um ponto de vista sobre a experiência com a abordagem de...

13
Um ponto de vista sobre a experiência com a abordagem de Reggio Emilia José Cavalhero 1 É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. Gilles Deleuze A acolhida Vamos partir de um lugar comum: a abordagem educativa de Reggio Emilia é uma referência mundial, e sobre isso não nos restam dúvidas. Caso contrário não haveria tantas publicações editadas, em diferentes línguas, tampouco tantos interessados em participar dos eventos internacionais promovidos por Reggio Children, como o Grupo de Estudos da América Latina que ocorre anualmente no Centro Loris Malaguzzi, no qual, em maio de 2015, tive a oportunidade de organizar alguns encontros com os brasileiros presentes durante a semana de estudos – uma iniciativa idealizada por Marilia Dourado e efetivada pela RedSolare Brasil. A proposta foi promover um espaço para que pudéssemos compartilhar impressões, indagações e reflexões sobre as experiências vividas. A ideia, inédita para todos nós, inclusive para os italianos, mostrou-se promissora. Em lugar de escrever um relatório descritivo a propósito de tudo o que minha percepção poderia ter alcançado dessa experiência, este texto trilha os caminhos que minha memória percorreu e ainda percorre reflexivamente sobre os estudos realizados em maio, compondo, desse modo, uma narrativa carregada de pessoalidade e também de encontros com meu repertório de conhecimento, mas que em momento algum desconsidera aqueles estabelecidos com os outros. Pelo contrário, é justamente nessa plasticidade de encontros híbridos que o texto acontece. Como Paul Ricoeur (2006, p. 11) nos elucida, “a história narrada é sempre mais do que a simples enumeração, numa série ou sucessão, de incidentes ou acontecimentos, porque a narração os organiza num todo inteligível”. 1 Artista Educador, graduado e licenciado em Artes Plásticas e pós-graduado pela ECA/USP, iniciou a carreira como professor em várias escolas públicas e particulares de São Paulo da Educação Infantil ao Ensino Médio. Como coordenador pedagógico em arte, atuou em várias instituições da educação não formal e formal que resultaram três publicações em coautoria. É pesquisador da Abordagem Educativa de Reggio Emilia desde 2001 e possui experiência em formação continuada de professores. Atualmente é mestrando em Psicologia Clínica Núcleo Subjetividade na PUC de São Paulo.

Upload: hatuyen

Post on 22-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Um ponto de vista sobre a experiência com a abordagem de Reggio Emilia

José Cavalhero1

É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração.

Gilles Deleuze

A acolhida

Vamos partir de um lugar comum: a abordagem educativa de Reggio Emilia é uma referência

mundial, e sobre isso não nos restam dúvidas. Caso contrário não haveria tantas publicações

editadas, em diferentes línguas, tampouco tantos interessados em participar dos eventos

internacionais promovidos por Reggio Children, como o Grupo de Estudos da América Latina

que ocorre anualmente no Centro Loris Malaguzzi, no qual, em maio de 2015, tive a

oportunidade de organizar alguns encontros com os brasileiros presentes durante a semana de

estudos – uma iniciativa idealizada por Marilia Dourado e efetivada pela RedSolare Brasil. A

proposta foi promover um espaço para que pudéssemos compartilhar impressões, indagações

e reflexões sobre as experiências vividas. A ideia, inédita para todos nós, inclusive para os

italianos, mostrou-se promissora.

Em lugar de escrever um relatório descritivo a propósito de tudo o que minha percepção

poderia ter alcançado dessa experiência, este texto trilha os caminhos que minha memória

percorreu e ainda percorre reflexivamente sobre os estudos realizados em maio, compondo,

desse modo, uma narrativa carregada de pessoalidade e também de encontros com meu

repertório de conhecimento, mas que em momento algum desconsidera aqueles

estabelecidos com os outros. Pelo contrário, é justamente nessa plasticidade de encontros

híbridos que o texto acontece. Como Paul Ricoeur (2006, p. 11) nos elucida, “a história narrada

é sempre mais do que a simples enumeração, numa série ou sucessão, de incidentes ou

acontecimentos, porque a narração os organiza num todo inteligível”.

