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Ana Frazo (Org.)

CONSTITUIO,

EMPRESA E

MERCADO

Universidade de Braslia

Faculdade de Direito

Braslia

2017

Universidade de Braslia

Faculdade de Direito

Grupo de Estudos Constituio Empresa e Mercado

(GECEM)

Organizao: Ana Frazo

Diagramao e Edio: Angelo G. P. Carvalho

Reviso: Izabela W. D. Patriota

Capa: Angelo G. P. Carvalho.

FRAZO, Ana (Org.). Constituio, Empresa e Mercado. Braslia: Faculdade de Direito- UnB, 2017. ISBN: 978-85-87999-05-4.

1. Direito e poder econmico. 2. Empresa. 3. Concorrncia.

SUMRIO

Apresentao ..................................................................................................................... 1

PARTE I

O papel do direito na conformao e regulao da empresa e dos mercados

Direito antitruste e direito anticorrupo: pontes para um necessrio dilogo .............. 4

Ana Frazo

Acordo de lenincia no mbito da lei anticorrupo ...................................................... 30

Arby Ilgo Rech Filho

A eficincia da camaradagem: os laos como requisitos da eficincia no capitalismo

brasileiro ......................................................................................................................... 48

Carlos Eduardo Reis Fortes do Rego

Poder compensatrio, funo social e concorrncia: um olhar individualizado sobre o

cooperativismo ............................................................................................................... 69

Giselle Borges Alves

Anlise de impacto regulatrio (air) e economia comportamental: novas perspectivas

para o Estado regulador ................................................................................................. 94

Guilherme Silveira Coelho

Limites da relao entre o direito e a teoria econmica no controle antitruste ............ 114

Luiza Kharmandayan

Arbitragem, governana e poder econmico ................................................................. 139

Maria Augusta Rost

PARTE II

Empresa, poder econmico e atividade econmica em suas

dimenses organizacionais e funcionais

Governana corporativa das distribuidoras de energia eltrica: aportes ao processo de

regulao........................................................................................................................ 155

Accio Alessandro Rgo do Nascimento

Responsabilidade social empresarial ........................................................................... 200

Ana Frazo

Angelo Gamba Prata de Carvalho

A tutela jurisdicional coletiva do investidor no mercado de capitais brasileiro: o papel do

Ministrio Pblico ........................................................................................................ 224

Fernando Antnio de Alencar Alves de Oliveira Jnior

Indicaes (a)polticas para os conselhos de administrao das estatais? .................. 265

Giovanna Bakaj Rezende Oliveira

Algumas questes da utilizao de contratos associativos como fuga da regulao

ambiental ...................................................................................................................... 280

Jorge Aranda Ortega

Fundos de investimentos: a influncia nos mercados e os mecanismos de

responsabilizao dos administradores ....................................................................... 300

Jos Ricardo Alves Ferreira da Silva

Capitalismo de estado brasileiro: anlise da transio regulatria no setor petrolfero

...................................................................................................................................... 322

Izabela Walderez Dutra Patriota

Benefit corporations: possveis novas perspectivas para a dimenso prtica da funo

social da empresa no direito brasileiro ........................................................................ 340

Marcos Luiz dos Mares Guia Neto

Novas fronteiras da empresa e joint ventures contratuais: perspectivas sobre a partilha

de responsabilidade entre as empresas co-ventures .................................................... 358

Natlia Lacerda Macedo Costa

Multas so suficientes para evitar novos cartis? Reflexes sobre remdios antitruste e

penas no Direito Concorrencial ..................................................................................... 381

Tereza Cristine Almeida Braga

PARTE III

Empresa, tecnologia, comunicao e mercado

O Uber e a proteo do trabalhador em face da automao .................................... 408

Frederico Gonalves Cezar

Tecnologia, novos servios e direito: reflexes a partir da introduo do Uber no Rio de

Janeiro .......................................................................................................................... 433

Gabriel Miranda Ribeiro

A radiodifuso brasileira e o direito comunicao: caractersticas, diagnsticos e

possveis caminhos ....................................................................................................... 467

Luana Chrystyna Carneiro Borges

O poder da comunicao e o direito da concorrncia: anlise da joint venture Newco

....................................................................................................................................... 491

Polyanna Vilanova

1

APRESENTAO

O presente livro resultado do esforo conjunto de pesquisa desenvolvido

por mim e pelos alunos de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da

Universidade de Braslia UnB que frequentaram minha disciplina Arquitetura Jurdica

dos Mercados no primeiro semestre de 2016.

Como fica claro pelo prprio nome, o objetivo da matria compreender o

papel do direito na viabilizao e organizao da atividade econmica, especialmente no

que diz respeito conformao das empresas e dos mercados. Tal tarefa obviamente

requer uma prvia reflexo metodolgica sobre as relaes entre direito e economia, a

fim de compreender as funes que o direito pode ou deve exercer para viabilizar e

estimular a atividade econmica, bem como para limitar ou desincentivar determinados

comportamentos, no intuito de assegurar o cumprimento de princpios constitucionais e

normas jurdicas que veiculam valores de preservao necessria.

Neste ponto, a disciplina estruturada a partir das preocupaes centrais do

GECEM Grupo de Estudo Constituio, Empresa e Mercado , que frequentado por

muitos dos alunos da disciplina. O grupo, que desenvolve suas atividades h anos, tem

como eixo fundamental o exame da arquitetura jurdica dos mercados a partir de uma

perspectiva inter e transdiciplinar, com forte foco na economia, na sociologia econmica

e em outras cincias sociais.

O objetivo das discusses e anlises compreender no apenas a lgica dos

fenmenos econmicos, como tambm as consequncias prticas da regulao jurdica.

Entretanto, no que diz respeito economia, procura-se trabalhar com posturas que possam

ir alm da ortodoxia dominante, buscando alternativas mais abertas e flexveis para a

compreenso do fenmeno econmico, que possam conciliar a anlise consequencialista

com outros juzos e racionalidades fundamentais para o discurso jurdico, dentre os quais

a incorporao dos princpios constitucionais da ordem econmica.

A presente obra foi pensada a partir da reunio dos artigos de diversos autores

em torno dos trs principais eixos que estruturam o GECEM:

(i) o primeiro deles, denominado O papel do direito na conformao e

regulao da empresa e dos mercados busca refletir sobre o papel do direito na

estruturao da atividade econmica e do poder econmico a nvel macroscpico,

2

procurando investigar os meandros das relaes entre agentes econmicos e de que

maneira o direito pode ser operacionalizado para promover os princpios constitucionais

da ordem econmica. A maior nfase das reflexes do eixo se d nas perspectivas

principiolgicas e metodolgicas.

(ii) o segundo eixo, chamado Empresa, poder econmico e atividade

econmica em suas dimenses organizacionais e funcionais, procura analisar as diversas

formas de organizao da atividade econmica e as maneiras pelas quais a regulao

jurdica e a autorregulao podem ser empregadas para a consecuo de determinadas

finalidades e para a administrao de riscos e responsabilidades. Ainda que apresente

vrios pontos comuns com o primeiro, este eixo tem vis mais organizativo e pragmtico.

(iii) por fim, o terceiro eixo, Empresa, tecnologia, comunicao e mercado,

vem apresentar os desafios a serem enfrentados pelo direito com o advento das

tecnologias da informao e comunicao e sobretudo com o crescimento do fenmeno

da economia compartilhada. Abarca pesquisas tanto com foco mais principiolgico e

metodolgico, como tambm com foco mais organizativo e pragmtico.

Apesar de terem sido agrupados em funo do principal eixo a que aderem, o

leitor poder observar que o elemento comum a todos artigos provocar e lanar

discusses e questes importantes, muito mais do que buscar respostas prontas que, no

mais das vezes, so simplificaes incompatveis com a complexidade dos assuntos que

ora so discutidos. Trata-se de uma proposta conjunta de abrir novas fronteiras para a

necessria reflexo sobre as perspectivas da regulao jurdica diante de uma atividade

econmica cada vez mais importante, complexa e sofisticada.

Ana Frazo

Professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Braslia

3

PARTE I

O papel do direito na conformao e

regulao da empresa e dos

mercados

4

DIREITO ANTITRUSTE E DIREITO ANTICORRUPO

PONTES PARA UM NECESSRIO DILOGO

Ana Frazo

Advogada e Professora de Direito Civil e Comercial

da Universidade de Braslia UnB. Ex-Conselheira

do CADE Conselho Administrativo de Defesa

Econmica (2012-2015). Ex-Diretora da Faculdade

de Direito da Universidade de Braslia (2009-2012).

Graduada em Direito pela Universidade de Braslia

UnB, Especialista em Direito Econmico e

Empresarial pela Fundao Getlio Vargas FGV,

Mestre em Direito e Estado pela Universidade de

Braslia UnB e Doutora em Direito Comercial pela

Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

PUCSP. Lder do GECEM Grupo de Estudos

Constituio, Empresa e Mercado.

I. INTRODUO

Muito se discute na atualidade sobre os meios mais adequados e eficazes de

regulao dos mercados, a partir da constatao de que a regulao jurdica tradicional,

concentrada apenas em normas estatais que impem obrigaes coercitivas, no mais

suficiente para, sozinha, assegurar que os agentes econmicos se comportem

adequadamente. H que se buscar, portanto, outros mecanismos para a construo e a

manuteno de um ambiente de negcios em que a competio pelo mrito seja a regra,

objetivo que s pode ser alcanado por meio do efetivo controle sobre prticas

anticoncorrenciais e de corrupo.

