que concerne a hipótese de caráter ideológica a maioria dos trabalhos sobre o episcopado tem sustentado, pelo menos até cerca de duas décadas atrás, uma divisão rígida entre os aspectos religioso e o secular do papel dos bispos, a fim de concentrar-se na proemi-nencia social dos bispos e em seu autoridade político (RAPP, 2005:14).

O pressuposto subjacente comum desses estudos tende a ser que a ascensão do cris-tianismo anda de mãos dadas com o aumento do destaque político do bispo, um aumento cujas consequências duradouras reverberam ao longo da Idade Média e mesmo além desta. Esses estudos tendem a idealizar as comunidades cristãs da época apostólica e pós-apostóli-ca, onde as diferenciações sociais foram senão fortemente rejeitada pelo menos minimizadas, onde os dons do espírito seriam compartilhados por todos os membros da comunidade, e onde os bispos assumiam a função de supervisores e líderes da Igreja cristã (ESTRADA, 2005).

Um elemento que marca os estudos, até o último quartel dos novecentos, acerca do autoridade episcopal na Antigüidade Tardia é que primeiro passo significativo nesse processo de transformação do cristianismo primitivo foi a estratificação e a formalização das relações dentro da comunidade cristã, através do desenvolvimento de uma hierarquia de cargos den-tro do clero, combinada com a noção de que apenas um bispo deve estar na cabeça de cada comunidade cristã urbana. Isto significa que para essa corrente interpretativa a constituição do episcopado monárquico marca o declíneo do cristianismo primitivo e a instauração de uma etapa na história da Igreja cristã.

O segundo elemento que devemos destacar que marca a historiografia sobre a nossa temática é que considerar a conversão de Constantino e o favoreciemnto imperial a Igreja como o momento de ruptura da comunidade cristã com o seu passado apostólico.

A historiografia que se debruça sobre os primórdios do cristianismo, em particular, tendem a culpar a progressiva institucionalização da igreja pela conseqüente perda da espi-ritualidade dos primeiros tempos. A posição de extremo desta abordagem foi tomada por Theodor Klauser que considerava a política eclesiástica de Constantino como uma tentativa sem precedentes e perigosamente bem sucedida por parte do Estado para absorver a igreja e seus representantes em seu aparelho administrativo (KLAUSER, 1953).

Por seu turno Hans Ulrich Instinsky realizou um estudo em que concluiu, a partir da analise da titulação e outros elementos do cerimonial imperial e episcopal, que estes apre-sentam semelhanças e possíveis influências mútuas (INSTINSKY, 1955). Em resposta a Klauser e Instinsky, Santo Mazzarino afirma que, na Antiguidade Tardia, a autoridade episcopal e imperial foram pensados para ter uma origem comum na divindade suprema como a fonte de todo autoridade e glória e que portanto, não poderiamos afirmar uma influência das es-truturas imperiais na igreja cristã e sim um ambiente comum explicaria as semelhanças entre as concepções de autoridade e glória tardo romana e cristã(MAZZARINO, 1956).

No entanto uma historiografia mais recente, como a obra de Ernst Jerg, que fez um es-tudo sistemático da variedade de formas de tratamento utilizadas por autoridades seculares e pelos bispos, demonstrando que os bispos nunca foram formalmente integrados no apa-relho administrativo do império (JERG, 1970). O recente livro de Harold Drake, Constantino e os bispos, procura injetar uma dose saudável de realpolitik para a avaliação da política reli-giosa do imperador e o tratamento conferido aos bispos entendidos como aliados inquietos, mas também como percebidos como possuindo uma certa superioridade moral e espiritual (DRAKE, 2000).

O debate acadêmico debate, no entanto, continua a ser ocupado com a questão central que Klauser levantada: Como são as atividades públicas de um bispo deve ser inter-pretadas?

A historiografia francesa e italiana, muitos deles com raízes na tradição católica, ten-dem a adotar uma perspectiva teleológica e saudar o novo papel público de bispos, depois de Constantino como a pavimentação do caminho para a ascensão do papado (RAPP, 2005:8).

Em linhas gerais podemos afirmar que enquanto o trabalho de historiadores da Igreja, especialmente até meados do século XX é geralmente influencida pela sua própria confissão cristã, a abordagem de historiadores sociais e políticos de uma geração mais recente é marca-da por uma negligência evidente da dimensão religiosa, ou mesmo eclesiástica do episcopa-do. Ambos os posicionamentos apresentam limitações interpretativas mais do que evidentes e que dificultam uma abordagem efetiva da nossa problemática.

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A conclusão que emerge dos estudos mais recente, embora seja mais sutil, o veredic-to continua o mesmo: os bispos são vistos como atores políticos, cujo autoridade deriva da sua posição social e riqueza. Peter Brown, em Autoridade e persuasão, por exemplo, estuda a crescente autoridade do bispo contra o pano de fundo a transformação da cultura urbana na Antiguidade Tardia. Neste contexto, a capacidade do bispo a se tornar um defensor de sua comunidade, incluindo os seus pobres, é explicada como tendo sua base em comum “lin-guagem” cultural do modo de paideia, em um comportamento e uma forma de expressão com base em uma educação realizada na tradição clássica, que é compartilhada por bispos e membros de destaque da elite municipal, governadores provinciais e administradores im-periais. Segundo este modelo, o autoridade dos bispos tem a mesma raiz e é medido com o mesmo critério como o de outros homens proeminentes pelo seus contemporâneos do mundo tardo antigo (BROWN, 1992).

Diversos estudos têm explorado essa evolução nas Gálias e na Itália, com uma ênfase especial sobre o papel do bispo em relação a liderança política, assim como muito sua atu-ação nos serviços sociais em tempos de crise e de transição. A este respeito, o bispo tardo antigo nas Gálias e na Itália tem sido visto como uma encarnação primordial do seu homó-logo medieval, que exerceu o controle completo sobre sua cidade. Os protótipos da acti-vidade episcopal como foram Martinho de Tours (VAN DAM, 1985) e Ambrósio de Milão (McLYNN, 1994).

Outra vertente historiográfica tentou descobrir as raízes na Antiguidade Tardia da Sta-dtherrschaft dos bispos. O início deste fenômeno pode ser atribuído à diminuição dos au-toridadees locais e à ausência de um governo central forte no período merovíngio, e atingiu sua plenitude, entre os séculos X e XII, quando os bispos das grandes cidades na Alemanha e na Gália tinha todas as rédeas da administração civil, complementada pela independência ju-rídica e financeira, atuando como verdadeiros “senhores de suas cidades.” Esta forma de Sta-dtherrschaft de bispos é um desenvolvimento, eminentemente medieval, no entanto, que não necessariamente parte do papel dos bispos, no Império Romano tardio, mas resulta de uma combinação de outros fatores específicos para a Gália e na Alemanha (RAPP, 2005: 11).

Os estudos mais recentes acerca do autoridade episcopal apresentam a tendência nos de obliterar a percepção anterior de uma linha divisória entre o religioso e o secular e abando-nar a dicotomia dura de carisma versus misticismo, instituição versus política , a oração versus autoridade. É a partir desta perspectiva, apresentada por Claudia Rapp, que iremos discutir o autoridade episcopal na Antigüidade Tardia (RAPP, 2005) .

A autoridade do bispo é multifacetada e em constante mutação, um continuo pro-cesso de construção a partir das necessidades impostas, pelas adaptações individuais de cada bispo, bem como pelas circunstâncias específicas de cada região e\ou momento histórico.

Os principais componentes que definem a autoridade episcopal, no entanto, perma-neceram os mesmos. O que muda é o peso relativo desses componentes, ou a maneira em que foram combinados. Os elementos da autoridade episcopal durante a Antigüidade Tardia seriam: a autoridade espiritual, autoridade ascética, e autoridade pragmática(RAPP, 2005:16).

Autoridade espiritual indica que seu portador tinha recebido o pneuma, o Espírito de Deus. A autoridade espiritual tem a sua fonte fora do indivíduo. É dado por Deus, como um presente. Neste sentido a autoridade espiritual é pessoal, assim como pode também ser caracterizada como auto-suficiente. Ele pode existir no indivíduo independente do seu reco-nhecimento pelos outros.

O reconhecimento público das habilidades carismática da autoridade episcopal está englobado na autoridade ascética. A autoridade ascética é acessível a todos, bem como visí-vel.

O terceiro membro desta tríade, é a autoridade pragmática e baseada em ações. Esta surge a partir das ações do indivíduo, porém diferentemente da autoridade ascética, essas ações não são dirigidas para o proveito do prórpio indivíduo, mas para o benefício dos ou-tros. Por isso o acesso à autoridade pragmática é restrito. A sua realização depende de recur-sos do indivíduo, em termos de posição social e riqueza, para executar essas ações. Neste sen-tido a autoridade pragmática autoridade é sempre pública. O reconhecimento da autoridade pragmática pelos outros depende da extensão e do sucesso das ações que são realizadas em seu nome.

A utilidade deste esquema tripartite está no fato de que concede um lugar especial relevância à autoridade ascética como o elo vital para as outras duas. Em outras palavras, a autoridade ascética é, simultaneamente, a condição humana e livre acesso para a autoridade espiritual e sua confirmação abertamente visível. Ao mesmo tempo, a autoridade ascética é também a motivação e legitimação da autoridade pragmática. Esta característica é essencial para a compreensão das atividades públicas de bispos na Antiguidade Tardia. Ela nos permite perceber uma distinção crucial entre os bispos e líderes cívicos.

A ênfase no componente ascética distingue este modelo de trabalho anterior sobre a autoridade dos bispos, enquanto a identificação da autoridade pragmática como um com-ponente independente facilita o estudo do papel público dos bispos. A combinação destes três tipos de autoridade: espiritual, ascético, e pragmática, fornece as ferramentas analíticas que permitem uma abordagem do bispos dentro do mesmo contexto cultural, religioso, social e político permitindo assim uma analise de uma maior grau de densidade e complexi-dade desta figura de importancia fucral para a Antigüidade Tardia(RAPP, 2005: 18).

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Igreja e Estado – as cartas pastorais de D. Carlos Luis

D’Amour, o ultramontanismo e a secularização do cemitério de

Cuiabá no limiar do séc. XX..

maria apareCida borGes de barros roCha1*

Pretendemos discutir, a partir das Cartas Pastorais de D. Carlos Luis D’Amour, rela-ções entre o Estado e a Igreja Católica em Cuiabá no final do século XIX e inícios

do século XX e a questão da administração dos Cemitérios Públicos da cidade, que nesse pe-ríodo ganha repercussão envolvendo em campos opostos duas instituições em disputa pela administração dos campos santos e o controle sobre a vida e a morte da população.

Esta pesquisa se desenvolve a partir de documentação dos arquivos da Cúria Metro-politana de Cuiabá, do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso - APMT e do Arquivo do Núcleo de Documentação e Informação de História Regional da Universidade Federal de Mato Grosso – NDIHR, principais fontes de pesquisa histórica de nosso Estado.

Do corpo documental do Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá é de nosso in-teresse nesta análise as Cartas Pastorais de D. Carlos Luis D’Amour, conhecido como o bispo ultramontano. Essas cartas fazem parte de sua gestão administrativa e eclesiástica diante da Diocese/Arquidiocese de Cuiabá, no entanto, a principal fonte de pesquisa norteadora do desenvolvimento deste trabalho em torno da problemática acima referida é um documento de 112 páginas intitulado: A questão dos Cemitérios Públicos da cidade de Cuyabá – Conside-rações sobre a origem dos mesmos e analyse dos documentos que provam o domínio do Estado, 1901.

1. Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Autora do livro Transformações nas práticas de enterra-mento em Cuiabá, 1850- 1889. Cuiabá: Ed. Central de texto, 2005. Doutoranda em História pela UFG – Universidade Federal de Goiás.

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Faz-se necessário estabelecer algumas considerações sobre os conceitos de seculariza-ção e ultramontanismo, pois, ambos estarão permeando nossa discussão.

Peter Berger define secularização como:

O processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu controle ou influ-ência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja ou emancipação da educação do poder eclesiástico. [...] a secularização é mais que um processo sócioestrurural. Ela afeta a totalidade da vida cultu-ral e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascenção da ciência, como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular, do mundo. ( BERGER, 1985: 119)

O ultramontanismo se define a partir do latim ultramontanus. O termo designa, espe-cialmente no catolicismo francês, os fiéis que atribuem ao papa um importante papel na di-reção da fé e do comportamento do homem. Na Idade Média, o termo era utilizado quando elegia-se um papa não italiano (“além dos montes”). O nome toma outro sentido, no séc. XIV na França, quando postularam os princípios do galicanismo, no qual defendiam o princípio da autonomia da Igreja francesa. O nome ultramontano foi utilizado pelos franceses, que pretendiam manter uma igreja separada do poder papal e aplicavam o termo aos partidários das doutrinas romanas que acreditavam ter que renunciar aos privilégios da Gália em favor da “cabeça” da Igreja Católica, que residia “além dos montes”. O ultramontanismo defende portanto o pleno poder papal.

Em nossa pesquisa consideramos a necessidade de trabalhar com essas definições, pois, elas se apresentam imbricadas com o desenrolar de nossas investigações em torno da transferência dos enterramentos e secularização dos cemitérios da cidade de Cuiabá.

Até meados do século XIX os enterramentos em Cuiabá se faziam no interior dos tem-plos, como em outras cidades e capitais de província do Império, sendo os mortos recebidos no mesmo recinto onde teriam se desenvolvido os principais rituais e cerimônias religiosas da comunidade e onde eram prestadas homenagens em forma de missas e orações aos familia-res mortos e aos santos protetores.

Essa prática de sepultamentos nas igrejas foi muito contestada por sanitaristas, médi-cos higienistas e governantes que, desde a segunda década do século XIX, defendiam o fim dessa prática por considerá-la insalubre e nociva à saúde pública. (COSTA, 1989).

Os cemitérios na segunda metade do século XIX tornaram-se novos espaços de en-terramentos além de se caracterizarem como lugares privilegiados de disputa de poder, en-volvendo em permanente confronto a Igreja, o Estado e a medicina social, assim como as irmandades religiosas, os interesses da população e as novas práticas de higiene. Os espaços urbanos e o cotidiano das pessoas serão objeto da interferência constante do discurso mé-dico que vencerá resistências impondo a transferência dos enterramentos em várias cidades como em Cuiabá a partir da instituição de um Regulamento para os Cemitérios Públicos em 1864. (ROCHA, 2005)

A partir de 1870 identificamos no âmbito da imprensa nacional, do Parlamento e da produção acadêmica um novo conjunto de questionamentos à jurisdição eclesiástica em

torno da morte, dos enterramentos, dos rituais funerários e da administração dos cemitérios, levando as discussões para o campo do enterramento civil e da secularização dos cemitérios. Essas idéias foram disseminadas pelo movimento republicano em defesa dos ideais liberais e secularizantes, apontando para a desconstrução da tradicional hegemonia até então exercida pela Igreja católica sobre a vida e sobre a morte. (RODRIGUES, 2005: 212)

Com a instituição da República, retoma-se a problemática em torno dos cemitérios da cidade de Cuiabá e suas práticas de enterramentos, nesta oportunidade, voltada para a questão da administração desses cemitérios públicos até então efetuada pelo bispado local. A Igreja Católica é, então, forçada a transferir a administração dos cemitérios à alçada do poder municipal. Denominamos esse processo de Secularização dos Cemitérios2.

A secularização dos cemitérios em Cuiabá deve ser avaliada como parte de um proces-so desenvolvido em todo o território nacional que visava desmobilizar o poder representado pela Igreja enquanto instituição, além de desequilibrar determinados grupos como das ir-mandades religiosas, minando um terreno de substancial importância para sua manutenção, reconhecido nas relações do homem com a morte, assim como nas formas de inumação.

A partir da República, Estado e Igreja tornam-se instituições autônomas. Muitas fun-ções até então executadas pela Igreja tornam-se atribuições do Estado. È abolida a instituição do Padroado e a religião católica deixa de ser religião oficial do Estado, sendo nivelada às outras religiões. A Igreja Católica, dessa forma, perde muito de sua força e influência sobre a sociedade e seu cotidiano. ( PERARO, 2003: 45).

A República, através de sua primeira Constituição passa a reconhecer como válido apenas o casamento civil e determina que os cemitérios passariam obrigatoriamente à admi-nistração municipal. Dessa forma identificamos alterações que determinarão novas relações entre a vida e a morte, pois, a partir de 1893 é criado o registro civil para o controle de nasci-mentos e óbitos. ( FAUSTO, 1995: 251)

A partir de um projeto modernizador do Estado brasileiro com idéias humanistas e li-berais passam a vigorar políticas médicas, higienistas e educacionais visando à construção de um novo modelo de cidadão, assim como a construção e/ou manutenção de elementos de controle social como escolas, hospitais, prisões e cemitérios. Esse controle sobre os cemitérios envolvia necessariamente a secularização e a municipalização desses campos santos.

Consideramos que a secularização ou laicização da morte e dos cemitérios em Cuiabá envolveu um processo lento dividido em três tempos e que se desenvolveu desde 1830 quan-do das primeiras discussões em torno da transferência dos enterramentos e da necessidade da construção de cemitérios públicos na cidade. Em 1864 deu-se a inauguração do Cemitério da Piedade, que apesar de ter sua construção efetuada quase integralmente pelo Governo da Província, passou desde a sua inauguração a ser administrado por representantes da Igreja. Em 1901, temos outra importante etapa relacionada aos enterramentos na cidade: A questão da Municipalização dos Cemitérios.

Desde 1864 quando se efetua a construção e a transferência dos enterramentos para os Cemitérios Públicos, a administração destes é concedida ao bispo diocesano local que re-cebe do Presidente da Província as chaves dos portões do Cemitério da Piedade, o primeiro

2. O termo secularização neste trabalho é entendido como um processo de diminuição da presença eclesiástica em diversos setores da sociedade, conforme BERGER, Peter. O dossel sagrado – elementos para uma teoria sociológica da religião: São Paulo. Ed. Paulus, 1985, p. 119.

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cemitério fora dos templos construído na cidade. Durante cerca de cinqüenta anos a admi-nistração desse cemitério se faz pelo bispado local, no entanto, em 1901, a Câmara Municipal de Cuiabá determina que os Cemitérios Públicos passariam a ser administrados pelo muni-cípio. Essa determinação gera reação da Igreja através de seu principal representante o bispo D. Carlos Luis D’Amour, que administrou esta diocese no período de 1878 a 1921, cuja gestão episcopal teve por objetivo a reestruturação da Igreja Católica no âmbito do modelo norma-tizado pelo Concílio de Trento. Modelo este que passou a ser denominado pelos estudiosos da Igreja Católica como Ultramontanismo.

O Ultramontanismo ou Romanização como também foi chamado pode ser defini-do como um projeto eclesiástico de fortes raízes conservadoras que propagava o retorno a Roma e á concentração do poder institucional nas mãos do papa objetivando uma reorgani-zação da Igreja Católica sob um modelo fortemente hierárquico e centralizador que buscava reconquistar o lugar que caberia à Igreja antes da secularização da sociedade. ( HAUCK, 1980)

Diante dos fatos, o bispo demonstrando sua contrariedade, manda retirar do interior dos cemitérios da cidade, assim como das suas capelas, todas as imagens, quadros, sinos e quaisquer outros paramentos religiosos, assim como proíbe que se celebre em seu interior qualquer ato religioso, interditando-o à celebração do Santo Sacrifício da Missa3.

D. Carlos Luis D’Amour externou a insatisfação da Igreja e expressou sua indignação com os acontecimentos através de Carta Pastoral de 02 de dezembro de 1900 em que acusa a Câmara Municipal de haver se apossado ilegitimamente dos cemitérios de Nossa Senhora da Piedade e de São Gonçalo, ambos no perímetro urbano da cidade de Cuiabá.

Na mesma oportunidade D. Carlos afirma terem sido os cemitérios criados por parti-culares, irmandades e associações religiosas, contando com o apoio e participação da popu-lação respaldando sua atitude de protesto contra o que foi considerado intolerável abuso ou usurpação do poder municipal que exorbitando de suas atribuições, sem respeitar direitos adquiridos de propriedade e de crença religiosa, fere preceitos claramente estabelecidos na constituição de nosso país.

Foi também anexado um ofício-protesto dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Cuiabá e uma reclamação apresentada ao Juiz seccional, pedindo manutenção de pose dos cemitérios citados.

Todos esses documentos teriam sido enfeixados em um folheto e distribuído à po-pulação local, dessa forma, o Bispo acusa os representantes do município de se apossar dos cemitérios, considerados por ele como propriedades da Igreja, pois, teriam sido construídos com ajuda de esmolas e por essa instituição administrados durante todos esses anos, ou seja, desde a inauguração dos mesmos em 1864.

O município, por sua vez, defende seus direitos de propriedade apresentando como provas de seus direitos sobre a administração dos cemitérios, um grande número de inves-timentos aplicados nos Cemitérios da Piedade e de São Gonçalo de Pedro Segundo. Estabe-lece-se um clima de tensão e disputa envolvendo em campos opostos duas instituições que até então caminhavam juntas.

De acordo com o exposto, o processo de transferência dos enterramentos das igrejas

3. A Carta Pastoral de D. Carlos Luiz D’Amour de 02.12.1900, determina proibição aos párocos e sacerdotes de profe-rirem ofícios divinos na Capela de Nossa Senhora da Piedade.

para os cemitérios públicos e a secularização dos mesmos em Cuiabá contou com caracte-rísticas específicas e divergentes das apresentadas por outras cidades brasileiras que ao cons-truírem seus Cemitérios Públicos, já os fazem na condição de Cemitérios Municipais, assim os denominam e dessa forma esses estabelecimentos são administrados pela Câmara Municipal. Na cidade de Cuiabá os cemitérios são administrados pela Igreja desde sua construção em 1864 até o ano de 1901, quando ocorre uma intensa disputa em torno da municipalização e secularização4dos mesmos tendo como principal conseqüência a transferência da adminis-tração desses campos santos da alçada da Igreja para a esfera do município.

José de Mesquita, um dos mais ilustres homens de letras do Estado de Mato Grosso, no limiar do século XX discute e classifica a questão da secularização dos Cemitérios Públicos de Cuiabá como uma medida reacionária, devido à convicção de toda a população sobre o domínio da Igreja sobre os campos santos cuiabanos. (MESQUITA, 1936: 35-70)

Os cemitérios cuiabanos foram administrados por autoridades eclesiásticas desde a sua inauguração em 1864, até o ano de 1901 quando passaram à administração municipal. Durante os primeiros anos da administração eclesiástica, os Cemitérios da Piedade e de São Gonçalo foram administrados respectivamente pelo cônego José Jacintho da Costa e Silva e pelo Padre Antônio Joaquim de Camargo.

O poder civil reclamou a administração dos cemitérios da cidade, assim como a po-lícia interna dos templos e lugares sagrados, enquanto a Irmandade de São Miguel e Almas pleiteava seus direitos de posse sobre o Cemitério da Piedade e sobre a capela em anexo, recebendo despacho favorável do Bispo.

Os cemitérios poderiam ser definidos, até então, como espaços representativos do poder religioso, pois, até a secularização suas contas eram trimestralmente apresentadas ao Bispo, assim como uma relação constando os nomes dos inumados no período, seguido dos atestados de óbito fornecidos pelo poder religioso junto do parecer de uma autoridade civil, juntamente com o sepulte-se da administração do cemitério.

Entendemos que o processo de secularização dos cemitérios fazia parte de um projeto político de desmobilização da Igreja, irmandades religiosas e outras associações leigas, com objetivo de transferir ao Estado o domínio de importante espaço de controle social e mani-pulação ideológica. Esse processo envolveria também serviços como o controle dos registros de nascimento, casamento e óbitos, que deixariam de ser efetuados pelo poder eclesiástico, assim como a educação formal até então oferecida à população por religiosos.

A secularização dos Cemitérios Públicos de Cuiabá em 1901 propõe o rompimento de antigas práticas religiosas e sociais, pois, conforme Mesquita: Abre-se nova fase no histórico dos cemitérios da cidade.

Houve, contudo, reações da população definidas a partir das convicções do povo cuiabano que considerava os campos santos de total domínio da Igreja, não podendo, por-tanto, esse domínio ser simplesmente transferido ao poder secular. Essas reações podem ser compreendidas como desdobramentos de acontecimentos considerados como transforma-ções impingidas aos costumes da população. ( MESQUITA, 1936: 50)

A fundamentação do projeto trazia como alegação o estado de abandono em que se encontravam os cemitérios da cidade e o fato dos mesmos terem sido construídos com

4.

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recursos do Estado. Afirmava ainda que se as irmandades religiosas não atendiam a manu-

tenção do cemitério, restava à municipalidade o gerenciamento desse trabalho, por apresen-

tarem melhores condições para isso.

Essa resolução causou protestos da Igreja através da autoridade diocesana que co-

municou aos seus fiéis os acontecimentos e na pessoa do Bispo D. Carlos Luiz D’Amour,

expediu Portaria interditando as capelas dos cemitérios da cidade e proibindo a execução de

cerimônias religiosas nesses campos de inumação. O Bispo redigiu ao Presidente da Câmara

uma correspondência apontando as razões de sua atitude de protesto. Outra providência do

Bispo foi propor no juízo de direito uma ação de manutenção de posse dos cemitérios contra

o município, esse pedido foi, no entanto, julgado improcedente em Abril de 1901. Não ha-

vendo mais condições de recorrer. Conforme Mesquita: “Estava ultimada a secularização que

exibia a seu favor uma sentença do judiciário, da qual se não recorreu. Os cemitérios ficaram

daí em diante leigos, fora da alçada e do domínio eclesiástico”. ( MEQUITA, 1936: 58)

Assim a aliança envolvendo o poder laico e o clerical na administração dos cemitérios

em Cuiabá se desfazia, refletindo os acontecimentos do final do século XIX e inícios do século

XX. A secularização dos cemitérios rompe com antigas práticas de inumação e com antigos

hábitos religiosos da população, desconsiderando práticas funerárias até então desenvolvidas,

suscitando novas relações da população com o Estado e com a Igreja, assim como daqueles

grupos organizados em torno das Irmandades Religiosas que se viam espoliadas de uma de

suas mais importantes funções. José de Mesquita procurou apresentar sua percepção desses

acontecimentos:

A municipalização, de fato, talvez tenha sido vantajosa, eis que o poder

civil reúne mais elementos e dispõe de maiores recursos para manter os

cemitérios e por ele zelar. O modus faciendi, porém, é que deixou muito a

desejar, chegando mesmo a causar espanto que tão sumária usurpação

lograsse coroada por um aresto judicial5. ( MESQUITA, 1936: 59)

Os cemitérios públicos de Cuiabá durante o período de 1901 a 1923 ficaram sem culto

católico, pois os mesmos só foram restabelecidos em 1923, a partir de solicitação do então

Bispo D. Francisco de Aquino Correa, durante a administração do intendente Coronel José

Antonio de Souza Albuquerque.

Em ofício de 26 de junho de 1923 a intendência responde ao bispado restituindo as

chaves e a administração da capela daquele cemitério à Igreja, suspendendo, dessa forma, o

interdito levado a efeito por D. Carlos Luis D’Amour.

5. Ibidem, Idem, p. 59

Bibliografia

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A arte como suporte da memória: os Murais da Prelazia

SFA na consolidação da identidade de um segmento social vulnerável 1977-2001

maria henriqueTa dos sanTos Gomes1

A partir do Concílio Vaticano II (1962-1965) convocado pelo Papa João XXIII e re-alizado em quatro sessões, que contou com a participação de várias autoridades

eclesiásticas de todo o mundo, houve uma renovação da Igreja Católica, renovação essa que impactou parte importante dos futuros teólogos da libertação. Para esse segmento era indis-pensável o comprometimento com os pobres e com aqueles indivíduos que se encontram à margem da sociedade.

O Concílio é considerado pela historiografia da área como um dos acontecimentos mais marcantes da Igreja Católica no século XX, tendo em vista que, a partir de então, ati-tudes inovadoras foram tomadas pelos membros do corpo eclesial. O seu desdobramento resultou em mudanças radicais no papel desempenhado pela Igreja no mundo moderno, apresentando elementos para que os cristãos pudessem dialogar com a realidade, de tal sorte a viabilizar uma Igreja identificada como progressista, que tinha como pressuposto se adequar a consciência moderna.

Joanoni Neto assegura que na década de 60 no Brasil, sob o governo militar, segmen-tos do clero feminino e masculino, bem como os leigos militantes, se posicionaram contra a ditadura instalada e alguns se engajaram nos movimentos contestatórios e na luta armada.

No que tange ao grupo identificado como adepto da denominada Teologia da Li-

1. * Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Mestranda em História pelo PPGHis/UFMT, bolsista CAPES. [email protected].

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bertação2 se constitui em resposta às condições vividas por parte significativa da sociedade latino-americana, com a reduzida e - em alguns casos - inexistente atuação do Estado, viti-mando a população de diferentes formas.

Naquele contexto, uma ala progressista da Igreja Católica rompeu com o seu tradicio-nalismo, elaborando uma teologia politizada em sintonia com o que se passava àquela época, mais precisamente nas décadas de 1960 e 1970, orientando sua ação no sentido de demandar melhorias para os menos favorecidos economicamente, o que implicava em muitos casos e locais em enfrentamentos com as políticas do Estado ditatorial.

A Teologia da Libertação tem como objetivo a libertação do homem, seja da explora-ção pelo próprio homem, seja das condições de vida desfavoráveis, da opressão em qualquer nível ou escala, tendo em vista que a mesma apóia-se em uma igualdade social entre todos os indivíduos, independente de etnia, de classe social ou credo, pretendendo, assim, ver a huma-nidade isenta de qualquer tipo de opressão, defendendo duramente os direitos humanos. O regime civil-militar vigente na época no Brasil e em quase todas as nações latino-americanas violava claramente estes princípios. E em se tratando de um país de Terceiro Mundo, a estru-tura político, social, econômica e jurídica nacional não favorecia a grande massa.

No que tange a pauta acerca do refluxo da Teologia da Libertação, assunto que causa tanta inquietação, José Maria Vigil3 em uma entrevista para Revista do Instituto Humanistas Unisinos, relata que:

Se continua provocando tanta inquietação, obviamente, porque não está morta. Mesmo que alguns tenham proclamado, nos anos 1990, que já teria morrido, o novo Papa tem tido que se preocupar com ela nestes últimos dias, e eu penso que não é que tenha ressuscitado: a teologia em questão talvez seja dessa classe de “mortos que nunca morrem”. Porque, como temos dito tantas vezes, enquanto houver no mundo pobres (ou “in-justiçados”, mais ampla e profundamente) e houver simultaneamente fé, haverá, terá de haver, “fé libertadora”, e sua auto-reflexão será a Teologia da Libertação, com esse ou qualquer outro nome. (VIGIL, 2007: 9)

Diante desta afirmação de Vigil, podemos pressupor que a Teologia da Libertação,

2. É uma correte teológica de interpretação do cristianismo que enfatiza a atuação político-social do cristão em prol da transformação das estruturas de exploração da sociedade capitalista (causadora de injustiça, pobreza, violência, sofri-mento e etc.) como em decorrência do amor ao próximo. Desenvolvida após o Concilio do Vaticano II (1962-1965) e a Conferência Episcopal de Medellín (1968), principalmente por teólogos latino-americanos, a Teologia da Libertação ga-nhou nome e corpo com a publicação da obra Teologia da Libertação, do peruano Gustavo Gutiérrez, em 1971, na qual se formalizou e se estruturou essa leitura mais social da fé cristã. Os teólogos (Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodóvis Boff, Jon Sabrino, Enrique Dussel, entre outros) afirmavam fazer teologia a partir da realidade (de subdesenvolvimento, dependência, violência e etc.) vivida no Terceiro Mundo e defendia o engajamento social e político dos cristãos com base em conceitos como o da caridade política. A Teologia da Libertação não se restringiu às especulações teológicas, mas difundiu-se no plano pastoral (ao qual se alinharam diversos bispos e padres: D. Paulo Evaristo Arns, D. Pedro Casaldáliga, D. Helder Câmara, D. Thomaz Balduíno, D. Oscar Romero, etc.). A Teologia da Libertação se tornou hegemônica em boa parte da Igreja Latino Americana até meados dos anos 80.

3. Vigil é licenciado em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Na Universidade de Santo Tomás de Roma, obteve a licenciatura em Teologia Sistemática. Foi ordenado sacerdote em 1971. Vigil costuma dizer que nasceu uma vez em Zaragosa, Espanha, e uma segunda vez em Manágua. Durante treze anos, trabalhou na Nicarágua e, atualmente, mora e trabalha no Panamá.

está mais viva do que alguns imaginam, sendo uma referência importante no recorte tempo-ral dessa pesquisa.

Como bem assevera Leonardo Boff, a Teologia da Libertação nasceu ouvindo o grito dos oprimidos, dos segmentos sociais mais vulneráveis, hoje não apenas os pobres gritam, como também gritam as águas, as florestas, os animais e a própria Terra sob a agressão siste-mática do modo de produção e consumo globalizado. Assim, surgiu uma vigorosa ecoteo-logia4 da libertação, nascida na América Latina e assumida em muitas Igrejas e universidades no mundo.

Na Prelazia5 de São Félix do Araguaia-MT, identificamos ainda uma forte atuação da Teologia da Libertação, merecendo destaque a figura de Dom Pedro Casaldáliga, um dos principais representantes na América Latina em se tratando da Teologia da Libertação, atu-ante em toda região do Nordeste de Mato Grosso. O religioso catalão focou suas ações no combate a marginalização da população, na busca incessante por mudanças, por menores que fossem, mas que representassem alteração na estrutura da sociedade, defendendo valo-res e ideais dessa nova forma de ser Igreja.

Vale referir aqui as Comunidades Eclesiais de Base (CEB`s) pequenos agrupamentos nos quais seus agentes, fazem com que o desafio da libertação, torne-se uma meta. Frei Betto, na obra intitulada “O que São Comunidade Eclesiais de Base”, caracteriza as CEBs da seguinte forma:

São pequenos grupos organizados em torno da paróquia, por iniciativa de leigos, padres ou bispos esses grupos tinham natureza religiosa e caráter pastoral. São denominadas comunidades pelo fato que reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertence a mesma Igreja e moram na mesma região; são eclesiais porque congregadas na Igreja, como núcleo básico de comu-nidades de fé; são de base, porque integradas por pessoas que trabalham com as próprias mãos – grupos populares – entre eles: donas de casa, operários, aposentados jovens, ou seja, as CEB’s representaram uma nova forma de organização pastoral. (BETTO, 1981:29)

No que infere as Comunidades Eclesiais de Base, estas procuram preservar a cultura e a arte popular, destacando, que na Prelazia de São Félix do Araguaia, os símbolos litúrgicos são ferramentas de labor, valendo-se da rede, dos artesanatos indígenas, da cuia, do facão, entre outros instrumentos dos pescadores e agricultores. Preservando uma identidade desta população, além de utilizarem os Murais da Libertação6, não somente para decoração, mais também como uma forma de crítica social e mescla de motivos religiosos quando da con-fecção das referidas obras.

Alguns estudiosos da História da Arte reconhecem a existência da Arte Útil, profunda-mente vinculada ao esforço do artista em atribuir um sentido que transcende do individual.

4. Cf. BOFF, Leonardo. “Roma está perdendo a batalha contra a Teologia da Libertação”. IHU ON-LINE Revista do Instituto humanistas Unisinos. São Leopoldo, 02 Abril de 2007/ edição 214.

5. Prelazia é um tipo de circunscrição eclesiástica, que não possui independência financeira. Chama-se de Prelazia uma diocese ainda não plenamente organizada.

6. As pinturas foram produzidas entre os anos de 1977 e 2001 são apresentadas, cada uma com uma denominação, num total de onze painéis de diferentes tamanhos, espalhados pelos municípios de São Félix do Araguaia, Luciara, Santa Tere-zinha, Ribeirão Cascalheira, Vila Rica, São José do Xingu e Querência.

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No que se refere a essa modalidade, presente nas Igrejas, Sedes e Paróquias da Prelazia de São Félix do Araguaia, de qualquer forma, parece incontestável que, enquanto útil, a arte é necessária.

O historiador Moura Sobral assevera que “o principio segundo o qual a arte pode, e em certas condições deve, ter um alcance social imediato” e estabelecer implicações com o mundo do trabalho por poder igualmente, dentro de um quadro histórico bem preciso, incitar “um grupo social à resistência”, ou auxiliar o grupo de trabalhadores a aumentar seu apreço por sua própria dignidade humana. (SOBRAL, 1977:8 apud AMARAL, 2003:8)

Mas o que essa manifestação artista advoga é a intencionalidade do artista em partici-par das mudanças sociais a partir do teor conteudístico de seu trabalho. Há uma preocupa-ção social materializada no trabalho do artista.

Para a melhor compreensão do recorte espacial da nossa pesquisa, Nordeste do Esta-do de Mato Grosso, é importante apontarmos algumas reflexões de José de Souza Martins, quando do seu esforço de distinguir Frente Pioneira de Frente de expansão, visto que a região pode ser identificada, na atualidade como Frente pioneira, tendo sido em nosso recorte tem-poral, frente expansão.

José de Souza Martins sobre frente pioneira, afirma que a mesma desconsidera a popu-lação local estabelecida na região desde muito, tendo como principais atores o empresário, o fazendeiro, o comerciante e o pequeno agricultor moderno e empreendedor. A frente pionei-ra é também situação espacial e social que convida ou induz à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança social. Ela constitui o ambiente oposto ao das regi-ões antigas, esvaziadas das populações tradicionais

Podemos constatar que a história das lutas étnicas e sociais é a história contemporâ-nea da fronteira no Brasil. “Entre 1968 e 1987 diferentes tribos indígenas da Amazônia sofre-ram pelo menos 92 ataques, pelos grandes proprietários de terra e com ajuda de seus pisto-leiros. Existiram também ataques indígenas sobre os grandes fazendas e alguns povoados” (MARTINS, 2009:25)

É pertinente referir que a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade, a primeira vista é o lugar do encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, índios, civi-lizados; proprietários de terra e camponeses pobres. Mas, “o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro”. (MARTINS, 2009:134).

A Igreja nessa região de fronteira, de conflito, aparece, via de regra, para apaziguar essas relações desarmonizadas, combatendo sempre as injustiças, as arbitrariedades, não fazendo vistas grossas para a realidade cruel existente nesse local. Os Murais da Libertação explicitam bem o que a Prelazia de São Félix, defendia e tinha como seus ideais, uma Igreja cuja opção pastoral pelos carentes e pobres. A Igreja se colocava como defensora dos posseiros, indíge-nas e peões, haja vista que, eram os segmentos vulneráveis da região, as imagens materializam esses fatos.

Os Murais da Libertação cumprem uma função de evidenciar o comprometimento com a história da região, re-atualizando a memória coletiva de expressiva parcela da popula-ção local, tendo sido esse o objetivo do pintor ao confeccionar esses painéis, sob encomenda de Dom Pedro. Assim, a socialização desta arte que materializa os conflitos, a arbitrariedade, a ausência de infra-estrutura entre outras questões que os moradores encontram-se desassis-tidos deve ser um instrumento a mais no aprimoramento da sensibilidade individual, para a

sua conscientização dos problemas do coletivo. Mas, também é possível encontrarmos nos murais uma série de representações, que retratam alternativas e/ou mudanças possíveis para a superação desse cenário desfavorável. A esta esperança é possível atribuirmos claramente uma orientação de ordem religiosa, no caso presente, cristã.

Michel Ragon, um estudioso de história da arte, considera que, mesmo quando a arte se torna revolucionária, de propaganda, ela pode torna-se, depois de um mês, uma arte de “agradável decoração”. (RAGON, 1968:33 Apud. AMARAL, 2003:09). Acerca da afirmação, cumpre informar que nossas pesquisas de campo, ainda que em fase inicial, evidenciam que os Murais da Libertação, não são percebidos por uma parcela da população local, como re-presentativo da trajetória daquelas comunidades, de tal forma a podermos afirmar que essas pinturas nas Igrejas da Prelazia, não surtem o mesmo efeito de quando foram encomenda-das/pintadas, de tal sorte ao identificarmos um processo de perda de historicidade daquela manifestação artística, ainda que os mesmos são tombados pelo Estado através da Portaria n° 021/2005, publicada no dia 30 de agosto de 2005 no Diário Oficial do Estado de Mato Gros-so, num caro esforço incentivado por Dom Pedro de evitar o esquecimento e/ou a alteração daquelas obras. Cumpre ainda referir que parte da população enxerga os murais como meros ornamentos de decoração no interior dos templos religiosos.

No que tange ao potencial constituinte de identidade, os Murais foram pensado tam-bém com o intuito de construir uma identidade local, ligado aos segmentos populares, com os seus símbolos e instituições, a Igreja Católica. Barreto assevera que a identidade implica sentimento de pertença de uma comunidade cujos membros não se conhecem, mas parti-lham importantes referências comuns: uma mesma história, uma mesma tradição. Manter algum tipo de identidade étnica, local ou regional – parece ser essencial para que as pessoas se sintam seguras, unidas por laços extemporâneos a seus antepassados, a um local, a uma terra, a costumes e hábitos que lhe dão segurança, que lhes informem quem são e de onde vêm. (BARRETO, 2000:46)

Contudo, esta investigação encontra-se em andamento, tendo em vista, que não te-mos resultados finais no momento, alcançamos dados parciais. A pesquisa pode ser carac-terizada neste momento como exploratória. Vale frisar ainda, que a indagação mantém um dialogo profícuo com outras áreas, tais como a antropologia, quando nos reportamos para a consideração de identidade, o campo da sociologia nos auxiliam nas discussões acerca dos movimentos sociais, entre outras ciências, que dialogam com a temática presente. A interdis-ciplinaridade proporciona uma melhor compreensão e desenvolvimento da nossa investiga-ção, bem como, para compreender o todo, é necessário o reconhecimento da historicidade do processo ocorrido na região destacado pelo estudo.

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Política Varguista : os marcos regulatórios e a ruptura de um

modelo produtivo.

mariana de assunção rodriGues1

O período que compreende o período Vargas de 1930-1945 demonstra ser uma época em que o Estado passa por transformações no que diz respeito aos rumos

das políticas públicas e ao desenvolvimento da economia nacional. A partir deste período se alteram as funções e a estrutura que o Estado sustentava quando tinha uma influência mais assídua das oligarquias rurais em assuntos ligados à economia e à política com reflexos para a sociedade como um todo.

Sabe-se que a produção econômica do período anterior girava em torno, sobretudo, da agroexportação, cujo principal produto figurava no café. O Brasil assumira nesta época o lugar de maior fornecedor cafeeiro e a economia dava indicativo de crescimento setor de mercado externo se encontrara em um crescimento relevante, haja vista também possuir outros produtos de exportação, como a borracha e o cacau (FAUSTO, 1997:212). Assim, quando a crise de 1929 se instaurou, o Brasil sentiu os desdobramentos da crise. A superpro-dução, sobretudo do café e a falta de mercados que absorvessem sua demanda impacta não só a economia mas também a política nacional. A economia passa então por significativas transformações.

Vargas, que assume o poder em 1930 e se deparando com tal conjuntura, viu-se na situação de romper com esta estrutura, fazendo com que o país assumisse um projeto mo-derno e mais inovador do ponto de vista político e econômico. Para Ianni (1979), foi a partir da Revolução de 1930, que o país “exprime as rupturas estruturais a partir das quais se tornou

1. Graduanda do curso de História pela UFMT/ Cuiabá/MT. Bolsista PIBIC/CNPq.

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possível reelaborar as relações entre o Estado e a sociedade”. Ainda na mesma perspectiva, o autor afirma que foi a partir deste marco que o Brasil teve condições de desenvolver-se num padrão efetivamente burguês, pois assumia o protagonismo da condução do processo eco-nômico a fim de se desvencilhar da imagem de Estado oligárquico. (Ibidem)

O Estado, desta forma, passa a investir na modernização da economia brasileira por meio da revisão das legislações, as quais regiam tanto as relações sociais quanto as relações produtivas. Além disso, houve a criação de novos órgãos que tinham por objetivo planejar e concretizar as políticas públicas de planejamento e produção, bem com de distribuição dos recursos.

O setor industrial e de infra estrutura, passou nos primeiros anos de governo, por um período de crise e recessão, no entanto pode-se dizer que é no período do governo Vargas que este setor demonstra ter um crescimento relevante e, desta maneira, a tentativa, pelo menos na primeira década do governo, foi de equilibrar a situação em que se encontrava o setor agroexportador, sobretudo no que diz respeito ao café no mercado internacional, além de fazer com que houvesse uma diminuição de importação, apoiando o crescimento indus-trial. (FAUSTO, 1997:217)

O desenvolvimento da siderurgia representava um importante setor produtivo para o país, afinal, desde as primeiras décadas do século XX a produção de ferro no Brasil era re-levante, principalmente no que diz respeito à demanda das ferrovias. Durante o período de desenvolvimento e crescimento industrial, algumas empresas expandiram suas explorações e é possível notar o crescimento de usinas. Vargas neste período se preocupou sobremaneira com questões de cunho energético de maneira particular, os minérios. Questões ligadas a siderurgia, ao petróleo e à energia elétrica eram elementos cruciais para o desenvolvimento industrial pós crise.

Contudo, os setores ligados ao modo de produção burguês-capitalista, bem como as forças militares nacionais passaram a controlar o poder político e a determinar as direções que a política econômica do país deveria tomar. (IANNI, 1979:21)

Mas o governo, para romper com o modelo vigente, além de incentivar o desenvol-vimento do setor industrial, teve de reestruturar a configuração do Estado no que dizia res-peito as políticas econômicas. Para isso foi necessário a criação de órgãos e instituições que alcançassem todas as esferas da sociedade nacional. Além do mais, o estabelecimento de novos padrões e valores foram feitos a fim de tornar o país mais moderno e inovador. “O go-verno federal suscitou e incentivou a sistematização de informações, a realização de debates, a análise de problemas, a tomada de decisões e a própria execução de medidas de política econômica.” (Ibidem:23)

O processo de inovação, desta forma, estaria a cargo destes órgãos que seriam forma-dos por técnicos competentes para desenvolver atividades que poderiam fomentar desco-bertas e inovações no setor produtivo. Os órgãos criados teriam a possibilidade de tratar de questões ligadas à economia de maneira a provocar uma mudança significativa no desenvol-vimento do país.

No que se refere aos recursos naturais, presentes no projeto de tornar o país moderno e inovador, foram instaurados marcos regulatórios, com vistas de formar um setor produtor de insumos básicos para a desejada indústria. Para isso, além do incentivo a siderurgia, houve estímulo à mineração, a geração e distribuição de energia elétrica, entre outros. Desta manei-

ra se fez necessário estabelecer institutos e órgãos, tanto para o desenvolvimento, quando para a fiscalização dessas atividades tornaram-se efetivos.

Entre 1930 e o fim do governo Vargas em 1945, o Estado criou diversos órgão regula-dores no âmbito dos recursos naturais, entre eles destaca-se o Instituto Geológico e Minera-lógico do Brasil, a Estação Experimental de Combustível e Minérios, o Laboratório Central e Industrial Mineral, além do Conselho Nacional do Petróleo, entre outros.

Entretanto, são os marcos regulatórios que dão o respaldo jurídico necessário para o desenvolvimento no setor, sendo importante destacar seu caráter restritivo a investimentos internacionais, bem em consonância com o nacional-desenvolvimentismo. A idéia de facilitar o desenvolvimento industrial permitindo que o Estado controle os setores que eram consi-derados estratégicos para sua economia e política, além de permitir uma segurança maior perante o mercado exterior, sendo esses os marcos ou arcabouços jurídico-institucionais que regularizaram a apropriação, o uso e a exploração dos recursos naturais.

Deste modo, foi através da promulgação dos Códigos de Minas2, Floresta3 e o de Águas4 a partir de 1934, que o governo consegue regulamentar juridicamente a exploração numa perspectiva nacionalista, a qual também seria empregada na última fase do governo Vargas.

Antes da elaboração dos códigos, não existia no Brasil uma regulamentação que tra-tasse especificamente dos recursos naturais, havendo algumas leis dispersas tratando da ma-téria. No caso da água, por exemplo, abordada juntamente com a questão mineral,era referi-da geralmente no que dizia respeito ao direito de propriedade com o objetivo de resguardar o interesse público perante o privado. Em 1934, com a promulgação do Código de Águas, foi separada a propriedade do solo da propriedade de outros recursos naturais, fazendo com que as quedas d’água, minas e demais riquezas do subsolo fossem destinadas a exploração pública ou mediante concessão, fomentando o setor industrial. (SILVESTRE, 2008:17)

No que se refere aos recursos minerais, os desdobramentos destas regulamentações provocaram mudanças no âmbito da mineração, visto que antes do Código de Minas o di-reito minerário garantia, ao proprietário da terra, a posse do subsolo e conseqüentemente de possíveis jazidas, exceto à estrangeiros.

O Código de Minas, como um dos produtos da ruptura do modelo de produção até então exercido, estabelece que a propriedade do subsolo deveria pertencer ao Estado, caben-do ao próprio dar ou não concessão de exploração destes lugares. O proprietário passou a ter somente a preferência no aproveitamento dos recursos minerais. Assim, o estado garantia o usufruto deste bem encaminhando para seu aproveitamento no setor de desenvolvimento industrial. Além do mais, havia a insistência para a exclusividade de autorizações a brasileiros e empresas brasileiras na exploração destas áreas.

Desta maneira, o governo Vargas percebeu a necessidade de transformações nas ações estatais como imprescindível e a partir das mesmas sancionadas neste período o Estado ob-tém uma função organizadora no sentido de ampliar a complexidade das relações econômi-cas fazendo-se mais presente no cenário nacional.

2. Decreto nº 24.642, de 10 de julho de 1934.3. Decreto nº 23.793, de 23 de janeiro de 1934.4. Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934.

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O 13 maio em destaque em jornais Mato-grossenses

(1888 A 1920)

marineide de oliveir a da silva1

elTon CasTro rodriGues dos sanTos2

A questão racial no Brasil parece ser ainda um motivo de incômodo ao ser abordada no seio social, talvez seja pelo fato das pessoas acreditarem que esse problema

já foi superado no momento em que os negros foram “libertos do cativeiro”. Para DaMatta (1987), o momento que precede a proclamação da República e a abolição da escravatura foi um momento em que se instaurou uma crise nacional que abalou as conjunturas sociais construídas no processo de colonização, marcando também o surgimento histórico das dou-trinas raciais no Brasil.