1 Artista Educador, graduado e licenciado em Artes Plásticas e pós-graduado pela ECA/USP, iniciou a carreira como professor em várias escolas públicas e particulares de São Paulo da Educação Infantil ao Ensino Médio. Como coordenador pedagógico em arte, atuou em várias instituições da educação não formal e formal que resultaram três publicações em coautoria. É pesquisador da Abordagem Educativa de Reggio Emilia desde 2001 e possui experiência em formação continuada de professores. Atualmente é mestrando em Psicologia Clínica Núcleo Subjetividade na PUC de São Paulo.

Um bom começo: muito que aprender fora das escolas

Desde a primeira vez em que estive em Reggio Emilia, senti a minha presença de educador-

aprendiz abraçado por aquela cidade. Um abraço que transcende as amizades pessoais que

porventura eu possa ter por lá, porque deseja acolher pensamentos e olhares meus e de todos

quantos estejam dispostos a também serem abraçados. Pois não se trata de uma relação pura

e simplesmente cordial ou de boa vizinhança com os estrangeiros, mas de uma relação que

transpira ética e respeito aos direitos da cidadania planetária. Eis aí uma primeira preciosidade

a ser aprendida e que eu nomearia como vivência macro-comunitária. Quero com isso dizer

que se trata da acolhida generosa de uma comunidade que quer fazer educação no mundo,

para o mundo e com o mundo na perspectiva do direito, estabelecendo relações heterogêneas

e complexas que valorizam a participação, a autorreflexão e o diálogo aberto de e entre todos

os envolvidos com questões educacionais na contemporaneidade, criando um estado

democrático e ético que resulta na polifonia de singularidades. Portanto, o pensamento da

menina Aurora, de 5 anos, que Elena Giacopini nos revelou em uma de sua palestras, está

repleto de razão quando diz que “a participação é um convite”. A própria cidade convida o

outro a participar, e ela mesma participa do diálogo aberto e polifônico, não somente por

comprometer-se com o tempo e o espaço que constitui Reggio Emilia, mas também por querer

se aproximar e entender como é vivida a Educação Infantil em diferentes realidades.

Essa disponibilidade para com o outro oportuniza reflexões críticas sobre o papel da educação

e sobre a criança em sua singularidade, em sua subjetividade, em seus processos de

aprendizagem (auto-poiesis), refletindo o cenário educacional de uma comunidade específica

que ao mesmo tempo se relaciona com o mundo, rompendo fronteiras culturais ou

geográficas. Ou seja, a criança é considerada dentro e fora das escolas, seja no contexto

reggiano ou mundial, instaurando coparcerias nacionais e internacionais em diversificados

processos investigativos.

A participação interativa

Inspirado nos princípios dessa abordagem sinto-me convidado para interagir no mundo de

modo político, ético e estético, permitindo-me a uma aprendizagem ecológica e processual –

pelo menos essa é uma utopia por mim desejada. Carla Rinaldi nos disse, em sua breve

apresentação: a abordagem de Reggio Emilia “é uma utopia concreta”, e isso é perceptível em

cada fala, gesto e espaço construído por adultos e crianças daquela cidade. Participar

interativamente na concretude da utopia de um projeto educativo requer uma abertura para

legitimar os outros a também interagirem como copartícipes nesse projeto, engendrando uma

coletividade, uma rede autopoiética.

(a rede autopoiética) variável e flexível, sem extensão ou forma fixa, [...] faz-se e refaz-se pelas conexões que cada nó estabelece com sua vizinhança. Sua estrutura é multidimensional, no sentido que existem diversas séries heterogêneas encaixadas. Dito de outra forma, existem redes dentro da rede, ou ainda, cada nó pode abrir e constituir ele próprio uma rede. Enfim, a rede define-se durante seu funcionamento, definindo posições que não são localizáveis nem previamente dadas. Por sua vez, o funcionamento não é linear e as conexões propagam-se por vizinhança em diversas direções, de maneira divergente ou bifurcante, atravessando diferentes dimensões por caminhos imprevisíveis (KASTRUP, 2007, p. 140).

