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Um ponto de vista sobre a experiência com a abordagem de Reggio Emilia
José Cavalhero1
É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração.
Gilles Deleuze
A acolhida
Vamos partir de um lugar comum: a abordagem educativa de Reggio Emilia é uma referência
mundial, e sobre isso não nos restam dúvidas. Caso contrário não haveria tantas publicações
editadas, em diferentes línguas, tampouco tantos interessados em participar dos eventos
internacionais promovidos por Reggio Children, como o Grupo de Estudos da América Latina
que ocorre anualmente no Centro Loris Malaguzzi, no qual, em maio de 2015, tive a
oportunidade de organizar alguns encontros com os brasileiros presentes durante a semana de
estudos – uma iniciativa idealizada por Marilia Dourado e efetivada pela RedSolare Brasil. A
proposta foi promover um espaço para que pudéssemos compartilhar impressões, indagações
e reflexões sobre as experiências vividas. A ideia, inédita para todos nós, inclusive para os
italianos, mostrou-se promissora.
Em lugar de escrever um relatório descritivo a propósito de tudo o que minha percepção
poderia ter alcançado dessa experiência, este texto trilha os caminhos que minha memória
percorreu e ainda percorre reflexivamente sobre os estudos realizados em maio, compondo,
desse modo, uma narrativa carregada de pessoalidade e também de encontros com meu
repertório de conhecimento, mas que em momento algum desconsidera aqueles
estabelecidos com os outros. Pelo contrário, é justamente nessa plasticidade de encontros
híbridos que o texto acontece. Como Paul Ricoeur (2006, p. 11) nos elucida, “a história narrada
é sempre mais do que a simples enumeração, numa série ou sucessão, de incidentes ou
acontecimentos, porque a narração os organiza num todo inteligível”.
1 Artista Educador, graduado e licenciado em Artes Plásticas e pós-graduado pela ECA/USP, iniciou a carreira como professor em várias escolas públicas e particulares de São Paulo da Educação Infantil ao Ensino Médio. Como coordenador pedagógico em arte, atuou em várias instituições da educação não formal e formal que resultaram três publicações em coautoria. É pesquisador da Abordagem Educativa de Reggio Emilia desde 2001 e possui experiência em formação continuada de professores. Atualmente é mestrando em Psicologia Clínica Núcleo Subjetividade na PUC de São Paulo.
Um bom começo: muito que aprender fora das escolas
Desde a primeira vez em que estive em Reggio Emilia, senti a minha presença de educador-
aprendiz abraçado por aquela cidade. Um abraço que transcende as amizades pessoais que
porventura eu possa ter por lá, porque deseja acolher pensamentos e olhares meus e de todos
quantos estejam dispostos a também serem abraçados. Pois não se trata de uma relação pura
e simplesmente cordial ou de boa vizinhança com os estrangeiros, mas de uma relação que
transpira ética e respeito aos direitos da cidadania planetária. Eis aí uma primeira preciosidade
a ser aprendida e que eu nomearia como vivência macro-comunitária. Quero com isso dizer
que se trata da acolhida generosa de uma comunidade que quer fazer educação no mundo,
para o mundo e com o mundo na perspectiva do direito, estabelecendo relações heterogêneas
e complexas que valorizam a participação, a autorreflexão e o diálogo aberto de e entre todos
os envolvidos com questões educacionais na contemporaneidade, criando um estado
democrático e ético que resulta na polifonia de singularidades. Portanto, o pensamento da
menina Aurora, de 5 anos, que Elena Giacopini nos revelou em uma de sua palestras, está
repleto de razão quando diz que “a participação é um convite”. A própria cidade convida o
outro a participar, e ela mesma participa do diálogo aberto e polifônico, não somente por
comprometer-se com o tempo e o espaço que constitui Reggio Emilia, mas também por querer
se aproximar e entender como é vivida a Educação Infantil em diferentes realidades.
Essa disponibilidade para com o outro oportuniza reflexões críticas sobre o papel da educação
e sobre a criança em sua singularidade, em sua subjetividade, em seus processos de
aprendizagem (auto-poiesis), refletindo o cenário educacional de uma comunidade específica
que ao mesmo tempo se relaciona com o mundo, rompendo fronteiras culturais ou
geográficas. Ou seja, a criança é considerada dentro e fora das escolas, seja no contexto
reggiano ou mundial, instaurando coparcerias nacionais e internacionais em diversificados
processos investigativos.
