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ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança (e)m Política Setembro/2014 http://www.portalanda.org.br/anai 1 CONSTRUÇÃO DE TENDÊNCIAS NA DANÇA: MODA, MERCADO E POLÍTICA Seijas, Nirlyn Karina Castillo Conceição (UFBA)* RESUMO: estabelecendo discussões sobre arte na modernidade e pósmodernidade, o pluralismo como status-quo póshistórico, arte e política e sistemas de legitimação, pretendo criar o campo de tensões questionem a formação de tendências estéticas em dança contemporânea. A seguir, faço uma aproximação à discussão sobre arte cult e arte brega/kitsh e elenco como estas características identificam uma atual tendência na dança contemporânea, para finalizar refletindo sobre os desafios dos sistemas de legitimação respeito motivações e honestidades artísticas atravessadas por influências políticas e mercadológicas. PALAVRAS-CHAVES: sistemas de legitimação. Arte e política. mercado da dança. Tendências da dança. Brega e cult em dança. CONSTRUCTION OF TRENDS IN DANCE: FASHION, MARKETING AND POLICY ABSTRACT: setting discussions about art in modernity and post-modernity, pluralism as a status-quo post historical, art and politics, legitimizing systems, this article intend to create a stress field that introduce the issue of the aesthetic tendencies in contemporary dance. Below, I approach to notions of art cult / kitsch and to how these characteristics identify a current trend in contemporary dance, to finalize reflecting on the challenges of legitimizing systems regarding motivations and artistic honesties crossed by political and market influences. KEYS-WORDS: legitimizing systems. art and politics. Dance market. Dance tendencies. Brega and cult dance.

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ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Comitê Dança (e)m Política – Setembro/2014

http://www.portalanda.org.br/anai

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CONSTRUÇÃO DE TENDÊNCIAS NA DANÇA: MODA, MERCADO E POLÍTICA

Seijas, Nirlyn Karina Castillo Conceição (UFBA)*

RESUMO: estabelecendo discussões sobre arte na modernidade e pósmodernidade, o pluralismo como status-quo póshistórico, arte e política e sistemas de legitimação, pretendo criar o campo de tensões questionem a formação de tendências estéticas em dança contemporânea. A seguir, faço uma aproximação à discussão sobre arte cult e arte brega/kitsh e elenco como estas características identificam uma atual tendência na dança contemporânea, para finalizar refletindo sobre os desafios dos sistemas de legitimação respeito motivações e honestidades artísticas atravessadas por influências políticas e mercadológicas. PALAVRAS-CHAVES: sistemas de legitimação. Arte e política. mercado da dança.

Tendências da dança. Brega e cult em dança.

CONSTRUCTION OF TRENDS IN DANCE:

FASHION, MARKETING AND POLICY ABSTRACT: setting discussions about art in modernity and post-modernity, pluralism as a status-quo post historical, art and politics, legitimizing systems, this article intend to create a stress field that introduce the issue of the aesthetic tendencies in contemporary dance. Below, I approach to notions of art cult / kitsch and to how these characteristics identify a current trend in contemporary dance, to finalize reflecting on the challenges of legitimizing systems regarding motivations and artistic honesties crossed by political and market influences. KEYS-WORDS: legitimizing systems. art and politics. Dance market. Dance tendencies. Brega and cult dance.

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Introdução

Este é um trabalho sobre paradoxos, sobre como somos contemporáneos e

modernos, como somos consumistas e críticos, como somos contra o mercado mas

organizamos nosso material para vender.

Vivemos em um mundo das artes onde supostamente não existem mais fronteiras,

não existem mais cânones, mais certezas sobre como avaliar a qualidade do objeto de

arte. Porém, paradoxalmente as tendências estéticas e de mercado que fácilmente se

tornam hegemônicas, continuam existindo.

Se bem poderiamos dizer que hoje existem muitos mercados e circuitos diferentes,

existe um mercado “cult” que determina o que se vende e circula dentro dos festivais e

espaços culturais legitimados pelo dinheiro público: a classe acadêmica e a classe de

artes contemporâneas. Micropolíticas e macropolíticas geram nichos do produção, não

apenas formados com “panelinhas” de amigos, mas por panelinhas de estilos. Mas que

estilo é esse? A que fenômenos essas separações e classificações respondem?