No começo, a cor ou raça dos negros estava associada ao escravo, que detinha um lugar determinado no sistema colonial. Enquanto foi assim, a sociedade conviveu com o racismo e a discriminação sem maiores pro-blemas, porque o escravo não era visto enquanto um cidadão dotado de direitos. Seu lugar estava determinado por nascimento. Com o fim da es-cravidão e o advento da república, muda-se também, a visão do negro na sociedade. É a partir daí que o racismo ganha novos contornos que podem permanecer até os dias de hoje (TEIXEIRA, 2006, p.44).

Diante deste contexto, podem-se entender inúmeras ideologias que contribuíram para inculcar a idéia de que os seres humanos estão divididos em de raças, cujos brancos seriam

1. Graduanda do Curso de Serviço Social/ICHS/UFMT e integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória/GEM/UFMT/IE. E-mail: [email protected]

2. Graduando do Curso de Pedagogia e integrante do Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória/GEM/UFMT/IE. E-mail: [email protected]

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uma raça superior aos negros. Assim, os afro-descendentes passaram a ser alvos de piadas, aparentemente inocentes, mas que alimentavam a estigmatização racial no meio social. Essa conduta além de ofender abertamente os negros, legitimava um discurso discriminatório que perpetuou ou que talvez ainda perpetue as relações sociais brasileiras (Fonseca, 1994).

Foi para entender essas conjunturas sociais, pós-abolição, que elaborou-se um traba-lho com objetivo de desvelar, por meio mapeamento de jornais que abordavam a temática do dia 13 de maio, no período entre 1888 a 1920, preconceitos e discriminações referentes a população negra de Mato Grosso na época em estudo.

Fernandes (1972) explica que o negro, anteriores à Lei Áurea, era alvo de piadas e estereótipos ofensivos e que essa situação está ligada à condição de escravo que este viveu no passado. Para insultar e satirizar os afro-descendentes, a população utilizava-se de frases como: o negro é preguiçoso; não possui inteligência; foi escravizado pelo seu próprio povo, por isso nasceu para servir; entre outras frases, sendo estas carregadas de ideologias tão efi-cazes, que foram transmitidas por gerações.

As ideologias, como as citadas acima, serviam para manter o negro em seu “lugar”, o de inferioridade, como também para manter a ordem social, assim, agravava-se cada vez mais, sua inserção na sociedade como cidadãos de direito. Em vez de ser absorvido pelo siste-ma de trabalho urbano e pela ordem social que emergiu com o processo de industrialização, o negro foi repelido para as esferas marginais desse sistema e obrigado a viver de maneira degradante, tanto econômica quanto socialmente (FERNANDES, 1978).

Essas ideologias se apresentam afloradas nos textos impressos nos jornais entre 1888 a 1920, pois nos diversos artigos referentes à comemoração do dia 13 de maio, a linguagem utilizada e difundida na sociedade burguesa, parece contribuir para a perpetuação de ações discriminatórias contra o negro. Como no jornal o Liberal de 1914, cuja notícia ressaltava a comemoração de 13 de maio. No jornal estava escrito:

De todas as nossas datas, 13 de maio, occupa um lugar culminante na galeria de todas as nossas datas. Ella comemora o grito de liberdade dado pelo brasileiro de pulso forte e coração bondoso, em favor de uma pobre raça soffria. Comemora ella a quebra dos grilhões que prendiam e mar-tirizavam o pulso daquelles nossos irmãos desgraçados, e acima de tudo ella mostra até que ponto chegou a grandeza magnanimidade do espírito e do coração brasileiro.

Nesta notícia, os negros são chamados de irmãos, mas se analisarmos outras pala-vras que compõem o texto, perceberemos claramente as ideologias discriminatórias contra a população negra. Para a princesa Izabel é destinados elogios como: de pulso forte, coração bondoso, grandeza e magnanimidade de espírito. Já para os negros: raça sofrida e irmãos desgraçados. A princesa Izabel é enaltecida como se ela tivesse realizado o maior feito da época, mas na realidade com a liberdade o negro passou a ser marginalizado e segregado do convívio social.

[...] em 8 de maio de 1888 o projecto de um completo e immediato extinc-ção da escravatura. [...] não obstante ser domingo, naquelle mesmo dia, pelas mãos de uma princesa, era o Brasil conduzida a sua maior victoria, sem canhões nem sangue, victoria saturada do mais puro idealismo – a victoria da liberdade.

Segundo o Jornal o Mensageiro de 1914, a libertação dos escravos foi uma vitória con-quistada sem sangue, sem o uso de canhões e sem mortes, mas o que dizer dos inúmeros assassinatos de negros que fugiam das senzalas em busca de liberdade? O que dizer também dos chamados “capitães do mato” que utilizavam armas de fogo para caçar os negros fujões e em muitos casos, os matavam com crueldade? O uso de armas não se assemelha aos ca-nhões? Outra questão a ser pensada é a questão da conquista da liberdade sem sangue. O que dizer dos inúmeros negros que morreram ao serem açoitados no tronco?

Como podemos perceber a exaltação da princesa Izabel parece mascarar a realidade vivenciada pelos escravos. Esse tipo de exaltação inferia que os negros tinham uma dívida com a princesa salvadora e não poderiam mudar a ordem social vigente.

O preconceito se apresenta expresso em outro trecho do jornal o Mensageiro de 10 de maio de 1914: Dizia a reportagem: Ha 26 annos que a princesa regente D. Izabel, na Lei Aurea de 13 de maio, arrancou do livro da nossa história a página negra e hediomda da escravidão [...]. Ao se ler a notícia, talvez poucos achá-la-iam preconceituosa e degradante, ou ainda que esta passaria uma mensagem, entre linhas, sobre a ideologias que perpetuavam a sociedade. Somente quando refletimos sobre a frase: arrancou do livro da nossa história a página negra e hediomda da escravidã, indaga-se: qual é a cor das páginas do livro? Negra?. Quando referi-mos a cor, dizemos que algo é “preto” e não “negro”. A palavra negro nesse sentido parece ser sinônimo de sujo, ruim e vergonhoso.

Acredita-se que os estudos sobre a educação dos negros no Brasil, principalmente em Mato Grosso, são de sumo importância já que por meio destes abre-se um leque de possi-bilidades para que futuros pesquisadores possam compreender as complexas relações que envolvem a escola e a educação no Brasil.

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Escravos negros na fronteira oeste da capitania de Mato

Grosso: formação de quilombos

monique CrisTina de souza lordelo1

O objeto deste trabalho é a escravidão negra na fronteira oeste da capitania de Mato Grosso, e seu objetivo é registrar as fugas de escravos para a formação de

quilombos, tanto da repartição do Mato Grosso como na repartição do Cuiabá, em domínios portugueses, e em território espanhol2.

Demonstramos, nesse estudo, que os escravos negros estabelecidos na capitania de Mato Grosso, na fronteira luso-espanhola, não responderam passivos às sujeições de seus senhores, e que as fugas eram constantes, conforme demonstra a documentação levantada. O que torna a pesquisa ainda mais instigante é que essas fugas ultrapassavam as fronteiras lusitanas, com os fugitivos adentrando, em especial, as regiões das missões religiosas, locali-zadas em território castelhano.

Os escravos negros estavam sujeitos a uma dura legislação, cujo objetivo era controlar e coagir suas manifestações; para escapar desta repressão e punição, encontraram diferentes formas de luta para se manter em liberdade, tais como fugas e formação de quilombos (VOL-PATO, 1993:155).

Outras ações podem ser interpretadas como formas de resistir à escravidão, tais como os suicídios e os assassinatos. No entanto, a quantidade de registros na documentação oficial

1. Este trabalho apresenta uma versão resumida de um dos capítulos da minha dissertação de Mestrado, defendida em 19/05/2010. Lordelo, Monique Cristina de Souza. Escravos negros na fronteira oeste da capitania de Mato Grosso: fugas, capturas e formação de quilombos. Cuiabá, MT: UFMT, 2010.

2. Essas duas repartições, do Cuiabá e do Mato Grosso, correspondiam aos atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia.

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sobre suicídio de escravos é reduzida; há, no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso um documento, no Livro de Registros de 1770, no qual Luís Pinto de Sousa Coutinho escreve ao governador de Santa Cruz de la Sierra (atual Bolívia) pedindo a restituição dos escravos “portugueses” fugidos, e deixa o registro sobre um que “se matou a si próprio, [...] sendo uma ação tão contra os desígnios da natureza” (APMT, 1770, C 07: 14).

Os fugitivos tomavam todo o cuidado para não serem recapturados, e João José Reis e Flávio Gomes consideram a fuga e a formação de quilombos os atos mais típicos de resis-tência à escravidão (REIS; GOMES, 1996: 9). No entanto, caso não houvesse um mínimo de organização, um lugar para ir, para se manter em segurança, certamente o ato de fugir seria inócuo, e a recaptura, certa. Com certeza havia códigos estabelecidos entre os cativos, que eram repassados de uns para outros, indicando caminhos a serem seguidos para alcançar os quilombos.

Em Mato Grosso, no século XVIII, havia diversos quilombos, como o Grande, que teve como governante a conhecida rainha Tereza de Benguela. Houve também o quilombo do Rio Sepotuba3, destruído em 1769, pelo sargento mor Bento Dias Botelho, e o quilombo do Rio Porrudos, também destruído em 1769, conforme registrado nos Anais de Vila Bela: “ulti-mamente se destruiu um quilombo antigo, que existia na margem dos Porrudos” (AMADO; ANZAI, 2006: 131).

No Anal de Vila Bela de 1770, há detalhes do primeiro processo de destruição do quilombo Grande4 “que havia notícia certa de estar estabelecido nas campanhas do Galera”, sobre a organização do espaço e o modo como seus habitantes, os considerados “inimigos” da administração colonial haviam sido capturados.

No parágrafo seguinte do relato é solicitado ao cabo de esquadra João de Almeida, que estivesse à disposição o mais rápido possível com seis soldados pedestres já escolhidos. Foi recomendado ainda, “mais que tudo, o inviolável segredo que devia haver na saída para tal quilombo, a fim de que os negros não tivessem notícia dessa nunca pensada determina-ção” (AMADO; ANZAI, 2006: 138).

Pudemos observar que o território que compreendia o quilombo era bem grande, como destacado no próprio nome do quilombo, as casas ainda eram bem dividas e dispersas, e existiam “várias malocas”. E mesmo quando a tropa chegou às primeiras casas, as outras partes do quilombo só perceberam presença inimiga quando escutaram os tiros e a gritaria.

O escrevente destacou a forte resistência dos moradores do quilombo, e registrou que os soldados só atiraram para se defenderem, mas destacou também que não houve perigo de morte por parte dos soldados, certamente pela surpresa do ataque e pelo armamento superior da tropa. Um registro importante diz respeito à prática do corte das orelhas, que serviriam para comprovar o feito junto à Câmara local, para pagamento, e servir de exemplo à população.

Outro aspecto importante a se destacar no relato é a composição étnica do quilom-bo, “gentios da Guiné” e índias:

Compunha-se este quilombo de 69 pessoas do gentio de Guiné, entre ma-chos e fêmeas, dos quais vieram acorrentados e presos quarenta e um, e

3. Cf. Mapa 1.4. Cf. Mapa 1.

nove mortos; perfazem cinquenta; e os 37 que faltam, para o total dos escravos, ficaram desarvorados pelos matos. Achavam-se no mesmo qui-lombo trinta e tantas índias, que os tais negros tinham apanhado no ser-tão, onde matavam os machos e traziam as fêmeas para delas usar como mulheres próprias (AMADO; ANZAI, 2006: 139).

O discurso privilegiado do escrivão em relação à rainha Tereza de Benguela, ressaltou o “poder tão absoluto”, seu rigor no trato, que a tornava “temida” e cruel, justificando, assim, o trágico fim da “maldita” e “desventurada” rainha.

Acompanhamos o destino de Tereza de Benguela seguindo o relato do escrivão dos Anais de Vila Bela. Ficou registrado que, ao fugir com seu seguidor, José Cavalo,

... na apressada fuga em que foram, no saltar de um riacho se estrepou aquela desventurada rainha em um pé, isto a tempo que já os soldados iam sobre ela pela terem visto, e com facilidade a prenderam e trouxeram ao aquartelamento onde estava o sargento mor. Posta aí em prisão, à vista de todos aqueles a quem governou naquele reino, lhe diziam estes palavras injuriosas, de forma que, envergonhada se pôs muda ou para melhor dizer, amuada. Em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem (AMADO; ANZAI, 2006: 140).

Esse é um rico registro de como se organizava um quilombo, “o maior que tem havido nestas minas”. Os quilombolas andavam armados “com armas de fogo e arco e flecha”; fabri-cavam suas próprias roupas e consertavam suas ferramentas “para o que tinham duas tendas de ferreiro”, o que indica a existência nele de mão de obra qualificada. Além do mais, o qui-lombo era auto-suficiente, “porque cada um tinha sua roça muito bem fabricada de milho, feijão, carás, batatas, amendoim e muito algodão, que fiavam e teciam para se vestir e cobrir, para o que tinham teares à moda de suas terras” (AMADO; ANZAI, 2006: 140).

Os quilombos situavam-se em locais de difícil acesso, o que explica a dificuldade de se chegar ao quilombo Grande, e a possibilidade de fuga para muitos: “e os 37 que faltam, para o total dos escravos, ficaram desarvorados pelos matos” (AMADO; ANZAI, 2006: 139).

Outro documento de 1795, do Fundo da Governadoria do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, oferece detalhes sobre uma bandeira de 45 homens, que passaram mais de seis meses na mata em busca de negros fugidos (ARAÚJO; APMT, 1795. In: ROSA; JESUS, 2003: 213-223). O documento descreve todo o trajeto da bandeira, desde sua saída até sua volta à capital Vila Bela. A bandeira passou por vários quilombos, como o antigo Piolho, qui-lombo do rio Pindaituba, quilombo da Mutuca, e ainda encontrou ranchos de quilombolas às margens do rio Sararé. É um documento riquíssimo que, inclusive, já foi explorado por diversos historiadores, dentre os quais Volpato (1993) e Gomes (2005).

A mando do capitão general João de Albuquerque, a bandeira saiu com o único objeti-vo de “aliviar a perda e dano da fuga de muitos escravos”, e há registros no documento sobre o quilombo do Piolho, destruído havia 25 anos, do restabelecimento de sua população, e sobre a formação de uma aldeia, chamada Carlota, local para onde os capturados foram levados.

Sobre o quilombo do Piolho, como no Grande, a diversidade das plantações: “mi-lho, feijão, favas, mandioca, amendoins, batatas, carás, e outras raízes, assim como muitas

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bananas, ananases, abóboras, fumo, galinhas, - e algodão de que faziam panos grossos e fortíssimos, com que se cobriam”, local também “abundante de caça e o rio de muito peixe” (ARAÚJO; APMT, 1795. In: ROSA; NAUK, 2003: 217).

Neste quilombo Piolho foram capturados “6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caburés e 11 caburés fêmeas”, totalizando 54 pessoas e, por fim, foi mandado construir no local a aldeia Carlota. Essas 54 pessoas capturadas voltaram, portanto, para a tal aldeia, no dia 9 de outubro de 1795, “em muitas canoas, em que levaram além de mantimentos para muitos meses, vá-rios grãos e sementes para plantarem, com ferramentas correspondentes, assim como porcos, patos, galinhas, para criação” (ARAÚJO; APMT, 1795. In: ROSA; NAUK, 2003: 219).

No mesmo documento é notificado outro quilombo, o do Pindaituba, que na volta, “a conduzir a gente que formava o quilombo do Piolho”, o paisano Geraldo Ortiz recebeu novas ordens de Sua Excelência pelo capitão José Antonio Prego, que acompanhado de

... um e dois escravos pretos que sabiam aonde existiam tais quilombos nos matos do Pindaituba, por viverem nele quando foram presos por seus senhores nesta Vila, aonde vinham não só a comprar o que necessitavam, mas a convidar para a fuga e para o seu quilombo outros alheios (ARAÚ-JO; APMT, 1795. In: ROSA; NAUK, 2003: 220).

Esta expedição conseguiu apreender 12 escravos, que foram levados para Vila Bela, mas faltavam ainda 37 pessoas, “segundo as afirmações que deram”. Apreenderam, por fim, mais 18 escravos, “dando fim a esta laboriosa diligência, com seis meses e meio de trabalho [...] queimando e destruindo-lhe os seus quilombos e plantações, de que resulta que dos outros que escapavam se vão alguns diariamente entregues a seus senhores, o que já fizeram sete, e se espera do resto faça o mesmo” (ARAÚJO; APMT, 1795. In: ROSA; NAUK, 2003: 222-223).

A presença de indígenas nos quilombos da Amazônia foi relatada por diversas autori-dades coloniais. No quilombo Grande relatou-se haver, em 1770, 69 gentios da Guiné e “trinta e tantas índias”; no quilombo do Piolho, em 1795, também foi relatada a presença indígena: “destes escravos novamente aquilombados, morreram muitos, uns com velhice, outros às mãos do gentio Cabixis, com que tinham continuada guerra, afim de lhe furtarem as mulhe-res” (ARAÚJO; APMT, 1795. In: ROSA; NAUK, 2003: 217).

Flávio Gomes também registra essa presença indígena nos mocambos no norte da Amazônia, quando se refere ao tipo de relação que havia entre indígenas e escravos negros: “além de trocas comerciais, essas relações foram também cercadas por conflitos, no qual, escravos negros aquilombados roubavam mulheres indígenas e eram atacados” (GOMES, 2005: 70).

Uma explicação para o rapto de mulheres indígenas pode ser a falta de mulheres negras. Jovam Vilela destaca que em Vila Bela, entre 1768 a 1797, o número de homens foi sempre superior ao de mulheres, chegando à proporção de três homens para cada mulher (SILVA, 1995: 195). Esse pequeno número de mulheres africanas é explicado desde a saída dos portos africanos. Para Manolo Florentino, de cada dez escravos que chegavam nos portos do Rio de Janeiro, seis a sete eram homens (FLORENTINO, 1997: 55).

Observamos na documentação que os quilombolas faziam comércio e frequentavam o entorno do quilombo, e que os locais escolhidos por eles eram geralmente abundantes em

caça e pesca; tinham suas próprias roças e podiam praticar a extração de ouro e diamantes. Para Gomes,

... com estratégias de autonomia diferenciadas, mas ao mesmo tempo compartilhadas e estendidas, escravos e quilombolas conquistaram mar-gens de autonomia, acesso, controle e utilização da terra, desenvolvimento de pequeno comércio e mesmo de uma microeconomia monetária (GO-MES, 2005: 33).

Alguns documentos informam claramente sobre a atividade dos quilombolas na ex-tração de ouro e também de diamantes, embora este fosse extremamente proibido oficial-mente a quaisquer particulares. O que não impedia de personagens que já estavam à margem da lei, no caso dos escravos aquilombados, de praticar tal atividade extrativa.

Em carta ao governador e capitão general, Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cá-ceres, o mestre de campo da Vila do Cuiabá, Antônio José Pinto de Figueiredo noticiou, em 1781, que “se forneça com mais força a guarda do diamantino ribeirão Paraguai, [...] e também a importantíssima procedência que Vossa Excelência fez aplicar sem perdas de tempo para dissipar, queimar, e destruir inteiramente aquele quilombo de fugidos que se achavam ex-traindo ouro e diamantes no proibido ribeirão de Santa Ana o que tudo se executou à risca” (BR MT APMT. QM. TM. CA. 1053 Caixa Nº 016).

E como o local do quilombo deveria ser muito visado pelos quilombolas, no ano seguinte, em 1784, mais uma vez, o mesmo mestre de campo fez referência da existência de “quilombos que se acham nas vizinhanças dos ribeirões diamantinos Paraguai, Santa Ana e São Francisco” ao governador Luiz de Albuquerque: “O que até o presente consta é que o quilombo é grande, e que se acha com malocas e os ranchos espalhados próximos” (BR MT APMT. QM. TM. CA. 1231 Caixa Nº 019).

Outro documento, de 1779, trata da “Relação das praças que por ordem do gover-nador foi expedida pelo senhor mestre de campo e comandante (da Vila do Cuiabá) para examinar, prender e destruir negros que houve notícia e se achavam aquilombados nas terras minerais destinadas do Paraguai”. O interessante desse documento, além de citar o local do quilombo, é que registra o nome e a origem dos negros capturados - João Mina, Caetano Mina, Miguel Mina e Mariana -, e ainda informa a relação das coisas que se acharam com os quilombolas quando foi destruído o quilombo: “20 oitavas e 3 quartos de ouro em pó e duas pequenas pedras (de diamante), que tudo vai remetido a Sua Excelência”, além de “armas de fogo, machados usados, tachos de cobre pequenos, foices velhas, alavancas, ouro com seu marco competente, pano de algodão em dois retalhos” (BR APMT QM TM RO 0998 Caixa nº 015).

Com todas essas informações que o documento nos fornece, podemos imaginar como poderia ser o cotidiano nesse quilombo, já que provavelmente esses negros africanos faziam comércio na região para trocar seu ouro e suas pedras, andavam armados para se pro-tegerem, faziam uso de utensílios de cobre, entre outras possibilidades.

A capitania de Mato Grosso, por ser uma região de fronteira com os domínios espa-nhóis facilitava, entre outras coisas, a fuga de escravos negros também para o lado hispânico da fronteira. Principalmente na Amazônia colonial, tanto escravos negros como indígenas poderiam se beneficiar de rotas de fuga que se estendia para outros domínios que não os portugueses.

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Denise Maldi Meireles destaca a formação de quilombos no lado ocidental da frontei-ra do rio Guaporé, em domínios espanhóis, baseando-se em carta de José Pinheiro de Lacer-da a João de Albuquerque: “em 1790 foi descoberta, na margem do rio Baures5, a “vivenda de um quilombo”, não muito distante da missão de Magdalena. Mas estava vazio: seus habitan-tes conseguiram fugir antes da chegada da ronda que os procurava” (MEIRELES, 1989: 178).

Nos manuscritos avulsos do Arquivo Público de Mato Grosso há um do ano de 1778 que faz referência ao quilombo Baures; no entanto, o documento refere-se ao achado de in-dígenas, e não cita em nenhum momento a presença de homens ou mulheres negras.

Outros quilombos são citados na mesma documentação de manuscritos avulsos do APMT. Em uma carta Antônio Joaquim da Silva,1782, expôs ao mestre de campo Antônio José de Pinto Figueiredo que havia outro quilombo, no rio Sumidouro, próximo à cabeceira do rio Santa Ana, e aconselhava, “que para aquela campanha não se pode ir com poucas forças, pois essas partes se acham um quilombo de negros muito antigo” (Ref.: BR MT APMT. QM. TM. CA. 1105 Caixa Nº 017).

A partir da documentação analisada, fizemos um levantamento dos quilombos en-contrados na capitania de Mato Grosso ao longo da segunda metade do século XVIII. Assim, construímos um mapa com o objetivo de localizar alguns quilombos encontrados na reparti-ção do Mato Grosso, na fronteira com as missões jesuíticas. Para fazer tal trabalho utilizamo--nos de dados aproximados, já que a documentação não relata de forma exata a localização desses quilombos.

Mapa 1: Localização dos quilombos na capitania do Mato Grosso e em domínios hispânicos

Produzido por Gervásio Barbosa Soares Neto.

5. Cf. Mapa 1.

Bibliografia

Fontes impressas

AMADO, Janaína; ANZAI, Leny Caselli (Org.). Anais de Vila Bela 1734-1789. Cuiabá: EdUFMT; Carlini & Caniato, 2006.

Fontes manuscritas

Arquivo Público do Estado de Mato Grosso - APMT

Livro de registro do governo de Luiz Pinto de Sousa Coutinho e Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, 1751-1775, livro C 07, estante 01:1770, agosto, 21, Forte de Bragança. Carta para o governador de Moxos, p. 13-14.

Manuscritos do século XVIII (antigas latas)1779, Maio, 02, Vila do Cuiabá. Relação das praças que por ordem do Governador foi expedida pelo senhor Mestre de Campo e comandante para examinar, prender e destruir negros que ouve notícia e se achavam quilombados nas terras minerais destinadas do Paraguai. Ref.: BR APMT. QM. TM. RO. 0998 Caixa Nº 015

1781, Janeiro, 28, Vila do Cuiabá. Carta do [Mestre de Campo] Antônio José Pinto de Figueiredo ao [Governador da Capitania de Mato Grosso] Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Ref. BR MT APMT. QM. TM. CA. 1053 Caixa Nº 016

1782, Fevereiro, 01, Vila do Cuiabá. Carta do [Mestre de Campo] Antônio José Pinto de Figueiredo ao [Governador da Capitania de Mato Grosso] Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Ref.: BR MT APMT. QM. TM. CA. 1104 Caixa Nº 017

1784, Março, 14, Vila do Cuiabá. Carta do [Mestre de Campo] Antônio José Pinto de Figueiredo ao [Governador da Capitania de Mato Grosso] Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Ref.: BR MT APMT. QM. TM. CA. 1231 Caixa Nº 019

Artigos e livrosARAÚJO, Marlene G. Diário de diligência que por ordem do Ilmo. E Exmo. Sr. João de Albuquer-que de Mello Pereira e Cáceres, governador e capitão general da capitania de Mato Grosso, se fez no ano de 1795, a fim de se destruírem vários quilombos. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de (Org.). A terra da conquista: História de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003, p. 213-224.

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (Org). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

__________. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Bra-sil, (Séculos XVII-XIX). São Paulo: Unesp; Polis, 2005.

MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da fronteira: Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.

SILVA, Jovam Vilela da. Mistura de cores: política de povoamento e população na capitania de Mato Grosso século XVIII. Cuiabá: UFMT, 1995.

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São Paulo: Marco Zero; Cuiabá: EdUFMT, 1993.

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Tradição e Modernidade no Cerrado: a cidade de

Rondonópolis, a associação comercial, industrial e

empresarial de Rondonópolis e a História da sua gente de

negócios na imprensa

naThália da CosTa amedi1

E x a t a m e n t e h á 1 5 1 a n o s p a s s a d o s . à m a r -g e m d o R i a c h o d o I p i r a n g a D . P e d r o I – D a v a o g r i t o d e I n d e p e n d ê n c i a o u m o r t e ! ( . . . ) H o j e f e s t e j a m o s m a i s e s s e a c o n t e c i -m e n t o d a h i s t ó r i a b r a s i l e i r a , a o v e r m o s u m B r a s i l g i g a n t e – c h e i o d e P r o g r e s s o , o n d e o c o r r e - c o r r e d e s e n v o l v i m e n t i s t a e m t o d o s s ã o o s f a t o r e s : P r o d o e s t e – S u d e c o – P r o t e r r a – S u d a m b e m c o m o t a n t a s o u -t r a s o b r a s e v o l u t i v a s q u e t r a z e m u m a n o v a i m a g e m – a o g r a n d e B r a s i l d e M é d i c i ( . . . ) E m n o m e d o s a s s o c i a d o s d a A C I R a p r e s e n -t a m o s (s i c ! ) o s n o s s o s v o t o s d e c o n f i a n ç a , f é e d e s e n v o l v i m e n t o c a d a v e z m a i s à s n o s -s a s a u t o r i d a d e s ( . . . ) n o s s o E s t a d o e R o n -d o n ó p o l i s a g r a n d e m e t r ó p o l e d a S u d a m .

• [Mi l ton Antunes . Assoc iação Comerc ia l e Industr ia l de Roo –

Avante Bras i l – ce l e i ro desenvo lv iment i sta (1822-1973) .

Tr ibuna do Leste . Rondonópo l i s , 07/09/1973] .

1. Licenciada em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), professora da educação básica e co--autora do livro Tradição e Modernidade no Cerrado (Rondonópolis: ACIR/Marketing Mix, 2010).

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Narrar a história de uma cidade significa pensar as tramas de seu cotidiano ao longo tempo, trazendo para o cenário das ruas, praças, comércio, bairros e casas os diferentes su-jeitos que a transforma em seu lugar de moradia, trabalho, lazer e sociabilidade. A cidade é o mundo e o mundo está na cidade. Ela não está isolada no tempo e no espaço, faz parte de um conjunto de articulações regionais, nacionais e internacionais e vivencia diferentes con-textos de permanências e transformações sociais, econômicas e culturais.

A história de Rondonópolis não foge a esse enredo de múltiplas narrativas. Muitos capítulos poderiam ser escritos a partir dos lugares de memória desta cidade: arquivos, bi-bliotecas, escolas, faculdades, casas comerciais, associações, praças, bairros entre outros. Ao olhar inquieto do historiador, a cidade sempre é um manancial inesgotável de descobertas.

Neste sentido, o objetivo deste trabalho é reconstruir a partir da imprensa a atuação dos fazer dos comerciantes locais e da Associação Comercial de Rondonópolis no processo de constituição sociocultural desta cidade, apreendendo as diferentes atividades desenvolvi-das por essa gente de negócios, apresentando-se em diferentes momentos como protagonis-tas no fazer e no viver de Rondonópolis.

O projeto de pesquisa “Tradição e Modernidade no Cerrado: a cidade de Rondonó-polis, a Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Rondonópolis e a história da sua gente de negócios” teve início no mês de maio de 2009, com o objetivo fazer uma pesquisa documental sobre a Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Rondonópolis (ACIR), visando à produção de um histórico sobre esta entidade representativa da classe empresarial, por sua inserção no contexto de formação e desenvolvimento da cidade de Rondonópolis e do sul do Estado de Mato Grosso como consta no projeto/relatório final enviado a PROPeq/UFMT – número de registro 298/CAP/2009.

A realização dessa pesquisa partiu de uma necessidade, identificada pelos membros da Associação, de se constituir uma memória da criação, fundação e atuação da ACIR, para preservar e constituir sua história como lugar de defesa dos direitos e fomento de políticas públicas e privadas dos seus associados.

A previsão para desenvolvimento do projeto é de 12 (doze) meses contando com três frentes de trabalho: 1) pesquisa com fontes orais2 – realização de entrevistas com os fundado-res e associados da ACIR, bem como outros sujeitos envolvidos direta ou indiretamente na sua trajetória histórica; 2) pesquisa com fontes oficiais3 – investigação da memória oficial pro-duzida em documentos oficiais da ACIR, como atas, fotos, informativos, áudio-visual, entre outros; 3) pesquisa com as fontes jornalísticas4 – coleta e sistematização das matérias, artigos e reportagens sobre a ACIR publicadas na imprensa local e estadual desde a sua fundação. O trabalho com as fontes jornalísticas será o foco deste artigo.5

A ACIR – Associação Comercial de Rondonópolis, ainda não Industrial e Empresarial, foi fundada em 07 de Novembro de 1955, “com o objetivo de unir forças para defender in-

2. Essa parte da pesquisa visa à criação de um acervo sobre a origem e fundação da entidade e a identificação das persona-gens que atuaram neste processo. A pesquisa com fontes orais ficou sob a responsabilidade do Professor Dr. Renilson Rosa Ribeiro.

3. Essa frente de pesquisa procura compreender o cotidiano administrativo da ACIR. A pesquisa com fontes oficiais ficou sob responsabilidade da Professora Mestre Simone Elias de Souza.

4. A pesquisa com fontes jornalísticas tem como finalidade perceber a atuação da ACIR na imprensa e sua influência no cenário econômico e social local e regional. Essa parte da pesquisa ficou sob responsabilidade da autora deste paper.

5. Em tempo agradecemos o Sr. Samuel Logrado, diretor do jornal A Tribuna, por gentilmente abrir para pesquisa o seu acervo a pedido da diretoria da ACIR.

teresses da classe empresarial de Rondonópolis, bem como de fomentar o desenvolvimento econômico da cidade, de forma contínua e sustentável” (DOSSIÊ RONDONÓPOLIS, 2008: 14).

Neste período, o Brasil era governado por João Café Filho6 - vice-presidente de Getúlio Vargas - que tomou posse logo após a morte deste. Seu governo não ultrapassou um ano (1954-1955). Café Filho assume o poder num momento conturbado da história do país, com o suicídio de um dos mais populares presidentes do Brasil e em plena uma crise econômica e institucional. A sua administração foi marcada pela retomada dos princípios liberais, combate à inflação, levando o país a uma forte recessão e uma aguda crise bancária. Mas o grande as-sunto do seu governo foi as eleições presidenciais, o resultado dela levou a vitória do mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira que governou o pais de 1956 a 1961, sob fortes protestos da oposição.

No período em questão administrava o Estado de Mato Grosso, Fernando Corrêa da Costa (1951- 1956), e ocupava a prefeitura de Rondonópolis Daniel Martins Moura (1955-1959).7 Segundo Elizabeth Madureira Siqueira,

A [primeira] administração de Fernando Corrêa da Costa foi marcada pela reforma da administração pública, visando sua modernização e agi-lização. (...) assim como dinamizada a colonização em Mato Grosso (SI-QUEIRA, 2002: 204).

Retomando a questão das fontes jornalísticas, vimos que escrever a História por meio da imprensa nem sempre foi comum como nos mostra a própria historiografia. O peso de certa tradição, associada ao ideal de busca da verdade dos fatos, que se julgava atingível única e exclusivamente por intermédio dos documentos, foi predominante durante o século XIX e início do XX. Tinha-se a idéia de que o historiador, livre de qualquer envolvimento com seu objeto de estudo, para trazer à luz o acontecido, deveria lançar mão de fontes marcadas pela objetividade, neutralidade, fidedignidade e credibilidade, e é claro, distanciadas do seu próprio tempo (LUCA, in: PINSKY, 2008: 112). Para Tânia Regina de Luca,

Os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que essas ‘enciclopédias do cotidiano’ continham registros frag-mentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromis-sos e paixões. Em vez de (sic) permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.

A crítica a essa concepção só se modificou com a Escola dos Annales, a partir da sua terceira geração, que propunha “novos objetos, problemas e abordagens” a disciplina histórica.

Para que seja possível uma pesquisa em periódicos, é necessário, antes de tudo, encon-trar a fonte. Muitas vezes o pesquisador vai lidar com as seguintes situações, 1) nem sempre os jornais estão organizados ou microfilmados; 2) pode encontrar materiais em péssimo esta-do de conservação; 3) há necessidade de obter longas séries completas (o que muitas vezes é impossível), havendo a necessidade de se peregrinar por várias instituições.

6. “Café Filho formou um ministério com maioria udenista; ao mesmo tempo, assegurou ao país que garantiria a realização das eleições presidenciais marcadas para outubro de 1955” (FAUSTO, 2003: 418).

7. Segundo Luci Léa Martins Tesoro, “Nas décadas de 1950 e 1960, o crescimento econômico de Rondonópolis vem através do campo, enquanto produtor de alimentos e extensão do capital paulista. Nesse período destaca-se a força da mão-de--obra de migrantes mato-grossenses, nordestinos, paulistas, mineiros, japoneses e libaneses.” Disponível em: http://www.rondonopolis.mt.gov.br/view_conteudo.php?id=5. Acessado em: 27 de julho de 2009.

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No nosso caso, dos jornais que circulavam no período de fundação da ACIR, ou em período posterior, o único que tem um acervo organizado e mantido é A Tribuna.8 Até o mo-mento ele se constitui a única fonte jornalística do projeto, o que não exclui a possibilidade de acesso a outros jornais na medida do possível.

A primeira reportagem onde há referência a ACIR, não é propriamente sobre esta en-tidade, mas sobre uma reunião no prédio da mesma sobre a instalação de um canal de TV na cidade de Rondonópolis:

O Sr. Tarrafe Neder representante do Grupo Zaharan, (...) acertou na últi-ma quinta-feira, em reunião realizada na Associação Comercial e Indus-trial de Rondonópolis, a instalação definitiva da imagem do canal 4 – TV Centro América de Cuiabá, ficando para o dia 25 vindouro a data de início de atividades do mencionado canal televisivo.9

Durante a pesquisa em partes do jornal (1970 a 1974), ficou evidente, até o momen-to, que o espaço da ACIR sempre foi utilizado para fomento de ações em prol da cidade de Rondonópolis, e principalmente, em questões relativas à sua classe representativa – os co-merciantes. O jornal A Tribuna menciona várias vezes a atuação não somente da Associação, mas principalmente de seus presidentes, como podemos observar a seguir:

A figura impoluta do Sr. Bady Dib [Presidente da Associação Comercial] (...) acompanhou ‘pari passo’ o desenrolar da Campanha pró implantação da TV em nosso município.10

É visível no jornal a intensa discussão a respeito da vinda do canal de televisão para Rondonópolis, sem falar que mesmo depois de sua chegada ocorreu muitos problemas de transmissão de sinal, o que gerou muita reclamação por parte da população, e nesse ponto, a ACIR - representada pelo seu presidente, teve importante atuação, juntamente como os clubes de serviço da cidade como o Lions Club e o Rotary International.

A leitura que podemos fazer desse fato é que a cidade estava passando por um pro-cesso de modernização (o chamado “milagre brasileiro”) e desenvolvimento, que fazia parte de uma política econômica de Estado, mais conhecido como nacional-desenvolvimentismo11 que vinha desde o período JK e foi impulsionada ainda mais no governo militar de pós-1964. Como bem registra Esther Hamburger, os militares atribuíram “um papel estratégico à tele-visão em sua política de integração nacional” (HAMBURGUER, 2005: 21).12 Nesse período o número de aparelhos aumentou por causa do crescimento econômico em virtude da intensa

8. O jornal Tribuna do Leste (nome do jornal até 1978) circula ininterruptamente desde 07 de Junho de 1970, seu diretor e fundador foi Aroldo Marmo de Souza, tendo como redator-chefe B. Cunha. Em 1978, com a divisão territorial de Mato Grosso para a criação de Mato Grosso do Sul, o jornal ganhou a denominação de A Tribuna. Atualmente o jornal é diri-gido por Maria Janice Logrado e seu irmão Samuel Logrado.

9. Definida a instalação da TV em Roo: ASTEC trouxe técnicos. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 12/05/72, p. 01.10. Uma questão de justiça, Tribuna do Leste, Rondonópolis, 31/12/72, p. 0311. Foi no governo de Juscelino Kubitschek que ocorreu a definição dessa política econômica. Segundo Boris Fausto, “A ex-

pressão (...) sintetiza pois uma política econômica que tratava de combinar o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro para promover o desenvolvimento, com ênfase na industrialização. Sob esse aspecto, o governo JK prenunciou os rumos da política econômica realizada, em outro contexto, pelos governos militares após 1964” (FAUSTO, 2003: 427).

12. A política de integração nacional tinha como forte instrumento de poder a propaganda (cf. também: CERRI, 2002: 195-224).

industrialização, apesar de sua introdução se dar de maneira lenta no Brasil, ainda mais numa cidade do interior mato-grossense.

Outra questão importante para a cidade, em que a ACIR atuou nas negociações, foi referente à questão dos problemas de fornecimento de energia elétrica e de funcionamento da telefonia:

A Associação Comercial e Industrial de Roo, está interessada e vai promo-ver no fim do mês, com todos seus associados, em sua sede, importante reunião, na qual serão debatidos perante o gerente da CEMAT e o dire-tor do S.T.A.R, os problemas surgidos; quanto o primeiro órgão, a elevada tarifa que vem sendo cobrada. Quanto ao segundo – Serviço Telefônico Autônomo de Rondonópolis (STAR) – o vergonhoso estado de funciona-mento (novela), em mais de 400 aparelhos existentes na cidade; foi o que informou a nossa reportagem o presidente Bady (sic!) Dib.13

O interesse da Associação nas questões relativas à cidade não é neutra, desprovida de interesses pela classe. Os problemas com telefone e energia elétrica possivelmente eram algo que afetava tanto os comerciantes como a população – muitos deles com vínculos diretos na ACIR, ocupando diretorias, conselhos e etc. O problema da energia elétrica era um as-sunto, ainda nesse período, que gerava muitos transtornos por causa do seu funcionamento precário, por várias vezes a cidade ficava às escuras e sem comunicação por telefone – o que certamente causava sérios prejuízos aos homens de negócio: comerciantes e industriais.

Em matéria publicada no ano 1973, o próprio jornal tecia elogios a atuação do presi-dente da Associação Comercial, Bady Dib, fazendo menção a sua agenda de reivindicações para a melhoria dos serviços públicos e particulares prestados à comunidade:

Referimo-nos ao presidente Bady (sic) Dib, ressaltamos seus profícuos tra-balhos, frente aquela organização [ACIR], onde, através de seus esforços, foi possível conseguir com maior brevidade para a cidade de Roo a agên-cia do INPS, envidando o máximo de seus esforços, para a solução dos pro-blemas correlatos a Televisão, Cemat e Telefone pertencentes ao município, para tanto, em entendimento com o ex-prefeito, [o] gerente do B. do Brasil e Diretores das referidas organizações.14

Percebe-se que a ACIR, como representante da classe dos comerciantes e empresários, além de estar ligada às questões da cidade de Rondonópolis, tinha entre seus membros pro-tagonistas das decisões que interferiam no cotidiano da cidade, o que pode ser identificado não somente no jornal, mas nas atas da entidade e nas entrevistas que estão sendo realizadas com antigos associados. O que significa dizer que essa instituição tinha grande atuação junto ao poder municipal, passando a ter importante papel político. Seus representantes possuíam forte poder de decisão nas diretrizes a serem tomadas para a cidade, assim como outras ins-tituições, clubes de serviços e associações.

Cabe destacar aqui que os clubes de serviço atuavam juntamente com a ACIR nesse período. As reuniões e eleições desses clubes, como por exemplo, o Lions Club e ARIFE, eram realizadas na sede da ACIR:

13. ACIR: vai ouvir Cemat e STAR. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 21/01/1973, p. 05.14. ACIR elegerá nova diretoria, chapa já formada. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 04/04/1973, p. 03.

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Em reunião, realizada no prédio da Associação Comercial de Roo, no dia 16 de Abril passado, constituiu-se a diretoria do Lions Clube de Rondonó-polis, para o ano leonístico de 1973/74.15

A partir da eleição [da ARIFE – Associação Rondonopolitana de Imprensa Falada e Escrita] realizada na Associação Comercial e Industrial desta ci-dade, onde compareceu o corpo docente da classe [jornalística] em peso.16

Pode-se deduzir que o espaço da ACIR era utilizado por outras instituições, talvez, por que seus membros circulavam entre uma e outra instituição (Lions, Rotary e ARIFE)17, ou por alguma relação de amizade entre seus membros, sendo possível perceber a articulação destes grupos de interesses ao longo da história da entidade.

Em outra passagem do jornal fica explicita uma relação de amizade entre o diretor do jornal Tribuna do Leste e o presidente da ACIR, como também se pode notar que o presiden-te da Associação também era presidente do Rotary:

Entre tantas pessoas, quer católicas, rotarianas, cursilhistas, espíritas, lio-nistas etc, ressaltamos o nome de Bady Dib, não pela razão de ser nosso particular amigo, mas pelo dinamismo, pelo interesse empregado nas coi-sas públicas (...) Haja a vista o seu desempenho como presidente do Rotary Clube e da Associação Comercial e Industrial de Rondonópolis.18

As redes de sociabilidade, que podem ser observadas em vários momentos da pesqui-sa, estão para além da questão profissional e atingem caminhos muitas vezes desconhecidos para o observador, no caso o pesquisador. Somente com o tempo destinado a pesquisa e o amadurecimento de algumas idéias no decorrer desse processo é possível perceber que os discursos não são neutros, principalmente ao lidar como este tipo de fonte.

Como foi citado no início do texto, os jornais “são registros fragmentários do pre-sente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões”, quase sempre com variados interesses por trás de quem escreve e mantém o jornal (patrocinadores), muitas vezes com forte ligação com o poder instituído. Mas o exercício que devemos fazer é analisar os discursos presentes no jornal. Por exemplo, por que determinadas matérias e temas têm mais enfoque e outras são silenciadas? Por que algumas pessoas são constantemente citadas enquanto outras nem são pontualmente mencionadas? Os silêncios falam muito mais alto do que possamos imaginar, ainda mais num contexto de Ditadura Militar, com forte censura sobre aquilo que os jornais irão divulgar ou não.

Uma das questões que nos preocupou nessa pesquisa foi entender como essa insti-tuição constituiu uma representação de si perante os próprios membros, as outras entidades e a própria população, constituindo sua história como atrelada aos rumos de Rondonópolis desde o final dos anos 1950.

A preocupação de cada diretoria empossada era divulgar ainda mais o nome da enti-

15. Lions Clube é reorganizado. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 22/04/1973, p. 01.16. ARIFE: símbolo de luta. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 05/05/1973, p. 1217. O Sr. Aroldo Marmo de Souza, dono do jornal Tribuna do Leste, era presidente da Associação Rondonopolitana de Im-

prensa (ARIFE).18. Uma questão de justiça. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 31/12/1973, p. 03

dade e aumentar seu quadro de sócios, conforme entrevista do presidente da Associação de 1973 a 1976, Milton S. Antunes, à Tribuna do Leste:

4º Sendo eleito e empossado na Presidência da Associação Comercial e Industrial de Rondonópolis, conforme aconteceu. Quais suas principais preocupações para o desenvolvimento da classe?

R. 1º divulgar mais o nome da Associação Comercial e aumentar o seu quadro de sócios que é muito pequeno.19

Outra preocupação era a necessidade de se contar com uma sede definitiva para a entidade, um lugar para seus encontros e atividades administrativas:

9º Observando-se venha a ser as classe conservadora (sic) [classe empre-sarial] do município, portadora de uma apresentação justa de elogios pe-las exposições feitas não somente nas vitrinas dos estabelecimentos, assim como nas partes internas e externas dos mesmos, não mereciam também uma sede mais digna considerando-se a inexpressão da atual?

R. Sim, pelo grande comércio da cidade, merece uma sede melhor, mas por falta de união dos nossos comerciantes, temos de conterntarmo-nos com o que temos.20

Ainda na mesma entrevista podemos perceber que a agricultura e as rodovias BR-364 e 163 já se apresentavam como símbolo de desenvolvimento para o município naquele perí-odo. As estradas – corredores que ligavam Mato Grosso ao restante do país, veias que esco-avam a sua produção agrícola – eram os marcos do futuro que se desejava instituir, fazendo coro com o ideário político e econômico dos poderes instituídos na esfera nacional:

13º O desenvolvimento acentuado de Rondonópolis vem sendo apresenta-do por quais motivos?

R. Por estar situado em um entroncamento que passam as principais es-tradas do estado e pelo seu grande desenvolvimento na agricultura.21

Interessante observar que o presidente não faz referência ao comércio e a indústria, o que gera certa estranheza. Não podemos saber os reais motivos para isso, talvez por que a indústria e o comércio no município ainda estavam em vias de consolidação. Podemos supor também que para o comércio e a indústria se manterem seria primordial ter estradas para escoar a produção e para que chegassem produtos vindos de outras localidades para os comerciantes, como observamos nessa outra parte da entrevista:

14º Quem mais vem contribuindo para esse desenvolvimento, quando se nos apresenta um comércio tão apresentado?

R. O nosso governo federal com a nossa Prodoeste, porque (sic) sem estra-das, não teremos desenvolvimento.22

19. Quem é o novo presidente da Associação Comercial de Roo. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 15/04/1973, p. 1020. Idem, ibidem.21. Ibidem.22. Ibidem.

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Além destas questões mais amplas da agenda política local, regional e nacional, a Associação Comercial procurava informar por meio do jornal assuntos relativos à eleição da entidade e suas respectivas chapas. Nas páginas do periódico se acompanhava o dia-a-dia da ACIR – reuniões, eleições e encontros com autoridades políticas:

Com a presença de membros da Diretoria da Associação Comercial e In-dustrial de Rondonópolis e Associados, à entidade representativa comer-cial de nossa cidade reunirá amanhã às 19:30 (sic), em sua sede, a fim de apreciar os nomes dos futuros dirigentes bem como apresentação de chapas que concorrerão à eleição em 30/3/71, para o biênio 71/72.23

Cumprindo com dinamismo e eficiência durante o biênio 71-72, a presi-dência da Associação comercial e Industrial de Rondonópolis, o presidente Badi Dib, está convocando todos os associados para a realização da elei-ção da nova Diretoria que ocorrerá amanhã (...) na sede da entidade.24

O fato de se divulgar as eleições por intermédio dos jornais pode estar relacionada ao interesse de mostrar ao público leitor da cidade a atuação da Associação, como também fazer propaganda do desempenho da ACIR aos outros comerciantes na busca de mais asso-ciados. A vinda de mais associados significava manter a entidade em funcionamento, desen-volver cada vez mais o comércio no município e, como conseqüência, obter mais lucro, renda e desenvolver a cidade, trazendo mais investimentos e geração de empregos. Além disso, re-sultaria na sua consolidação como porta voz dos comerciantes e industriais de Rondonópolis.

Ampliar o quadro da associação era objetivo de seus membros em várias situações, como podemos perceber na seguinte matéria, publicada em 14 de março de 1971:

Falando a reportagem, o dirigente da Acir [Manoel Machado] (...) salien-tou o interesse dos seus associados com a campanha de ampliação do seu quadro social. (...) Falou ainda dos interesses, junto a SUNAB mantendo contato em Cuiabá com aquele órgão fiscalizador. (...) Nota-se que novas metas, caso o presidente continue no firme propósito de lutar, o que acre-ditamos, irá implantar várias inovações no órgão a manter, do comércio.25

Ao longo da pesquisa, sentimos que conforme mudava a diretoria da ACIR diminuía ou aumentava as matérias relativas à entidade. Teve anos que apareceram muitas reporta-gens sobre a mesma, principalmente no período de 1971 a 1973, na diretoria do Sr. Bady Dib (talvez pela amizade com o diretor do jornal). Posteriormente a esse período as reportagens sobre a Associação diminuíram consideravelmente. Esse exemplo ilustra significativamente o papel das redes de sociabilidade no processo de reconhecimento de um indivíduo, grupo social ou classe.

Como a análise nos jornais continuará até o final dos anos 1990 poderemos fazer ou-tras relações sobre o que escrevemos até aqui, o que poderá sofrer alterações. Outro desafio daqui para frente na nossa pesquisa será como lidar com as questões políticas do período (Ditadura Militar), principalmente lidando com uma história recente, com pessoas que ainda

23. ACIR (sic) reunir-se-á amanhã: assunto eleição. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 14/03/1971, p. 01.24. ACIR elegerá nova diretoria, chapa já formada. Tribuna do Leste. Rondonópolis, 08/04/1973, p. 03.25. ACIR, com novas metas”, Tribuna do Leste, Rondonópolis, 02/12/1973, p. 04.

estão vivas. O que escrever? O que silenciar? Como escrever? - essas são as perguntas que nos desafiam na tarefa de se fazer história institucional.

