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UNIMAR – UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
ANA LÚCIA RIBAS
O NOVO CINE LATINO-AMERICANO:
Por um pobre terceiro cinema revolucionário
MARÍLIA – SP
2012
2
ANA LÚCIA RIBAS
O NOVO CINE LATINO-AMERICANO:
Por um pobre terceiro cinema revolucionário
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade
de Marília para obtenção do grau de Mestre
em Comunicação, área de Concentração:
Mídia e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Altamir Botoso.
MARÍLIA – SP
2012
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Universidade de Marília – UNIMAR
Reitor: Dr. Márcio Mesquita Serva
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-graduação
Profa. Dra. Suely Fadul Villibor Flory
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Coordenadora: Profa. Dra Rosangela Marçolla
Orientador
Prof. Dr. Altamir Botoso
O NOVO CINE LATINO-AMERICANO: por um pobre terceiro cinema revolucionário.
Ana Lúcia Ribas
Orientador: Prof. Dr. Altamir Botoso
Banca Examinadora
Prof. Dr. Altamir Botoso
Avaliação:________________________Assinatura:__________________________
Profª. Drª. Heloísa Doca
Avaliação:________________________Assinatura:__________________________
Profª. Drª. Gabriela Kvacek Betella
Avaliação:________________________Assinatura:__________________________
4
À minha filha, por todas as lágrimas que chorou,
pela falta que fiz em casa durante a pesquisa e pelos
dias que deixei de estar com ela para ler e escrever.
Aos meus pais, por sempre segurarem a barra. E aos
mestres que marcaram minha trajetória: Jesus Cristo,
Silvio Gallo, Proudhon, Malatesta, Peter Mclaren,
Fernando Birri, Paulo Freire, Glauber Rocha e Kaka
Werá Jecupé.
5
Agradecimentos
Ao meu orientador, Prof. Dr. Altamir Botoso,
por todo conhecimento, auxílio, calma e, sem dúvida,
sabedoria dedicada a mim neste projeto.
Ao Professor Antonio Manoel, por me tirar de um caminho
comum e me incentivar a algo novo.
À Professora Maria Cecília Guirado, por me ajudar a
sonhar, mas sempre me colocar novamente com o pé no
chão.
Ao Leonardo Delgado, amigo, colega e companheiro de
mestrado, por nossas viagens, conversas, reclamações e,
sem dúvida, o racha nas despesas.
Aos meus queridos amigos cubanos, Alejandro Sanz e
Agles, por todo carinho dedicado a mim na Fundação e em
Havana.
A Juan Carlos, historiador da Fundação do Novo Cine
Latino-Americano em Havana, pela longa conversa que
direcionou o objeto dessa pesquisa.
Ao Alex, pela empatia e pelas portas que deixou abertas
para um retorno a Havana.
À Professora Rosangela Marçolla, por me mostrar que
existe um mundo novo a ser descoberto.
Aos professores que conheci durante os créditos, por me
fazerem pensar e começar a entender ‘quem disse o quê e
onde’. À Andrea, por todas! À Lily Lara, pelo
compartilhamento das viagens em busca de conhecimento.
Aos meus amigos Márcio Tales, Vânio Pressinate, Simone
Martins, Rodrigo Oliva, Celene Maia, Neurides Martins, e
Sérgio Romano, amigos de toda uma vida e amigos de uma
nova vida, por ajudarem a me levantar toda vez que caía.
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O NOVO CINE LATINO-AMERICANO: por um pobre terceiro cinema revolucionário.
Autor: Ana Lúcia Ribas
Orientador: Prof. Dr. Altamir Botoso
RESUMO
Este estudo tem como proposta realizar levantamento histórico do movimento do Novo Cine
latino-americano, suas principais escolas e manifestos. Versa sobre os acontecimentos e
influências culturais determinantes na concepção de cada movimento, e a vida de seus
principais teóricos e cineastas nos vinte e dois países que compõem seu território. Apresenta
um panorama sobre o movimento nos três países com maior produção (Argentina, Cuba e
Brasil) e um resumo de todos os outros países da América latina com produção considerável
dentro do movimento e sobre a criação da Fundação do Novo Cine em Havana, além de seus
dois principais projetos: a EICTV - Escola Internacional de Cine e TV em Santo Antonio de
los Baños e o Festival do Novo Cine, em Havana.
Palavras-chave: Cinema. Novo Cine. História. América Latina.
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O NOVO CINE LATINO-AMERICANO: O terceiro cinema revolucionário. Author: Ana Lúcia Ribas
Advisor: Prof. Dr. Altamir Botoso
ABSTRACT
This study has as proposal to accomplish a historical raising from Latin American New
Cinema, its main schools and manifests. It deals with happenings and determined cultural
influences in the conception of each movement and life of its main theorists and film makers
in twenty-two countries that compose its territory. It presents a panorama about the movement
in three countries with larger production (Argentine, Cuba and Brazil) and a summary of all
countries from Latin America with considerable production inside the movement and about
the creation of New Cinema Foundation in Havana, besides its main projects: the EICTV –
Cinema and TV International School in Santo Antonio de los Baños and New Cinema
Festival, in Havana.
Keywords: Cinema. New Cinema. History. Latin America.
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SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................................................. 09
Capítulo 1 – O Cinema Novo no Brasil. ................................................................................................ 20
Capítulo 2 – O Terceiro Cine Argentino ................................................................................................ 31
Capítulo 3 – O Cine Imperfeito Cubano ................................................................................................ 39
Capítulo 4 – O Novo Cine na América latina ........................................................................................ 47
Capítulo 5 – A Fundação do Novo Cine Latino-americano e a Escola Internacional de Cinema e
Televisão em Havana ......................................................................................................... 59
Considerações Finais .............................................................................................................................. 79
Referências ............................................................................................................................................. 85
Anexo I ................................................................................................................................................... 87
9
INTRODUÇÃO
Este estudo propõe apresentar um panorama geral do movimento do Novo Cine desde
seu início, a partir da década de 1950, em toda América Latina. Mediante a abordagem de
suas principais produções e da historicidade de seu processo propõe demonstrar como a
interferência dos acontecimentos mundiais e de cada país especificamente acabaram por
interferir na submissa posição de dominados e levaram ao surgimento desse movimento
cinematográfico que uniria ideologicamente os países latino-americanos contra o
imperialismo.
Aborda os movimentos sociais na América Latina a partir do início do século e busca
demonstrar, por meio das falas dos cineastas, os fatores ideológicos e políticos
influenciadores, descritos em manifestos e filmografias, que foram tão importantes no
nascimento desse movimento quanto o desenvolvimento técnico e artístico dessa nova
linguagem chamada cinema. Não se tratava mais de entretenimento, mas de uma ferramenta
na conscientização da importância da valorização das identidades e das culturas nacionais, em
detrimento dos modelos dominantes.
Esses ideais de um Novo Cine, fora dos moldes e dos padrões da indústria
cinematográfica hegemônica, culminaram na criação da Fundação do Novo Cine Latino-
Americano em Havana e em seus principais projetos: a EICTV – Escuela Internacional de
Cine y Televisión de San Antonio de los Baños e o Festival del Nuevo Cine Latino-americano
de Habana, ambos em Cuba.
A história da América Latina foi escrita em meio a atrocidades e muito derramamento
de sangue. Além da expropriação de seu território por aqueles que julgaram descobri-la, a
escravidão e a falta de respeito pela vida fez parte de quase toda sua história desde a chegada
do homem branco a esse continente.
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até
nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-
americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes
centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em
minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos
naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes
de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua
incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma
função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira
do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo
muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América
Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro
das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos
exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra (GALEANO,
1982, p.05)
10
Desde seu descobrimento pelos europeus no fim do século XIV, foi palco de inúmeras
disputas territoriais e ideológicas. Toda sua extensão sempre foi vista por seus descobridores
como uma fonte potencial de riquezas. Seu processo exploratório de colonização dilapidou
não apenas o solo e as terras, mas uma população inteira de ameríndios que habitavam todo
seu território.
O discurso libertário, proposto pelos cineastas que participaram da criação do
movimento do Novo Cine Latino-americano, é reflexo de embates ideológicos que a América
Latina vivenciou desde o início do século XX. Acirravam-se as disputas dos anarquistas,
comunistas e socialistas contra o capitalismo imperialista.
A primeira ideologia anti-imperialista a se difundir na América Latina foi o
anarquismo. De acordo com o discurso de um de seus maiores representantes, Errico
Malatesta (2009, p.04), o anarquismo nasceu da “revolta moral contra as injustiças sociais”.
Homens que, sentindo-se sufocados pela sociedade em que eram obrigados a viver, “sentiram
a dor dos demais como se ela fosse sua própria”.
Eu prefiro deixar de lado a incerta filosofia e ater-me às definições comuns,
que nos dizem que a anarquia é uma forma de vida social em que os homens
vivem como irmãos, sem que nenhum possa oprimir e explorar os demais, e
em que todos os meios para se chegar ao máximo desenvolvimento moral e
material estejam disponíveis para todos. O anarquismo é o método para
realizar a anarquia por meio da liberdade e sem governo, ou seja, sem
organismos autoritários que, pela força, ainda que seja por bons fins,
impõem aos demais sua própria vontade (MALATESTA, 2009, p.04).
Essas ideologias, adaptadas ao contexto dos países latino-americanos, motivaram
manifestações de trabalhadores contra o tipo de governo exploratório instaurado em quase a
totalidade de seu território.
Os países de terceiro mundo, em suas histórias, deflagram a privação da liberdade por
meio do sistema de dominação dos impérios, que alastraram sua hegemonia mediante a força
de suas armas, destruindo culturas, povos, sistemas de vida e sociedades, na ânsia pelo
acúmulo de capital.
O século XX foi uma época de grandes transformações e revoltas populares. As duas
guerras mundiais e a guerra fria fomentaram uma disputa global em que os países de terceiro
mundo se declinaram à mercê dos interesses dos países e dos blocos hegemônicos, tanto da
direita capitalista quanto da esquerda socialista e anarquista.
A luta contra essa dominação imposta fica clara na produção cultural e na perseguição
sofrida pelos artistas. Músicos, atores, dramaturgos, poetas, são várias as manifestações
11
artísticas que se voltam contra a situação de dominados e, a partir da metade do século, um
novo movimento cinematográfico acaba por unir toda a América Latina em prol de sua
libertação e humanização, dando vazão aos ideais pregados pelos socialistas que acreditavam
em uma sociedade igualitária.
Marx e Engels formularam a doutrina do ‘socialismo científico’ que
afirmava que o ideal de uma sociedade igualitária, sem propriedades, era
algo que só não aconteceria, como, à virtude da evolução natural da
economia, tinha de acontecer. O conceito marxista de evolução social surgiu
sob a influência darwiniana formulada em 1859, em A origem das espécies.
O livro de Darwin descrevia a emergência das espécies biológicas como
devidas a um processo de seleção natural que as capacitaria a sobreviver
num ambiente hostil. O processo foi dinâmico, desenvolvendo espécies de
estágios inferiores para superiores, segundo regras determináveis. Essa teoria
foi rapidamente adaptada por estudiosos do comportamento humano, dando
origem a uma escola de ‘sociologia evolucionista’ que descrevia a história
como uma progressão, ‘por estágios’, de formas inferiores para formas
superiores (PIPES, 2002, p.22).
Ao analisar essa história de dominação observam-se também, desde seu início,
manifestações e movimentos contrários às imposições do sistema imperialista. Richard Pipes
(2002, p.20), em seu livro intitulado “O Comunismo”, declara que os pensadores franceses
radicais do século XVIII foram os que “primeiro levaram adiante programas comunistas,
conclamando à abolição de toda riqueza privada com base em que era a causa de toda
desgraça que a humanidade conhecia”.
Alguns teóricos atribuem o início da mudança desse posicionamento de colônia e
neocolônia, sempre ao serviço de blocos hegemônicos, aos reflexos da Grande Depressão de
1929, quando começa a se pensar em um desenvolvimento econômico não mais baseado
apenas em exportações, mas orientado em uma industrialização em função da substituição das
importações.
Outra fonte geradora da necessidade de mudança foi a crise geral do capitalismo,
vivida após a primeira guerra mundial, com a vitória da revolução proletária na Rússia. Os
alicerces do imperialismo foram abalados. A guerra motivou a fuga de europeus para a
América Latina e junto com esses chegavam os ecos das ideologias vigentes na Europa em
defesa do proletariado.
A conexão do movimento libertário com os românticos se produz sobre
vários registros. Há um componente romântico indubitável na realização das
virtudes justiceiras do povo. Ele é a parte sã da sociedade, a que em meio à
miséria tem sabido conservar intacta a exigência de justiça e a capacidade de
luta. Mas igualmente clara será a ruptura: o que tem sabido conservar o povo
12
não é algo voltado para o passado, mas, pelo contrário, sua capacidade de
transformar o presente e construir o futuro. Tocamos aí num ponto
nevrálgico nas diferenças entre anarquistas e marxistas: o referente à
memória do povo e em particular à memória das lutas. Os libertários pensam
seu modo de luta em continuidade direta com o longo processo de gestão do
povo. Os marxistas em troca põem em primeiro plano as rupturas nos modos
de luta que vêm exigidas pelas rupturas introduzidas pelo novo modo de
produção. A continuidade é para os anarquistas não uma mera tática, mas a
fonte de sua estratégia: aquela que pensa a ação política como uma atividade
de articulação das diferentes frentes e modos de luta que o povo mesmo se
dá. Além de implicar na luta todos os que estão sujeitos a opressão enquanto
capazes de resistência e impugnação, desde as crianças e os velhos até as
mulheres e os delinqüentes. É a relação de opressão e a resistência à
cotidianidade o que os libertários estavam pioneiramente revelando ao
valorizar o ponto de vista da transformação social ‘a luta implícita e
informal’, a luta cotidiana, para a qual o marxismo, segundo Castoriadis, tem
conservado uma especial cegueira (BARBERO, 2009, p.43).
A Guerra também acabou por desarmar as burguesias latino-americanas, diminuindo a
importação, o que levou países como a Argentina, o México e o Brasil a iniciar e implementar
mais ativamente uma vida econômica e política.
Com o avanço da industrialização avança também o proletariado e a guerra contra o
imperialismo começa a tornar-se mais evidente e complexa. Desde o fim do século XIX, a
luta dos trabalhadores ecoava em discursos socialistas, comunistas e anarquistas. Mediante
esses discursos, modificavam-se também as relações de força das classes, com o aumento de
manifestações populares que se integravam na luta contra o imperialismo, que se tornou mais
intenso com a criação dos Partidos Comunistas e o fortalecimento do movimento anarquista.
Ainda no início dos anos de 1920, inicia-se uma onde de greves e agitações por todo
território latino-americano. Algumas chegam a abranger milhares de operários que assumem o
papel de forças progressistas no movimento anti-imperialista, influenciados ainda pelos
discursos anarcossindicalistas que apoiavam o desenvolvimento de uma consciência de classe,
sustentada pela reverberação dos ideais da revolução socialista do proletariado russo.
Os anarquistas logo tornaram-se ativos na organização de artesãos e
operários da indústria em toda a América do Sul e Central, e até o começo da
década de 20 a maioria dos sindicatos no México, Brasil, Peru, Chile e
Argentina seguia uma organização geralmente anarcossindicalista; o
prestígio da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) espanhola como
organização revolucionária foi sem dúvida grandemente responsável por
essa situação. Uma das organizações mais fortes e ativas foi a Federación
Obrera Regional Argentina, fundada em 1901, sob inspiração do italiano
Pietro Gori; ela cresceu rapidamente, até aproximadamente um quarto de
milhão de membros, sobrepujando as uniões social-democráticas rivais
(WOODCOCK, 2006. p.210).
13
A luta contra a opressão imperialista fez com que a pequena burguesia reagisse e
lutasse. Ascenderam movimentos de liberação nacional por toda América Latina. De um lado
o desenvolvimento industrial fez com que a burguesia em ascensão visse os imperialistas
estrangeiros como rivais, levando-a a participar ativamente nos movimentos de libertação
nacional. Mas de outro lado, esse novo proletariado consciente de seus direitos tornou-se um
fardo para essas novas indústrias nacionais que surgiam.
Em sociedades industriais, a relação do proprietário com o empregado
tornou-se frágil e volátil, já que o primeiro sentia-se livre para dispensar
trabalhadores sempre que a demanda enfraquecia. Diferenças no modo de
vida tornaram-se cada vez mais evidentes quando os novos ricos alardearam
sua riqueza. Esses fatos levaram a uma crescente hostilidade em relação ao
‘capitalismo’. O socialismo, até então um ideal particularmente atraente para
intelectuais, adquiriu, além de um fundamento teórico, uma base social de
certo segmento da classe trabalhadora (PIPES, 2002, p.24).
Iniciava-se então uma batalha não apenas forjada por armas e munições, mas uma
batalha ideológica em que a produção cultural e os veículos de comunicação que se difundiam
pelo território latino-americano eram utilizados como armamento ideológico na pregação do
modo de vida e do anticomunismo.
Desde o prenúncio do fim da II Guerra Mundial, os ventos políticos
começaram a mudar nos EUA. Com a morte de Roosevelt e a posse de
Truman, em abril de 1945, ocorreu um redirecionamento da política externa
norte-americana. Essas mudanças provocaram o aumento dos conflitos entre
os EUA e a União Soviética, aliada dos norte-americanos e ingleses durante
a guerra. Os reflexos das transformações ocorridas na política externa do
país foram imediatamente irradiados para a sua política doméstica. A
decorrência lógica do fato de os soviéticos passarem a ser considerados
rivais foi a intolerância em relação aos comunistas e a qualquer perspectiva
política considerada, mesmo que remotamente, com algum viés de esquerda.
Os reflexos dessa guinada política fizeram-se sentir rapidamente em
Hollywood. Nesse momento, o anticomunismo ressurge com muita
intensidade no país, pois, com as eleições de 1946, o Partido Republicano,
reconhecidamente de maioria anticomunista, conseguiu hegemonia no
Congresso (VALIN, 2004, p.33).
A pequena burguesia que surgia, ao mesmo tempo em que lutava contra o
imperialismo, começou a buscar nele acordos que garantissem sua independência mas, na
realidade, houve apenas uma substituição dos patrões imperialistas por outros e se manteve a
base de dependência colonial. As influências da Grande Revolução Socialista, que
favoreceram o aparecimento dos Partidos Comunistas e que contribuiu para o nascimento dos
14
movimentos revolucionários na América Latina, tinham agora dois inimigos. Um império
dominador e uma burguesia perdida em meio às necessidades sociais e o avanço capitalista.
Os partidos comunistas dividiam-se então em apoio às manifestações políticas e
grupos progressistas, na busca de aliados contra o jugo imperialista. Aquilo que tinha
começado em meio a perseguições ferozes com o passar do tempo cresceu e se fortaleceu,
ampliando suas fronteiras e envolvendo em seu contexto revolucionário representantes da
intelectualidade local. Ao mesmo tempo surgiam, em muitos países, forças econômicas e
sociais que ainda privilegiavam políticas voltadas à exportação, o que levou o partido a
adequar-se às realidades vivenciadas.
O comunismo revelou-se uma proposta fadada ao fracasso: a cultura política
ocidental militou quanto à crueza de uma ideologia que, embora ocidental na
origem, adquiriu forma em um ambiente não-ocidental. O comunismo
ocidental dissolveu-se na social-democracia antes de se render ao
capitalismo e, então, praticamente saiu de cena (PIPES, 2002, p.133).
Movimentos consolidados, com o passar dos anos começaram a se dissipar devido a
disputas internas e à defesa de interesses particulares. Em meio à Guerra Fria esse contexto se
extingue pela ação radical, de maioria militar, arquitetada juntamente com o governo norte-
americano, que queria garantir a continuidade de sua condição hegemônica sobre as nações do
terceiro mundo. Em cada país essa batalha escreve seus nomes e sua história. Na luta entre um
modelo socializador e libertário contra um sistema capitalista reificador, avançava aquele que
tinha o domínio do capital ou estava subjugado a ele. A miséria era vista como um efeito
colateral necessário ao direito natural à propriedade.
Em princípios de novembro de 1968, Richard Nixon comprovou em voz alta
que a Aliança para o Progresso havia cumprido sete anos de vida e,
entretanto, agravaram-se a desnutrição e a escassez de alimentos na América
Latina. Poucos meses antes, em abril, George W. Ball escrevia em Life:
“Pelo menos durante as próximas décadas, o descontentamento das nações
pobres não significará uma ameaça de destruição do mundo. Por mais
vergonhoso que seja, o mundo tem dividido, durante gerações, dois terços
pobres e um terço rico. Por mais injusto que seja, é limitado o poder dos
países pobres”. Ball encabeçara a delegação dos Estados Unidos na Primeira
Conferência de Comércio e Desenvolvimento em Genebra, e votara contra
nove dos doze princípios gerais aprovados pela conferência, com o objetivo
de aliviar as desvantagens dos países subdesenvolvidos no comércio
internacional (GALEANO, 1982, p.07).
15
Ao traçar um panorama do surgimento do Novo Cine na América Latina faz-se
necessário compreender essa história e os movimentos sociais e políticos que permearam as
obras de seus idealizadores.
Também é necessário levar em conta a história dos festivais de cinema que acabaram
por unir a cinematografia de vários países, mais do que por características de produção, mas
pelo discurso ideológico refletido em suas obras.
A união estabelecida por esses encontros e as inúmeras cartas que os idealizadores
trocaram durante sua formação, no momento em que a indústria cinematográfica norte-
americana fixava-se como modelo de produção com hegemonia na distribuição, foram
imprescindíveis à formação desse movimento.
A situação neocolonial, a disputa entre o socialismo e o capitalismo, os golpes
militares, a perseguição política, o exílio: eram temáticas que permeavam toda produção que
buscava por libertar o homem da sua condição, emancipando-o e humanizando-o mediante o
discurso e as críticas expostas em cada cinematografia.
Os movimentos socialistas e anarquistas que aconteceram na América Latina no início
do século XX, assim como os movimentos artísticos como o neorrealismo italiano, o realismo
alemão e o surrealismo foram influências importantes no desenvolvimento do novo cine
latino-americano.
Apesar dessas influências estéticas, advindas dos movimentos cinematográficos
europeus, o Novo Cine primou por sua ideologia mais do que por uma preocupação com a
linguagem institucionalizada da indústria cinematográfica. Esses festivais internacionais e
cartas trocadas foram imprescindíveis para que os idealizadores do Novo Cine se unissem
como um movimento continental.
Talvez por causa da ditadura brasileira, ou mesmo pela falta de bibliografia em
português sobre o assunto, muitas vezes, quando se fala do Cinema Novo de Glauber Rocha,
Nelson Pereira do Santos ou Carlos Diegues, pouco se fala sobre a participação deste
movimento brasileiro em outro maior que se desenvolveu pela América Latina e Caribe.
As obras que tratam do tema com maior amplitude são poucas e em sua maioria em
língua espanhola. Em língua portuguesa existem apenas algumas, limitadas, na maioria das
vezes, a recortes da história de cada país.
As análises realizadas por seus cineastas - com o passar dos anos e a distância
temporal entre os primeiros escritos e os atuais - resultam em diferentes interpretações
daquelas que esses mesmos cineastas tinham sobre o seu fazer na época de sua concepção.
Dessa forma, o tema aqui exposto busca permear a forma como as ideologias sociais
influenciaram o pensamento e a produção das películas latino-americanas do Novo Cine,
16
apresentar os manifestos que os mesmos protagonizaram, bem como entender sua produção
em meio aos movimentos políticos e as ditaduras militares que se instauraram em quase a
totalidade do território latino-americano
A proposta metodológica para a realização desse trabalho é a historiografia, por
concordar com o pensador Jesús Martin Barbero (2009, p.31):
Historicizar os termos em que se formulam os debates é uma forma de
acesso aos combates, aos conflitos e lutas que atravessam os discursos e as
coisas. Daí que nossa leitura será transversal: mais que perseguir a coerência
de cada concepção, questionará o movimento que a constitui em posição.
A Escola dos Annales e as contribuições de sua terceira geração, conhecida como
história nova são os referenciais metodológicos que sustentarão as argumentações propostas.
Esta escola busca substituir as visões excessivamente políticas e institucionalizadas do
positivismo e do marxismo, por uma perspectiva histórica mais ligada à análise das estruturas
que a compõem.
A história só é história na medida em que não consente nem no discurso
absoluto, nem na singularidade absoluta, na medida em que o seu sentido se
mantém confuso, misturado... A história é essencialmente equívoca, no
sentido de que é virtualmente événementielle e virtualmente estrutural. A
história é na verdade o reino do inexato. Esta descoberta não é inútil;
justifica o historiador. Justifica todas as suas incertezas. O método histórico
só pode ser um método inexato... A história quer ser objetiva e não pode sê-
lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas
contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstituir a distância e a
profundidade da lonjura histórica (LE GOFF, 1990, p.16).
A nova história argumenta que o tempo histórico apresenta ritmos diferentes em seus
acontecimentos. Considera a história pela multiplicidade de fontes e fatores, aproximando-a
das demais Ciências Sociais para melhor entendê-la. Sua terceira geração é também conhecida
como a história das mentalidades.
Estabelece uma história serial mediante as formas de representações coletivas e das
estruturas mentais da sociedade. Seu objetivo é promover a pluridisciplinaridade. Transpor
debates teóricos com base em realizações concretas mediante inquéritos coletivos, com
privilégios a todos os tipos de documentos: pictográficos, iconográficos, cinematográficos,
numéricos, orais.
Um dos principais nomes da terceira geração dos Annales é Jacques Le Goff, que a
esse respeito comenta em seu livro História e Memória:
Em contato com outras ciências sociais, o historiador tende hoje a distinguir
diferentes durações históricas. Existe um renascer do interesse pelo evento,
17
embora seduza mais a perspectiva da longa duração. Esta conduziu alguns
historiadores, tanto através do uso da noção de estrutura quanto mediante o
diálogo com a antropologia, a elaborar a hipótese da existência de
uma história "quase imóvel". Mas pode existir uma história imóvel? E que
relações tem a história com o estruturalismo (ou os estruturalismos)? E não
existirá também um movimento mais amplo de "recusa da história" (LE
GOFF, 1990, p.08)
Essa crítica à história tradicional, bem como à noção do fato histórico provocou
reconhecimento de realidades históricas negligenciadas por muito tempo. Era a história das
representações que nascia junto à história política, econômica, social e cultural. Assumiram
diversas formas mediante a análise das concepções globais da sociedade, das ideologias, das
estruturas mentais comuns a cada sociedade em seu tempo.
A literatura sobre o novo cine tem como característica básica o “retorno”. Os
protagonistas do início de sua trajetória acabaram por lançar obras e entrevistas recentes, nas
quais lançam um novo olhar sobre os fatos que vivenciaram no passado. Essa evolução na
maneira de se pensar história e lançar um novo olhar sobre ela são características da nova
história. Porém, existem cuidados a serem tomados ou, como continua Le Goff (1990, p. 13):
Todos os novos setores da história representam um enriquecimento notável,
desde que sejam evitados dois erros: antes de mais nada, subordinar a
história das representações a outras realidades, as únicas às quais caberia um
status de causas primeiras (realidades materiais, econômicas) – renunciar,
portanto, à falsa problemática da infraestrutura e da superestrutura. Mas
também não privilegiar as novas realidades, não lhes conferir, por sua vez,
um papel exclusivo de motor da história. Uma explicação histórica eficaz
deve reconhecer a existência do simbólico no interior de toda realidade
histórica (incluída a econômica), mas também confrontar as representações
históricas com as realidades que elas representam e que o historiador
apreende mediante outros documentos e métodos – por exemplo, confrontar
a ideologia política com a práxis e os eventos políticos. E toda história deve
ser uma história social.
O início da década de 60 produziu grandes mobilizações populares. A juventude dos
países da América Latina, bem como de outros países de terceiro mundo, se mobilizava contra
o imperialismo e parecia-se viver a consolidação de processos revolucionários. Essa luta
contra as desigualdades sociais e econômicas estavam presentes nas temáticas abordadas pelo
Novo Cine desde as primeiras experiências cinematográficas.
Dessa forma, a pesquisa tem como bases teóricas filmes, ensaios, entrevistas, cartas,
observações, que deram luz ao pensamento, à cultura, à história das pessoas e dos
personagens que compõem o Novo Cine latino-americano.
18
A pesquisa apresenta então a história do Novo Cine, com ênfase na história dos países
que foram seus principais realizadores. No primeiro capítulo aborda-se o Novo Cine no
Brasil. No segundo capítulo, o surgimento do Novo Cine Argentino. O terceiro capítulo trata
da história Cubana. O quarto capítulo apresenta um breve resumo do movimento em outros
países latino-americanos e o quinto capítulo conta a história de como esses pequenos
movimentos nacionais tomaram força em um movimento continental que culminou na
Fundação do Novo Cine latino-americano.