Paradoxalmente, esse circuito (que aqui chamaremos de diversas formas

atendendo às coloquialidades: cult, in, top, alternativo, mas que continua sendo o exemplo

da alta cultura no Brasil) é constantemente colocado em questão pois precisa atender

constantemente às pressões das políticas públicas para cultura (democratização, direitos

culturais para todos), do surgimento de novas tendências das artes populares e de

massa, da continuidade do pensamento e fazer moderno presente na dança e das

inserções das artes no limite entre alta e baixa cultura.

Esse paradoxo onde o sistema de legitimação cult, fundamentalmente elitista, se

torna também o operacionalizador das políticas de democratização e da discussão sobre

cultura de massa e popular dentro das artes contemporâneas, é apenas o primeiro de

tantos que levantaremos aqui.

Uso a palavra paradoxal porque dá conta de complexidade sem juizo de valor claro

sobre as partes que o constituem. Quer dizer, neste paradoxo a cultura cult e cultura de

massa convivem, se encontram, se questionam e se assumem, sempre no limite da

contradição.

Nesta discussão Arthur Danto, Hal Foster, Helena Katz, Lucas Kalil e Carmen

Lucia, servirão de alicerce para observar outros paradoxos que agem nesta questão da

legitimação de certas tendências artísticas no circuito.

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Paradoxos instalados no centro das artes modernas.

O modernismo, sob necessidades estéticas e políticas, perguntou às artes sobre

sua autonomia, sobre sua especificidade, sobre si mesma, as artes se voltam para si e

fazem um largo percurso até chegarem a limites formais extremos. Um século inteiro

destas perguntas trouxeram respostas que avançavam de forma linear a uma constante

limpeza, uma constante busca pelos agentes “contaminadores” que faziam com que cada

linguagem artística se misturasse com a vida, com um tema, com um engajamento para

além da sua própria forma.

Este processo moderno de evolução nas artes está associado com três razões,

paradoxais entre si:

Primeiro aspecto – a autonomia artística:

Os artistas se libertam dos sistemas de encomenda que motivavam a produção

artística (onde quem paga, seja ele estado, igreja, ou nobreza, elege o tema da obra) e

constroem obras sem expressa utilidade política, educativa e/ou publicitária. Inclusive,

algumas obras ensaiam o desprendendimento até das próprias questões emocionais,

sentimentais, sociais. Artistas usam a linguagem artística para criticar a própria arte, se

voltam para ela, para sua constituição. Em palavras de Arthur Danto, filósofo de arte

americano, refletindo específicamente sobre modernismo nas artes visuais: “[…] o

modernismo é um tipo de pesquisa coletiva interna pela qual a pintura se esforça em

exibir o que ela própria é no ato de pintar” (DANTO, 2006, p.74).

Na dança, poucos artistas aderiram totalmente a esta consigna. Balanchine,

Cunningham, Trisha Brown e mais recentemente William Forsythe, David Zambrano,

Gilles Jobin podem ser claramente expositores desta forma de pensar a linguagem da

dança como linguagem autônoma. Vários outros importantes coreógrafos transitaram

entre esta pauta autonôma e a representação de temas românticos, expressionistas,

engajados. Alguns trabalhos nunca conseguiram chegar à autonomia total concretizada

na abstração, mesmo motivados por ocupações totalmente formais, eles tocam de forma

radical as concepções sociais do corpo e suas reconfigurações. É o caso, por exemplo do

Steve Paxton e a dança de contato-improvisação.

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Segundo aspecto – neutralização das artes.

Este fenômeno autonômico, tem sua contraparte paradoxal na neutralização das

artes como arma política/social, que se deu por um desprezo por parte da burguesia em

ascenção, que não reconhece nem precisa mais das artes como ferramenta de

representação das suas lutas políticas. No século XX, a burguesia havía alcançado o

domínio econômico total e se tornava conveniente o enfraquecimento e a neutralização do

sistema crítico intelectual constituído até o momento pela produção artística. Desta forma,

cabe a dúvida se os artistas buscavam sua autonomia por impulso próprio, ou foram,

induzidos a ela através das dinâmicas de mercado do momento, tornando-se supérfluos e

inofensivos para questões da vida, suas lutas, seus interesses.