Nada mais coerente com a ideia de rede colaborativa do que investir na Gestão Comunitária,

que tem por princípio a educação como direito das crianças, dos pais, dos educadores. A

gestão desses direitos é de responsabilidade da comunidade, na qual os cidadãos se organizam

socialmente para viabilizar a ideia de que “Educação e/é Política”, que valorizam o aprender

junto e em relação, que querem dar visibilidade para a potência das aprendizagens complexas

de crianças de 0 a 6 anos de maneira a entender e valorizar a constituição da cultura da

infância pela própria criança. Em suma, uma cidade pensada para garantir o bem-estar de

crianças e adultos, e que procura saber escutar as diferentes vidas. Uma cidade que concebe a

escola participativa como lugar que acolhe vidas singulares e que por não estar a serviço da

teoria se constitui entre investigações de teorias e práticas. Um lugar de encontro entre

sujeitos num exercício pleno de cidadania, de convivência civil, em que pessoas se autorizam a

inventar juntas inúmeros modos possíveis de coparticipação, num constante movimento

socioconstrutivo.

Currículo não de performances, mas de valores

Ao visitarmos a escola Águas Claras, encontramos os espaços organizados com todo o apuro

que caracteriza a estética e a comunicabilidade da abordagem, transparecendo que a

qualidade nas escolas é necessária e não uma opção. A visita finalizou numa conversa com

duas educadoras, uma pedagogista e uma mãe que se disponibilizou a dar seu depoimento

sobre a experiência comunitária na escola. Porém, o que mais chamou minha atenção foi que

numa das seções situada no segundo andar, além da visibilidade que tínhamos das

documentações e dos trabalhos elaborados, ouvia-se por todo o ambiente a gravação da

narrativa de um menino. Ele “listava” oralmente alguns locais e objetos da escola, atribuindo-

lhes sentido sob seu ponto de vista. Esse depoimento narrado se deu por intervenção das

educadoras, que anunciaram para as crianças que um grupo de adultos estrangeiros iria visitar

a escola. Então, perguntaram a elas: “O que, da escola, seria importante para esses

visitantes conhecerem?”. Para mim, esse é um dos melhores exemplos de participação

interativa, por demonstrar o cuidado que os adultos tiveram ao convidar as crianças para

expressarem valores ao invés de prepararem demonstrações performáticas sem sentido. As

crianças estavam ali, presentes, não apenas por meio das marcas deixadas no espaço, mas

também no que ocorria dentro da escola, para além do seu cotidiano. Procurar um modo de

interação entre elas e nós, e indiretamente com aquilo que estava ocorrendo na cidade,

demonstra um valor, uma atitude ética e de responsabilidade cidadã.

Durante a intensa semana de estudos, os encontros com o grupo de brasileiros ocorriam ao

final das atividades. Como provocação, logo no primeiro dia, pedi aos participantes que

tivessem em mente a palavra “transgressão”, e tentassem estabelecer alguma relação com as

práticas educativas de Reggio e do Brasil. A intenção foi criar uma espécie de lente, de

presença atenta e crítica ao que estaríamos expostos durante aqueles dias. Meu interesse

voltava-se principalmente para as relações intrassubjetivas estabelecidas por cada um de nós –

percepções sobre o que se imprimiria a partir das experiências (introspecção; autorreflexão).

Nessa perspectiva, ao nos reunirmos, compartilhávamos em grupo nossas impressões pessoais

numa proposição de troca de pontos de vista, de acolhimento das diferenças.

Essa proposta me ocorreu por acreditar que vivemos (não apenas nós brasileiros, mas o

mundo contemporâneo) imersos em uma cultura do imediatismo pautada na busca por

modelos certeiros e de respostas rápidas, na ilusória tentativa de simplificar a complexidade

que vivemos. Esse processo de “pasteurização social” ganha força quando aliado ao

mecanismo de conservação do status quo de controle, investindo o máximo de esforços para o

estreitamento de qualquer brecha que possa propiciar às instituições, inclusive às educativas,

lidar com a incerteza do que se faz presente e com a imprevisibilidade do novo, do que está

por vir e a ser conhecido – condições essenciais para o processo investigativo na busca de

rever valores e, consequentemente, criar possibilidades de renovação. Nas palavras de Carla

Rinaldi,

[...] essa ‘atitude de investigação’ é a única abordagem ético-existencial factível numa realidade cultural, social e política como a nossa, sujeita a mudanças, colapsos e formações híbridas de raças e culturas, que são positivas e potencialmente arriscadas. É o valor da pesquisa, mas também a busca de valores (RINALDI, 2012, p. 186).