A participação interativa
Inspirado nos princípios dessa abordagem sinto-me convidado para interagir no mundo de
modo político, ético e estético, permitindo-me a uma aprendizagem ecológica e processual –
pelo menos essa é uma utopia por mim desejada. Carla Rinaldi nos disse, em sua breve
apresentação: a abordagem de Reggio Emilia “é uma utopia concreta”, e isso é perceptível em
cada fala, gesto e espaço construído por adultos e crianças daquela cidade. Participar
interativamente na concretude da utopia de um projeto educativo requer uma abertura para
legitimar os outros a também interagirem como copartícipes nesse projeto, engendrando uma
coletividade, uma rede autopoiética.
(a rede autopoiética) variável e flexível, sem extensão ou forma fixa, [...] faz-se e refaz-se pelas conexões que cada nó estabelece com sua vizinhança. Sua estrutura é multidimensional, no sentido que existem diversas séries heterogêneas encaixadas. Dito de outra forma, existem redes dentro da rede, ou ainda, cada nó pode abrir e constituir ele próprio uma rede. Enfim, a rede define-se durante seu funcionamento, definindo posições que não são localizáveis nem previamente dadas. Por sua vez, o funcionamento não é linear e as conexões propagam-se por vizinhança em diversas direções, de maneira divergente ou bifurcante, atravessando diferentes dimensões por caminhos imprevisíveis (KASTRUP, 2007, p. 140).
Nada mais coerente com a ideia de rede colaborativa do que investir na Gestão Comunitária,
que tem por princípio a educação como direito das crianças, dos pais, dos educadores. A
gestão desses direitos é de responsabilidade da comunidade, na qual os cidadãos se organizam
socialmente para viabilizar a ideia de que “Educação e/é Política”, que valorizam o aprender
junto e em relação, que querem dar visibilidade para a potência das aprendizagens complexas
de crianças de 0 a 6 anos de maneira a entender e valorizar a constituição da cultura da
infância pela própria criança. Em suma, uma cidade pensada para garantir o bem-estar de
crianças e adultos, e que procura saber escutar as diferentes vidas. Uma cidade que concebe a
escola participativa como lugar que acolhe vidas singulares e que por não estar a serviço da
teoria se constitui entre investigações de teorias e práticas. Um lugar de encontro entre
sujeitos num exercício pleno de cidadania, de convivência civil, em que pessoas se autorizam a
inventar juntas inúmeros modos possíveis de coparticipação, num constante movimento
socioconstrutivo.
Currículo não de performances, mas de valores
Ao visitarmos a escola Águas Claras, encontramos os espaços organizados com todo o apuro
que caracteriza a estética e a comunicabilidade da abordagem, transparecendo que a
qualidade nas escolas é necessária e não uma opção. A visita finalizou numa conversa com
duas educadoras, uma pedagogista e uma mãe que se disponibilizou a dar seu depoimento
sobre a experiência comunitária na escola. Porém, o que mais chamou minha atenção foi que
numa das seções situada no segundo andar, além da visibilidade que tínhamos das
documentações e dos trabalhos elaborados, ouvia-se por todo o ambiente a gravação da
narrativa de um menino. Ele “listava” oralmente alguns locais e objetos da escola, atribuindo-
lhes sentido sob seu ponto de vista. Esse depoimento narrado se deu por intervenção das
educadoras, que anunciaram para as crianças que um grupo de adultos estrangeiros iria visitar
a escola. Então, perguntaram a elas: “O que, da escola, seria importante para esses
visitantes conhecerem?”. Para mim, esse é um dos melhores exemplos de participação
interativa, por demonstrar o cuidado que os adultos tiveram ao convidar as crianças para
expressarem valores ao invés de prepararem demonstrações performáticas sem sentido. As
crianças estavam ali, presentes, não apenas por meio das marcas deixadas no espaço, mas
também no que ocorria dentro da escola, para além do seu cotidiano. Procurar um modo de
interação entre elas e nós, e indiretamente com aquilo que estava ocorrendo na cidade,
demonstra um valor, uma atitude ética e de responsabilidade cidadã.