O sistema de artes se autoneutraliza para garantir a subsistência alinhada aos

novos poderes da burguesia. Este projeto chamado por muitos teóricos (Habermas,

Greenberg, Danto) como “iluminista”, fez da arte um objeto de luxo inócuo para as lutas

contra o poder instaurado. Um arte que se autoreflete e se autoreferencia sempre é

extremamente conveniente para os sistemas de poder.

Embora a autonomia estética tenha sido mais restrita do que esse cenário sugere, é esta “esfera autárquica” da arte que a vanguarda rejeita; ainda que, de modo bem claro, o declínio atual do projeto iluminista se deva menos à transgressão artística (que Habermas descarta como tantos “experimentos sem sentido”) e mais à “colonização do mundo da vida” pelas esferas econômicas e burocráticas, técnicas e científicas, a primeira inteiramente instrumental, a segunda caracterizada não tanto por ser desprovida de valor, mas sim pelo esquecimento do valor. Por essa via, a arte e a crítica se tornam marginais; na verdade, esta é sua função: “representar a marginalidade humana”. E desse modo são tratadas como essenciais, mas supérfluas, como luxos ou perturbações a serem aceitos ou dispensados. (FOSTER, 1996, p.20-21)

Terceiro aspecto – pensamento autonômico e a purificação racial

A autonomia é uma noção tão complicada, que análises minuciosos das suas

políticas, fazem uma associação direta entre modernismo e totalitarismo, pois os

interesses de purificação da linguagem do modernismo, com consciência ou não, são

análogos às tendências dos estados modernos, nacionalistas e fascistas de implantar um

sistema de pensamento único, purista, supostamente originário, que substitui e amassa

as diferenças, em alguns casos exotizando outras culturas, em outros casos tentando

eliminá-las, em prol de um ideal de perfeição e bem estar que rejeita efeitos

contaminadores.

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A história do modernismo é a história da purificação, da limpeza generalizada, do liberar a arte do que quer que lhe fosse acessório. [...] Não é surprendente, simplesmente chocante, reconhecer que o análogo político do modernismo na arte foi o totalitarismo, com suas ideias de pureza racial e sua agenda de expulsar qualquer agente contaminador percebido? (DANTO, 2006, p.78)

O pensamento purificador, observado no centro desses três aspectos, amplifica a

brecha entre alta cultura e cultura popular ou de massa pois promove a desconexão entre

vida e arte; desenvolve formas de legitimação e fruição de artes que exigem uma erudição

específica; e instala um pensamento que desqualifica as culturas não-hegemônicas,

exotizando-as ou tentando eliminá-las.

Como é possível qualquer tipo aproximação entre lógicas diferentes dentro do

pensamento moderno? Seja da alta e baixa cultura, seja da diversidade cultural, seja a

mistura de estilos. O principio é a limpeza dos agentes contaminantes e isto, mesmo

vivendo hoje em um tempo pós modernidade, ainda tensiona os agentes de poder e suas

formas de legitimação dos fenômenos artísticos na atualidade.

Ainda hoje é comum no espaço acadêmico/artístico de elite, empreitar discussões

sobre a suposta ingenuidade de danças populares tradicionais ou de massa, sobre sua

falta de complexidade, ou de esforço na produção, etc. Existe no centro de nossa cultura

uma herança muito profunda de pensamento moderno que impede as conexões e

revalorizações dos diversos fazeres e saberes.

A pós modernidade resolveu a questão?

Supõe-se que depois dos anos 1950, o modernismo chegou a seu fim. Alguns

teóricos dizem que desde princípios do século passado. Alguns outros afirmam que ainda

vivemos entre épocas, ainda vivemos no mundo moderno, mas já também confundidos

pela pós-modernidade e tudo o que veio depois. Hoje o tempo é confuso.