Justamente por estarmos embrenhados nessa cultura mundial que insiste em nos “proteger”

da diferença, palavras como inspiração e transgressão podem ser facilmente capturadas e

ressignificadas em benefício desse poder, fazendo com que percam suas forças geradoras de

pesquisa e de transformação, adaptando-as a uma concepção metodomercadológica.

O que poderia haver de transgressor nas propostas das escolas reggianas? Essa indagação me

ocorreu para que pudéssemos reunir nossas potências investigativas e reconhecer as ações

que evidenciassem a ruptura com os paradigmas que nos são tão familiares. Em outras

palavras, tratava-se de um convite para discutirmos hipóteses no lugar de anunciar

constatações sobre “boas práticas” de educar crianças. Infelizmente, por vários motivos, não

conseguimos chegar a esse ponto de discussão no grupo. Porém, nada nos impede de dar

continuidade as nossas discussões, e aproveito aqui para dar o meu parecer em relação a essa

investigação.

A ideia foi trazer a transgressão para o grupo como uma plataforma sobre a qual pudéssemos

transitar com nossos próprios pensamentos e criar uma fenda possível para o nosso olhar. Não

para reconhecermos o que a fenda poderia nos revelar, mas para entendermos como ela se

faz coletivamente – uma metaestrutura para uma proposição metacognitiva.

Entre princípios irrenunciáveis e desejos de mudança

Particularmente, vejo a transgressão em Reggio como um ato de resistência ao

conservadorismo, seja pedagógico ou de qualquer outra ordem, que queira isolar a

participação direta e ativa da escola nas incessantes mudanças culturais, sociais e políticas.

Isso me leva à descrição de Silvio Gallo sobre a diferença nos modos de ocupar o mundo que

há entre o educador profeta e o militante. O primeiro legisla a progressão do ensino e da

aprendizagem homogêneos e programáticos, e o outro, “por sua vez, está na sala de aula,

agindo nas microrrelações cotidianas, construindo um mundo dentro do mundo, cavando

trincheiras do desejo.” (GALLO, 2008, p. 65). Reconheço esse sentido de militância presente

nas atitudes dos profissionais de Reggio, que se predispõem ao devir das relações num esforço

de se aproximar das autorias e das inventividades que envolvem as aprendizagens singulares

de crianças e adultos, como, por exemplo, por meio da pedagogia da escuta, entre tantas

outras iniciativas que poderíamos nomear como transgressoras da ordem profética.

Ficou muito evidente, principalmente na fala das pedagogistas, que o educador necessita

entender a infância não como uma fase da vida, mas um atributo permanente da nossa

personalidade. Com isso, torna-se claro que é preciso predispor-se a ter, como adulto, uma

atitude metal geradora de movimento relacional, praticando sobre si e incentivando nas

crianças a transformação processual dinamizada pela troca e pelos empréstimos de

conhecimento, o que implica todos se envolverem com a imprevisibilidade e a incerteza.

Vejo aqui uma maravilhosa conquista na abordagem de Reggio ao valorizar a imprevisibilidade

e a incerteza como instâncias constituintes de todo e qualquer processo autônomo e

relacional de aprendizagem, distanciando-se das interpretações que possam estar conectadas

à ideia de laissez-faire ou espontaneísmo. Parece-me que em Reggio estamos diante do

exercício de uma prática defendida por Paulo Freire: a do educador aventureiro responsável,

predispondo-se às mudanças e à aceitação do diferente, numa troca de aprendizagens entre

crianças e adultos. Segundo John Dewey:

A sugestão do professor não é um molde para um resultado forjado, mas um ponto de partida para ser desenvolvido em um plano através de contribuições a partir da experiência de todos os envolvidos no processo de aprendizagem. O desenvolvimento ocorre através de trocas recíprocas em que o professor recebe, mas também não tem medo de dar. O ponto essencial é que o propósito cresce e toma forma através do processo de comunicação e inteligência social (DEWEY, 2010, p. 74).