As obras utilizadas para essa leitura do passado são o livro de Eduardo Galeano: As
veias abertas da América Latina, trechos de manifestos, entrevistas dadas por seus
realizadores no início do Novo Cine até os dias de hoje e registros das cartas trocadas durante
os anos que fomentaram esse movimento. O livro ¿Y si fuera uma huella?, Alfredo Guevara,
presidente do Festival del Nuevo Cine Latinoamericano, apresenta um epistolário onde
publica, na íntegra, trechos dessas cartas com informações de todos os envolvidos em seu
processo de criação.
Outra importante fonte de registros são as cópias dos manifestos editadas no livro La
máquina de la Mirada, de Susana Velleggia. Suas considerações, embasadas nas vivências
com seu objeto de estudo e na obra Apuentes sobre el nuevo cine latinoamericano, de
Osvaldo Daicich, lançada em 2004.
Os idealizadores do movimento produziram bibliografia não apenas através de
manifestos, mas com obras literárias profundas, que ajudam a entender um pouco mais seu
pensamento. Ensaios como os de Carlos Diegues, Octavio Getino, Fernando Solanas, Nelson
Pereira dos Santos, Fernando Birri, Tomás Gutierrez Alea, norteiam essa leitura da
historicidade desse movimento cinematográfico.
O novo cinema teve uma produção considerável e a participação ativa de vários países
que, com orçamentos pequenos, recheados de manifestos e ideologias revolucionárias,
realizaram uma filmografia que rompia com os padrões americanos do cinema
entretenimento.
O destaque agora eram as diferentes regiões de cada nação, suas realidades e seus
dilemas. Seus clássicos versam sobre a fragilidade do homem colonizado e exposto a um
sistema capitalista que visa lucro e os separa em castas definidas por seu desenvolvimento
cultural e financeiro.
A proposta é apresentar uma abordagem do movimento do Novo Cine, com bases
teóricas que vão desde o anarquismo de Malatesta, às mediações de Jesús Martin Barbero e à
hibridização de Nestor Garcia Canclini. Essa busca pela "objetividade histórica – objetivo
ambicioso – constrói-se pouco a pouco através de revisões incessantes do trabalho histórico,
19
laboriosas verificações sucessivas e acumulação de verdades parciais" (LE GOFF, 1990,
p.26).
Sob o olhar do pesquisador como observador e da análise das impressões sobre o
movimento com base em sua contemporaneidade, mediante as impressões obtidas também
durante a participação no 32º Festival do Novo Cine Latino-americano em Havana e nas
oficinas, nos grupos de discussão, nas visitas realizadas à FNCL, em meio a livros, filmes e
conversas.
A dissertação encontra-se estruturada em cinco capítulos. O primeiro trata do Cinema
Novo Brasileiro, em especial na figura de Glauber Rocha, seu maior expoente. Filmes como
Deus e o diabo na terra do sol serviram de exemplo para a cinematografia de outros países
latino-americanos.
No segundo capítulo, estuda-se o Novo Cine na Argentina, a importância do trabalho
de Fernando Birri e da Escola de Santa Fé. O Terceiro Cinema Argentino teve no documental
sua mais forte influência e filmes como Tire dié e La hora de los hornos são marcos dessa
estética criada por seus cineastas.
O terceiro capítulo apresenta a história do Novo Cine em Cuba. O desfecho da disputa
entre a direita, capitalista, e a esquerda, socialista e comunista, teve um fim diferente da
maioria dos outros países latino-americanos. A Revolução Cubana, comandada por Fidel
Castro, tirou Cuba das mãos imperialistas norte-americanas e proporcionou à seus cineastas
uma maior abertura para o desenvolvimento cinematográfico.
No capítulo quatro, outros países da América Latina que tiveram movimentos
significativos dentro do movimento do Novo Cine estão focados. Algumas cinematografias
importantes como a Mexicana, que, junto com a cubana, a argentina e a brasileira formam a
grande elite do cinema latino-americano. Também se relata sobre o Grupo Ukamau, da
Bolívia, e sobre o desenvolvimento do cinema chileno, entre outros.
O quinto capítulo aborda a criação da Fundação do Novo Cine latino-americano,
situada em Havana e os motivos que levaram à sua criação, bem como o estabelecimento da
Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, conhecida também como escola
dos Três Mundos, por ter como interesse ser um espaço de união entre a América Latina, Ásia
e África.
20
CAPITULO 1 - O Cinema Novo no Brasil
O Cinema Novo brasileiro talvez possa ter sua melhor explicação na afirmação de seu
maior representante, Glauber Rocha (1939-1981): “Eu sou o cinema novo”.
A análise do discurso revolucionário que está presente em seus filmes, livros,
manifestos e em entrevistas, seu maior legado, repercute seu nome no Brasil e no mundo, e
demonstra os ideais desse movimento cinematográfico brasileiro.
Ao estudar a presença do discurso revolucionário na história do Brasil, percebe-se sua
presença no quilombo de Palmares (1630-1650), em Canudos (1896-1897), na Colônia
Cecília - criada pelos anarquistas italianos no estado do Paraná (1890-1894), e muitos outros
exemplos de ações de revolucionários em território brasileiro.
Quando se atém aos anos que antecederam o Cinema Novo, verifica-se que são ainda
mais fortes os levantes do povo e evidentes os reflexos da Revolução do proletariado, na
Rússia, que aconteceu em 25 de outubro de 1917. Nesse mesmo ano, no Brasil,
principalmente no estado de São Paulo, as manifestações grevistas motivadas por sindicatos
avançaram com firmeza em suas reivindicações.
No ano seguinte à Revolução Russa, no Rio de Janeiro realizou-se um levante armado
do operariado, conclamando uma república socialista, sufocado rapidamente pelo governo. A
proibição da criação de partidos políticos não possibilitava a união e formação de lideranças
que organizassem lutas mais amplas em prol da democracia e da liberdade.
Nesse princípio de século quase a totalidade dos filmes que circulavam no país eram
obras estrangeiras, em sua maioria francesas ou norte-americanas, mas nessa mesma época
começam as produções nacionais voltadas ao mercado.
Hacia 1910 se ruedan los primeros largometrajes de ficción; y en 1912 se
crea en Sao Paulo la “Compañía Cinematográfica Brasileña”, productora de
la mayoría de las películas de este período inicial. Entre estas primeras obras
destaca Os estranguladores (1906) de Antonio Leal que, junto a películas
como O crime da mala, O crime dos Banhados y O crime de Paula Mattos,
forma parte de una curiosa corriente seudonaturalista dedicada a los
crímenes famosos ocurridos en aquellas fechas. También tiene un cierto
interés la etapa musical, desarrollada entre 1908 y 1912, en la cual destaca
Paz e amor (1910) de Alberto Botelho. También se realizan otras películas,
de muy relativo, entre las que pueden citarse: Inocência (1915) de Capellaro,
Un ejemplo regenerador (1919), Perversidade (1920) y Do Rio a Sao Paulo
para casar (1921) de José Medina (TORRES; ESTREMERA, 1973, p.54)1.
1 Em 1910 são rodados os primeiros longa-metragem de ficção; e em 1912 é criada em São Paulo a “Companhia
Cinematográfica Brasileira ”, produtora da maioria dos filmes desse período inicial. Entre as primeiras obras se destacam Os
estranguladores (1906) de Antonio Leal que, junto com outros filmes como O crime da mala, O crime dos Banhados e O
crime de Paula Mattos, é parte de uma curiosa corrente pseudonaturalista dedicada aos crimes famosos ocorridos naquela
época. Também tem um certo interesse a etapa musical desenvolvida entre 1908 e 1912, na qual se destaca Paz e Amor
(1910) de Alberto Botelho. Também se realizam outros filmes de relativo interesse, entre eles podemos citar: Inocência
21
Em 1922, os progressistas militares se uniram às vozes civis e iniciaram manifestações
em defesa da liberdade democrática, mas acabam silenciados, no episódio conhecido na
história do Brasil como “os 18 do forte”. Antes de morrerem, seus últimos gritos foram de:
Viva a revolução!
A indignação da sociedade ao assistir a esse massacre acirrou ainda mais o discurso e
a luta pela democracia. Começaram também os cursos desenvolvidos pelo Partido Comunista
do Brasil, que ensinavam às massas as bases da revolução do proletariado e as marxistas.
A próxima grande tentativa de revolução foi liderada por Luiz Carlos Prestes (1898-
1990), mas não conseguiu atingir os objetivos propostos. Prestes, formado em engenharia
militar, participou ativamente do movimento revolucionário. Conquistava correligionários e
propagava entre eles seu discurso na luta para libertar a pátria do capitalismo.
Em julho de 1924, Prestes comanda um levante, exigindo a criação do governo do
operariado, mas não provoca um grande movimento. Torna-se querido pelas massas, mas a
falta da participação ativa do povo faz com que consiga apenas libertar prisioneiros e quebrar
instrumentos de tortura.
Os filmes realizados nesse período desenvolveram-se em diferentes zonas de
produção, conhecidas como ciclos, cujos mais importantes são três: de Recife, de Campinas e
de Cataguazes. Este último ciclo foi responsável pelo surgimento do cineasta Humberto
Mauro (1897-1983), que na década de trinta dirige suas maiores obras primas, Ganga bruta
(1932), que fala sobre repressão e violência e Favela dos meus amores (1934), tema que seria
continuamente tratado em quase toda a história do cinema brasileiro. Mauro torna-se o
primeiro cineasta a ter uma produção considerada cinemanovista.
Mauro es el primer autor brasileño que consigue, a través del medio
cinematográfico, expresar la realidad nacional de una forma peculiar y
fundamentada en unas bases culturales propias, gracias a una estética
personal, nacida de unas necesidades reales, asimiladora del fenómeno
cinematográfico mundial, y de una modernidad sorprendente; de esto es un
buen ejemplo Ganga bruta, mezcla aparente de muchos estilos pero
perfectamente cohesionada y adecuada a la realidad mostrada (TORRES;
ESTREMERA, 1973, p.56)2
(1915) de Capellaro, Um exemplo regenerador (1921), Perversidade (1920) e Do Rio a São Paulo para casar (1921) de José
Medina. (TORRES, 1973, p.54). Esclarecemos que todas as traduções apresentadas em nota de rodapé foram realizadas pela
autora desta dissertação.
2 Mauro é o primeiro autor brasileiro que consegue, através do meio cinematográfico, expressar a realidade nacional de uma
forma peculiar e fundamentada em bases culturais próprias, graças a uma estética pessoal, nascida de necessidades reais,
assimiladora do fenômeno cinematográfico mundial, e de uma modernidade surpreendente; um bom exemplo disso é Ganga
bruta, mistura de muitos estilos mas perfeitamente coeso e adequado à realidade mostrada (TORRES, 1973, p.56).
22
A partir de 1930 o Brasil entra em recessão devido à queda na exportação do café, seu
principal produto. O cineasta Mario Peixoto (1908-1992) lança o controverso, porém clássico,
filme do cinema brasileiro, Limite (1930). No mesmo ano de sua filmagem sobe ao poder o
presidente Getulio Vargas (1882-1954), que nele permanece até o ano de 1954. Em 1937,
Vargas condena o revolucionário Prestes a 46 anos de prisão. Porém, durante a segunda
guerra mundial, a pressão das forças democráticas exige a libertação de Prestes, que passa a
atuar no senado brasileiro pelo partido comunista.
Em meio a esses acontecimentos o cinema sonoro se desenvolve muito lentamente e
inicia-se o período das chanchadas, que caem no gosto do povo e enchem as salas de cinema.
Mesmo com todo esse êxito comercial, não existe uma instituição que transforme estas
aventuras em uma real indústria cinematográfica.
Em 1947 o Brasil rompe as relações com a União Soviética, ilegaliza o Partido
Comunista do Brasil e lança uma ferrenha campanha contra os comunistas. Porém, ao mesmo
tempo em que se fecha o cerco contra o comunismo, acirra-se a luta pela independência,
liberdade nacional, contra o imperialismo norte-americano e contra o modo de vida capitalista
liberal.
Nesse contexto, a arte era vista pelos intelectuais e artistas como elemento para
conscientizar e mobilizar. O cinema era uma poderosa ferramenta para a revolução, que lutava
contra o domínio do mercado pelo norte e por Hollywood, onde se alternavam as propostas
estéticas e as de conscientização.
As primeiras utilizações do termo Cinema Novo no Brasil acontecem em 1952, a partir
do I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro em abril, e do I Congresso Nacional do Cinema
Brasileiro, em setembro do mesmo ano, no Rio de Janeiro, onde foram discutidas produções
do cinema brasileiro e questões como distribuição, exibição e sindicalização, entre outras.
Nesse ano ainda, um acordo militar assinado com os Estados Unidos
[...] proibiu o Brasil de vender as matérias-primas de valor estratégico -
como o ferro - aos países socialistas. Esta foi uma das causas da trágica
queda do presidente Getúlio Vargas, que desobedeceu a esta imposição
vendendo ferro à Polônia e à Tchecoslováquia, em 1953 e 1954, a preços
muito mais altos do que os que pagavam os Estados Unidos (GALEANO,
1982, p.109)
A desobediência de Vargas e o conflito gerado com os EUA era apenas o começo da
disputa em que o país entraria nos próximos anos contra o imperialismo capitalista. As
produções artísticas refletiam esse momento da história do país.
23
O filme Rio 40 graus (1955), do cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928-), delimita
de vez os contornos do Cinema Novo. Com esse filme Nelson prova que era possível fazer
um cinema barato, condizente com sua realidade social. O cineasta inicia sua busca e
inspiração em livros de escritores brasileiros consagrados. Entre seus principais filmes
encontram-se as adaptações que fez ao cinema das obras do escritor Graciliano Ramos: Vidas
secas (1964), indicado à Palma de Ouro; o episódio “Os Ladrões” do filme Insônia (1980),
feito juntamente com cooperados do Sindicato dos trabalhadores da indústria cinematográfica;
Memórias do Cárcere (1984). Apesar de ter obras significativas no movimento, não foi
considerado seu maior expoente.
Com a renúncia do novo presidente Jânio Quadros, o povo se levanta novamente,
agora liderados no sul por Leonel Brizola (1922-2004), para frustrar o golpe militar e colocar
no poder o vice-presidente João Goulart (1919-1976). Em 1962, quando um ministro tenta
colocar em prática o decreto fatal contra a exportação de ferro, “o embaixador dos Estados
Unidos, Lincoln Gordon, envia a Goulart um telegrama protestando com viva indignação pelo
atentado que seu governo ameaçava cometer contra os interesses de uma empresa norte-
americana” (GALEANO, 1982, p.109).
No mesmo ano de 1962 é fundado o Centro Popular de Cultura da UNE - União
Nacional dos Estudantes, onde intelectuais e artistas se reúnem com estudantes para
construírem juntos os ideais de uma cultura nacional popular e democrática. Incentivavam a
arte popular, sua democratização e o trabalho voltado ao povo. Levavam espetáculos às
associações, sindicatos, fábricas e favelas. Em sua primeira diretoria estava o cineasta Leon
Hirszman (1937-1987), que, entre os projetos, dirigiu o episódio “Pedreira de São Diego”, do
filme Cinco Vezes Favela (1962).
[...] o filme marca a estréia de cinco muito jovens realizadores, todos
ativíssimos no movimento dos cineclubes, alguns com trânsito no
documentário de curta metragem: Joaquim Pedro de Andrade, Miguel
Borges, Carlos Diegues, Marcos Farias e Leon Hirszman. No elenco e em
outras capacidades técnicas e artísticas encontram-se ainda alguns dos
rapazes que têm ajudado a revolucionar o teatro brasileiro: Oduvaldo Viana
Filho, Carlos Estevam, Francisco de Assis, Flávio Migliaccio etc. (VIANY,
1999, p.46).
No início da década de sessenta o Brasil era um cenário efervescente de
transformações sociais, políticas e culturais. Com o governo populista de João Goulart, muito
mais próximo da esquerda, afirmavam-se propostas para realização de reformas agrárias e
trabalhistas, motivadas por ideais progressistas e humanistas.
24
O governo de Goulart planejava abastecer de ferro vários países europeus, tanto
socialistas como capitalistas. Porém, em 31 de março de 1964 o presidente é deposto por um
golpe chefiado por militares. Neste mesmo período, em que embates políticos e ideológicos
aconteciam em nível de governo, trabalhadores rurais abriam o interior do país, porém esse
trabalho não era para conquistarem terra para si.
Os desertos interiores nunca foram acessíveis à população rural. Em proveito
alheio, os trabalhadores foram abrindo o país, a golpes de facão, através das
selvas. A colonização foi uma simples extensão da área latifundiária. Entre
1950 e 1960, 65 latifúndios brasileiros absorveram a quarta parte das novas
terras incorporadas à agricultura (GALEANO, 1982, p.93).
Da mesma forma, as jazidas de ferro, responsáveis pela queda de Jânio Quadros e João
Goulart, já haviam sido cedidas há tempos para multinacionais durante os governos
anteriores, com isenções fiscais que garantiam a elas maiores lucros. Além de perder suas
riquezas minerais, o país não recebia quase nada por isso, em nome da abertura de seu
território e do desenvolvimento regional. E não era apenas nas extrações minerais que o país
perdia; não havia como se defender das políticas de exportação e importação dos países
hegemônicos, como exemplifica Galeano:
Se a colheita do café de 1964 tivesse sido vendida, no mercado norte-
americano, a preços de 1955, o Brasil teria recebido 200 milhões de dólares
a mais. A baixa de um só centavo na cotação do café implica uma perda de
65 milhões de dólares usurpados pelo país consumidor, Estados Unidos, ao
Brasil, país produtor. Porém, em beneficio de quem? Do cidadão que bebe
café? Em julho de 1968, o preço do café brasileiro nos Estados Unidos tinha
baixado 30% em relação a janeiro de 1964. Todavia, o consumidor norte-
americano não pagava mais barato seu café, senão 13% mais caro. Os
intermediários ficaram, pois, entre 1964 e 68, com este 13% e com aquele
30%: ganharam nas duas pontas. No mesmo espaço de tempo, os preços
recebidos pelos produtores brasileiros, por cada saca de café reduziram-se à
metade em 74. Quem são os intermediários? Seis empresas norte-americanas
dispõem de mais da terça parte do café que entra nos Estados Unidos: são as
firmas dominantes em ambos os extremos da operação (GALEANO, 1982,
p.71).
A respeito dessa dependência imperialista e de como era o alvo do pensamento
cinemanovista, Glauber Rocha, no texto Eztetyka da fome (1965), comenta que tanto o Brasil
quanto a América Latina permaneciam colônia e o que diferenciava “o colonialismo de ontem
do atual” era apenas a “forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de
fato, as formas sutis daqueles que também sobre nós armam futuros bote” (ROCHA, 2004,
p.64).
25
Nesse manifesto, Glauber discute as relações entre a tendência do digestivo e as etapas
do ‘miserabilismo’ apregoada ao Cinema Novo brasileiro e observa sobre seu compromisso
com a verdade, ainda que do ponto de vista do diretor, ao apresentar realidades que iam contra
as ditadas pelas indústrias cinematográficas hegemônicas, nas quais prevalecia a estética e o
discurso estadunidense.
De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou,
discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra,
personagens comendo raízes, personagens matando para comer, personagens
fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em
casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o
Cinema Novo com o miserabilismo, hoje tão condenado pelo Governo do
Estado da Guanabara, pela Comissão de Seleção para Festivais do Itamarati,
pela crítica a serviço dos interesses oficiais, pelos produtores e pelo público
– este último não suportando as imagens da própria miséria. Este
miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo,
preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente
rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo: filmes alegres,
cômicos, rápidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais.
Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos
apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de
uma burguesia indefinida e frágil, ou se mesmo os próprios materiais
técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na
própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens
tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem
este tipo de filmes. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância
internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade,
foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de ’30, foi
agora fotografado pelo cinema de ’60; e, se antes era escrito como denúncia
social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios
estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos
(ROCHA, 2004, p.64).
Em contraste com a miséria que assolava o povo, que ansiava pela continuação da
reforma agrária, a revista Time, em uma edição latino-americana do ano de 1967, divulga
informações sobre o oferecimento do governo brasileiro de isenção de impostos e vantagens
que permitiriam aos capitalistas estrangeiros comprar ao preço de “sete centavos o acre”.
O discurso da agência governamental para o desenvolvimento da Amazônia –
SUDAM, estimulava o país a abrir as portas para ao “investimento estrangeiro”. Sustentado
pela falta de recursos para realizar mapeamento, pregavam a entrega do espaço aéreo
amazônico para fotogrametria por parte da aviação americana (GALEANO, 1982, p.97). Na
mesma época o Conselho de Segurança Nacional afirmava:
Causa suspeita o fato de que as áreas ocupadas, ou em vias de ocupação, por
elementos estrangeiros, coincidam com regiões que estão sendo submetidas
a campanhas de esterilização de mulheres brasileiras por estrangeiros”. De
fato, segundo o Correio da Manhã, “mais de vinte missões estrangeiras,
26
principalmente as da Igreja protestante dos Estados Unidos, estão ocupando
a Amazônia, localizando-se nos pontos mais ricos em minerais radiativos,
ouro e diamantes... Empregam em grande escala a esterilização mediante o
método DIU (Dispositivo Intra Uterino) e ensinam inglês aos índios
catequizados (GALEANO, 1982, p.98).
O Brasil não servia apenas por seu potencial extrativista. Era preciso conter a
dominação de seu território, para que não houvesse disputa. Controlar não apenas sua política
e economia, mas seu modo de vida em sociedade.
Após o golpe de 1964, o AI-5 (ato inconstitucional número cinco), em 1968, cerceava
toda liberdade de expressão por meio de perseguição aos intelectuais, aos discursos de
esquerda radical e a qualquer movimentação que protestasse em torno desses discursos. A
vontade do povo foi calada pela perseguição, torturas e mortes. Todo tipo de mobilização que
divergisse da grande proposta capitalista no grande quintal norte-americano deveria ser
silenciado.
Nessa guerra instaurada pelo cinema novo, a religiosidade também fazia parte da
estrutura de algumas construções narrativas, fortemente presentes nas obras de Glauber, como
Deus e o diabo na terra do sol (1964) ou O dragão da maldade contra o santo guerreiro
(1969). O cineasta constrói seus personagens elevando-os de suas rotinas de vida como
subversão a um mundo em ruínas.
Sobre essa estética glauberiana, Nelson Pereira dos Santos assim se expressa:
Glauber rompe con muchas cosas. Su cine en esa época es muy importante
como elemento de transformación. Su importancia aún no ha sido totalmente
analizada dentro de la historia del cine y no solo del cine, sino de la cultura
brasileña. Respetaba la importancia y la presencia de la Revolución Cubana
en el cambio de la vida de América latina. Fue enfático muchas veces en eso
y también decía que Brasil habia escogido el mismo camino antes de Fidel,
un camino muy parecido. La Revolución Cubana vino a apoyar, a acreditar
que el camino de los brasileños, de los intelectuales, de la cultura brasileña,
era correcto, en el sentido de la liberación de nuestro pueblo (apud
DAICICH, 2004, p.46)3.
A primeira tarefa então era livrar-se da cultura que vinha de Hollywood e ditava o
modo de vida norte-americano mediante a cenarização informativa e crítica da realidade
brasileira e a reivindicação de uma expressão da cultura popular autêntica.
3 Glauber rompe com muitas coisas. Seu cinema nessa época é muito importante como elemento de transformação. Sua
importância ainda não foi totalmente analisada dentro da história do cinema e não só do cinema, mas da cultura brasileira.
Respeitava a importância e a presença da Revolução Cubana na mudança do modo de vida na América Latina. Foi enfático
muitas vezes com isso e também dizia que o Brasil havia escolhido o mesmo caminho antes de Fidel, um caminho muito
parecido. A revolução Cubana veio a apoiar, a acreditar que o caminho dos brasileiros, dos intelectuais e da cultura brasileira
era correto, no sentido da libertação de nosso povo (DAICICH, 2004, p.46).
27
O cinema tornou-se uma arma na guerra contra a intensa aculturação, em uma
proposta que buscava enraizar os traços míticos e populares de um povo que se paralisava
frente à produção cinematográfica norte-americana, absorvendo seus costumes e tradições
importadas em detrimento de sua própria cultura.
Muito mais próximos econômica e culturalmente dos Estados Unidos do que
da Europa, os nossos espectadores têm uma imagem da vida através do
cinema americano. Quando um cidadão brasileiro pensa em fazer seu filme,
ele pensa em fazer um filme “à americana”. E é por isso que o espectador
brasileiro de um filme brasileiro exige, em primeira instância, um filme
“brasileiro à americana”. Se o filme por ser nacional não é americano,
decepciona. O espectador condicionado impõe uma ditadura artística a priori
ao filme nacional: não aceita a imagem do Brasil vista por cineastas
brasileiros porque ela não corresponde a um mundo tecnicamente
desenvolvido e moralmente ideal como se vê nos filmes de Hollywood.
Assim, não é mistério quando um filme brasileiro faz sucesso popular: todos
os filmes brasileiros que fazem sucesso são aqueles que, mesmo abordando
temas nacionais, o fazem utilizando uma técnica e uma arte imitadas do
americano (ROCHA, 2004, p.128).
Esta dependência econômica e política levavam o povo brasileiro a uma fragilidade
filosófica e não proporcionava o reconhecimento de suas próprias e diversificadas realidades
culturais. A exposição dos modos de vida, costumes, tradições e do pensamento crítico
imperialista eram impostos de forma tão natural e generalizada que deixou a sociedade
impotente e até mesmo inconsciente do processo em que estava inserida.
No Brasil, consolidava-se uma estrutura capitalista que exaltava as contradições entre
o mundo agrário, das pequenas cidades interioranas, responsáveis pela maior parte da
população brasileira, e o das grandes metrópoles, onde produções se organizavam mediante a
aliança entre autores ainda imaturos e blocos capitalistas, uma pequena burguesia ansiosa pela
superação provinciana que, em sua maioria, sonhava com os prêmios dos grandes festivais
mundiais e somava-se a grupos financeiros interessados em mecenato, baseando essas
produções nos moldes norte-americanos ou europeus.
Não existia formação técnica, muito menos produções suficientes para uma prática
ininterrupta e evolutiva de um aspirante a realizador. Nesse processo, os que menos se
preocupavam eram aqueles que buscavam nessa profissão apenas uma possibilidade de
enriquecimento e de êxito profissional e pouco se interessavam pelo sentido ideológico do
filme ou por sua significação cultural.
Se na Europa e nos Estados Unidos ainda existiam exceções e diretores dotados de
inteligência, cultura e sensibilidade, no Brasil estas qualidades soavam como loucura,
irresponsabilidade e comunismo.
28
O cinema, inserido no processo cultural, deveria ser a última instância de linguagem
de uma civilização, mas de qual civilização? Somavam-se contradições de um país que vivia
as dicotomias de grandes centros e do interior.
Enquanto a América Latina vivenciava e chorava suas misérias, o observador
estrangeiro enxergava nessa realidade trágica apenas um elemento formal. Dessa forma, nem
o latino-americano comunicava sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem
civilizado compreendia de verdade a grande miséria latino-americana.
O surgimento do Cinema Novo – a mudança de qualidade da produção
cinematográfica brasileira – não ocorreu no vácuo, porém, nem é um
fenômeno de difícil explicação. Decorre, em primeiro lugar, da própria
transformação radical pela qual vem passando o cinema, nos últimos anos,
em plano mundial (VIANY, 1999, p.147).
Seus autores compreendiam que os embargos seriam eliminados, não apenas pela
elaboração técnica de programas, mas por uma cultura da fome, da miséria, da violência que,
apresentando suas estruturas, supera-as, e joga por terra toda tradição da piedade redentora
colonialista, que nos tornava mendicantes, dentro de uma política mistificada e sustentada por
mentiras.
El cinema novo admite haber logrado alcanzar la verdadera comunicación,
pero confesando esto, se libera la certeza comunicativa del “populismo”; sin
embargo, se trata de una afirmación engañadora porque la profundidad del
populismo cultiva sólo los “valores culturales” de una sociedad
subdesarrollada. Estos “valores” no valen nada; nuestra cultura, producto de
una incapacidad artesanal, de la pereza, del analfabetismo, de la impotente
política de un inmovilismo social, es una “cultura año cero”. ¡Fuego a las
bibliotecas, entonces! (ROCHA, 1969).4
Carlos Diegues (1940-), depois de sua experiência com Cinco Vezes Favela, acaba por
tornar-se um dos nomes significativos do movimento e entre suas principais crenças trata a
questão dos mitos do modernismo e suas impressões. Entre suas afirmativas, garante que não
era sinônimo de modernidade apenas realizar uma boa produção cinematográfica, mas que
esta modernidade fez com que o cinema se adequasse ao seu tempo, e só havia uma forma de
realizá-la: mediante o estreito envolvimento com os problemas sociais e com as realidades
sociais de seu povo.