Nesse sentido, as Leis Antitruste (Lei n 12.529/2011) e Anticorrupo (Lei

n 12.846/2013) representam, sem dvida, grandes avanos no objetivo de preveno e

de punio de ilcitos antitruste e de atos de corrupo, especialmente por viabilizarem a

responsabilizao civil e administrativa de pessoas jurdicas, sem prejuzo da

responsabilizao cumulativa das pessoas naturais que agiram em nome daquelas.

Entretanto, salvo em algumas esferas especficas, como a que diz respeito ao

acordo de lenincia, pouco se tem discutido sobre os aspectos comuns ao ilcito antitruste

e corrupo e em que medida essa interpenetrao deve se refletir em uma maior

5

convergncia entre os meios pelos quais o Direito Antitruste e o Direito Anticorrupo

vm cumprindo suas finalidades. Tal ausncia de dilogo, se j clara na questo da

punio, torna-se ainda mais evidente diante de outras importantes alternativas para a

regulao jurdica dos mercados.

diante desta preocupao que o presente artigo buscar mapear, a partir das

reflexes mais atuais sobre a regulao jurdica dos mercados, as principais pontes para

o necessrio dilogo entre as duas reas, especialmente no que diz respeito s solues

estruturais, autorregulao e cooperao.

II. INTERFACE ENTRE O ILCITO CONCORRENCIAL E A CORRUPO

No h dvidas de que a corrupo distorce a concorrncia, substituindo o

critrio da eficincia pelo critrio da proximidade poltica ou da compra de facilidades.

Ao assim fazer, a corrupo cria excessivos e desnecessrios custos de transao, os

quais, a depender do grau, podem ser verdadeiras barreiras entrada nos mercados ou

fatores que dificultam ou mesmo impossibilitam a rivalidade1, restringindo a

concorrncia queles capazes de assumir os riscos e custos da corrupo.

Na verdade, a corrupo traz tona um intrincado conjunto de vnculos entre

os agentes econmicos e os agentes polticos, de maneira a inspirar comportamentos

clientelistas como o rent seeking, isto , a busca de vantagens econmicas a partir de

comportamentos que no geram nenhum tipo de valor econmico2.

Um dos efeitos mais nefastos da decorrentes que a corrupo acaba

privilegiando os grandes agentes econmicos a macroempresa , pois eles tm melhores

condies de administrar o aumento dos custos de transao decorrentes da corrupo, o

que pode estimular ainda mais a concentrao de poder j existente.

Especialmente em mercados nos quais j existem considerveis barreirqas

entrada, a corrupo pode estabelecer verdadeiro crculo vicioso, na medida em que,

quanto mais vista como alternativa para contornar tais barreiras, mais se consolidar

1 Nesse sentido, ver: ROSE-ACKERMAN, Susan. The challenge of poor governance and corruption.

Revista Direito GV. Nmero especial 1. pp. 207-266. 2005. 2 FRAZO, Ana. Direito da Concorrncia: Horizontes e perspectivas. So Paulo: Saraiva, no prelo. Tal

quadro ftico pode ser percebido a partir da anlise de Lazzarini (Capitalismo de laos: os donos do Brasil

e suas conexes. So Paulo: Elsevier, 2011).

6

como comportamento dominante e ainda se tornar uma barreira adicional. O fenmeno

pode ser representado da seguinte maneira:

Fonte: da Autora

Alm da retroalimentao acima mencionada, existem vrias outras

dimenses da interseo entre atos de corrupo e infrao antitruste, j que ambos os

comportamentos, apesar de distintos, apresentam muitas reas de sobreposio, como se

verifica da seguinte representao:

Fonte: da Autora

7

Certamente que o ilcito concorrencial e o ato de corrupo no se

confundem. Mesmo os pequenos agentes econmicos podem praticar atos de corrupo

que, em tese, no teriam nem mesmo o potencial de constiturem infraes concorrenciais,

em razo da inexistncia de posio dominante ou da impossibilidade de interferncia no

mercado como um todo. Da mesma forma, h inmeros ilcitos antitruste que no

guardam nenhuma relao com atos de corrupo.

No obstante, a zona de interpenetrao entre os ilcitos antitruste e de

corrupo consideravelmente ampla, tendo em vista que, ao contrrio do que pode

parecer primeira vista, no abrange apenas condutas que, do ponto de vista formal,

podem ser consideradas simultaneamente como atos de corrupo e infraes antitruste,

tal como o cartel em licitaes com a participao de algum agente pblico.

Com efeito, para alm dos casos de evidente dupla tipificao, importante

compreender que todo ato de corrupo praticado por agente com posio dominante

acaba tendo desdobramentos concorrenciais, j que subverte ilicitamente a competio

pelo mrito e, exatamente por isso, pode ser tambm considerado abuso de posio

dominante, diante da tipicidade aberta que caracteriza a infrao antitruste3.

Por outro lado, se as prticas de corrupo so a regra em determinado

mercado, mesmo que o poder dos agentes econmicos seja pulverizado e no haja

propriamente titulares de posio dominante, as aes destes, em seu conjunto, tero

igualmente desdobramentos concorrenciais. Afinal, mesmo que tais agentes no estejam

propriamente coordenados, ser difcil ou impossvel que um competidor que no se

curve s regras (viciadas) do jogo entre ou permanea no mercado.

Todas essas consideraes mostram que a corrupo , em muitos casos,

causa ou consequncia de problemas concorrenciais. Exatamente por isso, o combate a

ambas as modalidades de infraes precisa ser feito a partir de perspectiva que procure

harmonizar as duas searas. O dilogo entre esses dois campos , portanto, imprescindvel,

3 Como bem observou o ex-Conselheiro e Professor Luis Fernando Schuartz (Ilcito Antitruste e Acordos

entre Concorrentes. In: POSSAS, Mrio L. (Org.). Ensaios sobre economia e direito da concorrncia. So

Paulo: Singular, 2002., pp. 97), um dos traos mais salientes da tcnica de definio de ilcito que se

incorporou Lei 8.884/94 o elevado grau de indeterminao no tocante explicitao das condies

necessrias e suficientes para a caracterizao de uma determinada conduta como infrao. A mesma

indeterminao e maleabilidade do conceito de ilcito antitruste est inscrita na atual Lei n 12.529/2011,

acompanhando tendncia que se reproduz tambm em leis concorrenciais de diversos pases, conforme

aduz Hovenkamp (The Antitrust Enterprise: Principles and Execution. Massachusetts: Harvard University

Press, 2005., p. 43).

8

at por partirem de preocupao comum com um ambiente de negcios em que a

competio pelo mrito seja a regra.

III. PERSPECTIVA PARA O DILOGO ENTRE O DIREITO ANTITRUSTE E

O DIREITO ANTICORRUPO A PARTIR DOS PRINCPIOS DO DIREITO

ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Uma das primeiras consequncias do dilogo apontado a necessidade de

harmonia e complementaridade entre o Direito da Concorrncia e o Direito

Anticorrupo, o que envolve contato e aprendizado recproco entre as autoridades

respectivas, troca de informaes, cooperao e busca de solues coerentes sob uma

perspectiva unitria. Isso se traduz igualmente na necessidade de se criar uma pauta

comum para que as autoridades responsveis por cada uma das searas possam exercer

suas competncias de forma convergente. Faz-se necessria, ainda, a observncia dos

princpios do Direito Administrativo Sancionador, tendo em vista que esses ramos do

direito so claras manifestaes do poder punitivo estatal, que uno4.

A imperatividade da incidncia das garantias constitucionais de limitao do

poder punitivo estatal ganha substancial relevncia sobretudo em razo da j comentada

indeterminao do ilcito antitruste5. importante destacar que o fato de o legislador ter

optado por se utilizar da aplicao de sanes s pessoas jurdicas na seara administrativa

no afasta a natureza punitiva das disposies das Leis Antitruste e Anticorrupo, que

pertencem indubitavelmente ao Direito Administrativo Sancionador.

No mbito do Direito Administrativo Sancionador, essa preocupao

essencial, diante da necessria exigncia de reprovabilidade como pressuposto de

aplicao da sano. Logo, ao contrrio do que preveem as Leis Anticorrupo e

Antitruste, a responsabilidade objetiva no adequada para justificar punies de agentes

econmicos6. Da a necessidade de se avanar em discusses sobre a reprovabilidade da

4 Ver, por todos: NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 2006, pp. 167-

168. 5 Embora assegure maior efetividade ao princpio da livre concorrncia, essa indeterminao normativa

fragiliza a segurana jurdica, ao impedir que os agentes econmicos possam diferenciar, com maior

clareza, prticas empresariais ilcitas e lcitas, especialmente no que diz respeito s condutas unilaterais e

as condutas por efeitos. Nesse sentido, ver: SCHUARTZ, Op. cit. 6 Nesse sentido, ver: FRAZO, Op. cit., no prelo.

9

conduta, ainda que a partir de um critrio abstrato de diligncia que deve conduzir as

aes do agentes7.

Outra preocupao comum que decorre do Direito Administrativo

Sancionador diz respeito ao princpio da proporcionalidade da sano, que pode e deve

ser visto a partir de uma perspectiva unitria. Isso no afasta obviamente a competncia

concorrente de diversas autoridades para processar e julgar determinados agentes em

razo do mesmo fato, no havendo que se cogitar de bis in idem.

Entretanto, por mais que cada autoridade deva julgar os fatos de acordo com

seus prprios parmetros de anlise e bens jurdicos tutelados, a cumulao de sanes

aplicadas por autoridades distintas dever repercutir na fixao das sanes, a fim de que

a soma destas atenda, em seu conjunto, ao princpio da proporcionalidade da pena8.

Impe-se, assim, que cada autoridade leve em considerao as penas que o

agente j sofreu ou sofrer pelos mesmos fatos, precauo sem a qual impossvel que

se assegure a unidade e a coerncia que se espera do ordenamento jurdico.