Os princípios irrenunciáveis

As Creches e Pré-Escolas em Reggio Emilia são vistas como potentes centros de pesquisa;

lugares para elaboração de ideias e significados a partir da valorização da criança em suas

experienciações. Considerar a criança como sujeito da experiência, autora de descobertas e

inventividades, propicia para a sociedade a construção da própria cultura da infância ao se ver

implicada com as estratégias utilizadas pelas crianças para se relacionarem com o mundo – o

confronto entre elas, a curiosidade investigativa pelo novo, a capacidade imaginativa e

projetual e o estado de empatia. Cabe à instituição escolar se constituir como lugar de

investigação educativa, pois o problema não está em sabermos o que deve ou não ser

discutido com as crianças, mas em procurar saber como discutir certos assuntos com as

crianças. Malaguzzi, durante a entrevista transcrita no livro As cem linguagens da criança,

ressalta:

[...] uma vez que as crianças sejam auxiliadas a perceber a si mesmas como autoras ou inventoras, uma vez que sejam ajudadas a descobrir o prazer da investigação, sua motivação e interesse explodem. Elas começam a esperar discrepâncias e surpresas. Como educadores, precisamos reconhecer sua tensão, em parte porque, com um mínimo de introspecção, descobrimos o mesmo dentro de nós mesmos (a menos que o apelo vital da novidade e da curiosidade tenha diminuído ou morrido) (EDWARD, GANDINI; FORMAN, 1999, p. 76).

Creio que para gerarmos ações transformadoras como educadores “inquietos” é preciso

encontrar um senso de militância em e na coletividade, a fim de constituir a força que nos

autoriza a sermos agenciadores de mudança num jogo de interação investigativa entre

realidade e utopia, entre princípios e valores vigentes e aqueles desejados. E isso envolve uma

postura crítica ao nos relacionarmos diretamente com a prática educativa exercida com

crianças. Quero dizer com isso que se trata de sermos profissionais cidadãos desejosos de ir ao

encontro da realidade e de confrontá-la com a utopia. Contrapomo-nos, assim, à ideia de

transmissão de uma metodologia de ensino que garanta o alcance de um resultado comum

para todos, de uma objetividade consensual calcada em verdades envernizadas proferidas sob

uma única perspectiva – a do adulto ensinador – que consequentemente desconsidera os

sujeitos da experiência e a configuração de uma coletividade pela reunião de diversidade. Para

isso, precisamos lançar mão do exercício da “escuta atenta e sensível” ao que as crianças

pensam e expressam em inúmeras e possíveis linguagens.

Basta escutar as crianças para entender que a transdiciplinaridade é um modo em que o pensamento humano conecta diferentes disciplinas (linguagens) com a finalidade de alcançar uma compreensão mais profunda de algo, não é uma teoria completamente independente da realidade nem um mandato docente; é uma estratégia natural do pensamento, respaldada por nossa hipótese inicial de que as oportunidades de combinação e criatividade em uma pluralidade de linguagens enriquece as percepções das crianças e intensifica suas relações com a realidade e a imaginação (VECCHI, 2013, p. 75).

Inspirar-se em Reggio Emilia para aproximar-nos da utopia concreta

O artista, em seu processo criador, vive entre os borrados contornos da inspiração e do

trabalho. É no trânsito entre esses dois territórios que a manifestação estético-poética

acontece. Nas palavras de Pareyson (1984, p. 194), “inspiração e trabalho não são dois modos

diversos de teorizar o processo artístico, mas dois aspectos igualmente necessários de tal

processo”. É preciso trabalhar muito para inspirar-se e inspirar-se para seguir trabalhando – eis

o sfumato dos contornos.