Bibliografia

CERRI, Luis Fernando. Ensino de História e Nação na propaganda do Milagre Econômico. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 22, n. 43, 2002, p. 195-224.

Dossiê Rondonópolis 2008: Geografia, Demografia e Economia. Rondonópolis: ACIR/Prefeitura Municipal de Rondonópolis, 2008.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2003.

LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos, in: PINSK, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.

SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. História de Mato Grosso: Da ancestralidade aos dias atuais. Cuia-bá: Entrelinhas, 2002.

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Mato Grosso e a Guerra do Paraguai: um conflito anunciado

(1852 a 1864)

ney iared reynaldo1

Introdução

A década de 1850 foi um período de importantes mudanças na navegabilidade do rio Paraguai. A partir de 1852, ocorreu o retorno da internacionalização das águas da bacia do rio da Prata2, levando as populações brasileiras e paraguaias que viviam em suas margens a fazerem dele melhor uso, ao mesmo tempo, iniciou-se uma disputa entre Brasil e Paraguai, no que diz respeito à livre circulação de navios brasileiros em toda extensão do rio, ou seja, até a sua confluência com o rio Paraná.

A problemática da livre navegação no rio Paraguai ligava-se a uma dupla questão: de um lado, ela era político-estratégica, pois envolvia a defesa, pelo Governo Imperial, da via flu-vial que melhor daria acesso das províncias litorâneas a do Mato Grosso; de outro lado, estava presente uma questão econômica, posto que esta província estava diretamente associada ao comércio da região platina.

1. Doutor em História pela UNISINOS/RS, docente do Departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis, coordenador do Curso Lato Sensu História da América Latina Contemporânea. E-mail: [email protected]

2. Quando Rosas assumiu o poder na Província de Buenos Aires (Argentina), em 1829, impôs o bloqueio do rio Paraná e usou, como fundamento jurídico, a inexistência de um tratado definitivo que regulasse a questão do uso dos rios. O re-sultado dessa política foi o isolamento do Paraguai e das províncias interioranas de Corrientes, Entre-Ríos e Córdoba, do lado argentino e, parcialmente, de Mato Grosso, já que a Província mantinha contato, ainda que deficitário, com a sede do Império, através de vias de comunicação fluviais.

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Logo após as independências, o Brasil pressionou o Paraguai pelo estabelecimento de negociações acerca da livre navegação do rio Paraguai. Segundo Kroeber (1967:105), na segunda metade do século XIX, “os rios compartilhados entre dois ou mais países passaram a constituir tema das mesas de negociação entre as potências interessadas no escoamento de suas manufaturas e manufaturados de mercadorias necessárias”.

No entanto, esses debates sobre abertura da navegação internacional pelo rio Para-guai tinham relação com outra preocupação do Império, ou seja, a integridade territorial do Estado brasileiro e, por conseguinte, a sua própria unidade. Visava a impedir que a província de Mato Grosso viesse a ser tomada por tendência separatista na área fronteiriça com as repúblicas platinas, em decorrência da distância em relação à sede do Império. Para isso, buscavam marcar presença numa região considerada estratégica para a segurança interna, o que se refletia nos discursos a favor dessa abertura e sua importância política e econômica3.

O rio Paraguai é o segundo em extensão fluvial da América do Sul. Considerado “um dos mais majestosos e de mais segura navegação do mundo, é indubitavelmente a melhor e a mais fácil entrada da província de Mato Grosso” (FONSECA, 1955:120-121), por formar um estirão, correndo na direção norte-sul. Percorre mais de dois mil quilômetros, antes de desaguar na bacia do Prata, situando-se dois terços de sua extensão em território brasileiro (1.693 km2)4. A seguir, num curto trecho de seu percurso, divide o Brasil do Paraguai, para, antes de juntar-se ao rio Paraná, transitar apenas em território paraguaio. Ao longo da parte do rio que separa os dois países se constituiu, até o final da Guerra do Paraguai, uma área de disputa e de intercâmbios, na qual nossa análise vai se concentrar.

Os desentendimentos entre brasileiros e paraguaios em relação a essa área têm sua origem no Tratado de Santo Ildefonso (1777). A principal discordância diz respeito a uma cláusula deste Tratado que reconhecia ser espanhol um território de mais de duzentos qui-lômetros que já era ocupado pelos luso-brasileiros. Na fase independente, a decisão de Juan Manuel de Rosas de bloquear os trechos argentinos dos rios da bacia do Prata à navegação internacional colocou Brasil e Paraguai lado a lado na luta pela livre navegação. Após a der-rota de Rosas em fevereiro de 1852, entretanto, paraguaios e brasileiros viram novamente o quanto seus interesses eram conflitivos no que diz respeito ao rio Paraguai e à posse das terras por ele banhadas. O Governo brasileiro, como vitorioso, sentiu-se no direito de garantir a livre navegação dos rios Paraná e Paraguai, ocupando ou apoiando a ocupação de pontos estratégicos. Por sua vez, os paraguaios, que passaram a restringir o livre trânsito no trecho do rio que passava exclusivamente por seus domínios, justificavam o controle à livre navegação do rio Paraguai, alegando questão de soberania.

3. Para maiores esclarecimentos sobre a “questão da integridade territorial que envolvia a conservação de Mato Grosso”, veja-se BECKER, B. K.; EGLER, C. A. G. O Brasil: uma nova potência na economia-mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 61.

4. De acordo com ACADEMIA DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ADESG). Navegação fluvial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1940, p. 109, o rio Paraguai é considerado rio de baixada, sua profundidade média é de 2,5 a 4 metros. É na-vegável em 90% do seu curso, o que permitiu o tráfego de embarcações de cinco pés de calado, pesando até 280 tone-ladas. Passa por Cáceres no Mato Grosso indo desaguar no Rio Paraná, aproximadamente a quarenta quilômetros ao norte da cidade de Corrientes, na Argentina. Sua jurisdição está dividida entre os 4 países, estando 375 quilômetros compreendidos entre a sua confluência com o rio Paraná e a boca do rio Pilcomayo, de jurisdição entre Paraguai e Argen-tina; 553 quilômetros entre a boca do Pilcomayo e a do rio Apa, de jurisdição paraguaia; 336 quilômetros entre a boca do rio Apa e a do Rio Negro, de jurisdição repartida entre o Brasil e o Paraguai; 48 quilômetros entre a boca do rio Negro e o marco Setentrional, que serve de limite entre o Brasil e a Bolívia, de jurisdição comum aos dois países; e 1.238 quilôme-tros compreendendo o marco brasileiro-boliviano e suas nascentes, de jurisdição do Brasil.

A unidade político-administrativa do Brasil na qual o rio Paraguai nasce e percorre seu trajeto brasileiro é o atual estado de Mato Grosso. No período imperial, era a província do Mato Grosso que vivenciava diretamente as questões fronteiriças e a disputa pela nave-gabilidade do rio Paraguai. Considerando o novo contexto que se instalara no ano de 1852, Augusto J. M. Leverger5, presidente da província de Mato Grosso, decidiu-se pela ocupação do Fecho dos Morros no lado oriental do rio Paraguai, área de suma importância para pre-tensões geoestratégicas do Estado brasileiro. Tal ato indignou o Governo paraguaio, que evo-cava o poder legítimo sobre o local contestado. A reação paraguaia foi imediata, a ponto de organizar uma força tarefa militar para expulsar os mato-grossenses. O incidente, ainda que tenha sido resolvido pelas vias diplomáticas, alertou o Gabinete Imperial da frágil estrutura da defesa no sul de Mato Grosso e serviu como um indicativo de que, naquela área, poderia iniciar-se uma guerra entre os dois países.

Antes mesmo do conflito com o Paraguai (1864-1870), já existiam elementos que evi-denciavam instabilidade na Província e que eles poderiam ser referidos como condicionantes necessários para a eclosão da Guerra do Paraguai. Assim sendo, pode-se afirmar que os mato--grossenses, situados na região de fronteira, estavam cientes de que a invasão iria acontecer a qualquer momento, só restava saber quando, pois, quanto ao local, já se supunha ser pelo rio Paraguai. Grande maioria dos habitantes da Província estava consciente dos preparativos paraguaios para um conflito, e a guerra era sentida como “anunciada”.

Em 1852, se deu a liberalização da navegação na bacia do Prata e o final, de 1864, ocor-reu a invasão paraguaia no sul de Mato Grosso. Nesse período, cresceu a importância da na-vegação no rio Paraguai para os brasileiros, tanto no que diz respeito a aspectos econômicos, quanto ao tempo despendido e à segurança do transcurso. Só para exemplificar, uma viagem de Cuiabá a Corumbá levava em média de 50 a 60 dias, enquanto que, pelo rio Paraguai, essa distância era vencida pela metade do tempo.

O conceito de fronteira é fundamental do ponto de vista teórico, vê-se a necessidade de esclarecer qual o conceito de fronteira a que está apropriando. Embora esse conceito seja difuso, tanto na retórica diplomática como em grande parte dos ensaios sociais e estudos históricos, uma de suas características é a duplicidade: fronteira foi e é, simultaneamente, um objeto/conceito e um objeto/metáfora (GRIMSON, 2000: 211). Parece haver consenso, de uma parte, de que há fronteiras físicas, territoriais e, de outra, fronteiras culturais, simbólicas. Em verdade, ambas as modalidades se misturam (CHESNEAUX, 1981).

A fronteira aqui abordada se configura preferencialmente em seu significado territo-rial. Ela será vista como expressão da dinâmica que imprime a ocupação de um determinado território por distintas sociedades. Com o conceito de fronteira, busca-se compreender, por um lado, a construção histórico-econômica de um espaço e, por outro, as relações que se es-tabelecem entre as sociedades que disputam e, ao mesmo tempo, compartilham esse espaço (SANTOS, 1979:17-35).

Sendo assim, essa noção indica algo mais do que a simples demarcação territorial. Mas um espaço geográfico, onde Estados e sociedades estão incorporando/disputando territórios

5. Augusto João Manoel Leverger (1802-1880), natural de Saint-Malô, Bretanha, França, atuou por longos anos na política mato-grossense. Após ter sido nomeado para o seu primeiro mandato como Presidente da Província, em 1851, perma-neceu mais de seis anos no poder. Retornou por duas vezes como vice-presidente e depois novamente como presidente. Em 1865, por ocasião da invasão paraguaia, defendeu Cuiabá, fez construir fortificações em Melgaço. O Governo Impe-rial, por decreto de 7 de julho de 1865, concedeu-lhe o título de barão. A convite do Imperador Pedro II, exerceu missões diplomáticas no Paraguai. MENDONÇA, R. Dicionário biográfico mato-grossense. Cuiabá: Instituto Histórico e Geográfi-co de Mato Grosso, 1971, p. 86-87.

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e onde se estão imprimindo processos sociais e organização institucional, os quais pressu-põem a vinculação dinâmica de sociedades distintas, área de contato de formações sociais diversas6.

Ao tratarmos de um espaço em que historicamente se fazem presentes disputas ou tensões7, como o que compreende as terras junto ao rio Paraguai, defende-se que nele, con-comitantemente, se processam intercâmbios comerciais, sociais e culturais, o que permite concluir que os dois tipos de fronteira identificados por Chesneuax (1981), ali, não são exclu-dentes. O que pode haver, em momentos e circunstâncias distintas, é a prevalência de um tipo sobre o outro. No caso da fronteira analisada, a situação de disputa e tensão tendeu a crescer e a se agravar.

A revisão historiográfica sobre os antecedentes da Guerra do Paraguai permite perce-ber que o tema proposto ainda não foi analisado pela história regional mato-grossense. Por conseguinte, abordagem que a historiografia nacional faz da Guerra do Paraguai sempre privi-legiou, tanto em suas origens como nos desdobramentos, aspectos que afetavam diretamen-te os interesses nacionais e internacionais. Nesse sentido, sua contribuição regional permite a possibilidade de inclusão de novos dados na interpretação histórica acerca da Guerra.

A historiografia regional contribui com vários estudos. De maneira geral, ela privilegia o período colonial principalmente. Consagra, para Mato Grosso, o papel de província im-portante para dificultar a chegada dos inimigos estrangeiros às regiões mais importantes do Brasil8. Trata do processo de ocupação do interior do Brasil como ato estimulado pelo pró-prio movimento expansionista da Coroa, reservando a Mato Grosso o papel de guardião ou consolidador das fronteiras no século XVIII, enfim de antemural protetor para regiões mais desenvolvidas, como Minas Gerais ou São Paulo9.

No que se refere à economia mato-grossense, a crise da mineração não provocou a estagnação, mas sim um rearranjo das forças produtiva, pois a manutenção de certos elemen-tos representativos do mercado interno teria levado a uma substituição de importações, em especial a substituição dos gêneros de abastecimento10.

Nesse aspecto, Lenharo (1982) argumenta como Mato Grosso foi se integrando a um mercado inter-regional com a venda de gado vacum aos mercados de Goiás, São Paulo, Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Para ele, no período de 1852 e 1864, essas atividades se for-taleceram com o deslocamento do eixo econômico que vinculava Mato Grosso ao Grão-Pará e Maranhão para o que o vinculava ao Prata (rio Paraguai). Sustenta a tese de que o capital acumulado na época do auge minerador, junto com a exploração da mão de obra escrava, foi reinvestido nas atividades agrícolas, pecuárias e no comércio intra e inter-regional.

6. CHESNEAUX, J. ¿Hacemos tabla rasa del pasado? a propósito de la historia y de los historiadores. Ciudad del México: Siglo Veintiuno, 1981.

7. VILAR, P. Iniciación al vocabulario del análisis histórico. Barcelona: Critica Grijalbo, 1982, p. 147-148.8. SILVA, J. V. da. Mistura de cores: política de povoamento e população na Capitania de Mato Grosso - século XVIII. Cuiabá:

Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1995.9. A expressão antemural, surgiu pela primeira vez nas explorações do capitão-general Antonio Rolim de Moura Tavares,

em 1751, quando de sua chegada a Mato Grosso. O termo reaparece como título da obra do visconde de Taunay. TAU-NAY, A. d’E. Augusto Leverger, Almirante Barão de Melgaço, antemural do Brasil em Matto-Grosso, com um complemen-to da lavra de Virgilio Correa Filho. São Paulo: Melhoramentos, 1931.

10. LENHARO, A. Crise e mudança na frente oeste da colonização. Cuiabá: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1982.

Corrêa Filho (1994), atento ao aspecto político-administrativo, fornece pistas de como a economia de contrabando foi se organizando na fronteira e de como foram se estabele-cendo as trocas comerciais, no século XIX, com um Paraguai isolado e pós-independente na ditadura de Francia e da política de abertura de Carlos A. e Francisco S. López11. O capital do comércio da época da mineração constituiu a formação da casa comercial em Mato Grosso. Sustenta, ainda, que, com a abertura da navegação do rio Paraguai, em 1852, o capital finan-ceiro foi introduzido na Província por meio desses estabelecimentos comerciais.

Do ponto de vista da produção bibliográfica nacional, poucos são os estudos que recuperam as investigações realizadas em âmbito regional. Mesmo assim, temos as contribui-ções de alguns autores. Para Menezes (1981) os antecedentes do conflito estavam em jogo, questões de política local, que inclusive a justificaram para seus protagonistas12.

Doratioto (2004) é um dos poucos autores atualmente que têm se preocupado em fazer uma análise mais cuidadosa do ponto de vista regional do conflito, trazendo detalhes, ainda que parciais, sobre a província de Mato Grosso13.

Quanto a historiografia paraguaia acerca dos antecedentes do conflito e a invasão do Mato Grosso. De início, percebe-se que grande parte da produção historiográfica tradicional paraguaia atribui o território que compreendia a capitania/província de Mato Grosso como extensão de território guarani. Autores como Pereira14, Sandino15 e Marco16, se utilizavam de fontes oficiais paraguaias, tais como as cartas confidenciais do presidente Francisco Solano López trocadas com seus comandados, tendo duas delas apresentado um traçado do vale do Paraguai que conservava o estabelecido no tratado de Madri, de 175017.

Também se utilizavam do determinismo geográfico. O historiador paraguaio González (1862), na segunda metade do século XIX e a serviço de seu Governo, justificava o controle total da navegação do rio Paraguai em Mato Grosso para beneficio da República do Paraguai, por acreditar que “a própria natureza e curso do rio depunha a favor de tal princípio”18.

Sobre à invasão militar do Mato Grosso pelo Paraguai, a historiografia paraguaia a jus-tifica como necessária e que o país estava preparado para enfrentar o Império brasileiro. Entre os exemplos, Benites (1906), narra os preparativos e os ataques-relâmpagos em Mato Grosso, bastante comemorados depois, em Assunção19. Baez (1990:98-105) reconhece a necessidade dos López de mudar a imagem de um Paraguai autossuficiente e isolado, para um Paraguai mais atento aos acontecimentos em seu entorno, sobretudo, com o Império brasileiro.

Dentre os outros autores paraguaios e estrangeiros, como Box (1936), revela os dife-rentes contatos que vinham ocorrendo entre os brasileiros e os paraguaios nas atividades de

11. CORRÊA FILHO, V. História de Mato Grosso. Várzea Grande: Fundação Julio Campos, 1994.12. MENEZES, A. da M. Solano Lopez, o partido Blanco e a Guerra do Paraguai. Nova Orleans: Tulane University, 1981.13. DORATIOTO, F. F. M. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.14. PEREIRA, C. Solano López y su drama. Buenos Aires: Ediciones de la Patria Grande, 1962, p. 7-8.15. SANDINO, F. B. Las pierdas territoriales del Paraguay. Asunción: La imprenta Nacional, 1963.16. MARCO, M. A. de. La Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Planeta, 1965.17. No Álbum Gráfico de la Republica del Paraguay, cuja Primeira Edição é de 1910, Mato Grosso também é tratado como

um território usurpado pelos luso-brasileiros, pois sua ocupação desrespeitava a própria doutrina que defendia o uti possidets. Segundo seus autores, esse texto ensina que os paraguaios eram donos por direito das terras além do Apa, por se tratar de uma herança jesuítica que, após a sua expulsão, teriam sido incorporadas ao patrimônio paraguaio. Tese, aliás, também defendida por Francisco Solano López.

18. GONZALEZ, Jorge D. B. Matto-Grosso, es paraguayo. El Semanario, Asunción, n. 123, 20 out. 1862.19. BENITEZ, G. Anales Diplomático y Militar de la Guerra del Paraguay. Asunción: Estabelecimiento Tipográfico de Muñoz

Hunos, 1906. t. 1.

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comércio e navegação no rio Paraguai. No tocante às relações de fronteira, afirma que teria existido, por parte de comerciantes e exportadores, “uma oposição à ação bélica, por ser pre-judicial às atividades econômicas na região”20.

Já, Rivarola (1958) traz relato sobre as atividades comerciais desenvolvidas com os ma-to-grossenses por meio da Vila Real de Concepción e o desdobramento político ocasionado pela transferência deste posto de comércio para o porto de Itapuá, mais ao sul21.

Chaves (1968) focaliza o Governo de Carlos A. Lopez, destacando as inúmeras denún-cias que ele realizou em relação à criação das colônias militares e às intenções do Governo Imperial brasileiro no que diz respeito à livre navegação do rio Paraguai22. Mesmo com a ditadura francista, houve um contínuo intercâmbio comercial com o rio da Prata e o Brasil, realizado principalmente em Pilar, Concepción e Itapuá. Para ele, apesar de sua estrutura produtiva e do seu restrito mercado interno, a economia paraguaia não podia manter-se totalmente isolada.

Como se pode observar, os conflitos entre a província de Mato Grosso e o Paraguai no século XIX ainda pode ser estudado a partir de outros referenciais e marcos temporais. O que se buscou fazer foi pensar a disputa por território entre mato-grossenses e paraguaios sobre o enfoque regional tendo como foco as águas do rio Paraguai. Para tal, recuou-se às décadas iniciais do século XIX para entender melhor o significado das mudanças nas relações após ano de 1854, momento em que o Paraguai adotou uma nova política para navegação no rio.

Tornado nação independente em 1811, o Paraguai teve, até a década de 1850, os ar-gentinos como seus principais inimigos. Mas isto não significou que as relações com o Brasil fossem plenamente pacíficas, já que a Coroa portuguesa não reconheceu a sua independên-cia e o Império brasileiro só o fez em 1844. Ao longo desse período, foram tomadas decisões importantes pelo governo vizinho que afetaram as relações de comércio na fronteira norte do Mato Grosso. Dentre elas, destacamos o fechamento das fronteiras paraguaias com o Bra-sil, determinado pelo presidente José Gaspar Rodriguez Francia em 1820; a alteração depois dessa política por Carlos Antonio López, em 1840, além da restrição ao uso internacional do trecho paraguaio do rio Paraguai, em 1854.

As disputas acerca do controle das águas do rio Paraguai não eram novas. Remonta-vam à expansão portuguesa aos territórios espanhóis no século XVIII, especialmente após a descoberta das minas de Cuiabá e a necessidade do império luso de construir caminhos que favorecessem a legitimação da posse daquelas terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, per-tenciam aos seus vizinhos ibéricos. A novidade no século XIX é que a disputa pela navegação no rio Paraguai está relacionada com a nova relação de forças que se construía dos dois lados da fronteira no contexto da formação dos estados nacionais.

Com o declínio da mineração em Mato Grosso e a diminuição da importância econô-mica da mesma para o Império português nas últimas décadas do XVIII, o comércio regional entre Mato Grosso e a região da Vila Real de Concepción tornou-se a principal atividade econômica mato-grossense. Ainda que não fosse uma atividade comercial expressiva em ter-mos de rendimentos para a Coroa portuguesa, dado que boa parte dela dava-se por meio do contrabando, do ponto de vista geopolítico cumpria o importante papel de garantir a posse

20. BOX, P. H. Los Orígenes de la Guerra del Paraguay contra la Triple Alianza. Asunción: La Colmena, 1936.21. PAOLI, J. B. R. La Economia Colonial. Assunção: Litocolor, 1986.22. CHAVES, J. C. El Presidente López. Buenos Aires: Depalma, 1968.

desse território tão cobiçado. Região periférica para os interesses espanhóis, tal qual o Mato Grosso era para os portugueses, Concepción dependia do comércio legal e ilegal com os luso-brasileiros que, por seu lado, muito apreciavam seus clientes fronteiriços.

Este comércio regional criou relações de poder que precisaram ser redefinidas a partir da década de 1820. Rodriguez Francia, em 1820, proibiu o comércio de paraguaios com os povoados luso-brasileiros ribeirinhos do rio Paraguai, dando prosseguimento à sua política de defender-se de todos aqueles que ameaçassem sua autoridade e reprimir qualquer suspeita de rebeldia e sublevação, buscando, também, fortalecer a posição de Assunção como centro político-econômico-militar da nação paraguaia.

Os comerciantes de Assunção consideravam o comércio de Concepción com os luso--brasileiros prejudicial aos seus interesses. Acusavam, também, de que a pouca vigilância do comércio pelas águas do rio Paraguai facilitava o roubo e contrabando do gado paraguaio para terras mato-grossenses. Sem entrar no mérito destas e de outras acusações, importa destacar que o crescimento de Concepción dava-se sem o efetivo controle da capital. E isso não interessava aos comerciantes de Assunção, que não lucravam com a intermediação das mercadorias, e nem ao governo paraguaio, temeroso que as idéias liberais que acompanha-vam esse comércio pudessem incentivar revoltas.

Apesar do fechamento das fronteiras, os contatos ilegais entre paraguaios e mato--grossenses permaneceram. Mas ao longo dos anos, isso representou diminuição dos lucros e aumento das perdas e custos para os comerciantes em Mato Grosso. Depois do fechamento da fronteira com a província do Mato Grosso, o comércio oficial dos paraguaios com os bra-sileiros somente realizou-se através do porto de Itapuá, localizado em Misiones, junto ao rio Paraná. Esse local de intercâmbio, situado em ponto distante da província, beneficiou mais aos comerciantes da província brasileira de Rio Grande de São Pedro. E, do lado paraguaio, os comerciantes de Assunção foram favorecidos.

Com a morte de Rodriguez Francia e a subida ao poder de Carlos A. López, em 1840, a situação passou por mudanças. Na medida em que as relações entre paraguaios e argentinos se complicavam, Carlos López buscava aproximação com o governo brasileiro, ciente de que só teria a perder se estivesse em conflito com as duas nações mais fortes da região ao mesmo tempo. O reconhecimento da independência paraguaia pelos brasileiros, em 1844, foi resul-tado dessa aproximação.

O interesse brasileiro em reconhecer o Paraguai como nação era criar obstáculos aos interesses portenhos de garantir o controle do importante caminho do Cone Sul: a bacia do Rio da Prata. Nessa conjuntura, a defesa política da independência paraguaia representava uma estratégia encontrada pela diplomacia do Império para garantir a “internacionalização” dos rios Paraná e Paraguai.

Quando Carlos Antonio Lopez proclamou guerra a Buenos Aires em 1845, o Brasil passou a acompanhar atentamente a conjuntura no Prata, temeroso de que uma vitória argentina pudesse repercutir inclusive em disputas territoriais com o Império. Mesmo não tendo formalmente declarado aliança com os paraguaios, tropas brasileiras chegaram a ser colocadas de prontidão em 1850, para uma reação caso os argentinos cumprissem a promes-sa de invadir o Paraguai. Com a destituição de Juan Manoel de Rosas em 1852 do governo da província de Buenos Aires, a abertura fluvial pelo rio Paraná, junto com o rio Paraguai, significou uma nova alternativa de escoamento de produtos naturais e recebimento de mer-cadorias para brasileiros e paraguaios.

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Nos anos seguintes à liberação da navegação, as casas comerciais de importação e exportação constituíram-se no centro dinâmico da região platina e das discussões fronteiri-ças entre Mato Grosso e Paraguai. E as tensões voltaram. Já em 1853, nas discussões sobre a elaboração de um novo tratado de comércio e navegação com o Brasil, os paraguaios passa-ram a exigir que fosse considerada, para efeito de negociação, a revisão de antigos tratados, o que poria termo a questões pendentes que vinham se arrastando desde o final do século XVIII - qual seja o já mencionado problema de livre navegação com os países limítrofes. Em 1854, a situação tendeu a se agravar e o Paraguai passou a colocar obstáculos à livre navega-ção, onerando e dificultando o trânsito de navios brasileiros pelo rio homônimo no trecho em que esse percorre seu território. A assinatura do Tratado de Amizade e Comércio entre as duas nações em 1856 deveria resolver a questão do uso das águas que serviam de fronteira, mas isto não ocorreu.

Mesmo com os esforços diplomáticos, houve um crescente aumento de tensão, da-das as ações de desrespeito de parte a parte aos acordos. Quando o governo da província de Mato Grosso decidiu, logo nos primeiros anos de vigência do tratado, pela ocupação militar da fronteira meridional com os paraguaios (ainda que não fosse uma ocupação maciça dada às precariedades das forças militares na província), deu mostras de que não confiava naquilo que fora firmado.

Acompanhar toda a movimentação paraguaia na fronteira, de modo a não serem pegos de surpresa por qualquer ação dos vizinhos, passou a ser uma das tarefas principais dos governos mato-grossenses. Para a elite política dirigente mato-grossense, o acirramento das tensões com a República vizinha significou ganhos políticos e econômicos. A província passou a receber maior atenção do governo imperial que, a partir de então, destinava-lhe maiores recursos financeiros e apoio em geral.

Notícias circularam em Mato Grosso de que o Paraguai “preparava-se para uma guer-ra”. Por sua vez, no Paraguai, crescia o temor de que os brasileiros iriam atacá-los. Quando, no início da década de 1860, o general Francisco Solano Lopez começa a traçar seus planos de ataque e defesa contra a província de Mato Grosso, também ganha força no lado paraguaio a campanha de reivindicação dos territórios “historicamente pertencentes” que teriam sido usurpados pelo Brasil. O bloqueio do rio Paraguai, determinado por Solano Lopez já presiden-te, em 1863, foi forte indicativo de que as desconfianças tinham atingido níveis irreversíveis.

Daí até a eclosão da guerra, em dezembro de 1864, foram cerca de um ano e meio em que a idéia de um conflito iminente foi deixando de ser apenas matéria de jornais, assunto de espionagem e planejamento militar, para tornar-se algo presente no cotidiano da província. O comércio com o Departamento paraguaio de Concepción foi novamente bloqueado, as dificuldades para navegar nos rios Paraguai e Paraná aumentaram, os produtos escassearam e os preços elevaram.

As trocas de acusação se intensificavam e iam além dos documentos provinciais e diplomáticos. Latifundiários brasileiros acusavam paraguaios de acobertarem escravos fora-gidos e contrabandistas de gado. Paraguaios, por seu turno, respondiam acusando que seu território era constantemente invadido e depredado por capitães-do-mato e homens a man-do dos mato-grossenses com o objetivo de recuperar escravos e gado. Enfim, o significado da fronteira cada vez mais perdia representatividade.

Medidas mais contundentes foram tomadas. Soldados brasileiros presos no lado pa-raguaio, fugitivos ou a serviço dos latifundiários, eram julgados de acordo com as leis para-guaias. Quando, em novembro de 1863, Solano Lopez se recusa a atender ao pedido de ex-

tradição de cinco militares da província de Mato Grosso, presos enquanto caçavam escravos fugidos, estava claro que as medidas diplomáticas eram cada vez menos eficazes.

As autoridades provinciais sabiam que o Governo paraguaio preparava-se logisticamen-te para invadir Mato Grosso, em resposta aos constantes desrespeitos aos limites territoriais. A estratégia adotada então foi de se preparar para o enfrentamento, militar e diplomaticamente na busca das alianças com a Argentina e o Uruguai. As relações contraditórias entre as duas nações ao longo do século XIX levarão à eclosão de um conflito no qual mato-grossenses e paraguaios, ao longo de seis anos, perderam vidas, dinheiro e redimensionou o futuro político de seus governos. A guerra era iminente e a invasão do seu território estava sendo planejada. Mais importante que o Império, foi defender que a província sentia o clima de guerra.

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O Modelo de Reforma Agrária do INCRA em Mato Grosso:

Uma análise dos assentamentos na fronteira agrícola

do Norte do Estado

odimar João peripolli1

irene Carrillo romero beber2

ana Carrillo romero GrunnenvaldT3

José TarCisio GrunnenvaldT4

helio vieir a Júnior5

Introdução

A região norte de Mato Grosso é conhecida como uma região de fronteira agrícola, de agricultura em grandes extensões, com o predomínio no desenvolvimento da pecuária e no plantio da cultura da soja. Além de produtividade esta região tem sido lembrada pelo mo-delo de desenvolvimento empreendido que imprime o ritmo de produtividade a partir da exploração e também pela devastação do meio ambiente. Aos moradores e pesquisadores desta região tem sido proposto o questionamento: é possível avançar nos processos de pro-dução e desenvolvimento nesta região? Que modelo de agricultura? É possível pensar numa perspectiva mais dialógica com o meio ambiente e com a preservação da floresta e ainda manter o crescimento empreendido nos últimos anos? Aumentar a produtividade? Que tipo de produtividade se pretende para esta região?

Neste cenário complexo se encontra a realidade contraditória dos assentamentos de projetos de Reforma Agrária do Incra do norte de Mato Grosso. Neste artigo nos propomos

1. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutor em Educação pela UFR-GS. FAPEMAT.

2. Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, Doutoranda não Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS.

3. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Sinop, Doutora em Educação pela UNICAMP. FAPEMAT.

4. Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – Campus Universitário de Sinop, Doutor em Educação pela PUC/SP. FAPEMAT.

5. ***** Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT) – Campus Universitário de Sinop, mestre em Sociologia.

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trazer alguns elementos para discussão, na tentativa de compreender como nestes espaços vem sendo gestados a partir das políticas impostas pelo projeto neoliberal para o campo e, portanto, que possibilidades são dadas a estes sujeitos do campo para produzir e se constituir com sujeitos do campo nos sentido de garantir sua sobrevivência seus modos de vida a partir da produção da terra?

Os dados preliminares aqui apresentados fazem parte da pesquisa que está em anda-mento e tem financiamento aprovado pela FAPEMAT6 (Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Mato Grosso). Os procedimentos metodológicos adotados são de natureza docu-mental e histórica numa perspectiva de estabelecer uma relação dialógica entre: os pesquisa-dores, suas compreensões e visões sobre a problemática, o campo de pesquisa, os sujeitos do campo e as sua inter relações.

Estamos numa fase introdutória no campo de pesquisa em que se faz necessário uma leitura da realidade mediada pelos dados documentais e históricos destes assentamentos, bem como uma revisão de estudos que caracterizaram este modelo de reforma agrária im-plantado nesta região.

A realização de entrevistas com os sujeitos do campo, dirigentes, líderes nestas co-munidades, secretários municipais de educação e responsáveis pela aplicação das políticas públicas para o campo nestes municípios, se constituirá numa fase importante de apreensão da realidade, buscando compreender como se caracterizam as organizações política, cultural, social e educacional, nestes assentamentos.

Como já mencionamos, estes dados são preliminares e apresentam algumas das si-tuações vividas pelos assentados (parceleiros) que foram capturadas pelo grupo de pesquisa em quatro projetos de Reforma de Agrária do Incra na Região Norte de Mato Grosso, nos municípios de Sinop, Vera, Santa Carmem, Claudia.

Mas para este artigo tomaremos para análise: a) em Mato Grosso o programa do Ban-co Mundial voltados para o meio rural/campo7, que deram origem à chamada “reforma agrá-ria de mercado”, é uma realidade8; b) os movimentos sociais voltados às questões do campo ainda encontram grandes resistências por parte do capital, para se organizarem9; mas, c) este silêncio vem sendo quebrado. Tanto que, hoje, os latifundiários (burguesia agrária) sentem--se ameaçados frente à possibilidade de terem o “sagrado” direito da propriedade privada da terra ser questionado. Às margens da BR 163 (Cuiabá/MT-Santarém/PA), a exemplo de outras rodovias estaduais, já existem diversos acampamentos de sem-terra liderados/organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

6. O Projeto de pesquisa: Educação do campo e os direitos da criança: as relações constitutivas nas escolas dos Assenta-mentos da Região Norte de mato Grosso é financiado pela FAPEMAT, é coordenado por Ms. Irene Carrillo Romero Beber, na equipe de pesquisadores participam: Dra. Jaqueline Pasuch ( UNEMAT), Dr. Odimar Peripolli ( UNEMAT), Dr. Alceu Zóia ( UNEMAT), Ms. Hélio Vieira Júnior (UNEMAT), Ms. Ivone Cella (UNEMAT), Dra. Ana Carrillo Romero Grunnen-valdt (UFMT- Sinop) e Dr. José Tarcísio Grunnenvaldt (UFMT- Sinop), Romário Sidrone de Souza (bolsista Fapemat).

7. Alguns autores ressaltam a expressão “campo” em substituição ao “rural”, concebendo-o como um espaço social com vida, identidade cultural própria e prática compartilhadas por aqueles que a vivem e não mais como um espaço territo-rial, demarcador de área (FERNANDES, 2002).

8. Começaram a ser criados durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002). Hoje, quase todos os municí-pios do Estado têm assentamentos de Reforma Agrária.

9. Talvez essa seja uma das razões para que o norte de Mato Grosso seja conhecido como “terra do silêncio” (BECKER, 1998).

Os assentamentos de Reforma Agrária do Incra10 na região amazônica foram criados na década de 1990 durante o governo de FHC (1985 – 2002), na perspectiva de desmobilizar os movimentos sociais que se punham em marcha frente às muitas crises desencadeadas pelo projeto em curso/neoliberal, em detrimento dos interesses da classe trabalhadora, tanto do campo quanto e da cidade11.

Esta prática de “distribuir” terra (longe de uma proposta de Reforma Agrária) vem materializar as políticas agrária, agrícola e educacional impostas pelo Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial (BM) nos países pobres, sobretudo América Latina, Ásia e África. Ou seja, estes assentamentos de Reforma Agrária obedecem e refletem a política fundiária imposta pelo Banco, qual seja, voltada para atender os interesses do capital. Capital esse que se move em direção a novos mercados, extrapolando fronteiras físicas, políticas e culturais do planeta. Estamos, portanto, na rota/caminho que vem sendo construído pelo mais novo projeto do capital para o cam-po, a terra, única e exclusivamente, vista como mercadoria.

Estamos falando de um programa fundiário, imposto de fora para dentro, e que tem como objetivo implantar e consolidar o projeto neoliberal no campo. Um projeto de Refor-ma Agrária que venha ao encontro dos interesses do capital, terra de negócio; em detrimento dos interesses dos trabalhadores que buscam na terra um meio de subsistência, terra de tra-balho (MARTINS, 1985).

Trata-se, portanto, de um projeto burguês de sociedade que vem sendo plantado há bastante tempo. Na perspectiva de Marx e Engels (2002: 43) a compreensão desse fenômeno está no fato de que, a burguesia, “impelida pela necessidade de mercados sempre novos, [...] invade todo o globo terrestre”. O que deve ser visto como uma forma do capital efetivar o projeto hegemônico de sociedade através da mundialização do capital.

Sampaio (2004, p. 13), ao se referir ao programa do BM para o campo, diz que este,

após décadas de tentativas de substituir a reforma agrária por programas de desenvolvimento rural desenhados com o intuito precípuo de evitar a desapropriação em massa de terras declarou-se convencido da necessida-de de alterar a estrutura fundiária dos países latino-americanos.

Esta política, pretensamente dita de “ajuste estrutural”, defendida pelo BM, têm es-timulado, segundo Mendonça e Resende (2004:07), a privatização das terras públicas e co-munitárias, bem como das florestas e das águas. É importante perceber que as atenções do BM estão direcionadas e voltadas mais para o campo. Isso se deve ao fato de que as maiores regiões concentradoras de recursos naturais – como água, terra, minério e biodiversidade – estão justamente no campo. Portanto, estas regiões passaram a ser o centro das políticas de agências financeiras internacionais. O que nos leva a concluir que não é por acaso que, hoje, em nível mundial, os principais projetos do BM estejam voltados para o campo.

Dentro das políticas fundiárias para o campo, os principais programas do BM incluem, entre outros aspectos: a privatização de terras públicas e comunitárias; a mercantilização da

10. Ao me referir “do Incra” quero apenas distingui-los dos assentamentos provenientes dos movimentos sociais ligados ao campo.

11. Mais de 3 milhões de empregos destruídos nos anos 90 (MATTOSO, 1999).

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reforma agrária; o cadastro/georreferenciamento dos imóveis rurais; o mercado de terras e a integração dos camponeses ao agronegócio (MENDONÇA e REZENDE, 2004).

A crítica mais severa ao programa do BM em relação à questão fundiária está no fato de que o Estado, ao abrir mão da sua obrigação de promover a desconcentração fundiária por meio da distribuição da terra, a entrega ao mercado. O que implica em dizer que o controle do espaço agrário fica nas mãos das grandes empresas agropecuárias nacionais e internacionais, ou seja, aos grandes grupos econômicos. Neste caso, O agravante é que, ao abrir mão dessa obrigação, a deixa por conta do mercado. Contudo, o mercado não leva em consideração a questão da função social da terra12, que é o que se propõe quando se argu-menta e se defende uma proposta de Reforma Agrária de fato, voltada aos interesses dos trabalhadores em terra.

A reforma Agrária na Região Norte de mato Grosso

A ideologia do BM teve maior impacto no Brasil durante o governo Fernando Hen-rique Cardoso (1995 – 2002). Este projeto de reforma agrária encampado pelo governo fi-cou conhecido como “reforma agrária de mercado”. Um programa que se caracterizou pelo estímulo às transações de compra e venda terra, em detrimento das desapropriações� dos latifúndios por interesse social, prevista pela Constituição Brasileira (1988). O governo, na tentativa de justificar este tipo de política, usa dos seguintes argumentos: lentidão dos pro-cessos de desapropriações, superestimação dos preços a serem pagos aos donos dos imóveis desapropriados e os altos custos dos assentamentos.

As principais características da proposta de “reforma agrária de mercado”: o assen-tamento de famílias sem terra como política social compensatória; a “estadualização” dos projetos de assentamento, repassando responsabilidades da União para os estados e mu-nicípios; a substituição do instrumento constitucional de desapropriações pela propaganda do “mercado de terras”; valorização excessiva das terras improdutivas (forma de premiar o latifúndio); endividamento dos trabalhadores rurais; condições precárias de sobrevivência e abandono das áreas; denúncias de corrupção, etc.

Os dados preliminares levantados dão conta de como este modelo foi implantado nesta região. Como nos municípios pesquisados este modelo foi implementado a partir da desapropriação e compra de grandes fazendas de propriedade ligadas a grandes empresas para viabilização destes assentamentos. Porém nos últimos anos tem sido transferido a res-ponsabilidade em viabilizar as condições de prover educação e saúde para estes sujeitos que vivem nestes assentamentos.

O processo de favorecimento aos latifundiários dá-se da seguinte forma: muitos deles, com suas terras improdutivas, de má qualidade, mal localizadas, endividados, puderam se desfazer destas áreas, ou seja, vendê-las. Além do preço das terras terem sido supervaloriza-dos, foram beneficiados com pagamento à vista e com dinheiro público. Um bom negócio para quem tinha suas terras, grandes áreas improdutivas, sujeitas às “invasões”.

As críticas a este se projeto se justificam, uma vez que, ao atribuir ao mercado a função da “democratização ao acesso à propriedade da terra”, exime o Estado de suas atri-

12. Marés (2003) traz importante contribuição sobre a função social da terra.

buições legais, qual seja, a desapropriação dos latifúndios por interesse social conforme a atual Constituição Brasileira (1988). O financiamento público, para a aquisição de terra, força a valorização do latifúndio improdutivo. Portanto, apresenta-se, na realidade, como uma forma camuflada de ajuda beneficiando a grande propriedade. Em síntese, esta proposta de “reforma agrária de mercado” tem negado o acesso aos trabalhadores sem terra o direito de sua conquista e/ou nela permanecer.

Há que levar em conta que a agricultura, com todos os avanços tecnológicos vem ex-perimentando significativas transformações, principalmente nos últimos anos, não há como se negar. Os recordes na produção de grãos é um fato ao final de cada safra, principalmente nos últimos anos, principalmente de grãos (soja, milho...). Porém, o campo, nesta região, man-tém seus principais traços marcantes: o latifúndio e a monocultura. Traços que vêm acompa-nhando nossa história há bastante tempo, promovendo um crescente e contínuo processo de expropriação/exploração dos trabalhadores que o capital chama de êxodo.

Os relatos que seguem, falas, depoimentos, contemplam a realidade dos diferentes as-sentamentos da região Norte do Estado. O que os caracteriza é a forma de abandono em que se encontram. Criados pelo Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (INCRA), na década de 1990, estão sob custódia (responsabilidade) do Estado e/ou dos municípios.

Ao que se pode perceber nestas falas dos assentados/parceleiros, a política fundiá-ria proposta pelo projeto neoliberal, financiada pelos organismos financeiros internacionais (BIRD, BM, FMI) impede a realização ou a efetivação de uma Reforma Agrária que venha, de fato, atender os interesses dos trabalhadores do campo. Ou seja, uma reforma Agrária que consiga promover uma transformação social no campo. Ficando evidenciado nos modos de produção desenvolvidos nestes assentamentos, uma reprodução do modelo de agricultura que predomina na região. Sem apoio, nem linhas de financiamento acessíveis a todos, ficam refém da própria sorte e sobrevivem como podem. Não se consegue perceber nas nossas andanças uma evidencia de uma política pública que garanta à assistência a permanência deste sujeito no campo o que apresentaremos a seguir são algumas histórias de vida dos que teimam em permanecer na terra.

Aqui a maioria tem que trabalhar nas fazendas vizinhas, porque o que agente produz é muito difícil ser vendido... é muito difícil produzir, agente só consegue manter, uma roçinha de mandioca e umas galinhas no terrei-ro. (fala de assentado/parceleiro)

Esta fala é representativa da condição de vida em que são submetidos estes parcelei-ros. Ao assumirem estes lotes, muitos casos florestas, ou áreas degradadas o que inviabiliza a produção sem recursos para realizarem o investimento que a terra necessita. Quando produz alguma coisa as longas distâncias dos espaços urbanos dificultam e oneram a comercialização do que é produzido.

Você aqui se procurar encontra lote a troco de uma moto, um carro velho. Vai depender da vontade que ele tenha de ir embora. O pessoal do Incra fica muito tempo sem aparecer por aqui, sem dar assistência.

Os que não conseguiram abrir seus lotes, vendem e buscar viver em outro lugar ( entrevista com um líder do assentamento)

Este depoimento de um dos líderes no assentamento demonstra como os parceleiros estão submetidos a sua própria sorte, quem cansou de lutar, desiste e vende o seu lote pelo

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preço que encontrar e vai buscar trabalho em outro lugar, abandonando o sonho de viver da terra.

[...] Eu e meu pai terminados de abrir nosso lote no machado, plantamos pasto e agora conseguimos um dinheiro do PRONAF e compramos vacas e continuamos a trabalhar em fazendas para comprar mais gado... temos três anos de carência, se agente pagar em dia podemos pegar mais dinhei-ro do banco. [...] (parceleiro/ assentado)

Nesta outra fala fica evidenciado que os que resistem e mantém seus lotes produti-vos, adotaram o modelo da monocultura, ou da pecuária. Além buscarem sua subsistência em empregos em grandes fazendas. Conseguiram acessar alguns recursos do PRONAF, mas estes são insuficientes para investir na propriedade e manter as condições de sobrevivência familiar. Neste sentido optam por investir todo os recursos na propriedade e manter seus empregos como uma renda a complementar.

Neste outro exemplo vemos outra situação diferente que também demonstra em que condições estes assentados conseguem manter sua terra e sobreviver

Nós juntamos eu meu marido e meu filho, com dois lotes agente consegue sobreviver... abrimos enquanto podia... agora eu sou professora, meu filho trabalha numa fazenda e meu marido fica no sítio cuidando... nós esta-mos comprando gado.

Em diversos contextos a realidade se reproduz o assentado busca a sobrevivência numa renda complementar e tem no modelo da agricultura voltada para o agronegócio uma referencia para produção e subsistência na sua propriedade.

Considerações finais

Para concluir podemos dizer que as realidades vividas por estes sujeitos do campo, são de quem resiste por acreditar em dias melhores. Por amor a terra e acreditarem na força de seu trabalho, buscam a sobrevivência a qualquer custo complementando a renda e continu-am a acreditar em dias melhores e que esta terra lhe garantirá no futuro a condição de viver nela e a partir do que ela produz.

Este estudo que está na sua fase inicial pretende trazer a tona estas realidades e des-mistificar alguns pré-conceitos a cerca do assentado que recebe a terra, vive nela, usa o recur-so do governo e vende comercializa a terra que recebeu. Não negamos que esta situação de comercialização dos lotes acontece, mas queremos evidenciar também as histórias de vida de sujeitos que não medem esforços para tornar sua terra produtiva e dela obter renda.

Sendo que este modelo de reforma agrária de mercado implantado nestes assenta-mentos, os parceleiros se vêem obrigados a reproduzir o modelo de agricultura que predo-mina nesta região, a monocultura voltada para exportação e todos os seus esforços é para obterem sucesso neste modelo.

Bibliografia

BECKER, Bertha K. Amazônia. São Paulo: Ática, 1998.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Diretrizes de uma cartilha. In: CARLDART, Roseli Salete;

MARTINS, José de Sousa. A militarização da Questão Agrária no Brasil (terra e poder: o proble-mas da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra.Porto Alegre: PENA – Composição e Arte, 2003.

MATTOSO, Jorge. O Brasil desempregado: como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.

MENDONÇA, M. Luisa e RESENDE, Marcelo. As Políticas do Banco Mundial são Iguais em Todo Mundo. In: MARTINS, Mônica Dias. O Banco Mundial e a Terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004.

SAMPAIO, Plínio de Arruda. Prefácio. In: MOTTA, Márcia (org.). Dicionário da Terra. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 2005.

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A diversidade étinico-racial no ensino de História

osvaldo marioTTo Cerezer1

A necessidade de investigação sobre tal temática teve origem nos estudos realiza-dos em sala de aula na disciplina de Estágio II sobre a Lei 10.639/03 (que tornou

obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana) e Lei 11.645/08 (substitui a Lei 10.639/03, incluindo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena). As dis-cussões realizadas sobre as propostas e objetivos das referidas leis, demonstraram que a mes-ma era desconhecida de grande parte dos acadêmicos do 7º semestre do Curso de História. Por outro lado, sentimos a necessidade de explorar, juntamente com as atividades do estágio supervisionado, qual a compreensão/imagens sobre o negro e o indígena que os alunos do Ensino Fundamental e Médio possuíam.

O universo de escolas pesquisadas contemplou àquelas em que os acadêmicos do Curso de História desenvolvem as atividades de observação de aulas, como requisito parcial para as atividades do estágio supervisionado. Nestas, utilizando-nos de questionário aberto, aplicamos questões sobre racismo e preconceito e sobre as imagens dos alunos a respeito do negro e do índio na sociedade atual, para uma amostragem de 95 alunos.

Sem pretender abarcar a amplitude e complexidade das temáticas que envolvem a diversidade étnico-racial, o estudo aqui exposto delimita-se a discutir as imagens sobre o negro e o índio pelo universo de alunos pesquisados. É certo, contudo, que os dados aqui apresentados não dão conta de compreender a complexidade e diversidade de concepções

1. Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT. Mestre em Educação, Departamento de História Campus de Cá-ceres. A pesquisa não contou com financiamento.

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e imagens que os alunos das escolas dos municípios pesquisados possuem a respeito do ne-gro e do índio. No entanto, estes dados nos dão uma idéia de como ainda é problemática a questão étnico-racial e cultural, apresentando-nos uma construção imaginária que pode ser um reflexo de uma realidade social ainda maior, demonstrando a necessidade de uma prática pedagógica democrática, livre de preconceitos e estereótipos por parte dos professores de História no trato das questões étnico-raciais.

Atualmente, como fruto das discussões lançadas pelas leis 10.639/03 e 11.645/08, mui-tos estudos e publicações têm se preocupado em discutir a questão étnico-racial no Brasil. A todo o momento, seja na mídia, nos congressos e eventos ao longo do país, ou nas pesquisas e nos mais diversos materiais publicados, ressalta-se a necessidade de um conhecimento mais amplo e detalhado sobre a situação do negro e do índio na sociedade brasileira, da sua história e cultura e da sua participação na construção da nossa sociedade.