Os exemplos mencionados deixam claro que, sob luz do Direito

Administrativo Sancionador, o poder punitivo do Estado deve ser visto sob perspectiva

unitria, o que no apenas possibilita, como exige a convergncia e a adequao dos

procedimentos e sanes nas suas vrias searas, como o caso do Direito Antitruste e o

Direito Anticorrupo.

7 FRAZO, Ana. Pressupostos e funes da responsabilidade civil subjetiva na atualidade: um exame a

partir do direito comparado. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. v. 77, n. 4, out/dez 2011, pp.

32-33. 8 Exemplo interessante deste esforo pode ser retirado do Processo Administrativo n 08012.003918/2005-

14 (CADE, Processo Administrativo n 08012.003918/2005-14, Conselheiro-Relator: Mrcio de Oliveira

Jnior. Data de Julgamento: 11.03.2015), do CADE, em que se discutia a prtica de ilcito concorrencial

pela Telemar, que efetuou o monitoramento das ligaes realizadas por seus assinantes ao Servio de

Atendimento a Clientes de suas concorrentes, com o objetivo de oferecer descontos diferenciados de acordo

com o grau de adimplncia, o nvel de consumo e o tempo de durao da chamada ao SAC. No caso em

questo, a representada alegou que j havia sido punida pela ANATEL pelo mesmo fato e que a imposio

de nova penalidade configuraria bis in idem. O Tribunal rechaou o argumento, ressaltando, nos termos do

voto condutor, por mim proferido, que a cumulao de esferas punitivas s poderia ter desdobramentos

sobre a dosimetria da pena, mas jamais poderia ser utilizada para afastar a competncia de qualquer das

autoridades judiciais ou administrativas responsveis pela apurao e julgamento do ilcito. Em razo disso,

a aplicao de penalidade anteriormente foi considerada to somente como atenuante na fixao da nova

sano pelo CADE. Por mais que o exemplo diga respeito dupla tipicidade entre Direito Regulatrio e

Direito Antitruste, o mesmo raciocnio deve ser aplicado dupla tipicidade entre o Direito Anticorrupo

e o Direito Antitruste.

10

IV. PERSPECTIVA PARA O DILOGO ENTRE O DIREITO ANTITRUSTE E

O DIREITO ANTICORRUPO A PARTIR DO RECONHECIMENTO DO

CARTER INSTITUCIONAL DOS MERCADOS

As medidas de preveno e punio dos ilcitos anticoncorrenciais e de

corrupo, apesar da sua importncia, so mecanismos limitados para a modificao

efetiva de mercados viciados por tais prticas, diante da insuficincia dos recursos do

Estado para monitorar a atuao dos agentes econmicos por completo e a todo tempo.

Consequentemente, os principais desdobramentos do dilogo entre a Lei Antitruste e a

Lei Anticorrupo devem projetar-se igualmente sobre os trs caminhos em relao aos

quais a regulao jurdica dos mercados precisa evoluir: a estrutura, a autorregulao e a

cooperao.

Com efeito, urgente que se evidenciem as limitaes da regulao de

comando e controle, isto , da regulao tradicional baseada apenas na imposio de

deveres coercitivos. Alm dos inmeros problemas de eficcia, impossvel que as

autoridades pblicas, com seus recursos limitados, possam unilateralmente gerenciar,

controlar e supervisionar o mercado apenas com base em deveres coercitivos, sobretudo

diante de ilcitos que, como os concorrenciais e de corrupo, so normalmente de difcil

identificao e comprovao.

Por outro lado, h que se entender que os mercados no so espaos

espontneos ou naturais, mas sim espaos sociais e polticos, criados e conformados por

instituies. Estas, por sua vez, constituem as regras do jogo, compostas no apenas pelo

direito, mas tambm por normas sociais, culturais e valores. Como bem apontam Akerlof

e Shiller9, apesar de o princpio da mo invisvel, que preconiza o autoequilbrio dos

mercados, ter desempenhado importante papel na histria econmica, no mais se pode

ignorar que as foras de mercado no existem de forma independente das instituies,

especialmente do direito10.

Na verdade, a corrupo e os atos lesivos concorrncia so frutos de todo

um arcabouo institucional que possibilita ou mesmo estimula a sua prtica. Conforme o

9 AKERLOF, George; SHILLER, Robert. Animal spirits: how human psichology drives the economy, and

why it matters for global capitalism. Princeton: Princeton University Press, 2009. p. xiv. 10 Acrescenta Sunstein (Markets and Social Justice. New York: Oxford University Press, 1997, p. 5.), ainda,

que a existncia de mercados livres depende do direito, no havendo que se falar em concepes

determinsticas ou naturalsticas para sua compreenso.

11

contexto institucional, a corrupo pode at ser vista como prtica benfica, sendo notrio

o posicionamento de Leff11, para quem a corrupo pode funcionar como o leo que azeita

o desenvolvimento econmico ao facilitar trmites burocrticos nas relaes entre Estado

e agentes econmicos.

Logo, a corrupo e o ilcito antitruste devem ser vistos prioritariamente como

problemas institucionais, at porque normas no jurdicas podem impedir que as regras

jurdicas que combatem tais atos sejam ineficazes. A literatura mais antiga sobre a

corrupo j demonstrava que tal fenmeno no est to somente atrelado a normas

jurdicas, mas se relaciona tambm a um sistema de valores capaz de constranger, em

maior ou menor grau, o comportamento dos indivduos potencialmente envolvidos em

esquemas de corrupo12.

Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Banfield13 sobre a relao da

corrupo com a cultura poltica, de modo que mudana do quadro de corrupo

dependeria de processos morosos de mudana institucional, na medida em que dependeria

da transformao de valores sociais arraigados. Por mais que a identificao da corrupo

a um problema histrico-poltico torne o seu combate mais difcil e complexo, tal

realidade precisa ser enfrentada, sob pena de no se alcanar resultados efetivos no

combate a tais prticas.

nessa linha a argumentao de Susan Rose-Ackerman14, para quem a

corrupo um problema econmico e poltico, que evidencia ineficincia na prestao

de servios pblicos e na canalizao de interesses privados. Nesse sentido, a corrupo

nada mais do que o resultado de um contexto institucional que permite a atuao de

agentes econmicos operando egoisticamente para a maximizao de seus ganhos a partir

da quebra das regras que conformam o ambiente poltico-institucional15. Dessa maneira,

a busca de um mercado livre de tais prticas passa necessariamente pela mudana

11 LEFF, N. H. Economic development through bureaucratic corruption. American Behavioral Scientist, v.

8, n. 3, 1964. 12 FILGUEIRAS, Fernando. A tolerncia corrupo no Brasil: uma antinomia entre normas morais e

poltica social. Opinio pblica. v. 15, n. 2, nov. 2009. 13 BANFIELD, E. The moral basis of backward society. Chicago: The University of Chicago, Research

Center in Economic Development and Cultural Change, 1958. 14 ROSE-ACKERMAN, Susan. Corruption and government: causes, consequences and reform. Cambridge:

Cambridge University Press, 1999. pp. 225-226. 15 FILGUEIRAS, Op. cit.

12

institucional em setores-chave, fortalecendo os mecanismos de controle e conferindo

transparncia e efetividade ao servio pblico e ao mercado16.

Para que haja a referida mudana institucional, ou pelo menos para que se

caminhe nesse sentido, importante ampliar a reflexo sobre a relao entre poder

poltico e poder econmico, j que a aproximao excessiva e sem transparncia um

grande incentivo para a corrupo e, consequentemente, para distores concorrenciais.

Michael Johnston17, analisando essa relao, aponta como uma das sndromes da

corrupo a formao de cartis de elite, redes de influncia envolvendo membros de

cpula do Estado e grandes agentes econmicos que garantem a circulao de dinheiro e

favores entre seus integrantes, constituindo uma situao de coluso fundada no poder

poltico.

Alm de reforar as claras interpenetraes entre a corrupo e os ilcitos

antitruste, como o caso do cartel, o pensamento acima mencionado ressalta que a

formao dessas intrincadas redes de relaes esprias um substituto ilcito para

instituies fracas, revelando burocracias estatais sucetveis captura pelo poder

econmico e agentes econmicos dispostos a manter suas posies mediante a proteo

por parte do poder poltico dominante18.

A histria mostra que ligaes esprias entre o poder poltico e o poder

econmico so um problema generalizado em todo o mundo. Mesmo em pases

desenvolvidos, como os Estados Unidos, tais relaes se fazem presentes. O crony

capitalism ou capitalismo de compadrio consiste justamente no favorecimento de

agentes econmicos em razo da interveno direta do Estado em suas atividades

particulares19.

Tal fenmeno se verifica na economia norte-americana desde o sculo XIX,

quando os chamados robber barons, grandes magnatas conhecidos por fazerem crescer

suas fortunas por prticas moralmente duvidosas a exemplo de pagamento de propinas

e de emisso de aes supervalorizadas (stock watering) recebiam do governo, alm de

16 ROSE-ACKERMAN, Op. cit., pp. 228-229. 17 JOHNSTON, Michael. Syndromes of corruption: wealth, power, and democracy. Cambridge: Cambridge

University Press, 2005. pp. 89-90. 18 Quadro semelhante tambm descrito por Lazzarini (Op. cit.). 19 Sobre o conceito de crony capitalism, ver: KAND, David. Crony capitalism: corruption and development

in South Korea and the Philippines. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

13

incentivos fiscais e emprstimos a juros baixos, substanciais doaes de terras20. A

cooperao do Estado com tais agentes, tendo em vista inclusive a ilegalidade de algumas

estratgias comerciais dos robber barons, pode ser representada pela clebre frase de

Cornelius Vanderbilt: Law! What do I care about the Law? Haint I got the power?21.