4 O cinema novo admite haver falhado em alcançar a verdadeira comunicação, porém, confessando isso, se liberta da certeza
comunicativa do ‘populismo’; entretanto, trata-se de uma afirmação enganadora porque a profundidade do populismo cultiva
apenas os ‘valores populares’ de uma sociedade subdesenvolvida. Estes "valores" não valem nada; a nossa cultura, devido a
uma escala de incapacidade, preguiça, analfabetismo, sem poder político, imobilidade social, é uma "cultura de ano zero".
Fogo nas bibliotecas, então!
29
Esto quiere decir que no creo en un cine que no sea político, aunque no
llamo político al cine panfletario, ni al discursivo, sino al cine de
participación en el sentido de que esté comprometido con las corrientes de
opinión y con el pensamiento del mundo moderno. Una vez más, creo que el
cine subdesarrollado puede estar al frente, a la vanguardia de ese cine
político porque es, justamente, el cine de los pueblos oprimidos del mundo
entero y, por lo tanto, el cine más apto para hablar de la tragedia, del hambre,
del subdesarrollo, de los astronautas en el espacio exterior y de la miseria en
los países inferiorizados. En mis películas pretendo justamente - en la
medida de lo posible - hablar siempre de ese gran conflicto, de esa gran
contradicción del mundo moderno que es la distancia enorme que existe
entre los pueblos y las naciones del hemisferio sur y del hemisferio norte, o
dicho con otras palabras: de los pueblos que ya nacieron para la historia y de
aquellos que aún están al margen de ella. Creo, también que ya está superada
la fase del cine nacionalista en el sentido pequeño burgués del término, es
decir, del cine de glorificación o exaltación de las causas nacionales. Creo,
por ejemplo, que hoy día el Brasil es un país “devuelto” a la realidad
latinoamericana y que, por lo tanto, necesita más que nunca de un cine
integrado, participando de toda verdad latinoamericana que, a su vez, es una
consecuencia o un reflejo de toda tragedia mundial (DIEGUES, 1967).5
Dessa forma, o Cinema Novo, como arma ideológica, preocupava-se em estampar toda
fome, toda miséria, toda discrepância de um país que mesclava sua modernidade nos grandes
centros com as realidades do povo oprimido no interior, onde a falta de infraestrutura e o
abandono criavam um homem sem as mesmas perspectivas de desenvolvimento intelectual e
econômico. E era exatamente esse tipo de homem que estava sentado diante das telas dos
cinemas interioranos, sonhando com um estilo de vida que nunca se encaixaria em sua
realidade.
Esse Novo Cine, condizente com a realidade do povo brasileiro, convidava-o a pensar
com ele, a não se prostrar diante das temáticas, da capacidade operacional e tecnológica do
primeiro mundo, mas de entender que, mesmo não tendo essa mesma capacidade, os temas
tratados por ele eram importantes para o desenvolvimento intelectual e a compreensão de seu
papel social. Ou como o cineasta Glauber Rocha analisava, uma alternativa à barbárie
resultante dos ideais imperialistas.
5 Isso significa que eu não acredito em um filme que não seja político, embora não chame de político o cinema de
propaganda, nem ao discursivo, mas ao cinema subdesenvolvido, no sentido de que esse é comprometido com as correntes de
opinião e com o pensamento do mundo moderno. Novamente, acredito que o cinema subdesenvolvido pode estar à frente, na
vanguarda desse cine político porque é, justamente, o cine do povo oprimido do mundo inteiro e, portanto, o cine mais apto a
falar da tragédia, da fome, do subdesenvolvimento, dos astronautas no espaço exterior e da miséria dos países inferiorizados.
Em meus filmes pretendo justamente, na medida do possível – falar sempre desse grande conflito, dessa grande contradição
do mundo moderno que é a distância enorme que existe entre os povos e as nações do hemisfério sul e do hemisfério norte,
ou, com outras palavras: dos povos que já nasceram para a história e daqueles que ainda estão à margem dela. Creio também,
que está superada a fase do cinema nacionalista no sentido pequeno burguês do termo, ou seja, de um cinema que glorificasse
ou exaltasse as causas nacionais. Acredito, por exemplo, que hoje em dia o Brasil é um país “devolvido”
à realidade latino-americana e que, portanto, necessita mais do que nunca de um cinema integrado, participando de toda
verdade latino-americana que, por sua vez, é uma consequência do reflexo de toda a tragédia mundial.
30
Eu não sou crítico, acho que tenho uma contribuição a dar à sociedade
brasileira, mas meu estilo de vida não é uma coisa tipo grã-fino paulista ou
playboy carioca, um tipo de malandragem populista. Como não transo nessa
área, fico desesperado. Tive vontade de pegar o avião e ir-me embora.
Aquela frase do Figueiredo dizendo que deixava o Brasil e ia embora me
chocou muito, um efeito psicológico. Se ele está falando isso é porque deve
desejar. Então eu já quero ir-me embora para algum lugar, com medo de que
subitamente o Brasil não dê certo, as pessoas não vão conseguir encontrar o
caminho da luz, vão acreditar que o humanismo acabou, só vai existir
mesmo a violência, o mal, a fofoca, o baixo nível (ROCHA apud
CAETANO, 1997, p.85)
E foram essas as predições que Glauber apresentou como resultante da aceitação
incondicional dos padrões hollywoodianos. Quando se assiste às gravações das poucas
edições de seu programa Abertura (1979), vê-se o desespero do cineasta em fazer-se
compreender pela maioria, da mesma forma como o Cinema Novo buscou essa compreensão
de seu público, ao entender que suas produções não eram tão bonitas, nem tinham grandes
investimentos em equipamentos e divulgação, mas apresentavam análises que refletiam a
realidade brasileira e latino-americana.
E como não havia formas de copiar todo o investimento realizado por essas indústrias
imperialistas de entretenimento, era imprescindível realizar sua cinematografia com
características também únicas de produção, com uma linguagem específica que representasse
as produções que nasciam sob o nome de Cinema Novo.
31
CAPITULO 2 – O Terceiro Cine Argentino.
A revolução do proletariado na Rússia também foi estopim para muitas manifestações
na Argentina. Ela serviu para a ascensão impetuosa do movimento operário e para a
realização de paradas, comícios e manifestações culturais. Por todo país ecoavam os discursos
em homenagem aos russos empreitados na Revolução.
O partido reformista burguês chegou ao poder na Argentina em 1916, mas, apesar das
muitas promessas que fez, não realizou nenhuma reforma democrática significativa, além da
violência truculenta com que suas tropas e a polícia desmontavam qualquer tipo de
manifestação popular.
O Partido Socialista Argentino rachou durante os anos da Primeira Guerra Mundial.
Uma ala revolucionária buscava desmascarar a política chauvinista que realizavam os líderes
do Partido, o que os levou a serem expulsos em 1918, quando formaram o Partido Socialista
Internacional, que dois anos depois passou a denominar-se Partido Comunista.
As repressões continuavam e em 1918 houve greve dos metalúrgicos, que foram
brutalmente reprimidos. O cortejo fúnebre dos mortos nessa manifestação acabou também
alvo das tropas: a cerimônia foi metralhada impiedosamente e os sindicatos foram devastados.
Essas ações de repressão geraram um protesto que, no início de 1919, resultou em uma greve
geral que se estendeu por diversas regiões do país e levou muitos trabalhadores revoltados a
invadir lojas de armamentos.
As lideranças anarcossindicalistas, que atuavam no país há mais de uma década e
tinham histórico de campanhas grevistas, negociavam junto às autoridades o cessar das mortes
e da greve, mas a maioria dos operários rebelados não aceitavam retornar ao trabalho e
sentiram-se traídos.
De 1902 a 1909, a FORA6 iniciou uma intensa campanha de greves gerais
contra os empregadores e contra a legislação antitrabalhista. Perto do fim
desse período a situação tornou-se muito difícil em Buenos Aires, com a
brutalidade das autoridades e a militância dos operários incitando-se cada
qual a um grande clímax, até que, no "Maio de 1909", uma gigantesca
marcha de protesto percorreu as ruas de Buenos Aires, sendo dissolvida pela
polícia, responsável por inúmeras baixas entre os manifestantes. Em
retaliação, um anarquista polonês matou o coronel Falcon, chefe de polícia
de Buenos Aires, a quem se atribuía a culpa pela morte de vários
sindicalistas. Depois disso, uma rigorosa lei antianarquista foi aprovada, mas
a FORA continuou sendo uma organização numerosa e influente até 1927,
quando finalmente se juntou com a UGT socialista, transformando-se na
Confederação Geral Operária e abandonando rapidamente as antigas
tendências anarcossindicalistas (WOODCOCK, 2006, p.210).
6 Federación Obrera Regional Argentina
32
Declarou-se Estado de Guerra no país. Casas foram invadidas. Inocentes mortos. Em
torno de quatro mil operários assassinados. As manifestações culturais e a imprensa voltam-se
para o discurso revolucionário que conclama a ditadura do proletariado.
As ações repressoras serviram apenas como gatilho para um engajamento ainda maior
na revolução. Pouco tempo depois, portuários e operários das indústrias de costuras entraram
em greve. Logo se instauraram greves por todo país. Operários petrolíferos, metalúrgicos,
agrícolas e ferroviários se juntaram em um movimento que tomou conta de todo o país.
Juntaram-se também a esse movimento os estudantes, que começaram a clamar por
uma reforma universitária. Não demorou muito para as lideranças estudantis aderirem ao
proletariado revolucionário. Nas reuniões e comícios estudantis era clara a simpatia pelo
discurso da Revolução Russa. Era preciso silenciar essas manifestações e para isso se instala o
terror e implanta-se o medo, como alternativa mais fácil para se calar aqueles que
protestassem contra a dominação sofrida.
[...] na Argentina não se fuzila: seqüestra-se. As vítimas desaparecem. Os
exércitos invisíveis da noite realizam a tarefa. Não há cadáveres, não há
responsáveis. Assim, a matança - sempre oficiosa, nunca oficial - realiza-se
com a maior impunidade. Assim é irradiada com mais potência a angústia
coletiva. Ninguém presta contas, ninguém oferece explicações. Cada crime é
uma dolorosa incerteza para os seres próximos à vítima e é também uma
advertência para todos os demais. O terrorismo de Estado se propõe a
paralisar, pelo medo, a população (GALEANO, 1982, p.199).
Manifestar poderia ter um preço muito mais caro do que a própria vida. Todos corriam
perigo. A estratégia eficaz garantiu que, mesmo sob protesto, a dominação fosse mantida e as
reações contrárias fossem caladas.
Nesse contexto, o cine militante se assume como um instrumento, como o
complemento de apoio à política. Dá margem à diversidade de objetivos que procuram
contrainformar, desenvolver mais altos níveis de consciência, agitar. O que definirá um filme
como militante e revolucionário não são apenas as ideologias e os propósitos de seu produtor
e realizador, mas a correspondência entre as ideias e as teorias revolucionárias válidas em
determinados contextos e a própria prática do filme com um destinatário real.
Sua distribuição acontecia por meio das organizações estudantis e de sindicatos. Era a
proposta não apenas de uma nova linha de produção, mas também de novos termos para
circulação.
As universidades nacionais, ao alcançarem o apogeu, estavam abertas a todas as
classes, o que permitiu que os filhos dos trabalhadores cursassem nível superior. As escolas
33
universitárias de cinema eram reservatórios de novos realizadores onde se destacava a Escola
de Cinema da universidade Nacional do litoral, dirigida pelo cineasta Fernando Birri (1925-),
diretor do filme Tire dié (1958), que transcendia os ideais de um novo cine latino-americano.
O filme conta a história de crianças que se arriscavam próximo à estrada de ferro,
pedindo para que os passageiros do trem lhes atirassem dinheiro. Um verdadeiro retrato da
situação de miséria em que se encontravam muitos argentinos no fim da década de sessenta.
O Instituto de Cinematografia de Santa Fé, ou Escola Documental de Santa Fé, tem
sua sede dentro da Universidade Nacional do Litoral e foi fundado no dia 19 de dezembro de
1956. Considerado a primeira escola de cinema na América Latina, demonstrou desde sua
fundação características únicas na forma de produção e métodos de ensino, desde a seleção
dos temas, como a construção do conteúdo social e crítico, com estímulo à participação, tanto
da comunidade acadêmica quanto da cidade de Santa Fé.
Atravessou conjunturas nacionais que foram do autoritarismo à abertura política.
Propôs um método de formação mediante a união da teoria e da prática. Tinha como objetivo
realizar filmes a partir do conhecimento das realidades vividas na Argentina. Buscava um
cinema alternativo aos filmes comerciais, mas também buscava não se aproximar dos filmes
intelectuais para a elite estudada.
Seu intuito era realizar um cinema com as qualidades artísticas voltadas a um público
popular, contrapondo-se ao pragmatismo das produções comerciais e ao hermetismo do
cinema experimental, pois os dois serviam apenas a uma cultura burguesa colonial em
decadência. Tinham objetivos centrais ligados à realidade popular Argentina.
Além dessas, outras escolas foram criadas, como a Escola de Cinema da Universidade
Nacional de La Plata, o Centro de Experimentação e Realização Cinematográfica do Instituto
Nacional de Cinema e a Escola de Cinema da Universidade Nacional de Córdoba.
Era nesses lugares que docentes e discentes debatiam sobre as tendências e ideologias
que os uniam ou separavam diante, novamente, da dicotomia entre um cinema engajado com
a sociedade ou um cinema compromissado com os interesses do mercado.
Esses engajados, independentes ou sociais, uniam-se em grupos. Os que tiveram maior
destaque foram o Grupo Cine Liberación e o grupo Cine de la Base. O primeiro vinculado ao
peronismo e, o segundo, ao socialismo.
A proposta não seguia os padrões do cinema dominante estrangeiro, nem os padrões
do cinema local dominado argentino. Ao contrário, era caracterizada por uma militância que
buscava coerência entre suas convicções ideológicas e sua produção.
Esse modelo cinematográfico categorizava as possibilidades do cinema autor, discutia
suas características e o essencial era que, no momento, todos estavam cheios de perguntas.
34
Então, não se tratava apenas de repetir a experiência neorrealista, ou surrealista, ou ainda a
experiência soviética.
A ideia não era copiar modelos pré-estabelecidos, mas provar que era possível
assimilar toda essa experiência vital como atitude. Em uma colônia subdesenvolvida, temas
como política alimentavam as discussões nos espaços alternativos de exibição.
O Cine de La Base e o Cine Liberación tinham objetivos políticos bem marcados, mas
seus ideais poderiam cair por terra, devido a questões culturais muito mais profundas e
arraigadas na sociedade. Não havia como se chegar à base se a maioria dos frequentadores
vinham da classe média e as classes populares não iam ao cinema.
Tornou-se então uma preocupação maior deste grupo projetar filmes em vilarejos,
sindicatos e setores populares, concebendo-o então muito mais como um grupo de
distribuição.
No início dos anos sessenta, fracassou o intento da construção de um cinema autoral
que competisse nas salas tradicionais de cinema com as produções estrangeiras que
dominavam os circuitos de distribuição, o que levou diretores novos e veteranos a praticarem
suas estratégias estéticas voltadas aos cine clubes e a uma atividade amadora, pois seus
projetos não estavam em conformidade com a indústria cinematográfica hegemônica.
No fim dos anos sessenta, uma nova geração de cineastas floresceu, formada pelos
cineclubistas, conscientes do fracasso das propostas de um cinema emancipador e
testemunhas da dominação do Cinema Novo brasileiro pela ditadura.
Conjugavam uma tomada de consciência sobre a impossibilidade de um cine político
comercial. Dessa forma alguns cineastas começaram a filmar de forma testemunhal, como
aconteceu no filme La hora de los hornos, de Fernando Solanas e Octávio Gertino (1968).
A primeira declaração do grupo Cine Liberación acompanhou as primeiras
apresentações da película La hora de los hornos.
El pueblo de un país neocolonizado como el nuestro, no es dueño de la tierra
que pisa, ni de las ideas que lo envuelven; no es suya la cultura dominante, al
contrario: la padece. Sólo posee su conciencia nacional, su capacidad de
subversión. La rebelión en su mayor manifestación de cultura. El único papel
válido que cabe al intelectual, al artista, en su incorporación a esa rebelión
testimoniándola y profundizándola (VELLEGGIA, 2007, p.271).7
7 O povo de um país neocolonizado como o nosso não é dono da terra que pisa, nem das ideologias que o envolvem, não é
sua a cultura dominante, ao contrário: ele a padece. Apenas repousa sobre a sua consciência nacional, por sua capacidade de
subversão. A rebelião é sua maior manifestação de cultura. O único papel válido que cabe ao intelectual ou ao artista em sua
incorporação a essa rebelião é testemunhá-la e aprofundar-se nela (VELLEGGIA, 2007, p.271).
35
Dispostos a uma produção coletiva e comprometida com conflitos sociais, esses
ativistas buscavam iludir a intervenção da censura e da polícia. Esse trabalho clandestino foi o
início da formação do grupo Cine Liberación, responsável pela organização de circuitos
alternativos de distribuição em organizações estudantis, trabalhistas, igrejas e propriedades
particulares. Dessa vez, tratava-se de um projeto sociopolítico e com perspectivas globais.
Surge quase como uma necessidade pessoal de realizar uma autobiografia, envolvida
em seu contexto social, na qual apareciam indagações sobre a situação em que se
encontravam e como fazer algo que estava quase proibido. Segundo Octavio Getino, não
foram eles que inventaram La hora de los hornos, mas uma realidade política, social e
histórica que vivia o país. Era necessário existir produções que escapassem dos laços
institucionais da ditadura.
En consecuencia Pino Solanas y yo nos preguntamos: ¿Que hacemos?
Hagamos algo totalmente distinto, pero hagamos lo que realmente sentimos.
Además sabíamos que si no lo hacíamos a esa edad, en que éramos jóvenes,
no lo íbamos a hacer nunca. Y fue allí que en principio era sobre los caminos
de la liberación en la Argentina, una abstracción muy grande, pero la
desarrollamos a través del propio proceso que nos llevó dos años... La
argentina de esos años era un desastre. Los años 65 – cuando empezamos a
hacer esto – y 66 eran años donde todavía a primera vista la sociedad
argentina no daba para mucho, incluso cuando vino el golpe militar de
Ongania parte del sindicalismo, si no lo aplaudió, se puso de su lado,
pensando que se podía desarrollar una política nacional. Sin embargo,
nosotros percibíamos que detrás de esas apariencias había otra situación de
fondo que no se explicitaba del todo y que daba pie para producir este tipo
de estudio de la situación argentina que nos obligaba a trabajar
simultáneamente en varios campos. Significaba hacer una cosa distinta
frente a un pensamiento dominante en el campo de la cinematografía que
suponía que lo único posible era hacer películas para las salas de cine, de
acuerdo a las leyes vigentes, a lo que imponían los sindicatos de la industria
etc. (DAICICH, 2004, p.136).8
O principal problema que todos percebiam era metodológico e se indagavam como
haveriam de voltar a cruzar as relações com o cinema latino-americano. A ditadura que se
instaurou na Argentina em junho de 1966 aspirava assegurar a ordem socioeconômica das
oligarquias financeiras.
8 Em consequência, Pino Solanas e eu nos perguntamos o que fazer. Façamos algo totalmente diferente, mas façamos o que
realmente sentimos. Além disso, sabíamos que se não fizéssemos naquele tempo em que éramos jovens, não iríamos fazer
nunca. E foi ali o princípio, sobre os caminhos para a libertação da Argentina, uma abstração bem grande, porém a
desenvolvemos através do próprio processo que nos levou dois anos... A Argentina nesses anos era um desastre. Os anos de
65 - quando começamos a fazer isso - e 66 eram anos em que, todavia, à primeira vista, a sociedade argentina não se
importava muito, inclusive quando veio o golpe militar de Ongania, parte do sindicalismo, se não aplaudiu, se pôs ao seu
lado, pensando que poderiam desenvolver uma política nacional. Percebíamos que por detrás dessa aparência havia outra
situação de fundo que não se explicava no todo e que dava pé para produzir esse estudo da situação argentina que nos
obrigava a trabalhar simultaneamente em vários campos. Significava fazer uma coisa distinta frente a um pensamento
dominante no campo da cinematografia, que supunha que o único possível era fazer filme para as salas de cinema de acordo
com as leis vigentes, que nos impunham os sindicatos da indústria etc. (DAICICH, 2004, p.136).
36
Exercia uma política econômica que reduziu o nível de vida das camadas mais
populares da sociedade e provocou o empobrecimento da classe média. Empreendeu também
uma política de repressão ideológica que tinha como característica as severas restrições ao
movimento dos trabalhadores, intervindo nas instituições acadêmicas em uma ação
moralizante, que tinha na censura cinematográfica uma de suas mais fiéis representantes.
Em 1967, no cinema argentino viveu-se uma espécie de circuito de distribuição
formado por organizações estudantis, políticas e sindicais. Não adiantava apenas propor uma
nova estética ou novas medidas de produção. Era necessário ter em mente novas
possibilidades de distribuição.
O Cine Liberación, encabeçado por Fernando Solanas e Octavio Getino, vinculava as
exibições a um trabalho político e à militância de esquerda, destinados a mobilizar e
conscientizar. O conceito de cine militante aos poucos cede lugar ao de Cine Guerrilla. O
principal ensaio ou manifesto foi Hacia un Tercer Cine e levou à nomes como Tercer Cine,
Cine revolucionário, Cine Militante e outros.
¿Era posible superar esa situación? ¿Cómo abordar un cine de
descolonización si sus costos ascendían a varios millones de dólares y los
canales de distribución y exhibición se hallaban en manos del enemigo?
¿Cómo asegurar la continuidad de trabajo? ¿Cómo llegar con este cine al
pueblo? ¿Cómo vencer la represión y la censura impuestas por el sistema?
Las interrogantes que podrían multiplicarse en todas las direcciones,
conducían y todavía conducen a muchos al escepticismo o a las coartadas.
“No puede existir un cine revolucionario antes de la revolución”, “el cine
revolucionario sólo ha sido posible en países liberados”, “sin el respaldo del
poder político revolucionario resultan imposibles un cine o un arte de la
revolución”. El equívoco nacía del hecho de seguir abordando la realidad y
el cine a través de la misma óptica con que se manejaba la burguesía. No se
planteavam otros modelos de producción, distribución y exhibición que no
fuesem los proporcionados por el cine americano porque había llegado aún a
través del cine a una diferenciación neta de la ideología y la política
burguesas (VELLEGIA, 2007, p.272).9
Antes de um estilo, o método da produção cinematográfica revolucionária era uma
atitude moral. Em resumo, não se tratava de fazer cine neorrealista na Argentina, mas fazer
entender e sentir até que ponto era necessário que a arte cinematográfica, em virtude de seus
próprios meios expressivos, se entrelaçasse com a realidade das imagens do real que acontecia
9 Era possível superar essa situação? Como abordar um cinema de descolonização se os seus custos ascendiam a vários
milhões de dólares e os canais de distribuição e exibição se encontravam nas mãos dos inimigos? Como assegurar a
continuidade do trabalho? Como chegar com esse cinema ao povo? Como vencer a repressão e a censura impostas pelo
sistema? As interrogações poderiam multiplicar-se em todas as direções, porém conduziam e conduzem a muitos para uma
atitude cética e desculpas. “Não pode existir um cinema revolucionário antes da revolução”, “sem o apoio do poder político
revolucionário é impossível um cinema e uma arte de revolução”. Esse equívoco nascia do fato de se continuar pensando a
realidade do cinema pela mesma ótica burguesa. Não se planejavam outros modelos de produção, distribuição e exibição que
não fossem os proporcionados pelo cinema americano, por que havia chegado, mesmo através do cinema, a uma
diferenciação entre a produção ideológica e a das políticas burguesas (VELLEGIA, 2007, p.272).
37
sob os olhos daqueles que a vivenciavam, debaixo de seus objetivos e até que ponto este
realismo, a realidade dessas imagens, funcionavam como reflexo de uma mesma região, de
uma mesma nação. A esse respeito o cineasta Fernando Birri (2004, p.42) afirma:
La idea era hacer un cine que no es programado. Nuestra origen, nuestros
trabajos anteriores se juntan para seguir con más fuerza. Lo importante es
que todas nuestras cinematografias son parte de nuestra realidad
sociocultural. Por eso son parecidas, porque la temática no es diferente, a
decir que es un movimiento continental. No está preparado, no hay un
programa, vamos a hacer películas así de esta forma, eso viene de las bases,
viene de nuestras orígenes. 10
Um dos clássicos do novo cine argentino era um projeto de produção de uma ideia
que, a princípio, era sobre los camiños de la liberación en la Argentina e que mudou durante
o percurso de sua produção. Sobre La hora de los hornos (1968), Getino comenta em
entrevista a Daicich (2004, p.136):
Recorrimos el país, hablamos con militantes, intelectuales, dirigentes
sindicales, políticos y demás y fuimos cambiando, porque lo que cambia a
uno no sólo sentarse en la computadora y escribir un guión cuando se trata
de este tipo de trabajo, sino el contacto con la realidad para percibir lo que
está pasando y devolver una imagen a esa realidad, de alguna manera re-
procesada por nuestra visión, y que aporte a la misma.11
Em La hora de los hornos, houve a manifestação da contra-história como estratégia
discursiva, no intuito de destruir a memória das oligarquias militares em prol de sua reposição
pela memória do proletariado peronista e das massas populares representadas como o sujeito
histórico. O grupo cercou-se dos setores que vieram do peronismo em busca de gestionamento
de uma revolução nacional e social.
O ano de 1970 é o primeiro ano em que as experiências de exibição em circuito
alternativo começam a alcançar resultados significativos. Em março de 1971, avançam as
distinções entre o Terceiro Cine e o Cine Militante, com o segundo se assumindo como
hipotético dentro de um processo em desenvolvimento.
No entanto, o cinema político social não tinha as mesmas aspirações que o industrial.
Não havia sido concebido com estratégias de marketing. Seu principal objetivo estava no
10 A ideia era fazer um cinema não programado. Nossa origem, nossos trabalhos anteriores se juntavam para seguir com mais
força. O importante era que todas nossas cinematografias faziam parte de nossa realidade sociocultural. Por isso são
parecidas, porque a temática não é diferente. Dessa forma, podemos dizer que é um movimento continental. Não está
preparado, não existe um programa, faremos filmes assim dessa forma, isso vem das bases, vem de nossas origens (BIRRI).
11 Percorremos o país, falamos com militantes, intelectuais, dirigentes sindicais, políticos e fomos mudando, porque, para
mudar, não basta a alguém sentar na frente de um computador e escrever o roteiro, mas o contato com a realidade para
perceber o que se passa e devolver a imagem dessa realidade, de alguma maneira reprocessada por nossa visão, e que se refira
a si mesma.
38
conscientizar, mobilizar seus espectadores na produção de mudanças reais. Suas obras se
dividiam entre razão e coração, prosa e poesia, panfletagem ou obra de arte, nesses extremos
de ideologias exacerbadas, desnecessárias à interação, que não se deu nas trincheiras, apenas
na memória.
Seus realizadores fizeram constantes esforços para permanecer dentro do universo
simbólico de seus espectadores. Contudo, no embate entre cine culto e cine industrial, não
conseguiram fazer com que absorvessem a coerência de seus princípios ideológicos.
39
CAPITULO 3 – O Cine Imperfeito Cubano.
Cuba talvez tenha uma das histórias mais singulares na luta contra o capitalismo, mas
nem por isso foi menor o derramamento de sangue em seu território. O país originalmente era
povoado por várias etnias e culturas que, durante os processos de colonização, foram
desaparecendo. Mesmo com um povo subjugado a outras culturas, o cinema não tardou a
chegar e a primeira película produzida foi em fevereiro de 1887, quando realizaram apenas
um pequeno registro, com cerca de um minuto de duração.
Após livrar-se do domínio e invasão de cerca de quatro séculos exercidos pela
Espanha, a ilha, no final do século XIX, é invadida e conquistada pelos Estados Unidos, que
ali estabelecem um governo militar e acentuam a exploração do açúcar, instalando empresas e
utilizando o local como um espaço de veraneio para o povo norte-americano, com construção
de grandes hotéis e clubes destinados apenas aos americanos que moravam e visitavam o
local, até finalmente serem expulsos em 1959 pelos rebeldes cubanos liderados por Fidel
Castro, que derrubaram o governo de Fulgencio Batista e assumiram o controle de Cuba.