Sabemos, no entanto, que apesar da temática étnico-racial ter se transformado em assunto polêmico e presente nas mais diversas instâncias da sociedade brasileira, não raro, boa parte das produções e discussões tratam o tema de forma simplista e muitas vezes, este-reotipada. Por outro lado e, principalmente após a aprovação das Leis 10.639/03 e 11.645/08, encontramos também excelentes pesquisas e produções que auxiliam na compreensão do processo de construção histórica das problemáticas que envolvem a questão étnico-racial no Brasil, transformando-se em ferramentas importantes na luta pela transformação da desi-gualdade e exclusão históricas a que a população negra e indígena é vitima há muitos séculos.

Apesar do crescente numero de publicações e da melhoria das analises por elas pro-duzidas, boa parte destas produções são do conhecimento de um numero ainda limitado de pessoas, geralmente ligados aos cursos universitários, associações, ONGs e demais institui-ções preocupadas com os rumos tomados pela questão étnico-racial. A ampliação do acesso ao conhecimento produzido e publicado no Brasil e em outros paises, torna-se essencial para que mais pessoas, em especial os professores, possam tomar conhecimento e, a partir disso, possam construir subsídios para melhor compreender a questão étnico-racial com o intuito de proporcionar condições concretas para o desenvolvimento de ações visando à superação da exclusão, do racismo e do preconceito contra o negro e o índio.

Nesse contexto, é impossível pensar na superação dos problemas relacionados à ques-tão étnico-racial no Brasil, sem pensar no papel político e social representado pelas institui-ções de ensino no processo de construção de uma educação pautada pela preocupação com a exclusão, marginalização e com o preconceito e racismo presentes e atuantes no seio social. Ao mesmo tempo, é impossível pensarmos na contribuição das instituições de ensino na luta contra o processo de discriminação, exclusão e silenciamento da história e cultura negra e indígena no Brasil, sem nos questionarmos sobre o professor que atua nessas instituições e, principalmente, sem nos preocuparmos com a sua formação inicial e continuada.

Pensar nessas questões, nos traz à tona a preocupação em compreender como a es-cola tem atuado legitimando determinados conhecimentos/saberes através do seu currículo e das práticas pedagógicas nela desenvolvidas, silenciando e excluindo dos seus estudos e debates a história, a cultura e as práticas pertencentes aos grupos historicamente marginali-zados.

A necessidade de compreender essa realidade vem acompanhada da constatação de que é necessário um grande investimento numa formação docente multicultural que questione as tentativas de homogeneização que estão presentes nas políticas publicas e, em especial, nas políticas educacionais atuais. Para isso, a formação docente necessita investir

na formação de profissionais capazes de questionar os conhecimentos e práticas legitima-das provendo-os de “contradiscursos”, (MCLAREM E GIROUX, 2000), capazes de entender e combater as práticas dominantes, incluindo nos estudos desenvolvidos nas instituições de ensino e em seus currículos, os saberes e conhecimentos específicos do local e cotidiano dos alunos pertencentes às camadas populares.

Em pesquisa encomendada à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), intitulada Pre-conceito e Discriminação no Ambiente Escolar2 (2009), realizada em 501 escolas públicas de todo o país, entrevistando alunos, pais, diretores, professores e funcionários, foi constatado que 99,3% das pessoas pesquisadas possuem algum tipo de preconceito em relação às ques-tões étnico-raciais, de condição econômica, gênero, orientação sexual, de território e de idade.

A pesquisa mostra ainda, que os maiores índices de rejeição estão ligados às pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial (deficientes mentais), seguido pelos homos-sexuais, ciganos, deficientes físicos, índios, pobres, favelados, moradores da área rural e negros.

Os dados apresentados demonstram um quadro extremamente preocupante, pois se trata de uma pesquisa feita em escolas de todo o Brasil, espaço este que possui como principal papel social e político a formação de cidadãos conscientes e críticos em relação à sociedade em que estão inseridos e a diversidade que a mesma apresenta. Ao tomarmos conhecimento desses dados, certamente muitos questionamentos nos vem à mente: o que está errado com a escola? De quem é a culpa por tal realidade, dos professores ou dos pais? Existe de fato um culpado?

Tentar dar uma resposta que satisfaça ou que aponte um único culpado seria um grande equivoco. A compreensão dos dados apontados pela pesquisa precisa ser buscada por meio do processo de formação histórica da sociedade brasileira, da formação cultural e intelectual dos membros da sociedade da qual provém o público escolar (aqui compreen-dido como todos aqueles que, direta ou indiretamente, possuem relação com a escola: pais, alunos, professores, funcionários, sociedade). Os dados apresentados refletem uma sociedade que apesar dos avanços e conquistas significativas alcançadas nas últimas décadas em relação à diversidade e aos direitos humanos, ainda apresenta uma carga pesada de preconceito e discriminação em relação às diferentes formas e expressões da diversidade.

A realidade apontada pela pesquisa vem sendo amplamente debatida em diversos campos do conhecimento, sendo apontada como um dos principais fatores que influenciam os conflitos presentes na atualidade, tanto na escola como na sociedade como um todo. Esse é um dos grandes desafios postos aos educadores e aos professores de História em particular, pois implica o desenvolvimento de posturas de compreensão sobre a problemática e o de-senvolvimento de ações voltadas ao tratamento e ao diálogo constante com uma sociedade composta por um universo plural amplamente diversificado e instável.

Historicamente, a escola sempre teve dificuldades em lidar com as diferenças em seu interior, uma diferença marcante, incômoda e conflituosa. Assim, a escola enquanto insti-tuição de ensino colabora na manutenção da exclusão a partir do momento em que a di-versidade cultural nela exitente não é reconhecida e valorizada. Segundo José Ricardo Oriá Fernandes, “[...] a escola brasileira ainda não aprendeu a conviver com essa realidade e, por

2. Disponível em: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/06/17/materia.2009-06-17.8057908621/view. Acesso em 19. jun. 2009.

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conseguinte, não sabe trabalhar com as crianças e jovens dos estratos sociais mais pobres, constituídos, na sua grande maioria, de negros e mestiços” (FERNANDES, 2005:379).

A escola e, em particular, o ensino de História, possuem o compromisso ético e políti-co de reconhecimento, valorização e respeito a toda expressão e/ou manifestação da diver-sidade étnica-racial e cultural. A ênfase dada ao ensino de História neste trabalho se justifica pelas abordagens possíveis que a disciplina pode proporcionar às analises referentes à for-mação da sociedade humana e à construção de diferenças, preconceitos, racismo e exclusão social, oriundos do processo de formação histórica das sociedades.

A História, talvez mais do que qualquer outra área das ciências humanas, possui con-dições concretas de analisar, compreender e justificar os “porquês” da construção do “outro” e quais os mecanismos usados para tal. Nesse sentido, questionar as práticas pedagógicas de-senvolvidas pelos professores no interior do espaço escolar torna-se fundamental para que a mesma possa ser encarada e desenvolvida visando à inclusão, o reconhecimento e o respeito à diversidade representada pelos sujeitos participantes da formação oferecida nesse espaço.

Imagens dos alunos do ensino fundamental e médio sobre o negro e o índio

Partimos da premissa de que a realização do estudo da temática aqui apresentada é necessária não apenas para a formação inicial e continuada dos professores de História, mas e principalmente, para que a mesma sirva de inspiração para o desenvolvimento de ações concretas através da prática pedagógica dos professores para o reconhecimento, valorização e respeito à diversidade étnico-racial e cultural. Para que haja de fato um trabalho voltado à superação dessa problemática em nossas escolas, assim como para o desenvolvimento da reflexão histórica sobre o assunto, torna-se necessário desenvolver um diagnóstico baseado em dados concretos, a partir de investigação com o publico escolar.

De nada adianta falar em racismo, preconceito e discriminação em nossa sociedade se não conhecemos como estas questões se manifestam no interior do espaço escolar. Ao mesmo tempo, a busca pela compreensão e superação destas problemáticas, não alcançará importância se não as usarmos como ponto de partida para as nossas investigações e para o desenvolvimento de ações pedagógicas concretas voltadas ao combate a toda e qualquer forma de discriminação e exclusão. Afinal de contas, o racismo, a discriminação e o precon-ceito não são problemas externos à escola.

Nesse sentido, a realização da pesquisa justificou-se pela importância dessa temática no cenário educacional do estado de Mato Grosso, tendo em vista a forte presença da diver-sidade étnico-racial na formação da sociedade mato-grossense, principalmente da presença de grande número de grupos indígenas e da presença significativa do preconceito, discrimi-nação e da exclusão social.

Do universo de respostas obtidas, conseguimos um conjunto significativo de dados reveladores sobre a temática pesquisada. A primeira questão aplicada aos alunos do Ensino Fundamental e Médio, trazia como indagação: Você se considera preconceituoso em relação ao negro e ao índio? Sim? Não? Justifique.

As respostas para essa questão nos trouxe a constatação de que, com exceção de 02 (dois) alunos, todos se consideraram sem preconceito em relação ao negro e ao índio. No

entanto, ao responderem as outras duas questões: Quem é o negro para você? e, Quem é o índio para você?, a presença do racismo e do preconceito, assim como do estereótipo, se fizeram presentes, contrariando as respostas dadas para a primeira pergunta. Os dados nos apontam também para a dificuldade de compreensão e/ou aceitação sobre a presença do preconceito e a discriminação na formação dos sujeitos. Concluímos também, que as ima-gens sobre o negro e sobre o índio correspondem, em grande parte, com as imagens que circulam no imaginário social brasileiro.

No conjunto de respostas obtidas sobre a questão: Quem é o negro para você?, en-contramos algumas representações reveladoras, como: “o negro é uma pessoa qualquer, um ser humano, não tenho nada contra; não existe negro, pardo, moreno ou branco, todos são iguais, ser negro é ser forte e inteligente; o negro é uma pessoa igual a qualquer um, podendo ser uma pessoa boa ou ruim, isso depende de cada um; o negro para mim deve ser tratado como todas as pessoas, eles devem ter propostas em empregos, deve estudar sem as pessoas discrimi-narem, ele deve ser como nós, com um futuro repleto de conquistas; o negro é uma pessoa que vive com muito preconceito por ele ter uma cor diferente é difícil até arrumar emprego só pela cor; o negro para mim é uma pessoa importante em nossa sociedade porque temos traços em nossa cultura que vieram dos negros; é uma pessoa que sofreu no passado mas no presente é uma pessoa que luta pelos seus direitos; negro pra mim sou eu porque eu sou negra e não me considero uma preconceituosa em relação ao negro e ao índio”.

A preocupação com os negros que são discriminados por causa da cor e origem são aspectos recorrentes em muitas respostas obtidas. As imagens sobre o negro representam algo comum na sociedade atual onde, ao mesmo tempo em que muitas pessoas se dizem livres do preconceito, o mesmo se manifesta em atos e concepções, às vezes em formas sutis, mas que carregam a marca de uma herança histórica profundamente enraizada no imagi-nário social, representando a continuidade de uma relação de submissão, inferioridade e de dificuldade de aceitar o negro, sua história e cultura.

O conjunto de respostas acima demonstra uma preocupação com a questão do negro na atualidade que, apesar das lutas pelo reconhecimento, respeito e inclusão na sociedade e na história brasileira, parte significativa da população negra ainda sofre com a discriminação racial e, consequentemente, com a exclusão social.

Encontramos também, respostas que nos apresentam uma diversidade significativa de estereótipos, preconceito e discriminação em relação às populações negras. Vejamos al-gumas: “é uma pessoa muito negra, de cabelo grenho ou liso como o índio; o negro pra mim é uma pessoa alegre, que gosta de dançar, que faz comidas deliciosas e trabalha bastante; para mim o negro é uma pessoa boa, inteligente e muito educado e pode ser mais legal do que os brancos; não existe negro apenas bronzeado demais; é uma raça maravilhosa, é uma cor linda. Minha cor é parda, mas não gosto de falar que sou parda, falo que sou morena; para mim o negro é a mesma coisa de outras pessoas. Todas as pessoas negras que eu conheço são boas, trabalhadoras, enfim, são capazes de realizar atos bons.

Em relação aos povos e culturas indígenas, as respostas apresentam concepções seme-lhantes, em certo sentido, às respostas dadas sobre o negro, como por exemplo, a constatação de que os índios possuem uma cultura e religião diferente; que sofreram no passado e ainda sofrem preconceito na atualidade, que há a presença de muitos traços das culturas indígenas na formação da sociedade brasileira, ou então, a defesa dos direitos indígenas e a necessidade do respeito para com as suas culturas, etc., como demonstram as respostas abaixo: “os índios são pessoas com culturas diferentes e que deveriam ter mais direitos para estudar, etc.; o índio para mim é uma pessoa que veio de uma cultura diferente e por serem muito inocentes foram

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facilmente escravizados ou excluídos da sociedade; o índio para mim é também muito impor-tante, também temos muitos traços culturais do índio, afinal eram eles que já estavam aqui na descoberta do nosso país; o índio vive em lugares diferentes, tem suas culturas e danças e tam-bém outra maneira de sobrevivência; índio pra mim é uma pessoa que cuida da natureza, que gosta dos animais, rios e também é uma pessoa muito discriminada; é uma pessoa diferente porque tem religião diferente, costumes diferentes e vive de forma diferente; é uma pessoa que sofreu no passado mas hoje vive em condições melhores do que muitos brancos.

As imagens que representam uma compreensão estereotipada e preconceituosa em relação ao índio estão presentes em muitas respostas obtidas pela pesquisa, demonstrando que há ainda uma grande dificuldade de aceitação do “outro”, os indígenas e sua diversidade cultural, principalmente o reconhecimento de que são povos que possuem uma história e cultura distinta dos demais grupos que compõem a sociedade brasileira.

Algumas respostas são claras em relação aos estereótipos e preconceitos em relação aos indígenas, como: “foram os primeiros habitantes do Brasil, os principais defensores da flo-resta; o índio é uma pessoa que mora nas matas da Amazônia, é uma pessoa que vive da caça natural sem prejudicar a natureza; são pessoas que vivem na mata que produz o seu próprio alimento; o índio para mim não são pessoas normais porque eles pra mim tem que viver lá nas florestas e eles estão saindo de lá para as cidades e usando coisas que nós criamos. Comple-menta o mesmo aluno: Por que o índio ele não trabalha para comprar muitas coisas que eles têm como barco, carro, motocicleta e nós pagamos impostos para dar estas coisas pra eles; o índio é uma pessoa que mora numa toca de palha e usa penas de aves e mata animais para se alimentar; o índio é para mim uma pessoa “quase normal”, só é mais selvagem e as vezes carnívoro; índio pra mim é uma raça muito importante. Eles descobriram o Brasil, mas não passaram no papel”.

Constatamos que as imagens e conceitos sobre os povos indígenas e sua diversidade cultural, estão carregados de estereótipos e preconceitos, construção estas que fizeram e fazem parte de história da formação da sociedade brasileira. Além dos estereótipos e precon-ceito, o índio “parece” representar uma ameaça à sociedade quando nos defrontamos com as respostas que afirmam “o índio para mim não são pessoas normais(...) eles tem que viver lá nas florestas e eles estão saindo de lá para as cidades e usando coisas que nós criamos”; ou então, “o índio não trabalha para comprar muitas coisas que eles têm como barco, carro, motocicleta e nós pagamos impostos para dar estas coisas pra eles”, e “o índio é para mim uma pessoa “quase normal”, só é mais selvagem e as vezes carnívoro”.

Diante de respostas complexas e difíceis de lidar como estas, questionamos: qual o papel do professor de História frente a este cenário?; de que forma podemos atuar para rever-ter um problema tão antigo e complexo em nossa sociedade?; será que estamos capacitados para perceber, entender e atuar visando a construção de imagens e conceitos livres de este-reótipos e preconceitos.

Tantas perguntas, tantas duvidas, incertezas e angustias. A única certeza que precisa-mos ter é a de que a escola e a educação de forma geral possuem a responsabilidade ética e política de desenvolver um trabalho que possa levar o aluno a construir um conhecimento em que esteja nele incluídos a constatação de que as diferenças existem e que precisamos compreendê-la como algo especifico, portanto, diferente. A compressão de que a história da nossa sociedade comporta uma diversidade étnica e cultural extremamente importante, talvez seja o primeiro passo para que o reconhecimento e o respeito ao “outro” e sua diver-sidade seja algo possível de construir através do trabalho desenvolvido pelos professores em sala de aula.

Candau (2008), tomando como referência os estudos de Peter McLaren (1997), ba-seados no multiculturalismo crítico3, defende a necessidade de estudos e ações baseados na perspectiva intercultural que pretende articular as diferenças, estabelecendo um diálogo en-tre os diferentes grupos sociais e culturais, favorecendo ações de reconhecimento do “outro”.

Para a autora, é necessário

Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos pro-vocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. A pers-pectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade demo-crática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade. (CANDAU, 2008:08).

Os dados obtidos pela pesquisa apresentam características que apontam para a di-minuição do preconceito e da discriminação em relação ao negro e ao índio, embora este apresente uma carga maior de estereótipos e preconceitos, por parte do universo de alunos pesquisados. Apesar disso, ao olharmos mais atentamente para algumas respostas, percebe-remos uma presença significativa de contradições e a presença de imagens estereotipadas e preconceituosas tanto em relação ao negro como em relação ao índio. Assim, acreditamos ser essencial aos cursos de formação de professores oportunizarem momentos de estudos e debates em que a diversidade existente em nossa sociedade possa ser colocada no centro das discussões, questionando-as e, a partir disso, proporcionando estudos e analises que fa-voreçam o reconhecimento e a aceitação da diversidade étnico-racial e cultural por parte dos professores de História.

Entendemos que essas ações são fundamentais na formação docente, pois acredita-mos que as práticas pedagógicas realizadas por estes profissionais no cotidiano da sala de aula, criam sentidos e saberes que repercutirão diretamente na formação de idéias e valores por parte dos alunos, e por conseqüência, atingirão o imaginário social.

Segundo Cannen

A educação e a formação de professores não pode mais ignorar esta rea-lidade [multicultural]. Não se pode continuar em um modelo educacional que se omita face à diversidade sócio-cultural da sociedade e aos precon-ceitos e estereótipos a ela relacionados. (CANNEN, 1997: 479)

Compreender os saberes e imagens produzidas pelos alunos do ensino fundamental e médio sobre a temática em estudo, implica em conhecer como a diversidade étnico-racial e cultural têm sido pensada e trabalhada no universo escolar nos municípios pesquisados.

Ao analisarmos as construções imaginárias dos alunos sobre o negro e o índio na sociedade atual, podemos perceber alguns sinais que reforçam a existência de problemas relacionados à questão étnico-racial. Ao mesmo tempo, os dados nos apontam possíveis caminhos a serem trilhados pelos professores de História na construção de uma prática pe-dagógica que inclua abordagens sobre a história e cultura das populações negras e indígenas, visando à construção de imagens diferenciadas, desprovidas de estereótipos e preconceitos.

3. McLaren, Peter. Multiculturalismo crítico. Trad. Bebel Orofino Shaefer. São Paulo: Cortez, 1997.

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Embora a grande maioria dos alunos pesquisados assumirem uma postura livre de pre-conceitos, encontramos situações emblemáticas e de difícil solução. Acreditamos que parte das imagens carregadas de estereótipos e preconceitos tanto em relação ao negro como em relação ao índio, são produtos de uma construção histórica profundamente arraigada na sociedade brasileira e reforçada pelas produções midiáticas e pelos livros didáticos de Histó-ria que ainda trazem em suas abordagens, uma visão limitada sobre a história e cultura das populações negras e indígenas.

Os dados e o conhecimento produzido pela pesquisa trouxeram a possibilidade de desenvolvimento de outros estudos relacionados aos problemas que envolvem o reconhe-cimento, o respeito e a inclusão da história e cultura das populações negras e indígenas. Ao mesmo tempo, possibilitam o desenvolvimento de ações na formação inicial e continuada dos professores, com o objetivo principal de ampliação e aprofundamento das discussões sobre a educação das relações étnico-raciais, estimulando com isso, a busca de abordagens pedagógicas inovadoras e que proporcionem o reconhecimento, a aceitação, o respeito e a convivência com as diferenças em nossa sociedade.

Bibliografia

ABREU, Martha & SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodolo-gia. Rio de Janeiro, Casa da Palavra/FAPERJ, 2003.

CANDAU, Vera M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igual-dade e diferença. In: Revista Brasileira de Educação, V. 13 n.37. Rio de Janeiro Jan./abr. 2008, p. 01-14.

CANNEN, Ana. Formação de professores: diálogos das diferenças. In: Avaliação e políticas pú-blicas em Educação. Rio de Janeiro, v.5, n.17, p.477-494, out./dez. 1997.

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. UNESCO, 2002.

FERNANDES, José Ricardo Oriá. Ensino de história e diversidade cultural: desafios e possibilida-des. Caderno Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 378-388, set/dez 2005.

MOREIRA, Antonio F. B. e CANDAU, Vera M. Educação escolar e cultura(s): construindo cami-nhos. In: Educação como exercício de diversidade. Brasília: UNESCO, MEC, ANPED, 2005, p.35-55.

MCLAREN, Peter e GIROUX, Henry (2000). Escrevendo das margens: geografias de identidade, pedagogia e poder. In: MCLAREN, Peter. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dis-senso para o novo milênio. Porto Alegre: ed. ArtMed, p. 25-50.

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Entre dois Impérios: a construção da Fronteira

Oeste da América Portuguesa

oTávio ribeiro Chaves1

A criação da capitania geral do Cuiabá e Mato Grosso (1748) e a edificação de Vila Bela da Santíssima Trindade (1752) na condição de sede político-administrativa,

estão relacionadas ao interesse da Coroa portuguesa em assenhorear-se de uma vasta área de terras sob domínio precário da Coroa espanhola. Este interesse fica, aliás, demonstrado pela assinatura do Tratado de Madri (1750). D. Antonio Rolim de Moura Tavares, empossado como 1º governador da capitania, passou, a partir de Vila Bela, a administrar o ordenamento político-administrativo de um dilatado espaço que confinava com os domínios espanhóis sob jurisdição das autoridades do Vice-reinado do Peru.

Em meados do século XVIII, incentivos fiscais, mercês e privilégios foram concedidos para que luso-brasileiros, oriundos de várias partes da América portuguesa, se estabelecessem no distrito do Mato Grosso. A parte sul da capitania, no distrito do Cuiabá, já vinha sendo ocupada há mais tempo, desde a primeira metade do setecentos. Em diferentes momentos, a capitania ficou vulnerável a invasões castelhanas, assim como em períodos de paz mantidos entre as Coroas portuguesa e espanhola foram estabelecidos intercâmbios comerciais entre as populações que viviam em seus respectivos domínios americanos.

A importância da edificação da fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, depois forte Bragança, foi igualmente destacada: fosse para a defesa da capitania de Mato Grosso, em es-pecial, do vale do Guaporé, fosse a sua relevância enquanto importante entreposto comercial

1. Universidade do Estado de Mato Grosso. Departamento de História, Campus de Cáceres, Professor Doutor em História Social.

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para as operações de comércio (regular e de contrabando) fomentadas pela Companhia Ge-ral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Tanto os governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão como os da capitania de Mato Grosso ergueram feitorias e fortalezas nessas duas regiões, nas décadas de 1760 e 1770, procurando dar cumprimento a determinações da administração central portuguesa, no sentido de manter a defesa contra investidas de tropas estrangeiras e garantir a navegação nos rios Guaporé e Madeira.

A construção do forte Príncipe da Beira, a partir de 1774, sob a direção do genovês Domingos Sambucetti, auxiliar de engenharia, conhecimentos “científicos” utilizados e as difi-culdades encontradas para a execução das obras também foram objeto de nossa atenção, na medida em que mostram a necessidade de manter forças militares nessa parte da fronteira, para barrar a investida dos espanhóis estabelecidos na Província de Moxos, no Vice Reinado do Peru.

Todas essas ações foram vistas no âmbito de uma política portuguesa direcionada para seus domínios coloniais, ou seja, como parte de um projeto geopolítico voltado, neste caso, para o vale do Guaporé. As fortificações da região foram construídas enquanto instru-mentos políticos do Estado português e seus espaços bem traçados, hierarquizados e nor-matizados representam a ordem que se queria ali instaurar. A esse respeito, Magnus Roberto de Mello Pereira chama a nossa atenção para um aspecto importante: perceber as fortalezas como ambientes urbanos, como “segmentação do espaço, dotando os segmentos de signi-ficação e destinando-os a práticas específicas. Neste sentido, arquitetura é a determinação do que pode ou deve ser feito onde [...]. E a cada espaço assim delimitado, corresponde uma ordem de comportamentos e práticas” (PEREIRA, 1980, p. 121).

A partir dessa observação de Magnus Pereira, procuramos destacar o conceito de fronteira, na medida em que a fortificação não era somente um artefato “político e cultural” lusitano, mas, ao mesmo tempo, um “ponto convergente”, demarcador de encontros/desen-contros entre grupos étnicos e sociais com experiências culturais distintas. As fortificações contribuíram para demarcar uma fronteira política com os domínios espanhóis, mas também foram importantes cenários para que portugueses, luso-brasileiros, africanos, ameríndios e mestiços estabelecessem diferentes interações. Nesse sentido, o sentido de fronteira engloba, não os limites estabelecidos pelo curso do rio Guaporé, ao separar territórios português e espanhol, mas designa também as distinções entre e nos espaços intra ou extra-muros, nos povoados construídos próximos aos fortes, tanto de origem ameríndia como luso-brasileira. A fronteira conforma-se a espaços de sociabilidades, nos quais os grupos que neles viviam eram seus principais protagonistas. Perceber como essas relações – essas fronteiras – foram estabelecidas é o intento deste texto.

A noção de Fronteira

Nas últimas décadas, um volume considerável de pesquisas historiográficas vem sen-do divulgado, abordando as mais diferentes concepções de fronteira, seja política, econômi-ca, cultural, étnica, gênero, linguagem, estética etc. Sobre esse crescente interesse por parte dos estudiosos da área de ciências humanas, em torno desse conceito, as considerações feitas por Silvia Helena Zanirato são oportunas:

A problemática quanto à definição do conceito não é novidade no campo das ciências humanas, afinal há mais de um século tem havido preocu-pações em precisar seu sentido. Portanto, apesar da preocupação com o significado da fronteira não ser algo recente, as reconfigurações territoriais, conjugadas aos processos históricos desencadeados a partir da década

de 1980, favoreceram a retomada da discussão conceitual, acarretando interesses acadêmicos sob perspectivas renovadas. Isso se deu no campo da sociologia, da antropologia, da economia, da história e até da critica literária, num giro teórico marcado por uma critica ao caráter excludente de uma versão hegemônica para o significado de fronteiras e pela defesa da extensão da aplicação do conceito a toda situação onde a idéia de limi-tes esteja presente [...]. Um dos elementos fundantes para a atribuição do significado à fronteira, é seu caráter de fenômeno sócio-histórico, no qual estão compreendidos diferenciados sujeitos, constituídos de diversidades étnicas, raciais, sociais, culturais e históricas (ZANIRATO, S/D).

No interior dessa renovação historiográfica, estudos têm sido realizados tendo como foco as regiões brasileiras que detinham (e detêm) limites com as nações hispano-americanas. Em relação a Mato Grosso, historiadores têm privilegiado o período colonial, revelando pre-ocupações com a organização político-territorial, a administração, a economia, o comércio, as expedições científicas e demarcatórias, a estruturação de ambientes urbanos, as relações étnico-culturais, a demografia, a escravidão africana e ameríndia. Pesquisas, como exemplos, realizadas por Otávio Canavarros (CANAVARROS, 2004) e por Suelme Evangelista Fernandes (FERNANDES, 2003) chamam nossa atenção para uma questão de cunho metodológico, ou seja, sobre qual idéia ou concepção de fronteira estamos operando? No esforço de se perce-ber como foi conhecido e conquistado o extremo oeste do Império português, Canavarros procurou comprovar que a Coroa esboçou uma estratégica política de controle e conquista do Extremo Oeste da América portuguesa, procurando estruturar aparato burocrático, fiscal em Cuiabá. Nesse sentido, o autor procurou definir as balizas geográficas da fronteira mais ocidental do Império português:

Era a região delimitada pelos rios Madeira, Guaporé, Paraguai e afluentes contravertentes deste e do Rio Grande (Paraná), até o Grande Salto (Sete Quedas). O Rio Paraná era o divisor da nova Capitania com São Paulo, en-quanto outro Rio Grande (Araguaia) separaria as Capitanias de Goiás e Mato Grosso, caso fossem confirmadas as circunscrições administrativas, conforme os perímetros dados às comarcas eclesiásticas das Prelazias. Os li-mites com o Estado do Grão-Pará e Maranhão ficaram, também, indetermi-nados à época, para posterior estabelecimento (CANAVARROS, 2004, p. 23)

Os lugares apontados pelo autor, certamente, são indicadores importantes da dimen-são sócio-espacial cobiçada pela Coroa portuguesa, desde os primeiros achados auríferos nas minas cuiabanas, em 1718, que foram, paulatinamente, sendo conhecidas e identifica-das novas rotas terrestres e fluviais, demarcadoras das áreas ocupadas pelos luso-brasileiros. No entanto, a partir da criação da capitania de Mato Grosso e da assinatura do Tratado de Madri, a Coroa direcionou sua atenção mais para o oeste da América portuguesa, no vale do Guaporé, visando garantir a posse definitiva de uma vasta área limítrofe aos domínios do Vice-reinado do Peru. A geografia da colonização portuguesa nessa parte da América do Sul pode ser considerada como identificadora de cenários de conflitos, de luta pela posse da terra entre luso-brasileiros, ameríndios, espanhóis e africanos escravizados.

Ainda sobre as noções de fronteira, Fernandes destaca:

[...] a América portuguesa como um todo pode ser vista como fronteira ocidental do Império português. Fronteira do Império, sobreposta às fron-teiras de territorialidades ameríndias. Fronteira do Império que, alargada

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em sua espacialização, foi se fazendo múltipla, de variado tipo. Mas, e principalmente, fronteira do Império feita de sucessivas conquistas – das projeções de Tordesilhas, das territorialidades ameríndias seculares, das espacializações hispânicas materializadas em cidades, missões, estacadas (FERNANDES, 2003, p. 190).

Não obstante a atenção à base geográfica de Canavarros, essas duas noções permitem delimitar e problematizar cenários e temporalidades. Fernandes, aliás, atém-se a “algumas formas de espacialização no processo de produção da fronteira entre os domínios portugue-ses e espanhóis no centro da América do Sul, no período compreendido entre 1776 e 1796”, tomando o Forte Príncipe da Beira, edificado no distrito do Mato Grosso, como seu principal objeto de estudo (FERNANDES, 2003, p. 18).

Outras questões se colocam pela noção de fronteira trabalhada pelos autores: qual ce-nário privilegiar? Como escapar de uma definição “macro”, para uma observação da fronteira em uma escala “micro”, tendo como foco as formas de sociabilidades vivenciadas nessa parte da América do Sul, mais precisamente nos fortes Bragança e Príncipe da Beira?

Conforme já tivemos a oportunidade de indicar, quando nos referimos à fronteira oeste da América portuguesa, não estamos pensando na estruturação geopolítica de um território, mas em espaços compartilhados por diferentes agentes históricos que, durante o século XVIII, estabeleceram relações políticas, econômicas, religiosas e culturais, confrontan-do interesses diversos. Diferentes cenários povoaram esse espaço: arraiais de mineração, vilas, fazendas, destacamentos militares, no interior das muralhas (e além muros) das fortalezas edificadas às margens dos rios Paraguai e Guaporé, interior das capelas e das irmandades religiosas, senzalas, quilombos e aldeias ameríndias, alcançando ainda os povoados existentes no Vice-reinado do Peru.

Essa concepção de fronteira propõe possíveis abordagens, ou seja, acaba remetendo às questões colocadas acima: como as formas de sociabilidades foram vivenciadas nesses cenários? Consideramos que a fortaleza constituía-se em um artefato, uma forma de espa-cialização lusitana presente em diferentes continentes, entre os séculos XV a XIX. Para Carlos Alberto Rosa “O Império português era reproduzido cotidianamente com contrapontos à centralização, institucionalizando poderes locais e formas diferenciadas de religiosidade ofi-cial” (ROSA, 2003, p. 13). A fortaleza se constituía em um ambiente “urbano”, hierarquizado, submetido à legislação portuguesa, reproduzindo os interesses da Coroa nos mais distantes pontos do Império. Desde a sua fundação, em 1766, no distrito do Mato Grosso, assim como as demais fortificações portuguesas do Império, a fortaleza de Nossa Senhora da Conceição encontrava-se submetida à administração central. A construção de uma fortaleza em qual-quer canto do Império português remete-nos diretamente à percepção de um ambiente militar sujeito a normas, a uma rotina rigidamente instituída.

Uma outra imagem é a de um estabelecimento distante do “mundo civilizado”, das cidades e povoados portugueses, na medida em que essas fortificações eram erguidas em regiões remotas do Império, com o objetivo de garantir a defesa territorial e servir de apoio às atividades comerciais pretendidas pela Coroa. “Nos pontos estratégicos em que a presença européia fosse escassa, permaneceu um governo meramente militar, sob a forma de uma fortaleza sujeita a um capitão, com estatuto idêntico ao previsto nas Ordenações para os capitães das praças do Norte de África” (HESPANHA, 1989, p. 05).

Inaugurada a fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, em 1766, o governador João Pedro da Câmara deu posse no cargo de comandante desse estabelecimento, a Caetano

de Souza. Em 20 de junho de 1766, havia 284 militares e 215 escravos armados com lanças, totalizando 499 pessoas sob seu comando. Os militares encontravam-se organizados em di-ferentes companhias: Dragões, Pedestres, Ordenanças dos Brancos, Ordenanças dos Pardos, Ordenanças dos Pretos e Aventureiros. Nesse período, houve o recrutamento da população da capitania, inclusive do armamento de escravos com o propósito de manter a defesa da capitania a uma possível ofensiva espanhola.2

Se compararmos as informações sobre as companhias de militares que se encontra-vam na fortificação de Nossa Senhora da Conceição, em 1766, com um mapa feito no mês de janeiro de 1773, sete anos depois, período em que a fortaleza já havia recebido o nome de Forte Bragança (1769), teremos dados mais precisos, não somente da população estabelecida nessa fortificação, mas de outras localidades do Distrito do Mato Grosso. A preocupação da administração portuguesa em obter informações sobre a população existente no território da América portuguesa, ganhou intensidade a partir do reinado de D. José I.

Contudo, essa disposição em computar os habitantes de um dado territó-rio é observada desde o século XVII. Ou seja, muitos pensadores daquele século já se mostravam interessados em dimensionar o tamanho das po-pulações dos seus respectivos estados: John Graunt (1620-1674), William Petty (1623-1687) e Gregory King (1648-1712), por exemplo, acabaram por consolidar a prática de levantamentos censitários, periódicos e sistemáti-cos, propiciando o desenvolvimento de um conhecimento estatístico que, com o tempo, ganhou contornos mais nítidos, ao relacionar a adminis-tração dos bens públicos com a população de determinado local. Porém, é necessário frisar que, inicialmente, eram arroladas apenas informações gerais, na medida em que os levantamentos detinham-se em informar o total de habitantes de uma dada localidade, ou classificavam a popula-ção por faixas etárias e sexo (WAGNER, 2006, p. 16).

Com base no mapa de população de 17733 (Tabela 1), podemos constatar a existência de diferentes grupos populacionais vivendo no distrito do forte Bragança (forte Bragança e nas povoações ameríndias de Leomil e Lamego), como também a distribuição por faixa etária e sexo. Os grupos populacionais que viviam nos arredores do forte Bragança eram formados por luso-brasileiros e ameríndios, totalizando trezentos e trinta pessoas, sendo que 68.60% era do sexo masculino e 31.40%, do sexo feminino. A presença de mulheres vivendo nas proximidades do forte variava de faixa etária, sendo que 15.06% delas encontravam-se com quarenta anos para cima. Com idade de quinze até quarenta anos, chegavam a 60.02%. Nessa faixa, as mulheres encontravam-se aptas para o casamento e para a procriação. No entanto, havia uma população feminina mais jovem, de oito a catorze anos, o que equivalia a 10.69%. Abaixo desse grupo, havia meninas de um a sete anos, representando 13.69%. Esses dados apontam para a existência de casamentos, pois somente no ano de 1772 tinham sido

2. 1766, Junho, 20, Nossa Senhora da Conceição. Ofício de João Pedro da Câmara a Mendonça Furtado, sobre medidas que tomou para repelir os castelhanos..Anexo: Mapa Geral da gente da terra., op. cit. Ver do-cumento anexo à Carta de João Pedro da Câmara, desta mesma data, ao rei D. José I, em que informa o envio de relações e mapas sobre o estado e forças da capitania (Projeto Resgate, AHU. Caixa 12, doc. 29, C 03).

3. 1773, Janeiro. Mapa do Estado Civil da Povoação do Distrito do Forte de Bragança. (Projeto Resgate, AHU. Mato Grosso, caixa 16, Documento 1015, Cd 04). No documento aparece o termo Distrito do Forte Bragança, porém, averi-guando a documentação desse período não existe novas referências a esse quadro administrativo. O forte Bragança en-contrava-se no distrito do Mato Grosso, sob o comando do governador Luis Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres.

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realizados sete casamentos. O número de famílias ou fogos (residências) existentes nas pro-ximidades do forte Bragança chegava a cinqüenta e dois. Esses dados demonstram o esforço da Coroa em fixar grupos populacionais nessa parte do distrito do Mato Grosso. A população luso-brasileira e de ameríndios, ocupava as funções de soldados-povoadores, para garantir a defesa territorial, e se constituía em importantes instrumentos de produção, criando animais de grande e pequeno porte, como gado, cavalos, galinhas, porcos, etc. Produzindo lavouras (milho, mandioca, arroz, etc.). A população militar intra-muros encontrava-se distribuída, nesse período, em 150 praças: 80 Dragões, 70 Pedestres (incluídos os oficiais), o que totaliza-va uma população extra-muros e intra-muros de 450 habitantes. Essa população acrescida à população negra escravizada, que era de 127, totalizava 577.

Como os mapas de população não informam a que grupo social ou étnico perten-ciam os homens e as mulheres contabilizados, podemos perguntar quem eram as mulheres que viviam nos arredores do forte Bragança? Desde a saída dos padres jesuítas da aldeia de Santa Rosa Velha, em 1754, quando foi ali criado o destacamento militar de Santa Rosa (1757), tinham permanecido nessas terras cerca de setenta ameríndios, que antes viviam sob a administração dos religiosos. Alessandra Blau averiguou que havia constantes acusações dos padres jesuítas espanhóis, de que os portugueses estavam sempre “roubando” mulheres ameríndias para viver naquele destacamento militar. Essas acusações eram rebatidas pelo governador Rolim de Moura que, à época, enfaticamente, dizia que a permanência dos ame-ríndios resultava da sua própria decisão em viver naquelas terras. No entanto, segundo a au-tora, parece que nem todos os ameríndios (e ameríndias) tinham permanecido próximos ao destacamento por livre e espontânea vontade, acreditando na possibilidade de ter ocorrido casos de seqüestro de mulheres ameríndias pelos soldados luso-brasileiros.

No entanto, a presença de ameríndios nos arredores do forte Bragança, oriundos dos domínios espanhóis se intensificou nas décadas de 1770 e 1780. Eram ameríndios oriun-dos da Província de Moxos, principalmente das “missões de San Martin, San Nicolás, Santa Magdalena e Exaltación. [...] Esses contingentes devem ter sido formados principalmente de índios Txapakura, Baure, Itonoma e Cajubaba” (MEIRELES, 1989).

Em outras fortificações do Império português, como a fortaleza de São Jorge da Mina, construída na África Ocidental, no século XVI, a presença feminina era marcada por mulheres trazidas do Reino, para trabalhar no preparo de alimentos para os habitantes daquela forti-ficação: “O fabrico de pão, alimento base dos portugueses da fortaleza, era assegurado por quatro mulheres trazidas de Portugal, que peneiravam a farinha amassavam e preparavam a massa para ser cozida. Estas mulheres eram ajudadas por diversos escravos” (BAKLLONG--WEN-MEWUDA.J, 1996).

Mas tudo leva a crer que as mulheres desenvolviam no forte Bragança atividades no preparo de alimentos, o trabalho com a lavoura, a criação de pequenos animais, como gali-nhas e porcos; produtos indispensáveis à dieta da população militar da fortificação. Não exis-tem referências sobre a presença de mulheres brancas vivendo intra e extra-muros. Segundo Jovam Vilela da Silva, a presença de mulheres brancas na capitania de Mato Grosso sempre foi diminuta, apesar dos esforços dos governadores em procurar atrair essa população, con-cedendo sesmarias, ferramentas e outros privilégios; contudo, não obtiveram o êxito espera-do, o que nos leva a crer que essa população era majoritariamente ameríndia, remanescente do grupo de 1754.

[...] a solicitação de casais brancos para Cuiabá e Vila Bela detinha pro-pósitos estratégicos, econômicos e sociais nessa linha de fronteira. Na falta

de casais brancos, a estrutura familiar, numa região constituída por uma maioria de homens [...] acabou por sofrer o impacto da mancebia e da mestiçagem e que se constituía na população possível para o povoamen-to. Isso era o que os governadores queriam contornar, compor ou modifi-car, daí a insistência nos pedidos por migrantes brancos de preferência em família (SILVA , 1985, p. 165).

No povoado construído nos arredores do forte Bragança, vivia um outro grupo social, constituído de homens pobres e livres. O forte consistia também em um pólo de atração para esse grupo, por ofertar trabalho em atividades como pedreiros, carpinteiros e ferreiros. Essa população também era atraída por promessas de isenção de impostos, doação de terras para produção agrícola e criação de pequenos animais; enfim, por incentivos que vinham sendo concedidos desde a chegada de Rolim de Moura à capitania de Mato Grosso, em 1751

As povoações ameríndias de Lamego, Leomil e Balsemão apresentavam populações diferentes da existente no forte Bragança. Eram unidades produtoras de milho, feijão, man-dioca e outros produtos, e eram consideradas pela Coroa como reservatório de mão-de-obra para o desenvolvimento de várias atividades produtivas. Essas povoações, juntamente com o destacamento militar de Palmela, encontravam-se sob a jurisdição do forte Bragança; cabia às forças militares dessa fortificação manter constantes expedições nesses povoados com o intento de obter alimentos e manter a ordem. Dada a presença de mulheres nos povoa-dos ameríndios de Leomil e de Lamego, apesar de ser bem inferior ao número de homens, percebe-se os esforços da Coroa em manter essa parcela da população voltada às atividades agrícolas e de tecelagem.

A Coroa, desde a implantação da guarda de Santa Rosa, definiu a região localizada entre o forte Bragança e o destacamento de Palmela como área de interesse, investindo no aparelhamento militar e povoamento, para garantir a sua incorporação aos seus domínios. Era o trecho mais vulnerável da capitania e o seu controle era imprescindível para que a Co-roa conseguisse consolidar o projeto de integração com o Estado do Grão-Pará e Maranhão. Esta forma de ocupação, com a criação de fortificações (e com povoados em seus arredores), povoações ameríndias e destacamentos militares, também pôde ser percebida em outras regiões do Império português, como constatou Tau Golin:

Estrategicamente, a conquista portuguesa do sul ocorreu através de encla-ves. A partir deles, processou-se a irradiação que se converteu em frentes demográficas, e, depois, em frentes de expansão. [...] A fronteira, demográ-fica, portanto, não se efetivava no sentido unicamente intercolonial, mas no preenchimento das imensas áreas entre os enclaves pelo “movimento espontâneo” e altamente estimulado. A “expansão” luso-brasileira não foi progressiva, a exemplo de uma onda, como o termo pode sugerir, mas através de pontos eqüidistantes de ocupação, intermediados por enormes áreas territoriais entre esses enclaves (GOULIN, 2002, p.49).

Eclesiásticos foram enviados para atuar no forte Bragança, como também para di-vulgar a “fé cristã” junto aos ameríndios de Lamego e de Leomil. Comboios de mercadorias provenientes de Belém, pertencentes à Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Ma-ranhão, a cada cinco ou seis meses, chegavam para abastecer os armazéns do forte Bragança e de Vila Bela com mercadorias, movimentando o comércio na capitania de Mato Grosso. Desde a sua criação, Vila Bela, a “cabeça de governo” de toda a capitania, irradiava ordens régias que procuravam estimular a expansão colonial mais à oeste e em direção ao Estado do

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Grão-Pará e Maranhão. O rio Guaporé constituía-se, assim, como o “corredor natural” para a condução de autoridades administrativas para fiscalizar as ações dos militares nos longín-quos destacamentos, como também para organizar os povoados ameríndios e dar apoio aos comboios vindos do Pará.

A ida de colonos luso-brasileiros para o distrito do Mato Grosso foi incentivada pela Coroa, mas houve cuidados em estabelecer esses grupos próximos às fortificações. Na déca-da de 1770, nesse trecho da fronteira mais ocidental do Império português, a Coroa deposi-tou esforços no sentido de garantir as conquistas obtidas com o Tratado de Madri e, apesar da sua anulação, as autoridades portuguesas não hesitaram na construção de fortificações e de povoados nessa região.

Com as obras do forte Príncipe da Beira, iniciadas em 1775, como já assinalamos, houve um aumento do número de militares, artesões e escravos africanos e crioulos no vale do Guaporé. O número de escravos variava entre sessenta a oitenta e, com os artesões e militares, calcula-se que havia, aproximadamente, uma centena de pessoas envolvidas na construção desse estabelecimento militar. Alguns dos escravos utilizados foram alugados de particulares, outros, comprados pela Fazenda Real.

No forte Bragança e no canteiro de obras do forte Príncipe da Beira encontravam-se populações com valores culturais distintos, vivendo e ocupando, nesses ambientes, posições diferenciadas na hierarquia daquela sociedade colonial. As relações estabelecidas entre esses grupos étnicos e sociais foram marcadas por diferentes percepções, atitudes e comportamen-tos, bem diferentes das existentes em Portugal, na “velha” sociedade do Antigo Regime.

Tabela I: Mapa do Estado Civil da Povoação do Distrito do Forte Bragança na Capitania de Mato Grosso. Feito no mês de janeiro de 1773

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Casamentos no ano de 1772 07 03 04 = 28 42

Mortos no dito ano 25 21 11 01 41 99

Nascimento no dito ano 11 07 04 01 07 30

Homens de 50 para cima 27 09 04 03 03 46

De 16 até 50 164 86 39 07 59 355

Rapazes de 08 até 15 20 14 05 02 11 52

Meninos de 01 até 07 16 10 04 01 23 54

Mulheres de 40 para cima 16 24 03 = 08 52

De 15 até 40 62 68 29 04 34 197

Raparigas de 08 até 14 11 09 03 = 12 35

Meninas de 01 até 07 14 13 08 02 22 59

Soma total dos Lugares 330 233 95 19 172 849

Escravos compreendidos na soma total

127 02 09 04 01 143

Famílias ou Fogos das Povoações 52 61 25 04 48 190

Observações: Neste Mapa não vai compreendido o Estado Militar da Guarnição do Forte de Bragança que se compõem de 150 Praças; a saber: 80 Dragões e 70 Pedestres, compreendidos os oficiais. Para o Lugar de Balsemão se esperava [...] um descimento de 72 almas da Nação Tupi vizinha das margens superiores do rio Purus.

Fonte: projeto resgate, ahu. Caixa 16, documento 1015, Cd 04.

Espaços de Sociabilidades: fortalezas e povoações ameríndias

Em 1762, quando a guarda de Santa Rosa foi transformada no fortim de Nossa Senho-ra da Conceição, havia “um corpo de tropa de 200 dragões, 10 pedestres e 01 aventureiro, al-guns escravos e 01 padre capelão”.4 Em junho de 1766, o efetivo aumentou para 284 militares e 215 escravos armados. O aumento da população escrava, como já comentamos, deu-se em função da ameaça castelhana de invadir o distrito do Mato Grosso. Em 1769, por ordem da Coroa, a fortaleza foi rebatizada com o nome de forte Bragança, e as aldeias ameríndias de São José e de São João (situadas em domínios portugueses) passaram a se chamar Lugares de Lamego e de Leomil. O destacamento do Sítio das Pedras passou a ser Destacamento de Palmela.

As atividades militares do forte Bragança concentravam-se em patrulhar as rotas flu-viais e terrestres existentes entre essas povoações e vigiar os passos das populações caste-lhanas situadas na Província de Moxos, Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra. Havia freqüentes expedições via rio Guaporé, partindo do forte Bragança para as povoações de Lamego e de Leomil, visando buscar alimentos e acompanhar o trabalho desempenhado pelos moradores ameríndios.

Essas povoações desenvolviam uma economia de subsistência, estimulada pela Co-roa, com base no que determinava o Diretório de 1757. Em 14 de fevereiro de 1774, Antonio Ferreira Coelho, que ocupava o cargo de escrivão da Real Fazenda, posto existente no forte Bragança, informou que havia retirado dos armazéns mantimentos para 22 ameríndios que sairiam em uma expedição por ordem do comandante daquela fortificação: “Onze alqueires de milho, um alqueire de feijão, seis arrobas e vinte e oito libras de peixe seco, quatro medidas de sal”. Estes mantimentos encontravam-se organizados em doze sacos de pano. A expedição recebeu também “um bote pequeno da Fazenda Real, um cabo grosso, meio frasco de sal e pimenta, um frasco vazio em que se vai a dita pimenta e uma libra de quina em pó”.5 Os gêneros alimentícios eram oriundos da povoação de Lamego. Percebe-se, portanto, a impor-

4. Carta a Mendonça Furtado em 14 de dezembro de 1757. In Antonio Rolim de Moura. Correspondên-cias. Volume 3. Cuiabá: Imprensa Universitária, PROEDI, 1983, pp. 122-130.

5. APMT. Carta de Antonio Ferreira Coelho, escrivão da Real Fazenda estabelecido no forte Bragança a Pereira e Cáceres, 24 de fevereiro de 1774. Fundo: Fazenda. Local: Forte Bragança, documento número 30. Lata A.

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tância desta povoação para a sobrevivência, não somente da população ameríndia como de todos os estabelecidos no forte Bragança e, mais tarde, para os trabalhadores das obras do forte Príncipe da Beira.