Os grandes monoplios formados pelos robber barons evidenciaram a

incapacidade de as foras do mercado regularem-no de forma autnoma, o que levou

edio do conhecido Sherman Act, destinado a limitar o poder desses agentes atravs do

combate a prticas anticompetitivas22. Observe-se, portanto, que apesar de a relao entre

poder econmico e poder poltico variar em intensidade e adquirir caractersticas diversas

em razo da formao histrica das naes, ela no se faz presente to somente em pases

em desenvolvimento, mas apresenta-se como problema global23.

Consequentemente, enderear o problema da corrupo e seus

desdobramentos sobre a concorrncia exige estabelecer uma pauta adequada e

transparente para regular as relaes entre o poder poltico e o poder econmico, o que,

em ltimo grau, requer igualmente maior reflexo sobre o financiamento privado das

campanhas eleitorais, visto acertadamente como uma das grandes causas das relaes

esprias entre o setor privado e o setor pblico24.

A repercusso do regime de financiamento eleitoral sobre as relaes entre

governo e setor privado so explicitadas por Daniel Sarmento e Aline Osrio25, para

quem, Se a competio por recursos se torna central, o sistema de financiamento de

campanhas determina a formao de fortes vnculos entre os candidatos eleitos e seus

doadores. Acrescentam, ainda, que estas relaes antirrepublicanas que se estabelecem

entre empresas doadoras e polticos so uma das maiores fontes de corrupo do pas,

20 MCNEESE, Tim. The robber barons and the Sherman Antitrust Act: reshaping American business. Nova

Iorque: Chelsea House, 2009. pp. 48-64. 21 MCNEESE, Op. cit., p. 51. Traduo livre: Direito? Por que eu ligaria para o direito? Eu no tenho

poder? 22 MCNEESE, Op. cit., pp. 78-84. 23 A respeito da corrupo como fenmeno global e de suas repercusses na economia globalizada, ver:

ELLIOT, Kimberly Ann. Corruption and the global economy. Washington: Institute for International

Economics, 1997. 24 Importante debate a respeito da relao entre financiamento eleitoral e corrupo foi travado no mbito

do julgamento da ADI 4650, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade das

doaes eleitorais realizadas por pessoas jurdicas. Ver: STF, ADI 4650, Rel. Min. Luiz Fux, Data de

Julgamento: 17.09.2015, Tribunal Pleno, Data de Publicao: DJe 23.02.2016. 25 SARMENTO, Daniel; OSRIO, Aline. Uma mistura txica: poltica, dinheiro e o financiamento das

eleies. In: SARMENTO, Daniel. Jurisdio constitucional e poltica. So Paulo: Forense, 2015.

14

drenando recursos pblicos preciosos que deveriam ser usados para atender aos direitos

e demandas da populao.

Alm da questo do financiamento de campanhas eleitorais, preciso

entender tambm os sofisticados papis exercidos pelo Estado na economia, dentre os

quais se destacam: (i) Estado-empresrio, (ii) Estado-investidor, (iii) Estado-fomentador,

(iv) Estado-financiador, (v) Estado-arquiteto e (vi) Estado-cliente. Diante desse quadro,

h de se verificar como tais papis se relacionam entre si e entre outras intervenes ou

influncias do Estado, tal como as que ocorrem junto aos fundos de penso de estatais.

Por fim, h que se investigar em que medida o Estado no acaba agindo como um

verdadeiro conector entre agentes econmicos26, tornando ainda mais frtil o campo para

a corrupo e tambm para prticas colusivas.

Dessa maneira, caso se queira realmente atacar a corrupo e os ilcitos

antitruste, o primeiro passo tentar fazer um diagnstico preciso de que instituies

estruturam o mercado e de como, a partir delas, se estabelecem as relaes entre os

agentes econmicos, inclusive no que diz respeito importncia dos laos ou das

conexes polticas. A partir da, h que se avanar nas trs frentes j mencionadas

estrutura, autorregulao e cooperao , diante de sua capacidade efetiva de mudar as

instituies do mercado.

IV.1. Dilogo na esfera das solues estruturais

A regulao dos mercados por meio da adoo de medidas estruturais diz

respeito ao conjunto de esforos para alterar a prpria organizao e conformao dos

mercados, anulando ou compensando o efeito de estruturas viciadas pelas prticas

anticoncorrenciais ou de corrupo e substituindo-as por estruturas mais idneas para

torn-los competitivos. Nesse sentido, a experincia antitruste farta em exemplos que

26 o que diagnostica Lazzarini (Op. cit., p. 110) sobre o capitalismo brasileiro, sobretudo mediante

investimentos do governo no setor privados, intermediados por bancos pblicos de investimento como o

BNDES: As vrias facetas do capitalismo brasileiro discutidas no livro convergem para a ideia de mundo

pequeno: aglomeraes interligadas entre si por alguns poucos atores centrais de conexo. Donos

estabelecem laos societrios cruzados e participam conjuntamente como scios de conglomerados

empresariais. So aglomeraes que surgem devido a dois atributos tpicos das redes societrias brasileiras:

os consrcios (vrios donos associados a um mesmo projeto ou empresa) e as pirmides de controle (donos

com participaes em uma empresa intermediria, que, por sua vez, agrega posies em diversas outras).

H at um instrumento legal servindo como amlgama dessas junes: o acordo de acionistas, definindo a

distribuio de poder de influncia em contextos envolvendo scios mltiplos.

15

comprovam a maior eficcia de medidas estruturais em comparao com medidas

meramente comportamentais27.

Embora a aplicao de multas, em regra, constitua a principal sano imposta

no controle de condutas anticoncorrenciais, a prpria Lei n 12.529/2011 reconhece que,

em determinadas hipteses, essa medida, isoladamente, poder ser insuficiente para

eliminar os efeitos nocivos livre concorrncia. De fato, em alguns casos, a depender da

forma de estruturao do mercado, a mera aplicao de sano pecuniria, ainda que

elevada, pode no ser capaz de cumprir o efeito dissuasrio esperado. Especialmente em

casos de cartis hardcore, a coluso pode ser reforada por laos societrios ou

contratuais, que indicam que, mesmo aps a aplicao de multa, haver considerveis

incentivos e riscos para a manuteno da troca de informaes sensveis e para a

manuteno do conluio28.

Foi essa preocupao que norteou o julgamento do Processo Administrativo

n 08012.011142/2006-7929, oportunidade em que o Tribunal Administrativo de Defesa

Econmica, acolhendo o voto-vista proferido pelo Conselheiro Mrcio de Oliveira Jnior,

imps uma srie de medidas estruturais de desinvestimento s empresas condenadas pela

prtica de cartel. De fato, as representadas e as demais pessoas jurdicas pertencentes a

seu grupo econmico foram obrigadas a alienar qualquer forma de participao em outras

empresas que atuassem no ramo de cimento e concreto. Para fortalecer o grau de

rivalidade no setor e diminuir o grau de integrao entre cimenteiras e concreteiras,

determinou-se, ainda, que as representadas alienassem 20% de suas centrais de concreto,

dentre outras medidas30.

A combinao do raciocnio jurdico com a anlise econmica de

fundamental importncia para o embasamento da aplicao dessas medidas, cabendo

refletir sobre a sua importncia para a tutela da concorrncia como mecanismo de

restabelecimento das condies normais de mercado. importante notar que as medidas

estruturais devem ser consideradas em conjunto com as demais alternativas de ao da

27 Em relatrio da OCDE de 1998 j se enfatizava a necessidade de cotejamento entre medidas estruturais

e medidas comportamentais. Ver: OCDE. Policy roundtables: relationship between regulators and

competition authorities. Paris: OCDE, 1999. 28 FRAZO, Ana. Op. cit., no prelo. 29 CADE, Processo Administrativo n 08012.011142/2006-79. Relator: Conselheiro Alessandro Octaviani

Lus. Data de Julgamento: 16.09.2015. 30 FRAZO, Op. cit, no prelo.

16

autoridade da concorrncia, como o caso das medidas comportamentais, por vezes

capazes de lidar com casos nos quais medidas estruturais seriam desproporcionais31.

Para alm da aplicao de medidas estruturais no Direito da Concorrncia,

pode-se cogitar de sua aplicao tambm no combate corrupo. o que defende Calixo

Salomo Filho32, para quem compensaes so necessrias para reparar danos, mas na

esfera econmica no so suficientes para transformar mentalidades e nem para corrigir

condutas, tendo em vista que seu valor sempre poder ser embutido no preo dos

produtos e servios oferecidos pela empresa condenada. O que o autor prope, portanto,

so medidas como a alterao do controle societrio para a continuidade da empresa na

participao em obras pblicas. Isso pode ser operacionalizado por diversos instrumentos,

desde a pulverizao do controle no mercado de capitais com introduo de gesto

administrativa e profissional, at a venda pura e simples do controle em forma de leilo.

A ideia desse tipo de interveno que, se esto presentes no mercado

estruturas ou incentivos para que a corrupo ou as prticas anticoncorrenciais persistam,

no adianta apenas punir os agentes ou lhes impor medidas de comportamento. Pode ser

necessrio que se arranque o mal pela raiz, diluindo ou mesmo extinguindo o poder

empresarial que foi exercido indevidamente e em relao ao qual prevalecem estruturas

e incentivos para que continue a ser utilizado da mesma maneira.