Nos interessa situar momentos onde o pensamento moderno nas artes começou a

quebrar-se, acabando com a certeza sobre o objeto de arte e sua utilidade na sociedade

moderna, pois é justamente o momento e a questão que quebra a busca pelo agente

contaminante, e assume o estranho como parte constituinte da obra.

A principio isso parece resolver o problema, mas dadas as circunstâncias que

colocarei a seguir, apenas complexifica, porque novos paradoxos aparecerão no centro

da pós-modernidade.

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Sobre queda das fronteiras ou sobre a politização ou sobre a cooptação das

artes pelo consumismo.

Não existe o momento exato onde o objeto de arte, tal como conhecido a partir do

renascimento, deixou de existir.

Indícios de modificações radicais aparecem desde princípios do século XX, com

artistas como Duchamp que respondendo “o que é arte?” coloca um urinário invertido no

museu e diz: “-Isso é arte!”, se opondo totalmente à concepção de obra de arte plástica

concebida no momento.

Porém, é entre os anos 1950 e 1960 que tanto o modernismo chega à sua máxima

expressão, quanto se quebra por completo e aparecem teses sobre arte que mudam

totalmente nossas ideias anteriores sobre o que a arte é e para que serve.

Arthur Danto expõe nos seus livros “A morte da arte” e “Após do fim da arte” como

o modernismo estabeleceu uma forma narrativa e evolutiva de entender as artes e como

essa narrativa acabou com o aparecimento do que ele chama de objeto de arte

indiscernível. Esse novo momento conhecido como contemporâneo, pós-moderno, foi

batizado por Danto como pós-histórico. Com estes nomes se circunscreve o fenômeno

onde as fronteiras entre artes, linguagens, funções e reflexões sobre arte se tornam tão

plurais que os critérios existentes até aquele momento não são mais aplicáveis ao que os

artistas estavam propondo.

Para Danto, o objeto de arte indiscernível poderá ser qualquer objeto sempre que

seja nomeado por alguém como arte e seja aceito pelo poder legitimador como tal.

Desta forma, entramos em um tempo onde as formas de legitimação conservam

aspectos modernos para se relacionar, paradoxalmente, com um tipo de arte que se

constitui com “elementos que são mais híbridos do que „puros‟, contaminados em vez de

„limpos‟, „ambiguos‟ em vez de „articulados‟, „perversos‟, bem como interessantes”

(DANTO, 2006, p. 14).

A dança, como forma de arte, mesmo sem deixar de arrastar as condições

modernas, é atravessada por estas novas condições pós-históricas:

- Indiscernibilidade do objeto: não se pode distiguir o que é dança do que não é,

apenas pela materialidade do objeto (pelos movimentos, pelo tempo, pelos elementos

cênicos), nem pela sua relação com a história ou evolução das artes. Será preciso,

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entender cada obra dentro das próprias regras que ela apresenta e considerar o contexto

de produção e o discurso criado pelo sistema de artes em torno dela. Quer dizer, além do

trabalho de construção material da obra, todo trabalho de dança requer um exercício de

pensamento e construção de discurso político e não apenas das destrezas motoras.

- A reconfiguração das ideias e função da arte: a mudança da destreza física

para o discurso artístico-ideológico que ocorre na pós-modernidade, cria o contexto

perfeito para que se recupere a discussão sobre sua função política na sociedade. Uma

parte das artes recupera sua preocupação pela vida, pelas lutas, pelo poder ideológico e

se aderem aos novos movimentos das minorias, das reivindicações (FOSTER, 1996,

p.189).

Neste período nos situamos em frente das mais diversas obras com as mais

diversas lutas políticas. A função da arte se revincula à função da ação política, mesmo

que até isso possa se tornar supérfluo na voracidade do mercado, como veremos na

próxima seção.

Na dança particularmente, acontece algo interessante. As consignas modernas e

pós-modernas se justapõem e originam apostas políticas que defendem a liberação da

dança de suas doutrinas narrativas, seus cânones de beleza, etc, e paradoxalmente estas

apostas aproximam aos princípios do modernismo artístico que leva à dança abstracta.