As povoações ameríndias, provavelmente, contribuíam para abastecer as monções oriundas do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Localizadas próximas ao rio Guaporé, essas povoações serviam de apoio não somente para o abastecimento de gêneros alimentícios, mas também para a condução das embarcações e transporte de mercadorias, atividades essenciais dessas expedições. Segundo Rita Heloísa de Almeida, no Estado do Grão-Pará e Maranhão, o governador João Pereira Caldas, nesse mesmo período, tinha fixado jornais para as diferentes atividades produtivas desenvolvidas pelos ameríndios:

[...] 1$200 réis para índios empregados em serviços pesados (roças, enge-nhos e expedições ao sertão), oitocentos réis para os serviços domésticos, pescadores, caçadores, índias, empregadas em fazer farinha e no serviço de amas-de-leite, seiscentos réis para índias empregadas em serviços leves e para rapazes índios de 13 anos, quatro centos réis, de conformidade com os seus “movimentos” (IHGB, arq. 1.1.3, Regulamento de 30 de maio de 1773) (ALMEIDA, 1997, p. 147).

Para Almeida, a partir da Lei de 06 de Junho de 1756, a Coroa procurou publicar os jornais em cada uma das atividades produtivas desempenhada pelos ameríndios (de ambos os sexos), levando em conta a sua capacidade para a tarefa a qual tinha sido designado. A forma de pagamento ao trabalho realizado pelos ameríndios “foi sempre mediante mercado-rias, principalmente tecidos e ferramentas de trabalho. Listagens de mercadorias destinadas ao pagamento de índios, por serviços prestados, atestam a aplicação corrente deste procedi-mento” (ALMEIDA, 1997, p. 247). Acreditamos que em Mato Grosso essa forma de pagamen-to foi também aplicada, pois a legislação que normatizava as relações socioeconômicas era a mesma; no entanto, a sua aplicabilidade, sofreu variações de um lugar a outro do território da América portuguesa.

Segundo o Diretório, deveria haver um diretor nessas povoações para organizar o trabalho ameríndio e proporcionar aos seus moradores a aprendizagem sobre os valores “ci-vilizacionais”, ou seja, que se organizassem para atender as demandas de uma sociedade mercantilizada. O número de povoações ameríndias criadas na capitania de Mato Grosso foi bastante pequeno, além de Lamego e Leomil, havia, em 1776, no povoado de Guimarães, 565 ameríndios e, nos arredores do forte Bragança, uma população de 735 indivíduos (SILVA, 1985, p. 314).6

O diretor de Lamego era, nesse período, o soldado João Soares da Costa, que se en-contrava subordinado ao forte Bragança. Em 20 de fevereiro de 1776, o comandante desse forte, Caetano de Souza, informou ao governador Pereira e Cáceres que o soldado havia deixado o seu posto e fugido para terras castelhanas. Soares da Costa vivia em concubinato com uma ameríndia chamada Ana Mequém, moradora daquele povoado já há algum tem-po. A sua fuga foi noticiada por um grupo de ameríndios de Lamego, conforme informações recebidas pelo comandante do forte Bragança; este mandou averiguar o que tinha aconte-cido com o soldado, obtendo a informação de que ele estava na missão castelhana de São

6. Ver Tabela População Nativa distribuída pelos lugares, missões, arraiais e fortalezas. Capitania de Mato Grosso - Século XVIII.

Joaquim. O soldado não fugiu apenas com a sua companheira para a missão espanhola, junto deles seguiram vários ameríndios de Lamego, que acompanharam o diretor na esperança de obter gado para abastecer o povoado. Sem sucesso na empreitada, os ameríndios retorna-ram a Mato Grosso, mas o casal continuou viagem até a missão da Conceição. Nessa missão havia outros soldados desertores, que pertenciam ao destacamento de Palmela. Não causou estranhamento, por parte do comandante do forte Bragança, a fuga do diretor de Lamego para as missões de São Joaquim e Conceição, em terras espanholas. A deserção militar pare-cia ser uma prática bastante comum, ainda que combatida. As razões para essas fugas eram várias: dívidas, assassinatos, roubos, deserção militar, etc. No caso do soldado Soares, a sua fuga com a ameríndia Ana Mequém parece ter sido por diferentes motivos: ao atravessar a fronteira dirigiu-se para a missão de São Joaquim, onde se casou com Ana Mequém. Mas, o provável motivo dessa fuga, segundo o comandante do forte Príncipe da Beira, Cardoso da Cunha, era que ele “estava cheio de calotes sem esperanças de poder pagar e de ninguém lhe fiar mais nada; havendo aqui outros mais que lhe vejo jeitos de tomarem o mesmo caminho [...] porque pedem alguns dias de licença e quando se dá pela falta já estão fartos de estar em Castela”.7

A Povoação de Lamego constituía-se em uma espacialização portuguesa, no entanto, o “ir” e “vir” das populações ameríndias entre os domínios portugueses e castelhanos era algo que parecia comum. O rio Guaporé era o limite “natural” que separava os domínios das duas Coroas ibéricas. A posse das terras situadas na margem direita do rio Guaporé era mantida pelo forte Bragança, pelos povoados de Lamego e de Leomil e pelo destacamento militar de Palmela. A fronteira para os ameríndios não tinha o mesmo sentido para os portugueses, pois eles faziam, com certa freqüência, a travessia do rio Guaporé para visitar seus parentes em terras castelhanas. Se, de um lado, Lamego era referência para os ameríndios, por estarem estabelecidos nessa localidade, por outro lado, a relação com povoados espanhóis estava bastante presente em suas vidas.

Para a maioria dos índios pouco importava as fronteiras políticas, pre-feriam seus territórios tradicionais, e esse fato influía na política ibérica relacionada aos grupos indígenas da área em litígio. Caso não houvesse tratamento adequado, muitos grupos empreenderiam fuga e, de acordo com Ângela Domingues, a indefinição das fronteiras estava relacionada às hesitações de cada Coroa em relação à política a ser adotada. As defini-ções estabelecidas pelas duas Coroas nada significavam aos índios, “que tinham familiares, amigos e trocas comerciais em áreas pertencentes à potência rival e que facilmente transitavam para cada lado da divisão convencionada” (BLAU, 2008, p. 85).

Os soldados que se encontravam na missão de Conceição tinham furtado várias mer-cadorias do destacamento de Palmela, o que demonstra que havia planejamento antecipado visando à fuga. Os soldados fujões seguiram viagem utilizando um batelão através do rio Baures até alcançar a missão de Conceição. Se havia atraso no pagamento de militares que detinham alguma patente, como os pertencentes às companhias de Dragões, o mesmo não ocorria com os que pertenciam às companhias de Ordenanças e Pedestres, que não faziam parte desse “privilegiado” grupo, e recebiam apenas provisões por mês para desenvolver fun-

7. APMT. Carta do comandante do forte Bragança, Cardoso da Cunha a Pereira e Cáceres, 06 de março de 1776. Fundo: Defesa. Forte Bragança. 1776. Documento 143. Lata A.

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ções militares. Essa situação pode ter motivado ainda mais as fugas, não somente, para as terras castelhanas, mas também para outras capitanias da América portuguesa.

Segundo Flávio dos Santos Gomes, no Estado do Grão-Pará e Maranhão, as deserções de soldados das fortificações e destacamentos também aconteciam, sendo motivo das recla-mações das autoridades militares aos governadores.

As origens e as motivações das freqüentes deserções de soldados no Grão--Pará colonial podiam ser muitas. Índios, brancos pobres e negros – de maneira geral – fugiam do recrutamento militar e do trabalho compulsó-rio nas fortalezas e vilas. Preferiam viver nas matas e junto de suas roças. O desertor Manoel Covine foi preso em Marajó, próximo a uma ilha onde “tem seu algudual”. Distanciando-se o máximo possível das localidades em que ficavam seus destacamentos, escapavam para a região de Santarém ou mesmo rumavam para o Maranhão. O soldado Victorino José Gomes, praça do regimento de Extremo, com uma “preta furtada” e mais oito desertores seguiu em direção a uma ilha em Ourém, onde “consta tem parentes, e se acham mais desertores” (GOMES, 2005, p. 80).

Os motivos das deserções militares na capitania de Mato Grosso parecem ser bem se-melhantes aos da Amazônia portuguesa. A rotina vivida pelos militares do forte Bragança não se restringia às tarefas no interior da fortificação. Alguns soldados da tropa de Pedestres ocu-pavam a função de correios, transportando as correspondências entre diversas localidades da capitania de Mato Grosso. A atuação desse militares envolvia também o trânsito de corres-pondências com as autoridades espanholas das Províncias de Moxos e Chiquitos. Quando essas expedições ocorriam, os soldados aproveitavam para obter informações sobre as tropas militares espanholas e ameríndias, como também sobre as operações do contrabando com os curas das missões. Ao retornarem à capitania de Mato Grosso, repassavam informações ao comandante do forte Bragança que as transmitia ao governador, que procurava estar atento, principalmente, à troca de autoridades civis e eclesiásticas nessas províncias. Em 8 de março de 1776, o retorno de um soldado boticário da missão de Madalena, que tinha se dirigido até lá com o pretexto de ajudar no tratamento de uma “moléstia” contraída pelo frei Fudela, era uma oportunidade para saber sobre as mudanças administrativas que vinham ocorrendo do outro lado da fronteira. A transferência do frei Fudela da missão de Madalena para o Reino tinha sido uma iniciativa da Coroa espanhola interessada em combater o contrabando que estava ocorrendo na região. A destituição do governador da Província de Moxos, D. León de Velasco, e a chegada do corregedor D. Antonio Neira era sinal de que a administração espa-nhola intentava desbaratar as ações dos contrabandistas e combater a desenfreada corrup-ção que tinha assolado a administração das missões das Províncias de Moxos a e Chiquitos.

Ultimamente chegou de Exaltação, e São Pedro, o Alferes Manoel Joseph da Rocha, na noite de 8 do corrente, dando a notícia de que dizem que D. Antonio Neira, para corregedor da Província de Moxos; e D. Leon que se recolhe, não voltando mais para esta Província. Também diz que o dito Neira há de estar nesta fortaleza por estes 5 ou 6 dias que vem com cartas da Real Audiência para V. Exma .8

8. APMT. Carta do comandante Cardoso da Cunha a Pereira e Cáceres, 10 de março de 1776. Fundo: De-fesa. Local. Forte Bragança, documento número 119. Lata A.

Os soldados enviados pelo comandante do forte Bragança, Caetano de Souza, ao ter-ritório espanhol faziam parte de uma rede de pessoas de confiança do governador Pereira e Cáceres. O nome do alferes Manoel Joseph da Rocha aparece repetidas vezes nas correspon-dências enviadas pelo comandante a Pereira e Cáceres, sempre em missões na Província de Moxos. Em dezembro de 1776, este mesmo militar encontrava-se, novamente, nos domínios espanhóis.

Como aqui chegaram uns índios fugidos da Missão de São Pedro, que brevemente os remeterei a essa capital; e deram notícia que os negros de Inocêncio Roiz e Pedro Frazão, os tinham remetido para Loreto: me resolvi a mandar aquela missão, no dia 19 do mês passado o Alferes Manoel Joseph da Rocha a ver se consegue que os referidos escravos voltem. O mesmo Manoel Joseph da Rocha foi com intento de passar a Loreto; por cujo motivo julgo que só em janeiro aqui estará. Também no mesmo dia 19 partiu para a missão da Exaltação o furriel Francisco Joseph Teixeira a concluir as pendências que V. Exa. lhe encarregou; e por ele escrevi ao Cura daquela missão protestando pela entrega dos doze negros fugidos de Fran-cisco da Costa Teixeira, caso eles para lá vão.Creio que o Alferes Manoel Joseph da Rocha daria a V. Exa. conta da conferência a quem o chamou o Cura da Conceição; porque a mim não participo mais do que V. Exa já expus. Receando que os índios do Pará que presentemente vieram fujam; me resolvi a mandar já o Sargento Matheus de Espinha, e por ele remeto a Maria Antunes Maciel em ferros.9

No entanto, para os soldados infratores da ordem militar o tratamento era severo. A legislação militar encontrava-se assentada no antigo regimento de Roque Barreto (elaborado com base nas Ordenações Filipinas), e em um emaranhado de cartas régias (SOUZA, 1997). As autoridades coloniais eram rigorosas na aplicação das penas, principalmente, quando eram cometidos crimes como deserções, assassinatos, desrespeitos a oficiais de maior patente, rou-bos, enfim, eram práticas consideradas graves. Quando o militar era preso, tinha de respon-der a uma junta composta por autoridades da capitania, com a participação do governador e do ouvidor. Em 1767, um ano após o surgimento de tropas espanholas nas proximidades, da fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, as deserções de militares luso-brasileiros aumenta-ram e as punições também. No dia 17 de janeiro desse ano, dois soldados, que tinham vindo da capitania de Goiás, juntamente com mais sete pedestres, desertaram de seus postos. Nos dias 4 de maio foi formada uma junta (comissão de julgamento), que condenou à morte, por enforcamento, onze pessoas. Nesse grupo havia militares. No entanto, a ação enérgica das autoridades da capitania de Mato Grosso não foi suficiente para coibir novas evasões. Em 9 de julho, nove pessoas, entre militares e escravos negros se evadiram de Vila Bela. No dia seguinte, foi a vez da fuga de um furriel e um alferes que encontravam presos no “quartel” militar daquele povoado. Além destes, fugiram mais dez pessoas, entre soldados pedestres e escravos negros. No entanto, essa tentativa de fuga foi malograda, pois o furriel e o alferes fo-ram capturados novamente e remetidos para a fortaleza de Nossa Senhora da Conceição. Os escravos negros parecem que tiveram êxito na fuga. O furriel foi “arcabuzado” (morto por tiro de arcabuz) em 9 de outubro. Apesar de não termos informações sobre os crimes cometidos

9. APMT. Carta do comandante Cardoso da Cunha a Pereira e Cáceres, 13 de dezembro de 1776. Fundo: Defesa. Local. Forte Bragança, documento número 131. Lata A.

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por esses grupos, percebe-se que as deserções militares não eram ações isoladas, não ocor-riam somente nos postos militarizados existentes no distrito do Mato Grosso, mas também em Vila Bela, onde havia forças militares aquarteladas. Acreditamos que essas fugas tenham sido motivadas, naquele período, pelo medo de possíveis ataques de tropas espanholas à capitania de Mato Grosso. Em 1766, forças militares espanholas chegaram próximas a forta-leza de Nossa Senhora da Conceição. Houve enfrentamento entre militares luso-brasileiros e soldados espanhóis na barra do rio Itonomas (território espanhol) e em trechos do distrito do Mato Grosso. Havia militares vindos das capitanias de Goiás e do Pará, por solicitação do governador, na época, João Pedro da Câmara. Nesse mesmo período,, escravos negros foram armados para compor as forças luso-brasileiras, mas, de fato, não houve nenhuma invasão. As fugas, provavelmente, ocorridas em 1767, decorreram das murmurações sobre possíveis ataques espanhóis à capitania, o que provocava pavor na população mato-grossense, em especial, nos grupos que tinham sido recrutados para dar combate aos inimigos no distrito do Mato Grosso. 10

As fugas militares também podem ter sido motivadas por outros fatores. Havia níti-da divisão étnica e social na formação das companhias militares, o que gerava uma série de insatisfações por parte dos soldados não brancos, que não tinham patentes de oficial e os mesmos privilégios, por exemplo, dos militares portugueses pertencentes às companhias dos Dragões. O serviço mais pesado recaía nos ombros dos militares da companhia de Pedestres, geralmente, mestiços. Essa situação não ocorria somente na capitania de Mato Grosso, mas era corrente em várias partes do Império:

Soldados brancos e de cor serviam lado a lado nos regimentos de infanta-ria regulares, e, em 1699, a Coroa reprendeu o governador da Colônia de Sacramento por ter se negado ao receber recrutas mulatos. As unidades das milícias, entretanto, em geral eram organizadas segundo critérios ra-ciais, cada companhia sendo comandada por um oficial da mesma cor de seus homens. Apesar da relutância dos brancos locais em servir sob as ordens (ou ao lado) de homens de cor na milícia da Bahia, em 1731, a Coroa ordenou que assim fosse feito [...]. Devemos acrescentar que, mesmo nas unidades regulares, onde brancos e indivíduos de cor serviam lado a lado, os primeiros sistematicamente tinham a preferência no momento de receber o soldo e a promoção, como se isso fosse a expressão da vontade política oficial (BOXER, 2002, p. 325).

Começando pelo recrutamento forçado, a dura vida dos militares das companhias de Aventureiros, Pedestres, Pardos e Pretos, no extremo oeste do Império português, além da ro-tina militar, fazia com que estes sentissem o peso de toda a carga de preconceitos e injustiças, pois se encontravam no mais baixo degrau da sociedade colonial mato-grossense. A atuação desses militares dependia unicamente da sua força física: na execução de missões nas matas, na luta contra ameríndios, raras vezes, com os espanhóis, nas longas caminhadas que faziam por difíceis trechos, nas navegações pelo rio Guaporé, levando munições, mercadorias, pri-sioneiros; enfim, suas ações os colocavam em contato direto com o perigo, com doenças e acidentes que, às vezes, podiam incapacitá-los pelo resto de suas vidas.

10. Anais de Vila Bela 1734-1789. Janaína Amado, Leny Caseli Anzai (organizadoras). Revisão e notas Luiz Carlos Figueiredo; prefácio Paulo Pitaluga Costa e Silva. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato; EDUFMT, 2006, pp. 123-124.

Alguns militares mais afortunados, além de desempenharem funções nos fortes Bra-gança e Príncipe da Beira, acabavam se tornando proprietários de terras, e os mais ricos che-gavam a fazer parte da elite agrária mato-grossense da segunda metade do século XVIII. Estes, em sua maior parte, eram oficiais pertencentes à companhia dos Dragões: não eram pardos, negros, e tampouco mestiços, descendentes de ameríndios, mas eram brancos, proprietários de escravos. Em menor proporção, alguns mulatos das companhias de Ordenanças também detinham relativas posses.

Concedendo alguma autonomia aos integrantes da instituição das Orde-nanças, assim como ao Conselho e a outras, permitindo-lhes a aquisição de prestigio social, a Coroa portuguesa estabelecia um modus vivendi com os colonizadores que facilitava a difusão de seus interesses. Tudo isso não os contrariava, a princípio, pois os objetivos maiores do rei voltavam-se para manter (ou até ampliar) a integridade das suas conquistas. Por isso, propiciava “... a montagem de um aparelho militar conjugado a estrutura social ...” [...], cuja descrição se aplica, também, às Ordenanças. Era o qua-dro de sempre da Monarquia Portuguesa: vasto império, parcos meios e inumeráveis dependentes (CANAVARROS, 2004, p. 130).

Em estudo realizado anteriormente, verificamos que alguns militares da capitania de Mato Grosso tinham poder econômico e prestígio social. Eram da companhia de Dragões, proprietários de terras, plantavam e criavam animais, possuíam cativos, “mercadoria” conside-rada de elevado custo em todo Império. Além destas atividades, garimpavam, eram casados e recebiam soldo da Coroa. Quadro bem diferente da maioria dos soldados pertencentes às companhias de Ordenanças de Pardos e Pretos, cuja cor da pele limitava as possibilidades de ascenderem socialmente (CHAVES, 2000, p. 09). Reproduziam-se, assim, as contradições e as desigualdades étnico-sociais que marcavam a sociedade luso-brasileira. No entanto, em da-das situações havia aproximações entre esses diferentes personagens, principalmente quando surgia alguma ameaça externa à sobrevivência da população daquela capitania.

Nas fronteiras, nas lonjuras e nos sertões luso-brasileiros dos tempos colo-niais, portanto, homens que circulavam anos a fio longe de sua família e de sua morada procuravam, sempre, que possível, recriar a domesticidade e organizar, mesmo que de forma provisória, os hábitos reguladores do cotidiano – aqueles que, pela sua mansa repetição, garantiam o equilíbrio e o encanto morno do dia-a-dia (SOUZA, 1997, p. 81).

Mas as fugas não eram atos praticados somente por militares, pois escravos negros que se encontravam em Vila Bela, também procuraram fugir dos pesados encargos a que foram submetidos. Não serviam somente para trabalhar nas minas de ouro, na lavoura, nas fortificações, para carregar mercadorias, desempenhar atividades domésticas, enfim, foram recrutados para servir como soldados nas frentes de batalhas, quando havia perigo de inva-são à capitania de Mato Grosso. Uma das formas de solidariedade percebidas nessa longín-qua fronteira do Império português, manifestada tanto no interior das fortificações como nas vilas coloniais, fazendas e áreas de mineração, foi experimentada por escravos negros (criou-los, os nascidos no Brasil e os ladinos africanos), apesar de viverem debaixo de forte aparato repressivo. Esses escravos encontravam formas de escapulir ao olhar vigilante de seus senho-res e das autoridades coloniais, procurando manifestar sua religiosidade e seus sentimentos, enfim compartilhando, com seus companheiros, experiências vividas durante o difícil cotidia-no. Mas esse é outro assunto que merece ser narrado com mais calma, em outro encontro.

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A Colonização Agroindustrial do Cerraso em Mato Grosso

1970-2000

paulo divino ribeiro da Cruz1

Antes da colonização agroindustrial iniciada na década de 1970 o cerrado abrangia mais de um quinto da área do país, constituindo-se no segundo mais importante

bioma brasileiro e compunha aproximadamente 40% da cobertura vegetal original de Mato Grosso. Apesar de existir uma grande lacuna de conhecimento em relação à distribuição das espécies do Bioma, estima-se 6.000 de árvores e 800 de aves, além de outras formas de vida, das quais, 40% das plantas lenhosas e 50% das abelhas sejam endêmicas. O cerrado é iden-tificado como o grande lago mítico que os europeus, desde o século XVI, supunham existir no interior da América do Sul e que seria o ponto de onde partiriam as águas para o abaste-cimento dos rios do continente. Hoje se sabe que ele é a “cumieira do Brasil”, pois distribui suas águas para as principais bacias do continente: Amazônica, São Francisco, Paraná, Prata, Doce, Jequitinhonha e Parnaíba, dentre outras. (RIBEIRO, 2002: 251). Além disso, este autor afirma que devido a essa posição central no continente “o cerrado se encontra em contato e estabelece áreas de transição com quase todos os seus principais biomas”, como Floresta Amazônica, Caatinga, Mata Atlântica, Mata de Araucária e Pantanal.

A ocupação humana do cerrado possui uma longa história anterior à colonização agroindustrial iniciada a partir dos anos 1970. De acordo com os trabalhos arqueológicos de

1. *Historiador, Mestre em Educação, Pesquisador do GEM- Grupo de Pesquisa História da Educação e Memória do PPGE/UFMT e Doutorando em História/UNESP-Assis.

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Prous2, Barbosa & Schmitz3 (apud RIBEIRO, 2002: 252-253) essa presença humana poderia anteceder aos onze mil anos, mas essa datação pode alcançar até vinte e sete mil anos. (SI-QUEIRA, 2002: 10-15). Estima-se que os sistemas agroecológicos tradicionais do cerrado im-pactassem na estruturação de algumas de suas áreas, já que as ocupações sucessivas podem ter contribuído para determinadas alterações na conformação original. É o que sugere Posey (1986, apud RIBEIRO, 2002: 256) ao afirmar que grande parte do que tem sido chamado de florestas e savanas naturais possivelmente seja o resultado de milênios de remanejamento e co-evolução humanos. Caso esta suposição esteja correta, reforça a indicação de que os sistemas agroecológicos tradicionais, se não conviviam em harmonia absoluta com o meio, o que é inteiramente plausível, não desenvolviam atividades que colocavam em risco os ecos-sistemas com os quais mantinham intercâmbio.

A partir de 1970 o domínio do cerrado e as interações sócio-econômicas que ele com-portava foram profundamente alteradas, quando não simplesmente destruídas, com a im-plantação do modelo de colonização agroindustrial articulado pelo Estado e levado a cabo por instituições criadas especificamente para este fim, e por grandes corporações nacionais e internacionais interessadas na incorporação dessas áreas ao processo produtivo global en-tão em curso. Até aquele momento, a atividade agropecuária era extensiva, considerada de baixa produtividade. Para mudar esse quadro, seria necessário transformar toda a estrutura produtiva do setor. (NETO e LEITE, 2005: 210). Além disso, em 1970 o estado possuía mais de 60% de sua população vivendo no campo e apenas 39,08% nas cidades – a maior destas de pequeno porte e com economia totalmente voltada para a agricultura de subsistência. No ano 2000 a situação havia se invertido em favor da urbanização, pois apenas 20,62% viviam no campo e 79,37% nas cidades.

A implantação dos projetos de colonização do governo federal e da iniciativa privada fez crescer a demanda por serviços urbanos, uma vez que muitos desses projetos resultavam em novos municípios, além do que transformavam os pequenos municípios existentes em centros polarizadores. “uma característica importante do processo de ocupação em áreas de fronteira agrícola, onde a formação de cidades se dá concomitantemente ou antecede à ocupação do campo”. (MORENO; HIGA, 2005: 77-78). Assim, o processo de colonização agroindustrial não apenas determinou a migração de agricultores para esta nova área; mas ao fazê-lo de acordo com os padrões de um novo modo de produção, criou novas necessida-des de desenvolvimento, como a abertura de novas estradas; engendrou cidades, introduziu novas técnicas; deslocou capital humano e financeiro para o Centro-Oeste brasileiro; mudou para sempre a estrutura e o rosto de Mato Grosso; e viabilizou o que antes parecia impossível: incorporou vastas áreas do cerrado à produção agropecuária, através da adoção de novas tecnologias de correção de solos e produção de sementes.

Furtado (1974) desenvolveu ensaios sobre o modelo de subdesenvolvimento atual-mente em curso no Brasil entre os anos de 1972 e 1974, período em que estava iniciando o processo de colonização agroindustrial analisado neste trabalho. Grosso modo, ele defende a idéia de que o desenvolvimento dos países periféricos seria irrealizável do ponto de vista econômico, político, sócio-cultural e ambiental, simplesmente porque no modelo de de-senvolvimento colocado em vigor pelos países centrais reside sobre o subdesenvolvimento dos países periféricos. São pólos opostos de uma mesma dinâmica, que acumula capital e

2. PROUS, André. Arqueologia brasileira. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1992.3. BARBOSA, Altair Sales & SCHMTIZ, Pedro Ignácio. Ocupação indígena do cerrado: esboço de uma história. In: SANO,

S.M. & ALMEIDA, S.P. Cerrado: ambiente e flora. Planaltina: Embrapa-CPAC, 1998.

tecnologia em um pólo desenvolvido em detrimento de outros locais que são configurados como fornecedores de trabalho barato e recursos naturais. Ele sublinha a importância de um estudo patrocinado pelo Clube de Roma no início dos anos 1970, pois em tal foi abandonada “a hipótese de um sistema aberto no que concerne à fronteira dos recursos naturais”. E uma vez fechado o sistema, os autores do estudo formularam a seguinte questão: “que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chega efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se?”. (FURTADO, 1974:19).

Ao que Furtado responde: “se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não reno-váveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria em colap-so”. (Furtado, Idem). Furtado chegou à conclusão de que uma ruptura ambiental cataclísmica carecia de fundamento simplesmente porque a generalização das formas de consumo dos países cêntricos não teria – nem tem - cabimento dentro das possibilidades evolutivas do próprio sistema. Em outras palavras, ele entendia que o meio ambiente só correria um risco fatal se o crescimento pudesse ser generalizado em termos mundiais, mas concluía também que o estilo de vida criado pelo capitalismo ocidental moderno sempre seria um privilégio de uma minoria. Embora admitisse que não tivesse a pretensão de demonstrar essa última hipótese, ele inferia que não podia haver capitalismo sem relações assimétricas, ou seja, sem desenvolvimento em um pólo e subdesenvolvimento em outros.

No entanto, tal hipótese parece já ter sido comprovada por Marx (1978) e também pelo próprio Furtado (1974). No quadro geral do sistema econômico mundial o subdesen-volvimento é o pólo oposto do desenvolvimento; isto é, o desenvolvimento econômico dos países centrais é uma conseqüência da acumulação daquele capital que foi subtraído dos países subdesenvolvidos. A base da acumulação é sempre uma relação assimétrica, desigual. A acumulação não poderia ocorrer senão como uma conseqüência direta da desigualdade. Nas regiões centrais dos países periféricos essa falácia é apresentada como uma necessidade imperiosa de industrialização. No entanto, a industrialização nunca é realizada de forma con-tínua no espaço e no tempo, pois o modelo adotado implica na necessidade da existência de subsistemas e formas de exploração social que estão na base do subdesenvolvimento.

Assim, a lógica do sistema cria áreas de especialização geográfica de forma que en-quanto os espaços centrais – dos países altamente industrializados e em menor grau dos países subdesenvolvidos – especializam-se na produção de alta tecnologia e acumulação de capital; os espaços periféricos – países inteiros ou grandes áreas de países subdesenvolvidos – especializam-se na extração e fornecimento de produtos primários e trabalho barato para as áreas centrais. Nesses termos, é possível afirmar que a economia global contemporânea se comporta como um sistema mundial articulado obedecendo um padrão semelhante ao des-crito por Novais (1979) em sua avaliação sobre o Antigo Sistema Colonial. Ele explica (1979: 57-58) que o Antigo Sistema Colonial era um conjunto de relações entre as metrópoles e suas respectivas colônias que perdurou entre o Renascimento e a Revolução Francesa, quando se processou o “alargamento da área de expansão humana pelo globo, pela ocupação, povoa-mento e valorização de novas regiões”. Esse movimento assumiu uma forma mercantilista de colonização, onde os estados absolutistas europeus articulavam suas sociedades na constitui-ção de colônias ultramar para que estas promovessem o desenvolvimento das metrópoles. “Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, partes de um todo, interagem reversivamente neste complexo que se poderia chamar, mantendo um termo da tradição, Antigo Regime”. (NO-VAIS, 1979: 66).

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Esse modelo de colonização européia que se apresenta primeiramente como expan-são comercial logo resulta na produção das mercadorias para o abastecimento dos mercados metropolitanos e como peça de um sistema, foi o instrumento da acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil, conforme ressalta Novais. Ocorre que a acumulação pri-mitiva não pode ser considerada como um fenômeno que surgiu e se esgotou nos primór-dios do capitalismo, sendo supostamente superada pela própria lógica de desenvolvimento desse sistema. Desde que o capital continua se acumulando continuamente, a acumulação primitiva tem sido o seu suporte básico, independentemente se ele cria novas formas sutis de promover essa acumulação. Cada novo processo global de acumulação/expansão do ca-pital, desde o seu princípio como capitalismo mercantilista, é precedido e apoiado por um processo global de acumulação primitiva que permite a ampliação e o aprofundamento da fase anterior. Assim, quanto os produtores rurais contemporâneos falam em “incorporação de novas áreas ao processo produtivo”, estão apenas enfatizando a necessidade de que o modelo primitivo de acumulação seja novamente posto em prática, pois a “incorporação” ao processo produtivo do capitalismo só é possível com a expropriação do produtor direto, da produção agroecológica tradicional que não está originariamente orientada para o lucro e para a apropriação capitalista da terra.

Tal como no processo descrito por Martinez (2005: 72-73 e 2006: 56-81), a coloniza-ção agroindustrial do cerrado mato-grossense também significou a garantia de expansão e aprofundamento para o capitalismo industrial global, no entanto, sob pena de transformar solos, água, vegetação, minérios e comunidades humanas em meros insumos para o proces-so industrial. Martinez (2005) cita Novais (1979) para lembrar que a mais poderosa alavanca externa para o desenvolvimento da economia de mercado européia foi a produção colonial de gêneros tropicais, a exploração do trabalho escravo africano e indígena e a dilapidação do ambiente dos países colonizados. É possível, pois, traçar uma linha evolutiva que começa com a chegada dos primeiros europeus ao Novo Mundo e culmina com a implantação da industrialização contemporânea tanto nos ambientes urbanos quanto rurais desse mesmo Novo Mundo. Não por acaso, o processo de agroindustrialização do cerrado mato-grossense tem sido chamado de colonização. Essa colonização agroindustrial, ou seja, a transformação de extensas áreas dos países periféricos em espaços para a expansão do capital dos países centrais ocorre concomitantemente e articulada com uma etapa do processo de industriali-zação da economia mundial. E é nesta perspectiva que tal processo deve ser compreendido, no sentido da colonialidade tal como propõe o conceito elaborado por Quijano (2005).

Para este sociólogo peruano a colonialidade remete a uma situação na qual os países latino-americanos permanecem coloniais em suas relações de poder, mesmo longo tempo após a descolonização política formal. Tese esta que encontra respaldo tanto na formulação do Antigo Sistema Colonial de Novais (1979), quanto na teoria do subdesenvolvimento de Furtado (1974). Assim, a agroindustrialização do cerrado mato-grossense a partir dos anos 1970 deve ser considerada na perspectiva do capitalismo industrial contemporâneo, já que nesse processo agricultura e indústria aparecem como etapas, pólos de um mesmo sistema mundial de produção de mercadorias, alimentos e fibras onde os países centrais – e algumas regiões centrais dos países periféricos – aparecem como consumidores de matérias primas e fornecedoras da tecnologia e do capital, concentrando o desenvolvimento; e outras regiões são configuradas como fornecedoras de matéria prima, trabalho barato e consumidoras de capital e tecnologia, concentrando, pois, o subdesenvolvimento. Por outro lado, é um pro-cesso que pode ser considerado colonial ou de colonialidade, como frisa Quijano, porque a apropriação do território é realizada nos moldes do Antigo Sistema Colonial, pois se a domi-

nação política direta não mais se faz sentir, também aqui a função precípua do modelo de desenvolvimento implantado é a de atender aos interesses metropolitanos, ou centrais.

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História Ambiental e o Ensino de História: as práticas

e representações sobre a natureza dos professores de História da Rede Pública de

Ensino de Cuiabá.

r aFael marCos de souza Fernandes1

ely berGo de Carvalho2

O objetivo principal do presente artigo é compreender o processo de transforma-ção das práticas e representações sobre a natureza dos professores de História, e

mais especificamente, entender as práticas escolares de educação ambiental dos professores de história em sala de aula. As fontes que serão analisadas são entrevistas com professores da Rede Pública de Ensino de Cuiabá, das seguintes escolas: Escola Estadual André Avelino Ribeiro e E. E. Liceu Cuiabano Maria de Arruda Muller.

Os critérios de seleção dessas escolas foi, no primeiro caso, ser uma escola em um “bairro popular”, no segundo por ser uma escola da área central da cidade sendo uma escola referência, em parte por ser uma instituição tradicional que herdou uma infra-estrutura de uma época em que o Ensino Público era referência de qualidade no Brasil, em ambos os casos a escolha se deu pela acessibilidade dos pesquisadores às instituições. Em cada escola foram realizadas duas entrevistas com professores da disciplina de História.

Parto do postulado da História Ambiental que a natureza tem vários sentidos para o ser humano, e de que devemos entender esses sentidos para podermos construir uma visão de que o ser humano é parte integrante da natureza e não separado dela. Afim de contribuir com políticas públicas que levem em consideração esses diferentes sentidos atribuídos à na-tureza (DUARTE, 2005).

Trazendo isso para o âmbito educacional, cabe a pergunta: como surgiu a Educação Ambiental? Internacionalmente o marco dessa Educação Ambiental situa na “Conferência

1. Graduando em História da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Bolsista PIBIC-CNPq.2. Departamento de História da - UFMT

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das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente Humano”, em Estocolmo, 1972. A partir de uma recomendação dessa conferência, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educa-ção, a Ciência e a Cultura) e o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) lançaram o PIEA (Programa Internacional de Educação Ambiental), em 1975. Os esforços internacionais de promover uma educação voltada para o meio ambiente convergiram na Conferência Internacional, fomentada pela ONU, em Tbilizi, 1977, que já estabelecia em seus princípios que a Educação Ambiental não era repassar informações sobre o ecossistema e seu funcionamento, mas deveria ser um questionamento ético e político, de domínio da na-tureza e de ampliação ad infinitum do consumo, ou seja, a educação ambiental surge nesse contexto como uma tentativa de resposta aos problemas ambientais.

Brugger explicando a diferença entre educação conservacionista e uma educação para o meio ambiente:

[...] uma educação conservacionista é essencialmente aquela cujos ensi-namentos conduzem ao uso racional dos recursos naturais e à manu-tenção de um nível ótimo de produtividade dos ecossistemas naturais ou gerenciados pelos seres humanos. Já uma educação para o meio ambiente implica também, segundo vários autores, em uma profunda mudança de valores, em uma nova visão de mundo, o que ultrapassa bastante o universo meramente conservacionista”(BRÜGER, 2004).

Segundo Carvalho:

[...] Nos últimos trinta ou quarenta anos criou-se um aparato institucional para a Educação Ambiental. Todavia, a adoção do meio ambiente como um tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais repercutiu, re-lativamente, pouco na prática do professor em sala de aula. Sendo que, no caso do ensino de História, isso foi mais grave, pois muitas vezes, o “meio ambiente” foi/é entendido como um problema dos professores de Biologia e Geografia, e não do de História (CARVALHO, 2010).

E situa tal problemática em um quadro mais geral, ao afirmar que:

[...] é a disjunção história/cultura e natureza, tão típica do mundo moder-no, que permite entender o relativo silêncio em relação ao mundo natural no trabalho dos historiadores. Mas a incorporação da temática ambien-tal, seja no trabalho de pesquisa científica ou em sala de aula, não implica na superação dessa disjunção. Ainda ocorre uma homogeneização das ra-cionalidades e, conseqüentemente, das relações das sociedades humanas com a natureza (CARVALHO, 2010).

Mas, o citado autor, aponta para outros fatores para explicar a pouca repercussão nas práticas pedagógicas da educação ambiental, que são:

A falta de uma “consciência ambiental” por parte de gestores e educado-res, ou seja, a não priorização dessa temática por parte desses; a crônica carência material e de condições de trabalho, em especial nas escolas pú-blicas: baixos salários, salas superlotadas, que dificultam em muito, por exemplo, um trabalho interdisciplinar nas escolas; a estrutura fragmenta-

da do conhecimento moderno, voltado para o controle e não para o diá-logo com a natureza, que é reproduzido nas escolas (CARVALHO, 2010).

Com base nessa afirmativa é possível identificar em muitos casos, das entrevistas, pa-drões como uma divisão da memória. Quando perguntamos sobre as práticas de Educação Ambiental da instituição em que os professores trabalham, percebe-se uma perspectiva redu-cionista e disjuntiva, que Carvalho aborda que em tal perspectiva reducionista a História deixou de trabalhar a questão ambiental deixando essa tarefa as disciplinas de Biologia e Geografia.

Percebe-se isso claramente na fala da professora Cláudia Noêmia Souza, na afirmação: “Aqui na escola nós temos, a questão da... professora de biologia com a geografia trabalha a questão da reciclagem, né?” (SOUZA, 2009).

Outra questão perguntada na entrevista, diz respeito ao papel da Educação Ambien-tal, a partir daí temos as seguintes respostas:

[...] hoje ela tem que priorizar mesmo essa questão da natureza, [...] de trabalhar essas questões dos recursos naturais, água, solo, né? A questão do desmatamento, essa questão dos rios que estão morrendo, então tem que haver uma relação mais voltada pra questão da preocupação, de se proteger, mais voltada pra conscientizar as pessoas dessa importância[...] (SILVA, 2010).

A citação indica uma visão mais disjuntiva de educação ambiental, no caso, quando o entrevistado diz que a Educação Ambiental tem que priorizar a questão da natureza como recursos naturais, subtraindo o agente humano, com proposições centradas na conservação dos recursos naturais que retoma a concepção de um “adestramento ambiental”, por outro lado o entrevistado conclui que devemos buscar uma relação voltada a essa preocupação e de se “conscientizar”.

Apesar disso, ao mesmo tempo, aparece nas entrevistas à junção do homem com a natureza, quando na mesma pergunta esse dado se mostra interessante:

[...] então temos que preocupar, rios, a natureza, florestas apesar de o Brasil ser um país diferenciado em relação aos outros, nós temos muitos recursos ainda, a questão da floresta amazônica ai, o desmatamento, a preocupação com a soja, né? Que só se quer plantar, desmatar, criar gado, e também a questão de trabalhar junto com a natureza, mas sem estar depredando tanto a natureza, né?(SILVA 20010).

Tal, aparente, “contradição” indica que há mudanças nas representações e práticas dos professores, ou seja, há elementos de uma educação ambiental “verdadeira” e de um “ades-tramento ambiental”.

Por fim, podemos indicar a título de considerações finais sobre as práticas dos profes-sores de história em sala de aula sobre a natureza: que há um padrão disjuntivo de natureza, com uma Educação Ambiental que seria melhor denominar “adestramento ambiental”, sen-do a natureza interpretada como um recurso a ser preservado e que o papel da Educação Ambiental se restringe ao mero repasse de informações; mas aparece também, nas entrevis-tas, uma necessidade por parte dos professores de questionar nossa relação com a natureza e não apenas ensinar “dados” sobre os problemas ambientais, ou seja, de uma “verdadeira” educação ambiental.

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Apesar da tentativa de se trabalhar com a interdisciplinaridade, mesmo essa tendo limitações, ainda há pouca expressividade na participação dos professores de História nas práticas relacionadas à Educação Ambiental, pois ainda está cristalizada a idéia de que essas práticas são de responsabilidade dos professores de Biologia e Geografia.

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A Emergência de Mato Grosso nas páginas da História Geral do

Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854/1857)

renilson rosa ribeiro1*

Art. 1o O Instituto Historico e Geographico Brazileiro tem por fim colligir, methodisar, publicar ou archivar os documentos necessarios para a his-toria e geographia do Imperio do Brazil; e assim tambem promover os conhecimentos destes dous ramos philologicos por meio do ensino publico, logo que o seu cofre proporcione esta despeza.

• ( “E xtracto dos Estatutos” . RIHGB(1) . 1839) .

A n a ç ã o a c a t a n o s f i l h o s , e a i n d a m a i s n o s n e t o s , o s n o m e s e a s o m b r a , d i g a m o s a s -s i m , d o s i n d i v i d u o s q u e l h e d e r a m i l l u s -t r a ç ã o e g l ó r i a , c o m o n ó s e m s o c i e d a d e v e n e r a m o s a t é a s s u a s r e l i q u i a s ; e n ã o s ó o c a d a v e r, c o m o a e s p a d a d o h e r o e q u e m o r -r e u p e l a i n d e p e n d e n c i a d a p a t r i a ; a p e n n a d o e s c r i p t o r q u e a i l l u s t r o u p e l a s l e t t r a s ; o a n n e l d o p r e l a d o q u e f o i m o d e l o d e s a b e r e v i r t u d e s .

• (Franc i sco Ado l fo de Varnhagen . Hi stor ia gera l do Bras i l . 1854) .

1. Doutor em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2009); professor adjunto I e coorde-nador de ensino de graduação do Departamento de História, da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus Universitário de Rondonópolis.

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O IHGB e a “invenção” do Brasil no século XIX

Os artífices do Império brasileiro, especialmente no final do período regencial e ao lon-go do Segundo Reinado, foram muito hábeis e eloqüentes na construção de representações discursivas – escritas e imagéticas – que acabaram por forjar um tipo de memória oficial para a nação. Nessa tarefa de bem elaborar esta memória, por meio de uma costura de retalhos documentais, para dentro e para fora das divisas do país, destacou-se a atuação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que, em associação com a Academia Imperial de Belas Artes, o Museu Nacional, o Arquivo Público do Império, as faculdades de direito e me-dicina e o Colégio Imperial Pedro II, daria à monarquia uma nova história, retratada em lite-ratura épica, iconografia grandiosa, artefatos e monumentos, saberes institucionalizados que ministrariam uma pedagogia da nação, um corpo de leis e uma nacionalidade sadia desde os bancos escolares até as faculdades – locus de formação das elites.

No período, nesses locais, em especial no IHGB, enquanto a realeza era glorificada – a escravidão negra e a memória dos recentes conflitos regenciais ficariam relegados a uma espécie de limbo – de maneira paralela e simétrica o passado era construído e celebrado, a partir da escolha de imagens e temas que destacavam a existência nos trópicos de uma pá-tria coroada de belezas, encantos e uma trajetória épica de feitos e conquistas. Forjava-se a representação de uma colônia que gradativamente aprendia a ser nação, ou seja, uma criança (Brasil) que, aos poucos, ia aprendendo a ser independente de sua mãe (Portugal) para seguir rumo a um futuro promissor nas mãos de uma monarquia. Esta fidelidade ao monarca seria uma característica muito forte dentro do IHGB, mesmo após a proclamação da República em 1889 (SCHWARCZ, 2003: 06-29).

Fundado por um grupo de intelectuais e políticos, às 11 horas da manhã do dia 21 de outubro de 1838, na capital imperial, sob o patrocínio da Sociedade da Indústria Nacional (SAIN), o IHGB, conhecido como a casa da memória nacional, tinha a missão de “colligir e methodisar, publicar ou archivar” os documentos necessários para a escrita da história do Brasil-nação. Dentro dos seus Estatutos havia a previsão também de cuidar das questões rela-cionadas ao ensino da história, da ramificação do grêmio por todas as provinciais do Império e da correspondência com sociedades estrangeiras do gênero (Extractos, RIHGB, 1839: 18).

A criação do IHGB constituiu-se como uma iniciativa do cônego Januário da Cunha Barboza (1780-1846) e do marechal Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839), que assu-miram para si a tarefa patriótica de serem os construtores da memória nacional, inspirados no modelo do Institut Historique de Paris (GUIMARÃES, 1988: 13; cf. CARRARO, 2002). In-telectuais e políticos de renome na Corte – cujas biografias se confundiam com os fatos da história recente do Estado imperial – aderiram ao projeto. Dentre os fundadores do grêmio, estavam figuras como José Feliciano Fernandes Pinheiro, o visconde de São Leopoldo (1877-1847), José Clemente Pereira (1787-1854), Candido José Araújo Viana, o marques de Sapucaí (1793-1875), Francisco Ge de Acaiaba de Montezuma, o visconde de Jequitinhonha (1794-1870), Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, o visconde de Sepetiba (1800-1855) entre outros (VALE, 2002; GUIMARÃES, 2007: 93-122).

Todos esses nomes, em sua maioria, vinculados ao serviço público imperial, teriam papel determinante nos destinos do IHGB, esboçando as diretrizes que seriam o norte da bússola das atividades desenvolvidas pelo grêmio durante o século XIX (GUIMARÃES, in: VAINFAS, 2002: 380; FERNANDES, 2000). Eles iniciaram uma intensa busca e coleta de docu-mentos sobre o passado brasileiro em arquivos, bibliotecas e cartórios nas províncias e nos

países estrangeiros – Portugal, Espanha e Holanda. Além disso, assumiram como compromis-so a proposta de elaborar para o Brasil um passado único e coerente ao gosto das necessida-des e projetos políticos do seu tempo. Logo, os fundadores, construtores do Brasil-Império e herdeiros do Brasil-Colônia, estabeleceram como meta uma memória nacional pautada pela idéia de continuidade (MATTOS, 2005: 08-26; RODRIGUES, 2001: capítulo II).

Na compreensão destes letrados, o Brasil, nascido em 1822 com a proclamação da Independência pelo príncipe regente D. Pedro, seria uma jovem nação, filha da pátria portu-guesa, de quem havia herdado a língua, a cultura, o regime de governo e um representante da dinastia dos Bragança. A independência, por esta lógica, não se constituiria em uma ruptura, mas num processo de emancipação natural, feita de pai (D. João VI) para filho (D. Pedro I). Não havia no sete de setembro indícios dos traumas e rompantes democráticos que haviam fragmentado a América Espanhola em várias repúblicas (cf. GUIMARÃES, 1995).

Em nome da construção e consolidação do Império, os membros do IHGB dedica-riam suas atividades de pesquisa documental e de produção de memórias, juízos, biografias e compilações, publicadas nas páginas da sua Revista. Ela seria a vitrine das idéias, projetos e discussões da agremiação (SANCHEZ, 2003).

Escrever história, para esses homens da boa sociedade, constituía uma atividade de garimpagem, de quem recolhia documentos assim com se achavam preciosidades. Para Lilia Schwarcz, “o ato de selecionar fatos supunha a mesma isenção encontrada naquele espe-cialista que, ciente do seu ofício, separa as boas pedras das más”, ou mesmo daquelas que ofereciam pouco brilho ao olhar (SCHWARCZ, 1993: 114). Nas mãos dos senhores da memó-ria, no IHGB começou a se conformar uma história que se pretendia única, apesar de mar-cadamente regional – uma história com os moldes do tempo saquarema (elite fluminense) (CARVALHO, 2008: 551-572); pautada pela utilização parcial e seletiva de fatos e documentos a despeito de sua ilusória neutralidade na seleção.

Em meio a esta operação historiográfica apareceria a figura do historiador paulista Francisco Adolfo de Varnhagen, conhecido como o visconde de Porto Seguro (1816-1878), posteriormente denominado por uma certa tradição historiográfica como o “pai da história do Brasil”. A partir de profunda e exaustiva pesquisa documental em arquivos no Brasil e na Europa, ele iria escrever a sua Historia geral do Brasil, publicada em dois tomos respectiva-mente nos anos de 1854 e 1857 (cf. RIBEIRO, 2009).

A emergência de Mato Grosso nas páginas da Historia geral do Brasil

Em relação aos estudos e às representações produzidas de Mato Grosso pelos letrados do IHGB, as páginas da Revista e outros escritos oferecem alguns temas recorrentes: ocupação e colonização, populações indígenas; navegações fluviais e fronteiras.

No caso dos nossos interesses de pesquisa, vamos aqui fazer alguns apontamentos das referências feitas a esta parte do Império na obra referência do período, a primeira edição da Historia geral do Brasil, de Varnhagen. Preocupado com a demarcação das fronteiras com as repúblicas vizinhas e com a necessidade de ocupar os chamados “espaços vazios” do Impé-rio, percebemos na sua narrativa o interesse em produzir uma justificativa para o domínio e a conquista portuguesa (e depois brasileira) da região que corresponderia ao Mato Grosso.

A emergência de Mato Grosso como um espaço discursivo na Historia geral do Brasil estava intimamente atrelada à questão do desenho da chamada fronteira Oeste – seja no

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período colonial, seja no imperial. Além disso, registrava-se a sua importância como uma região-mineradora e as dificuldades decorrentes da presença de índios selvagens no proces-so de ocupação e povoamento – temas atrelados aos feitos dos bandeirantes (“destemidos paulistas”), tidos por Varnhagen como os grandes responsáveis pela expansão e ocupação do território da colônia (futura nação): os construtores da integridade da América Portuguesa.

Para o historiador sorocabano, descrito por Capistrano de Abreu como “destemido bandeirante à busca da mina de ouro da verdade”, essa região entraria na sua cartografia a partir da necessidade de apresamento de índios e, depois, da descoberta de minas de ouro. Em meados de 1696, relatou Varnhagen, duas bandeiras rumaram para “as bandas da actual província de Matto-Grosso; e passando além do porto de Itatines e lagoa de Mamoré, se dirigiram á reducção de S. Francisco Xavier, com idéa, crê-se, de chegar até á cidade de Santa Cruz de la Sierra” (VARNHAGEN, HGB, t. II, p. 98).