Por outro lado, a soluo do desinvestimento ou da troca de controle ainda

contorna o problema de sanes que, a exemplo do encerramento das atividades ou a

extino da personalidade jurdica da sociedade empresria verdadeiras sentenas de

morte das empresas , tal como admitido na Lei Anticorrupo33, so extremamente

drsticas do ponto de vista da funo social da empresa. J a troca de controle dissocia,

de forma inteligente, a empresa do empresrio assim visto o controlador ou aquele

que tem efetivo poder de comando sobre a atividade empresarial delinquente, afastando

este ltimo da gesto empresarial, ao mesmo tempo em que mantm a atividade produtiva

e os empregos e riquezas por ela gerados.

31 PEREIRA NETO, Caio Mrio da Silva; PRADO FILHO, Jos Incio Ferraz de Almeida. Revista

DireitoGV. v. 12, n.1, pp. 13-48. jan./abr. 2016. p. 18. 32 SALOMO FILHO, Calixto. Respostas estruturais para a corrupo empresarial. Valor econmico.

01.04.2015. 33 Conforme previsto pelo inciso III do artigo 19 da Lei n 12.846/2013, as pessoas jurdicas infratoras desse

diploma podero ser sujeitas dissoluo compulsria da pessoa jurdica, pena a ser aplicada quando

comprovado: (i) ter sido a personalidade jurdica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a

prtica de atos ilcitos; ou (ii) ter sido constituda para ocultar ou dissimular interesses ilcitos ou a

identidade dos beneficirios dos atos praticados.

17

importante igualmente pensar na utilizao de medidas estruturais que

possam enderear simultaneamente o problema concorrencial e o problema da corrupo,

seja em prol da efetividade da medida, seja para o fim de evitar a onerao excessiva de

agentes empresariais com medidas cumulativas e que no conversam entre si. Aqui, o

dilogo entre as searas imprescindvel para assegurar a necessria proporcionalidade da

interveno estatal.

Por fim, a mudana estrutural dos mercados envolve igualmente a adoo de

medidas que assegurem maior transparncia aos mercados, a comear pela atuao do

Estado, que precisa estar sujeita a parmetros de isonomia e impessoalidade, devidamente

sujeitos a controle. Assim, necessrio criar estruturas que assegurem uma atuao isenta

do Estado em seus diferentes papis. Nesse mister, fundamental a justificao de vrias

das diretrizes da ao do Estado nos mercados, tais como (i) os critrios de escolha dos

agentes que recebero algum benefcio do Estado, como o caso do BNDES, e (ii) os

critrios de adoo de determinadas polticas de investimentos do Estado e de outros

agentes por ele influenciados, como o caso dos fundos de penso de estatais.

Ainda preciso que se criem estruturas que reduzam a discricionariedade do

Estado nos assuntos econmicos e reforcem, dentro do que possvel, o formalismo e a

impessoalidade que dele decorre. Como sustenta David Kennedy34, se a corrupo

simplesmente code word para a discricionariedade pblica, elimin-la requer um reforo

do formalismo, eliminando a excessiva discricionariedade administrativa e judicial e,

consequentemente, custos de transao.

IV.2. Dilogos na esfera da autorregulao

Outra grande frente a ser explorada a da autorregulao, a fim de se buscar

uma mudana nos valores e prticas empresariais, por meio da criao de uma nova tica

empresarial35. Da a importncia da adoo de incentivos para programas de compliance,

vistos como instrumentos de uma mudana de dentro para fora, j que a busca de um

34 KENNEDY, David. Political Choices and Development Common Sense, In: TRUBEK, David;

SANTOS, Alvaro. The New Law and Economic Development. A Critical Appraisal. New York: Cambridge

University Press, 2006, p. 143. 35 o que preconiza Maurice Stucke (In Search of Effective Ethics & Compliance Programs. Journal of

Corporation Law. v. 39, n.769, 2014. p. 771-772).

18

mercado livre de prticas anticoncorrenciais e de corrupo dificilmente poder ocorrer

sem a adeso e o comprometimento voluntrio dos agentes econmicos.

Compliance diz respeito ao conjunto de aes a serem adotadas no ambiente

corporativo para que se reforce a anuncia da empresa legislao vigente, de modo a

prevenir a ocorrncia de infraes ou, j tendo ocorrido o ilcito, propiciar o imediato

retorno ao contexto de normalidade e legalidade. Trata-se do controle da ilicitude atravs

de sistemas autorreferenciais de autorregulao regulada36, capazes de fornecer

diretrizes adequadas estrutura interna das empresas para que ilcitos sejam prevenidos

de maneira mais adequada, muitas vezes antes de projetarem seus efeitos.

A importncia dos referidos programas decorre do fato de que, como

defendem Riley e Sokol37, o enforcement tradicional, por si s, no capaz de produzir o

comprometimento com a lei que os programas de compliance pretendem construir, na

medida em que a aplicao de sanes no consegue alcanar a percepo de moralidade

do comportamento que est sendo regulado ao meramente colocar um preo no

descumprimento das normas. O compliance procura fazer parte da construo, nesse

sentido, de uma cultura de respeito voluntrio legalidade.

Entretanto, no se pode imaginar que o engajamento dos agentes econmicos

nessa cruzada tica possa ocorrer sem que sejam criados, pelo Estado, os devidos

incentivos. Da por que a extenso e a eficcia da autorregulao, como j se comentou,

dependem necessariamente da heterorregulao ou regulao tradicional, que deve servir

como fator de estmulo, incentivo, legitimao e segurana para que os agentes

econmicos tomem medidas que, ainda que benficas, so normalmente custosas e

trabalhosas.

Por essa razo, fundamental que a heterorregulao possa esclarecer os

principais objetivos de um programa de compliance nas reas concorrencial e antitruste,

os critrios materiais que devem ser atendidos, bem como os sistemas de monitoramento

e readequaes, tendo em vista que se tratam de programas permanentes. necessrio

igualmente que a heterorregulao tenha a devida sensibilidade para adaptar tais

exigncias de acordo com o porte e o perfil dos agentes econmicos, a fim de no criar

36 SIEBER, Ulrich. Programas de compliance en el Derecho Penal de la empresa: Una nueva concepcin

para controlar la criminalidad econmica. In: OLAECHEA, Urquizo; VSQUEZ, Abanto SNCHEZ,

Salazar. Homenaje a Klaus Tiedemann. Dogmatica penal de Derecho penal economico y politica criminal.

v.1., p. Lima: Fondo, 2001. p. 205-246. 37 RILEY, Anne; SOKOL, D. Daniel. Rethinking Compliance. Journal of Antitrust Law. Disponvel em:

Acesso em: 18 ago 2015. p. 45.

19

custos excessivos ou mesmo inexequveis, especialmente para os pequenos e mdios

empresrios. fundamental que o Estado crie tambem canais de comunicao com os

agentes econmicos, bem como que possa fiscalizar adequadamente a eficcia dos

referidos programas.

Com efeito, a autorregulao apenas faz sentido se a sua eficcia puder ser

atestada e monitorada. Consequentemente, a mera adeso a um programa de compliance

no deixa de ser um protocolo de boas intenes, as quais dependero de certo tempo para

a comprovao da sua eficcia. Da as acertadas crticas que foram feitas Medida

Provisria n 703, quando esta buscou resolver, por meio da lenincia e da adoo formal

de um programa de compliance, o problema da imediata possibilidade de contratao com

o Poder Pblico. Previa o diploma que a celebrao do acordo de lenincia, que teria

como condio o comprometimento da pessoa jurdica na implementao ou melhoria de

mecanismos internos de integridade, seria capaz de, alm de garantir a iseno total de

penalidades como a proibio de contratar com o poder pblico. Tal medida foi

duramente criticada por entidades da sociedade civil e integrantes de entidades de

controle38, sendo retratada como forma de enfraquecer o controle e suavizar a punio da

corrupo.

O dilogo entre as reas exige igualmente que, tanto do ponto de vista das

empresas, como do ponto de vista do Estado, as iniciativas de compliance sejam

compreendidas de forma abrangente e convergente. Assim, extremamente

recomendvel que os programas de compliance antitruste e anticorrupo sejam pensados

conjuntamente tanto pelo Estado como pelos agentes econmicos, a fim de possibilitar a

implementao de solues que possam resolver simultaneamente os dois problemas.

Por fim, deve o Estado oferecer os incentivos adequados para a adoo dos

referidos programas de compliance, em razo dos altos custos por eles gerados. Neste

ponto, h muito a avanar em ambas as reas, pois as Lei Anticorrupo e Antitruste

limitam-se a incluir o compliance como mero critrio de dosimetria da pena, o que pode

no ser suficiente para resolver o problema, ainda mais quando sujeitas ampla

discricionariedade das autoridades competentes.

38 RODAS, Srgio. Entidades pedem ao de Janot contra norma que regula acordos de lenincia. Consultor

jurdico. 23.12.2015. Disponvel em: < http://www.conjur.com.br/2015-dez-23/entidades-pedem-acao-

janot-mp-acordos-leniencia> Acesso em: 21 out. 2016; LIVIANU, Roberto; OLIVEIRA, Jlio Marcelo.

Medida Provisria 703 uma verdadeira aberrao jurdica afrontosa CF. Consultor Jurdico. 11.01.2016.

Disponvel em: < http://www.conjur.com.br/2016-jan-11/mp-debate-medida-provisoria-703-verdadeira-

aberracao-juridica> Acesso em: 21 out. 2016.

20

Com efeito, a Lei Antitruste brasileira admite que os esforos para a

preveno do ilcito sejam utilizados como atenuantes. Embora no haja regra explcita

nesse sentido, a interpretao que o CADE tem dado questo a partir do artigo 45,

inciso II, da Lei n 12.529/2011, segundo o qual a boa-f do infrator pode ser um critrio

de dosimetria da pena. Recentemente o CADE editou o guia de compliance no qual so

descritos os requisitos para a estruturao de um programa robusto e seus principais

impactos sobre as penalidades administrativas, tanto na dosimetria, quanto no incentivo

adeso a programas de lenincia, por exemplo39.