A interpretação que faço do binômio inspiração-trabalho pressupõe um movimento ao mesmo

tempo contemplativo e criador, introspectivo e expansivo, reflexivo e operacional, que busca

unir a percepção sensível do real com o desejo de executar algo inovador. Ou seja, descobrir-

se em um movimento que poderá cartografar o percurso daquilo que está por vir. Ouso dizer

que inspiração-trabalho é um ponto de partida que emerge no meio de nossa trajetória como

se fosse um desvio, mas sem nos tirar do caminho e aberto às rupturas para criar novas e

diversificadas conexões. É um estado rizomático que se instaura.

Eticamente falando, a presença do movimento rizomático é perceptível na abordagem

reggiana porque a realização de seus modus operandi explicita que pensamento e

estruturação – que aqui vou chamar de inspiração-trabalho – estão constantemente em

movimento dialógico com a realidade de cada escola, por serem entendidas como organismos

vivos e, portanto, respeitadas em suas micropolíticas (singularidade; autopoiesis). O que há em

comum entre elas é justamente os princípios que as inter-relacionam constituindo a

macropolítica educativa reggiana (coletividade; rede autopoiética).

Com isso, penso que para desejarmos a realização de algo novo sob a luz de uma referência

inspiradora e potente como de Reggio Emilia, teremos que nos a ver com um movimento

essencialmente político, reunindo pessoas das mais diferentes instâncias sociais com o intuito

de “concretizarmos a utopia”, não aquela de Reggio Emilia, mas a que possa emergir dos

desejos coletivos advindos de nossas realidades e discutidos comunitariamente.

O processo educacional parte da realidade, concretiza-se na

intersubjetividade e objetiva-se na mudança ou transformação da

consciência. A ação educacional é, portanto, uma comunicação dialógica

com a realidade, com os grupos e com a própria consciência. Se alguma

dessas fases falhar, o processo constitutivo, integrador e fator de mudança

social a que chamamos educação, não se produzirá (GUTIÈRREZ, 1988, p.

75).

A formação como cartografia dos processos

Uma abordagem que investiga e cartografa as relações sócio educacionais de e para uma

comunidade de aprendizagem se distancia da pedagogia cunhada na transmissão de saberes.

Isso requer um processo de formação constante, o qual busca se inter-relacionar com as

teorias pedagógicas em âmbito mundial e com aquelas provenientes de outras áreas de

conhecimento. Nota-se que, em Reggio, a arte, a filosofia e a antropologia, por exemplo, são

entendidas como lugares de provocações ou zonas de confronto, no sentido de fazer mover o

pensamento pedagógico em proveito de possíveis transformações – novamente o sentido de

plasticidade.

O interesse por uma investigação continuada que procura aproximações entre cultura da

infância – sob teorias e práticas das crianças – e cultura do adulto potencializa o desenho de

uma trajetória participativa na formação de educadores. Esse desenho-trajetória, porém, só se

torna possível quando todos os desenhistas caminhantes do percurso são envolvidos e

considerados em seus pontos de partida – ou pontos de vista, ou pontos de traço. Porque o

desenho do trajeto não está previamente determinado, mas se delineia em coautoria na

medida em que se valoriza o estabelecimento de relações entre e por todos os envolvidos no

percurso a ser cartografado. E essa atitude, inexoravelmente, inclui adultos e crianças,

educadores e pais, a comunidade e o mundo em estado de empatia, o que significa, entre

outras coisas, ter a diversidade como valor.

Convite à coparticipação reflexiva

As documentações apresentadas durante toda a semana de estudos são exemplos claros de

um “desenho caminhante” elaborado na relação regida pela empatia, tornando visível,

discutível e comunicável os processos de aprendizagem das crianças e dos adultos. Parece-me

que, diante desse cenário, inspirar-se em Reggio Emilia nos abre a possibilidade de sermos

realizadores de novas formas de cultura escolar, de infância e de educação, requerendo

primeiramente um movimento de resistência e militância – uma atitude que abarca a díade

inspiração-trabalho.