A história da colônia naquela época vivia, segundo o autor, a “vertigem mineira que se assenhorava de todos, e não havia perigo ou obstaculos que não se vencessem” (VARNHA-GEN, HGB, t. II, p. 99), em virtude da descoberta de minas de ouro no sertão – Minas Gerais.

A partir da recuperação da colônia do Brasil por Portugal com base no tratado de Utrecht de 1715, Varnhagen registrou a questão da (re)definição das fronteiras – setentrional – entre a colônia portuguesa e a espanhola após o final da União Ibérica, com a restauração de Portugal e ações da metrópole na direção de administrar o interior do Brasil, lembrando que o direito de posse respaldava-se pelo principio da conquista e ocupação.

Neste sentido, Varnhagen passou a narrar o processo de ocupação do sul e norte da colônia pelos bandeirantes, o que gerava “ciumes e aprehensões” da Espanha. Entre os fatos que mereceram nota nas páginas da Historia geral do Brasil sobre “o ajuste da mais prompta determinação da fronteiras” estava o estabelecimento dos sertanejos no Cuiabá – auxiliados pela navegação fluvial:

Vimos como ja annos antes os sertanejos paulistas para prender Indios, chegavam até o Paraguay e termo de Santa Cruz de la Sierra. Desde que apareceram minas nesses longinquos logares ja não iam ahi os sertane-jos para logo voltar; porem formavam arraiaes: assim em 1719 Paschoal Moreira Cabral com outros companheiros se estabeleceram no Cuiabá. – Em 1720 tres Lemes (Domingos, Lourenço e João) povoavam o isthmo ou varadouro de Camapuan; -- sitio de grande importância por ser o único trajecto por terra no caminho, fluvial em todo o restante, de S. Paulo ao mesmo Cuiabá, por onde se faziam em rodos de varar as canoas até aos rios da contravertente. Em 1724 os nossos canoeiros do Amazonas, subin-do pelo Madeira e Guaporé, e encontraram com as missões castelhanas de Moxos Santa Maria Magdalena e Exaltacion, o que deu logar a conten-das pelejadas. Em 1744 o mestre de campo Manuel Dias da Silva subia os rios Ivinheima e Igatemy, buscando outra communicação para o Cuiabá, e nesse ano passava a explorar essa communicação, por ordem superior, Manuel da Costa Meira (VARNHAGEN, HGB, t. II, p. 154-155).

Neste processo de “vida e actividade” no sertão, Varnhagen veria a necessidade do po-der metropolitano criar novas capitanias como Minas Gerais (1720); e territórios como Goiás (1744); Cuiabá ou Matto Grosso (1748). Esta última confiada a D. Antonio Rolim de Moura, o primeiro conde de Azambuja (1709-1782).

Estes avanços pelo sertão de norte a sul, segundo o visconde de Porto Seguro, trouxe um clima de apreensões para a Espanha, forçando a necessidade de um novo tratado de li-mites, que foi assinado em 1750 – Tratado de Madrid [mais tarde anulado, em 1761, pelo Tra-tado de El Pardo], após intensos debates, tendo a figura do diplomata Alexandre de Gusmão (1695-1753) destacada como “celebre estadista”, por defender o principio do utti possidetis. A partir dos termos do tratado foram fixados, tomando como referência o caminho das águas, a demarcação dos limites (VARNHAGEN, HGB, t. II, p. 158-159).

Essa descrição da definição do desenho das fronteiras neste período tinha a finalida-de, para o historiador-estrategista do IHGB, forjar um passado que justificasse a preservação deste território no contexto do Império, especialmente diante das contendas com o Paraguai, que conduziriam ao conflito do Prata (1864-1870) (cf. PEIXOTO, 2005; DORATIOTO, 2002; MENEZES, 1998).

Outro episódio apresentado por Varnhagen sobre essa parte da colônia seria a viagem do governador da capitania de São Paulo Rodrigo César de Menezes (1673-1741) para Cuiabá com a finalidade de verificar pessoalmente tamanha riqueza das minas de Cuiabá, atendendo as ordens da Coroa, e formar vila (1726). As páginas seguintes seriam uma espécie de diário da viagem do governador à Cuiabá, relatando o percurso, as intempéries, os ataques dos ín-dios “canoeiros ou Payaguá, de nação e língua estranha aos Tupis e Guaranis, que senhoreava todo o alto Paraguay e seus afluentes”.

Para o autor, estes gentios eram tidos como traiçoeiros e entraves para o caminho entre São Paulo e Cuiabá. Em sendo impossível sua civilização, ele não deixou de celebrar a “prática do aprisionamento e extermínio” adotada pelos sertanistas (cf. OLIVEIRA, 2000; MENEZES, 2002: capítulo II).

Para castigar os Indios, fez o capitão general de S. Paulo, conde de Sarge-das, preparar em 1733 uma expedição ás ordens do sorocabano Gabriel Antunes Maciel. Outra em 1734 ás ordens do marechal de campo Manoel Rodrigues de Carvalho, caindo sobre os Payaguás, os derrotou, ficando prisioneiros perto de trezentos d’elles (VARNHAGEN, HGB, t. II, p. 172).

Ao longo das próximas seções da Historia geral do Brasil, quando havia referência ao Mato Grosso esta girava em torno de três chaves – ocupação/comunicação (fluvial), limites/fronteiras e guerra aos gentios. Esta parte do Império colonial português, segundo Varnhagen, precisava ser definitivamente dominada, pois sofria sempre com os avanços dos inimigos externos (espanhóis) e internos (índios selvagens).

Ao documentar exaustivamente a partir de 1750, os tratados de limites feitos e des-feitos para a definição das fronteiras entre os domínios de Portugal e Espanha, Varnhagen – também como diplomata – tinha os olhos voltados para as questões do seu presente – a necessidade de por um ponto final nas disputas pelo desenho definitivo das fronteiras do Império. Evidenciar no passado a presença e domínio português nestas partes ditas distantes da antiga colônia era uma forma de produzir uma verdade histórica, militar e jurídico-diplo-mática para os interesses do Império brasileiro.

No delicado jogo de xadrez da geopolítica que desencadeou a guerra contra o Para-guai, a diplomacia imperial – da qual Varnhagen fazia parte – buscava alcançar três objetivos: o primeiro, decisivo para a província de Mato Grosso se comunicar com a Corte no litoral, era a obtenção da livre navegação do rio Paraguai; o segundo era buscar definir um tratado de delimitação de fronteiras com o país guarani, ratificando a expansão territorial brasileira ocor-

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rida desde os tempos da colônia; e, por último, evitar uma possível incorporação do Paraguai pela Argentina restabelecendo-se assim um Estado que corresponderia ao antigo vice-reino do Rio da Prata (DORATIOTO, 2002: 471).

Neste sentido, basta verificarmos como o visconde de Porto Seguro registrou como o Império Português documentou e produziu um conhecimento sobre os terrenos fronteiriços à época do tratado de 1777 – Tratado de Santo Ildefonso – elementos necessários para a sua defesa do legado territorial da metrópole para a nova nação:

Com as viagens, as observações e as discussões dos comissarios, engenhei-ros e astronomos, tanto se adiantou no conhecimento dos terrenos frontei-ros, que ainda hoje são talvez elles do Brazil o que ha de mais conhecido e exactamente delineado nas cartas, depois das costas e bahias. – Por este lado as duas tentativas de demarcação (bem que as demarcações não se levassem ávante) produziram beneficio real, pois quanto ao mais, no fim do século passado, pela linha da fronteira, havia nada menos que dez paragens disputadas.

Alem das muitas plantas originaes, principalmente dos rios, merecedoras de todo conceito, que existem nos nosso archivos [no archivo militar, secre-taria dos negocios estrangeiros e Inst. Hist. do Rio de Janeiro], possuímos todas as correspondencias; as quaes, quando sejam publicas, comparadas com as declamações dos visinhos, deixarão claramente ver que não ti-nham razão de queixar-se (VARNHAGEN, HGB, t. II, p. 259).

Varnhagen documentava e narrava o passado, com os pés no seu presente – escre-vendo uma história geral, que permitisse a consolidação do Império e de Mato Grosso como uma província-fronteira, teria um papel relevante no desenho do território da nação – uma peça no quebra-cabeça de geopolítica do império no século XIX, articulada com o processo de centralização do Estado pela elite saquarema (MATTOS, 2004).2

As imagens esboçadas sobre o Mato Grosso colonial por Varnhagen confirmam o fardo do legado do “estigma da barbárie” – analisado nos estudos de Lylia da Silva Galetti. Segundo a autora, a região de Mato Grosso era pensada e representada pela elite letrada bra-sileira, entre meados do século XIX e começo do XX, por um lado, como um lugar marcado por longas distâncias e dificuldades de acesso, o que separava a província/estado do mundo civilizado, e, por outro lado, como uma terra promissora – um “espaço vazio” a ser ocupado para a consolidação territorial, política e econômica da nação (GALETTI, 2000: 27-28).

Os escritos sobre Mato Grosso presentes em obras de pensadores da estirpe de Var-nhagen buscavam suas referências nos viajantes estrangeiros que por estas paragens percor-reram nos séculos XVIII e XIX. Nestes relatos o Mato Grosso era retratado como uma região próxima da barbárie – à riqueza e a exuberância dos recursos naturais se contrapunha um mundo dominado por índios bravos e mestiços. O clima quente, os insetos, os animais sel-

2. Segundo Renato Amado Peixoto, a história da definição das fronteiras do Brasil no período imperial foi desenhada a partir de uma narrativa historiográfica que decorreu do processo de centralização do Estado. Esta narrativa fundacional do território seria pautada pela idéia de continuidade e unidade, privilegiando o centro em detrimento da região (PEIXO-TO, 2004: 39-48).

vagens e os caminhos tortuosos eram elementos que reforçavam a imagem negativa desta região de fronteira.3

De acordo com Lylia Galetti, os mato-grossenses se ressentiam com estas representa-ções carregadas sobre sua província/estado, forjando uma identidade incômoda pautada no estigma da barbárie. Em busca da construção de uma imagem civilizada e positiva de Mato Grosso, os intelectuais mato-grossenses iriam, a partir da fundação do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) – em 1919, e Centro Mato-Grossense de Letras (CML) – em 1921, produzir textos, imagens e símbolos que registraram outra visão sobre a região, destacando as belezas e atrativos do lugar e da sua gente (GALETTI, 2000: 285; cf. QUEIROZ, 2006: 149-184).

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3. As representações sobre o Mato Grosso nas páginas da Revista do IHGB é objeto de estudo de Luís César Castrillon Mendes, em sua pesquisa de mestrado em História no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sob a orientação da Professora Doutora Maria de Fátima Costa.

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O estágio supervisionado na formação de novos professores

de História: experiências de observação

robson da silva Torres

Aos dias 08/04/2010 em uma quinta-feira, deu-se início o Estágio Supervisionado em Ensino de História II, que ocorreu na Escola Estadual Onze de Março, localiza-

do na Rua Tiradentes, S/n, Bairro: Centro, cidade: Cáceres. O termino do estágio e observação se deu no dia 22/04/2010 em uma quinta-feira. Foram 10 dias que totalizaram 40 horas de observação, como previsto no plano de ensino da disciplina de estágio.

Nosso grupo contou com a colaboração de uma professora que administra a sala nes-sa escola, atuando tanto na rede pública quanto na rede privada, a mesma teve sua formação acadêmica na UNEMAT. Salientamos que a professora não mediu esforços para nos auxiliar no estágio que é uma das etapas do nosso curso de licenciatura plena em História. O estágio é indispensável para a formação da identidade do docente, é o que nos fala Pimenta (1999) em Estágio e a construção da identidade profissional docente:

O curso, o estágio, as aprendizagens das demais disciplinas e experiências e vivências dentro e fora de universidade ajudam a construir a identidade docente. O estágio, ao promover a presença do aluno estagiário no cotidia-no da escola, abre espaço para a realidade e para a vida e o trabalho do professor na sociedade. (1999, p.67)

A fala de Pimenta deixa bem visível que a formação de docentes não se dá único e ex-clusivo com teoria, mas na prática e no convívio, como processos de aprendizagem. Pimenta em Estágio e Docência fala de alguns relatos sobre o estágio vivido por alguns estagiários e professores:

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O estágio sempre foi visto como a parte prática dos cursos de formação de profissionais... Não é raro ouvir, a respeito dos alunos que concluem seus cursos, referencias como “teóricos”, que a profissão se prende “na pratica”... Que “na prática a teoria é outra”. (2008.p.35)

As aulas observadas ocorreram no período noturno, turno esse que é difícil de ser trabalhado devido os alunos serem em quase sua totalidade trabalhadores, possuindo as-sim uma jornada de atividades mais ampla, chegando cansados para as atividades escolares, fazendo com que o aproveitamento seja abaixo do esperado. Na escola Onze de Março é oferecido somente o ensino médio, que deve seguir uma educação, segundo a Lei 9.394/96, citada por Bittencourt em “Histórias nas atuais propostas curriculares”, “deve ser presidido por uma educação geral formativa e não propedêutica, sem a preocupação com a especiali-zação profissional, mas tendo como objetivo central o preparo para o exercício da cidadania.” (2004.p.117)

Logo no primeiro dia de observação tivemos uma surpresa, pois nós, os estagiários e a professora nos depararam com uma situação inesperada. Na turma dos 2º I havia três alunos “especiais”, que apresentavam deficiência auditiva, mas que freqüentavam as aulas normal-mente. Esses alunos contavam com o auxilio de uma professora de libras que acompanhava os mesmos durante todas as aulas, inclusive nas aulas de história. Os alunos especiais tinham um pouco de dificuldade para o aprendizado, pois eles ficavam reféns da professora de li-bras, uma vez que a fala sobre o conteúdo é transformado em sinais para o entendimento dos mesmos, e alguns conteúdos ou palavras tinham uma tradução de difícil entendimento ficando vagos alguns conceitos e o entendimento ficava um pouco apático, mas a professora se esforçava para dar uma atenção especial e fazer com que todos entendessem o conteúdo de maneira igualitária, “especiais e normais”. É claro que a inclusão destes alunos é assegurada pelo estatuto da Criança e Adolescente, em seu art.54, III, que é citado no Referencial Curri-cular Nacional para educação infantil. (RCNEI)

É dever de o estado assegurar À criança e ao adolescente (...) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmen-te na rede regular de ensino (1998.p.36)

O estado tem um projeto que visa à integração dos alunos portadores de necessidade especiais que é executado pelo MEC, como informa o RCNEI.

O MEC desenvolve, por intermediário de sua Secretaria de Educação Espe-cial (SEESP) uma política visando á integração das crianças portadoras de necessidades especiais ao sistema de ensino, propondo a inclusão destas crianças nas instituições de educação infantil.” (1998.p.35)

Esse projeto de lei pode constatar na Escola Onze de Março com a inclusão desses alunos, não só a preocupação de fazer valer a lei, mas a cidadania que incluem todos e todas, se mostrando uma escola que busca incluir todos com suas diferenças sempre de braços abertos para atender aqueles que buscam auxilio, mesmo que não haja um apoio do estado.

Para o nosso grupo foi muito desafiador o primeiro contato com uma classe de aula devido a várias circunstâncias, mas a principal foi sem duvida o fato de encontrarmos alunos que necessitam de um auxilio diferenciado, uma vez que em nosso currículo de formação de professores não temos ou não entremos em contato com esse tema, acessibilidade para alunos especiais, daí talvez a nossa surpresa. É valido ressaltar que já tínhamos um pequeno

conceito sobre o assunto, mas não imaginaríamos encontrá-lo logo de cara e principalmente no nosso estágio supervisionado.

O nosso desafio na observação não ficou somente nos alunos especiais, pois os de-mais alunos tinham seus problemas particulares que interferia diretamente no aprendizado dos mesmos, dificuldades essas que vão desde o fato de muitos deles serem trabalhadores e ter uma carga horária diária de atividades muito longa, ficando a escola em último plano, pois já tendo se esgotado a energia e o ânimo eles pouco se interessam em aprender o conteúdo ainda mais se tratando da disciplina de História. É valido ressaltar que o estágio ocorreu com alunos que estudam no período noturno daí o fato de muitos serem trabalhadores.

A professora trabalhou com as turmas dos 2º H, I, no primeiro bimestre, os temas de: Iluminismos, Revolução Industrial e Francesa, fazendo o uso do livro didático que é sem dú-vida um recurso indispensável, que acompanha o professor no ensino dos alunos, mas não é o único recurso a ser usado em uma sala de aula.

Iniciando-se as aulas, a professora distribuiu livros didáticos para que os alunos fizes-sem o acompanhamento dos conteúdos que foram propostos para as aulas, o livro foi usado como suporte aos conteúdos propostos no seu plano de ensino.

Com o livro nas mãos os alunos trabalharam a leitura, que em um primeiro momento foi feito em silêncio para que eles assimilassem o conteúdo a ser trabalhado, logo após a pro-fessora pediu que eles formassem grupos de leituras, foi dado aos mesmos temas separados para que eles pudessem discutir em si e logo após passaram à resenha, que eles fizeram no grupo para os demais alunos.

O livro foi utilizado também como fonte de pesquisa para o seminário que foi apre-sentado pelos alunos no decorrer das aulas, dos livros tiraram leituras e bibliografia que foi utilizado nas apresentações do trabalho. O livro foi um suporte muito importante para os alunos “especiais”, pois os mesmo acompanhavam as aulas com maior facilidade, uma vez que para ler eles não utilizavam o auxilio da professora de libras. Sem duvidas o livro é muito importante para o ensino do aluno, como cita Ribeiro (2007) em Livros didáticos de História: Trajetórias em Movimentos.

Eles também constituem um “instrumento pedagógico”, uma vez que pro-duzem uma série de técnicas de aprendizagem - exercícios, questionários, sugestão de trabalho, enfim as tarefas que os alunos devem desempenhar para a apreensão ou, na maior parte das vezes, para a retenção dos con-teúdos. Dessa forma, os livros didáticos apresentem não somente os conte-údos das disciplinas, mas também como esse conteúdo deve, na visão dos seus produtores, ser ensinado. (2007.p.41)

É valido lembrar que o livro não é o único material didático a ser utilizado pelo profes-sor no ensino e aprendizagem dos alunos, com descreve Ribeiro:

Enfim, o livro didático , assim como qualquer outro discurso , não pode ser tomado como transparência do real, do verdadeiro... Não há livro di-dático perfeito, neutro e livre de preconceito e estereótipos. Todo texto trás as marcas e dilemas de sua época de produção. Cabe a nós educadores, dentro de nossas experiências, vivências e leituras, assumir o papel de uma memória coletiva. (2007.p.51)

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As figuras, imagens e fotografias também fizeram parte do plano de aula utilizado pela professora. Nas aulas observadas o uso desse material metodológico foi muito bem explorado, esse tipo de recurso teve o intuito de fazer com que os alunos fizessem uma comparação e assimilação das imagens, fotografias e figuras com os textos apresentados. O objetivo era tirar deles as conclusões e análises dos conteúdos. A professora orientava os alunos para que eles tivessem cuidado em relação às imagens apresentadas, pois elas não podem ser tomadas com um retrato do real, uma verdade do fato histórico, “mesmo uma fotografia não representa uma verdade”, diz a professora em sua fala para os alunos, ressalta também, que muitas imagens são produzidas em épocas posteriores aos acontecimentos que são relatados nos livros didáticos.

Ressaltando que esse tipo de método de ensino é fundamental para que os alunos “especiais” tenham um melhor acompanhamento dos conteúdos, uma vez que a visão é o principal veiculo de comunicação dos deficientes auditivos, e o uso de imagens é essencial para assimilação dos conteúdos.

Paiva em História e Imagem confirma a fala da professora para os alunos, fazendo re-ferencia às iconografias encontradas nos livros didáticos de História.

A imagem não é o retrato de uma verdade, nem a representação fiel de eventos ou de objetos históricos, assim como teriam acontecido ou assim como teriam sido. Isso é irreal e muito pretensioso. (2002.p.19,20)

É claro que a iconografia trabalhada de forma adequada, é um material importante para o professor utilizar em sala de aula, uma vez que os livros didáticos de história vêm car-regados de ilustrações, pois estes são tomados como registros históricos. Paiva em História e Imagem faz uma avaliação positiva da nova geração de professores que fazem o uso das iconografias de forma adequada, assim como a professora da escola Onze de Março , onde fizemos nosso estagio de observação.

As novas gerações de historiadores brasileiros vêm usando como fonte pri-vilegiada a iconografia e tem feito isso com muita destreza. Enfim, já não a tomamos como simples “Ilustração”, “figuras”, “gravuras”, “desenho”, que servem para deixar o texto mais coloridos, menos pesado e mais chamati-vo para o pequeno leitor ou mesmo para o adulto . (2002.p.17)

Nas aulas subseqüentes a professora, com o auxilio da tecnologia fez a utilização dos recursos audiovisuais para que os alunos assimilassem o conteúdo com mais facilidade, pois vivemos numa era em que tudo gira em torno da tecnologia, nada mais natural que nas esco-las os professores utilizem esse recurso didático. Em muitas escolas é raro encontrar materiais multimídias para que o professor prepare a sua aula. Na escola Onze de Março a professora pode fazer uso desse recurso, embora de forma precária, mas existia alguns aparelhos que ela se utilizou para passar os conteúdos que estavam em seu plano de ensino.

Com o auxilio do data show ela pode transferir para seus alunos algumas imagem, fotos, ilustração , charges e músicas que estavam relacionadas com o tema. Os alunos tam-bém utilizaram os recursos didáticos nas apresentações dos seminários, como o data show para alguns slides referentes ao tema trabalhado. Na montagem dos seminários os alunos puderam contar com os computadores que a escola tinha disponível, assim retiraram alguns conteúdos, imagens e outros materiais para as suas apresentações.

Com o passar dos tempos, novas metodologias surgiram para auxiliar os professores no ensino dos alunos, os novos meios de comunicação, aqueles com altas tecnologias passou

a ser um aliado do professor, portanto os recursos didáticos têm uma função importante no aprendizado do aluno, desde que trabalhado de forma adequada. Veja o que cita Bittencourt.

Os materiais didáticos são instrumentos de trabalho do professor e do aluno, suportes fundamentais na mediação entre o ensino e a aprendiza-gem. Livros didáticos, filmes, excertos de jornais e revistas, mapas, dados estatísticos e tabelas, entre outros meios de informação, têm sido utili-zados com freqüência nas aulas de História. O crescimento, nos últimos anos, no número de materiais didáticos é inegável, com a multiplicação de publicações didáticas e paradidáticas, dicionários especializados, além de materiais em suporte diferenciados daqueles que originalmente têm sido utilizados pela escola, baseados em vídeos e computadores. (2004, p.295)

As nossas observações do Estágio Supervisionado do Ensino de História II foram feitas em duas turmas como já foi citado, na primeira turma o 2º H, possuía um bom número de alunos, talvez por ser uma turma com um número elevado de alunos as aulas não tinham um rendimento esperado, por mais que a professora se esforçasse, outro motivo para que as aulas não andassem era um intervalo para o lanche que era feito bem no meio da primeira aula, sem contar que as aulas tinham um atraso por conta dos alunos chegarem atrasados, isso fazia cair o rendimento das aulas. Na outra turma o 2º I as aulas eram mais tranqüilas, era uma turma com poucos alunos devido ao fato de nela se encontrar os alunos especiais, pois uma turma com um número elevado de alunos dificultaria o aprendizado dos mesmos. Os alunos do 2º I eram muito compreensivos com os seus colegas especiais auxiliando-os nas atividades, a professora tinha maior domínio da sala , conseguia trabalhar o conteúdo com maior facilidade.

Ao fim das observações de estágio, pudemos constatar como é ser professor, uma pro-fissão que é fundamental para a formação do cidadão, mas que é pouco valorizada por nossa sociedade, hora por um governo que pouco investe na formação desses profissionais, hora por pais que acham que quem dá a educação é o professor, em outro momento por alunos que pouco se importam com a escola, não dando nem uma importância àquele profissional que apenas quer ajudar em sua formação.

Para nós futuros professores de história, o desafio de ensinar a matéria é maior que as demais disciplinas, pois a história não é “muito bem vista” pelos alunos, isso ficou bem visível durante as observações em comentários feitos pelos alunos dirigidos aos estagiários, pergun-tavam, porque história? Essa matéria é chata, vocês são loucos de fazer história?. Perguntas como estas e comentários pejorativos nos fazem refletir sobre o tipo de história que está sendo transmitido para os alunos. Nas observações realizadas por nós a professora conseguiu transmitir o melhor dela para eles, não podemos falar de uma forma geral sobre o ensino nas demais escolas, mas das nossas observações ficou claro que a história como disciplina carrega um estereótipo que será difícil retirar, mas não é impossível, depende de nós futuros profes-sores para mudar essa estrutura que se formou sobre o ensino de história.

Com esse primeiro contato com a escola ficou bem visível as dificuldades que encon-traremos quando futuramente nos tornaremos professores, como já fomos alertados durante o curso pelos professores das disciplinas de didática e estágio, nas escolas o modo de passar o conteúdo é diferente, pois nem todos ficaram em silencio como na universidade, há muitas dificuldades tais como a falta de recursos para uma melhor aula planejada e outros empeci-lhos que dificultará o bom andamento da aulas , tanto no período que estaremos estagiando ou mesmo quando já como professores .

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Tínhamos uma visão muito alem do que seria uma aula, pois somos acadêmicos e já fomos alunos do ensino regular, e só agora nas observações foi que conseguimos nos ver como professor, ainda que não tenhamos administrando uma aula para alunos nas escolas. As observações são importantes para que possamos tirar as duvidas de como é uma sala de aula vista com uma visão de professor.

Temos uma barreira bem grande na nossa frente até que possamos concluir o curso, essa barreira é a regência nas escolas, esperamos que ocorra tudo como o planejado.

Até aqui os resultados colhidos foram os esperados, o conhecimento sobre a vivencia escolar é de importância impar, pois é nesse momento que fazemos a escolha de sermos professores ou apenas um licenciado na disciplina, é nesse momento das convivências com alunos e suas dificuldades que tomamos gosto ou não pela profissão mais importante, a de ensinar, trabalhar os conhecimentos que buscamos por um longo caminho na faculdade.

Espero que se um dia eu me tornar um docente que eu seja um daqueles que gosta de ensinar, formar cidadãos assim como os meus tantos professores que tive durante toda a minha vida que me levaram para um banco de faculdade, assim espero tomar a profissão de professor.

Bibliografia

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos/Circe Ma-ria Fernandes Bittencourt- São Paulo: Cortez, 2004- (Coleção docência em formação, Série ensi-no fundamental/ coordenação Antônio Joaquim Severino, Selma Garrido Pimenta).

LANGER, Johnni, hTTp://www.anphu.uepg.br/hietoria-hoje/vol2n5/johnni.htmPAIVA, Eduardo França. A iconografia na História – indagações preliminares. História e ima-gens. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

PIMENTA, Selma Garrido. Estágio e docência / Selma Garrido Pimenta, Maria Socorro Lucena Lima; revisão técnica José Cerchi.-3.ed.- São Paulo:Cortez, 2008.-(Coleção docência em formação. Série saberes pedagógicos)

RIBEIRO, Renilson Rosa. Livros didáticos de história: trajetórias em movimento. In: JESUS, Nauk Maria de, CEREZER, Osvaldo Mariotto e RIBEIRO. Renilson Rosa (Orgs.). Ensino de História: tra-jetórias em movimento. Cáceres-MT: Editora Unemat, 2007

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Algumas considerações teórico-metodológicas sobre a Revolução Cubana e as posições

políticas de Jean-Paul Sartre.

rodriGo davi almeida1*

Trata-se da divulgação de alguns dos resultados de minha Tese de Doutorado, em História, sobre a Revolução Cubana (1959) e as posições políticas de Jean-Paul Sar-

tre. Partindo de uma hipótese geral de trabalho, afirmo a radicalização das posições políticas de Sartre tendo em vista seu fundamento histórico-social. Em outras palavras, a Revolução Cubana determina, em parte, a radicalização das posições políticas de Sartre que se processa a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O referencial teórico-metodológico por mim adotado está baseado nas ideias desenvolvidas por Lucien Goldmann, Michael Löwy, István Mészaros e Jean Chesneaux sobre a relação entre indivíduo e história. De acordo, portanto, com o raciocínio, sob o “impacto da história”, Sartre redimensiona seu conceito filosófico de liberdade. A liberdade, para Sartre, deixa de ser definida em termos ontológicos e individuais e passa a ser definida em termos históricos e coletivos. Isto é, em termos econômicos, como independência; em termos sociais, como emprego, habitação, saúde e educação, e em ter-mos políticos, como soberania do Estado.

A Revolução Cubana, com a Guerra da Argélia (1954-1962) e a Guerra do Vietnã (1946-1975), assinala a emergência do Terceiro Mundo no cenário geopolítico internacional. A Revolução Cubana reforça a expectativa da revolução tricontinental e coloca, pela primeira vez, entre parênteses, o imperialismo neocolonialista norte-americano, o que será realizado também, depois, no Vietnã. Ao mesmo tempo, Cuba é o primeiro e o único país da América a se tornar socialista, fato que, indubitavelmente, repercute no pensamento e evolução política

1. IMES – Instituto Municipal de Ensino Superior de Catanduva/SP. Licenciado, Mestre e Doutor (Bolsista da FAPESP) em História pela UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Assis/SP, em 2010.

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de muitos intelectuais de esquerda. Dentre os intelectuais europeus de esquerda, Sartre talvez seja o mais polêmico e um dos mais engajados na defesa pela liberdade do Terceiro Mundo.

Tendo em vista, portanto, a Revolução Cubana, e os referenciais teórico-metodológi-cos supracitados, podemos compreender e explicar a radicalização das posições políticas de Sartre bem como a importância dos textos de Sartre, enquanto fontes documentais, para a reconstituição da História da Revolução Cubana, em seus anos iniciais. Contudo, as posições políticas de Sartre também contribuem para a Revolução, pois Sartre se torna um importan-te difusor de suas conquistas revolucionárias, particularmente, no Brasil.

A Liberdade Cubana Exaspera o País da Liberdade

Sartre afirma que até a Revolução de 1959 os cubanos miseráveis não tinham futuro. A cada ano esperavam, depois de quatro meses de trabalho, a volta de oito meses de de-socupação (SARTRE, 1961c: 102). Sem trabalho (em torno de três milhões de homens), uns migravam para a Europa, outros, para os Estados Unidos e assim tudo seguia a sua rotina: “os especuladores especulavam; os traficantes traficavam; os desocupados seguiam sem traba-lho; os turistas se embriagavam e os camponeses desnutridos, corroídos pela febre e parasitas, trabalhavam a terra alheia um dia atrás do outro”(SARTRE, 1961c: 70).

A luta da Revolução, direcionada contra o exército e a ditadura de Batista, objetiva, portanto, destruir o imperialismo “semi-colonialista” norte-americano. Para destruí-lo é ne-cessário, de acordo com Sartre, a luta econômica (pela independência), a luta social (pelo fim da miséria), a luta política (pela soberania do Estado) e a luta moral (pela honestidade de seus dirigentes):

lutar pela independência da economia cubana, pela soberania de seu Es-tado e pela honestidade de seu pessoal dirigente, era lutar primeiro contra os EUA. O objetivo político havia esvanecido ante o objetivo econômico, e, este por sua vez, se desvanece ante o objetivo social. Os estudantes, os pequenos burgueses, queriam em princípio reformar as instituições. Mas os revolucionários, ao pensar suas reivindicações reformistas, descobrem subitamente o único instrumento capaz de realizar as reformas: o povo. E particularmente a classe mais numerosa e mais deserdada: os trabalha-dores agrícolas. (SARTRE, 1961a: 13, grifos de Sartre).

A deflagração da Revolução em Cuba põe fim ao esbulho “semi-colonial” ao mesmo tempo em que coloca em xeque a “Doutrina Monroe” norte-americana. Não por acaso, os Estados Unidos temem a disseminação de outras revoluções pela América Latina tendo em vista “o exemplo cubano”. Os Estados Unidos não podem deixar que Cuba se converta “em líder das massas da América Latina” (SARTRE, 1961b: 25) que “sentem o peso do imperialismo econômico americano”(SARTRE, 1961c: 116). Eis porque, segundo Sartre, “a liberdade cubana exaspera o país da liberdade”(SARTRE, 1961c: 198): ela mostra que “se o sistema quebra em um ponto, então pode quebrar em todos” (SARTRE, 1961d: 8).2 Além disso, os Estados Unidos temem que Cuba se torne o enclave do bloco comunista na América Latina, o que de fato ocorre, quando Cuba se proclama socialista e, pior, quando, em 1962, a União Soviética instala bases de lançamentos de mísseis em Cuba, evento que fica conhecido como a “crise dos mís-seis”. Naquele momento, muitos até cogitam a possibilidade de um terceiro conflito mundial.

2. A Guerra do Vietnã reforça a expectativa.

O recrudescimento do temor dos Estados Unidos resulta na invasão da ilha em 1961, fato antevisto por Sartre que observava que as relações de Cuba com os Estados Unidos deterioravam-se a cada dia. Sartre escreve: “indignados e preocupados, os cubanos se pergun-tam se os Estados Unidos não boicotariam os barcos cubanos que chegam à costa sudeste do continente, se abaixariam a cota de açúcar e organizarão o bloqueio” (SARTRE, 1961c: 197). Em entrevista ao L’Express, Sartre afirma, no entanto, que a invasão tinha poucas chances de obter sucesso (os fatos posteriores mostraram que Sartre estava correto) porque as massas estavam profundamente ligadas ao regime de Castro. Em última instância, e na hipótese de uma derrota dos cubanos, o resultado seria ainda mais desastroso aos EUA, pois,

o esmagamento de Castro terá ao mesmo tempo por efeito radicalizar os povos sul-americanos e de reforçar sua recusa do imperialismo. (...) É pre-ciso compreender o que representaria um fracasso de Cuba, inicialmente para nós, mas sobretudo, para o conjunto dos países subdesenvolvidos, pelo que se chamam de Terceiro Mundo. (...) Não se trata, portanto, do caso cubano, de uma simples injustiça. Esta é uma, claro, e particularmen-te revoltante: é inógbil, para uma grande potência, se enfurecer e abater um pequeno país que luta para reconstruir sua sociedade depois de mais de meio século de dependência. Mas o problema não está aí. Se é preciso se alinhar totalmente nos flancos de Castro é porque é a política da es-querda que se busca esmagar com ele. (SARTRE, 1961d: 8)

Enfim, Sartre destaca que, fundamentalmente, o “país da liberdade” não objetivava apenas destruir um povo que se rebelava contra o sistema “semi-colonial”, mas sobretudo, es-magar e debelar toda a política de esquerda cubana que poderia servir de modelo aos outros países latino-americanos.

A “Incompetência Competente”: a Juventude no Poder e os Problemas do Dirigismo e do Centralismo Revolucionários

Para Sartre a revolução fez-se, inicialmente, sem ideologia e sem partido político, pelo menos, no sentido tradicional, daí a sua originalidade. O partido político revolucionário cuba-no em gestação é a guerrilha e sua forma é o foco guerrilheiro, de acordo com Sartre. Isto se deve à própria especificidade latino-americana, cujas instâncias política e militar não se separam, formando um todo orgânico (SARTRE, 1969: 36). Outra especificidade da guerrilha, destacada por Sartre, consiste no fato de ser liderada por jovens.

Sartre nos dá algumas explicações sociológicas para o fato de a revolução ter sido pen-sada e liderada por jovens e por tê-los alojados no poder, o “maior escândalo da revolução” (SARTRE, 1961c: 168) para os “ianques”. Para Sartre, “somente a juventude experimentava su-ficiente cólera e angústia para empreendê-la (a revolução) e tinha suficiente força para levá-la a cabo”(Ibid.: 169) uma vez que “o crescimento demográfico rompia o equilíbrio na ilha e convertia em minoria os velhos”(Ibid.: 169). Agravava o quadro, o fato de que a juventude via seus adultos transigirem com a ditadura e a

a juventude não tinha nada que perder. Via seus adultos contemporizar com a tirania e pensava: se resignam às nossas desgraças. (...) Frente à re-núncia dos adultos, inventaram uma intransigência que não tem perdido

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e que lhes permitiu compreender o chamamento que lançava a intransi-gência de Castro.(Ibid.: 169, grifos de Sartre).

Sartre faz referência à direção econômica e política da revolução, ou em outras pa-lavras, à questão do dirigismo e do centralismo revolucionários. Sartre se posiciona favora-velmente ao dirigismo3 dos jovens rebeldes no poder por reconhecer que as circunstâncias externas (imposta pelos norte-americanos) determinavam as decisões internas tomadas em Cuba:

as circunstâncias cubanas exigem o dirigismo; é a hiper-industrialização dos Estados Unidos que exige o dirigismo à pequena ilha agrícola. O gover-no revolucionário experimenta essa pressão da realidade, delibera cada dia sob a ameaça, transforma a ameaça estrangeira em exigência da eco-nomia cubana, dá a conhecer o esforço que é necessário realizar, qual o setor está sob um perigo mais ou menos imediato? Como poderia ser de outro modo? (Ibid.: 158).

O centralismo também foi adotado pelos cubanos por imposição das circunstâncias, desta vez, internas. A sociedade cubana era caracterizada por grande divergência de interes-ses entre suas classes sociais e à época da Revolução estava sendo lugar de conflitos políti-cos e sociais como as greves operárias, inclusive, durante os primeiros meses da Revolução. Diante da situação, de acordo com Sartre, Fidel Castro recorre “à arbitragem dos conflitos sociais” e impõe “aos sindicatos operários pôr um término às greves”, pois, “acabava de vencer o exército dos feudais, de expulsá-los, de confiscar seus bens para as classes desfavorecidas” (SARTRE, 1968: 194). O confisco dos bens dos “terratenientes” foi obra da Reforma Agrária, completa Sartre, e foi ela que,

exigindo sacrifícios de todos, convida os trabalhadores rurais e urbanos a construir sua unidade real, seu interesse comum que era a livre exploração da ilha por todos em proveito de cada um. Apresentado de outra forma, o centralismo pode identificar a unidade nacional e o interesse comum se a revolução da qual sai é socialista. (...) Sem o saber, o centralismo exige esse mínimo abstrato que é a unidade nacional para que uma sociedade nova encontre tempo de se dar estruturas e quadros (SARTRE, 1961c: 194).

A observação de Sartre é deveras importante no que diz respeito à identificação entre unidade nacional e o interesse comum do povo cubano. Estes somente são factíveis se o centralismo emana da uma revolução socialista, como afirma Sartre, pois, do contrário, “na falta de um movimento de massa, de uma luta armada, de um programa socialista, o cen-tralismo, como práxis unificadora” (Ibid.: 194) pareceria arbitrário a todos. Sartre afirma que a industrialização não iria fazer-se ao acaso nem muito menos a Reforma Agrária que “reclama um dirigismo moderado” (Ibid.: 161). Em relação à Reforma Agrária, o “programa está feito antecipadamente; sobre ele se calçam as planificações particulares: se produzirá tanto de trigo, de algodão, tanto de maquinarias e ferramentas (...) homens fazendo projetos para os últimos anos do século”(SARTRE, 1961a: 3).

3. Devemos lembrar que no momento em que Sartre escreve, Cuba não havia se declarado socialista, o que ocorre apenas após o embargo econômico imposto à ilha pelos Estados Unidos e diante da ameaça de invasão da ilha pelo “país da li-berdade”, em 1961.

A industrialização estava, num primeiro momento, subsumida ao atendimento das necessidades de consumo alimentício da população cubana.

As Conquistas da Reforma Agrária

Da mesma forma como Sartre relaciona a miséria do povo cubano, o governo de Ba-tista e a sua corrupção à dependência econômica, também relaciona a independência eco-nômica de Cuba, levada a cabo pela Reforma Agrária – que é a mudança radical das antigas estruturas “semi-coloniais” – com a elevação do nível de vida e a honestidade dos líderes revolucionários.

A conquista revolucionária fundamental do povo cubano, indubitavelmente, é a Re-forma Agrária. Em 17 de maio de 1959 promulga-se a 1ª Lei de Reforma Agrária. De acordo com Sartre, estabelece-se a supressão dos latifúndios, a imposição de um limite máximo das propriedades privadas em 30 caballerias (por volta de 400 hectares). A partir disso, os exce-dentes são expropriados e repartidos entre os camponeses. Proibe-se a aquisição de terras pelos estrangeiros; limita-se também a 2 caballerias a extensão de terras que cada família (de até 5 pessoas) poderia ter. Proíbe-se a propriedade simultânea do engenho de açúcar e da terra destinada à plantação de cana (SARTRE, 1961c: 143). Para Sartre, a Revolução revela seu verdadeiro radicalismo ao expropriar os grandes proprietários de terras.

Com o objetivo de difundir a Revolução Cubana, Sartre apresenta alguns extratos da introdução da 1ª Lei de Reforma Agrária que, segundo ele, “deveria ser traduzida a todas as línguas” (Ibid.: 145). Eis, a seguir, alguns dos principais pontos da lei apresentados por Sartre:

a Reforma Agrária tem duas metas principais: a) facilitar o surgimento e extensão de novos cultivos que provejam a indústria nacional de matérias--primas e que satisfaçam as necessidades do consumo alimentício, consoli-dem e ampliem as linhas de produção agrícolas com destino à exportação, fonte de divisas para as necessárias importações; b) elevar por sua vez a capacidade de consumo da população mediante o aumento progressivo do nível de vida dos habitantes das zonas rurais, o que contribuirá, ao estender o mercado interior, à criação de indústrias que resultam pouco rentáveis num mercado reduzido e a consolidar outras linhas produtivas, restritas pela mesma causa. (Ibid.: 145).

Sartre reproduz esses pontos da lei para destacar o papel-chave da Reforma na so-ciedade cubana, isto é, a “reforma como a organização fundamental das forças produtivas e das relações de produção” (Ibid.: 145). Para Sartre, a reorganização das forças produtivas e das relações de produção, operadas pela Reforma Agrária, permitem a Cuba romper com a dominação norte-americana, isto é, o imperialismo “semi-colonialista” e a desenvolver sua produção de modo a satisfazer as necessidades do povo cubano, criando, inclusive, um mer-cado interno.

Isso possibilita a erradicação da miséria, do desemprego, da fome e das doenças dela decorrentes e do analfabetismo. Sartre oferece os seguintes números: “catorze meses depois da vitória dos rebeldes, 25 mil desocupados haviam encontrado trabalho” e nessa esteira, “as outras desgraças sociais como doenças e o analfabetismo”(Ibid.: 95) foram extirpados. Em suma, os problemas sociais cubanos são resolvidos pela Reforma Agrária que possibilita o

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pleno emprego e a formação de quadros técnicos que resolvem os problemas da educação e da saúde. No longo prazo, sabemos que as medidas tomadas foram eficazes, afinal, Cuba se transformou em centro de referência mundial em educação e saúde públicas.

O maior problema resolvido pela Reforma Agrária foi o do desemprego. Os traba-lhadores cubanos tinham apenas quatro meses de trabalho, durante o período da safra de açúcar. Transcorrido o período, passavam oito meses desempregados. Como precisavam se alimentar, vestir-se, etc., endividavam-se “com o bodegueiro da aldeia, com o patrão. Quando oito meses mais tarde voltam ao trabalho, seu pagamento futuro está consumido de antemão por esses empréstimos”(Ibid.: 90). Eis porque “as classes pobres se alegraram francamente: o novo governo havia feito em algumas semanas o que seus predecessores não haviam podido fazer em quinze anos”(Ibid.: 135). As medidas são: o rebaixamento dos aluguéis (cujo valor foi estipulado em 50% a menos do que eram), a redução das tarifas de telefonia e de eletricidade. Em seguida, esses setores da economia cubana foram nacionali-zados. De acordo com Sartre, para os trabalhadores da cidade “antes de receber seus salários, o aluguel e a eletricidade levavam a metade dos mesmos” (Ibid.: 134), isso porque a pequena burguesia “em princípio contra sua vontade, logo com seu consentimento torna-se proprie-tária de imóveis ou de apartamentos, obtendo rendas pelos aluguéis de seus imóveis” (Ibid.: 95). Sartre analisa a Reforma Agrária sob um duplo aspecto: econômico e moral. Do ponto de vista econômico, ela resolve o problema da dependência econômica ao orientar a produ-ção para a satisfação das necessidades do povo cubano criando um mercado interno. Para isso foi preciso a ruptura com a dominação “semi-colonialista” norte-americana. Em relação ao segundo aspecto e ligado ao primeiro está o fato de que a Reforma Agrária é justa por acabar com as desigualdades e os problemas sociais engendradas pelo subdesenvolvimento. A Reforma Agrária

é um exemplo claro disso: concede um poder aquisitivo novo às classes rurais e quebra o domínio estrangeiro criando um mercado interno. Mas ao mesmo tempo, a Reforma Agrária é justa: suprime os privilégios e a miséria, permite ao trabalhador ser dono da terra e fabricar uma casa. Essas duas características indissolúveis constituem talvez a originalidade da ideologia cubana: o problema humano deve resolver-se em termos de produção; o único desenvolvimento viável da produção será aquele que satisfaça em tudo, a todas as necessidades do homem (SARTRE, 1961a: 16, grifos de Sartre).

Quando Sartre afirma que a Reforma Agrária “permite ao trabalhador ser dono da terra” isso não significa que se deva confundi-la “com a áspera vontade de possui-la indivi-dualmente”. Mas a idéia fundamental do fragmento consiste em assegurar que “o problema humano deve resolver-se em termos de produção”. A honestidade dos dirigentes, a sobe-rania do Estado, a liberdade de todo um povo “constituem o aspecto prático e material de uma problemática humana e humanista.” Sartre complementa: “o único desenvolvimento viável da produção será aquele que satisfaça em tudo, a todas as necessidades do homem”. (SARTRE, 1961a: 16). O “novo homem”, livre, honesto, nasce com a “nova sociedade”, livre, justa.

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“A Violeta”: uma bandeira feminina hasteada na imprensa

mato-grossense

rodriGo leônCio Cardoso

ana maria marques

Neste artigo fazemos uma análise de um período muito instigante que é o inicio do século XX. O principal objetivo é entender como as mulheres do estado de Mato

Grosso, especialmente as letradas, participaram deste processo que caracterizou o “feminis-mo da primeira onda”. A proposta é entender esse primeiro feminismo através da ótica da revista “A Violeta”, considerado um primeiro periódico feminista em Mato Grosso, circulou entre 1916 e 1950.

Um dos trabalhos mais importantes de análise desse periódico foi o de Yasmin Nadaf, pois a partir dele é possível conhecer as escritoras e a organização da revista pela catalogação da pesquisadora. A pesquisa de mestrado em Literatura, de Nadaf, pela UNESP, transformou--se em livro no mesmo ano da defesa (1993) que também será utilizado como base e como já foi dito a grande questão que estará sendo respondida é como funcionava o feminismo da primeira onda no estado de Mato Grosso.

Através do estudo da revista encontram-se vários aspectos relevantes nas bandeiras de luta hasteadas na época, como: a luta pelo progresso e a defesa de questões ligadas à solidariedade, a exemplo, a defesa da construção de um abrigo para pessoas idosas. Dar-se-á ênfase ao aspecto lírico da revista até porque suas escritoras compunham um grêmio literário e através dessa abordagem exprimiam-se desejos e aspirações.

Fazemos uma breve discussão de gênero que, apesar de ser um termo muito posterior ao período que será abordado aqui, cabe muito bem. Utilizamos a obra de Joan Scott como referência para pensar a sociedade, pois falar de gênero é falar de sociedade e desta não po-demos colocar as mulheres à parte.

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Uma flor nasce no centro-oeste e essa não é uma flor como as outras é uma flor de cor forte e que se destaca através de sua beleza e de suas características que a diferencia de toda a vegetação em volta e essa flor tem como nome violeta e é a flor que nasce na imprensa de Mato Grosso na primeira metade do século XX, mais precisamente em 1916, o principal foco, algo que não era tão disseminado pelos veículos de imprensa até então, era a mulher

A Violeta tinha como local de suas produções o Grêmio Literário “Júlia Lopes” (NA-DAF, 1993):

A idéia do seu aparecimento surgiu de um grupo de jovens normalistas da “Escola Normal de Mato Grosso ligado a algumas senhoras e senhoritas simpatizantes da cultura, que desejavam a instalação de uma agremia-ção onde pudessem cultivar as “letras femininas e patrícias”, criando para divulgação de uma revista bimensal. A agremiação foi fundada em 26 de novembro de 1916 com o nome de Grêmio Literário “Júlia Lopes” e no mês subseqüente fez circular o primeiro exemplar de sua revista, A Violeta.

A revista em seu primeiro exemplar de 16 de dezembro já demonstra quais seriam as suas características - era um misto de modéstia com espírito de luta que é o que realmente vai caracterizá-la. A Violeta tinha um caráter bastante cultural, como as poesias que sempre estiveram presentes em seus exemplares. Tem-se de ressaltar que a revista estava sob a égide de um grêmio literário, cujo estatuto tinha como principal regra o desenvolvimento inte-lectual da mulher mato-grossense. Além desse caráter cultural bastante forte, o periódico tinha também as suas bandeiras de luta e dentre essas podemos destacar algumas como, por exemplo, a implantação de uma Escola Domestica Feminina e a construção da estrada de ferro para o norte de Mato Grosso – o que dá um caráter reivindicatório à revista.

Ao longo desses anos de publicações e por que não dizer anos de mais singeleza e ternura na imprensa mato-grossense a revista contou com várias colaboradoras e sócias con-tribuintes que foram de vital importância para os trinta e quatro anos de publicações, elas formavam, conforme Nadaf (1993):

(...) um grupo bastante heterogêneo de alunas da Escola Normal Pedro Ce-lestino de Cuiabá, de professoras, de funcionárias públicas, de profissionais liberais, de escritoras, de jornalistas e de musicistas de renomada projeção regional, como Zulmira Canavarros, Maria de Lurdes Oliveira, Dunga Ro-drigues e Guilhermina Figueiredo está ultima também oradora do Grêmio por um longo período.