A Lei Anticorrupo, por sua vez, tambm admite soluo semelhante, ao

prever que, no obstante a vinculao automtica da pessoa jurdica em razo dos atos

das pessoas naturais que agem em seu nome, os aspectos organizacionais de preveno

do ilcito podem ser considerados na fixao da sano. Evidncia clara desse

entendimento encontra-se em seu artigo 7, inciso VIII, que prev como parmetro de

dosimetria a existncia de mecanismos e procedimentos internos de integridade,

auditoria e incentivo denncia de irregularidades e a aplicao efetiva de cdigos de

tica e de conduta no mbito da pessoa jurdica40.

A lei foi regulamentada pelo Decreto n 8.420/2015, que, inspirando-se na

experincia estrangeira, especificou os inmeros requisitos necessrios para um programa

adequado e efetivo41. Dentre as importantes consequncias da adoo de programas de

compliance anticorrupo, est a prevista no seu artigo 18, que estabelece uma margem

39 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econmica (CADE). Guia - Programas de compliance:

orientaes sobre a estruturao e benefcios da adoo dos programas de compliance concorencial (Verso

preliminar). Disponvel em: . Acesso em: 25 ago. 2015. 40 Nesse sentido, ver: FRAZO, Op. cit. no prelo. 41 Embora o artigo 41, pargrafo nico, do Decreto, reconhea que o programa de integridade deve ser

estruturado de acordo com as caractersticas e os riscos de cada pessoa jurdica, incluindo o setor de

mercado em que atua, o grau de complexidade da sua estrutura societria, o nmero de funcionrios e a

frequncia de interao com o poder pblico, prev alguns parmetros gerais: (i) comprometimento da alta

administrao; (ii) padres de conduta aplicveis a todos os empregados e administradores; (iii) padres de

conduta aplicveis, quando necessrio, a terceiros (fornecedores, por exemplo); (iv) treinamentos no

programa; (v) anlise dos riscos; (vi) registros contbeis completos; (vii) controle interno que assegurem a

integridade das demonstraes financeiras; (viii) procedimentos de preveno s fraudes na interao com

o setor pblico; (ix) independncia da instncia aplicadora do programa; (x) canais de denncia de

irregularidades; (xi) medidas disciplinares; (xii) procedimentos para a interrupo de irregularidades; (xiii)

diligncias apropriadas para contratao; (xiv) verificao de irregularidades em fuses, aquisies e

reestruturaes societrias; (xv) monitoramento do programa; e (xvi) transparncia nas doaes da pessoa

jurdica a candidatos e partidos polticos.

21

de reduo da multa quando restar comprovado que a pessoa jurdica possua e aplicava

um programa de integridade que atendia aos parmetros regulamentares42.

A adoo de programas de compliance, alm de mitigar a possibilidade de

uma empresa estar envolvida em condutas anticompetitivas, pode se apresentar como um

mecanismo eficiente de combate cartelizao. No sem razo que, frente dificuldade

de identificao de carteis e formulao de critrios seguros de aferio da

proporcionalidade das punies aplicadas43, diversas autoridades da concorrncia

adotaram medidas de incentivo ao compliance.

Todavia, inequvoco que, assim como ocorre nos casos de corrupo, o

legislador considera que um bom programa de compliance jamais poder afastar a

imputao da pessoa jurdica, podendo, na melhor das hipteses, ser considerado uma

atenuante na dosimetria da pena e, mesmo assim, no caso da Lei Antitruste, conforme a

discricionariedade da autoridade julgadora44.

Por essa razo, h que se pensar na autorregulao a partir de uma perspectiva

que possa impactar na prpria definio de ilcito corporativo, que deveria passar a ser

visto essencialmente como um defeito de organizao. A ideia de defeito de organizao

procura superar as dificuldades da dogmtica tradicional sobretudo do Direito Penal

que procurar imputar ilcitos a pessoas jurdicas atravs das mesmas categorias aplicveis

s pessoas fsicas, a exemplo da conduta, da culpabilidade e da capacidade penal45.

Consequentemente, a culpa da pessoa jurdica deveria revelar-se na

inexistncia de uma organizao idnea para prevenir ou controlar a prtica de ilcitos ou

na deciso de burlar a lei ou na estruturao deficiente, na ausncia de programa de

compliance efetivo e funcional, na complacncia ou condescendncia com

comportamentos suspeitos46. Afinal, muito mais consentneo com a estrutura das

pessoas jurdicas que a reprovabilidade da conduta seja aferida no pela mera conduta

42 FRAZO, Op. cit. no prelo. 43 RILEY; SOKOL. Op. cit. p.5. 44 A ampla discricionariedade mantida no Guia de Compliance do CADE, que no faz meno a nenhum

percentual de reduo da multa em razo de um programa de compliance considerado robusto. 45 TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurdicas, otras agrupaciones y empresas en

derecho comparado. In: COLOMER, Juan Luis Gmez; CUSSAC, Jos Luis GONZLEZ. La reforma de

la justicia penal (estudios en homenaje al Prof. Klaus Tiedemann). Madrid: Universitat Jaume I, 1997. p.

35 46 BOTTINI, Pierpaolo Cruz; TAMASAUSKAS, Igor. A controversa responsabilidade objetiva na Lei n

12.846/2013. Revista do Advogado. 125, pp. 125-137, dez. 2014, p. 128.

22

dos seus presentantes ou representantes, mas sim pela verificao da aptido de sua

organizao interna para prevenir e reprimir ilcitos.

Sob essa perspectiva, necessrio que se reconfigure o dever de diligncia de

administradores e controladores de sociedades, devendo a efetividade do compliance ser

parmetro que afasta a responsabilidade da pessoa jurdica, sem prejuzo da

responsabilidade civil objetiva pelos danos e da responsabilidade das pessoas naturais

responsveis pelos ilcitos47.

IV.3. Dilogo na esfera da cooperao

Nos termos do que j foi visto anteriormente, hoje se busca utilizar a

regulao jurdica estatal para outras finalidades que no apenas a imposio de

obrigaes coercitivas, tais como para a sinalizao de valores e propsitos a serem

buscados pelos agentes econmicos e para a criao de instrumentos propcios para a

cooperao entre os agentes econmicos e o Poder Pblico.

A questo da cooperao j est consideravelmente avanada no Direito da

Concorrncia, no qual existem diversas possibilidades para tal objetivo, bem como

considervel experincia prtica. Nesse contexto, merecem destaque os acordos de

lenincia, que tm importncia estratgica para a identificao de condutas colusivas e

para o oferecimento de provas que contribuam efetivamente para a investigao dos

ilcitos concorrenciais. Trata-se, sem dvida, de essencial instrumento colaborativo, na

medida em que garante contrapartidas vantajosas ao agente em troca da confisso da

prtica e do compromisso com a sua cessao, bem como da contribuio para a

investigao.

Com efeito, nas hipteses em que o CADE no tenha conhecimento da

infrao noticiada pelo leniente, o benefcio deste ser a extino da ao punitiva em seu

favor. Caso o CADE tenha conhecimento da infrao, mas ainda no tenha provas para a

condenao hiptese em que a finalidade da lenincia basicamente a de colaborar na

47 Exemplo interessante o caso Morgan Stanley, analisado pelo Department of Justice norte-americano.

Nessa ocasio, a autoridade optou por processar apenas o administrador da companhia que estava

relacionado a prticas de corrupo e no a pessoa jurdica diante do forte programa de compliance e

da diligncia da empresa durante a investigao. O Department of Justice se manifestou sobre o caso em

press release publicado em seu site. Disponvel em:

23

instruo probatria , pode haver a reduo de 1/3 a 2/3 das penas aplicveis (Lei n

12.529/2011, art. 86, 4, inciso II).

Nesse sentido, o Relatrio da Rede Internacional da Concorrncia (ICN)

sobre setores regulados de abril de 2004 esclarece que, quando existe espao para a

atuao autnoma do agente econmico, no se deve afastar a incidncia da legislao

antitruste, mas ser possvel discutir sobre a no aplicao de sanes e/ou sobre a

aplicao de atenuantes, caso se verifique que o incentivo ou a lenincia da autoridade

concorrencial com a prtica lesiva demonstram a boa-f objetiva do administrado.

Diante da importncia da lenincia como meio de estimular a autodelao,

estabelece a Lei Antitruste, acertadamente, que somente a primeira empresa que se

qualificar a respeito da infrao poder ser beneficiada com o acordo. Parte-se da

premissa de que somente assim haver os devidos incentivos para a comunicao da

infrao, j que, se a lenincia fosse assegurada a todos, a conduta racionalmente esperada

do agente econmico seria aguardar a primeira delao ao invs de ser o primeiro delator.

Tal lgica apenas poderia ser rompida se os benefcios da primeira lenincia fossem

consideravelmente superiores ao da segunda e, assim, sucessivamente.

Entretanto, o fato de a lenincia apenas beneficiar o primeiro no compromete

a possibilidade de outros tipos de cooperao na seara antitruste, mesmo em processo no

qual porventura j houve a lenincia. Com efeito, o CADE dispe tambm de outro

importante mecanismo cooperativo os Termos de Compromisso de Cessao (TCCs),

previstos pelo 1 do artigo 85 da Lei Antitruste , que se apresenta como meio

fundamental para obteno de informaes e provas, bem como para a soluo consensual

e imediata do problema identificado, inclusive atravs da adoo de medidas que

preservem ou restabeleam as condies regulares do mercado. Este ltimo aspecto

acentua outra grande vantagem das solues negociadas: que podem ser mais variadas

e efetivas do que aquelas que poderiam ser unilateralmente impostas pela autoridade

antitruste, o que refora o diferencial da cooperao.