Assim como em outros países latino-americano, os reflexos da Revolução Russa de
1918 nortearam as ideologias políticas cubanas e interferiram diretamente na produção
cultural que, com o passar dos anos, focou-se na luta contra o imperialismo. A situação de
dominados imposta por seus países colonizadores colocavam o povo cubano como meros
servientes aos seus interesses. No ensaio Intelectuales y artistas del mundo entero. Desuníos!,
de 1973, o cineasta cubano Julio Garcia Espinosa declara:
La revolución de octubre fue una explosión abierta y sin máscaras. El
imperialismo norteamericano fue una aparición subrepticia y cerrada. La
Revolución de Octubre inauguro la revolución cultural más importante de
este siglo: eliminar la sociedad dividida en clases. La unión Soviética le puso
nombre y apellido a la aldea global. El capital financiero la despersonalizó.
El imperialismo declaró la hegemonía del capital financiero para acabar con
la lucha de clases, impulso su carácter internacional para acabar con los
verdaderos intereses nacionales (apud VELLEGGIA, 2007, p.365).12
A ilha é a expressão fiel dos embargos sofridos por aqueles que não se adaptaram ao
sistema capitalista. Não era apenas a dominação do território que os países dominantes
queriam garantir, mas manter todos os países de terceiro mundo embaixo de suas leis de
12 A revolução de outubro foi uma explosão aberta e sem máscaras. O imperialismo norte-americano foi uma aparição oculta
e fechada. A revolução de outubro inaugurou a revolução cultural mais importante desse século: eliminar a sociedade
dividida em classes. A revolução soviética pôs o nome e sobrenome à aldeia global. O capital financeiro a despersonalizou. O
imperialismo declarou a hegemonia do capital financeiro para acabar com as lutas de classes, impulsionou seu caráter
internacional para acabar com os verdadeiros interesses nacionais (apud VELLEGGIA, 2007, p.365).
40
mercado e de negociação. A Europa e os Estados Unidos foram acostumados desde o início
de sua colonização a tratar a América Latina como seu território de expropriação. O açúcar e
o tabaco cubano eram alguns dos produtos que levavam a América do Norte a lutar para
sustentar seu estado hegemônico sobre Cuba, bem como sobre toda América Latina.
Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo seu açúcar aos Estados
Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado havia profetizado
corretamente, ante aqueles que o julgavam pelo assalto ao quartel Moncada,
que a história o absolveria: havia dito em sua vibrante defesa: “Cuba
continua sendo uma feitoria de matéria-prima. Exporta-se açúcar para
importar caramelos[...]” Cuba comprava nos Estados Unidos não só
automóveis e máquinas, produtos químicos, papel e roupa, mas também
arroz e feijão, alhos e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de
Miami, pães de Atlanta e até jantares de luxo de Paris. O país do açúcar
importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora só a
terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente, e a metade
das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as
empresas não produziam nada. Treze engenhos norte-americanos dispunham
de mais de 47% da área açucareira total e ganhavam por volta de 180
milhões de dólares em cada safra. A riqueza do subsolo - níquel, ferro,
cobre, manganês, cromo, tungstênio - formava parte das reservas estratégicas
dos Estados Unidos, cujas empresas apenas exploravam os minerais de
acordo com as variáveis exigências do exército e da indústria do norte. Havia
em Cuba, em 1958, mais prostitutas registradas do que operários mineiros
(GALEANO, 2002, p.51).
Para garantir a independência depois da Revolução foram necessários altos
investimentos em segurança, o que era muito caro para uma nação que sofria embargos de
todos os lados, dificultando o desenvolvimento de uma indústria forte e os investimentos
estrangeiros no país. Eram frequentes as invasões e as sabotagens realizadas pelo governo
americano. A luta permeava a disputa deflagrada entre o socialismo e o capitalismo. A
possibilidade de Cuba dar certo era uma ameaça constante a rondar as nações imperialistas,
que lutavam para manter o povo latino-americano em seu estado de dominados, fornecedores
de matéria prima, e de potencial e imenso mercado consumidor.
A Revolução Cubana de 1959 tem para a América o mesmo significado que
a Revolução Russa de 1917 teve para a Europa ou a Revolução Chinesa de
1949 para a Ásia. Durante décadas, o exemplo dos revolucionários cubanos
incendiou a imaginação da intelectualidade de esquerda na América Latina,
transformando-se no símbolo da justiça social e da possibilidade de um
futuro melhor para os povos latino-americanos. O passar do tempo, contudo,
veio a demonstrar que a experiência cubana não era um mar de rosas, apesar
das conquistas reais atingidas no plano social (ARRUDA, 2004, p.547).
Essa revolução permitiu que o cinema em Cuba se desenvolvesse de forma menos
interrupta que nos outros países latino-americanos que, em sua maioria, tinham suas
41
produções controladas pelos regimes ditatoriais que, a partir dos anos sessenta, dominaram
seu território. Essa condição fez com que o cinema nacional cubano e sua distribuição
seguissem padrões que divergiam dos ditados pela indústria cinematográfica americana que
dominava todo continente e configurava-se em quase a totalidade dos filmes passados em
todo território latino.
No final da década de 1950 e início de 1960, os realizadores cubanos começaram a
produzir documentários que mostravam a realidade daquele povo que lutava e vivia em
função do combate ao imperialismo e, mediante essa produção, desenvolveram o aprendizado
de diversas técnicas.
Em 1948 haviam oficializado a Cinemateca de Cuba e exatamente oitenta e três dias
depois do começo da Revolução Cubana, em 1959, foi fundado o ICAIC – Instituto Cubano
de Arte e Indústria Cinematográfica, dedicado à promoção e desenvolvimento da
cinematografia cubana.
O ICAIC teve fortes influências do neorrealismo italiano e do cinema autoral, em que
o filme todo estaria subordinado à vontade de seu diretor. Dedicou-se também ao
desenvolvimento de grupos de experimentações sonoras para o cinema. Seus principais nomes
são: Santiago Alvarez, na produção de documentais; Juan Padrón, em animações; Humberto
Solas e Tomás Gutierrez Alea, nos filmes de ficção.
A primeira etapa foi o aprendizado que, pouco a pouco, desenvolveu a técnica e
converteu cineastas em documentaristas ou ficcionais. Com o desenvolvimento de um cinema
nacional, aos poucos foi se formando o público que, de início, não demonstrou muita
aceitação à produção, devido à baixa qualidade das películas de entretenimento realizadas.
Ao contrário das outras ditaduras instauradas na América Latina, a de Cuba era
defendida pelo povo com armas em punho. Em 1961, o ditador da Guatemala liberou áreas
em seu país para o treinamento dos invasores de Cuba em troca de promessas feitas pelos
Estados Unidos, que nunca foram pagas.
Em 1964, em seu gabinete de Havana, Che Guevara me mostrou que a Cuba
de Batista não era só de açúcar: as grandes jazidas cubanas de níquel e
manganês explicavam melhor, em seu juízo, a fúria cega do império contra a
revolução. Desde aquela conversação, as reservas de níquel dos Estados
Unidos se reduziram a um terço: a empresa norte-americana Nicro-Nickel
fora nacionalizada e o presidente Johnson ameaçara os metalúrgicos
franceses com o embargo de seus envios aos Estados Unidos, se comprassem
o minério de Cuba (GALEANO, 1982, p.52).
Para manter-se dentro de um governo socialista, Cuba abriu mão do progresso, mas
não dos investimentos em educação, saúde e lazer. O embargo econômico fez com que o país
42
não se desenvolvesse tecnologicamente. Cuba até hoje paga pelo atraso econômico causado
por esse embargo.
Foram os noticiários e documentários que começaram a aproximação do público e
abriram caminho posteriormente para a ficção. Obras como a de Santiago Alvarez (1919-) e
Octavio Cortazar (1935-2008) são destaques nesse período, onde não apenas se firma a ideia
de um cine comprometido com sua cultura e sociedade, como também o objetivo de levar o
cinema aos cantos mais remotos. O cinema era visto não apenas dentro de suas possibilidades
de entretenimento, mas como uma arma na conscientização e libertação da população.
Em busca de realizar esse sonho, em 1968 Cortazar embrenhou-se por toda ilha em
uma produção que mesclava a função de espectador e protagonista. “Pela primeira vez” conta
a história de uma comunidade distante de Havana, onde a maioria dos habitantes conheciam
cinema apenas de ouvir falar. A película mostra as impressões e expressões desses cubanos ao
assistir a um filme pela primeira vez. Dava ênfase aos olhares de admiração e surpresa
lançados em direção à tela. Sobre as experiências realizadas nessa época, Cortazar fala em
entrevista a Osvaldo Daicich (2004, p.52):
En los años 1959 y 1960 los realizadores comienzan haciendo documentales,
se van formando, van aprendiendo el manejo de las diversas técnicas. Es el
caso de Santiago Álvarez, quien ya en el año de 1969 era el gran
documentalista cubano, conocido mundialmente. Lo mismo pasó con
Gutiérrez Alea (Titón), que hizo sus grandes películas en esa época. Esa es
una primera etapa fundacional donde la gente aprende, van poco a poco
aprendiendo la técnica, convirtiéndose en cineastas, algunos
documentalistas, otros en directores de ficción. Cuaja un cine nacional, va
formándose porque independientemente de las expectativas que existían en
los primeros años de la Revolución con respecto a un cine nacional, las
películas de entrenamiento bien realizadas como para que el público las
aceptara y hubo inicialmente un rechazo. Estoy pensando en los años 1962,
1963 y 1964. pero comenzó un rescate de ese mismo público a través del
Noticiero, de los documentales y posteriormente del cine de ficción. Tal es
así que a la altura de 1970 existía un público para ese cine cubano que estaba
haciendo el ICAIC. No tan solo el ICAIC, porque sería injusto decir que el
cine cubano es cine nada más hecho por nosotros. También estaban los
Estudios Fílmicos de las FAR, con una producción bastante buena, aceptable
para el desarrollo de la época y del momento.13
13 Nos anos de 1959 e 1960 os realizadores começam fazendo documentais, vão se formando, vão aprendendo o manejo de
diversas técnicas. É o caso de Santiago Alvarez, que já no ano de 1969 era o grande documentarista cubano, conhecido
mundialmente. O mesmo se passou com Gutiérrez Alea, Titón, que fez grandes filmes nessa mesma época. Essa é uma
primeira etapa fundacional onde a gente aprende, vão pouco a pouco aprendendo a técnica, convertendo-nos em cineastas:
alguns documentaristas, outros diretores de ficção. Um cinema nacional foi se formando porque, independentemente das
expectativas que existiam nos primeiros anos da Revolução, com relação a um cine nacional, os filmes de entretenimento
bem realizados para serem aceitos pelo público, mas inicialmente houve um rechaço. Estou pensando nos anos de 1962, 1963
e 1964, porém começou um resgate desse mesmo público através do Noticiero, dos documentais e posteriormente dos filmes
de ficção. Tal foi que no início de 1970 já existia um público para esse cinema cubano que estava a fazer o ICAIC. Não
apenas o ICAIC, porque seria injusto dizer que o cinema cubano é apenas o cinema feito por nós. Também o faziam os
Estúdios Fílmicos das FAR, com uma produção bastante boa, aceitável para o desenvolvimento daquela época e daquele
momento (DAICICH, 2004, p.52).
43
Outro nome importante na história do Novo Cine cubano é Alfredo Guevara
(Presidente do Festival del Nuevo Cine Latinoamericano de Habana). Sobre a cinematografia
anterior e esta, em um ensaio publicado na revista Cine Cubano, com o título “Cine cubano
1963”, Guevara (1998, p.114) comenta:
Cuando se produjo el triunfo revolucionario, el movimiento artístico
cinematográfico era una ilusión, el sueño de un grupo de aficionados y
estudiantes. No había otro panorama que el de la desolación, y antes que un
precedente teníamos frente a nosotros una sentina. En ella se movían
larvalmente pequeños personajes a precio fijo, no demasiado elevado,
reptiles de alquiler que entregaban los llamados Noticieros
‘cinematográficos’ al mejor postor. Éste era siempre el gobierno de turno, y
lo fue con creces la sangrienta dictadura de Batista, y con ella la Embajada
de la gran satrapía continental, el imperialismo norteamericano. De ello
encontramos pruebas fehacientes en el despacho del tirano en el antiguo
Campamento militar de Columbia. En sus arquivos, que no fueran depurados
previamente, pues estuvieran siempre en manos del Ejército Rebelde,
encontramos la miserable correspondencia de aquellas ‘larvas’ humanas. En
ella se ofrecían inclusive a ‘barnizar’ la realidad a cambio de prebendas y
dineros para borrar de algún modo la reacción de la opinión pública con
motivo de la masacre y terror desatados inmediatamente después, y en los
meses que siguieron al 13 de marzo. Es imposible considerar a esta
generación de comerciantes sin escrúpulos como parte de la historia viva,
artística, de nuestra cinematografía. 14
O manifesto Por un cine imperfecto, escrito pelo cubano Julio Garcia Espinosa, tinha
como proposta um novo conceito de qualidade que ia ao encontro da perfeição exigida pelos
filmes produzidos pelos blocos hegemônicos, entendendo-os como reacionários e impositores
de valores culturais estrangeiros.
Cuando nos preguntamos por qué somos nosotros directores de cine y no los
otros, es decir, los espectadores, la pregunta no la motiva solamente una
preocupación de orden ético. Sabemos que somos directores de cine porque
hemos pertenecido a una minoría que ha tenido el tiempo y las
circunstancias necesarias para desarrollar, en ella misma, una cultura
artística; y porque los recursos materiales de la técnica cinematográfica son
limitados y, por lo tanto, al alcance de unos cuantos y no de todos. Pero ¿qué
14 Quando se produziu o triunfo revolucionário, o movimento artístico cinematográfico era uma ilusão, o sonho de um grupo
de apaixonados e estudantes. Não havia outro panorama que o da desolação, e antes de um precedente, tínhamos em frente a
nós um esgoto. E nele se moviam larvalmente pequenos personagens a preço fixo, não demasiadamente elevado, répteis de
aluguel que entregavam os chamados Noticieros ao melhor lance. Este era quase sempre do governo vigente, e a ditadura de
Batista foi de longe a mais sangrenta, com ela a Embaixada da grande satrapia continental, o imperialismo norte-americano.
Dele encontramos provas esclarecedoras sobre os despachos do tirano e sobre o antigo acampamento militar de Columbia.
Em seus arquivos, que não foram averiguados previamente pois estiveram sempre em mãos do exército rebelde, encontramos
a miserável correspondência daquelas ‘larvas’ humanas. Nelas se ofereciam inclusive para ‘maquiar’ a realidade em troca de
regalias e dinheiro para apagar de algum modo a reação da opinião pública e a conexão com o massacre e o terror desatados
imediatamente depois, nos meses que se seguiram ao treze de março. É impossível considerar essa geração de comerciantes
sem escrúpulos como parte da história viva, artística, de nossa cinematografia.
44
sucede si el futuro es la universalización de la enseñanza universitaria, si el
desarrollo económico y social reduce las horas de trabajo, si la evolución de
la técnica cinematográfica (como ya hay señales evidentes) hace posible que
esta deje de ser privilegio de unos pocos, qué sucede si el desarrollo del
videotape soluciona la capacidad inevitablemente limitada de los
laboratorios, si los aparatos de televisión y su posibilidad de “proyectar” con
independencia de la planta matriz, hacen innecesaria la construcción al
infinito de salas cinematográficas? Sucede entonces no sólo un acto de
justicia social, la posibilidad de que todos puedan hacer cine, sino un hecho
de extrema importancia para la cultura artística: la posibilidad de rescatar,
sin complejos, ni sentimientos de culpa de ninguna clase, el verdadero
sentido de la actividad artística. Sucede entonces que podemos entender que
el arte es una actividad “desinteresada” del hombre. Que el arte no es un
trabajo. Que el artista no es propiamente un trabajador (apud VELLEGGIA,
2007, p.355).15
Uma segunda geração de cineastas se forma no fim dos anos de 1970. Em sua maioria
formada por aprendizes dos primeiros realizadores. Um dos maiores cineastas dessa segunda
geração do cinema cubano é Tomás Gutierrez Alea (1928 – 1996). Titón, como era
conhecido, tem a obra mais expressiva de todo cinema cubano, tanto pelos temas trabalhados
quanto pelo número de realizações. Suas películas narram as dificuldades e os preconceitos da
sociedade cubana. Desde seus primeiros filmes o cineasta arrebata a plateia cubana e cai em
suas graças, como conta a Alfredo Guevara em carta enviada a ele em 1959:
Esta tierra nuestra está teniendo un éxito bárbaro. En el Astral la están
aplaudiendo en medio de las escenas y uno de los días esta reacción se
produjo de pie. En Rex los aplausos son diarios. Y lleno completo
(¿orgullosito eh?) (GUEVARA, 2008, p.28).16
Em Memorias del subdesarrollo (1968) Titón mostra a vida de um americano que
decide ficar em Cuba após o início da Revolução. Além da forte influência nítida do cine
15 Quando nos perguntamos por que somos nós diretores de cine e não outros, isto é, os espectadores, essa pergunta não
apenas motiva uma preocupação de ordem ética. Sabemos que somos diretores de cine porque pertencemos a uma minoria
que tem o tempo e as circunstancias favoráveis para desenvolver uma cultura artística, e porque os recursos materiais para a
técnica cinematográfica são limitados e, portanto, estão ao alcance de poucos e não de todos. Porém, o que acontece se no
futuro a universalização do ensino universitário, se o desenvolvimento econômico e social reduz as horas de trabalho, se a
evolução da técnica cinematográfica (como já existem sinais evidentes) torna possível que esta deixe de ser privilégio de
poucos, o que acontece se o desenvolvimento do videotape solucionar a capacidade inevitavelmente limitada dos
laboratórios, se os aparatos de televisão e sua possibilidade de ‘projetar’ com independência da matriz e fizerem
desnecessária no futuro a construção de salas cinematográficas? Sucede então não apenas um ato de justiça social, mas a
possibilidade de que todos possam fazer cinema, dessa forma seria um feito de extrema importância para a cultura artística: a
possibilidade de resgatar, sem complexos, nem sentimento de culpa de nenhuma classe, o verdadeiro sentido da atividade
artística. Depois disso então poderemos entender que a arte é uma atividade ‘desinteressada’ do homem. Que a arte não é um
trabalho. Que o artista não é propriamente um trabalhador (apud VELLEGGIA, 2007, p.355).
16 Esta tierra nuestra está tendo um êxito bárbaro. No Astral a estão aplaudindo em meio às cenas e em um dos dias a reação
se produziu em pé. No Rex os aplausos são diários. Pleno e completo (tá orgulhosinho?) (GUEVARA, 2008, p.28).
45
autoral, o Cinema Novo de Glauber Rocha é, sem dúvida, outra fonte de inspiração para a
produção do cinema cubano.
En la década de los sesenta se afianza con más fuerza en Iberoamérica el
cine de autor y un movimiento que en buena medida lo marca es el Cinema
Novo brasileño. Películas como Dios y el diablo en la tierra del sol, de
Glauber Rocha, las películas como La primera carga al machete, como
Lucía, donde se ve una marca del Cinema Novo. En cada país de nuestro
continente, a partir de los sesenta, toma más fuerza un cine de autor, un cine
reflexivo, un cine muy incisivo con la realidad, desde distintas posiciones
estéticas y conceptuales; ha tenido su desarrollo y estamos en el día de hoy.
No ha habido rupturas pequeñas. No es que se haga el mismo cine de antes,
pero se hace el cine. Incluso muchos directores de antes están haciendo
películas ahora, tal es el caso de Titón con su última película, Guantanamera;
comenzó haciendo cine en los años sesenta (DAICICH, 2004, p.71).17
O final da década de 1970 rendeu vários prêmios importantes e reconhecimento
internacional a Titón. Essa segunda geração produz de forma pungente, com grande
diversidade, mas com o mesmo compromisso com os conflitos sociais. O filme Hasta cierto
punto (1983) mostra a realidade machista da sociedade cubana e a luta de uma mulher para
sobreviver e sustentar sua casa. Em 1994, dois anos antes de sua morte, o cineasta grava um
dos filmes mais importantes e mais reconhecidos de sua carreira, Fresa y chocolate mostra os
exageros do regime de Fidel através da amizade de um homossexual, descontente com o
ditador, com um jovem comunista fiel ao regime que, com o contato, começa a repensar suas
certezas sobre o regime instaurado por Fidel Castro.
O trabalho de Santiago Alvarez e de outros documentaristas continua durante a década
de oitenta, quando se inicia a terceira etapa do cinema cubano e se consolida uma indústria
cinematográfica. Até esse momento, a produção havia se desenvolvido apenas de modo
experimental, em oficinas onde o aprendizado acontecia quase em conjunto ainda com a obra.
Agora havia uma lógica e uma indústria de desenvolvimento cinematográfico. Porém, mesmo
com essa industrialização do cinema, ainda assim o modelo almejado estava distante do
modelo hegemônico norte-americano, como nos diz Santiago Alvarez em seu ensaio Arte y
compromiso:
17 Na década de sessenta se estabelece com mais força na América ibérica o cinema de autor e um movimento que, em boa
medida, marca o que é o Cinema Novo Brasileiro. Filmes como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, como La
primera carga al machete, como Lucía, onde se vê as marcas do Cinema Novo. Em cada país de nosso continente, a partir
dos anos sessenta, se torna mais forte um cine de autor, um cine reflexivo, um cine muito incisivo com a realidade, desde as
distintas posições estéticas e conceituais, existiu desenvolvimento e estamos nele até o dia de hoje. Não houve rupturas
pequenas. Não é que se faça o mesmo cinema de antes, mas se faz cinema. Inclusive muitos diretores de antes estão fazendo
filmes agora, como o caso de Titón e seu ultimo filme, Guantanamera, que começou fazendo cinema nos anos sessenta
(DAICICH, 2004, p.71).
46
No creo en el cine preconcebido. No creo en el cine para la posteridad. La
naturaleza social del cine demanda una mayor responsabilidad por parte del
cineasta. Esa urgencia del Tercer Mundo, esa impaciencia creadora en el
artista producirá el arte de esta época, el arte de la vida de dos tercios de la
población mundial. En el Tercer Mundo no hay grandes zonas de elites
intelectuales ni niveles intermedios que faciliten la comunicación del creador
con el pueblo. Hay que tener en cuenta la realidad en que se trabaja. La
responsabilidad del intelectual del Tercer Mundo es diferente a la del
intelectual del mundo desarrollado. Si no se comprende esa realidad se está
fuera de ella se es intelectual a medias. Para nosotros, no obstante, Chaplin
es una meta, porque su obra llena de ingenio y audacia conmovió tanto al
analfabeto como al más culto, al proletario como al campesino (apud
VELLEGGIA, 2007, p.354).18
Em dezembro de 1986 é inaugurada a Escuela Internacional de Cine y Televisión
(EICTV), conhecida também como Escola dos Três Mundos (América Latina, África e Ásia).
A escola era resultante do empenho de vários cineastas de toda América Latina que se uniram
pela primeira vez em Viña del Mar cerca de vinte anos antes e descobriram ali os traços em
comum de suas produções. Era a concretização do sonho de uma escola latino-americana de
cinema e mantida pela Fundação do Novo Cine Latino-americano, fundada no ano interior.
Iniciava-se um racionalismo industrial, sempre sobre temas sociais, porém tal etapa
tende um pouco mais a histórias do cotidiano, sempre com baixos custos. Na década de 90,
prevalece o cotidiano, com uma dramaturgia voltada à comédia.
Cuba até hoje possui uma produção significativa, tanto o ICAIC quanto a EICTV
promovem todos os anos vários materiais nacionais ou em parceria com outros países. Todos
os anos, em dezembro, o país sedia o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano,
com participação de cineastas de todo mundo.
18 Não creio em um cinema pré-concebido. Não creio em um cinema para a posteridade. A natureza social do cinema
demanda uma maior responsabilidade por parte do cineasta. Essa urgência do Terceiro Mundo, essa impaciência criadora no
artista produzirá a arte dessa época, a arte da vida de dois terços da população mundial. No terceiro mundo não há grandes
zonas de elites intelectuais nem níveis intermediários que facilitem a comunicação do criador com o povo. Deve-se ter em
conta a realidade em que se trabalha. A responsabilidade do intelectual do terceiro mundo é diferente da responsabilidade do
intelectual do mundo desenvolvido. Se não se compreende essa realidade se está fora dela, se é um intelectual mediano. Para
nós, não obstante, Chaplin é uma meta, porque sua obra cheia de genialidade e audácia comoveu tanto o analfabeto como o
mais culto, tanto o proletariado como o camponês (apud VELLEGGIA, 2007, p.354).
47
CAPITULO 4 – O Novo Cine na América Latina
A América Latina engloba ao todo vinte países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.
Na Bolívia, o motivo da luta anti-imperialista era o estanho. Em abril de 1952
aconteceram as jornadas revolucionárias que levaram o país a nacionalizar o minério. Porém,
a fase abundante já havia passado, o grande filão estava muito reduzido e as serras quase
completamente perfuradas.
Além disso, apenas essa nacionalização não seria suficiente para estancar a
dilapidação das riquezas bolivianas frente aos interesses dos poderosos. O país continuava a
vender a matéria-prima em estado bruto e seu governante controlava o preço e o destino.
Porque a nacionalização, conquista fundamental da revolução de 1952, não
modificara o papel da Bolívia na divisão internacional do trabalho. A Bolívia
continuou exportando o mineral em bruto, e quase todo estanho se refina
ainda nos fornos de Liverpool, da empresa Williams, Harvey and Co., que
pertence a Patiño. A nacionalização das fontes de produção de qualquer
matéria-prima não é, como ensina a dolorosa experiência, suficiente. Um
país pode continuar tão condenado à impotência como sempre, embora se
seja normalmente dono do subsolo. A Bolívia produziu, ao longo de sua
história, minerais em bruto e discursos refinados. Abundam a retórica e a
miséria; os escritores cafonas e os doutores encasacados se dedicaram
sempre a absolver os culpados de qualquer culpa. De cada dez bolivianos,
seis não sabem, ainda, ler; a metade das crianças não vai à escola. Até 1971,
a Bolívia deveria ter em funcionamento sua própria fundição nacional de
estanho, levantada em Oruro ao fim de uma infinita história de traições,
sabotagens, intrigas e sangue derramado. Este país, que não pôde, até agora,
produzir seus próprios lingotes, se dá ao luxo, em compensação, de contar
com oito diferentes faculdades de Direito que fabricam vampiros de índios
em quantidades industriais (GALEANO, 1982, p.105).
Em 1966, Jorge Sanjines (1936-) fundou na Bolívia, juntamente com Antonio Eguino
(1938-), Oscar Soria (1917-1988), Ricardo Rada e Hugo Roncal (1923-2005), o Grupo
Ukamau. Esse grupo tinha como tema principal de sua produção retratar esse estado de
miséria e pobreza em que vivia o povo boliviano. Buscavam um cinema que, ao valorizar a
identidade nacional e popular junto ao povo, servisse como ferramenta de luta política contra
os interesses capitalistas.
Sua proposta era essencialmente anti-imperialista e revolucionária. Entendiam a
qualidade técnica como apenas um meio, não como objetivo. Em entrevista a Daicich (2004,
p.97), o cineasta Sanjines fala sobre a criação do grupo:
48
Fue una coincidencia de objetivos lo que unió a la gente que fundó el Grupo
Ukamau. Un viejo amigo que yo había dejado en mi época de estudiante de
filosofía en la universidad, el escritor Oscar Soria, y otro viejo amigo de
colegio que había estudiado cine en Nueva York, Antonio Eguino,
compartíamos juntos un mismo sueño relativo a todo lo que yo estaba
hablando ahora y también, naturalmente, el deseo impaciente de hacer cine.
Porque nos gustaba hacer cine, porque nos divertía también hacer cine. Pero
queríamos juntar las dos cosas, el placer de hacer cine, de realizarnos como
cineastas, pero usando nuestro instrumento y nuestro tiempo en crear algo
útil a la sociedad. Tuvo dos etapas. La primera surge incluso antes del acceso
al Instituto Cinematográfico Boliviano, que fue a fines del año 1964. Ya
desde 1960 hasta 1964 habíamos tenido un trabajo cinematográfico muy
incipiente, cuando se hizo Revolución, se hizo Un dia, Paulino, se hizo
alguna otra película, incluso una película de encargo como Sueños y
realidades: una jornada difícil. Después de la salida del Instituto
Cinematográfico, donde estuvimos dos años, nos organizamos en lo que se
llamó la Empresa Ukamau. Yo no compartía mucho la idea de empresa para
este tipo de cine. Pero poco tiempo después, cuando vino el golpe de Banzer
y yo ya no pude volver al país, creé lo que se llama el Grupo Ukamau y nos
dividimos entre lo que era entonces empresa con Antonio Eguino y Oscar
Soria y el grupo, que continúa hasta hoy día desde el año 1971. Cuando Salí
al exilio, otra gente del mismo equipo me acompaño y estuvimos trabajando
en el Perú y en el Ecuador, haciendo después El enemigo principal y !Fuera
de aquí! dentro de esa misma línea, incluso profundizando esa línea y la
condición de cine colectivo, colectivo en el sentido de que estaba dirigido al
colectivo social. Dentro del cine que hemos hecho la dirección, el guión y la
fotografía han sido tareas de los que sabían hacer ese trabajo.19
Empenharam-se em fazer filmes que contribuíssem na luta dos setores mais
empobrecidos da sociedade boliviana e que chamassem a atenção da população sobre a
cultura de seus antepassados, em maioria indígena. Os componentes do grupo não pretendiam
militar em prol de nenhuma organização política específica, porém estavam embebidos no
discurso socialista de uma América Latina que lutava contra o imperialismo e a opressão
violenta de regimes militares ditatoriais.