Falar de A Violeta é falar um pouco sobre uma parcela das mulheres do estado de Mato Grosso. Representando a imprensa estadual, desde o seu primeiro exemplar, a revista inseriu a mulher como assunto dentro da imprensa, abriu-se um leque de assuntos que es-tão ligados às mulheres, como por exemplo, a inserção da mulher no mercado de trabalho. Isso fosse feito de uma forma bastante contida à época, porque essas mulheres não estavam disputando espaço com os homens. Apesar de ser uma revista que consegue ultrapassar al-gumas fronteiras, essa ultrapassagem não é feita de maneira tão brusca, em vários momentos há um trânsito dos “entre lugares”, utilizando uma expressão de Homi Bhabha. Temos de levar em consideração que essas mulheres, embora sob alguns aspectos sejam consideradas mulheres à frente de seu tempo, acima de tudo são mulheres do seu tempo.

Abordar a revista não é pura e simplesmente abordar um veículo de imprensa - é analisar vários aspectos e características da sociedade mato-grossense. É de fundamental im-

portância a identificação da revista como uma manifestação até certo ponto inovadora das mulheres de Mato Grosso, na perspectiva de transpor antigos costumes, por isso falou me-taforicamente de fronteiras, não físicas. Ultrapassar uma fronteira requer alguma motivação ou necessidade.

Faz-se necessária uma discussão do termo fronteira porque quando se discute a en-trada da mulher no âmbito das discussões feministas, através da revista, tem-se de levar em consideração essa concepção de fronteira que vai muito além de uma cerca ou de algum obstáculo natural, neste caso exige uma abstração muito maior que é a elevação do termo de fronteira ao patamar cultural e social. Para entender melhor o conceito de fronteira, recorre-mos à Sandra Pesavento (2002), ela demonstra o conceito de fronteira como algo simbólico e que, apesar de estar ainda muito atrelado ao geopolítico, vai além.

Sabemos todos que as fronteiras, antes de serem marcos físicos ou naturais são, sobretudo simbólicas, são marcos, sim, mas sobretudo de referência mental que guiam a percepção da realidade. Nesse sentido, são produtos dessa capacidade mágica de representar o mundo por um mundo para-lelo de sinais por meio do qual os percebem e qualificam a si próprios, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo.

Sandra Pesavento continua com várias outras definições análise sobre fronteiras que também são bastante esclarecedoras para o entendimento do conceito que cabe na análi-se da revista. Assim podemos discorrer sobre o tema que trata de mulheres que começam a transpor essas ditas fronteiras, até certo ponto chegam a ser barreiras sustentadas pelos costumes que se consolidam durante muito tempo e é por isso que o caráter dessas mulhe-res que participam dessa fase inicial das reivindicações são tão interessantes, pois elas estão transpondo estruturas de longa duração como diria Fernand Braudel. Nas palavras de Pesa-vento (2002):

Há, sem dúvida, uma tendência para pensar as fronteiras a partir de uma concepção que se ancora na territorialidade e se desdobra no político. Neste sentido, a fronteira é, sobretudo, encerramento de um espaço, de-limitação de um território, fixação de uma superfície. Em suma, a fron-teira é um marco que limita e que separa e aponta sentidos socializados de reconhecimento. Com isso podemos ver que, mesmo nessa dimensão de abordagem fixada pela territorialidade e pela geopolítica, o conceito de fronteira já avança para aquela construção do domínio simbólico de pertencimento a que chamamos de identidade e que corresponde a um marco de referência imaginária que se define pela diferença.

A partir dessa concepção de fronteira vamos tentar dar um panorama geral de como estava situação no Brasil em relação à imprensa feminina e como as mulheres estavam se organizando nesse sentido. É preciso considerar que aqui em Mato Grosso já existiam outras associações femininas com esse caráter reivindicatório, como por exemplo, o jornal Jasmim, anterior a revista A Violeta. A revista estava colocada ou se enquadra em um fenômeno que é bastante caracterizado pelo feminismo do final do século XIX e primeira metade do século XX: a expressão literária.

O feminismo da primeira onda como ficou conhecido tem como características as lutas reivindicatórias, embora não tão radicais comparados às décadas posteriores. Esse fe-minismo inicial tem como reivindicações principais o direito ao voto e espaço no mercado

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de trabalho. Ainda não se pensava em uma competição com os homens, mas sim a luta por espaço - não diretamente uma disputa. A mulher ainda era pensada como “senhora do lar”, não se discutia, propriamente, a saída da mulher desse universo, e é essa a característica que torna bastante peculiar essa imprensa. Também não foi algo exclusivo de Mato Grosso, em várias cidades do Brasil e, principalmente no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, várias publica-ções desse gênero foram editadas.

Esse fenômeno editorial deu-se graças ao ingresso das mulheres na educação letrada e, através desta, mulheres expressam esse caráter reivindicatório e deixam, aos poucos de repetir ou reafirmar o espaço feminino como sinônimo de doméstico. O ingresso de mu-lheres na imprensa deu visibilidade às mesmas. Adentrar no universo da comunicação de massa fez com que essa conquista fosse utilizada como ponte para novas discussões. Muitas agremiações nasceram no seio das escolas normalistas que serão as grandes responsáveis por essa entrada da mulher na imprensa. Como diria a professora Jane Soares de Almeida (1998) ressaltando a importância dessas manifestações:

Os jornais e revistas femininas permitiram a emergência de um universo político e literário feminino que, por sua vez, permitiu uma maior visibili-dade das mulheres. As reivindicações surgiram e possibilitaram a abertura de uma discussão que, transpondo as barreiras do lar, alcançou o espaço público e mostrou que o sexo subordinado até então confinado a domesti-cidade passava a exigir direitos e maior liberdade, o que modificou hábitos e costumes arraigados desde séculos.

A Professora Jane Soares de Almeida faz uma análise de dois tipos de imprensa do início do século XX, uma delas é a imprensa feminina, a outra é uma imprensa de caráter edu-cacional. Ela demonstra que os dois tipos de imprensa, em alguns momentos, lutavam pelos mesmos interesses e em outros divergem totalmente. Outra característica é justamente o po-der de ditar tendências e o principal foco de sua pesquisa é justamente o eixo Rio e São Paulo, aos quais dá bastante relevância aos folhetins de todo o Brasil. Em seu artigo, a professora cita alguns exemplos de revistas ou jornais femininos nas grandes cidades no final do século XIX, o que demonstra a incidência em todo o Brasil. Cita exemplos de algumas publicações em Minas Gerais: “O Domingo”, datado de 1874, e a publicação de Francisca Senhorinha da Motta Diniz com o seu “O Sexo Feminino”, de 1873.

Para conhecer um pouco sobre a alma de A Violeta, é preciso falar sobre Maria Dim-pina - uma das mais importantes escritoras da revista. Utilizamos um artigo de Fernando Tadeu de Miranda Borges (2005) para falar dela. Maria Dimpina nasceu em 1891 e viveu até 1966. Como intelectual, uma de suas principais questões foi justamente a posição da mu-lher brasileira na sociedade. Ela foi considerada por muitos como uma mulher além de seu tempo e, com toda certeza, ela foi muito além do que era posto às mulheres de sua época. Em 1909, aos 18 anos, Maria Dimpina formou-se no colégio Liceu Cuiabano onde até então só estudavam homens e conseguiu o título de bacharel em Ciências e Letras. Foi a primeira funcionária pública de Mato Grosso, ocupou função nos Correios e Telégrafos, dentre as ati-vidades doméstica, claro.

Apesar de ser uma pessoa que estava quebrando barreiras, Maria Dimpina foi uma fiel defensora da instituição do casamento - para ela o casamento era a mais perfeita instituição e o defendia dando grande ênfase ao papel da mulher na educação dos filhos, ou seja, ela era uma defensora de aspectos que colocam a mulher em uma dimensão muito diferente das quais eram aspiradas pelo feminismo, ela era também uma defensora dos papéis domésticos.

Para A Violeta, Dimpina escreveu por mais de trinta anos e é por isso que é de bastante rele-vância relatar um pouco sobre a vida dessa mulher. Maria Dimpina representa uma parcela que corresponde às mulheres letradas de Mato Grosso o que as ligam ao feminismo de pri-meira onda, caracterizado pelo letramento de poucas.

Todavia, outras mulheres de Mato Grosso já demonstravam um caráter reivindicatório desde fins do século XIX, como demonstra Yasmin Nadaf (2005) ao se referir de Maria do Carmo de Mello Rego e ao jornal O Jasmim:

Mesmo não tendo sido possível localizarmos os seus exemplares, extraí-mos notícias sobre ele em periódicos da época, que comprovam tratar--se de um veículo no qual as mulheres congregavam para lutar pela sua emancipação e pela igualdade entre os sexos, numa clara demonstração da prática associativa do chamado “sexo frágil” em Mato Grosso, na se-gunda metade do século XIX.

Yasmin Nadaf continua o seu artigo demonstrando que a prática associativa da mu-lher no meio sócio cultural em Mato Grosso foi algo bastante relevante e, através dessa prá-tica, tivemos várias manifestações e contribuições das mulheres na imprensa, nas artes e em vários outros aspectos culturais.

No século XX podemos citar vários exemplos desse tipo de associação. Dentre vários exemplos, citamos dois: a “Liga das Senhoras Católicas” que surgiu em 20 de setembro de 1925, cujo principal foco era a defesa da moral familiar. Outro exemplo: o Clube Feminino, criado em 1928, diferente do anterior, voltava-se às atividades recreativas, culturais e a prática de esportes. Este último desdobrou-se das atividades do Grêmio Literário ‘Júlia Lopes’.

A revista A Violeta sempre teve como principais características a sua inclinação poéti-ca. Citamos, como exemplo o poema de Gilka Machado (1921):

E u s i n t o q u e n a s c i p a r a o p e c a d oS i é p e c a d o , n a Te r r a , a m a r o A m o r ;Te r n u r a s m e a t r a v e s s a m , l a d o a l a d o ,N u m a a n s i e d a d e q u e n ã o p o s s o e x p o r

F i l h a d e u m l o u c o a m o r d e s v e n t u r a d o ,Tr a g o n a s v e i a s l í r i c o f e r v o r,E s i m e u s d i a s a a b s t i n ê n c i a h e i d a d oA m e i c o m o n i n g u é m p o d e s u p o r

F i z d o s i l ê n c i o m e u c o n s t a n t e b r a d oO a o q u e q u e r o c o s t u m o s e m p r e o p o rO q u e d e v e n o r u m o q u e h e i t r a ç a d o

S e r á m a i o r m e u g o z o o u m i n h a d o r,A n t e a a l e g r i a d e n ã o t e r p e c a d oE a M a g o a d a r e n ú n c i a d e s t e a m o r.

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Neste poema temos a nítida impressão dos anseios que essas mulheres tinham e ape-sar de se tratar de algo tão forte como um amor proibido, é colocado em questão se o amor é mais importante que a moral – o que, mais uma vez, ilustra a transposição de algumas bar-reiras, ou “entre lugares”. A patronesse do grêmio literário “Júlia Lopes”, a própria, era definida por Maria Dimpina como “Esposa e Mãe modelar que fez de seu lar um santuário da ciên-cia” (1922). A luta por liberdade de expressão era também moldada pelos valores da época. Assim como a própria Maria Dimpina que era uma defensora do lar tradicional, o nome do grêmio literário também era uma personificação das características da revista.

A Violeta também teve outras frentes como, por exemplo, questões ligadas ao pro-gresso: a constante luta pela estrada de ferro. Outras questões estavam ligadas à solidariedade e filantropia, por exemplo, a luta pela construção de um abrigo para velhos desamparados, sem falar em várias atividades realizadas em favor da Santa Casa de Misericórdia e do Hos-pital dos Lázaros. A revista teve como principal característica a sua vasta gama de assuntos como nos afirma Yasmin Nadaf: (1993):

O ecletismo temático em A Violeta foi tamanho que levou a revista à ambigüidade: de um lado o individualismo, o amor subjetivo, o culto a beleza da natureza, as flores, o luar, o pôr do sol, e de outro o desejo de solidariedade, o amor a pátria, as lutas pelo progresso da região de Mato Grosso e pela educação e profissionalização da mulher. Isolou-se do real com signos como o da flor, e ao mesmo tempo dele se aproximou quando falou de progresso, da Civilização e da Modernidade, que englobam a cul-tura, a educação, o saneamento, a comunicação, o transporte, a saúde, a realidade circundante.

Considerando todos os aspectos supracitados, foi de fundamental importância e rele-vância o trabalho dessas mulheres que, com a revista, tornaram público não só os anseios de mulheres, como anseios da população. A revista tornou-se, pois, um baluarte do desenvolvi-mento mato-grossense.

O olhar sob a perspectiva da categoria de análise de gênero, referenciada principal-mente em Joan Scott (1995), permite perceber as mulheres inseridas no contexto social, não se trata de uma “história de mulheres”:

“Gênero” como substituto de “mulheres” é igualmente utilizado para suge-rir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informa-ção sobre os homens, que um implica no estudo do outro. Este uso insiste na idéia de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a utilidade in-terpretativa da idéia das esferas separadas e defende que estudar as mu-lheres de forma isolada perpetua o mito de que uma esfera, a experiência de um sexo, tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais”: a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de

se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado.

Essa é a definição que gostaríamos de imprimir: falar de mulheres é necessariamente falar da sociedade, não existe algo que possa separar mulheres de homens.

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Relatos de Repressão na Região Nordeste de Mato Grosso nos

anos de 1970 a 1975

rodriGo lopes alenCar1

A região Nordeste do estado de mato grosso está localizada na porção sul da “Ama-zônia Legal”, tem a abrangência de aproximadamente 15.000 Km² de extensão.

Uma região de muitos conflitos envolvendo a questão da posse da terra. Os atores envol-vidos eram os índios, posseiros, grileiros, latifundiários e grandes empresas agropecuárias. Nesse sentido o ano de 1970 foi um marco, pois foi o “momento em que a igreja erigia ofi-cialmente a Prelazia de São Félix do Araguaia com a chegada do padre espanhol Dom Pedro Casaldaliga”2, sendo que a partir desse marco a igreja optou por estar ao lado dos menos favorecidos, engajando-se na organização das comunidades, levando a população pobre a instituir Sindicatos e Associações. Fazendo um trabalho voltado também nas áreas de Edu-cação e Saúde, campo pouco ou não assistido pelo Governo.

Esse trabalho social voltado para problemas e necessidade da região faziam par-te de uma nova perspectiva da Igreja na América Latina, confirma como diz (DELGADO &PASSOS,2003)3 confirma que o catolicismo passa por um novo olhar, moldando novos espa-

1. Professor Formador da Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação de Mato Grosso(CFAPRO)/Pólo de São Félix do Araguaia-MT. E-mail: [email protected]

2. Maria Henriqueta dos Santos Gomes. A MILITANCIA CATÓLICA NA PRELAZIA DE SÃO FÉLIX DO ARAGUAIA NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR. Trabalho apresentado durante a realização dos Simpósios Temáticos do V En-contro Regional de História: Escrita da História, evento organizado pela Associação Nacional de História – Núcleo Regio-nal de Mato Grosso – ANPUH/MT. novembro de 2008,.Cáceres/MT.

3. Lucilia de Almeida Neves Delgado & Mauro Passos. Catolicismo: Direitos Sociais e Direitos Humanos (1960-1970) In: FERREIRA, Jorge e DELGADO,Lucilia de Almeida Neves. O Tempo da Ditadura: Regime militar e movimentos Sociais em fins do Século XX.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2003.

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ços e horizontes, atuando frente aos direitos humanos e sociais, e esse novo olhar que a Prelazia de São Félix do Araguaia-MT lançava sobre os menos favorecidos era tido como ações de subversões e incitação popular contra o governo militar instituído.

A orientação da Prelazia aos Padres e agentes pastorais era pregar a palavra de Deus, conciliada com os problemas do dia a dia da comunidade, como por exemplo a questão da terra,apontando assim para a transformação da sociedade, através da conscientização dos populares.

Nesse sentido:

[...] a ação pastoral acabou refletindo não só a reação contra as injusti-ças econômica, mas também contra o próprio aparelho de Justiça.Num primeiro momento, os bispos ainda tentavam apelar às instituições civis (até militares) denunciando que a violência violava também direitos dos trabalhadores,camponeses e índios. (MARTINS,1999,p.142)

Como as atividades pastorais estavam muito ligadas aos problemas sociais das comu-nidades, principalmente em áreas pouco atendidas pelo poder público como, por exemplo, assistência à saúde e a Educação, e nessa perspectiva segundo o relato do Senhor Pontim,4 “as atitudes tomadas pela Igreja de São Félix do Araguaia eram consideradas pelo esta-do como algo subversivo e comunista, pois os agentes pastorais e padres estariam ligados aos movimentos populares, além de estarem pregando a agitação política”, e isso fez com que os governos militares da época sistematizassem uma ação organizada sob essa região,.utilizaram-se da força e a ação dos órgãos de repressão como o exército, a policia federal e aeronáutica.

Todas as ações eram organizadas dependendo do foco considerado de conflitos entre populações locais e as grandes fazendas instaladas na região, aliadas ao envolvimento dos agentes de pastoral nesses conflitos, pois as preocupações dos agentes de repressão eram a ‘ordem’ e que o próprio Pontim nos relata que ‘os limites geográficos de nossa Prelazia torna-ram-se ao longo dos primeiros anos da década de 1970, área de segurança nacional, portando deslocou-se para a região de porto alegre do norte’ sendo que o Brasil estava sob a doutrina de segurança nacional: que tinha seus conceitos, princípios e fundamentos, norma que per-meou durante os governos militares toda estrutura do poder publico brasileiro, introduzindo, inclusive na escola brasileira, quando passaram a ser obrigatória em todos os graus do sistema educacional (BORGES,2003.p.38), os militares também deveriam adquirir conhecimentos so-bre a matéria de segurança nacional interna além de descobrir todos os aspectos da vida so-cial, econômica e política, sendo assim um novo profissionalismo dos militares, adaptando-se à vida dos populares em caso de ação organizada sobre essa região de conflitos.

A prelazia de São Félix do Araguaia, foi acusada pelo governo militar de ter ligação com guerrilha do Araguaia, uma Guerrilha rural a 700 km ao norte da Prelazia de são Félix do Araguaia, na região denominada bico do papagaio nos municípios de Marabá e Xambioá, no sul do Pará, organizada e mantida pelo Partido Comunista do Brasil -PC do B, que tinha como objetivo organizar as comunidade pobres e com isso lutar contra o governo instituído na época.

4. José Pontim foi agente pastoral da Prelazia de São Félix entre os anos de 1970 a 1975. Foi preso e torturado.Relato em 01 de maio de 2007.

Com isso a atuação das forças armadas intensificaram-se mais,ainda nessa região situ-ando “A Prelazia de são Félix do Araguaia, na Fronteira de Mato Grosso e Goiás, área em que atuava o Bispo Dom Pedro Casaldáliga, alinhado aos setores progressistas da Igreja e que so-fria constante ameaças à sua integridade física devido ao seu posicionamento em defesa dos posseiros”(ROMUALDO CAMPOS FILHO,1997.p.169),não só em defesa dos posseiros, mas também dos peões, índios enfim de toda uma camada de pessoas que eram exploradas viam seus direitos não reconhecidos, principalmente em relação à causa dos direitos humanos.

Com isso a luta anti-subversiva que enquadrava a sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra um inimigo co-mum, com isso:

A guerra interna é, pois uma guerra total e permanente, o que vai atribuir um forte papel, na sociedade civil, aos aparelhos de segurança e infor-mação que agem preferencialmente, pela violência, com suas táticas de guerra e métodos desumanos.5

Nessa perspectiva o Governo atua com mais ênfase na região nordeste de Mato Gros-so, principalmente após o inicio da década de 1970, assumindo assim um discurso que (GUI-MARAES, 2002) nos apresenta como o guia maior dos ‘modernos bandeirantes’ para a efetiva incorporação da Amazônia ao Território Nacional.

A permanência das forças armadas, na região foi de forma muito intensa e cotidiana, utilizando várias formas de permanência como nos relata o Senhor Pontim em sua memória sobre esse período, “sistematicamente toda região tornou-se alvo do Governo Militar através de seus agentes disfarçados de mendigos, seminaristas, jornalistas, doidos e outros tantos dis-farces, para exercerem o controle das atividades pastorais da Igreja em particular da Prelazia”.6

A repressão que era acompanhada de tortura,prisões, ameaças e espancamentos e ou-tras formas de coação sob as lideranças, agentes pastorais, padres e o Bispo Pedro Casaldáliga, era uma forma de fazer com que atividades da prelazia fosse cessada, pois eram consideradas e forma de agitação política na região.Mas essa ação repressiva não desanimava os lideres, fazendo com que as forças armadas utilizassem os artifícios de repressão mais incisivos sobre os considerados suspeitos de ações subversivas.

Varias pessoas foram presas,interrogadas e torturadas, entre eles estão os agentes de pastoral da Prelazia:Edgar, Moura,Pontim, Tadeu e Tereza Adão,7 além da Professora Adauta Luz Batista, Dona Dauta e o Posseiro Lulu que trabalhava na organização das comunidades (Sindicatos e Associações), era amigo dos agentes de pastoral.

Nesse sentido os agentes de pastoral começaram a ser ameaçados e presos, em ope-rações militares:

Fomos conduzidos por viaturas militares e particulares até a sede da fa-zenda Agropasa (uns 20 km da Cidade de São Félix do Araguaia-MT) onde encontramos Dona Adauta, presa por defender e criticar a ação policial.

5. FILHO, Romualdo Campos.GRURRILHA DO ARAGUAIA,A Esquerda em armas.Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Goiás – Goiânia;Editora da UFG,1997.

6. José Pontim foi agente pastoral da Prelazia de São Félix entre os anos de 1970 a 1975. Foi preso e torturado durante o período dos governos Militares. Relato em 01 de maio de 2007.

7. Todos os Citados eram Agentes de Pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT.

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Também estava o Tadeu de Santa Terezinha, o posseiro Lulu de Serra Nova Dourada.Pela tarde chegou o avião da força aérea e nos conduziu até a base militar da ilha do Bananal onde passamos a noite algemados e amarrados uns aos outros e nos bancos do avião8

Sendo que no relato do sr. Pontim percebemos a importância das grandes fazendas para as atividades militares da região. Outro relato, de 1973 do senhor Tadeu Escame, que também era procurado e posteriormente sendo preso, pelos agentes de repressão do gover-no militar, ressaltava que mesmo morando em Santa Terezinha, cidade ao norte da Prelazia de São Félix fora preso em sua viagem relata:

Fomos para São Félix todo o tempo vigiando o Rio Araguaia, pelo que deduzi estavam procurando alguém que possivelmente poderia viajar de barco”... ”Após 15 minutos estava acompanhado pelo Capitão Moacir e ou-tro PM, fui levado no mesmo avião que me trouxeram até São Felix para a fazenda Agropasa S/A.9

Na teia de relações o próprio responsável pela administração da fazenda acompanha-va toda operação de captura, ameaças e sessões de torturas. Outro relato que traz elementos e detalhes de como os torturadores atuavam é do Senhor Antonio Canuto:

Na fazenda ficamos no carro, Pe. Eugenio então conseguiu me falar que tinha sido espancado e que posto sangue pela boca.Eu mesmo pude ver sangue na sua boca. Quando a outra viatura chegou percebemos que nela era trazida os Padres Pedro Maria e Leopoldo Belmonte e ouvimos o som das pancadas que receberam. Fomos então retirados do carro, enfileira-dos os quatro e amarrados com as mãos para trás.Depois de amarrados, fomos obrigados a sentar no chão. O Pe. Leo foi obrigado a correr, parar, sentar-se e deitar por varias vezes.10

A sensação de medo, ansiedade e impotência tomavam conta de toda a região, os atos de violência cometidos pelos militares, principalmente contra os agentes pastorais, mos-tram principalmente neste relato como as pessoas eram submetidas e quais processos eram utilizados, muitos deles desumanos, e com métodos de crueldade.

Nesse sentido: ‘Tortura é um ato perverso. Os sobreviventes guardam seqüelas no cor-po e nas lembranças... A tortura desonra quem pratica, destrói quem padece. Faz a mente so-frer espasmos, deprime o espírito e desestabiliza a consciência.” (MORAIS &SILVA,2005,p.14.In A Ditadura Escancarada).

A tortura para obter informações e coagir os líderes comunitários, os padres e agentes pastorais foi assumida e implementada pelo governo militar como algo imprescindível para sua atuação na Região nordeste de Mato Grosso. Mas as marcas dessa violência ficaram gra-vadas na memória de quem as sofreu.

8. Relato do Senhor José Pontim em maio de 2007.9. Tadeu Escame. Foi agente de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT. Relatório 10.6. arquivo da Prelazia de São

Félix do Araguaia-MT10. Canuto. Foi agente de pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia-MT. Relatório 10.3. arquivo da Prelazia de São Félix do

Araguaia-MT

Nesse sentido essa memória marcada pela crueldade, torna-se muito difícil expô-la ou superá-la. Essa tortura deixou marcas profundas e feridas incuráveis, pois as agressões como evidencia o relato a seguir, era acompanhada de choques elétricos e agressões físicas. Esse processo de repressão tinha como objetivo forçar a confirmação da Prelazia como uma instituição ligada à Guerrilha do Araguaia, nisso o senhor Pontim nos relata que: “éramos in-quiridos sobre nossa participação na Guerrilha do Araguaia da qual apenas tínhamos noticia sobre nossa ação subversiva na Prelazia, sobre o Bispo

Comunista, como eles diziam.”11, sendo que todo aparato militar era utilizado para reprimir os agentes de pastorais e os padres, pois segundo o relato, os trabalhos sociais da prelazia era considerado como ação subversiva e perigosa ao estado.

Em outro relato exemplifica como era a ação dos torturadores e a reação dos tortu-rados:

...E assim, noite após noite as grades das celas abriam-se rangendo seus ferrolhos e saia um para a cela de torturas. Os que ficavam, rezavam.Quan

do as torturas extrapolavam a resistência já bastante precária aplicavam injeção não se sabe do que para recobrar a resistência.Muitos choques nas costas, nos órgãos genitais, evitando choques na parte da frente pois poderia levar a óbito e pelas costas forçava a coluna no sentido contrário o que causava muita dor e stress. 12

Percebemos através do relato a preocupação para os que estavam sofrendo torturas não viesse a óbito, demonstrando assim que esse mecanismo de repressão era articulado e tinha toda uma orientação de como proceder, para não deixar marcas físicas. Nesse sentido analisamos e procuramos compreender como a atuação Prelazia de São Félix do Araguaia era tida pelas forças armadas, como um foco de agitação política e de ter ligações com a Guerri-lha do Araguaia. Buscamos enfocar também como a memória das pessoas que vivenciaram esses acontecimentos ainda carregam em si às marcas profundas das torturas sofridas, mar-cando e deixando marcas profundas em suas vidas.

11. José Pontim foi agente pastoral da Prelazia de São Félix entre os anos de 1970 a 1975. Foi preso e torturado durante o período dos governos Militares. Relato em 01 de maio de 2007.

12. José Pontim foi agente pastoral da Prelazia de São Félix entre os anos de 1970 a 1975. Foi preso e torturado durante o período dos governos Militares. Relato em 01 de maio de 2007.

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Mata Cavalo: o sagrado e a identidade quilombola

silvânio paulo de barCelos1

As relações do sagrado na Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo constituem num dos fatores de manutenção de suas identidades sin-

gulares permeadas sempre pelo sentimento de pertença ao seu território, espaço de negro constituído ideologicamente pelas vias da recordação e da memória de seus ancestrais. .Se-gundo Silva e Reis, 1989, foi no interior do ambiente das senzalas que o sincretismo religioso criou raízes profundas que repercutem ainda hoje nas comunidades negras contemporâne-as. Utilizando-se dos recursos da imaginação e notável plasticidade, os escravos mesclaram a religião adventícia ao que lhes era mais caro, a herança do sagrado, memória viva da África que nos terreiros permanecia ativa através dos cantos, das rodas, do batuque e da alegria. No Mata Cavalo, uma sociedade predominantemente católica, a herança e os ecos da reli-giosidade africana manifestam-se em forma de tradições conservadas, por exemplo, através da Dança do Congo e das festas de santos. As imagens de Santo Antonio, São Benedito e a Virgem Maria ocupam posição de destaque na vida e no imaginário dessa gente simples, constituindo-se em fator de representação de uma religiosidade única, adoração, fervor e fé. Não precisa muito esforço para compreender a importância da preservação da memória afro-referenciada para os homens e mulheres do quilombo que lutam pela conservação da identidade quilombola e, consequentemente, pelo reconhecimento, via jurídica, da proprie-dade de suas terras.

1. Universidade Federal de Mato Grosso Mestrando em História – Bolsista CNPqOrientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz

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Numa entrevista realizada com o senhor José Gregório da Comunidade de remanes-centes do Quilombo Mata Cavalo em 8 de junho de 2008, constatamos a importância do sagrado nesta sociedade, num contexto de fé que mescla tradição ancestral Africana com a religião católica. Durante nossa conversa, ao relembrar estas práticas, seu olhar se ilumina pelas lembranças do passado de lutas, de solidariedade e do modo coletivo de vida. Impos-sível não reconhecer o valor e a função da fé e do imaginário religioso no cotidiano desta gente simples, que não conheceram outra forma de vida senão como luta constante pela su-peração dos obstáculos no seu dia-a-dia. Esse homem simples, que carrega no semblante as marcas de uma vida sofrida sem perder o brilho da esperança faz questão de ostentar colares, terços, cruzes de madeira e outros objetos místicos, símbolos de sua religiosidade e de suas crenças, revela de forma muito clara uma sabedoria secular herdada de seus antepassados. Formas do viver, negociação constante de espaços delimitados pela alteridade. Muito cedo, percebe-se, aprendeu o seu lugar no mundo e nele, com paciência e alegria, transita com desenvoltura e liberdade.

No final da década de 1950, fugindo às perseguições de alguns fazendeiros que tinham interesses fundiários naquela região, chegam a esta Capital as primeiras famílias que partiram do Mata Cavalo em busca de uma nova vida. Parte desses imigrantes mudou-se para o Ca-pão do Negro, atual Bairro Cristo Rei na cidade de Várzea Grande – MT, a outra parte, entre eles a família do Sr. Crescêncio Gregório de Almeida, pai de José Gregório, recebeu em forma de doação, na época da administração do então Governador Arnaldo Estevão de Figueiredo, uma área de terra medindo 47 hectares localizada na antiga “Gleba Despraiado”, atual bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá – MT. Apesar da distância física que separa as pessoas da co-munidade do “Mata Cavalo” dos seus imigrantes, o sentimento de pertença destes últimos àquele território não foi esquecido nas malhas do tempo, nem tampouco reduzido em inten-sidade, pelo contrário, esse mesmo tempo encarregou-se de sua maturação.

Símbolos e signos sagrados constituem centros de força “centrífuga” capazes de pro-mover sua agregação enquanto comunidade. Os integrantes dessa comunidade, ainda nos dias de hoje, carregam os traços característicos que os identificam com os antigos grupamen-tos rurais negros do município de Livramento. Segundo Dantas, em sua dissertação de mes-trado defendida no ano de 1995, essas características remontam a um período mais afastado historicamente, o que explica a forte influência da Cultura Africana presente no seio destas sociedades. Conforme a autora (DANTAS, 1995 : 30),

Constituição histórica desses grupamentos rurais negros em Livramento remonta à época da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, quando famílias de negros unidas pelo parentesco, passaram a desenvol-ver um modelo específico de vida, se comparado àquele que norteava as relações sociais da sociedade de classe em construção.

A constituição do espaço, um lugar onde viver, para as comunidades formadas pelos descendentes de escravos constituíam na possibilidade da perpetuação e coesão do grupo ao mesmo tempo que possibilitava sua reprodução demográfica, social e cultural. O ambiente ressignificado com as marcas de uma africanidade singular possibilitou a manutenção da prá-xis cultural e da identidade relacionada ao ser negro no interior de uma sociedade claramente marcada pelo preconceito. De acordo com essa autora (DANTAS, 1995 : 45),

Se no passado as diferenças de classe podiam aparecer dissimuladas [...] as relações entre brancos e negros eram claramente racistas, mesmo quan-do filtradas pela afetividade. [...] Os negros buscaram a construção de sua

identidade étnica ancorada nos pilares da espacialidade: ser negro, paren-

te, partilhando a propriedade coletiva.

As formas de resistências dos integrantes da Comunidade de remanescentes do Qui-lombo Mata Cavalo fortaleceram os elos de ligação do grupo, determinando a construção de uma identidade própria, aqui traduzida como quilombola. No caso dos imigrantes que vieram para o atual Bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá, as práticas culturais foram mantidas através dos ritos religiosos, das rezas e benzeções, além das relações familiares e também de compadrio, em sua estrutura social. Tanto aqui como no município de Livramento eles se fecharam em uma comunidade, que se quer, diferenciada no ambiente envolvente, a saber: uma comunidade de negros2.

Nessa comunidade de imigrantes do Mata Cavalos, no Bairro Ribeirão da Ponte, os lugares onde se encontram espaços destinados aos cultos religiosos constituem-se em locais sacralizados, uma territorialidade do sagrado, portanto. Nesse espaço religioso nota-se uma constante transição entre dois mundos que se interligam pela ação dos encarregados de conduzir as cerimônias e ritos. É ali que os santos são evocados para o ato de cura mística, através de hierofanias identificadas em objetos que representam uma religiosidade singular. Segundo Eliade, para explicar a hierofanização afirma que em “manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente” (ELIADE, 1992 : 13).

No período de tempo tornado sagrado pelas seções de curas espirituais, os símbolos hierofânicos sob a ascendência da atmosfera mística do local, permite o intercâmbio com os santos para a economia simbólica do tratamento que tanto pode resultar em cura da enfermidade ou não, o que depende da fé de ambas as partes, e do merecimento de quem o recebe. O momento da realização do tratamento espiritual só se realiza nesses espaços pre-viamente purificados pois, “lá, no recinto sagrado, torna-se possível a comunicação com os deuses, consequentemente, deve existir uma porta para o alto, por onde os deuses podem descer à terra e o homem pode subir simbolicamente ao céu” (ELIADE, 1992 : 19).

Cotidianamente a religiosidade presente na maioria das casas da comunidade aqui estudada se faz notar com relativa intensidade. Símbolos e signos sagrados estão presentes em forma de crucifixos, que são utilizados como adereços pessoais ou como enfeites nas portas, paredes e mesas. Em varias casas visitadas percebemos a existência de altares, bíblias, imagens de santos, terços, contas, oratórios, entre outros. Essa materialidade religiosa remete a práticas que, certamente, são muito usuais no interior das famílias em cujas intimidades se realizam cultos e rezas.

No caso específico da comunidade de negros do Bairro Ribeirão da Ponte, várias das antigas práticas não puderam mais ser utilizadas, por se tratar de uma realidade diferenciada, um ambiente urbano em oposição ao ambiente rural ao qual estavam acostumados. Prá-

2. O termo negro utilizado neste trabalho constitui-se em categoria sociológica normalmente empregada pelos integran-tes dessas comunidades, e não caracteriza uma forma de preconceito na redação deste texto.

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ticas comunitárias como o Muxirum3 e o Celebre4, e também a troca de dia ou “demão”5, foram muito pouco utilizados nesta comunidade, evidenciando uma nova realidade sócio--econômica, à qual deveriam se adaptar. Cerceados de vários tipos destas práticas, os indiví-duos não perderam o vínculo estreito com a comunidade “Mata Cavalos”, tornando-a assim em expressão do lócus privilegiado do sentimento de pertença à uma entidade abstrata de grande valor simbólico. Tal é essa relação que nos casos de óbito de qualquer membro da co-munidade, não importando onde vivam atualmente, seu corpo é levado para ser enterrado no Cemitério do Mata Cavalos no município de Livramento. Essa questão revela claramente o esforço empreendido pelos membros da comunidade na conservação daquele território como local de memória. Sepultando-se, ali, todos os seus mortos cria-se pelas vias do ima-ginário um campo simbólico capaz de transformar aquele pequeno território num local de perpetuação e de coesão do grupo fora do mundo material.

Para grande maioria dos quilombolas que foram obrigados a deixar as suas terras a possibilidade do retorno é uma realidade plausível e ao mesmo tempo um sonho a ser reali-zado. De uma forma ou de outra todos os entrevistados revelam, em seus depoimentos, uma forte ligação com o quilombo, um sentimento de pertença àquele território onde esperam um dia para lá voltarem. Entendemos que a religiosidade e os símbolos do sagrado contri-buem para a manutenção do imaginário afro-referenciado, o que permite uma identificação estreita entre todos os imigrantes e destes com o Mata Cavalo. Assim, uma questão muito importante verificada neste processo constitui-se nas formas de manutenção da tradição ancestral Africana, apropriadas pelos descendentes que para cá vieram, traduzidas em formas de danças, cânticos, culinária, músicas, ritmos e religiosidade, enquanto recurso primordial para a educação das futuras gerações. Dantas reporta-se a esse sistema educacional empírico através da perpetuação da tradição da Festa do Congo realizada pela Casa São Benedito, em Livramento – MT, segundo ela:

O reconhecimento social do Congo como um conhecimento eminente-mente negro, na perspectiva do processo ensino/aprendizagem, recupera para os negros e para a sociedade, a identidade dos negros como sujeitos e como produtores de cultura. Como um fenômeno educativo de alcance étnico, apresenta o negro como concretude na sociedade local, regional e nacional; apreende sua existência como real e viva. Evidencia-se a pos-sibilidade de ser – no – mundo – negro, com outros negros, com outros brancos. Uma forma de aprender a ser negro no arrepio dos parâmetros racistas, mantendo uma saída para fora do vínculo do branqueamento e da integração da imagem branca do negro.

Essa questão fundamental para a própria sobrevivência da cultura negra do “Mata Cavalos” já foi percebida no seu interior, e hoje, rebuscando as origens da festa do Congo,

3. Muxirum – consiste num sistema de trabalho comunal e cooperativo envolvendo a maioria dos integrantes da socieda-de, cada qual com atribuições especificas na elaboração da tarefa proposta. A alimentação dos trabalhadores fica a cargo do indivíduo que recebe o auxílio, este retribui em forma de trabalho quando requisitado por um membro qualquer da comunidade.

4. Celebre – prática comunal parecida com o muxirum, mas somente utilizada quando há a impossibilidade do indivíduo que recebe o auxilio fornecer a alimentação necessária aos trabalhadores. Desta forma os trabalhos são realizados somen-te em uma parte do dia, normalmente após o almoço.

5. Demão – Sistema de ajuda mútua para trabalhos entre parentes mais próximos e amigos, solicitado ou oferecido informalmente.

que originalmente era produzida na própria comunidade e com o tempo foi transferida para o meio urbano da cidade de Livramento, está sendo retomada com toda intensidade pelas crianças e jovens enviadas à Casa São Benedito para o aprendizado da tradição secular do Congo. Uma perspectiva interessante e coerente por parte de seus representantes. Nas fes-tas de São Benedito que são realizadas nessa comunidade o ponto alto é representado pela apresentação da dança do Congo, pelos jovens, logo após o hasteamento das bandeiras dos santos, simbolizando assim a (re)tomada de antigas tradições ancestrais como prática edu-cativa e mantenedora da identidade afro-referenciada. Aqui, no dizer de Gonçalina (uma das lideranças do movimento de resistência quilombola do Mata Cavalos), resgatando o espírito de Zumbí da tradição de Palmares, “vamos contar a nossa história, na visão que a gente vê, na realidade que a gente vive...”

Bibliografia

CHARTIER, Roger, 1988. A história cultural – entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Ed. Bertrand Brasil, S. A. Rio de Janeiro.

DANTAS, Triana de Veneza Sodré e. Educação do negro: a pedagogia do Congo de Livramento, MT. / Triana de Veneza Sodré e Dantas. –Cuiabá: Instituto de Educação, 1995.

ELIADE, Mircea, 1907 – 1986. – O sagrado e o profano / Mircea Eliade; tradução de Rogério Fernandes. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.

SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. / Eduardo Silva, João José Reis. – São Paulo: Companhia das letras.

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O Funeral Bororo: patrimônio imaterial indígena e sua relação com a natureza

proFª dr a Thereza marTha presoTTi Guimar ães

péTal a pereir a silva1

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo apresentar o Funeral Bororo como um patrimô-nio imaterial, e também procura destacar a relação do Funeral com os elementos da natureza pantaneira, diante do grande valor na vida e práticas culturais dos índios Bororo.

Primeiramente apresentaremos uma breve contextualização acerca da conquista do atual território mato-grossense pelos paulistas e portugueses. A seguir, tratamos de alguns dos primeiros relatos dos Boe registrados pela Missão Salesiana, apresentando um pouco da história desse povo. Finalizando o trabalho, um ultimo tópico aprecia o Funeral Bororo como patrimônio imaterial na categoria “celebração” e sua relação com a natureza ou elementos da fauna e flora da terra Bororo.

A metodologia utilizada parte das publicações da Missão Salesiana com descrições do Funeral Bororo. Após uma leitura desses primeiros relatos, o trabalho desdobra-se em uma discussão bibliográfica subsidiada por alguns autores que já discutiram esta temática.

Este estudo foi pensado a partir do Inventário Documental do Patrimônio Imaterial

1. Professora do Departamento de História da UFMT [email protected] e Graduanda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso [email protected]

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Mato-Grossense2, no processo de mapeamento e elaboração de fichas que vêm possibilitan-do conhecer e registrar as manifestações culturais imateriais em Mato Grosso,incluindo as diversas etnias indígenas. O contato com os estudos e publicações sobre as diversas manifes-tações culturais do estado de Mato Grosso foi de imenso valor, e dentre estas manifestações uma nos chamou atenção, - o Funeral Bororo. Para esta manifestação cultural indígena dirigi-mos nosso olhar.

Esse é um primeiro resultado de leituras e reflexões a respeito do Funeral Bororo neste projeto a qual participamos. Esclarecendo um pouco mais acerca do caminho metodológico tomado, oProjeto Inventário Documental do Patrimônio Imaterial Mato-Grossense teve por objetivo realizar uma pesquisa documental sobre o patrimônio cultural (saberes e modos de fazer, formas de expressão, festas, celebrações e lugares ou espaços de práticas culturais cole-tivas) do Estado do Mato Grosso. Visou ainda o diagnóstico das condições de conservação e acondicionamento dos acervos pesquisados, bem como o funcionamento das instituições que os abrigam. Foi constituído por equipe interdisciplinar einventariou os patrimônios ima-teriais do Estado através de pesquisas em diversos acervos e diferentes tipos de documentos. Sua realização se deu em quatro etapas: (1) capacitação, (2) pesquisa de dados nos acervos, (3) alimentação no banco de dados e (4) exposição. Neste momento já foi concluído o Rela-tório final com o Banco de Dados em DVD e agendada a Exposição para dezembro de 2010.

Os Boe e seus “Conquistadores”

A partir de dados arqueológicos, é possível perceber a presença de grupos indígenas antes da chegada dos luso-paulista nas terras e águas do centro da América do Sul, onde hoje se localiza o estado de Mato Grosso. No que diz respeito aos Boe (Bororo), de acordo com pesquisas arqueológicas desenvolvidas por I. Wust (1992), dados indicam sua presença e complexidade cultural no ambiente, conforme podemos ver nesta síntese:

Por volta de 700 anos antes da chegada dos colonizadores portugueses, as sociedades proto-Bororo das áreas centrais da América do Sul viviam em grandes aldeias circulares habitadas por mais de mil indivíduos. A base de sua subsistência era a agricultura, complementada pelas atividades de pesca, caça e coleta. Esses povos dominavam a tecnologia cerâmica para o cozimento e a conservação dos alimentos, e os aspectos decorativos nas vasilhas pressupõem elaborações articuladas aos seus sistemas sociocultu-rais. A existência de inúmeras urnas funerárias (enormes vasos cerâmicos) e os diversificados padrões de sepultamento remetem a elaborados siste-mas cerimoniais e religiosos. (Apud. PRESOTTI, 2008: 32)

Esses dados vêm confirmar a presença dos Bororos desde tempos remotos como um das primeiras sociedades ocupantes do atual território mato-grossense. Esta presença tam-bém ficou registrada desde princípios do século XVIII com as conquistas ou apresamentos

2. Trata-se de um Projeto proposto em Edital pelo IPHAN – MinC e executado pelo Museu Rondon da UFMT e Fundação UNISELVA por uma equipe interdisciplinar coordenada pela antropóloga Profa. Dra Izabela Tamaso e na equipe os professores Ms. Heloisa Afonso Ariano (Supervisora do Museu Rondon) , Profª Drª. Thereza Martha Borges Presotti Gui-marães (Departamento de História; orientadora deste estudo); Profa Dra Elizabeth Madureira Siqueira(IHGMT); Prof. Dr. José Serafim Bortoloto (Museu de Arte e Cultura Popular da UFMT); e 21 estudantes/ bolsistas-pesquisadores de gradu-ação de diversos cursos da UFMT, onde me incluo.

por sertanistas bandeirantes e ocupações coloniais luso-paulistas em territorialidades amerín-dias, que teve marco inicial o enfrentamento e invasão em 1716/1718 das aldeias dos índios coxiponés, pertencentes à grande nação Bororo.

No ano posterior, sertanistas avisados de que por lá encontrariam ainda mais indíge-nas, partiram em expedição de novas capturas e encontraram ouro nas margens do rio Coxi-pó. Desta maneira tem-se o começo do despovoamento indígena e o povoamento colonial na região onde hoje fica a comunidade São Gonçalo Beira Rio na cidade de Cuiabá.

Um dos primeiros relatos referentes não só índios Bororos, mas também a diversos outros grupos é do cronista José Barbosa de Sána década de setenta do século XVIII:

Correndo os tempos, e continuando aqueles aventureiros [paulistas] as suas conquistas, chegaram a navegar o rio Paraguai, descendo uns pelo [rio] Coxim, outros pelo [rio] Embotetei, (...) entrando pelasgrandes e baí-as, foram achando tantas nações de gentes que não cabem nos arquivos da memóriae só me lembro as seguintes: Caroyas, Taquasentes, Xixibes, Xanites, Porrudos, Xacororés, Aragoarés, Coxiponés, Pocuris, Arapoconés, Mocos, Goatós, Araviras, Buripoconés, Arapares, Hytaporés, Ianés, Aycu-rus, Bororos, Payagoas, Xaraés, Penacuícase outros. (SÁ, 1975:10)

O contato dos Bororos com os colonizadores não foi nada pacífico. Após terem ocu-pado e enfrentado os tupi-guarani no litoral atlântico, os portugueses expandiram a conquis-ta aos sertões interiores. A principal finalidade das bandeiras era capturar indígenas nomea-dos genericamente de tapuias para que esses lhes servissem como mão-de-obra escrava. Vale à pena ressaltar que todo esse contato trouxe um devassamento e exploração da natureza, como também drásticas mudanças nos modos de vida dos habitantes indígenas que lá vi-viam (e ainda muitos vivem e sofrem conflitos nas fronteiras de suas terras e culturas!).

Os Bororos que erroneamente ficaram conhecidos com tal nome se autodenominam Boe, que quer dizer gente verdadeira. A palavra Bororo significa pátio ou aldeia. A este respei-to o salesiano indigenista Mario Bordignon esclarece:

Os exploradores que por primeiros entraram em contacto com a tribo, ouvindo os cantos executados pelos índios perceberam a repetição fre-qüente da palavra Bororo que, ás vezes, forçada pelo ritmo da música, era pronunciada bororó. Esse fato gerou o atual epônimo da tribo, cujos membros, até hoje, vêm denominados Bororos ou, erroneamente, Bororós. (BORDIGNON, 1986: 01)

A historiografia faz referências que os grupos da grande nação dos Boe ou Bororo ocupavam uma extensa área de cerca de 48 milhões de hectares! Suas terras se estendiam desde a divisa com a Bolívia indo até além do rio Araguaia e sul de Goiás, alcançando o Tri-ângulo Mineiro ao leste, as cabeceiras do rio Cuiabá e rio das Mortes ao Norte, chegando até os rios Coxim e Negro no Mato Grosso do Sul. Atualmente, o território Bororo está bem reduzidoem pequenas reservas indígenas, sendo a maioria delas nos vale dos rios São Loren-ço e Cuiabá da bacia do rio Paraguai, totalizando 133.226 hectares distribuídos nas seguintes terras indígenas:Tereza Cristina (25.694ha);Tadarimana (9.758ha),Meruri (82.301ha); Perigara (10.740ha);Sangradouro/Anexo à área Xavante ( 249ha) e Jarudóri: 4.706ha. (Apud. JESUS: 2010)

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Os Bororos nos primeiros relatos de Salecianos

Apesar do contato entre estes povos e agentes da conquista colonial desde os primei-ros tempos do século XVIII, os Bororos só puderam ser vistos em sua complexidade cultural nas descrições dos italianos salesianos em fins do século XIX, justamente no aspecto dos rituais que chamaram grande atenção .

No período colonial estão descritos de forma genérica como gentios bárbaros que in-festavam estes sertões, e à medida do avanço da conquista, com certa freqüência salienta-se seu caráter guerreiro, já que os “terríveis Bororos” vão aparecer na documentação servindo como uma espécie de exército do sertanista de Antonio Pires de Campos tanto na “guerra justa” aos Paiaguá nos anos de 1732/34, como também nos combates aos Caiapós em Goiás por volta do ano de 1748. ( PRESOTTI, 2008: passim). Mas serão nas descrições dos salesianos que foi possível ver revelados aspectos de suas práticas culturais e religiosidades, mesmo que através de olhares de representantes de projeto de construção de uma missão cristã civiliza-dora, portanto “salvadora” .

Os salesianos chegaram ao Brasil em 1883, chefiados pelo Padre Lasagna. Em 1894 decidiram abrir missões em Mato Grosso, e a expedição chefiada por Dom Lasagna chega a Cuiabá neste mesmo ano, quando o então governador de Mato Grosso, Manuel Murtinho, entregou-lhe uma colônia de índios Bororos. A cooperação entre governo e missionários se estabelece desde a chegada dos salesianos.