Um exemplo claro desta confluência de moderno e pós-moderno é o famoso manifesto do

Não, da Yvonne Rainer, escrito em 1965.

Não ao espetáculo, não ao virtuosismo, não à transformação e magia e ao faz de conta, não ao glamour e à transcendência da imagem da estrela, não ao heróico, não ao anti-heróico, não ao lixo metáfora, não ao envolvimento do intérprete ou do espectador, não ao estilo, não ao camp, não à sedução do espectador pelos artifícios do intérprete, não à excentricidade, não ao mover ou comover, não a ser movido ou comovido (TAMBUTTI, 2013, p.336).

Pósmodernizar a dança é ao mesmo tempo modernizá-la. Quer dizer,

paradoxalmente as mesmas consignas e gerações que colocam a dança no patamar pós-

moderno, que a politizam, que a relacionam com a vida, são as mesmas que

experimentam com maior sucesso as consignas modernas de limpeza e autonomia. Se

instalam aqui duas grandes vertentes na dança de metade de século XX, por uma lado

uma dança contemporânea que se materializa pelo limpo, não espectacular, não

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exagerado, sem artifícios, não comoção, não expressão romántica. Por outro lado, uma

dança com clara aposta política, a obra deve estar enquadrada em nível de materialidade

e discursos com estas apostas e para isto se valerá de qualquer recurso artístico que a

vincule ou não às ideias clássicas de dança como arte do movimento. Despojamento

cênico e argumento político tecem uma forte onda de obras de dança contemporânea.

- Câmbio do sistema de legitimação: frente a estas mudanças na materialidades

e preocupações das obras, o trabalho da crítica entra em crise pela falta de critérios

específicos para avaliação. Dessa forma, a legitimação se redistribui entre os próprios

artistas (que começam exercer e gerar espaços “alternativos” de circulação), os curadores

que estão ligados às instituições e os departamentos de marketing vinculados aos

patrocinadores.

Esta nova “instituição das artes”, tal e como Danto a chama, constituída por esses

atores, alguns novos e outros reconfigurados, decidem qual dança contemporânea pode e

deve consumir-se. Sem critérios claros, isto será o caldo perfeito para uma movimentação

livre e contraditória das tendências artísticas. A legitimação se dá pela circulação e venda

das obras. É necessário ficar atento aos interesses políticos e econômicos que

movimentam estes mercados e legitimam essas obras, pois a responsabilidade artística

sucumbe facilmente aos compromissos do capital. A dança é fácilmente neutralizada pelo

patrocínio da própria instituição que pretende criticar.

- O pluralismo, consumismo ou política.

Um período onde as artes podem ter qualquer aspecto, podem responder a

qualquer questão, onde o sistema de legitimação está mais próximo ao mercado que às

questões da arte, é um período que exige a produção de mais e mais diferentes produtos

artísticos. Movimentação e fluxo é um requisito fundamental na nova ordem mundial, o

capitalismo. O go shopping aplicado até na área da produção simbólica é também

característico de nosso tempo.

Este momento foi identificado por Hal Foster como pluralismo e traz consigo alguns

novos paradoxos. Misturar, expandir, testar, amplificar o mercado, o gosto, o consumo

serão suas principais consignas. Não é claro, se este momento arriva pela toma de

consciência política/artística sobre diversidade racial, sexual, econômica, estética ou pelo

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desejo de reconfigurar a realidade e de produzir inovações, ou se é apenas uma

manifestação do capitalismo tardio, que torna qualquer objeto um produto vendável, que

amplifica suas redes e faz das artes mais um aparelho da obsolescência programada, que

promove o consumismo, a acumulação de riquezas e o consequente empobrecimento

cultural das classes menos privilegiadas.

Uma crítica atenta ao pluralismo deveria acompanhar qualquer discussão sobre

tendências de dança, pois modas e proliferação de espaços de exibição fazem parte da

atual dinâmica artística e vale a desconfiança, dada a relação destes espaços com

governos ou empresas, que os utilizam para alcançar seus próprios objetivos e

interesses. Um suposto estado de graça onde tudo vale e onde se instala uma tabula rasa

em relação à produção artística não é mais que a neutralização do trabalho crítico que as

próprias artes pretendem promover. No pluralismo a própria causa política pode ser

cooptada como mais um produto a ser consumido e assim pode esvaziá-la de sentido.