Durante a intensa semana de estudos, os encontros com o grupo de brasileiros ocorriam ao
final das atividades. Como provocação, logo no primeiro dia, pedi aos participantes que
tivessem em mente a palavra “transgressão”, e tentassem estabelecer alguma relação com as
práticas educativas de Reggio e do Brasil. A intenção foi criar uma espécie de lente, de
presença atenta e crítica ao que estaríamos expostos durante aqueles dias. Meu interesse
voltava-se principalmente para as relações intrassubjetivas estabelecidas por cada um de nós –
percepções sobre o que se imprimiria a partir das experiências (introspecção; autorreflexão).
Nessa perspectiva, ao nos reunirmos, compartilhávamos em grupo nossas impressões pessoais
numa proposição de troca de pontos de vista, de acolhimento das diferenças.
Essa proposta me ocorreu por acreditar que vivemos (não apenas nós brasileiros, mas o
mundo contemporâneo) imersos em uma cultura do imediatismo pautada na busca por
modelos certeiros e de respostas rápidas, na ilusória tentativa de simplificar a complexidade
que vivemos. Esse processo de “pasteurização social” ganha força quando aliado ao
mecanismo de conservação do status quo de controle, investindo o máximo de esforços para o
estreitamento de qualquer brecha que possa propiciar às instituições, inclusive às educativas,
lidar com a incerteza do que se faz presente e com a imprevisibilidade do novo, do que está
por vir e a ser conhecido – condições essenciais para o processo investigativo na busca de
rever valores e, consequentemente, criar possibilidades de renovação. Nas palavras de Carla
Rinaldi,
[...] essa ‘atitude de investigação’ é a única abordagem ético-existencial factível numa realidade cultural, social e política como a nossa, sujeita a mudanças, colapsos e formações híbridas de raças e culturas, que são positivas e potencialmente arriscadas. É o valor da pesquisa, mas também a busca de valores (RINALDI, 2012, p. 186).
Justamente por estarmos embrenhados nessa cultura mundial que insiste em nos “proteger”
da diferença, palavras como inspiração e transgressão podem ser facilmente capturadas e
ressignificadas em benefício desse poder, fazendo com que percam suas forças geradoras de
pesquisa e de transformação, adaptando-as a uma concepção metodomercadológica.
O que poderia haver de transgressor nas propostas das escolas reggianas? Essa indagação me
ocorreu para que pudéssemos reunir nossas potências investigativas e reconhecer as ações
que evidenciassem a ruptura com os paradigmas que nos são tão familiares. Em outras
palavras, tratava-se de um convite para discutirmos hipóteses no lugar de anunciar
constatações sobre “boas práticas” de educar crianças. Infelizmente, por vários motivos, não
conseguimos chegar a esse ponto de discussão no grupo. Porém, nada nos impede de dar
continuidade as nossas discussões, e aproveito aqui para dar o meu parecer em relação a essa
investigação.
A ideia foi trazer a transgressão para o grupo como uma plataforma sobre a qual pudéssemos
transitar com nossos próprios pensamentos e criar uma fenda possível para o nosso olhar. Não
para reconhecermos o que a fenda poderia nos revelar, mas para entendermos como ela se
faz coletivamente – uma metaestrutura para uma proposição metacognitiva.
Entre princípios irrenunciáveis e desejos de mudança
Particularmente, vejo a transgressão em Reggio como um ato de resistência ao
conservadorismo, seja pedagógico ou de qualquer outra ordem, que queira isolar a
participação direta e ativa da escola nas incessantes mudanças culturais, sociais e políticas.
Isso me leva à descrição de Silvio Gallo sobre a diferença nos modos de ocupar o mundo que
há entre o educador profeta e o militante. O primeiro legisla a progressão do ensino e da
aprendizagem homogêneos e programáticos, e o outro, “por sua vez, está na sala de aula,
agindo nas microrrelações cotidianas, construindo um mundo dentro do mundo, cavando
trincheiras do desejo.” (GALLO, 2008, p. 65). Reconheço esse sentido de militância presente
nas atitudes dos profissionais de Reggio, que se predispõem ao devir das relações num esforço
de se aproximar das autorias e das inventividades que envolvem as aprendizagens singulares
de crianças e adultos, como, por exemplo, por meio da pedagogia da escuta, entre tantas
outras iniciativas que poderíamos nomear como transgressoras da ordem profética.