Os missionários tinham uma imagem pré-concebida dos Bororos. Imaginavam que poderiam encontrar índios bravos, prontos para o ataque, conforme os relatos que já ha-viam recebido. Dessa forma, os protetores das ordens religiosas tinham argumentos para legitimar suas práticas. Para com os “carentes de espírito cívico”, precisavam mostrar “o pudor e a verdadeira moral”, pregando o cristianismo. CaiubyNovais faz referências a essa legitimação:

Esta imagem forjada de índios infantilizados, pouco aptos ao trabalho, de verdadeiros seres endemoniados, permite que se legitime, aos olhos dos salesianos, a relação de poder, dominação e tutela que sobre os Bororos os missionários passam a exercer. “Ver triunfar o reino de Cristo sobre o reino de Satanás” (como afirma Dom Balzola em seu diário), é, exatamente, exercer, na visão salesiana, esta ação civilizatória.” (NOVAES, 1993: 141)

Uns dos relatos mais impressionantes a respeito do Boe que tivemos acesso no levantamento documental do patrimônio imaterial mato-grossense foi o livro A Tribo dos Bororos, escrita por Antonio Colbacchini 3, editado em 1919 em homenagem aos vinte e cinco anos da Missão Salesiana no Estado de Mato Grosso; oferecida a Dom Aquino Cor-rea, bispo e presidente do estado de Mato Grosso, por ocasião das comemorações do bi-centenário de Cuiabá. Nesta obra Colbacchini divulgou seus apontamentos e notas sobre os Bororos, juntamente com observações pessoais sobre a história, a vida, os costumes e as tradições desse povo, até então desconhecidas pelos missionários e população mato--grossense.

3. Missionário e etnógrafo salesiano de origem italiana, que viveu nos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. Em março de 1906 partiu para missão dos índios Bororos em Mato Grosso, o seu contato com os Boe durou cerca de trinta e quatro anos.

Segundo divulgavam os mesmos padresdesta ordem religiosa, colocavam-se no lugar de protetores que tinham como objetivo levar para os “pobres selvagens” a “civilização” e a religião, para isso viram a conversão como a única solução possível, cujo símbolo é a cruz , afirmando:

Procede de além da natureza, força sobrenatural, mas assim mesmo tão assimilável à nossa alma, só ela podia traduzir efeitos tão surpreendentes sobre os infelizes selvagens, sobre esses pobres corações que pareciam insensíveis a qualquer sentimento nobre e delicado. (COLBACCHINI, 1919:04)

O grande ideal pelo qual o missionário se embrenha nos sertões é justamente esta forma de civilização, que leva a palavra evangelizadora cristã, por que religião e civilização, segundo estes missionários, são duas forças homogêneas, que operam juntas. Portanto, era necessário evangelizar para civilizar e para isso a missão salvadora não mediu esforços.

O trabalho de penetração e ação missionária no território mato grossense foi bem demorado no qual foi necessário árduo e lento empenho, que segundo Colbacchini , “só com o tempo poderia causar impressão na mente e no coração do homem das selvas”. (1919: 05).

No segmento do livreto onde faz o oferecimento à D. Aquino, o missionário pede desculpas pelo desalinho de seus apontamentos e desabafa que são insuficientes, pois não descrevem a totalidade de suas “observações pessoais sobre a história, a vida, os costumes e tradições étnicas dessa gentilidade, tudo tão mal estudado e tão pouco conhecido até a entrada dos missionários nela.” Pode-se notar que as percepções deste europeu asse-melham aos dos missionários jesuítas da época colonial ao referir-se aos Bororos como “gentilidade”.

Nas primeiras “observações etnológicas”, Colbacchini assim os localiza e os descreve:

No estado de Mato Grosso, da Republica Federal do Brasil, especialmente nas margens dos rios Vermelho e Alto S. Lourenço, Alto Araguaia, [rio] das Garças e afluentes; e do meio do das Mortes e afluentes da margem direita, espalhados por ali e acolá, terríveis vagavam, quais indômitas feras, terror dos poucos habitantes, os selvagens das tribos dos Boróros. (1919:4)

A imagem é de que os Orari mugu doge ou “habitantes dos lugares onde há peixe pintado” - como se autodenominavam, segundo o padre -, usavam de extrema violência e crueldade para com população regional, como com “os velhos e fracas mulheres cujas su-plicas e gritos lancinantes não conseguiam inspirar-lhes compaixão, e com o sorriso da mais cruel ferocidade, consumavam horribilíssimos delitos”.

Continuando a narrar das “selvagerias” desqualifica-os em elevados tons preconceitu-osos e julgamentos etnocêntricos, opiniões próprias de um padre italiano vivendo do inicio do século XX no serviço da catequese e civilizatória; onde pode-se ler revelado na voz dos sujeitos Bororo os fortes sentimentos da perda de suas terras e familiares ancestrais, como um dos principais motivos de seus ódios e vinganças:

Ainda não haviam esquecido os selvagens quanto sofreram dos civiliza-dos, e ainda hoje como ofendidos nos seus direitos, altamente reclamam contra a bárbara usurpação do branco sobre seus terrenos. Este terreno –

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dizem- “é nosso!. Viveram e morreram nossos pais nestes campos e nestas florestas... ( 1919:9)

Suas observações a respeito deste povo nos fazem perceber a importância dos ele-mentos da natureza ou ambiente do cerrado e pantanal para suas vidas e práticas culturais cotidianas,como as espécies vegetais e alguns animais. Trata das habitações cobertas de fo-lhas de palmeiras, do modelo complexo do formato das casas e organização social da aldeia, da qualidade e detalhes das flechas, do vestuário feminino como um “cinto” feito de uma casca de uma planta, dos brincos de conchas ou de plumas de pássaros, das cordas dos arcos “feitas com habilidade e perfeição rara”, das cestas e esteiras de folhas de palmeiras pelas mu-lheres, as vasilhas de barros ou cerâmicas, as pinturas de tintas vermelhas de uma substancia extraída de um arbusto de nome urucu. E faz um depoimento interessante a respeito desta tintura: “Só quem passou com eles anos e anos sabe o quanto são afeiçoados ao urucu. O urucu nomogo é tudo para eles, é o primeiro vestuário ao nascer e o ultimo na derradeira agonia. A tinta vermelha desse vegetal é lhes vestido, ornamento e remédio”. (p.15).

Sobre a onça, uma longa e detalhada descrição demonstra o grande significado deste animal, principalmente no momento do funeral, pois é nela ou em seu couro que se vê re-presentada a vingança e do espírito mau causador da morte.

Descreve o mais importante cocar - o parico-, reservado para o uso masculino feito de penas de varias qualidades de papagaios e araras, que forma uma espécie de “coroa radial que ostentam altivamente”.

E a narrativa continua a tratar de uma série de festas com danças, jogos, cantos que ora diz fazer parte das cotidianas atividades que envolvem a caça e a pesca e outros rituais sociais. Esta sua observação é reveladora das relações que estabeleciam com a natureza no ambiente dos rios e com os peixes no período propício par tal prática:

Para eles, a caça e a pesca são sinônimos. O próprio nome deles mostra o quanto são apaixonados da pesca: Orari mugu doge, que quer dizer: “gente que vive onde há orari – que é uma espécie de peixe. Nem todo o tempo do ano é favorável à pesca; a seca, isto é, quando baixam e são claras as águas dos rios, é para eles a estação própria para pescarem. (COLBACCHINI, 1919: 25)

Um pouco da Cosmologia e História dos Boe

Segundo a cosmologia dos Boe, sua criação aconteceu a partir de uma inundação. O mito de criação mais difundido sobre os Bororos é o da inundação, que resumidamente os Bororos teriam surgido a partir do enlace de um homem que se salvou da grande enchente de nome Merire Porocom uma corsa ou fêmea do veado. Dessa união teriam surgidos inicial-mente filhos metade homem metade animal e posteriormente nasceram os Bororos perfei-tos, que a partir de então repovoaram a terra (JESUS: 2010).

O grupo dos Boe é dividido em clãs que tem seus nomes vinculados a um animal de origem. São duas metades Tugaregeao sul e Cerae ao norteeoito clãs. A aldeia Bororo também conhecida como Báa é circular e com 100 metros aproximadamente de diâmetro. Dois eixos, um Norte–Sul e outro Leste-Oeste dividem a aldeia em quatro partes. O eixo Norte-Sul divide a aldeia ao meio passando próximo do Baito, casa situada no perímetro da área central da aldeia.

Segundo sua complexa organização cultural.A hereditariedade é matrilinear e exógo-ma. Os homens da metade Cerae, casam com as mulheres da metade Tugarege e vice-versa. As meninas, que jamais saem da casa da mãe, aprendem normalmente com as mulheres os mistérios e ofícios do mundo feminino. O matrimônio é a única celebração religiosa que não acontece rituais elaborados. Consiste no pedido da mãe da moça ao jovem, no qual é ofereci-da uma alimentação de sua preferência. Aceito, ele já participa, no começo timidamente, da esteira da menina, das caçadas para agradar o clã da noiva, concluído esses procedimentos a noiva é levada a casa da mãe do noivo, onde é espalmada com pasta de urucu e adornada tradicionalmente.

Os Bororos possuem numerosas crenças relativas à alma, que chamam de “aroe”, para esse povo, a alma é um espírito imortal que pode viver separada e isolada do corpo. Crêem na existência de um sobrenatural, na imortalidade, em uma futura morada das almas; acreditam que uns vão para o ocidente e outros para o oriente.

O Bororo crê na existência da alma (Aroe) além da tumba. A imortalidade é o dogma principal da sua fé, nele baseiam todo o ato, todo o culto, toda a festa, todo o jogo, tudo enfim. Vivem pelas almas, as almas dos mortos, em tudo e por tudo.” (COLBACCHINI, 1919:113)

No que diz respeito as relações estabelecidas entre os Boe e os Salesianos, a concepção dos Boe a cerca da existência da alma, seria para os religiosos, um ponto bastante conflituoso, pois, eles viam a obrigação da presença de um Deus criador único para a sociedade Bororo, faltava-lhes um juiz da moralidade humana. Outro ponto da cultura Boe causava espanto e repúdio aos salesianos, estes em sua maioria de origem européia, seria o Ritual do Funeral Bororo. Enquanto, para os Bororos, os rituais são uma constante, seus funerais eram os mais longos de todos os rituais, podendo durar até quarenta cinco dias.

O Funeral como Patrimônio Imaterial e a Natureza Pantaneira

Após o decreto 3551 do IPHAN criou-se, em 04 de agosto de 2000, o Programa Na-cional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e instituiu o Registro dos Bens Culturais de Nature-za Imaterial. O PNPI visa viabilizar projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural. Tem como um dos seus objetivos “contribuir para a preservação da diversidade étnica e cultural do país e para a disseminação de informações sobre o patrimônio cultural brasileiro a todos os segmentos da sociedade” (IPHAN, 2000).

Enfatiza-se que apenas após este decreto as populações indígenas e tradicionais passa-ram a integrar o universo social do patrimônio cultural brasileiro (antes dominado por bens monumentais e representativos de alguns grupos unicamente).

O patrimônio imaterial é assim definido por Arantes:

As práticas e os objetos por meio dos quais os grupos de representam, rea-limentam e modificam a sua identidade e localizam a sua territorialidade. São sentidos atribuídos a suportes tangíveis. O que se chama popularmen-te de raiz de uma cultura. (ARANTES, 2001: 42)

Dessa forma é possível reconhecer o Funeral Bororo como patrimônio imaterial, visto que o valor que esse majestoso ritual de morte tem para a sua sociedade é de extrema im-

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portância, é por meio do funeral que a sociedade Bororo reafirma a vitalidade de sua cultura. “Esses rituais criam e recriam a sociedade Bororo, revelando os mistérios de uma sociedade que faz da morte um momento de reafirmação da vida” (NOVAES: 1992,109).

O funeral, para os Bororo, é um momento especial na socialização dos jovens, não só porque é nessa época que muitos deles são formalmente iniciados, mas também porque é por meio de sua participação nos cantos, danças, caçadas e pescarias coletivas, realizados nessa ocasião, que eles têm a oportunidade de aprender e perceber a riqueza de sua cultura; esse ritual ocupa lugar principal para se observar os costumes tradicionais desse povo.

As cerimônias funerárias têm uma representação extraordinária na cultura Boe; hoje muitos pesquisadores têm se interessado em estudar essa prática tão complexa que é o fu-neral; é a partir dessas pesquisas que se tornarão realizáveis interpretações e reflexões relativi-zadoras acerca da cultura do “outro”.

No transcorrer das cerimônias funerárias há uma complexa interligação entre o ve-getal, o animal e os seres espirituais primaciais, todas essas formas são reverenciadas pelos Bororos.

A natureza é a sua alma, sua vida; as florestas, os rios, as campinas imen-sas, seu tesouro, a sua vida pátria. Da natureza o índio assimila a vida, nela nasce, cresce e morre, recebendo dela tudo quanto precisa e deseja... (COLBACCHINI, 1939: 3)

Vegetais, animais ou resinas, para serem consumidos ou utilizados, têm que ser auto-rizados por esses espíritos protetores e o Bari 9 tipo um pajé) é o elo que liga o mundo da aldeia aos animais, vegetais e espíritos.

No funeral Bororo muitos são os vegetais utilizados, sendo todos relevantes para cada etapa do ritual. As fibras vegetais que os Bororos usam para amarrar o corpo do morto jun-tamente com os seus pertences mais utilizados em uma grande esteira; ourucu é primeiro o vestuário ao nascer e o ultimo na derradeira agonia; na morte o pai ou a mãe “tomam a massa do urucu previamente preparada, acercam-se do moribundo para prestar-lhe o ultimo sagrado amoroso oficio e dever antes que se separe deles pela morte” (COLBACCHINI, 1939: 27); já na parte final do funeral o urucu ou urucum também é utilizado para a ornamentação dos ossos do morto assim como as penas de diversos pássaros.

Para os adornos os Bororos usam penas de pássaros, araras, gaviões das cores distinti-vas da dinastia e família do defunto. A palmeira buriti é usada para a confecção dos cilindros para a dança do Marido; essa dança é feita pelos jovens que com uma enorme roda com-posta do caule e das folhas do buriti dançam equilibrando-a; e chega a medir dois metros de altura e oitenta centímetros de largura e tem um peso muito grande.Do broto de babaçué feita a confecção das longas saias para a dança do Toro em momentos da cerimônia.

Os Bororos usam as folhas, frutos e cascas do genipapo, para suavizar o ardor dos arranhões e impedir a inflamação, essa planta tem grande quantidade de fanino que tem a propriedade de fazer cicatrizar rapidamente as feridas. Denominam essa mistura demetudo. Os parentes mais próximos do morto usam essa mistura após cumprirem o dever de se mar-tirizarem provocando-lhes arranhões até o escorrer do sangue em cima do finado, simboli-zando dor e tristeza. A cabaça tem um valor simbólico sagrado para os familiares do morto, após a extração das suas sementes, ela representará a ideia, o pensamento, a memória e a

evocação do defunto: será a sua imagem, chamar-se-á aroe, que quer dizer alma. Esse artefato é conhecido como poari.

Outro elemento da natureza presente no funeral Bororo são os rios, eles têm presença fundamental no funeral Bororo, sendo eles utilizados como uma das etapas finais do ritual, pois, neles que será mergulhada a cesta contendo os ossos do finado. Escolhem um rio com águas profundas e utilizam uma vara comprida para ela ser enterrada no fundo do rio com a cesta, a função da vara é que ela não deixe que a cesta volte à superfície das águas.

A caçada tem um significado religioso e espiritual; esta caçada é feita em benefício dos parentes do finado que recebem toda a caça colhida, e a distribuem igualmente. Para a caçada é escolhido um representante que goze de estima dos parentes do morto por sua bondade ou por sua valentia. A alma do defunto acompanhará o escolhido na caçada, protegendo-o dos perigos e ajudando-o no sucesso das caças.

Essa parte do ritual de alguns tempos para cá passou por transformações ou readapta-ções, tendo em vista a grande diminuição e ameaças de extinção de alguns animais da fauna que serviam de caça aos Bororos tais como a onça pintada, a anta, entre outros.

Percebe-se que no Funeral Bororo é realçada a relação espírito o “ser Bororo” é manifes-tado, homem, animal e vegetal. O valor que esse povo atribui ao mundo vegetal e animal é de extrema importância. Contudo o que vêm sendo percebido é que os Bororos ao perderem a maior parte do seu território e consecutivamente seus nichos ecológicos eles vivem hoje, em exíguas terras, impróprias para exercerem com plenitude seu modo de vida como Boro-ro, com isso suas práticas ficam vulneráveis e o desaparecimento delas torna-se algo de fácil acontecimento, pois essas práticas dependem da totalidade do território, que cada vez mais tem sido diminuído acerca dos interesses econômicos.

Renate Viertler, antropóloga que estuda os Bororos por mais de 30 anos diz com muita propriedade:

(...) a florescência das piúvas, rosas, brancas, amarelas e roxas entre os babaçuais oferece um inesquecível espetáculo visual, que por um lado, denota a fertilidade da terra, por outro a cobiça dos regionais. Para estes é impossível conceber terras férteis sem uso. Para os Bororo só é possível conceber a existência preservando essas matas. (Apud. JESUS, 2010)

Com isso resta-nos continuar lutando para que não somente os Boe, mas, também outras sociedades indígenas não sejam esquecidas, apagadas do papel e da mente do não--índio, visto que os valores que suas práticas culturais têm são de grande importância para todos, pois, é a partir do conhecimento das diferenças que construímos um mundo onde todos se respeitam.

Considerações finais

As praticas culturais dos Bororo em especial o Funeral, tem para esse povo extrema importância, visto que nele eles firmam e reafirmam sua cultura, incorporando também os jovens para dessa forma perpassarem suas tradições. A natureza tem para esta sociedade um papel fundamental que está intrinsecamente ligada às suas práticas, ao seu dia-a-dia, enfim

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sem a natureza o Bororo é impossibilitado de manter-se vivo em seu habitat, pois ela faz par-te do seu ser, tirá-lo da sua terra seria um grande mal.

Perceber a relação intrínseca que os Boe têm com a natureza e mais ainda ver a impor-tância do Funeral Bororo ser reconhecido como sendo um patrimônio imaterial, nesse ritual é simbolizado o universo para os Boe, sendo assim todos os componentes são representados: a água, o ar e a terra. A morte para os Bororo é seguida pela vida, assim como o dia é seguido pela noite. Esse entendimento e reconhecimento da cultura do “outro”, vêm acrescentar ele-mentos importantíssimos que modificam a visão de mundo das pessoas.

Bibliografia

ARANTES, Antonio Augusto. Patrimônio Imaterial e Referências Culturais. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2001.

BORDIGNON, Enawuréu Mario. Os Bororos na História do Centro Oeste Brasileiro 1716-1986. Campo Grande, Missão Salesiana de Mato Grosso, CIMI MT, 1986.

COLBACCHINI, Antonio. A Tribu dos Boróros. Rio de Janeiro: Papelaria Americana, 1919.

COLBACCHINI, Antonio. À Luz do cruzeiro do sul: os índios Bôroro-Orari do Planalto Oriental de Mato Grosso. São Paulo: Nacional, 1939.

IPHAN. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília, 2000a.

_________. Patrimônio Imaterial– Decreto 3551/2000. Disponível em: http://www.iphan.gov.br. 2000b.

JESUS, Antonio João de. (Terra Bororo) Texto e fala com base em Audio-Visual apresentado na Semana do Índio na aula de História de Mato Grosso, Cuiabá, 19/04/2010.

NOVAES, Caiuby Sylvia. Jogo de Espelhos: Imagens da Representação de si através dos Outros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.

PRESOTTI, Thereza Martha Borges. Na Trilha das Águas: Índios e Natureza na conquista colonial do centro da América do Sul:Sertões e Minasdo Cuiabá e Mato Grosso (Século XVIII). Tese (Dou-torado) – UnB – Universidade de Brasília, 2008.

WUST, I. “Contribuições arqueológicas, etnoarqueológicas e etnohistóricas para estudo dos gru-pos tribais do Brasil Central: o caso Bororo.” Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, 1992.

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Seus dias de fartura estão contados: pensando a

contracultura através de “EDUKATORS”

TiaGo de Jesus vier a1

Qualquer trabalho que pretenda fazer uma análise acerca da contracultura se verá diante de uma tarefa que não das mais fáceis, significa ariscar-se a tentar explicar,

aquilo que por vezes parece inexplicável. No ano de 1972, a editora Vozes, lançava no Brasil, A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juveni2 de Theodore Rozak, primeiro livro que abordaria esta temática. Muitos foram aqueles que foram as páginas deste livro na expectativa de encontrar definições claras e coerentes, sobre o que seria a contracul-tura. Entretanto, de certa forma acabaram se decepcionando, pois este livro apenas relatou o que poderia ser a contracultura, mas preferiu não trata - lá como algo fechado. Preferiu não emitir uma opinião definitiva sobre aquilo que considerava muito recente, para compreender como um todo.

Mesmo, já havendo se passando um bom tempo do lançamento desta primeira obra e, por conseguinte o lançamento de trabalhos como O que é Contracultura?3, Contracultura através dos tempos4, ainda não é possível ter um panorama fechado do que é contracultura.

1. Mestrando em História Universidade Federal de Mato Grosso; Orientador Prof. Dr. Ely Bergo de Carvalho.2. ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Ed. Vozes,

1972.3. PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos, 100).4. , Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: Do mito de prometeu à cultura digital. Tradução: Alexandre Martins,

Ediouro. Rio de Janeiro; 2007.

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Pois, “A contracultura é o equivalente cultural do ‘terceiro estado da termodinâmica’, a ‘região não-linear’ em que equilíbrio e simetria deram lugar a uma complexidade tão intensa que a nossos olhos parece o caos5”.

Mesmo não estando próximo de uma definição exata do que é contracultura, e nem é este o objetivo deste trabalho. Cabe destacar algumas notas sobre o termo ‘contracultura’, este que foi criado pela imprensa dos Estados Unidos da América, em meados da década de 1960. Para retratar um conjunto de novas manifestações culturais, que estavam surgindo naquele momento não somente nos E.U.A., mas em vários outros países, especialmente da Europa e, com menor intensidade e repercussão, na América Latina. Para Carlos Alberto M. Pereira6 a contracultura definia-se basicamente como “o conjunto de movimentos de rebe-lião da juventude” neste sentido, as manifestações da contracultura poderiam ser visualizadas de distintas formas, seja por meio: do movimento hippie; do rock; da movimentação dentro das universidades; de viagens de mochila; de ligação aos valores do orientalismo; do consumo de drogas e etc. Desde que isto fosse conduzido com um forte espírito de contestação e in-satisfação aos padrões comportamentais da sociedade ocidental, buscando outra realidade, ou seja, outro modo de vida.

Esta definição de contracultura por meio dos elementos expostos acima fazia mui-to sentido na década de 1960, em função do impacto que estas ações naquela sociedade. Mas, pensar nestas manifestações na contemporaneidade parece demasiadamente simples, devido a forte capacidade de absorção da industria cultural, daquilo que outrora ostentou o título de contracultura: O movimento hippie se transformou em moda hippie; Aqueles que protestavam com uma guitarra na mão se tornaram em estrelas do Rock e vendem milhões de albuns; As movimentações dos estudantes dentro das universidades que outrora demons-traram uma forte união e auto-gestão, agora se fragmentaram e em centenas de entidades aparelhadas por partidos políticos; As viagens sem rumo com mochila nas costas que signi-ficaram uma expressão de busca pela liberdade, foram absorvidas pelas agencias de viagens dos shopping centers; Elementos do orientalismo que demonstravam desapego a proposta ocidental, enfeitam agora as prateleiras de lojas de souvenir; O uso de drogas significava uma fuga da sociedade, e agora significa financiar o tráfico e colaborar para morte de milhares de pessoas – direta ou indiretamente.

Pois bem, seria a contracultura algo criado e findado na década de 1960? Como expli-car a contracultura a sua existência em período pós “anos 60”. É possível pensar este fenôme-no na atualidade? Se é possível como romper esta herança da década de 1960? Diante destas questões levantadas utilizo como narrativa paradigmática das contradições da contracultura na atualidade o filme “Edukators” (2004) de Hans Weingartner, que ao longo do desenrolar de sua trama, lança luz sobre novas possibilidades de pensar a contracultura dentro da socie-dade contemporânea, em especial por dois pontos: A maneira como as práticas de atuação são reinventadas; O embate entre a geração atual com a geração dos anos 1960.

No panorama inicial do filme, a personagem Jule (Julia Jentsch) é uma pessoa extre-mamente endividada, que trabalha de garçonete em um restaurante de luxo. Enquanto seu namorado Peter (Stipe Erceg) ao lado de seu amigo Jan (Daniel Brühl) ganham a vida supos-tamente colando cartazes no período noturno. Em particular os três jovens, tem em comum o habito de periodicamente participam de manifestações contra a “exploração e a opressão”,

5. Idem, p. 096. PEREIRA, op. cit.

no caso especifico, contra a exploração da mão de obra infantil pelas multinacionais de cal-çados na Indonésia e na Filipinas. Jule que acabará por receber uma ordem de despejo deve-ria entregar o apartamento, onde morava em perfeito estado dentro de três dias, que acaba inviabilizando a sua ida com o namorado para Barcelona. Entretanto, Peter optaria em viajar sozinho. Fato este que aproximaria Jule, de Jan.

Em um dialogo entre estes dois, Julie após perder o seu emprego, se vê insatisfeita com a passividade das pessoas, e acaba relatando estar descrente até mesmos dos protestos que participa, alegando os inúteis, pois nada mais sortiria efeito. Jan por sua vez responde que hoje em dia não é fácil fazer “revolução”, uma vez que antes bastavam drogas e cabelos compridos, que já era suficiente para se opor ao sistema, porém aquilo que outrora fora sub-versivo é comprado em lojas. Julie complementa dizendo que tudo que haveria de ser feito, já tinha sido feito e que nada mudaria, não conseguia ver nada de novo que poderia ser feito, e indaga Jan se ele teria alguma sugestão de algo a ser feito. E Jan á convida para acompanha-lo.

É neste momento que Jan mostra Julie, o que ele e Peter faziam noites, ao invés de saírem para colorem cartazes, eles saiam para monitorar mansões e observarem os hábitos de seus morados, visando uma posterior invasão, que só era possível, porque Peter havia trabalhado como instalador de alarmes. É neste momento que a trama do filme, sofre uma transformação e abrindo espaço para a discussão acerca da contracultura, as invasões reali-zadas por Jan e Peter, não tinham como objetivo furtar bens. Objetivam chocar as pessoas e instaurar nelas a insegurança.

A primeira cena do filme que até então não demonstrava conectividade com as demais partes, passaria a fazer sentido. Cena esta que descreve uma família chegando a sua mansão, após um determinado tempo fora. E acaba se assustando por encontrar os móveis fora de sua ordem habitual, as cadeiras estão sob a mesa de jantar, formando uma espécie de pirâmide que alcançava o teto, os seus quadros preciosos estão de ponta cabeça ou em outros lugares, livros empilhados no chão contrastam com o sofá tombado, em segundo momento aparece uma escultura enforcada, - tudo aquilo causa impacto e era assustador aos moradores da casa, - neste momento o garoto sente falta do aparelho de som e imediatamente sua mãe visualiza que seus soldados de porcelana não estão na prateleira, - a expressão de desespero fica a mostra em seu rosto, imaginando se tratar de um furto -. Entretanto, sua filha encontra os soldados de porcelana dentro da latrina – que de certa forma é um afronte a seus valores artísticos -, o aparelho de som é encontrado dentro da geladeira e por final é encontrado uma carta, com o seguinte dizer (SEUS DIAS DE FARTURA ESTÃO CONTADOS!).

Aquilo que parecia ser um furto, no entanto se tratava de uma intervenção dos Eduka-tors, e os responsáveis eram Peter e Jan. Mas, afinal o que este ato, de invadir mansões, retirar os objetos do lugar e coloca-los em outros, tem haver com contracultura? A resposta para tal indagação pode ser aprendida pela seguinte frase, “a contracultura é a representação do que há de verdadeiramente novo e verdadeiramente grandioso na expressão e no esforço humano7”. Embora, somente esta afirmação não sirva para compreender tudo aquilo que por ventura pode ser classificado como contracultura, serve apenas para dar um panorama ini-cial. Pensando que as manifestações contraculturais desafiam a ordem estabelecida de forma óbvia, mas também sutilmente.

Como ações contraculturais que podem desafiar a ordem estabelecida de forma ób-via, são inúmeros os exemplos, mas pensando em algo mais próximo, pode-se pensar nas

7. GOFFMAN; JOY, op. cit., p. 10

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manifestações em defesa dos animais, a apologia feita por Raul Seixas á sua “sociedade al-ternativa”, o movimento punk e até mesmo o início das ditas manifestações contra o “aque-cimento global”, embora este ultimo exemplo deve ser analisado com maior cautela diante da absorção deste fenômeno pelos grandes meios de comunicação em massa. Enfim, tudo aquilo que mostre de forma aberta, nas distintas maneiras de expressão, o que pretende ser mudado.

Entretanto, a complexidade da contracultura reside justamente naquilo que não é de-monstrado de forma explicita, na sua presença em escala molecular, quando resolve “desafiar o autoritarismo mais sutil exercido por sistemas de crença rígidos, convenções amplamente aceitas, paradigmas estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não8”. É este modo de ação que Michel de Certeau9 define como as “Artes de Fazer” que apresentam uma “lógica operatória cujos modelos remontam talvez às astúcias multimilenares dos peixes disfarçados ou dos in-setos camuflados, e que, método o caso, é ocultada por uma racionalidade no Ocidente10”.

No caso, de Edukators à atuação contracultural se pauta na seguinte lógica “eduque 1 e atinja 100” por meio da suas atuações de invasão e redefinição do espaço se objetiva, subverter dois elementos em principal da ordem estabelecida: Primeiramente deixar os mi-lionários inseguros mesmo diante de todo um forte aparato de segurança, instaurando neles o medo, e consequente um estado de pânico. Esta tática, por sua vez tem efeito dar o troco, inverter a lógica da vigilância, fazendo com que aqueles que por vezes vigiaram com suas câmeras, se sintam vigiados; E também visa uma subversão dos padrões artísticos, em que os “bens culturais” como quadros, esculturas e livros, são reorganizados no espaço, assim esta “bricolagem” não fará sentindo algum para o olhar encoberto dos “ricos”. É sem dúvida uma prática contracultura que “da ordem construída por outros redistribui-lhe o espaço. Ali ela cria ao menos um jogo, por manobras entre forças desiguais e por referencias utópicas. Ai se manifesta a opacidade [...] a pedra negra que se opõem a assimilação11”, e “sua estética se exerce no labirinto dos poderes, recria sem cessar opacidade e ambiguidade – cantos de sombra e astúcias – no universo da transparência tecnocrática12”.

Esta maneira sutil de desafiar a ordem estabelecida, que é retratada em Edukators remonta as práticas, realizadas na cidade de Amsterdam na década de 1960, por aqueles que para Matteo Guarnaccia13, seriam os responsáveis pelo nascimento da contracultura “os Provos”, grupo que entre 1965 e 1967, fez diversas manifestações que desafiavam a lógica do estado, como quando o grupo pintou algumas bicicletas de branco e espalhou pela cidade, qualquer um que quisesse poderia utilizar aquelas bicicletas, bastava apenas que logo em seguida deixá-las na rua, para que outros também pudessem usá-las, e ao invés das bicicletas se acabarem, a prática acabou dando certo e começavam a surgir de maneira inexplicada mais e mais bicicletas pintadas de branco. Esta prática perdurou até que, à administração da cidade resolve-se retirar todas as bicicletas brancas das ruas, pois a bicicleta de uso comum significava um afronte a propriedade privada. As manifestações dos PROVOS chamavam a

8. Idem, p. 529. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. 2ª ed. Tradução Epharaim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1994.10. Idem, p. 3811. Idem, p. 7912. Idem, p. 7913. Referência do texto original apud: GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São

Paulo: Conrad, 2001. p. ***.

atenção pelo aspecto irônico com que buscavam subverter as práticas cotidianas. Como nes-te manifesto, em que explicavam o que era PROVO.

PROVO é uma folha mensal para anarquistas, provos, beatniks, noctâm-bulos, amoladores, malandros, simples simoníacos estilitas, magos, paci-fistas, portadores de germes, moços das estribarias reais, exibicionistas, vegetarianos, sindicalistas, papais-noéis, professores da maternal, agitado-res, piromaniacos, assistentes dos assistentes, gente que se coça e sifilíticos, polícia secreta e toda a ralé deste tipo. PROVO é alguma coisa contra o capitalismo, o comunismo, o fascismo, a burocracia, o militarismo, o profissionalismo, o dogmatismo e o autoritarismo. [...] PROVO tem consci-ência de que no final perderá, mas não pode deixar escapar a ocasião de cumprir ao menos uma quinquagéssima e sincera tentativa de provocar a sociedade[...]14

Embora as manifestações contraculturais em Edukators, possam apresentar uma forte ligação com as táticas dos PROVOS. O filme esforça em demonstrar na sua sequencia, um rompimento da presente geração, daquela que outrora foi “revolucionária”. Isso fica implícito no decorrer da trama, quando em uma das invasões, Julie - que agora, também atuava nas invasões -, se da conta que perdera seu celular, na noite anterior na casa que haviam invadido. Ao retornarem ao local acabam por serem surpreendidos pelo dono da casa Sr. Hardenberg (Burghart klaussner) - pessoa para quem Julie ainda devia 96,500 euros, em circunstancia de um acidente de carro -, após afrontamento físico, Jan defere uma coronhada na cabeça de Hardenberg, que fica desacordado.

Logo, na sequência por não terem uma saída momentânea acabam por sequestrá-lo, levando-o para uma casa no campo. Após um dia no “cativeiro”, em uma conversa Harden-berg acaba revelando que no passado havia sido uma pessoa idealista tal como eles, no ano de 1968, quando era um dos lideres das manifestações da (S.D.S.). Quando indagado por Jan, sobre como uma pessoa com seu passado transformou-se num milionário “cego” aos problemas sociais? Hardenberg responde que tudo acontece devagar, ao ponto de que nem se consegue notar, num dia se vende o carro velho e compra um novo, outro dia você acaba se casando e comprando uma casa, em seguida vem os filhos e educa-los custa caro, acaba fazendo dívidas e quando se da conta numa eleição vota no partido conservador.

A partir deste dialogo, pode-se notar um distanciamento entre as gerações, deixando transparecer que idealismo juvenil por vez acaba se perdendo no tempo. Este exemplo não trata explicitamente de uma negação a tradição, e sim uma advertência à forma como o “sis-tema” absorve os revolucionários de ontem. Além disto, o filme deixa transparecer que não se deve viver apenas das manifestações do passado, é necessário romper aquela herança dos anos 1960, como aborda Irene Cardoso15 ao apontar que o resto do sonho impossível, “teria ficado para a geração seguinte como um ideal a ser concretizado, ideal que se impõe como uma espécie de ‘resto’ do que a geração dos anos de 1960 não pode realizar16”, isto atua como uma espécie de herança pesada que não foi transportada para a realidade.

14. GUARNACCIA, op. cit., p.1515. CARDOSO, Irene. A geração dos anos 1960: O peso de uma herança. Tempo Social. Revista de sociologia da USP, v. 17, n.

2, p. 93-107, 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ts/v17n2/a05v17n2.pdf >. Acesso em: 21 abr. 2008.16. CARDOSO, op. cit., p.105

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Após, alguns diálogos o Sr. Hardenberg acaba por admitir ter se comportado de forma errada, e admitindo ter ficado cego diante das injustiças do mundo. Após este reencontro com o “passado” decide perdoar a divida de Julie. Entretanto após retornar a sua casa, resolve denunciar os Edukators, que na sequência acabam por ter a sua casa invadida pela tropa de choque da polícia. Quando os policiais adentram a residência não encontram nada, apenas um bilhete com a seguinte mensagem “ALGUMAS PESSOAS NUNCA MUDAM”. Embora, tal mensagem possa demonstrar certa descrença em relação as pessoas. Pode-se pensar de outra forma, que a contracultura sempre deverá se manter viva, para atingir até mesmo aquelas pessoas que não mudam, pois “todo coração é uma célula revolucionária” como ilustra a fra-se na parede, numa das cenas principais do filme. Cabe a contracultura continuar tentando para libertar esta célula.

Bibliografia

CARDOSO, Irene. A geração dos anos 1960: O peso de uma herança. Tempo Social. Revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2, p. 93-107, 2005. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ts/v17n2/a05v17n2.pdf >. Acesso em: 21 abr. 2008.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. 2. ed. Tradução Epharaim Fer-reira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994.

GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: Do mito de prometeu à cultura digital. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro. 2007.

GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Con-rad, 2001.

PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primei-ros Passos, 100).

ROSZAK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes, 1972.

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Memórias do Patrimônio Imaterial: manifestações

culturais africanas e formas de repressão em Mato Grosso

(1719-1889)

zullu zair a FiGueiredo de barros1

O Projeto Inventário documental do patrimônio imaterial mato-grossense é fruto de uma parceria entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-

IPHAN-, Universidade Federal de Mato Grosso- UFMT- e a Fundação UNISELVA; e executado por uma equipe interdisciplinar das áreas da antropologia, história, artes, geografia e litera-tura. O Projeto promove um rastreamento detalhado das diversas manifestações do patri-mônio cultural imaterial mato-grossense na documentação disponível em acervos de Mato Grosso; orientado pelo Decreto 3551- 04/08/2000 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. O patrimônio imaterial que vem sendo inventariado, - que se sabe serem manifestações e representações culturais múltiplas, plurais, estão assim categorizados: os saberes e modos de fazer, formas de expressão, festas, celebrações e lugares ou espaços de práticas culturais coletivas do Estado do Mato Grosso-, é definido como sendo as práticas e os objetos por meio dos quais os grupos se representam, realimentam e modificam a sua identidade e localizam a sua territorialidade. São sentidos atribuídos a suportes tangíveis. O que se chama popularmente de raiz de uma cultura.

Para Almeida (2000), cultura popular é a praticada em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma sociedade, independentemente de sua condição social. Seria um “denominador cultural comum”. É resultado de processo delicado de construção, não de adoção da cultura alheia. É fruto direto da vivência do indivíduo.

1. Graduanda em Licenciatura Plena e Bacharelado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Cuia-bá, e voluntária de iniciação científica do Projeto “Inventátrio Documental do Patrimônio Imaterial Mato-grossense”.

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Por sua vez, o elemento negro ao ser trazido da África para ser usado como mão de obra escrava, passava inicialmente pelo processo de destribalização; e muitas tribos africanas já tinham recebido influências da cultura européia, no seu continente de origem.

Segundo Assis (1986: 10), “em um só navio que chegava a um determinado porto, desembarcavam milhares de negros que pertenciam a diferentes tribos, e no Brasil, a distribui-ção era feita de maneira que quebrava a unidade cultural, reagrupando negros de diferentes culturas”. Observamos assim, que a inserção do negro na sociedade brasileira já se iniciou sobre a repressão dos dominantes. Mas, há de se levar em consideração de quais grupos do-minante estamos tratando especificamente: a Igreja e as elites políticas.

A Igreja- como representante da burguesia eclesiástica-, sempre trabalhou no sentido de desrespeito ao negro, descaracterizando sua cultura a partir do momento que submetia o escravo ao batismo, e conseqüentemente dando-lhe “um nome sem nenhum sentido para os povos africanos” (Assis, 1986: 11), porque “uma das primeiras coisas que se rouba de um escravo é o seu nome, para depois roubar sua integridade” (Certeau, 1982: 9). A elite política, por sua vez, agia de acordo com aparatos repressivos, enquanto a Igreja agia através da fé, mas ambos agiam com o intuito de prevalecer o padrão e o “controle social”.

Diante esse quadro de repressão e constante controle social, além da imposição da religião católica, os negros eram por vezes acusados de misturar o profano e o sagrado em suas festividades – isto quando a realizavam, pois as autoridades compreendiam que muitos negros/escravos em uma mesma localidade, poderia ser o início de um provável motim-, mas essa mistura entre o profano e o sagrado possuía uma significância para os negros:

O batuque2 foi incorporado á prática da religião católica ao ser realizado nos rituais e festas em homenagem aos santos, nos desfiles de reis e rai-nhas e nos cortejos fúnebres. Para os africanos, a música e a dança pos-suíam uma relação direta com o universo religioso, sendo utilizadas como meios de comunicação com o mundo espiritual.3

Os códigos de posturas policiais da Câmara Municipal de Cuyabá, no ano de 1831; parágrafo 8º e Título 14 (policiais), considera um abuso que os negros “misturem” o profano e o sagrado durante as festividades de santo, assim proibiu-os:

Sendo comumente misturar-se o profano com o divino, não só nesta cida-de (...) e mesmo festejar-se este ou aquele santo com terço e ladainha, re-matando-se esta festividade com a indiscreta dança de batuque e outras semelhantes; portanto de ora em diante ficão prohebidos tães funçoens de mistura com pena do donno da caza pagar a câmara 8#000 milréis de multa, ou oito dias de cadeia.4

2. O batuque é uma dança de origem africana seguindo e estilo estrofe refrão, e era realizado em reuniões de escravos que em torno da música, dançavam para esquecerem as aflições do dia-a-dia e efetuavam sua religião. In: SILVA, Cristiane dos Santos. Fronteiras Culturais na Vila do Cuiabá (1727- 1808). Curso de especialização em Metodologia da Pesquisa em História, UFMT, 1998.

3. MATTOS, Regiane Augusto de. História e Cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.p.179.

4. CÂMARA DE CAYABÁ. Posturas Policiais da Câmara Municipal da Cidade de Cuyabá/ Código de Postura. Apro-vado em 04 de Janeiro de 1831. Cx. 01, Pm 01 – APMT.

Após essa restrição, o batuque só pode ser apresentado nos arrabaldes e com a devida autorização dos representantes do poder local. Somente as manifestações que fossem de in-teresse da classe dominante permaneceram sem nenhuma proibição, como por exemplo, as congadas animadoras de festas de São Benedito e do Rosário, festas essas incentivadas pelos senhores. No entanto, mesmo as festividades incentivadas pelas autoridades causavam certa preocupação, no que respeita ás manifestações sagradas misturando-se estas com as práticas pagãs, e por isso “neste ambiente festivo a atenção das autoridades dobravam, pois danças consideradas incivilizadas poderiam profanar o ritual religioso” (SILVA, 2002: 50).

Mesmo diante tantas restrições os escravos mantiveram vivas suas práticas culturais. Podemos tomar como exemplo a capoeira, que não foi aceita na sociedade escravocrata, mas os negros garantiram o jogo até quando foi incorporada pelos dominantes. Em Cuiabá o Código de Posturas proibiu a brincadeira em 1836. Burlando as normas, o jogo da capoeira nunca deixou de existir:

Da mesma forma que o batuque, a capoeira preservou a imagem de uma prática predominantemente escrava e africana, embora seus participan-tes não fossem exclusivamente africanos, mas, de alguma maneira, essa manifestação remetia-se ás tradições dos seus ancestrais. No século XIX, ocorreu um aumento da participação de outras camadas sociais, libertos e livres pobres, passando a ser praticada não só por africanos, mas por crioulos e brancos.5

As danças de siriri e cururu embora não sejam manifestações culturais de origem ne-gra, nelas estão presentes as expressões africanas e conseqüentemente não eram vistas com bons olhos pelas autoridades, “sob alegação de que, nos momentos festivos, reuniam pessoas de várias camadas sociais, principalmente os não brancos forros e cativos, o que se devia evi-tar” (SILVA, 2002:48). A normatização, relativa á prática do cururu mais antiga, data de 1827, mas sua manifestação antecede a norma:

Sendo costume mui antigo nesta cidade na gente pobre adivertirem-se em algumas noites com a dança, e cantoria vulgarmente chamada cururu, e não sendo da intenção do Presidente priva-los de um entretenimento, que os alivia dos cuidados da vida; deve contudo o mesmo Presidente prevenir os abusos, que nascem do excesso de embriagues, que muitas acompa-nham a tais divertimento, e evitar que se cometam crimes, que depois se hajam de punir; e sendo também costume que esta casa de homens por um louvável respeito ás Autoridades superiores tem participado sempre com antecipação a noite, e lugar em que pretendam fazer o seu chamado cururu, o Senhor Oficial encarregado do De Calhe das patrulhas fica au-torizado para receber estas participações afim de que possa ter vigilância sobre tais ajuntamentos; e outro sem que no caso de que eles nelles haja excessos de embriagues os faça descobrir para o que em pura responsabi-lidade ao diretor da feita, ou donno da casa sobre as bebidas espirituosas, que introduzir; igualmente terá cuidado quando o cururu for no centro da

5. MATTOS, Regiane Augusto de. História e Cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.p.186.

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cidade que não se façam a covidos, as oras de descanso, e sejam incomo-

dados os vizinhos.6

As danças de influências africanas sempre fizeram parte do imaginário religioso e po-pular, que as ligava á denominada magia negra. Um exemplo desse imaginário popular e repressivo é relatado pelo historiador Carlos Alberto Rosa no caso Maria Eugênia:

Em inícios de 1778, a negra crioula e forra Maria Eugênia de Jesus, presa

na cadeia de Cuiabá por difamação, era caracterizada pelas autoridades

como “grande revoltosa e péssima língua” (...) o Vigário de Cuiabá, acres-

centou a prática de difamação a de feitiçaria, pois a mesma realizava

práticas curativas dentro da prisão (...) o cronista oficial Joaquim da Costa

Siqueira, afirmou claramente: a “instrumentalização” demoníaca de Maria

Eugênia sucumbira aos desígnios do diabo, que se aproveitou de sua “fragi-

lidade humana” (grifos meus).7

Assim como as danças, as práticas curativas realizada pelos negros não eram vistas com bons olhos pela sociedade dominante e por vezes designada como feitiçaria. Mas, cabe aqui esclarecer que “como a cultura se manifesta por uma rua de mão dupla, não se pode afirmar que nas relações sociais havia uma separação inflexível entre a camada abastada e a camada subalterna” (SILVA, 1998: 28); já que podemos observar a participação desta camada abastada nas rodas de batuque e em outros segmentos festivos de origem típica africana. Seria este então o motivo da mistura entre o profano e o sagrado? Creio que este seria ape-nas um dos fatores, pois temos que levar em consideração a imposição do Catolicismo aos negros, como única forma de salvar suas almas antes pagãs.

O segmento negro diante da sociedade escravocrata organizou-se a fim de poderem realizar/manifestar sua religião, tanto que em 1722 já apresentavam uma organização nume-ricamente considerável, o que justificou a construção de uma capelinha a São Benedito- o Santo negro-, como relatou o cronista Barbosa de Sá (1975): levantaram os pretos huma ca-pellinha a San Benedito junto ao lugar chamado depois rua do cebo. É o primeiro registro do culto ao Santo Preto, padroeiro dos humildes, porque ser preto é ser humilde e ser humilde era ser escravo, e São Benedito por sua vez, fora filho de escravos. A festa em honraria a São Benedito que já era realizada pelos negros na África, é uma das mais antigas do Estado de Mato Grosso, sendo a mesma realizada anualmente no mês de julho.

Esta organização dava-se em boa parte via as Irmandades8 existentes na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, entre as mais antigas podemos citar a do Senhor Bom Jesus, do Glorioso Arcanjo São Miguel e Almas, do Santíssimo Sacramento e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. As Irmandades além de configurarem-se como espaço devocional por

6. Registro das Portarias e Ordens Expedidas pela Presidência Ano 1827-1828. Cuiabá, 10 de Nov 1827, Art. 3º, nº417, APMT.

7. ROSA, Carlos Alberto. O Caso Maria Eugênia. In: Diário Oficial- Suplemento Mensal, 31 de jul 1986, p.12. Cx. 001, P.26-b – APMT.

8. Associação leiga que tem fim devoto. In: Dicionário Priberam de Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=irmandade.

cativos, forros e livres, ainda era procurado por alguns irmãos9 para fins de ascensão social, onde as mulheres merecem destaque por possuir certa mobilidade:

As mulheres tinham papel predominante na preservação, perpetuação das crenças e transformação dos aspectos culturais (...) o papel desem-penhado por uma mulher escrava aumentava quando pertencia a uma irmandade, pois conseguia a alforria, normalmente estendia este benefício aos filhos (...) as mulheres podiam ser vistas como mais perigosas que os homens, pois possuíam mobilidade maior no ambiente urbano como líde-res da religiosidade (grifos meus).10

Mesmo diante ao cenário de repressões constantes, e imposição da cultura européia por meio do catolicismo, os negros constituíram meios de burlar tais proibições e continua-rem a manifestar sua religião, e no contexto sócio-cultural podemos dizer que sua presença no seio da cultura mato-grossense permitiu o continuísmo da mesma.

Bibliografia

Manuscritos

CÂMARA DE CAYABÁ. Posturas Policiais da Câmara Municipal da Cidade de Cuyabá/ Código de Postura. Aprovado em 04 de Janeiro de 1831. Cx. 01, Pm 01 – APMT.

Registro das Portarias e Ordens Expedidas pela Presidência Ano 1827-1828. Cuiabá, 10 de Nov 1827, Art. 3º, nº417, APMT.

SÁ, Joseph Barboza de. Relação das povoaçoens do Cuyabá e Mato Grosso de seos princípios thé os prezentes tempos. Cuiabá, Edições UFMT/SEC, 1975.

Livros, artigos e teses

ALMEIDA, Solange de. Devoção, irmandade e festa de São Benedito em Cuiabá. Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2002.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

LE GOFF, Jacques.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e Cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2007.

SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2002.

9. Expresso o desejo de que o termo por mim utilizado seja compreendido tal como Cristiane dos Santos Silva de-signa: Segundo a Escritura Sagrada, há várias maneiras de se considerar uma pessoa irmã de outra. Contudo, a definição de irmão para este trabalho são ‘os que, renascidos pela fé e pelo batismo invocam um mesmo Pai celeste ‘. Bíblia Sagra-da. 55 ed., São Paulo: Ave Maria, 1987, p.1586. Adiciono a esta definição que o renascimento é efetuado pelo acréscimo e não pelo esquecimento da religião anterior. In: SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). Cuiabá: Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2002.p.9.

10. SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé do Rosário: Ações e Relações com o Sagrado na Vila Real. In:_________. A Terra da Conquista. História de Mato Grosso Colonial. ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk Maria de. (Orgs.). Cuiabá: Adriana, 2003. p.68.

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Anais Eletrônicos do VI Encontro Regional de História: História Natureza e Fronteiras

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SILVA, Cristiane dos Santos. Fronteiras Culturais na Vila do Cuiabá (1727- 1808). Curso de espe-cialização em Metodologia da Pesquisa em História, UFMT, 1998.

Jornais

ASSIS, Edvaldo de. O Negro e as Manifestações Culturais em Mato Grosso. In: Diário Oficial- Su-plemento Mensal, 29 de ago 1986. Cx. 001, P.26-b – APMT.

ROSA, Carlos Alberto. O Caso Maria Eugênia. In: Diário Oficial- Suplemento Mensal, 31 de jul 1986. Cx. 001, P.26-b – APMT.

Website

http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=irmandade. Acesso em 28/2010 ás 07/: 16:41.

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