De fato, a liberdade de arte hoje em dia é anunciada por alguns como o “fim da ideologia” e o “fim da dialética” – um anúncio que, embora ingênuo, torna essa ideologia ainda mais desviada. Com efeito, a abdicação de um estilo (por exemplo, o minimalismo) ou de um tipo de crítica (por exemplo, o formalismo) ou até mesmo de um período (por exemplo, o modernismo tardio) tende a ser tomada equivocadamente como a morte de todas essas formulações. Tal morte é vital para o pluralismo: pois, de certo modo, com a liquidação da ideologia e da dialética, entramos num estado que parece com o da graça, um estado que permite extraordinariamente, todos os estilos – isto é, o pluralismo. Tal inocência diante da história implica uma séria contrafação da historicidade da arte e da sociedade. Implica também um fracasso da crítica. (FOSTER, 1996, p. 36)

Não são poucos os exemplos de artistas da dança que acreditando no pluralismo,

produzem incansávelmente produtos “inovadores”, que aderem ao mesmo tempo à arte

política como à consumismo do mercado. Centos de boas ideias políticas são vendidas

como obras, satisfazendo um mercado cada vez mais insaciável de festivais, editais,

espaços culturais, etc. que precisam mais e mais obras inéditas, mesmo fracas,

superficiais e descontínuas. Artistas acabam se repetindo, burning out, passando por cima

das próprias pesquisas e urgências, tentando fórmulas prontas do que a “tendência”

aponta como vendável, reforçando ideas hegemônicas que colaboram para o

achatamento do pensamento crítico ao invés do promovê-lo.

O fato é que existem novas configurações

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Paradoxalmente, como já comentei encima, este mesmo movimento organiza as

experimentações de novos estilos, de novas formas e, sobretudo mais produção que

coloca em pauta o debate sobre o diverso, sobre a alteridade. Uma das tendências que foi

criada a partir destas reflexões foi a aproximação estética entre alta e baixa cultura. Os

artistas começam a ser cutucados por um desejo de reconfiguração destes signos. O

estranho, o exótico, o popular chama a atenção, mas não apenas como o reconhecimento

do agente contaminador (como tinhamos visto no inicio do artigo), mas como agente

constituinte do que somos e da arte que fazemos. Elementos da baixa cultura aparecem

como legitimação da complexidades dos atores da criação.

Artistas importam idéias, cores, músicas, figurinos do universo folk, popular,

elementos da chamada baixa cultura e com isso legitimam e ao mesmo tempo estimulam

a dinâmica mercadológica na qual estão inseridos. Uma fascinação por vezes genuina,

por vezes colonizante e exotizante se apresenta com estes movimentos. Em muitos

casos, sem uma profunda reflexão crítica sobre como estes mecanismos criativos estão

influenciando o sistema artístico e suas tendências e como repercutem na reconfiguração

de signos culturais na vida social.

De alguma forma, a dança brasileira “in” está respondendo a impulsos ora

modernos (despojados de romantismo e expressionismo), ora pluralistas (onde qualquer

objeto por ser arte), ora políticos em relação à alteridade (importando lógicas de outros

territórios) que acabam instituindose como características aceitas pelos circuitos

distribuidores de arte no país.

No momento em que este artigo se escreve, uma das mais poderosas tendências

estéticas na dança responde aqueles questionamentos colocados pela modernidade

justaposta à pósmodernidade que convoca um tipo de dança despojada de artifícios

espectaculares, uma dança concreta, mesmo sem perder sua capacidade expressiva, se

identifica por uma configuração mais abstracta e limpa. Seja pela afinidade

estético/política européia, pelas pressões financeiras e de mercado ou pelas reflexões

curatoriais locais sobre o que pode ser exibido para determinado local e público,

frequentemente nos deparamos com uma dança contemporânea “cult” homogenizada

pelas seguintes características:

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- Espectáculos com poucos elementos cênicos, ou elementos justos para “contar” o

objeto da obra.