Por outro lado, os TCCs estendem-se a todos os tipos de infrao

anticorrencial, de modo que a perspectiva de cooperao extremamente ampla e

obviamente se estende a casos nos quais no caberia a lenincia. Apenas se deve lembrar

que a cooperao precisa ser vantajosa para ambas as partes, motivo pelo qual no pode

ser meio de propiciar benefcios apenas aos agentes econmicos ou de se substituir a uma

condenao praticamente certa, o que normalmente ocorre quando a negociao

24

proposta aps o encerramento da instruo processual e todos os pareceres j apontam

para a ilicitude da conduta.

O momento processual em que a negociao proposta pelo agente

econmico , portanto, muito importante quanto antes melhor , j que pode antecipar

a identificao da infrao ou mesmo poupar esforos e investimentos na instruo dos

processos. Da o especial cabimento da cooperao em casos nos quais a autoridade no

tem conhecimento da infrao ou, tendo conhecimento da infrao, no tem provas

suficientes para a condenao, o que, alm de assegurar a maior eficcia ao procedimento,

traz uma economia considervel dos recursos que seriam utilizados naquela investigao.

No caso especfico das infraes antitruste, a cooperao ainda pode ter

muitas vantagens nas chamadas condutas unilaterais, em relao s quais pode haver

dvidas relevantes sobre a ilicitude ou no da conduta, diante de supostas eficincias

econmicas que delas decorreriam. Em casos assim, a cooperao tem o papel estratgico

de fazer cessar a conduta duvidosa ou readaptar a conduta dos agentes para modelos em

relao aos quais no haja controvrsias em torno da ilicitude.

O fato de a cooperao, na esfera concorrencial, no estar restrita aos acordos

de lenincia importante fator de ampliao das solues consensuais, at porque nada

impede que, tal como j se viu, em um mesmo processo haja um acordo de lenincia e

vrios TCCs, j que estes no tm a mesma limitao da lenincia. Da mesma forma,

quando no caso de lenincia, pode haver igualmente vrios TCCs no mesmo processo.

A multiplicidade de TCCs no cria nenhum problema do ponto de vista dos

incentivos, pois o CADE criou, via regulamentao, uma estrutura adequada de

estmulos, de forma que o primeiro requerente tem mais vantagens do que os demais e,

assim, sucessivamente. Logo, o sistema atual estimula o pioneirismo da iniciativa, a

quebra da inrcia inicial e da eventual colaborao que pode ocorrer entre os agentes

econmicos.

Dessa maneira, tem-se que hoje, na seara concorrencial, existe um sistema

interessante e bem estruturado de cooperao. Desde que as autoridades concorrenciais o

utilizem com os devidos cuidados, dentre os quais a razoabilidade e a mais estrita boa-f,

a cooperao tem tudo para continuar sendo um importante mecanismo de disciplina do

mercado e de controle da atuao dos agentes econmicos.

25

J em relao Lei Anticorrupo, observa-se que esta conta apenas com o

acordo de lenincia48 (Lei n 12.846/2013, art. 16). Assim como na Lei Antitruste, apenas

a primeira empresa pode se beneficiar e a celebrao do acordo pode reduzir a multa da

pessoa jurdica em at 2/3, bem como isent-la de graves sanes, tais como perdimento

de bens, direitos ou valores, de suspenso ou interdio parcial de suas atividades, de

dissoluo compulsria da pessoa jurdica, da proibio de receber incentivos, subsdios,

subvenes, doaes ou emprstimos de rgos de entidades pblicas ou instituies

financeiras controladas pelo poder pblico (Lei n 12.846/2013, art. 16, 2)49.

Como no prev outras formas de cooperao, a Lei Anticorrupo acaba

restringindo cooperao a apenas um agente econmico: o primeiro que firmar o acordo

de lenincia. Tal exigncia at foi suprimida pela controversa Medida Provisria 703, de

2015, a fim de possibilitar vrias lenincias, o que deu margem a inmeras crticas.

Afinal, como a multiplicidade de lenincias foi autorizada sem nenhuma gradao de

incentivos, poderia comprometer totalmente a estrutura de incentivos para a autodelao,

gerando, na verdade, o estmulo para que nenhum agente tomasse a iniciativa e aguardasse

o comportamento dos demais.

Com a perda de vigncia da Medida Provisria, foi restabelecida a redao

original da Lei Anticorrupo, permanecendo o requisito de que a lenincia apenas pode

beneficiar a primeira empresa. Entretanto, subsiste o problema de a Lei Anticorrupo

continuar restringido a cooperao aos casos de lenincia, sem dispor de outros

instrumentos interessantes que, a exemplo dos TCCs na esfera antitruste, poderiam ser

inclusive complementares lenincia.

Por todas essas razes, importante pensar alm da lenincia, buscando

operacionalizar, tambm na esfera anticorrupo, outros mecanismos de cooperao que

possam ser utilizados com mais largueza, inclusive do ponto de vista do maior nmero

de agentes que deles podero se utilizar.

Desde que sejam observadas as premissas essenciais da cooperao com o

poder pblico e seja criada uma adequada estrutura de incentivos para estimular o

48 Segundo a Lei Anticorrupo, A autoridade mxima de cada rgo ou entidade pblica poder celebrar

acordo de lenincia com as pessoas jurdicas responsveis pela prtica dos atos previstos nesta Lei que

colaborem efetivamente com as investigaes e o processo administrativo, sendo que dessa colaborao

resulte: (i) a identificao dos demais envolvidos na infrao, quando couber; e (ii) a obteno clere de

informaes e documentos que comprovem o ilcito sob apurao. 49 A lei disciplina igualmente o acordo de lenincia para os casos especficos de infraes Lei 8.666/93,

caso em que as sanes dos arts. 86 a 88 podem ser afastadas ou atenuadas.

26

pioneirismo entre os agentes econmicos, de todo salutar que, tambm na esfera

anticorrupo, sejam ampliadas as esferas de negociao, em face dos benefcios

manifestos que desta decorrem. Dentre as vantagens, destaca-se a possibilidade de

implementao de solues mais variadas e efetivas (inclusive sob o aspecto temporal)

do que aquelas que poderiam ser unilateralmente impostas pelas autoridades.

Todavia, fundamental assegurar harmonia e congruncia entre as iniciativas

do Estado exemplo dos acordos de lenincia na seara anticorrupo, sob pena de no se

gerar os devidos incentivos para a cooperao. Tal ponto especialmente importante em

se tratando dos atos de corrupo, em relao aos quais so diversas as autoridades a

participarem dos acordos. Relembre-se, aqui, que atos de corrupo podem tanto ser

investigados pelo Ministrio Pblico na seara criminal e, assim, levados ao Judicirio,

quanto pela Controladoria-Geral da Unio, responsvel pela apurao, processo e

julgamento das infraes administrativas da Lei Anticorrupo. possvel, ainda, que o

agente seja ru de processo com base na Lei de Improbidade Administrativa, respondendo

portanto na esfera cvel.

Dessa maneira, h que se criar um sistema coerente que possa enderear no

apenas a responsabilidade administrativa em ambas as searas, mas igualmente a

responsabilidade criminal. Em um passo seguinte, h que se pensar em que medida no

necessrio que at mesmo a questo da responsabilidade civil faa igualmente parte dos

referidos acordos, a fim de evitar distores em que o leniente seja o maior prejudicado

em supervenientes aes de indenizao, como as que ocorreram no caso da Siemens,

quando o estado de So Paulo50 e o Ministrio Pblico de So Paulo51 ingressaram com

pedidos de reparao civil em razo dos danos sofridos ao errio em razo de cartel em

licitaes de trem, tendo em vista a divulgao do acordo de lenincia da empresa

realizado no mbito de inqurito administrativo no CADE52.

V. CONSIDERAES FINAIS

50 PGE-SP. PGE ajuza ao contra Siemens por formao de cartel. Disponvel em: <

http://www.pge.sp.gov.br/visualizanoticia.aspx?id=2980>. Acesso em: 28 out. 2016. 51 CRUZ, Elaine Patrcia. Ministrio Pblico entra com ao contra empresas por suspeita de cartel na

CPTM. EBC Agncia Brasil. Disponvel em: Acesso em: 28 out. 2016. 52 CADE, Processo Administrativo 08700.004617/2013-41, em trmitao.

27

O presente artigo teve por objetivo destacar, em primeiro lugar, a necessidade

do dilogo entre o Direito Antitruste e o Direito Anticorrupo a partir da premissa

essencial de que tais problemas precisam ser endereados em conjunto e certamente no

sero resolvidos apenas por meio de punies dos agentes envolvidos. No obstante a

importncia das medidas punitivas, estas acabam resolvendo muito mais as

consequncias atuais da corrupo e das prticas antitruste do que propriamente as causas

do problema.

Para assegurar um mercado em que a rivalidade se estabelea em razo do

mrito, livre de corrupo e ilcitos anticoncorrenciais, imperioso e urgente avanar em

trs frentes, que precisam ser exploradas nas searas anticorrupo e antitruste, sempre sob

perspectiva de harmonia, coerncia e convergncia de esforos: (i) solues estruturais,

que buscam modificar a prpria dinmica competitiva dos mercados; (ii) autorregulao

(compliance), que busca criar uma mudana da tica empresarial, criando novas regras

do jogo; e (iii) cooperao em diversos nveis.

Somente por meio da mudana institucional, ou seja, por meio da alterao

das regras do jogo, da dinmica competitiva dos mercados e da reformulao dos espaos

de ao tanto do Estado como dos agentes econmicos que se poder pensar em uma

soluo isonmica, prospectiva e eficaz para o problema.