Ficou muito evidente, principalmente na fala das pedagogistas, que o educador necessita
entender a infância não como uma fase da vida, mas um atributo permanente da nossa
personalidade. Com isso, torna-se claro que é preciso predispor-se a ter, como adulto, uma
atitude metal geradora de movimento relacional, praticando sobre si e incentivando nas
crianças a transformação processual dinamizada pela troca e pelos empréstimos de
conhecimento, o que implica todos se envolverem com a imprevisibilidade e a incerteza.
Vejo aqui uma maravilhosa conquista na abordagem de Reggio ao valorizar a imprevisibilidade
e a incerteza como instâncias constituintes de todo e qualquer processo autônomo e
relacional de aprendizagem, distanciando-se das interpretações que possam estar conectadas
à ideia de laissez-faire ou espontaneísmo. Parece-me que em Reggio estamos diante do
exercício de uma prática defendida por Paulo Freire: a do educador aventureiro responsável,
predispondo-se às mudanças e à aceitação do diferente, numa troca de aprendizagens entre
crianças e adultos. Segundo John Dewey:
A sugestão do professor não é um molde para um resultado forjado, mas um ponto de partida para ser desenvolvido em um plano através de contribuições a partir da experiência de todos os envolvidos no processo de aprendizagem. O desenvolvimento ocorre através de trocas recíprocas em que o professor recebe, mas também não tem medo de dar. O ponto essencial é que o propósito cresce e toma forma através do processo de comunicação e inteligência social (DEWEY, 2010, p. 74).
Os princípios irrenunciáveis
As Creches e Pré-Escolas em Reggio Emilia são vistas como potentes centros de pesquisa;
lugares para elaboração de ideias e significados a partir da valorização da criança em suas
experienciações. Considerar a criança como sujeito da experiência, autora de descobertas e
inventividades, propicia para a sociedade a construção da própria cultura da infância ao se ver
implicada com as estratégias utilizadas pelas crianças para se relacionarem com o mundo – o
confronto entre elas, a curiosidade investigativa pelo novo, a capacidade imaginativa e
projetual e o estado de empatia. Cabe à instituição escolar se constituir como lugar de
investigação educativa, pois o problema não está em sabermos o que deve ou não ser
discutido com as crianças, mas em procurar saber como discutir certos assuntos com as
crianças. Malaguzzi, durante a entrevista transcrita no livro As cem linguagens da criança,
ressalta:
[...] uma vez que as crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras ou inventoras, uma vez que sejam ajudadas a descobrir o prazer da investigação, sua motivação e interesse explodem. Elas começam a esperar discrepâncias e surpresas. Como educadores, precisamos reconhecer sua tensão, em parte porque, com um mínimo de introspecção, descobrimos o mesmo dentro de nós mesmos (a menos que o apelo vital da novidade e da curiosidade tenha diminuído ou morrido) (EDWARD, GANDINI; FORMAN, 1999, p. 76).
Creio que para gerarmos ações transformadoras como educadores “inquietos” é preciso
encontrar um senso de militância em e na coletividade, a fim de constituir a força que nos
autoriza a sermos agenciadores de mudança num jogo de interação investigativa entre
realidade e utopia, entre princípios e valores vigentes e aqueles desejados. E isso envolve uma
postura crítica ao nos relacionarmos diretamente com a prática educativa exercida com
crianças. Quero dizer com isso que se trata de sermos profissionais cidadãos desejosos de ir ao
encontro da realidade e de confrontá-la com a utopia. Contrapomo-nos, assim, à ideia de
transmissão de uma metodologia de ensino que garanta o alcance de um resultado comum
para todos, de uma objetividade consensual calcada em verdades envernizadas proferidas sob
uma única perspectiva – a do adulto ensinador – que consequentemente desconsidera os
sujeitos da experiência e a configuração de uma coletividade pela reunião de diversidade. Para
isso, precisamos lançar mão do exercício da “escuta atenta e sensível” ao que as crianças
pensam e expressam em inúmeras e possíveis linguagens.
Basta escutar as crianças para entender que a transdiciplinaridade é um modo em que o pensamento humano conecta diferentes disciplinas (linguagens) com a finalidade de alcançar uma compreensão mais profunda de algo, não é uma teoria completamente independente da realidade nem um mandato docente; é uma estratégia natural do pensamento, respaldada por nossa hipótese inicial de que as oportunidades de combinação e criatividade em uma pluralidade de linguagens enriquece as percepções das crianças e intensifica suas relações com a realidade e a imaginação (VECCHI, 2013, p. 75).