- Limpos, lentos, silenciosos, extenuantes.

- Convocadores de um certo estado de reflexão nos espectadores.

- Fogem da idéia de virtuose clássica, não estão feitos para o “desfrute” estético,

quer dizer, exploram outro tipo de estímulos: quietude, controvérsia, desconforto, etc.

- São engajados políticamente com causas como: reconfigurações da noção de

corpo e estado de corpo, questões de gênero, classe e diversidade cultural,

questionamento de lugares de poder dentro e fora das artes.

- Fogem da utilização de códigos de movimentos relacionáveis com as técnicas de

dança clássica ou moderna européias ou norte-americanas, a não ser para críticá-las. Em

contraposição disto, o desenvolvimento da linguagem de movimento se dá pelas

necessidades dramáticas da própria obra.

- Não é aparentemente cópia, ingênua, pop, brega. Está por cima destes tipos de

produtos pela inclusão de todas ou alguma das características anteriores.

Contudo, como todo check list é reductivo, perigoso e aqui é mais uma

aproximação lúdica do que uma pretensão de verdades. Dito isso, podemos avançar a

outra grande tendência estética que tem sido caracterizada pela fascinação pela cultura

popular. As razões são múltiplas como dissemos antes: cultura de massa, capitalismo

tardio, consumismo, discussões sobre diversidade, pluralidade, discriminação. Esse

popular, kitsh, brega na sua versão “pura” poderia se identificar por:

- Não originais ou inéditos, utilizam elementos muito usados no universo da dança

moderna e clássica.

- Mistura elementos sem uma conexão muito limpa ou clara.

- Exagero de virtuosismo, elementos cênicos, figurinos recarregados de

informação, hiper-expresividade dos rostros e as mãos.

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- Linguagem de movimento que mistura técnica de dança moderna ou clássica de

países centrais, ligando com uma narratividade alegórica até pantomímica (representa

uma história) na qual se recorre a elementos literais para dar sentido porque os

movimentos utilizados não dão este sentido.

- Ingenuidade e/ou banalidade na utilização de símbolos de culturas, áreas de

conhecimento e estruturas tão diversas que podem criar grandes contradições de sentido.

- Utilização de movimentos de danças populares, deslocando-as ao espaço cênico

onde se reconfigura o sentido, porém sem interesse para além do estético.

Esta tendência da dança contemporânea cult fascinada pelo universo brega que

agora parece atrativo, se debate entre manter sua configuração estética com elementos

que a identificam e incorporar estes outros elementos, em uma tensão que confunde e

amplifica os espectadores. Criando danças que beiram na alta e baixa cultura, se instaura

uma tentativa de borrar os limites e questioná-los, ao mesmo tempo fazendo confluir tipos

de gostos diferenciados.

O caminho geralmente é o branqueamento, o esvaziamento dos signos originários

e a exotização para o consumo no mercado cult. Este caminho tem sido bastante

percorrido pela dança moderna em toda América Latina. Os artistas, formados sob

técnicas e tendências de dança dos países centrais, mas convocados pela suposta

ideologia e pelo mercado a criar algo próprio, tendem a criar misturas formais que acabam

contradizendo, os próprios objetivos autonômicos que estes esforços procuravam

inicialmente.

Também acontece na dança contemporânea, onde os artistas reconhecendo as

características do “cult” e o interesse pela cultura popular, se propõem a criar trânsitos,

resignificações, reapropriações, às vezes genuínas, às vezes estratégicas e

mercadológicas. Para estas configurações existe um limite ainda discernível entre o brega

e o cult, e mesmo borrado, o limite deve ser claro, para conservar a possibilidade de

circular no circuito das artes contemporâneas.

Desta forma encontraremos espetáculos com a linguagem do breakdance, mas

rodeado de um discurso filosófico bastante coerente e interessante, uma limpeza cênica

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particular dos produtos cult e talvez uma aposta política bem articulada, que faz com que

esta linguagem passe a circular dentro do mercado da dança contemporânea.