Infelizmente, a realidade demonstra que a grande maioria dos projetos de formação quer

garantir professores respondedores a uma ordem preestabelecida, executores da didática

pautada na sucessão progressiva de atividades que direcionam ao resultado de uma

aprendizagem esperada, numa formatação de crianças-indivíduos conformadas ao controle

social. Isso se contrapõe à utopia concreta reggiana, que busca a formação de professores

indagadores da realidade, para que percebam e sejam afetados pela processualidade das

aprendizagens complexas investigadas nas relações sócio-educacionais de uma comunidade.

Isso se dá por meio do encontro, no aprender junto e em relação congenial que, segundo

Pareyson, são

[..] casos de colaboração [...] mediante uma perfeita congenialidade que une autores vizinhos ou distantes no espaço e no tempo, e congenialidade significa pessoalidade, isto é, similaridade de pessoas que conseguem assemelhar-se sem nada sacrificarem da própria independência e da própria personalidade, mas antes afirmando a própria independência e encontrando a própria personalidade, precisamente naquele estado de similaridade e naquele esforço de assimilação (PAREYSON, 1984, p. 104).

A definição de Pareyson aproxima-se muito do formato que as escolas e creches projetam para

suas próprias ações. É preciso exercer a autonomia de cada unidade para fazer valer a

processualidade dos diferentes singulares, sempre procurando perceber o estado de

similaridade, conscientes de que se está contribuindo para um sistema-rede que é difuso e

desobediente.

Elena Giacopinni, ao final de uma de suas palestras, abriu generosamente um espaço para

interagir com o público. Porém, deixou claro, desde o início, que seu desejo era estabelecer

um diálogo, um momento dedicado a troca de pontos de vista. Ela estava curiosa em saber o

que nos mobilizava o pensamento a partir de então. A princípio, seu desejo não se

concretizou, uma vez que as primeiras pessoas a se pronunciarem propuseram perguntas

muito pontuais e específicas, em busca de respostas objetivas. Mas Elena não se intimidou

com a situação e, mais uma vez, expressou o seu desejo, aguardando silenciosamente até que

alguém finalmente se manifestasse dialogicamente. Arrisco-me a dizer que ali, nessa

experiência, era como se Elena quisesse “escavar uma trincheira do desejo”, para ter a

oportunidade de nos conhecer em nossas singularidades e, ao mesmo tempo, em nossa

congenialidade.

Um bom recomeço: muito que aprender “dentro” da experiência

Espero que as instituições em que todos nós trabalhamos estejam de portas abertas para

“abraçar” as nossas vivências em Reggio. Em nosso último e emocionante encontro, cada um

expôs sensivelmente as mais genuínas impressões, carregadas de subjetividade, e por meio de

diferentes linguagens, demonstrando o quanto fomos afetados e como isso despertou em nós

a sempre bem-vinda necessidade de mudança.

Tenho certeza que voltamos inspirados para o Brasil e desejosos de transgredir qualquer

impeditivo da realização de nossos sonhos, em nome de uma educação de qualidade. Mas

também tenho certeza de que Reggio não nos convidou a transgredir com a nossa realidade de

modo “transloucado”, inconsequente e destruidor. Ao contrário, pois me refiro àquela

transgressão que rompe com a paralisia dos movimentos transformadores; com a paralisia que

impossibilita a criação e fecha o espaço para a constituição de valores comunitários.

Acredito que tenhamos ainda muito a aprender com o que vivenciamos “dentro” dessa

experiência, e espero que estejamos juntos, presentes ou ausentes, próximos ou distantes, em

nosso posicionamento de resistência política.

REFERÊNCIAS DEWEY, J. Experiência e Educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. EDWARD, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 1999. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2003. GALLO, S. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. GUTIERRÈZ, F. Educação como práxis política. Trad. Antonio Negrino. São Paulo: Summus, 1988. KASTRUP, V. A invenção de si e do outro. São Paulo: Autêntica, 2007. PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1984. RICOEUR, P. La vida: un relato en busca de narrador. Ágora - Papeles de Filosofia, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006. RINALDI, C. Diálogos com Reggio Emilia – escutar, investigar e aprender. Trad. Vânia Cury. São Paulo: Paz e Terra, 2012. SALLES, C. A. Gesto Inacabado - processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2007