Inspirar-se em Reggio Emilia para aproximar-nos da utopia concreta
O artista, em seu processo criador, vive entre os borrados contornos da inspiração e do
trabalho. É no trânsito entre esses dois territórios que a manifestação estético-poética
acontece. Nas palavras de Pareyson (1984, p. 194), “inspiração e trabalho não são dois modos
diversos de teorizar o processo artístico, mas dois aspectos igualmente necessários de tal
processo”. É preciso trabalhar muito para inspirar-se e inspirar-se para seguir trabalhando – eis
o sfumato dos contornos.
A interpretação que faço do binômio inspiração-trabalho pressupõe um movimento ao mesmo
tempo contemplativo e criador, introspectivo e expansivo, reflexivo e operacional, que busca
unir a percepção sensível do real com o desejo de executar algo inovador. Ou seja, descobrir-
se em um movimento que poderá cartografar o percurso daquilo que está por vir. Ouso dizer
que inspiração-trabalho é um ponto de partida que emerge no meio de nossa trajetória como
se fosse um desvio, mas sem nos tirar do caminho e aberto às rupturas para criar novas e
diversificadas conexões. É um estado rizomático que se instaura.
Eticamente falando, a presença do movimento rizomático é perceptível na abordagem
reggiana porque a realização de seus modus operandi explicita que pensamento e
estruturação – que aqui vou chamar de inspiração-trabalho – estão constantemente em
movimento dialógico com a realidade de cada escola, por serem entendidas como organismos
vivos e, portanto, respeitadas em suas micropolíticas (singularidade; autopoiesis). O que há em
comum entre elas é justamente os princípios que as inter-relacionam constituindo a
macropolítica educativa reggiana (coletividade; rede autopoiética).
Com isso, penso que para desejarmos a realização de algo novo sob a luz de uma referência
inspiradora e potente como de Reggio Emilia, teremos que nos a ver com um movimento
essencialmente político, reunindo pessoas das mais diferentes instâncias sociais com o intuito
de “concretizarmos a utopia”, não aquela de Reggio Emilia, mas a que possa emergir dos
desejos coletivos advindos de nossas realidades e discutidos comunitariamente.
O processo educacional parte da realidade, concretiza-se na
intersubjetividade e objetiva-se na mudança ou transformação da
consciência. A ação educacional é, portanto, uma comunicação dialógica
com a realidade, com os grupos e com a própria consciência. Se alguma
dessas fases falhar, o processo constitutivo, integrador e fator de mudança
social a que chamamos educação, não se produzirá (GUTIÈRREZ, 1988, p.
75).
A formação como cartografia dos processos
Uma abordagem que investiga e cartografa as relações sócio educacionais de e para uma
comunidade de aprendizagem se distancia da pedagogia cunhada na transmissão de saberes.
Isso requer um processo de formação constante, o qual busca se inter-relacionar com as
teorias pedagógicas em âmbito mundial e com aquelas provenientes de outras áreas de
conhecimento. Nota-se que, em Reggio, a arte, a filosofia e a antropologia, por exemplo, são
entendidas como lugares de provocações ou zonas de confronto, no sentido de fazer mover o
pensamento pedagógico em proveito de possíveis transformações – novamente o sentido de
plasticidade.
O interesse por uma investigação continuada que procura aproximações entre cultura da
infância – sob teorias e práticas das crianças – e cultura do adulto potencializa o desenho de
uma trajetória participativa na formação de educadores. Esse desenho-trajetória, porém, só se
torna possível quando todos os desenhistas caminhantes do percurso são envolvidos e
considerados em seus pontos de partida – ou pontos de vista, ou pontos de traço. Porque o
desenho do trajeto não está previamente determinado, mas se delineia em coautoria na
medida em que se valoriza o estabelecimento de relações entre e por todos os envolvidos no
percurso a ser cartografado. E essa atitude, inexoravelmente, inclui adultos e crianças,
educadores e pais, a comunidade e o mundo em estado de empatia, o que significa, entre
outras coisas, ter a diversidade como valor.
Convite à coparticipação reflexiva
As documentações apresentadas durante toda a semana de estudos são exemplos claros de
um “desenho caminhante” elaborado na relação regida pela empatia, tornando visível,
discutível e comunicável os processos de aprendizagem das crianças e dos adultos. Parece-me
que, diante desse cenário, inspirar-se em Reggio Emilia nos abre a possibilidade de sermos
realizadores de novas formas de cultura escolar, de infância e de educação, requerendo
primeiramente um movimento de resistência e militância – uma atitude que abarca a díade
inspiração-trabalho.