19 Foi uma coincidência de objetivos que nos uniu, os fundadores do Grupo Ukamau. Um velho amigo que eu havia deixado
em minha época de estudante de filosofia na universidade, o escritor Oscar Soria e outro velho amigo de colégio que havia
estudado cinema em Nova York, Antonio Eguino, compartilhávamos juntos um mesmo sonho relativo a tudo o que eu estava
falando agora e também, naturalmente, o desejo impaciente de fazer cinema. Porque gostávamos de fazer cine, porque nos
divertia também fazer cinema. Mas queríamos juntas as duas coisas, o prazer de se fazer cinema, de realizarmos como
cineastas, mas usando nosso instrumento e nosso tempo em criar algo útil para a sociedade. Tivemos duas etapas. A primeira
surge, inclusive, antes do acesso ao Instituto Cinematográfico Boliviano, que foi aos fins do ano de 1964. Desde o ano de
1960 até 1964 havíamos tido um trabalho cinematográfico muito incipiente, quando foram feitos Revolución, se fez Un día,
Paulino, foram feitos alguns outros filmes, incluindo Sueños y realidades: una jornada difícil. Depois da saída do Instituto
Cinematográfico, onde estivemos por dois anos, nos organizamos no que se chamou a Empresa Ukamau. Eu não
compartilhava muito a ideia de empresa para esse tipo de cinema. Porém pouco tempo depois, quando veio o golpe de Banzer
e eu já não estava, não pude voltar ao país, criei o que chama de Grupo Ukamau e nos dividimos entre o que então era
empresa com Antonio Eguino e Oscar Soria e o grupo, que continua até hoje desde o ano de 1971. Quando saí para o exílio,
outras pessoas da mesma equipe me acompanharam e estivemos a trabalhar no Peru e no Equador, fazendo depois El
enemigo principal e ¡Fuera de aqui! dentro dessa mesma linha, inclusive aprofundando-a e a sua condição de cinema
coletivo. Coletivo no sentido de que estava dirigido ao coletivo social. Dentro do cinema que temos feito, a direção, o roteiro
e a fotografia têm sido tarefas daqueles que sabiam realizar esse trabalho.
49
Seguiram o caminho de uma produção cinematográfica com compromisso com a luta
histórica pela libertação de seu povo diante das injustiças sociais do sistema capitalista. Seus
principais destinatários eram as maiorias indígenas e sua identidade cultural.
O grupo Ukamau tinha como proposta desenvolver uma linguagem narrativa que
privilegiasse a identidade nacional, sem negar ou renunciar aos avanços tecnológicos,
científicos e sociais. Utilizar a linguagem antes dominada pelo dominador em busca de
reconhecer nela a memória cultural e compor sua própria realidade.
Porém, havia um parêntese entre os ideais e suas práticas. A falta de experiência na
prática em voltar os olhos para sua própria cultura levava à dificuldade de absorção dessa
nova linguagem pela comunidade, bem como a dificuldade em entender quais eram os
assuntos específicos a serem abordados. Uma dessas tentativas foi o filme Sangre de Condor
(1969), que propunha mobilizar os camponeses bolivianos. A respeito dessa experiência,
Sanjines comenta:
Lo descubrimos a raíz de una anécdota que también está contada, cuando
estuvimos a punto de ser expulsados de la comunidad porque no
comprendíamos que el poder en la comunidad andina no reside en ningún
individuo, sino en la comunidad misma, en el colectivo y pensábamos que el
jefe de la comunidad, que era nuestro amigo, tenía que resolver todo y tenía
el poder. No entendíamos que él era el representante del poder y no el poder.
Cuando en el último momento, en la última noche, nos dimos cuenta de ese
proceso, le pedimos disculpas a la comunidad y le dijimos: son ustedes los
que van decidir se nos quedamos o nos vamos. Y gracias a que nos
sometimos a esa consideración y a esa manera democrática de proponer las
cosas, pudimos hacer la película (apud DAICICH, 2004, p.108).20
Surgia assim um novo cinema no altiplano boliviano, com novas linhas estéticas,
conceituais e conteúdo transformador. Em 1967, ao ser exibido no Festival de Cannes, o filme
Ukamau expunha o confronto entre a cultura indígena e a branca, impressionando por sua
fotografia, pela beleza de suas paisagens e pela integração do homem à natureza rompida pela
chegada do branco.
Produzida pelo Instituto Cinematográfico Boliviano, a película, exibida em várias
cidades da Bolívia ao mesmo tempo, foi responsável pela extinção do órgão. As autoridades
bolivianas, ao conhecerem seu conteúdo, expulsaram dali o grupo e fecharam-no. No entanto,
mais de trezentas mil pessoas já haviam assistido ao filme.
20 Nós descobrimos a moral da história que também foi contada quando estivemos a ponto de ser expulsos da comunidade
porque não compreendíamos que o poder de uma comunidade andina não reside em nenhum indivíduo, mas na própria
comunidade, no coletivo e pensávamos que o chefe da comunidade, que era nosso amigo, tinha que resolver tudo e detinha o
poder. Não entendíamos que ele era o representante do poder e não o poder. Quando, no último momento, na última noite,
nos demos conta desse processo, pedimos desculpas à comunidade e lhe dissemos: são vocês os que vão decidir se ficamos
ou nos vamos. E graças a termos tido essa consideração e essa maneira democrática de propor as coisas, pudemos realizar o
filme (apud DAICICH, 2004, p.108).
50
O Grupo Ukamau produziu um cine que se manteve fora das exigências comerciais.
Propunha obras que contavam com a liberdade de dizer aquilo que julgavam importante dizer,
na tentativa de construir uma linguagem cinematográfica própria.
Contaram principalmente com o suporte de seu próprio povo e sua compreensão do
papel do homem e sua relação com a natureza, sendo essa uma personagem importante em
suas obras.
No Chile, a história cinematográfica é marcada pela inconstância e a década de 1920
foi o momento de maior produção. Em 1942, é fundada a Chile Films S.A., produzindo nove
longas entre os anos de 1944 e 1949, em sua maioria dirigidos por cineastas estrangeiros.
Pero una revisión de los pocos fragmentos de algunos de esos films revelan
que no hubo en aquel tiempo ningún realizador de verdadera importancia
estilística y con una problemática autóctona bien elaborada. Se limitaban los
directores de aquella época a hacer un cine imitación del modelo
norteamericano y, por supuesto, no eran los mejores films los elegidos como
tales (Hojas del cine 1, p.320).21
Depois de um enorme endividamento, ocorreu o fracasso. Houve a derrocada do
projeto pretensioso de uma indústria cinematográfica nacional nos mesmos moldes norte-
americanos.
Nos anos 1960, o cinema introduz-se no meio universitário e se inicia um novo
período. A mais significativa consequência é a criação da Cineteca Universitária, vinculada
ao departamento de Cine Experimental da Universidade do Chile.
Criam-se condições para uma formação técnica e estética. Uma nova geração, que
aliava a vontade de produzir cinema com a aspiração de transformar a sociedade. Devido ao
seu baixo custo, o documentário torna-se o gênero mais expressivo.
Os festivais de cinema de Viña del mar adquirem um papel fundamental não apenas
para os realizadores chilenos, mas para cineastas de todo continente latino-americano. No
festival realizado de 01 a 08 de março de 1967, reúnem-se cineastas da Argentina, Brasil,
Cuba, Chile, Peru, Uruguai e Venezuela.
Entre os nomes mais conhecidos, podem-se citar os argentinos Fernando ‘Piño’
Solanas, Octavio Getino; os brasileiros Rudá Andrade (1930-2009), Carlos Diegues, Paulo
César Saraceni (1933-), Alex Viany e o cubano Alfredo Guevara.
21 Uma revisão dos poucos fragmentos de alguns destes filmes, porém, revelam que não havia naquele tempo nenhum
realizador de verdadeira importância estilística e com uma problemática autônoma bem elaborada. Se limitavam os diretores
daquela época a fazer um cinema imitação do modelo norte-americano e, por isso, não eram os melhores filmes os elegidos
como tais (Hojas del cine 1, p.320).
51
No Festival de 1969, matura-se essa geração chilena com filmes como Caliche
Sangriento, de Helvio Soto e Valparaíso, mi amor, de Aldo Garcia. Conhecido como o Nuevo
Cine Chileno. Este movimento, rico em estéticas e estilos, não era homogêneo, mas se unia
nos enredos das preocupações sociais e políticas.
Durante o período da Unidade Popular, o movimento sofre os reflexos da conturbada
economia. Mesmo assim, mantém produção fílmica ativa e voltada aos curtas documentais
formatados nos padrões ideológicos do governo. A maioria dos meios de comunicação
encontrava-se com os opositores ao governo de Salvador Allende, o que fez com que a
produção cinematográfica se tornasse porta voz do governo frente à propaganda ideológica
oposicionista. Esse período já conturbado sofrerá um novo revés com o golpe militar.
A partir do golpe do general Pinochet, inicia-se a perseguição aos intelectuais e aos
artistas. Muitos desses tiveram que se exilar para salvar suas vidas. Dessa forma, inicia-se
uma autêntica cultura chilena no exílio, com produções em países como Argentina, Brasil,
Canadá e Espanha. Essas circunstâncias acabaram levando a um novo cinema chileno, que
não acontece necessariamente em solo chileno, mas na ânsia dos cineastas expatriados de
falar da realidade de seu país, mesmo em solo estrangeiro.
O cinema sofre inúmeras perdas durante o regime militar. Cineastas e técnicos são
exilados e os que ficam no país, ou são saqueados e vivem sobre forte censura, ou são
assassinados. Esse período negro provocou uma divisão única nas historiografias
cinematográficas: o Chile possui um cinema chileno feito no país e outro feito no exílio.
As formas tradicionais de definir a origem de um filme, desse modo, perdem-se em
sua metodologia, quando se analisa o cinema chileno. Na verdade, o que caracteriza o cinema
exilado são as temáticas chilenas e a origem de seus técnicos e diretores. Entre eles, há o
exemplo clássico de Hélvio Soto, intitulado Chove Sobre Santiago, gravado entre a França e a
Bulgária.
O filme conta a luta da Unidade Popular para chegar ao poder e sua posterior
derrubada. Retrata a mobilização popular que implementou significativas melhorias na vida
dos trabalhadores e lutou contra os grandes grupos empresariais chilenos e imperialistas.
O nome do filme é uma citação ao nome da operação que, com o apoio direto da CIA
e do governo norte-americano, realizou um banho de sangue contra o povo chileno no golpe
de 11 de setembro de 1973.
Na Colômbia, o café desfrutava de toda hegemonia, porém, os grande lucros alcançados
com sua venda não chegavam à mão daqueles que trabalhavam em suas lavoras. A violência
também não tardou a chegar ao país, que conta em sua história com uma das mais sangrentas
repressões.
52
[...] durante dez anos, entre 1948 e 1957, a guerra camponesa abarcou os
minifúndios e os latifúndios, os desertos e os campos semeados, os vales e as
selvas e os páramos andinos, empurrou comunidades inteiras ao êxodo,
gerou guerrilhas revolucionárias e bandos de criminosos; converteu o país
inteiro num cemitério: estima-se que deixou um saldo de 180 mil mortos. O
banho de sangue coincidiu com um período de euforia econômica para a
classe dominante: é lícito confundir prosperidade de uma classe com o bem-
estar do país (GALEANO, 1982, p.73)?
A causa de tamanha violência teve início nos enfrentamentos entre liberais e
conservadores. O ódio entre as classes acentuava-se em seu caráter de luta social. Os
explorados não aceitavam mais sua condição de subservientes.
As lideranças liberais ganhavam prestígio das massas populares, ameaçando a ordem
estabelecida. Seu maior representante, Jorge Gaitán, também conhecido como El Lobo, é
assassinado a tiros, o que provoca reação como a de um furacão.
Primeiro foi a maré humana incontida nas ruas da capital, o espontâneo
bogotazo, e em seguida a violência derivou para o campo, onde, há tempos,
os bandos organizados pelos conservadores já vinham semeando o terror. O
ódio longamente mastigado pelos camponeses explodiu e, enquanto o
governo enviava policiais e soldados para cortar testículos, abrir ventres de
mulheres grávidas ou jogar crianças ao ar para espetá-las na ponta da
baioneta, sob a palavra de ordem de “não deixar nem semente”, os doutores
do Partido Liberal recolhiam-se em suas casas sem alterar seus bons modos
nem o tom cavalheiresco de seus manifestos ou, no pior dos casos, viajavam
para o exílio. Foram os camponeses que forneceram os mortos. A guerra
alcançou extremos de incrível crueldade, impulsionada por um desejo de
vingança que crescia com a própria guerra. Surgiram novos estilos da morte:
no “corte gravata”, a língua ficava pendendo por um buraco no pescoço.
Sucediam-se as violações, os incêndios, os saques; os homens eram
esquartejados ou queimados vivos, escalpelados ou cortados lentamente em
pedaços; os rios ficavam tingidos de vermelho; os bandoleiros outorgavam a
permissão de viver, em troca de tributos em dinheiro ou carregamentos de
café, e as forças repressivas expulsavam e perseguiam inúmeras famílias que
corriam para as montanhas em busca de refúgio; nas matas pariam as
mulheres. Os primeiros chefes guerrilheiros, animados pela necessidade de
revanche, mas sem horizontes políticos claros, lançavam-se à destruição pela
destruição, o desafogo a sangue e fogo sem outros objetivos (GALEANO,
1982, p.73).
Os trabalhadores recebiam apenas cinco por cento do preço total que o café alcançava
até ser tomado pelos consumidores norte-americanos. Aumenta o número de pequenas
plantações dedicadas ao seu cultivo, porém, estes se tornam cada vez mais dependentes das
vontades dos que representam os interesses norte-americanos e dos grandes proprietários, que
monopolizam a comercialização do produto.
53
No ano de 1972 esses pequenos cultivadores, que possuíam em média um hectare de
produção, recebiam cerca de cento e trinta dólares por ano. Por mais que fossem os grandes
responsáveis pela produção, eram quem pagava com a fome por ela.
Na década de 1970 se inicia uma significativa produção de documentários no país.
Funda-se o Grupo de Cali, que era composto, entre outros, pelo cineasta Carlos Mayolo
(1945-2007) e pelo escritor Andrés Caicedo (1951-1977). Entre suas produções,
documentaram o movimento e as realidades particulares da cidade de Cali. Outro trabalho
importante foi o da cineasta e documentarista Marta Rodríguez, que busca, com bases
antropológicas, mostrar as formas de vida e realidades desconhecidas de seu país pelos
próprios colombianos. Na cidade de Cartagena das Índias acontece, desde 1960, o Festival
Internacional de Cinema de Cartagena.
Outros nomes importantes do Novo Cine colombiano são Carlos Alvarez (1942-)
diretor de Asalto (1968), Colômbia 70 (1970), e ¿Qué es la democracia? (1971), além do
cineasta José Maria Arzuaga, que dirigiu filmes como Raíces de piedra (1963), Rapsódia em
Bogotá (1968). Além de Marta Rodríguez, outras duas mulheres se destacaram no cinema
Colombiano: Julia de Alvarez e Gabriela Samper.
Não existem informações sobre o envolvimento da Costa Rica no movimento do Novo
Cine na bibliografia consultada. No Equador o cinema não tinha condições econômicas de
desenvolvimento. Dessa forma, os poucos cineastas existentes vinculavam suas produções a
trabalhos publicitários e turísticos. As produções, em sua maioria, não identificavam a
realidade campesina do povo equatoriano.
Precisamente por lo expuesto anteriormente y en la búsqueda de romper el
cercamiento económico e ideológico, el Frente Cultural del Ecuador se
planteó, en el año de 1975, la realización de pequeñas experiencias
insertadas directamente en el contexto de la lucha obrera, así apareció en
enero de 1976 el primer audiovisual didáctico llamado Quien mueve las
manos, en él se construyen los hechos represivos suscitados en diciembre de
1975 en el desalojo de los obreros de una fábrica en huelga y el asesinato de
uno de los dirigentes, por parte de la policía. A propósito de este hecho,
luego el corto hace un análisis del esquema del poder dominante. Este
trabajo didáctico motivó amplios debates en la ciudad y en el campo, siendo
la primera ocasión en que los obreros se descubrían como personajes y
podían profundizar en la dimensión política de su propio drama (HOJAS del
cine, p.394. Vol. I).22
22 Precisamente pelo que foi exposto anteriormente e na busca de romper o cerco econômico e ideológico, a Frente Cultural
do Equador teve início no ano de 1975, na realização de pequenas experiências inseridas diretamente no contexto da luta do
proletariado. Assim apareceu em janeiro de 1976 o primeiro audiovisual didático chamado Quien mueve las manos. Nele se
constituem os feitos repressivos aos suscitados em dezembro de 1975 no despejo de operários de uma fábrica em greve e o
assassinato de um dos dirigentes, por parte da polícia. A propósito desde feito, logo o curto faz uma análise desse esquema de
poder dominante. Este trabalho didático motivou amplos debates na cidade e no campo, sendo a primeira ocasião em que os
operários se descobriram como personagens e podiam aprofundar a dimensão política de seu próprio drama (HOJAS del cine,
p.394. Vol. I).
54
Porém, o mesmo governo que ajudou a financiar, censurou a película após saber a
realidade da denúncia que o mesmo expressava. Outro curta significativo foi o filme
Asentamientos humanos, medio ambiente y petróleo (1976), que mesmo com toda censura
conseguiu uma grande aceitação pelo proletariado, porém suas exibições aconteciam apenas
de forma privada.
Em El Salvador as tensões aconteciam, consequência da grave crise que assolou
Honduras. A maioria dos trabalhadores desse país era salvadorenha e foram obrigados a voltar
a El Salvador, onde também não havia mais trabalho para ninguém.
Na região de Izalco, produziu-se um grande levantamento camponês em
1932, que se propagou rapidamente por todo ocidente do país. O ditador
Martínez enviou soldados, com equipamentos modernos, para combater “os
bolcheviques”. Os índios lutaram com facões contra as metralhadoras e o
episódio encerrou-se com dez mil mortos. Martínez, um bruxo vegetariano e
teósofo, sustentava que “é maior o crime de matar uma formiga do que um
homem, porque o homem ao morrer reencarna, enquanto a formiga morre
definitivamente”. Se dizia protegido por “legiões invisíveis” que o
informavam de todas as conspirações e que mantinha comunicação telepática
com o presidente dos Estados Unidos. Um relógio de pêndulo, sobre o prato,
indicava se a comida estava envenenada; sobre um mapa indicava-lhe os
lugares onde se escondiam os tesouros de piratas ou os inimigos políticos.
Costumava enviar cartões de condolências aos pais de suas vítimas e no
pátio de seu palácio pastavam cervos. Governou até 1944 (GALEANO,
1982, p.79).
No México, em 1919, a traição leva à morte Emiliano Zapata. Mas a lenda do líder
que galopava sozinho pelas montanhas fez com que o povo lutasse por consumar sua obra de
reformador e vingar seu sangue. O início da era revolucionária teve o importante papel dos
anarquistas.
Entre eles, um em particular ainda hoje é lembrado como pai da Revolução Mexicana.
Ricardo Magon fundou o jornal anarcossindicalista Regeneración. Mas acabou morto em uma
prisão no ano de 1922. Segundo o pensador anarquista Woodcock, nesse país “o anarquismo
parece ter sido uma consequência lógica de uma história caótica, de uma terra dramática e
dividida, e de um regionalismo tão arraigado quanto o espanhol” (2006, p.212).
Passou o tempo, e com a presidência de Lázaro Cárdenas (1934-1940), as
tradições zapatistas recobravam vida e vigor através da colocação em
prática, por todo o México, da reforma agrária. Expropriaram-se, sobretudo
sob seu período do governo, 67 milhões de hectares em poder de empresas
estrangeiras ou nacionais e os camponeses receberam, além da terra,
créditos, educação e meios de organização para o trabalho. A economia e a
55
população do país tinham começado seu acelerado ascenso; multiplicou-se a
produção agrícola, enquanto o país inteiro modernizava-se e industrializava-
se. Cresceram as cidades e ampliou-se, em extensão e em profundidade, o
mercado de consumo. Porém, o nacionalismo mexicano não derivou para o
socialismo e, em conseqüência, como ocorreu em outros países que
tampouco deram o salto decisivo, não realizou cabalmente seus objetivos de
independência econômica e justiça social. Um milhão de mortos tinha
tributado seu sangue, nos longos anos de revolução e guerra [...]
(GALEANO, p.88).
Diferentemente dos outros países latino-americanos, os documentários não foram
prioridade nas produções mexicanas, sendo grande a diferença em comparação ao número de
produções de ficção. O Nuevo documental inicia-se ligado ao movimento estudantil popular
em 1968, motivado pela crítica social e pela ideologia progressiva que buscava mudanças
sociais.
Tem como principais idealizadores a UNAM – Universidade Nacional Autônoma do
México e um grupo de cineastas independentes. Contava com uma real independência
econômica e ideológica.
Em consequência de sua autonomia é marcado pela oposição ao cine produzido pela
sociedade capitalista e buscava novas formas de produção e conteúdo, além de novas formas
de distribuição e exibição fora dos canais tradicionais e também de relação do cinema com
seu público. Arturo Ripstein, em entrevista a Daicich (2004, p.33), relata:
Era el grupo opositor del cine tradicional mexicano y a mí me importaba
capitalmente porque pertenezco a esta generación de cineastas para la que la
iconoclastia era un valor. Pedí para entrar a este grupo; por supuesto, me
veían con una gran sospecha, pensaban que yo, siendo hijo de un productor
muy conocido en México, entraría a complotar o desmembrarlos desde
dentro. Finalmente, después de probar mi lealtad y mi entusiasmo, me
permitieron ser parte del grupo y cuando fui a la primera reunión, la puerta
estaba cerrada y el grupo se había desmembrado. Es una pena que no haya
formado parte de Nuevo Cine, que es como se llamaba este contingente.
Pero después todos se volvieron mis amigos. Estuve muy cerca de ellos y no
fue lo mismo formar parte de esta especie de clan atroz que venía con
valores de demolición, pero la amistad con ellos siempre fue importante. 23
As velhas experiências dos cineastas mexicanos em relação à indústria
cinematográfica foram aproveitadas pelo novo cine que, livre das amarras do aparato
23 Era um grupo opositor ao cine tradicional mexicano e a mim importava capitalmente, porque pertenço a essa geração de
cineastas para a qual a iconoclastia era um valor. Pedi para entrar neste grupo, porém me viam com muita suspeita, pensavam
que eu, sendo filho de um conhecido produtor mexicano, entraria a aprovar ou desmembrar desde dentro. Finalmente, depois
de provar minha lealdade e meu entusiasmo, me permitiram fazer parte do grupo e quando fui à primeira reunião, a porta
estava fechada e o grupo se havia desmembrado. É uma pena que não tenha formado parte do Novo Cine, que era como se
chamava este contingente. Porém, depois todos se tornaram meus amigos. Estive muito perto deles, mas não foi o mesmo que
formar parte dessa espécie de clã atroz que vinha com valores de demolição, mas a amizade com eles sempre foi importante.
56
industrial, promoveram mudanças na consciência da juventude mexicana. Mesmo desprezado
por alguns críticos culturais, o documental independente buscou consolidar seu
reconhecimento no avanço na luta pela liberação de seu povo.
Precedente de importância para esse novo cine independente foi o cine experimental
iniciado nos anos cinquenta. Desse movimento surgiram respostas às inquietudes e dúvidas da
época. Deixou clara a decadência do discurso industrial e de seus patrocinadores,
demonstrando que o México poderia fazer um cine mais digno se estivesse comprometido
com o desenvolvimento social e cultural de seu país.
O cine experimental dos anos sessenta forjou as condições para o desenvolvimento do
novo cine independente. Outra importante influência foi a difusão das obras do Novo Cine
latino-americano, pois com elas chegavam também ao México formulações teóricas que
foram guias para essa nova proposta de produção. O apoio que os novos cineastas receberam
dos cineclubes também foi fundamental para o seu desenvolvimento.
Nos últimos meses de 1976, os cineastas mexicanos lançaram-se em campanha pela
busca de uma situação favorável a eles. Depois de um primeiro momento, era hora de pôr em
evidência a utilidade de uma produção anti-imperialista contra o sistema de opressão.
A distribuição deu um avanço com a criação de uma distribuidora de filmes criada em
1978, que se propôs a difundir o material independente produzido no país, bem como ajudou
na difusão da cinematografia de outros países latino-americanos.
Na Nicarágua a história de Sandino comoveu o mundo. A luta do chefe guerrilheiro
contra cerca de doze mil invasores norte-americanos e membros da guarda nacional. Com um
exército que tinha como armas latas de sardinha cheias de pedras e facões, Sandino
reinvidicava terra para seu povo e encarou a batalha com a coragem de um líder.
Em 1932, Sandino pressentia: “Eu não viverei muito tempo.” Um ano
depois, sob o influxo da política norte-americana da boa vizinhança,
celebrava-se a paz. O chefe guerrilheiro foi convidado pelo presidente para
uma reunião decisiva em Manágua. No caminho caiu morto numa
emboscada. O assassino, Anastásio Somoza, sugeriu depois que a execução
tinha sido ordenada pelo embaixador norte-americano Arthur Bliss Lane.
Somoza, nessa época chefe militar, não demorou muito para instalar-se no
poder. Governou Nicarágua durante um quarto de século e depois seus filhos
receberam, de herança, o cargo. Antes de pôr no peito a faixa presidencial,
Somoza tinha-se condecorado a si mesmo com a Cruz del Valor, a Medalha
de Distincción e a Medalha Presidencial al Mérito. Já no poder, organizou
várias matanças e grandes celebrações, para as quais fantasiava seus
soldados de romanos, com sandálias e capacetes; converteu-se no maior
produtor de café do país, com 46 fazendas, e dedicou-se à cria de gado em
outras 51 fazendas. Nunca lhe faltou tempo, contudo, para semear também o
terror. Durante sua longa gestão de governo, não passou, verdade seja dita,
maiores necessidades, e recordava com certa tristeza os anos juvenis, quando
tinha de falsificar moedas de ouro para se divertir (GALEANO, 1982, p.79).
57
No Peru, a década de 1960 é marcada pela lutas camponesas intensificadas em
resposta à repressão que se instalava em toda a América Latina. Encorajados pela experiência
cubana, pelos discursos da Aliança Popular Revolucionária Americana e pelo Partido
Comunista, desenvolveram-se ações guerrilheiras e ao mesmo tempo a organização política e
militar para defesa dos interesses capitalistas.
Porém, nesse país, o governo militar que assumiu o poder em 1968 defendia um
discurso nacionalista e anti-imperialista. Eliminou o poder das oligarquias e elevou o poder de
compra dos peruanos. “A reforma agrária que o governo militar do Peru pôs em prática, em
1969, mostrou ser, desde o início, uma séria experiência de mudança em profundidade”
(GALEANO, 1982, p.92).
Quando o governo nacionalista do general Velasco Alvarado chegou ao
poder em 1968, estava em exploração menos da sexta parte das terras do país
aptas para a exploração intensiva, a renda per capita da população era quinze
vezes menor que a dos Estados Unidos e o consumo de calorias aparecia
entre os mais baixos do mundo, porém a produção de algodão continuava,
como a do açúcar, regida por critérios alheios ao Peru, como havia
denunciado Mariátegui. As melhores terras, as campinas da costa, estavam
em mãos de empresas norte-americanas ou latifundiários que só eram
nacionais num sentido geográfico, como a burguesia de Lima. Cinco grandes
empresas - entre elas duas norte-americanas: a Anderson Clayton e a Grace -
tinham em suas mãos a exportação do algodão e do açúcar e contavam
também com seus próprios “complexos agroindustriais” de produção. As
plantações de açúcar e algodão da costa, supostos focos de prosperidade e
progresso por oposição aos latifúndios da serra, pagavam aos peões salários
de fome até que a reforma agrária de 1969 as expropriou e as entregou, em
cooperativas, aos trabalhadores. Segundo o Comitê Interamericano de
Desenvolvimento Agrícola, a renda de cada membro das famílias de
assalariados da costa só chegava aos cinco dólares mensais (GALEANO,
1982, p.68).
A crise internacional acabou sendo ponto determinante para a volta de uma política
focada nos interesses internacionais e a forte crise que assolou o país caracterizou-se pelo
desemprego e pela miséria.