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30

ACORDO DE LENINCIA NO MBITO DA LEI ANTICORRUPO

Arby Ilgo Rech Filho

Auditor do Tribunal de Contas da Unio (TCU).

Ocupou os cargos de assessor do presidente e de chefe

da Assessoria Parlamentar no TCU, respectivamente,

nos anos de 2013 e 2014. Atualmente trabalha como

substituto de assessor de Ministro. Formado em

engenharia mecatrnica pela Universidade de So

Paulo (USP) e direito pelo Instituto de Ensino

Superior de Braslia (IESB). Trabalhou 5 anos na

Procter & Gamble do Brasil e 4 anos na

Controladoria-Geral da Unio (CGU).

I. INTRODUO

De maneira simplificada, a corrupo no setor pblico pode ser definida como

o uso indevido de uma funo pblica para ganhos privados e um problema com o qual

os governos de todos os pases do mundo, independentemente do nvel de

desenvolvimento, devem enfrentar.

Dados da Organizao No Governamental (ONG) Transparncia

Internacional indicam que o Brasil, em 2015, ficou em 76 lugar no ranking do ndice de

Percepo da Corrupo, que mede o nvel de corrupo no setor pblico, e teve nota de

38 em 100, mantendo-se entre os pases considerados com alto nvel de corrupo.1

Com vistas a combater esse grande mal da sociedade, o arcabouo jurdico

brasileiro tem sido aperfeioado ao longo dos anos. Diversas entidades pblicas foram

criadas, como a Controladoria-Geral da Unio (CGU) e o Conselho de Controle de

Atividades Financeiras (Coaf), e diversos normativos foram promulgados, tais como, a

Lei n 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei Complementar n 135/2010

(Lei da Ficha Limpa) e a Lei n 12.846/2013 (Lei Anticorrupo LAC).

1 A nota de um pas ou territrio indica o nvel de corrupo no setor pblico percebido pela populao e

tem uma escala de 0 (altamente corrupto) a 100 (muito limpo). O ranking do pas indica sua posio relativa

aos outros pases no ndice. Este ano o ndice inclui 168 pases e territrios.

31

Esse ltimo normativo estabelece as responsabilidades objetivas

administrativa e civil das pessoas jurdicas pelos atos lesivos contra a Administrao,

praticados em seu interesse ou benefcio (art. 2 da Lei 12.846/2013) e prev um novo

instrumento no combate corrupo no Brasil, qual seja, o acordo de lenincia (AL),

objeto de estudo neste artigo.

A LAC foi promulgada h aproximadamente trs anos e nesse nterim veio

ao conhecimento das autoridades brasileiras o esquema de corrupo na Petrobras, no

qual h indcios de desvios de bilhes de reais para propinas e campanhas polticas. Nesse

perodo, com relao ao acordo de lenincia previsto nesse normativo, o Governo Federal

publicou o Decreto n 8.420, em 18 de maro de 2015, que regulamentou a LAC, e editou

a Medida Provisria 703/2015 (MP 703/2015), em 18 de dezembro de 2015, que disps

especificamente sobre esses acordos. Em adio, h nove projetos de lei (PL) sobre o

tema na Cmara dos Deputados, entre os quais o PL 5.208/2016, proposto por diversos

juristas brasileiros especialistas no assunto.

Ante tal cenrio e, mesmo enfrentando diversas denncias de corrupo,

nenhuma empresa envolvida no escndalo da Petrobras celebrou acordo de lenincia

previsto na LAC, o que faz acreditar que a introduo desse instrumento no Brasil no foi

adequada.

O presente artigo apresenta uma anlise da introduo dos acordos de

lenincia no mbito da Lei Anticorrupo no Brasil, utilizando-se dos aspectos tericos

sobre o tema e do exemplo de utilizao desse instrumento nos Estados Unidos da

Amrica (EUA). O artigo encontra-se estruturado em quatro sees. A primeira explicita

os conceitos da anlise econmica do direito aplicados ao tema, tais como: Teoria dos

Jogos, Informao Assimtrica, relao entre o setor pblico e o privado e incentivos

celebrao de acordos. A segunda apresenta uma reviso do modelo de combate

corrupo no Brasil. A terceira traz aspectos tericos sobre os acordos de lenincia no

Brasil e no mundo. Por fim, feita uma anlise econmica do ordenamento jurdico

brasileiro referente aos acordos de lenincia no mbito da Lei Anticorrupo.

II. CONCEITOS DA ANLISE ECONMICA DO DIREITO RELACIONADOS

COM OS ACORDOS DE LENINCIA

32

Para Robbins (1945), economia a cincia que estuda o comportamento

humano como uma relao entre fins e meios escassos que possuem usos alternativos.

Em decorrncia desse conceito, Gico Jr. (2011) entende que a Anlise Econmica do

Direito (AED) ou Teoria Econmica do Direito no se refere a um objeto de estudo

especfico, mas ao mtodo de investigao aplicado ao problema, o mtodo econmico,

cujo objeto pode ser qualquer questo que envolva escolhas humanas.

Gico Jr. (2014) aponta que a utilizao da Teoria Econmica do Direito pode

ser dividida em: (i) Anlise Econmica do Direito Positiva (AED Positiva), que nos

auxilia a compreender quais as consequncias de um dado arcabouo jurdico ou de uma

dada regra, qual sua racionalidade e as diferentes consequncias provveis decorrentes da

adoo dessa ou daquela regra; e (ii) Anlise Econmica do Direito Normativa (AED

Normativa), que , nos auxilia a escolher entre as alternativas possveis a mais eficiente,

isto , escolher o melhor arranjo institucional dado um valor (vetor normativo)

previamente definido.

Devido s diversas contradies existentes no arcabouo jurdico brasileiro

que trata dos acordos de lenincia, no mbito deste estudo, ser feita uma anlise

econmica desses normativos. Sero apresentados alguns pontos polmicos entre as

normas existentes (AED Positiva) e, para cada um desses pontos, ser proposta a melhor

alternativa (AED Normativa).

Para realizar a anlise econmica de qualquer arcabouo jurdico, a AED

utiliza-se de teorias da economia, algumas delas, com relao direta com os acordos de

lenincia, sero explicitadas a seguir.

A primeira a Teoria da Escolha Racional que, segundo Osborne (2004), em

uma dada situao, o tomador de deciso escolhe a melhor situao de acordo com suas

preferncias. Na possibilidade de haver vrias melhores aes a tomar, a Teoria da

Escolha Racional prescreve que a ao escolhida pelo tomador de deciso ao menos to

boa quanto todas as outras aes possveis, de acordo com suas preferncias.

A evoluo dos estudos do comportamento humano de autores como

Kahnneman e Tversky (1979) indicam que em uma srie de situaes, principalmente

naquelas que envolvem risco e incerteza, os agentes no se comportam da forma esperada

(AED comportamental).

Apesar dos autores modernos estarem desenvolvendo estudos sobre a AED

comportamental, neste estudo ser assumido que os tomadores de decises (agentes ou

33

jogadores) so racionais, uma vez que duas teorias econmicas muito aplicadas aos

acordos de lenincia Teoria dos Jogos e Dilema do Prisioneiro decorrem dessa

presuno.

De acordo com Osborne (2004), a Teoria dos Jogos diz respeito anlise do

comportamento estratgico dos agentes em situaes nas quais os tomadores de decises

interagem entre si. J o Dilema do Prisioneiro um modelo decorrente dessa Teoria, pela

qual h ganhos pela cooperao entre os agentes (cada jogador prefere que ambos fiquem

quietos, em vez de um dos dois colaborar para a elucidao de um crime), mas cada

jogador tem o incentivo de escolher colaborar com a soluo do problema (free rider).

O contexto original desse modelo envolve dois suspeitos de um crime

principal, que foram presos e mantidos em celas separadas por terem cometido um crime

menor. A nica possibilidade de elucidar o crime principal seria com a colaborao de

um dos dois indivduos, que ficaria livre se cooperasse para elucidar o crime, enquanto o

outro ficaria na priso por muito mais tempo (por exemplo, cinco anos). Se nenhum dos

dois cooperasse, ambos ficariam na priso pelo crime menor por um tempo intermedirio

(por exemplo, dois anos). Por fim, se os dois cooperassem, ambos ficariam presos pelo

crime maior, mas teriam uma reduo da pena pela cooperao (por exemplo, trs anos).

Outro aspecto terico que pode ser considerado no mbito dos acordos de

lenincia refere-se assimetria de informaes, que se refere a uma das falhas de mercado

que ocorre quando dois ou mais agentes econmicos estabelecem entre si uma transao

econmica, com uma das partes detendo informaes qualitativa e/ou quantitativamente

superiores aos da outra parte. Apesar desse aspecto no ser considerado pela teoria

econmica clssica, como as teorias anteriores Teoria dos Jogos e Dilema dos

Prisioneiros , esse conceito importante, uma vez que se alteram as premissas quanto

ao comportamento racional dos agentes econmicos.

Outro aspecto terico diretamente ligado aos acordos de lenincia a Teoria

da Agncia ou modelo agente-principal que, segundo Laffont e Martimort (2002),

trabalha os seguintes elementos bsicos: (i) o principal aquele que define o objetivo a

ser perseguido e os incentivos para que o agente se atenha busca desse objetivo; (ii) o

agente aquele que deve orientar seu comportamento de forma a atender expectativa

do principal; e (iii) as preferncias do principal e do agente no so convergentes.

34

Os mesmos autores afirmam que a informao assimtrica pode no afetar

somente a relao entre o principal e cada um de seus agentes, mas pode ocorrer nas

relaes entre