Infelizmente, a realidade demonstra que a grande maioria dos projetos de formação quer
garantir professores respondedores a uma ordem preestabelecida, executores da didática
pautada na sucessão progressiva de atividades que direcionam ao resultado de uma
aprendizagem esperada, numa formatação de crianças-indivíduos conformadas ao controle
social. Isso se contrapõe à utopia concreta reggiana, que busca a formação de professores
indagadores da realidade, para que percebam e sejam afetados pela processualidade das
aprendizagens complexas investigadas nas relações sócio-educacionais de uma comunidade.
Isso se dá por meio do encontro, no aprender junto e em relação congenial que, segundo
Pareyson, são
[..] casos de colaboração [...] mediante uma perfeita congenialidade que une autores vizinhos ou distantes no espaço e no tempo, e congenialidade significa pessoalidade, isto é, similaridade de pessoas que conseguem assemelhar-se sem nada sacrificarem da própria independência e da própria personalidade, mas antes afirmando a própria independência e encontrando a própria personalidade, precisamente naquele estado de similaridade e naquele esforço de assimilação (PAREYSON, 1984, p. 104).
A definição de Pareyson aproxima-se muito do formato que as escolas e creches projetam para
suas próprias ações. É preciso exercer a autonomia de cada unidade para fazer valer a
processualidade dos diferentes singulares, sempre procurando perceber o estado de
similaridade, conscientes de que se está contribuindo para um sistema-rede que é difuso e
desobediente.
Elena Giacopinni, ao final de uma de suas palestras, abriu generosamente um espaço para
interagir com o público. Porém, deixou claro, desde o início, que seu desejo era estabelecer
um diálogo, um momento dedicado a troca de pontos de vista. Ela estava curiosa em saber o
que nos mobilizava o pensamento a partir de então. A princípio, seu desejo não se
concretizou, uma vez que as primeiras pessoas a se pronunciarem propuseram perguntas
muito pontuais e específicas, em busca de respostas objetivas. Mas Elena não se intimidou
com a situação e, mais uma vez, expressou o seu desejo, aguardando silenciosamente até que
alguém finalmente se manifestasse dialogicamente. Arrisco-me a dizer que ali, nessa
experiência, era como se Elena quisesse “escavar uma trincheira do desejo”, para ter a
oportunidade de nos conhecer em nossas singularidades e, ao mesmo tempo, em nossa
congenialidade.
Um bom recomeço: muito que aprender “dentro” da experiência
Espero que as instituições em que todos nós trabalhamos estejam de portas abertas para
“abraçar” as nossas vivências em Reggio. Em nosso último e emocionante encontro, cada um
expôs sensivelmente as mais genuínas impressões, carregadas de subjetividade, e por meio de
diferentes linguagens, demonstrando o quanto fomos afetados e como isso despertou em nós
a sempre bem-vinda necessidade de mudança.
Tenho certeza que voltamos inspirados para o Brasil e desejosos de transgredir qualquer
impeditivo da realização de nossos sonhos, em nome de uma educação de qualidade. Mas
também tenho certeza de que Reggio não nos convidou a transgredir com a nossa realidade de
modo “transloucado”, inconsequente e destruidor. Ao contrário, pois me refiro àquela
transgressão que rompe com a paralisia dos movimentos transformadores; com a paralisia que
impossibilita a criação e fecha o espaço para a constituição de valores comunitários.
Acredito que tenhamos ainda muito a aprender com o que vivenciamos “dentro” dessa
experiência, e espero que estejamos juntos, presentes ou ausentes, próximos ou distantes, em
nosso posicionamento de resistência política.
REFERÊNCIAS DEWEY, J. Experiência e Educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. EDWARD, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 1999. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2003. GALLO, S. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. GUTIERRÈZ, F. Educação como práxis política. Trad. Antonio Negrino. São Paulo: Summus, 1988. KASTRUP, V. A invenção de si e do outro. São Paulo: Autêntica, 2007. PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1984. RICOEUR, P. La vida: un relato en busca de narrador. Ágora - Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006. RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia – escutar, investigar e aprender. Trad. Vânia Cury. São Paulo: Paz e Terra, 2012. SALLES, C. A. Gesto Inacabado - processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2007
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