No Uruguai, quem não delatava seu próximo também era considerado culpado. Ao
entrar em uma universidade o estudante deveria jurar por escrito que denunciaria qualquer
atividade que não fosse dedicar-se aos estudos. Dessa forma, qualquer episódio alheio a isso
seria corresponsabilidade daquele que o testemunhasse.
Era o projeto de uma sociedade de sonâmbulos, onde cada cidadão, convertido em
policial, trabalhava em ruas, cafés, pontos de ônibus, fabricas e universidades. Aquele que se
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queixasse poderia ir parar na prisão por atentado contra a força moral das forças Armadas,
com penas variáveis de três a seis anos.
No Uruguai, os inquisidores modernizaram-se. Curiosa mistura de Idade
Média e senso capitalista de negócios. Os militares já não queimam livros:
agora vendem-nos a indústrias do papel. As indústrias retalham-no,
convertem-no em polpa de papel e devolvem-nos ao mercado consumidor.
Não é verdade que Marx não esteja ao alcance do público. Não está em
forma de livros. Está em forma de guardanapos de papel. Em entrevista à
imprensa do presidente Aparício Méndez, em 21 de maio de 1977, em
Paysandú, "Estamos tratando de poupar o país da tragédia da paixão
política", disse o presidente. "Os homens de bem não falam de ditaduras, não
pensam em ditaduras nem reclamam direitos humanos" (GALEANO, 1982,
p.201).
Dessa forma o Novo Cine se desenvolveu por toda a América Latina. Em alguns
países, de forma mais organizada e com maior número de produções; em outros com pouca ou
nenhuma produção, mas seus ideais estiveram presentes em quase todos os vinte países que
fazem parte de seu território.
Em meio a golpes militares e indo contra os interesses norte-americanos, em cada país,
em cada manifesto, em cada película ficavam claros os desejos de liberdade e a vontade de
deixar de servir apenas aos interesses dos blocos hegemônicos que controlavam todo o
território latino-americano.
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CAPITULO 5 - A Fundação do Novo Cine Latino-americano e a Escola Internacional de
Cinema e Televisão em Havana.
O cinema latino-americano teve o início de sua história pouco mais de um ano depois
de o mundo ouvir as notícias sobre a primeira apresentação de cinema dos irmãos Lumiére no
Boulevard des Capucines, em Paris, na França, no ano de 1895. A primeira indústria latino-
americana de cinema que se destacou foi a Mexicana, no início do século XX. Com um
melodrama passional e sentimentalista, conquistou espaço no mercado europeu e norte-
americano.
Na mesma linha, o cinema argentino, com seus tangos e apelos românticos, conquistou
mercado, sendo exportado para países como Paraguai, Brasil, Chile e Espanha. No início dos
anos 50, as chanchadas brasileiras levaram mais espectadores às salas de cinema do país do
que as produções hollywoodianas.
Na mesma época, os ideais de um Novo Cinema fomentaram-se por toda a América
Latina com fortes influências francesas e italianas. De lá vinham novas técnicas e a escola que
teve mais importância para esta nova forma de fazer cinema a que se propunham os cineastas
latino-americanos: o neorrealismo.
Centrado nas posições ideológicas e políticas de seus cineastas, que não eram
teóricos profissionais, mas produtores idealistas focados na luta contra a situação de
dominados e na ordem socioeconômica, política, cultural e necessidades de cada país. Assim,
[...] o subdesenvolvimento é mesmo uma força autodevoradora que dilacera
as possibilidades dos indivíduos e paralisa a criatividade. O cinema que
começamos a fazer na metade dos anos 50 partiu exatamente da
descontinuidade, instrumento arrancado de dentro do subdesenvolvimento,
para voltar-se contra ela, para transformar em ação o que se impõe como
impossibilidade de invenção livre. Os filmes parecem inconclusos. As
teorias criadas em torno deles também. Uma coisa e outra têm um idêntico
tom de roteiro, primeiro pedaço de uma imagem que está nascendo naquele
exato instante, ou esboço perfeito de uma imagem que só vai nascer adiante
(AVELLAR, 1995, p.10).
Atentos a essas histórias e cinematografias dos países aqui apontados, é possível
verificar que cada um, à sua maneira, lutava por fins muito parecidos. Essas singularidades
nas produções tornaram-se mais claras a cada encontro.
O primeiro desses encontros aconteceu no ano de 1958, em Montevidéu, no Uruguai,
durante o Primeiro Congresso Latino-americano de Cineastas Independentes (ALACI).
Participaram idealizadores como Fernando Birri (Argentina), Nelson Pereira dos Santos
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(Brasil), Manuel Chambi (Peru), Jorge Ruiz (Bolívia) e Mario Handler (Uruguai). Quatro
anos depois, encontram-se novamente no Festival de Sestri Levante, na Itália.
Em março de 1967, no Chile, acontece o Festival de cine de Viña del Mar e o I
Encontro de Cineastas Latino-americanos, fundamental para o Movimento do Novo Cine
Latino. A visualização das películas produzidas por cada país, o intercâmbio de discussões,
experiências e ideias, permitiram traçar pontos e objetivos comuns. Um dos mais evidentes
era a necessidade pulsante de produzir uma cinematografia própria, comprometida com as
realidades sociais, históricas, políticas e culturais de cada país, algo comum, mas, até aquele
momento, desconhecido pela maioria.
Em Viña Del Mar, constatou-se a existência de um Novo Cine. Era necessário planejar
e trabalhar para o seu desenvolvimento, para fortalecer as culturas nacionais e transformá-lo
em um instrumento de luta e resistência contra o imperialismo econômico e cultural que
dominava a América Latina. Desse primeiro encontro oficial no Chile deu-se também lugar a
criação do Centro Latinoamericano del Nuevo Cine.
O novo encontro aconteceu em 1968, no Festival de Cine de la Universidad de los
Andes, em Mérida, na Venezuela. Em 1974, movidos pela necessidade de criar uma
organização que unificasse os esforços, desenvolvesse e integrasse um cinema comprometido
com a promoção da solidariedade, durante o Encontro de Cineastas em Caracas, com apoio do
ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos), cria-se Comitê de Cineastas
da América Latina. Suas resoluções foram:
Para la aplicación de los contenidos expresados en la presente declaración,
este Plenario resuelve crear el Comité de Cineastas Latinoamericanos, que
tendrá las siguientes tareas fundamentales:
1. Asegurar la continuidad de las reuniones y encuentros de los cineastas
latinoamericanos, debiendo realizar el próximo en el plazo de un año.
2. Promover reuniones regionales y seminarios de estudios, para examinar y
discutir la problemática del cine latinoamericano.
3. Establecer la solidaridad activa con las cinematografías nacionales que
sufren la persecución y represión de regímenes dictatoriales como Chile,
Uruguay y Bolivia, y, con aquellas que pudieran sufrir la misma situación.
4. Apoyar las cinematografías de aquellos países que están en un grado
incipiente de desarrollo y promover el nacimiento en aquellos donde aún no
existiera.
5. Denunciar permanentemente la utilización de los medios de comunicación
masiva por el imperialismo, como instrumento de penetración ideológica y
deformación de nuestra cultura latinoamericana y parte de su política de
neocolonialismo y dominación. Darse una política en el rescate de esos
medios de comunicación masiva para que estén al servicio de los pueblos
latinoamericanos.
6. Organizar un revelamiento del cine latinoamericano que reúna
información en los siguientes aspectos: condiciones de producción,
distribución y exhibición; existencia de equipos y servicios técnicos,
películas realizadas y en vías de realización, para facilitar su circulación.
61
7. Promover la participación del cine latinoamericano en muestras,
festivales, encuentros y otras manifestaciones culturales similares, con el
objeto de que nuestro cine sea instrumento para el conocimiento integral de
nuestra realidad continental.
8. Editar un boletín informativo sobre la situación del cine latinoamericano y
crear las condiciones para su edición.
9. La sede del Comité de Cineastas Latinoamericanos será la ciudad de
Caracas (PORTAL, 1974)24
O Novo Cine Latino-americano teve a descoberta de ideias, ideais e realidades comuns
como mola propulsora para a integração do cinema como um movimento na América Latina.
Mais do que analisar a cinematografia produzida, a proposta deste estudo é analisar as
ideologias que permeavam suas produções.
O movimento teve uma produção considerável em seu início e a participação ativa de
países que, com orçamentos pequenos, recheados de manifestos e ideologias revolucionárias,
realizaram uma filmografia que rompia com os padrões norte-americanos do cinema
entretenimento. O destaque agora eram as diferentes regiões de cada nação, suas realidades,
seus dilemas e a constante luta entre dominados e dominadores.
O princípio da década de 60 foi um período de grandes mobilizações populares por
todo o mundo. A América Latina e outras partes do terceiro mundo viveram processos de
radicalização política e movimentos sociais que acabaram por conduzi-la por novas correntes
ideológicas, que incitaram o protesto das massas populares frente à queda das conquistas
sociais e perante os modelos econômicos de desenvolvimento dos grandes blocos
hegemônicos, que invadiam seu território, seja com tropas ou empresas.
24 Para a aplicação dos conteúdos expressados na presente declaração, este Plenário resolve criar o Comitê de Cineastas
Latino-americanos, que terá as seguintes tarefas fundamentais:
1. Assegurar a continuidade das reuniões e encontros dos cineastas latino-americanos, devendo realizar o próximo no
prazo de um ano.
2. Promover reuniões regionais e seminários de estúdios para examinar e discutir a problemática do cine latino-
-americano.
3. Estabelecer a solidariedade ativa com as cinematografias nacionais que sofrem perseguição e repressão de regimes
ditatoriais como Chile, Uruguai e Bolívia, e com aquelas que poderão sofrer a mesma situação.
4. Apoiar as cinematografias daqueles países que estão em um grau menor de desenvolvimento e promover o
nascimento naqueles onde não existir.
5. Denunciar permanentemente a utilização dos meios de comunicação massivos pelo imperialismo, como
instrumento de penetração ideológica e deformação da nossa cultura latino-americana e parte de sua política de
neocolonialismo e dominação. Trabalhar politicamente no resgate desses meios de comunicação massivos para que
estejam a serviço dos povos latino-americanos.
6. Organizar e revelar o cine latino-americano mediante reunião de informação nos seguintes aspectos: condições de
produção, distribuição e exibição, existência de equipes e serviços técnicos, filmes realizados e em vias de
realização, para facilitar sua circulação.
7. Promover a participação do cinema latino-americano em mostras, festivais, encontros e outras manifestações
culturais similares, com o objetivo de que nosso cinema seja instrumento para o conhecimento integral de nossa
realidade continental.
8. Editar um boletim informativo sobre a situação do cinema latino-americano e criar as condições para sua edição.
9. A sede do comitê de cineastas Latino-americanos será a cidade de Caracas. (1974)
62
Houve manifestações locais e setores da juventude mobilizados nesses novos
movimentos que se apartavam também das esquerdas tradicionais e conclamavam a uma ação
revolucionária.
Na história do cinema, na América Latina, a maior marca talvez seja a
descontinuidade do modo de pensar e produzir o cinema, que se fragmentou para enfrentar as
realidades e se dividir entre a necessidade de se pensar na ação e a urgência do agir.
Outra particularidade a respeito do cine latino-americano é sua prática estar associada
à militância. Não produziu uma atividade teórica relevante, nem conceitos fundamentais nos
contextos de suas sociedades. Seus maiores pontos de referência foram os grandes teóricos
europeus: franceses, italianos e alemães.
A produção teórica sobre cinema na América Latina é encontrada, na maioria das
vezes, diluída entre artigos, ensaios, entrevistas e reportagens dispersas que hoje, graças ao
avanço tecnológico, começam a ser reunidas e organizadas. Porém, observa-se que essa
teorização está centrada não em estéticas, mas nas possíveis relações entre o cinema e a
sociedade.
Sua análise tem caráter de hipóteses provisórias, pois, em sua maioria, são reflexões
teóricas sobre as possibilidades e estratégias cinematográficas e da busca por um cine apto
para a emancipação da sociedade e dos seres humanos mediante um discurso libertário contra
a dominação.
Considerado por alguns teóricos “o neorrealismo latino-americano”, o Novo Cine
latino-americano acontece não pelo ‘estabelecimento’ de uma ‘linha comum de produção’,
mas pelo ‘reconhecimento’ dela. Em cada país surgiram manifestos e produtores envolvidos
com causas e ideologias próprias, mas com os encontros e a continentalidade resultante de
realidades e influências semelhantes, não iguais.
Surgido na Itália no final dos anos 40, o neorrealismo propiciava não apenas uma nova
estética ou discurso, mas também uma nova alternativa de produção, que ampliou as
possibilidades fílmicas.
Ele pode ser entendido como a primeira proposta nacionalista de aproximar o autor da
realidade. O olhar reflexivo que lança sobre a realidade vai além dos paradigmas e técnicas
impostos pela indústria cinematográfica hegemônica.
Registra questões que afetam a vida das pessoas e influenciam jovens cineastas que o
percebem como a oportunidade para a concretização de projetos que ultrapassariam os limites
do cinema entretenimento, abrindo espaço para debates sobre novas estéticas e sobre o cinema
como meio de elevação do senso crítico. Sobre essas influências, o cineasta brasileiro Carlos
Diegues, no artigo apresentado ao Festival Viva América 2008, comenta:
63
Nada mais atraente, para os jovens intelectuais, artistas e cineastas latino-
americanos daquele momento, do que essas idéias e os filmes que, em nome
delas, começavam a chegar então ao nosso continente. Além de seus valores
morais e políticos, os filmes de Rosselini, Visconti, De Sicca e outros,
possuíam uma iconografia social e humana que, reproduzindo o estado de
ruína e miséria italiano no pós-guerra, se aproximava do que víamos em
nossas próprias cidades e campos, em nossas favelas operárias e em nossos
camponeses semi-escravizados (DIEGUES, 2008, p.02).
Essa influência foi apenas o ponto de partida para que os cineastas latino-
americanos buscassem referências de sua cultura e do registro de sua realidade. Buscavam
explorar novas possibilidades artísticas e discursivas para essa nova arte que acabara por se
popularizar em seu primeiro meio século de existência. Suas produções eram ficções realistas
que se inspiravam no neorrealismo italiano do pós-guerra, bem como no cinema autoral
francês. Sobre como essas influências foram fortes na América Latina, o cineasta cubano Juan
Carlos Tabío comenta em entrevista a Daicich (2004, p.71):
En la década de los sesenta se afianza con más fuerza en Iberoamérica el
cine de autor y un movimiento que en buenas medidas lo marca: es el
cinema novo brasileño. Películas como Dios y el diablo en la tierra del sol,
de Glauber Rocha, las de Diegues, de alguna manera marcaron el cine
cubano. Hay películas como La primera carga al machete, como Lucia,
donde se ve una marca del Cinema Novo. En cada país de nuestro
continente, a partir de los sesenta, toma más fuerza un cine de autor, un cine
reflexivo, un cine muy incisivo con la realidad, desde distintas posiciones
estéticas y conceptuales; ha tenido su desarrollo y estamos en el día de hoy.
No ha habido una continuidad y una continuidad no es más que una suma de
rupturas pequeñas. No es que se haga el mismo cine de antes, pero se hace el
cine. Incluso muchos directores de antes están haciendo películas ahora, tal
es el caso de Titón con su última película, Guantanamera; comenzó haciendo
cine en los años sesenta.25
Com diferenças conceituais e estilísticas, porém com muitos pontos em comum, os
movimentos são empreendidos em “resignificar la realidad fílmica e impulsar la
resignificación de la historia” (VELLEGGIA, 2007, p.83), sendo esse o cerne dos discursos
explícitos em suas produções.
25 Na década de sessenta se torna mais forte na América Ibérica o cinema de autor e o movimento que destaca essa marca é o
cinema novo brasileiro. Filmes como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha e os de Diegues, de alguma maneira,
marcaram o cinema cubano. Existem filmes como La rimera carga al machete, como Lucia, onde se vê presente a marca do
Cinema Novo. Em cada país de nosso continente, a partir dos anos sessenta, toma mais força um cinema de autor, um cinema
reflexivo, um cinema muito incisivo com a realidade, desde suas diferentes posições estéticas e conceituais, houve um
desenvolvimento que nos levou ao que estamos nos dias de hoje. Não houve continuidade e uma continuidade não é mais que
uma soma de pequenas rupturas. Não é que se faça o mesmo cinema que antes, porém se faz cinema. Incluindo muitos
diretores de antes estão realizando filmes agora, como é o caso do Titón com seu ultimo filme, Guantanamera; ele começou
fazendo filmes nos anos sessenta.
64
Outro realizador que foi referência para as obras do Novo Cine é o espanhol Luis
Buñuel, como relata Alfredo Guevara em carta enviada ao cineasta no ano de 1960:
Ya sabe Ud., Buñuel, todo lo que le admiramos, todo el interés, y aún la
pasión que despierta en nuestra juventud su obra, y con ella, en ella y por
Ud. mismo, la honestidad artística y humana – una sola – y el
inconformismo. El cine cubano aspira a contar en algún momento con la
firma de Buñuel (GUEVARA, 2008, p.69).26
Os jovens intelectuais latino-americanos bebiam na fonte da cinematografia europeia e
o Centro Experimental de Cinematografia de Roma foi considerado um ponto de conexão
entre esses jovens latino-americanos, que acabariam por transformar suas cinematografias
nacionais e que ali descobririam a possibilidade de criar suas próprias histórias, retratar suas
realidades. Este traço foi comum entre os cineastas a partir da metade do século, em especial
na Argentina, México, Brasil e Cuba.
Até os anos sessenta, em relação às películas ficcionais, o cinema documental era
quase nulo. A produção era apenas voltada a investimentos que garantiriam retorno seguro de
bilheteria. Falar do movimento documentarista é falar de cineastas independentes, com real
independência, tanto econômica quanto ideológica, completamente desligada e contrária às
fábricas de produções cinematográficas da classe dominante que se instauraram em alguns
países da América latina.
Ya no se trata de agradar los sentidos para sumergir al espectador en el
ilusionismo e las imágenes con el fin de hacerle olvidar los problemas del
mundo en el cual vive, sino de provocar en el interrogante que hagan
tambalear sus certidumbres e ideas previas acerca del mismo. Para lograr este
efecto, también debe ser puesta en crisis su lógica perceptiva y, por tanto, la
lógica narrativa de construcción de la obra (VELLEGGIA, 2007, p.85).27
O cinema e as ideologias políticas caminharam juntos durante esse período,
construindo um modelo que negava o norte-americano e incorporava a valorização da cultura
e da integração latino-americana. Seus cineastas eram jovens intelectuais que, em sua maioria,
retornavam das academias europeias com ideais anarquistas e socialistas, buscando uma
linguagem própria e nacionalista, como afirma Vellegia (2007, p.79):
26 Você já sabe Buñuel, o tanto que lhe admiramos, todo o interesse e a paixão que desperta em nossa juventude sua obra e,
com ela, e nela e por você mesmo, a honestidade artística e humana, uma só, é o inconformismo. O cinema cubano aspira
contar em algum momento com a assinatura de Buñuel (GUEVARA, 2008, p.69).
27 Já não se trata de agradar os sentidos para submergir ao espectador o ilusionismo e as imagens com fim de fazê-lo
esquecer os problemas do mundo no qual vive, mas provocar nele interrogações que abalem suas certezas e ideias prévias
sobre si mesmo. Para alcançar este efeito, também deve ser posta em crise sua lógica perceptiva e, portanto, sua lógica
narrativa de construção da obra (VELLEGGIA, 2007, p.85).
65
El realismo socialista construirá su narrativa en relación con los hechos de la
historia pasada y presente, pero con la intención apologética de “recorte para
la posteridad” como si todo tiempo ya fuera pasado y siempre en torno al
“héroe positivo”. Este personaje marmóreo con su vocación de sacrificio sin
límites, su discurso “sabiondo” – que en todo momento ilustra la moral y la
línea política “correctas” – y su personalidad sin contradicciones, dudas ni
fisuras, construye el arquetipo del socialista verdadero. Por oposición
connotada o denotada, los que se aparten del mismo serán los villanos,
traidores o inadaptados sociales que será preciso combatir o “re-educar”. 28
Durante estes anos, o cine de autor se fortalece em movimentos como o Cinema novo
brasileiro. Este novo cinema transformou-se em um instrumento de trocas e de intervenção
política entre os países latino-americanos.
Seus cineastas se nutriam das propostas teóricas e práticas em seus distintos
movimentos. Esse novo cinema permitia debates estritamente ligados com a história e a vida
de seus povos e os encontros em festivais eram os momentos de trocas de experiências entre
esses cineastas.
Esta nova maneira de se fazer cinema, de forma comprometida com a mudança,
respondia às condições sociais de cada povo, do mesmo modo que delimitava suas
especificidades. Levava de modo implícito uma nova forma de ver o mundo: a do autor, do
idealizador. O Novo Cine surgia sob a influência italiana em vários países do continente. Os
filmes de Tomás Gutierrez Alea (Cuba), Fernando Birri (Argentina) e o Rio, 40 Graus, de
Nelson Pereira dos Santos (Brasil), são exemplos desse novo cinema latino-americano.
A ideia era fazer um cine não programado de acordo com suas origens e trabalhos.
Esses idealizadores se uniram para juntos seguirem com mais força. O mais importante em
suas cinematografias era mostrar a realidade sociocultural de seus povos. Nessas temáticas
não eram diferentes e possibilitavam que se organizassem assim num movimento continental.
Não havia um modelo a ser seguido, apenas baseavam-se na origem e cultura de cada país na
busca de ser um instrumento de elevação crítica da população.
Considerado o ponto de partida do Novo Cinema, o Festival Internacional de Cinema
de Viña del Mar, em 1967, foi o primeiro grande encontro de cineastas latino-americanos na
América Latina. Aí, os idealizadores de países como Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Cuba e
Uruguai, se encontraram, cada um trazendo para o grupo suas realizações cinematográficas,
28 O realismo socialista construirá sua narrativa em relação com os feitos da história passada e presente, mas com a intenção
apologética de ser um ‘recorte para a posteridade’, como se todo tempo já fora passado e sempre em torno do ‘herói
positivo’. Este personagem marmóreo com sua vocação de sacrifícios sem limites, seu discurso ‘sabido’ – que em todo
momento ilustra a moral e a linha política ‘correta’ – sua personalidade sem contradições, duvidas nem fissuras, constrói o
arquétipo do socialista verdadeiro. Por oposição conotada ou denotada, os que se apartem do mesmo serão os vilões, os
traidores ou inadaptados sociais a quem será preciso combater ou reeducar.
66
frutos dos processos vividos em seus países alguns anos antes, especialmente nos anos
cinquenta.
No ano seguinte, 1968, em Mérida, na Venezuela, acontece o II Encontro de Cineastas
Latino-americanos, quando se inicia o intercâmbio de ideias que chega ao seu auge na
elaboração dos documentos comuns que culminariam na organização do Comitê de Cineastas
da América Latina.
Esses encontros contaram com dezenas de cineastas latino-americanos e
muitos críticos e teóricos de toda parte que vinham se inteirar das inusitadas
produções “terceiromundistas” que despertavam os interesses europeus
numa fase de intensa politização da arte. Esses espaços possibilitavam aos
cineastas novas experiências de sociabilidade e delimitavam importantes
conexões entre contextos culturais diferentes, viabilizando a elaboração de
projetos e manifestos comuns que contribuíram para a afirmação coletiva do
movimento, conferiram visibilidade mundial à produção teórica e
cinematográfica latino-americana, propiciaram a interação com o mercado
europeu, a sobrevivência artística e política de muitos cineastas e o
reconhecimento da crítica internacional especializada (VILLAÇA, 2008,
p.2).
Como precedente a esse evento, mas em um nível mais local, houve ainda o Festival
Sodré de Uruguay, onde se encontraram Nelson Pereira dos Santos, do Brasil; Fernando Birri,
da Argentina; Manuel Chambi, do Peru; Jorge Ruiz, da Bolívia e Patrício Kaulen, do Chile.
Sobre esse encontro, Pereira (2004, p.41) declara:
Fernando Birri y yo estuvimos juntos en el año 1958, en el que creo fue el
primer encuentro de cineastas de América Latina, organizado en
Montevideo, aprovechando un festival organizado por la Cinemateca Sodré.
Estábamos yo, Fernando, Manuel Chambi – un documentalista peruano muy
bueno, ya fallecido -, el boliviano Jorge Ruiz y el uruguayo Mario Handler.
Empezamos a trabajar, nos prometimos organizar algo por el cine en
América Latina como conjunto, como idea. No había resultados prácticos,
pero la idea permaneció y proseguimos, hasta que finalmente, con el Festival
de Viña del Mar, que fue el encuentro más importante, más representativo,
se creó el Comité de Cineastas de América Latina, que resultó luego en la
Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano y después en la Escuela
Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños, gracias al
trabajo de Birri, que es un dínamo, que estaba aquí, allá, en Europa, en
Brasil. Birri tuvo también un papel muy importante en Brazil: hizo una
escuela de documentalistas. 29
29 Fernando Birri e eu estivemos juntos no ano de 1958, no que creio foi o primeiro encontro de cineastas da América Latina,
organizado em Montevidéu, aproveitando um festival organizado pela Cinemateca Sodré. Estávamos eu, Fernando, Manuel
Chambi – um documentalista peruano muito bom e já falecido -, o boliviano Jorge Ruiz e o uruguaio Mario Handler.
Começamos a trabalhar, nos prometemos organizar algo pelo cine na América latina como conjunto, como ideal. Não havia
resultados práticos, apenas o ideal permaneceu e prosseguimos, até que, finalmente, com o Festival de Viña del Mar, que foi
o encontro mais importante, mais representativo, se criou o Comitê de Cineastas da América Latina, que resultou logo na
Fundação do Novo Cine Latino-americano e depois na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los
Baños, graças ao trabalho de Birri, que é um dínamo, que estava aqui, lá, na Europa, no Brasil. Birri teve também um papel
muito importante no Brasil: constituiu uma escola de documentaristas.
67
É impossível desligar o cinema revolucionário, que se desenvolveu na América latina,
dos processos políticos que a maior parte de seus países viveu naqueles anos. No âmbito
documental, o cine político se expande, a partir dos anos sessenta, como o marco dos Novos
Cines que surgem por todo mundo, as mesmas “reapropiaciones y resemantizaciones de
aportes de procedência diversa de las vanguardias de los cominezos del siglo XX”, porém,
suas renovações estéticas excedem o sentido político de suas obras (VELLEGIA, 2007, p.83).
Era a possibilidade de a arte, em todo seu conjunto, olhar para a vida. O cinema como o
instrumento de reconhecimento da realidade, demonstrando-a com maior profundidade que
qualquer outra forma de visualização, ciências, lógica ou mesmo razão. Este era o poder
atribuído ao cine.
Mas a efervescência dos ideais progressistas, tanto nos âmbitos sociais como culturais e
as poucas experiências democráticas logo se viram amarradas pelos golpes que atingiram o
continente a partir de 1962 no Peru, 1964 no Brasil e Bolívia, 1966 na Argentina, 1972 no
Equador e, por fim, em 1973 no Uruguai e no Chile, faz com que esse período de produção
livre dure pouco e passe para um tempo de censuras com grande queda na produção
cinematográfica.
Isso leva muitos cineastas a se focarem, ainda que de forma difícil, na tradução da
repressão, das desigualdades e da pobreza que se estabelecia hegemônica em todo seu
território. Muitos cineastas foram exilados e muitas produções nacionais realizadas em solo
estrangeiro, para evitar a perseguição política.
O cinema latino pôs em evidência recortes culturais próprios a cada região e, mesmo
que de maneiras distintas, seus cineastas transformaram o processo de produção, estéticas e
discursos mediante movimentos intelectuais, artísticos e culturais, que reafirmavam as
soberanias nacionais e o compromisso com o processo histórico. O cineasta Glauber Rocha
declara suas motivações sociais e políticas ao afirmar que:
[...] desde que surgiu o “cinema novo” saímos do provincianismo cultural.
Não podíamos cair em discussões não políticas. Não podíamos atacar e
denunciar companheiros de esquerda à ditadura da mesma forma que estes
companheiros nos denunciavam e nos desmoralizavam diante da direita. Só
tínhamos uma resposta: filmes. E nossos filmes, por todos estes anos,
estiveram entre os melhores revolucionários do mundo (ROCHA, 1971, p.3).