É preciso estar atento e forte

Este fenômeno só é possível na confluências dos pensamentos modernos e

pósmodernos que convivem no sistema de artes atual. A modernidade que ainda reclama

limpeza instaura um criterio dentro da chamada arte contemporânea cult.

Um mercado que pede vorazmente por inovações; um status político que exige o

engajamento discursivo da arte; uma ordem social que se atenta para uma reorganização

dos poderes e das clases/gostos; e um sistema de artes em constante busca por seus

establishment, são o caldo perfeito para produzir tendências e modas em dança onde é

extremamente difícil identificar motivações e honestidades.

É necessário desmascarar os argumentos tanto de artistas, quanto de curadorias

para iniciar uma discussão sobre a circulação, o mercado e a tendência na dança. É

necessário porque no fundo dessa discussão está a neutralização do fator crítico das

artes pelas lógicas do mercado. Colocar à luz as tensões às quais se submetem os

produtores, gestores e curadores das mostras artísticas é uma das tarefas fundamentais

para poder reconhecer quanto dessa contínua exclusão do material “brega” é decorrente

de uma simples estagnação de pensamentos hegemônicos sobre o que é bom, sobre o

gosto, ou, se pelo contrário, está cheio de escolhas verdadeiramente políticas, de eleições

locais, contextuais e de apostas curatoriais que criam discursos pertinentes.

Nesta discussão sobre o mercado e a circulação, é também importante levar em

conta, que aquelas coisas que não são incluídas, tendem a criar outras formas de

subsistência (no melhor dos casos) ou a desaparecerem (no pior dos casos). Não é

simples, em um universo de recursos escassos, escolher o que ganhará o privilégio de

entrar no mercado, ainda mais quando, no Brasil, este mercado está basicamente

bancado pelo dinheiro público.

Como lidar com as tendências do mercado cult, da presão da cultura de massa e o

achatamento de significados de algumas manifestações populares? Os agentes culturais

e os formadores de opinião em dança precisam levar a sério a discussão sobre como isso

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que entendemos por brega tem um lugar dentro do imaginário do público, como lidar com

isto? Como negociar com esta presença sem ignorá-la e sem aderir também apenas por

uma nova onda do mercado?

Será que estamos na frente de apenas mais um estado estilístico na dança? Será

que todo esse universo que achamos político nas obras cult não é mais que um estilo? E

se for, como convocar um pluralismo saudável para diversificar os poderes e os

conhecimentos?

Referências

DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. Saulo Krieger(trad). São Paulo. Odysseus Editora,

2006.

FERREIRA, Glória. Escolhas e experiências. In: RAMOS, Alexandre (org.) Sobre o

ofício do curador. Porto Alegre, Zouk Editora, 2010, p. 137-147.

FOSTER, Hal. Recodificação: Arte, Espetáculo, Política Cultural. São Paulo, Casa

Editorial Paulista, 1996.

Khalil, Lucas. A discursivização da música brega em paralelo com o conceito de

kitsch. Cadernos do IL, Porto Alegre, 2012.

LUCIA, José. Do brega ao emergente. Marco Zero. s/d.

OBRIST, Hans Ulrich. Everything you always wanted to know about curating. New

York-Berlin, Sternberg Press, 2006

SEIJAS, Nirlyn. Curadoria: História e função. Bahia, Monografia Especialização em

Estudos Contemporâneos em Dança, UFBA, 2010.

TAMBUTTI, Susana. Teoría General de la Danza. Buenos Aires. Material Didático não

publicado, 2013.

*Curriculo Nirlyn Seijas

Artista da dança, curadora e docente. Mestra em Cultura e Sociedade, Especialista em

Estudos Contemporâneas em Dança, Lic. em Dança Contemporânea. Criadora do

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trabalho Mujerzuela apresentado em Salvador,Uberlândia, Petrolina, Chile, Uruguai.

Curadora da Plataforma Internacional de Dança (2010-2012). É professora de análise

crítica, história e dança contemporânea na FUNCEB- BA. Atualmente faz parte do

Coletivo Construções Compartilhadas e da Deslimites, mediações artísticas. E-mail:

[email protected]