Ao mesmo tempo em que reafirmavam e se fechavam em sua regionalidade, os países
latino-americanos tinham como característica em comum a construção de suas culturas
68
impregnadas de elementos europeus, africanos e ameríndios. Essas peculiaridades os tornaram
tanto voltados para si, como abertos para as tradições culturais de outros continentes:
Estas ideas contribuyen a que la identidad cultural de esta región,
especialmente la resultante de las expresiones literarias, deba entenderse
como una noción dinámica, reflejo de un proceso dialéctico permanente
entre tradición y novedad, continuidad y ruptura, integración y cambio,
evasión y arraigo, apertura hacia ‘otras’ culturas y repliegue aislacionistas y
defensivo sobre sí misma, dinâmica que se traduce en un doble movimiento:
el centrípeto nacionalista y el centrífugo universalista (AINSA, 1991,
p.52).30
Os intelectuais latino-americanos, ao (re)produzir sua cultura, incorporaram a ela
conceitos de subdesenvolvimento nas ciências sociais e nas artes, ao mesmo tempo que
evidenciaram os movimentos populares e os discursos da minoria, principalmente após os
acontecimentos históricos da década de 60, na proeminência utópica de uma América latina
revolucionária, rumo à libertação de seus povos. Para melhor entender esse processo, faz-se
necessário buscar dentro de cada país seus pensadores e realizadores.
No período histórico a partir dos anos de 1960, a maioria dos países da América Latina
foram marcados por revoluções e golpes militares que foram decisivos no caminho trilhado
por sua cinematografia.
Os ideais do Novo Cine eram frutos de uma ideologia que não cabia mais no ambiente
político que imperou após os golpes militares. Não havia mais espaço para ações como as de
Oscar Kanto e Alex Viany, conforme retratadas na carta enviada pelos dois a Alfredo Guevara
(2008, p.128) em 1963:
Reunidos los compañeros responsables de las frentes de cine del Partido del
Brasil y la Argentina, después de analizar la situación de nuestras respectivas
cinematografías, así como las del resto de Latinoamérica, que reflejan en
mayor o menor medida la situación de crisis de la estructura de nuestros
países, hemos pensado en la necesidad de encarar en común una producción
que sea expresión de los intereses populares y nacionales, para así acentuar
la lucha ideológica y desarrollar dentro de nuestras posibilidades una labor
de esclarecimiento y entendimiento entre nuestros pueblos. En ese sentido,
comenzamos, dentro de poco tiempo, dos coproducciones en episodios, que
reúnen a Brasil, Argentina, Chile y México. 31
30 Estas ideias contribuem para que a identidade cultural desta região, especialmente a resultante das expressões literárias,
deve entender-se como uma noção dinâmica, reflexo de um processo dialético permanente entre a tradição e a novidade,
continuidade e ruptura, integração e mudança, evasão e sujeição, abertura a outras culturas e retiradas isolacionistas e
defensivas sobre si mesmo, dinâmica que traduz um duplo movimento: o centrípeto nacionalista e o centrifugo universalista
(AINSA, 1991, p.52). 31 Reunimos os companheiros responsáveis pelas frentes de cinema do Partido do Brasil e da Argentina, depois de analisar a
situação de nossas respectivas cinematografias, assim como as do resto da América Latina, que refletiam em maior ou menor
medida a situação de crise da estrutura de nossos países, temos pensado na necessidade de encarar em comum uma produção
que seja expressão dos interesses populares e nacionais, para assim acentuar a luta ideológica e desenvolver dentro de nossas
possibilidades um trabalho de esclarecimento e entendimento entre nossos povos. Nesse sentido começamos, dentro de pouco
tempo, duas co-produções em episódios que reúnem o Brasil, Argentina, Chile e México.
69
Aos poucos todas as possibilidades de produções conjuntas se fecham e as
perseguições a tais ideais levam muitos realizadores ao exílio, ou mesmo à morte. Como no
caso de Jorge Cedrón, cineasta argentino cuja morte até hoje não foi explicada, e do brasileiro
Vladimir Herzog, torturado pelos militares após se apresentar para prestar depoimento e
encontrado morto em sua cela, enforcado com a própria gravata.
O enfoque agora será conhecer um pouco a produção cinematográfica dos principais
países participantes do Novo Cine. Alguns com uma vasta história e vários nomes, outros com
pequenas histórias e apenas um idealizador, mas cada um com seu discurso, seus ideais, e a
produção voltada para mudar a realidade de subserviente.
A partir da criação do comitê de cineastas fica mais forte o movimento e sente-se a
necessidade da criação de uma entidade que trabalhasse essa integração continental e cuidasse
tanto da produção quanto auxiliasse na distribuição.
Três anos depois, no festival de Mérida, na Venezuela, incorporaram-se novos
membros ao comitê. Em 1979 acontece em Cuba, o primeiro Festival Internacional do Novo
Cine Latino-americano de Havana, que passa a ser o local de encontro anual dos membros do
comitê. Em 1982, durante o IV Festival de Havana, amplia-se o número de participantes do
Comitê e cria-se uma coordenação com cinco integrantes. Em 1984, Fidel Castro reúne-se
com os membros do C-CAL e inicia o movimento para a criação da Fundação do Novo Cine
Latino-americano (FNCL) e da Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV).
Foi essa sequência de encontros que resultou na Fundação do Novo Cine Latino-
americano, que se formou como herdeira do discurso e da tradição de solidariedade
estabelecida dentro de cinematografias distintas que ocorreram em seus países e confluíram
para o estabelecimento de ações coordenadas, em resposta ao processo que anunciava e
propunha novas etapas de crescimento para as cinematografias na América Latina. Em 04 de
dezembro de 1985, o “Comitê de Cineastas da América Latina” (C-CAL) reuniu-se presidido
pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, com a proposta de integrar esforços e
ampliar contatos.
Os cineastas Fernando Birri (Argentina), Nelson Pereira dos Santos (Brasil) e Alfredo
Guevara (Cuba) são considerados membros de honra, pela representação histórica no
movimento do Novo Cine. Na mesma época é redigida a primeira Ata, que dizia:
En los últimos años hemos asistido al ejercicio de un período del Nuevo
Cine Latinoamericano, que anuncia y propone etapas superiores de
crecimiento. Los iniciales y significativos esfuerzos de los primeros años de
70
la década de los cincuenta se han convertido, por la constancia y el sostenido
trabajo de los cineastas, en un proceso siempre ascendente aunque cruzado
por las dificultades y adversidades propias de una lucha desigual contra los
poderes del atraso y de la dependencia. Proceso que cristaliza hoy en
legislaciones nacionales dirigidas a proteger las cinematografías, en
organismos de fomento a la producción y cultura cinematográficas, en
convenios subregionales y regionales, en la creación de asociaciones
multinacionales – latinoamericanas o iberoamericanas – para la integración
cultural y la ampliación de nuestros propios mercados, en el fortalecimiento
gremial y sindical, en la conquista de un espacio en las pantallas y, de
manera especial, en la realización de obras de notable jerarquía creadora
como son, entre muchas otras, las de Glauber Rocha, Fernando Birri, Nelson
Pereira dos Santos, Tomás Gutiérrez Alea, Miguel Littín, Santiago Álvarez.
El Comité de Cineastas de América Latina, consciente de este proceso, de
sus enormes contenidos, de su destino abierto y promisorio; consciente del
surgimiento de nuevas cinematografías y jóvenes realizadores orientados por
el objetivo común de rescatar y afianzar nuestra identidad continental;
consciente de que nuestra actividad en el cine, la televisión y otros medios
audiovisuales debe estar orientada al logro del bienestar espiritual y material
de los pueblos, ha resuelto crear la FUNDACIÓN DEL NUEVO CINE
LATINOAMERICANO, a los fines de contribuir al fortalecimiento de la
cinematografía de nuestros países, en particular de las cinematografías
nacientes, mediante el fomento a la producción, distribución y exhibición,
así como a la investigación, docencia, conservación, archivo y difusión
cultural de la obra cinematográfica, en el amplio marco de la preservación de
nuestro patrimonio cultural y la progresiva renovación de la sociedad.
El Comité de Cineastas de América Latina autoriza a su Secretaría Ejecutiva
a todos los actos concernientes al estudio y elaboración del Acta Constitutiva
- Estatutos Sociales de la FUNDACIÓN, en la cual se expresará el nombre,
domicilio, objeto y la forma en que será administrada y dirigida, así como a
los actos necesarios para la formación del Patrimonio inicial de la
FUNDACIÓN, mediante aportes, contribuciones y donaciones de entes
públicos y privados del Continente y del resto del mundo. El Comité de
Cineastas de América Latina, dispone asimismo, que el acto de
protocolización del Acta Constitutiva - Estatutos Sociales y la instalación de
la FUNDACIÓN deberán realizarse en el curso del VII Festival del Nuevo
Cine Latinoamericano. Comité de Cineastas de América Latina. En la
Ciudad de La Habana, Cuba, abril 1985 32
32 Nos últimos anos temos assistido a uma produção de um período do Novo Cine Latino-americano, que anuncia e propõe
etapas superiores de crescimento. Os iniciais e significativos esforços dos primeiros anos da década de cinquenta se
convertem, pela constância e pelo trabalho desenvolvido pelos cineastas, em um processo sempre ascendente, ainda cruzado
pelas dificuldades e adversidade próprias de uma luta desigual contra os poderes do atraso e da dependência. Processo que
cristaliza hoje as legislações nacionais dirigidas a proteger a cultura cinematográfica em convênios sub-regionais e regionais,
na criação de associações multinacionais, latino-americanas ou ibero-americanas, para a integração cultural e a ampliação de
nossos próprios mercados, e o fortalecimento de grêmios e sindicatos, na conquista de espaço nas telas e, de maneira
especial, na realização de obras de notável hierarquia criadora como são, entre muitas outras, as de Glauber Rocha, Fernando
Birri, Nelson Pereira Dos Santos, Tomás Gutiérrez Alea, Miguel Littín, Santiago Álvarez. O comitê de Cineastas da América
Latina, consciente deste processo, de seus enormes conteúdos, de seu destino aberto e promissor, conscientes do surgimento
de novas cinematografias e jovens realizadores orientados por um objetivo comum de resgatar e afiançar nossa realidade
continental, consciente de que nossa atividade no cinema, na televisão e nos outros meios audiovisuais deve estar orientada
para a procura de bem-estar espiritual e material dos povos, resolveu criar a FUNDAÇÃO DO NOVO CINE LATINO-
-AMERICANO, com o fim de contribuir para o fortalecimento da cinematografia de nossos países, em particular com as
cinematografias nascentes, mediante o fomento da produção, distribuição e exibição, assim como a investigação, docência,
conservação, arquivos e difusão cultural da obra cinematográfica, em seu amplo marco de preservação de nosso patrimônio
cultural e a progressiva renovação da sociedade. O comitê de cineastas da América Latina autoriza sua Secretaria Executiva a
todos os atos concernentes ao estudo e elaboração da Ata Constitutiva - Estatutos Sociais da Fundação, no qual se expressará
o nome, domicilio, objeto e a forma como será administrada e dirigida, assim como os atos necessários para a formação do
patrimônio inicial da Fundação, mediante aportes, contribuições e doações de entes públicos e privados do Continente e do
resto do mundo. O Comitê de Cineastas da América Latina dispõe ainda que o ato de protocolização da Ata Constitutiva -
71
Foi durante o VII Festival do Novo Cine em Havana, no dia quatro de dezembro de
1985, que se constitui a Fundação do Novo Cine Latino-americano. Logo no início de 1986
iniciam-se os trabalhos para o desenvolvimento da EICTV. Devido ao apoio dado por Fidel
Castro, decidiu-se que ambas seriam radicadas em Cuba. Em treze de março o poeta Gabriel
García Márquez é nomeado oficialmente o presidente da fundação. Para criação da EICTV
convidaram Fernando Birri, que já havia vivido a experiência da Escola Documental de Santa
Fé, na Argentina, para dirigi-la, cargo que acabou por ocupar até 1991. A sede da Fundação
foi oficialmente inaugurada em quatro de dezembro de 1985 e a EICTV em 15 de dezembro
de 1986. Sobre a presidência de Gabo, um artigo publicado no Correio Brasiliense, de 11 de
dezembro do mesmo ano, dizia:
Muita gente se intriga com a presença constante do escritor, Prêmio Nobel
de Literatura, Gabriel García Márquez, ao lado de Fidel Castro, no momento
em que intelectuais como Vargas Llosa, Octávio Paz e Jorge Semprún
dirigem críticas ferinas aos rumos tomados pela revolução que instituiu a
primeira experiência socialista na América Latina.
Mais intrigados, ainda, ficam os que tomam conhecimento da nova função
do escritor: ele é, desde o ano passado, presidente da Fundação do Novo
Cinema Latino-Americano, organismo que recentemente ganhou magnífica
sede nos arredores de Havana. E mais: o escritor teve o prazer de inaugurar,
em San Antonio de los Baños, a Escola Internacional de Cinema, Televisão e
Vídeo ou Escola dos Três Mundos, presidida por ele e dirigida pelo
argentino Fernando Birri. O brasileiro Sérgio Muniz é coordenador
pedagógico.
No dia de Santa Bárbara, Gabriel García Márquez proferiu na nova sede da
Fundação do Novo Cine Latino-americano (a finca Santa Bárbara), discurso
que, além de arrancar muitas gargalhadas, mostrou as múltiplas intenções do
organismo por ele presidido. Embora seja uma figura notória no mundo
literário e não no cinematográfico, o escritor mostra-se disposto a dedicar-se
com igual afinco à literatura e ao cinema. Quando a Fundação transformar-se
em uma realidade concreta, os leitores-cinéfilos de Gabo terão como prêmio
a recriação cinematográfica de parte significativa de sua obra ficcional
(CAETANO, 1982, p.37).
Seus membros fundadores foram:
Os colombianos Carlos Alvarez e Lisandro Duque; os argentinos Edgardo Pallero e
Fernando Birri; os bolivianos Jorge Sanjinés e Beatriz Palácios; os brasileiros Cosme Alves
Netto, Chico Teixeira, Geraldo Sarno, Nelson Pereira dos Santos e Silvio Tendler; os
Cubanos Alfredo Guevara, Daniel Díaz Torres, Julio García Espinosa e Manuel Pérez
Paredes; os chilenos Miguel Littín, Pedro Chaskel e Sergio Trabucco; os mexicanos Jorge
Estatutos Sociais que a instalação da Fundação deverá realizar-se durante o VII Festival del Nuevo Cine Latino-americano.
Comitê de cineastas da América Latina. Cidade de Havana, Cuba, abril, 1985.
72
Sanches e Paul Leduc; o nicaraguense Ramiro Lacayo; o panamenho Pedro Rivera; o
equatoriano Ulises Estrella; o norte-americano Jesús Treviño; os peruanos Alberto Durant e
Nora Izcue; os portorriquenhos José García e Ana Maria García; o Uruguaio Walter Achugar;
os venezuelanos Edmundo Aray e Tarik Souki.
Ao todo somavam-se quinze nacionalidades e para entender qual discurso os movia,
destacam-se as palavras proferidas no discurso de seu presidente no ato da posse:
[...] Sólo después de adoptarla como sede de la Fundación del Nuevo Cine
Latinoamericano, supimos que la historia de esta casa no empezaba ni
terminaba con estas torres, y que mucho de lo que se cuenta de ella no es
verdad ni es mentira. Es cine. Pues, como ya ustedes deben haberlo
vislumbrado, fue aquí donde Tomás Gutiérrez Alea filmó Los sobrevivientes,
una película que a ocho años de su realización, y a veintisiete del triunfo de
la Revolución Cubana, no es una verdad más en la historia de la imaginación
ni una mentira menos de la historia de Cuba, sino parte de esta tercera
realidad entre la vida real y la invención pura, que es la realidad del cine.
De modo que pocas casas como esta podrían ser tan propicias para
emprender desde ella nuestro objetivo final, que es nada menos que el de
lograr la integración del cine latinoamericano. Así de simple, y así de
desmesurado. Y nadie podría condenarnos por la simpleza sino más bien por
la desmesura de nuestros pasos iniciales en este primer año de vida, que por
casualidad se cumple hoy, día de Santa Bárbara, que también por artes de
santidad o de santería es el nombre original de esta casa.
La semana entrante la Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano va a
recibir del Estado cubano una donación que nunca nos cansaremos de
agradecer, tanto por su generosidad sin precedentes y su oportunidad, como
por la consagración personal que ha puesto en ella el cineasta menos
conocido del mundo: Fidel Castro. Me refiero a la Escuela Internacional de
Cine y Televisión, en San Antonio de los Baños, preparada para formar
profesionales de la América Latina, Asia y África, con los recursos mejores
de la técnica actual. La construcción de la sede está terminada a sólo ocho
meses de su iniciación. Los maestros de distintos países del mundo están
nombrados, los estudiantes están escogidos, y la mayoría de ellos están ya
aquí con nosotros. Fernando Birri, el Director de la Escuela, que no se
distingue por su sentido de la irrealidad, la definió hace poco ante el
Presidente argentino Raúl Alfonsín, sin que le temblara un músculo de su
cara de santo, como "la mejor Escuela de Cine y Televisión de toda la
historia del mundo".
Esta será, por naturaleza misma, la más importante y ambiciosa de nuestras
iniciativas, pero no será la única, pues la formación de profesionales sin
trabajo sería un modo demasiado caro de fomentar el desempleo. De modo
que en este primer año hemos empezado a echar las bases para una vasta
empresa de promoción y enriquecimiento del ámbito creativo del cine y la
televisión de América Latina, cuyos pasos iniciales son los siguientes:
Hemos coordinado con productores privados la producción de dos
largometrajes de ficción y tres documentales largos, todos dirigidos por
realizadores latinoamericanos, y un paquete de cinco cuentos de una hora
cada uno, para televisión, realizado por cinco directores de cine o televisión
de distintos países de América Latina.
Estamos haciendo en estos días las convocatorias para ayudar a cineastas
jóvenes de América Latina que no hayan podido realizar o terminar sus
proyectos de cine o televisión.
73
Tenemos adelantadas las gestiones para la adquisición de una sala de cine en
cada país de América Latina, y tal vez en algunas capitales de Europa,
destinadas a la exhibición permanente y el estudio del cine latinoamericano
de todos los tiempos.
Estamos promoviendo en cada país de América Latina un concurso anual de
cine de aficionados, a través de las secciones respectivas de la Fundación,
como un método de captación precoz de vocaciones, y como un medio de la
Escuela Internacional de Cine y Televisión para seleccionar a sus alumnos
en el futuro.
Estamos patrocinando una investigación científica sobre la situación real del
cine y la televisión en América Latina, la creación de un banco de
información audiovisual sobre el cine latinoamericano, y la primera
filmoteca del cine independiente del Tercer Mundo.
Estamos patrocinando la elaboración de una historia integral del cine
latinoamericano, y de un diccionario para la unificación del vocabulario
cinematográfico y de televisión en lengua castellana.
La sección mexicana de la Fundación ha iniciado ya la publicación que
recoge, país por país, los principales artículos y documentos del Nuevo Cine
Latinoamericano.
En el marco de este Festival de Cine de La Habana, nos proponemos hacer
un llamado a los gobiernos de América Latina, y a sus organismos de cine,
para que intenten una reflexión creativa sobre algunos puntos de sus leyes de
protección a los cines nacionales, que en muchos casos sirven más para
estorbar que para proteger, y que en términos generales van en sentido
contrario al de la integración del cine latinoamericano.
Entre 1952 y 1955, cuatro de los que hoy estamos a bordo de este barco
estudiábamos en el Centro Experimental de Cinematografía de Roma: Julio
García Espinosa, Vice-Ministro de Cultura para el Cine, Fernando Birri, gran
papá del Nuevo Cine Latinoamericano, Tomás Gutiérrez Alea, uno de sus
orfebres más notables, y yo, que entonces no quería nada más en esta vida
que ser el Director de Cine que nunca fui. Ya desde entonces hablábamos
casi tanto como hoy del cine que había que hacer en América Latina, y de
cómo había que hacerlo, y nuestros pensamientos estaban inspirados en el
neo-realismo italiano, que es –como tendría que ser el nuestro– el cine con
menos recursos y el más humano que se ha hecho jamás. Pero sobre todo, ya
desde entonces teníamos conciencia de que el cine de América Latina, si en
realidad quería ser, sólo podía ser uno. El hecho de que esta tarde sigamos
aquí, hablando de lo mismo como loquitos con el mismo tema después de
treinta años, y que estén con nosotros hablando de lo mismo tantos
latinoamericanos de todas partes y de generaciones distintas, quisiera
señalarlo como una prueba más del poder impositivo de una idea
indestructible.
Por aquellos días de Roma viví mi única aventura en un equipo de dirección
de cine. Fui escogido en la Escuela como tercer asistente del director
Alexandro Blasetti en la película Lástima que sea un canalla, y esto me
causó una gran alegría, no tanto por mi progreso personal, como por la
ocasión de conocer a la primera actriz de la película, Sofía Loren. Pero
nunca la vi, porque mi trabajo consistió, durante más de un mes, en sostener
una cuerda en la esquina para que no pasaran los curiosos. Es con este título
de buen servicio, y no con los muchos y rimbombantes que tengo por mi
oficio de novelista, como ahora me he atrevido a ser tan presidente en esta
casa, como nunca lo he sido en la mía, y a hablar en nombre de tantas y tan
meritorias gentes de cine.
74
Esta es la casa de ustedes, la casa de todos, a la cual lo único que le falta
para ser completa es un letrero que se vea en todo el mundo, y que diga con
letras urgentes: "Se aceptan donaciones".
Adelante. 33
33 Apenas depois de adotá-la como sede da Fundação do Novo Cine Latino-americano, supomos que a história dessa casa
não começava nem terminava com estas torres, e que muito do que se conta sobre ela não é verdade nem mentira. É cinema.
Pois, como vocês já deve ter percebido, foi aqui que Tomás Gutiérrez Alea filmou Os sobreviventes, um filme que a oito anos
de sua realização e a vinte e sete do triunfo da Revolução Cubana, não é uma verdade a mais na história da imaginação, nem
uma mentira a menos na história de Cuba, senão parte desta terceira realidade entre a vida real e a invenção pura, que é a
realidade do cinema.
De modo que poucas casas como esta poderiam ser tão propícias para empreender através dela nosso objetivo final, que é
nada menos que obter a integração do cinema latino-americano. Simples e desmesuradamente assim. E ninguém poderia
condenar-nos pela simplicidade senão melhor pela desmesura de nossos passos iniciais neste primeiro ano de vida, que por
casualidade se cumpre hoje, dia de Santa Bárbara, que também por arte de santidade ou de bruxaria é o nome original dessa
casa.
Na próxima semana a Fundação do Novo Cine Latino-americano vai receber do Estado cubano uma doação que nunca
cansaremos de agradecer, tanto por sua generosidade sem precedentes e sua oportunidade, como pela consagração pessoal
que tem posto nela o cineasta menos conhecido do mundo: Fidel Castro. Eu me refiro à Escola Internacional de Cinema, em
San Antonio de los Baños, preparada para formar profissionais da América latina, Ásia e África, com os melhores recursos da
técnica atual. A construção da sede está terminada a apenas oito meses do início dos trabalhos. Os professores de distintos
países do mundo estão nominados, os estudantes estão escolhidos e a maioria deles já estão aqui conosco. Fernando Birri, o
diretor da escola, que não se distingue por seu sentido de irrealidade, a definiu faz pouco ante o presidente argentino Raúl
Alfonsín, sem que lhe mexesse um músculo em sua cara de santo, como ‘a melhor Escola de Cinema e Televisão de toda
história do mundo”.
Esta será, por sua própria natureza, a mais importante e ambiciosa de nossas iniciativas, porém não será a única, pois a
formação de profissionais sem trabalho seria um modo demasiadamente caro de fomentar o desemprego. De modo que neste
primeiro ano começamos a fixar as bases para uma vasta empresa de promoção e enriquecimento do âmbito criativo do
cinema e da televisão na América Latina, cujos passos iniciais são os seguintes:
Temos coordenado com produtores privados a produção de dois longa-metragens de ficção e três longas documentais, todos
dirigidos por realizadores latino-americanos, e um pacote com cinco contos de uma hora cada um, para televisão, realizado
por cinco diretores de cine e televisão de diferentes países da América Latina.
Estamos fazendo nesses dias as convocatórias para ajudar cineastas jovens da América Latina que não puderam terminar
seus projetos de cinema e televisão. Temos adiantadas as gestões para aquisição de uma sala de cinema em cada país da
América Latina e, talvez em algumas capitais da Europa, destinadas à exibição permanente e ao estudo do cine latino-
americano em todos os tempos.
Estamos promovendo em cada país da América Latina um concurso anual de cinema para aficionados, mediante as
respectivas seções da Fundação, como um método de capacitação precoce de vocações e como um meio de a Escola
Internacional de Cinema e Televisão selecionar seus alunos no futuro.
Estamos patrocinando uma investigação cientifica sobre a real situação do cinema e da televisão na América Latina, a criação
de um banco de informação audiovisual sobre o cinema latino-americano e a primeira videoteca de cine independente do
terceiro mundo.
Estamos patrocinando a elaboração de uma história integral do cinema latino-americano e um dicionário para unificação do
vocabulário cinematográfico e de televisão em língua castelhana.
A seção mexicana da Fundação iniciou já a publicação que recolhe, de país em país, os principais artigos e movimentos do
Novo Cine Latino-americano.
No marco deste Festival de Cinema de Havana, nos propomos a fazer um chamado aos governos da América Latina e a seus
organismos de cinema, para que intentem uma reflexão crítica sobre alguns pontos de suas leis de proteção aos cinemas
nacionais que, em muito casos, serve mais para atrapalhar do que para proteger, e que em termos gerais vão em sentido
contrario à integração do cine latino-americano.
Entre 1952 e 1955, quatro dos que hoje estamos a bordo desse barco estudávamos no Centro Experimental de Cinematografia
de Roma: Julio García Espinosa, Vice-Ministro da Cultura para o Cinema, Fernando Birri, o grande pai do Novo Cine
Latino-americano, Tomás Gutiérrez Alea, um de seus nomes mais notáveis, e eu, que então não queria mais nada nessa vida
que ser Diretor de Cinema que nunca fui. Desde então falávamos quase tanto como hoje do cine que havíamos de fazer na
América Latina, e de como havíamos de fazê-lo, e nossos pensamentos estavam inspirados no neorrealismo italiano, que é –
como teria que ser o nosso – o cine com menos recursos e mais humano que se havia feito. Sobretudo, já desde então
tínhamos consciência de que o cine da América Latina, se na realidade queria ser, só podia ser um. O fato de que nesta tarde
seguimos falando como loucos dos mesmos temas depois de trinta anos, e que estiveram falando conosco os mesmos tantos
latino-americanos de todas as partes e gerações distintas, quisera assinalar como uma prova a mais do poder impositivo de
uma ideia indestrutível.
Naqueles dias de Roma vivi minha única aventura com uma equipe de direção de cinema. Fui escolhido na Escola como
terceiro assistente do diretor Alexandro Blasetti no filme Lástima que seja um canalha, e isto me causou uma grande alegria,
tanto por meu progresso pessoal, como pela chance de conhecer a protagonista do filme, Sofia Loren. Porém nunca a vi, por
que meu trabalho se constituiu, durante mais de um mês, em manter uma corda na esquina para que não passassem curiosos.
E com esse título de bom serviço, e não com os muito e retumbantes que tenho por meu ofício de novelista, como agora me
atrevi a ser presidente desta casa, como nunca fui na minha e a falar em nome de tantas e tão merecedoras pessoas do cinema.
Esta é a casa de vocês, a casa de todos, à qual a única coisa que falta para ser completa é um letreiro que se veja em todo o
mundo, que diga com letras garrafais: "Aceitam-se doações".
75
Sob essas diretrizes, o conselho diretivo da Fundação do Novo Cine teve como
representantes: David Blaustein, da Argentina; Orlando Senna, do Brasil; Alquimia Peña, de
Cuba. Sua proposta de trabalho é desenvolver projetos com três linhas estratégicas de atuação.
Em primeiro lugar e como princípio básico em sua política institucional, o
desenvolvimento e a integração cinematográfica da América Latina e Caribe, mediante o
desenvolvimento de projetos e ações que visavam consolidar o mercado audiovisual dos
países participantes. As prioridades no plano de ações era a incorporação das tecnologias de
informação e comunicação e seu uso intensivo, otimizando a vasta rede de cineastas e
profissionais em audiovisual.
A segunda linha de atuação trabalha pela preservação do patrimônio cultural
audiovisual e assegurar a memória da diversidade cinematográfica e audiovisual latino-
americana e caribenha. A terceira linha é fomentar o desenvolvimento de uma indústria
cultural do cinema e do audiovisual, promovendo o reconhecimento mútuo das realidades
sociais, das lutas e dos sonhos de milhões de latino-americanos.
No mesmo ano de 1985, o Comitê decide criar a Escola Internacional de Cinema e TV
de San Antonio de los Baños, buscando contribuir para o fortalecimento da produção de seus
jovens idealizadores, de preferência aqueles que não tinham nenhuma infraestrutura de
produção, além do incentivo à pesquisa, à docência e à difusão cultural das obras
cinematográficas. A inauguração acontece em 1987.
A sede, que se encontra a trinta quilômetros de Havana, foi construída em meio à
natureza e disponibiliza o desenvolvimento de talento tanto de seus estudantes quanto
daqueles que trabalham ali.
Sua estrutura é autossuficiente em muitos sentidos: é casa, escola e produtora
audiovisual. Integra liberdade criativa e antidogmatismos e dela participam estudantes,
egressos, professores e trabalhadores, que juntos compartilham os processos de aprendizagem
em espaços comuns de convivência.
Os trabalhadores, em sua maioria, são habitantes de San Antonio de los Baños, que
facilitam o envolvimento dos estudantes com a comunidade. Todos os anos a escola recebe
uma nova geração de estudantes no curso regular. O processo de admissão é feito através de
uma seleção rigorosa.
Adiante.
76
Muitos egressos retornam à escola como professores e assistentes. Esses ex-alunos
ajudam a manter vivos os ideais originais da instituição. Essa rede formada por alunos e
egressos busca destacar-se por sua unidade.
Mas será que o discurso social do cinema, que lutava contra a soberania de poucos
sobre muitos, contra a dominação, ainda continua o mesmo? Nos anos de 1960, referendados
pelo discurso anarcossindicalista dos anos 20, pelo discurso socialista que combatia o
capitalismo e fundamentado no discurso marxista, o duelo entre o social e o capital se instalou
em toda a América Latina.
Porém, com o passar dos anos, o domínio do capital e das indústrias culturais aponta
para um novo momento em que essa simples divisão não se sustenta mais. Ao pensar o novo
cine produzido atualmente deve-se levar em conta que o problema agora reside:
[...] em que a modernização se produziu de um modo diferente do que
esperávamos em décadas anteriores. Nessa segunda metade do século, a
modernização não foi feita, tanto pelos estados, quanto pela iniciativa
privada. A ‘socialização’ ou democratização da cultura foi realizada pelas
indústrias culturais – em posse quase sempre de empresas privadas – mais
que pela boa vontade cultural ou política dos produtores. Continua havendo
desigualdade na apropriação dos bens simbólicos e no acesso à inovação
cultural, mas essa desigualdade já não tem a forma simples e polarizada que
acreditávamos encontrar quando dividíamos cada país em dominadores e
dominados, ou o mundo em impérios e nações dependentes. Depois desse
acompanhamento das transformações estruturais, é preciso averiguar como
diversos agentes culturais – produtores, intermediários e públicos –
redimensionam suas práticas ante tais contradições da modernidade, ou
como imaginam que poderiam fazê-lo (CANCLINI, 2008, p.97).
Dessa forma, os processos sociais e políticos nos anos marcados pelos regimes
autoritários em vários países da América do Sul e as diversas lutas por libertação na América
Central destruíram velhas certezas e abriram novas brechas que confrontaram sua verdade
cultural: "a mestiçagem, que não é só aquele fato racial do qual viemos, mas a trama hoje de
modernidade e de descontinuidades culturais, deformações sociais e estruturas do sentimento,
de memórias e imaginários", em uma mistura entre o indígena, o rural, o urbano, o folclórico,
o popular e o massivo (CANCLINI, 2008, p.64).
Continuar com os mesmos propósitos num tempo em que as ideologias socialistas e
libertárias foram sufocadas pela máxima do direito à propriedade e pela efemeridade da
produção artística, talvez seja um desafio maior ainda do que as coibições políticas já
enfrentadas pelo movimento. Em um tempo de consumismo exacerbado, a estética da fome
torna-se mais um rito do que uma ideologia pulsante. Essa ritualidade reflete aos “diferentes
usos sociais dos meios”, como no “barroquismo expressivo dos modos populares de assistir
ao filme, frente à sobriedade e seriedade do intelectual, para quem qualquer ruído é capaz de
77
distraí-lo de sua contemplação cinematográfica” (BARBERO, 2009, p.19). Sobre o processo
de conversão das ideologias em ritos, Canclini afirma:
Há um momento em que os gestos de ruptura dos artistas que não
conseguem converter-se em atos (intervenções eficazes em processos
sociais) tornam-se ritos. O impulso originário das vanguardas levou a
associá-las com o projeto secularizador da modernidade: suas irrupções
procuravam desencantar o mundo e dessacralizar os modos convencionais,
belos, complacentes, com que a cultura burguesa o representava. Mas a
incorporação progressiva das insolências aos museus, sua digestão analisada
nos catálogos e no ensino oficial da arte, fizeram das rupturas uma
convenção. Estabelecera, diz Octavio Paz, “a tradição da ruptura”. Não é
estranho, então, que a produção artística das vanguardas seja submetida às
formas mais frívolas de ritualidade: os vernissages, as entregas de prêmios e
as consagrações acadêmicas (2008, p.45).
Entender as motivações que levaram à sua produção pode ser um caminho para buscar
repetir essas vivências no dia de hoje e abre espaço para novos desafios e pesquisas que
surgem a cada dia sobre o tema. Dessa forma, esse estudo não fecha uma análise, mas abre
interrogações sobre as influências que levaram cineastas, em diferentes pontos da América
Latina, a produzir uma cinematografia em que se reconhecessem, ao mesmo tempo em que
aponta para uma leitura mais profunda de sua relação com seus novos protagonistas. De
acordo com BARBERO, o primeiro a esboçar as chaves do novo pensamento foi Daniel Bell:
[...] em um livro cujo mero título contém já o sentido da inversão: O fim da
ideologia. Porque a nova sociedade só é pensável a partir da compreensão da
nova revolução, a da sociedade de consumo, que liquida a velha revolução
operada no âmbito da produção. Daí que nem os nostálgicos da velha ordem,
para os quais as democracias de massa são o fim de seus privilégios, nem os
revolucionários ainda fixados na ótica da produção e da luta de classes
entendem verdadeiramente o que está se passando. Pois o que está mudando
não se situa no âmbito da política, mas no da cultura, e não entendida
aristocraticamente, mas como ‘os códigos de conduta de um grupo ou um
povo’. É todo processo de socialização o que está se transformando pela raiz
ao trocar o lugar desde o qual se mudam os estilos de vida... E os críticos da
sociedade de massa, tanto os de direita como os de esquerda, estão ‘fora do
jogo’ quando continuam opondo os níveis culturais a partir do velho esquema
aristocrático ou populista que busca a autenticidade na cultura superior ou na
cultura popular do passado. Ambas as posições têm sido superadas pela nova
realidade cultural da massa que é de uma só vez ‘o uno e o múltiplo’ (p.67).
Dessa forma, muitas questões que rondam a história do novo cine na América Latina,
desde suas influências estéticas, seu início e desenvolvimento, até os dias de hoje, ainda
necessitam de estudos mais profundos, não apenas sobre sua historicidade, mas sobre as
ideologias políticas e o discurso que imperava em cada época e uma análise ainda mais
detalhada de sua produção através das cinco décadas que o compõem.
78
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da história do movimento do Novo Cine latino-americano busca o
entendimento de quais fatores foram decisivos para sua formação e organização como um
movimento continental, que, mesmo com todas as dificuldades devido aos altos custos de sua
produção, esteve presente na maioria dos países latino-americanos.
Em primeiro lugar, o que se percebe com este estudo é o entendimento de que o
cinema em si não faz a revolução. O cinema é apenas um meio, assim como o rádio, a
televisão, os jornais e, como tal, por mais que explicite realidades culturais e sociais de um
povo, não pode, por si só, realizá-la.
São os filmes e as posturas ideológicas de seus realizadores que determinam o caráter
revolucionário de uma produção, como disse Jean-Patrick Lebel, em seu livro Cine e
Ideologia:
En lo que concierne al papel propio que puede desempeñar el cine en ese
combate ideológico, ya se puede decir que, teniendo en cuenta las
necesidades engendradas por la singularidad y la especificidad de los
“puntos de mira ideológicos”, no hay (y no puede haber) un modelo de film
revolucionario, materialista, subversivo o, en regla general, un film que
contribuya al retroceso de la ideología dominante. En el conjunto del frente
ideológico, cinematográfico y audiovisual es donde debe librarse la batalla
en el marco de los diferentes “puntos de mira ideológicos” que nacen de la
diversidad y de la inestabilidad ideológica de los públicos y de la variedad de
las formas de estructuración y de significación audiovisuales (LEBEL, 1973,
p.249).34
Ao verificar como as ideologias socialistas e anarquistas vindas da Europa
misturavam-se à produção cultural e artística latino-americana desde o início do século,
entende-se por que, no relato apresentado pela maioria dos cineastas no decorrer do trabalho,
eram essas ideologias o foco principal da maioria de suas obras, nas quais se colocavam, às
vezes de forma até agressiva, como contraproposta aos ditames da indústria cultural
hegemônica, especialmente contra o modo de fazer cinema estadunidense, que produzia os
filmes que lotavam as salas de cinema, impregnando esse meio com sua cultura.
34 No que concerne ao papel próprio que pode desempenhar o cinema nesse combate ideológico, já se pode dizer que, tendo
em conta as necessidades engendradas pela singularidade e pela especificidade dos “pontos de vista ideológicos”, não há (e
não pode haver) um modelo de filme revolucionário, materialista, subversivo ou, em regra geral, um filme que contribua para
o retrocesso da ideologia dominante. No conjunto de frente ideológica, cinematográfica e audiovisual, é onde se deve lutar a
batalha no marco dos diferentes ‘pontos de vista ideológicos’ que nascem da diversidade, da instabilidade ideológica dos
públicos e da variedade das formas de estruturação e significação audiovisual (LEBEL, 1973, p.249).
79
Também fica claro nesses relatos que a proposta do Novo Cine, por mais que se
aproximasse dos movimentos europeus de cinema como o neorrealismo ou o surrealismo, ou
ainda que tivesse como método o cinema autoral, no qual o diretor comandava todo processo
de produção, se diferenciava por criar estéticas únicas e por não se tratarem apenas de
entretenimento, nem somente denúncia, mas propaganda de suas ideologias, ou ainda como
exemplifica Paulo Paranaguá, na confluência de três fenômenos:
[...] assimilação do neorrealismo, condensação de uma cultura
cinematográfica, explosão do nacionalismo desenvolvimentista – desemboca
na constituição de um novo conceito de modernidade. Para os cineastas das
novas gerações, a modernidade deve estar inscrita na própria linguagem do
filme, no corpo da obra. Assim, o cinema passa a estar mais entrosado com
as tendências contemporâneas da literatura, teatro e música. Coexistem, é
bem verdade, projetos diferentes. Para esboçar um paralelo, podemos dizer
que junto a fitas comparáveis ao romance regionalista, “criollista” ou
indigenista, despontam outras que significam uma superação equivalente
àquela constituída pela moderna literatura latino-americana. Coexistem José
de Alencar, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa (PARANAGUÁ, 1984,
p.73).
Ao assimilar o neorrealismo e aprender sobre a cultura cinematográfica, os jovens
cineastas latino-americanos que retornavam da Europa viam estampados nas salas de cinema
realidades que nada tinham a ver com as condições de explorados em que vivia povo da
América Latina. Faltava nela o índio, o negro, o caboclo, o sertanejo pobre que trabalhava
todo dia embaixo do sol para garantir o sustento à família.
Dessa forma, sua produção direcionou-se em documentar, mesmo quando em ficção, a
realidade do povo oprimido de cada país. A América Latina vivia sob o jugo da dominação
estadunidense de seu território. E essa dominação não era apenas cultural e não se ligava
apenas ao cinema, mas estava presente em todas as instâncias governamentais e começava a
interferir no modo de vida de cada sociedade.
Na década de sessenta a disputa entre o socialismo e o capitalismo em solo latino-
americano representava perda de riquezas norte-americanas. Não se tratava apenas de uma
dominação cultural e ideológica, mas de uma dominação econômica: a exploração do povo
em detrimento dos interesses dos Estados Unidos da América. Dessa forma, o solo latino-
americano era pilhado de seus recursos naturais, que se tornavam matéria-prima para as
indústrias do primeiro mundo.
Em cada película, em cada manifesto, construíram-se estéticas que buscavam
reproduzir o dia a dia do povo de cada país. A estética da fome, da violência, o miserabilismo,
eram evidentes em documentários como Tire Dié do argentino Fernando Birri, que escancarou
80
a realidade dos excluídos argentinos que viviam à margem da ferrovia e para sobreviverem
eram obrigados a colocar seus filhos pequenos para correr junto ao trem mendigando dinheiro
da burguesia em ascensão. Ou os ficcionais como Deus e o diabo na terra do sol, com a
disputa épica entre Antonio das Mortes e o corisco (1964), de Glauber Rocha ou ainda
Memorias del subdesarrollo (1968) de Tomás Gutierrez Alea, que conta, mediante a visão de
um americano, os dias que se seguem à Revolução Cubana.
A través de la historia del film, de las etapas de su fabricación (su proceso de
producción), y por el film, hay elaboración, acumulación, formación,
producción de la ideología (de un contenido ideológico). Y, si ese contenido
ideológico re-produce muy a menudo la ideología dominante, no es a causa
de la naturaleza del cine, sino, porque este descentramiento de la esencia
ideológica de los films es un descentramiento social y, por consecuencia, la
ideología dominante influye con todo su peso en el cerebro de los que hacen
los films y de los que los consumen (LEBEL, 1973, p.74).35
Outra questão evidente foram os reflexos da revolução Russa de outubro de 1918, o
levante do proletariado. O exemplo russo foi o estopim para diversos movimentos populares
em toda a América Latina, e em casos como a Argentina, o Brasil, o Chile, e ainda outros
países latino-americanos, a proximidade de um governo socialista era uma ameaça iminente
ao sistema extrativista que os Estados Unidos da América haviam estabelecido neste
território.
Mais um fator importante e imprescindível para o surgimento do movimento do Novo
Cine foram os festivais que aconteceram por toda América Latina e permitiram o contato
entre seus cineastas. Essa descoberta de uma produção cinematográfica com características
em comum só foi possível graças a esses encontros, que ocorreram a partir da década de
sessenta, dentro de cada país e por todo o continente.
É evidente que os festivais europeus também foram importantes, mas foram os
festivais latino-americanos que proporcionaram os primeiros encontros e levaram à união dos
cineastas, produtores cinematográficos e ao estabelecimento dos vínculos entre seus
realizadores, que acabaram por definir e fortalecer o movimento mediante a criação do
Comitê de Cineastas da América Latina e posteriormente a Fundação do Novo Cine Latino-
americano.
35 Através da história do filme, das etapas de sua fabricação (seu processo de produção) e pelo filme, há elaboração,
acumulação, formação e produção de ideologia (de um conteúdo ideológico). E, se esse conteúdo ideológico reproduz
discretamente a ideologia dominante, não é a causa da natureza do cinema, senão por que esse descentramento da essência
ideológica dos filmes é um descentramento social e, por consequência, a ideologia dominante influi com todo seu peso no
cérebro dos que fazem os filmes e dos que os consomem (LEBEL, 1973, p.74).
81
Quase concomitantemente ao aparecimento da sétima arte, mediante a invenção do
cinematógrafo, o modelo de fazer cinema hollywoodiano se fixou, dominou e ditou
tendências que até hoje enchem salas por todo mundo, não apenas no intuito de vender seus
produtos cinematográficos, mas também sua cultura, seu modo de vida.
Para manter sua hegemonia, os Estados Unidos da América não apenas vendiam
películas, mas criavam um padrão de sociedade a qual consideravam superior, como bem se
pode verificar no capítulo um, no episódio em que o embaixador dos EUA no Brasil declara
que a venda de ferro por parte do governo brasileiro às nações socialistas eram um atentado
contra os interesses norte-americanos.
A situação de colônia em que a maioria das nações viviam fez com que seus dirigentes
acabassem por alimentar ainda mais essa indústria dominante e deixassem de lado o
investimento em uma produção nacional que evidenciasse as culturas locais e trouxessem à
tona as realidades de cada país, cultura e região. Dessa forma, a intenção de seus realizadores
muitas vezes não ia apenas contra ao modelo norte-americano, mas contra os interesses dos
dirigentes de cada país envolvido e dependente de seu poderio.
Mesmo em seu auge, o Novo Cine latino-americano se produziu muito mais pela
vontade de seus realizadores do que por políticas públicas que o incentivassem. Em alguns
casos, esse apoio até aconteceu em termos de produção, até porque entre o projeto e sua
execução não havia muito controle por parte do estado patrocinador, mas, na maioria dos
países da América Latina, não houve avanços significativos na distribuição de suas próprias
cinematografias, pelo contrário, muitas vezes as exibições só aconteciam em associações,
sindicatos, cine clubes, universidades e à revelia do governo. Muitas obras chegaram a ser
destruídas, ou proibidas de serem veiculadas, pela censura.
O cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu, nunca foram
subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca
deixaram de ser. Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um
estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram
por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é
incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar
à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura
particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes
(PARANAGUÁ, 1984, p.66).
As propostas lançadas pelos cineastas latino-americanos, criadores do movimento do
Novo Cine, a partir de 1950, eram fruto do momento histórico em que viviam. Forças
capitalistas e socialistas duelavam, tanto no domínio da política, quanto na forma de agir e
pensar, como ficou explícito na película La hora de los hornos, de Solanas e Getino. Ao
82
mesmo tempo em que o filme mostra a realidade de uma Argentina devastada pela pobreza,
demonstra a influência norte-americana na forma de vestir e de se portar dos jovens que,
indiferentes à sua própria realidade, negam e assumem os modelos de comportamentos
apresentados nas películas que reafirmavam a hegemonia não só de uma indústria, mas da
forma de viver de um povo. Alheios às suas próprias realidades, esses jovens consumiam a
moda, as músicas, o modo de ser de outra cultura e negavam a sua própria.
Ao pesquisar no decorrer da história as influências do sistema capitalista no modo de
vida, será possível ver que, em todas suas formas de comunicar, a arte muitas vezes expressou
ação ou reação a esses sistemas de dominação e opressão econômicos, culturais e sociais.
Quando se investiga a história de cada país na América Latina, vê-se que a produção
artística lutava contra esse estado de dominados, com situações semelhantes na música, no
teatro, nas artes plásticas, na literatura, na poesia e até mesmo com o jornalismo. O que
tornaria, então, o Novo Cine mais fascinante que movimentos como o tropicalismo, ou a
bossa nova, ou a história do jornalismo anarquista na América Latina?
Sua continentalidade, seu respeito multicultural na luta contra um dominador que
dilapidava seu território, seu povo e sua cultura, a construção de uma temática semelhante,
mesmo com as diferentes estéticas.
A utilização da sétima arte com ênfase em um discurso de negação às privações e
pilhagens que a América Latina sofreu da Europa desde seu descobrimento e sua
neocolonização pelos EUA.
O subdesenvolvimento não é mais um dado estrutural assumido com
passividade ou fatalismo. O handicap técnico intervém na própria
elaboração de uma linguagem adequada à sociedade da qual emana. “Uma
estética da fome, uma estética da violência”, proclama Glauber Rocha. “Um
terceiro cinema, militante, oposto a um cinema alienado, comercial,
dominante, bem como ao cinema reformista, colonizado, de autor”, teorizam
os argentinos Fernando E. Solanas e Octavio Getino. “Um cinema
imperfeito”, propõe o cubano Julio Garcia Espinosa. “Um cinema Coletivo,
junto ao povo”, sustenta o boliviano Jorge Sanjinés. Assim, os cineastas são
seus próprios teóricos... ou produtores de ideologia (PARANAGUÁ, 1984,
p.70).
Mesmo com toda essa devoção à sua proposta de ferramenta emancipatória e
humanizadora, o Novo Cine encontrou dificuldades devido à falta de recursos para sua
realização, muitas vezes sem retorno financeiro que possibilitasse reinvestir em novas
produções e pela ausência uma distribuição que garantisse o acesso à sua cinematografia.
83
Ainda hoje as películas realizadas por seus cineastas são de difícil acesso e, em sua
maioria, encontram-se limitadas aos ambientes das Universidades e a alguns cine clubes. Se
mesmo diante das dificuldades financeiras, o Novo Cine aconteceu pela luta de seus
idealizadores. O mesmo não se pode dizer a respeito de sua distribuição. Na maioria das salas
de cinema a predominância ainda era de filmes norte-americanos e, mesmo com toda luta
ideológica até os dias de hoje, é a estética hollywoodiana que impera nos cinemas.
Pode-se dizer que essa foi a barreira mais difícil a ser quebrada. Produzir e dirigir
filmes eram tarefas hercúleas, porém ser aceito nas salas de cinema era uma barreira ainda
mais difícil de ser transposta. Mesmo depois de todos esses anos e com toda abertura que os
países conseguiram pós-revoluções militares, o contato com os clássicos do Novo Cine ainda
se torna restrito a cine clubes, cursos universitários de cinema e a algumas poucas instituições
cinematográficas como a Fundação do Novo Cine em Havana.
A realização desta pesquisa e deste trabalho demonstrou a falta de conhecimento que
ainda se tem no Brasil sobre essa parte da história latino-americana. Mesmo com o destaque
para as figuras de Glauber Rocha e Carlos Diegues como os grandes representantes do
movimento cinemanovista brasileiro, há poucas informações sobre esse movimento ligado a
um movimento maior e continental. A prova disso é a limitada bibliografia em português
sobre esse assunto.
Para se estudar a história do Novo Cine não bastou ler os livros que tratam sobre o
assunto; fez-se necessário vivenciá-la mediante a convivência com alguns de seus produtores,
realizadores e o contato com suas principais produções. Ouvir histórias, discussões, assistir a
inúmeros filmes, ler, e mesmo com tudo isso ainda continua a sensação de que ainda existe
muito a ser visto, a ser lido.
Essa parte da história da cinematográfica latino-americana ainda se encontra envolta
nas brumas lançadas pelas ditaduras e pela dominação. Porém, com as mudanças tecnológicas
e a facilidade de produção e distribuição possibilitadas pelo cinema digital e pela internet,
percebe-se a aceleração no processo de conhecimento sobre essa e outras histórias que até
bem pouco tempo eram desconhecidas ou conhecidas por seus poucos agentes e participantes.
A história do Novo Cine latino-americano é uma história de lutas ideológicas, que
acontecem ligadas a um tempo histórico em que se pensava em uma sociedade mais justa e
igualitária e quando se sonhava com o acesso de todos à cultura, aos bens de consumo e à
educação.
84
REFERÊNCIAS
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www.carlosdiegues.com.br/artigos_integra.asp?idA=48>. Acesso em: 05 ago. 2009.
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Disponível em: <http://cineclubedecompostela.blogaliza.org/files/2006/11/esteticafome.pdf>.
Acesso em: 03 ago. 2009
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85
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ruptura y el cine político latinoamericano. Espanha: Ed. Altamira, 2007.
VIANY, Alex. O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, 1999.
0
86
ANEXO I
Impressões de uma pesquisadora.
A experiência de participar do Festival do Novo Cine e conhecer a Fundação em
Havana influenciou na definição do objeto da pesquisa e possibilitou a convivência com
muitos dos nomes e dos lugares que compõem esta história.
Mesmo sem a documentação das conversas, que aconteceram de maneira informal nos
ambientes do festival ou mesmo em casas noturnas de Havana, esses diálogos renderam
algumas observações que, segundo a pesquisadora, vale a pena relatar.
A primeira foi a agitação por sentar ao lado ou esbarrar em pessoas que até então eram
apenas personagens dos livros e das histórias do cinema novo. Mas aos poucos essa excitação
levou à observação das diferentes linguagens presentes ali.
Se havia representantes daquele primeiro momento em que se buscava uma linguagem
cinematográfica que privilegiasse a emancipação da América Latina e a valorização de sua
cultura frente à dominação exercida por aqueles que a expropriavam desde a sua ‘descoberta’,
também havia jovens produtores preocupados em escrever seus nomes na cinematografia de
seus respectivos países.
Durante as oficinas e os debates eram nítidas as divergências entre os discursos
empenhados pelos mais velhos e pelos jovens cineastas. Aquela preocupação ideológica que
havia culminado na criação da Fundação do Novo Cine mantinha-se apenas no discurso
formal, mas não parecia estar presente nas obras ali exibidas. Dos envolvidos no Festival, que
mobiliza toda cidade de Havana, poucos chegaram à sede da fundação, onde também havia
projeção dos participantes na sala Glauber Rocha.
Foram várias as impressões causadas nos doze dias passados ali. A grande motivação
para conhecer e estar presente durante o Festival era ver ao vivo o discurso de libertação da
América Latina. Depois de três dias de exibições e oficinas, ainda se buscava onde estava o
discurso libertário, mas não se sabia mais se iria encontrá-lo.
Na sede do Hotel Nacional, em Havana, transitavam diretores, produtores e atores que
angariavam filas para autógrafos, ao caminharem entre gramados, aves silvestres, e a incrível
vista do Malecom que seus jardins oferecem. Mas onde estaria o espírito revolucionário?
Na quarta noite, em um clube de jazz tradicional de Havana, sentou-se ao lado um
senhor de cabelos brancos que, em pouco tempo sorriu e iniciou uma conversa, perguntando
se era idealizadora de algum filme participante do festival. Contei-lhe, em meu espanhol não
87
muito profícuo, as motivações e as angústias que me levaram a Cuba. O homem sorriu e
começou a me contar sua história.
Seu nome era Ivan Trujillo, diretor do Festival Internacional de Cinema de
Guadalajara, no México. Esse senhor havia acompanhado o Novo Cine desde seu nascimento
e mostrava uma certa nostalgia ao falar sobre minhas inquietações.
Falou-me do tempo que passou em Santa Fé e na EICTV ao lado de Fernando Birri e
de como o Jazz Clube era seu refúgio em meio ao tumulto do festival. Sorriu de minhas
dúvidas quando perguntei onde estaria o espírito revolucionário nessa nova cinematografia e
aconselhou-me a conhecer a sede da Fundação.
No outro dia logo cedo, abandonei as atividades do Festival e tomei um taxi rumo à
Fundação, que se encontra a cerca de vinte minutos do Hotel Nacional, que sedia a maioria
das oficinas e fóruns de debate do festival.
Chegando ao local precisava agora entender como tudo aquilo funcionava e comecei a
conversar com os funcionários sobre quem poderia me ajudar. O fascínio dos cubanos pelos
brasileiros facilitou-me abrir portas e em pouco tempo me apresentaram as figuras que foram
imprescindíveis nessa busca de conhecimento.
Alex foi o primeiro a me indicar os caminhos. Com seu sorriso e bom humor me
conduziu pelas salas daquele imenso casarão, apresentando pessoas e indicando quem poderia
ajudar-me: Juan Carlos, historiador e responsável por projetos de salvaguarda e catalogação,
além de organizar a biblioteca e as revistas digitais que constam no site da Fundação, e
Alejandro Celada Sanz, assessor de comunicação da Fundação e meu guia na capital cubana.
Esses três homens abriram todas as portas para esta pesquisadora, que agora passava
as manhãs e tardes em meio aos arquivos separando livros, assistindo filmes e tendo longas
conversas sobre o ideal libertário que se fazia presente naquele lugar, mas que não havia
encontrado nos jardins do Hotel Nacional.
Os dias agora se dividiam em manhãs e tardes dedicadas aos arquivos da fundação e as
noites entre as exibições, oficinas e o Jazz Club, reduto preferido dos cineastas mais antigos
que fugiam da badalação do Festival para ali ouvir a melhor música de Havana e conversar
sobre cinema. Entre solos de sax e mojitos, o Jazz Club proporcionava muito mais
experiências com as raízes do novo cine do que o tempo gasto em conversas nos salões e
jardins do Hotel Nacional.
Foi uma experiência magnífica os dias passados na Fundação. Em pouco tempo todos
acolheram a ‘brasileña’ que subia e descia suas grandes escadarias e sentava-se para ler nos
átrios de seu café. Uma das sensações mais marcantes foi, sem dúvida, assistir ao filme La
hora de los hornos, do Argentino Fernando Solanas. Era visceral. Após assistir a ele não
88
havia como pensar em mais nada. Os olhares, o sofrimento, a montagem, me levaram a
caminhar por duas horas pelo bosque que contorna o casarão. Era um soco no estomago. Era o
ideal revolucionário que estava presente nas histórias contadas nos livros que me levaram a
Havana.
Juan Carlos, o historiador, tornou-se um confidente de todas essas angústias que
permeavam minha pergunta: Era possível ao Novo Cine apresentado no festival ter as mesmas
ideologias do Novo Cine que levaram à criação da Fundação? Havia similaridades entre o
discurso daqueles que fizeram parte do primeiro Comitê de Cineastas latino-americanos com
aqueles jovens cineastas que participavam do Festival?
Aqueles dias passados em Havana, ao contrário do que eu imaginava, não trouxeram
respostas, apenas aumentaram o número de perguntas. Porém, as experiências vividas entre os
muros daquela casa enorme, cercada de verde, aguçaram ainda mais a busca por entender esse
cinema revolucionário e libertário.
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