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Um olhar sobre a construção de histórias para pessoas com dislexia no sistema
SCALA: relato de experiência
Eixo temático: Tecnologias assistivas e práticas pedagógicas
Autores: Maria Rosangela Bez (Universidade FEEVALE);213 Viviane Cristina de Mattos
Battistello (Universidade FEEVALE); Rosemari Lorenz Martins (Universidade FEEVALE);
Debora Nice Ferrari Barbosa (Universidade FEEVALE)
Resumo: Ler e escrever não são processos que ocorrem de forma simples e efetiva para parte da
população, caracterizando-se como uma dificuldade de aprendizagem, como é o caso das pessoas
com dislexia. Aliado a esse aspecto, o uso das tecnologias digitais também exige conhecimentos de
leitura e escrita de todos os seus usuários. Os estudos teóricos sugerem que crianças com história de
atraso no desenvolvimento da linguagem apresentam maior número de ocorrência de trocas
desvozeados e vozeados que as demais. Desse modo, reforça-se que é relevante efetuar-se
intervenções precoces para que a pessoa com dislexia tenha possibilidade de desenvolvimento
otimizado. Nesse sentido, o artigo apresenta um relato de experiência com o objetivo de verificar
em que medida a construção de histórias no sistema SCALA pode contribuir para o processamento
fonológico e ortográfico de pessoas com dislexia. Realizou-se uma pesquisa de cunho qualitativo,
com um menino de 10 anos, que possui diagnóstico conforme CID (Código Internacional de
Doenças) R48 (Dislexia) e F90 (Transtorno de Atenção e Hiperatividade), frequenta o 4º ano do
Ensino Fundamental, em uma escola privada de São Leopoldo (RS). A coleta de dados foi obtida
nos atendimentos psicopedagógicos, no qual pode-se verificar que o uso do sistema SCALA
motivou a construção de histórias, uma vez que pessoas com dislexia tendem a apresentar
insegurança em relação à produção textual. A partir de tal experiência, foi possível analisar o
processamento fonológico e ortográfico da produção escrita desse menino com dislexia, verificando
ocorrência de trocas de letras desvozeadas e vozeadas.
Palavras-chave: dislexia, SCALA, construção de histórias, análise do processamento fonológico e
ortográfico da produção escrita.
INTRODUÇÃO
O uso da linguagem verbal, oral ou escrita, é praticamente imprescindível na sociedade em
que vivemos. Nesse mesmo contexto, o uso das novas tecnologias também exige conhecimentos de
leitura e escrita de todos os seus usuários. Aprender a ler e escrever, para parte da população,
213 E-mail: mariabez@feevale.br
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contudo, não são processos que ocorrem de forma simples e efetiva, caracterizando-se como uma
dificuldade de aprendizagem, como é o caso das pessoas com dislexia.
A palavra dislexia vem do latim dys, que significa dificuldade, e de lexia, que significa
palavra, ou seja, a dislexia é um déficit no sistema linguístico, relacionado a modificações em
habilidade de consciência fonológica. A International Dyslexia Association (IDA) e o National
Institute of Child Health and Human Development (NICHD) definem essa dificuldade como
um transtorno específico de aprendizagem de origem neurobiológica, caracterizada por
dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de
decodificação e em soletração. Essas dificuldades normalmente resultam de um déficit no
componente fonológico da linguagem e são inesperadas em relação à idade e outras
habilidades cognitivas. (IDA, 2002).
Há teóricos, como Gringorenko e Sternberg (2003), segundo os quais a causa da dislexia é
genética. Já de acordo com Pennington (1997), é ocasionada por fatores ambientais, como o nível
socioeconômico, por não terem sido desenvolvidos o hábito da leitura e os jogos com a criança.
Os estudos sobre dislexia iniciaram em 1872, com o pesquisador Dr. Rudolf Berlin, que
acreditava ser a perda temporária da capacidade de ler. Um pouco mais adiante, em 1877, Kussmaul
trouxe o termo “cegueira mental”, apesar de os pacientes não terem problemas de visão, mas por
apresentarem dificuldades com a linguagem receptiva. No mesmo ano, Charcot definiu como alexia
a perda total da capacidade de leitura. E, em 1890, Bateman reiterou o termo alexia ou dislexia para
a perda da memória de significado dos símbolos gráficos. Já em 2006, Salgado-Azoni e Cols
voltaram seu olhar para as novas tecnologias e para a observação do funcionamento cerebral,
chegando à conclusão de que o cérebro das pessoas com dislexia é diferente do das pessoas típicas
(NEUROSABER, 2006). No que se refere à incidência da dislexia, entre 4 e 5% da população
mundial possui um transtorno do desenvolvimento, com maior enfoque nos distúrbios de
aprendizagem (NEUROSABER, 2006).
A partir da DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), a dislexia
passou a fazer parte dos transtornos específicos de aprendizagem, considerada um transtorno do
neurodesenvolvimento de origem biológica de fatores genéticos, epigenéticos e ambientais, que
afetam a capacidade do cérebro para perceber ou processar as informações de origem verbal ou não
verbal com clareza e perfeição (DSM-5, 2014).
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No presente trabalho, contudo, dá-se ênfase ao uso de recursos tecnológicos utilizados em
prol do desenvolvimento da leitura e escrita de um menino com dislexia. Conforme Duarte (2009),
que utilizou multimídia com crianças disléxicas do Ensino Fundamental e da Educação Infantil, o
recurso tecnológico é importante para aumentar a potencialidade da conjugação entre texto,
imagem, som e animação gráfica. Ainda segundo a autora, os meios tecnológicos retiraram a carga
psicológica da aprendizagem do aluno disléxico com a obrigação de estudar páginas e páginas de
texto. O estudo constatou que a multimídia é importante, porque potencializa a realização de
tarefas, a construção do conhecimento, a adaptação e a inclusão no sistema escolar. Resultado
semelhante foi verificado por Sousa (2011), que investigou um aluno com dislexia de 11 anos com
dificuldades de leitura, escrita e linguagem (consciência fonológica), o qual, após o uso de um
recurso tecnológico melhorou consideravelmente sua leitura e escrita.
A questão do desenvolvimento associado ao uso de softwares educativos para crianças com
dificuldades de aprendizagem é investigada também por González e Ayala (2002), que reportam
feedback positivo resultante dessa interação uma vez que a tecnologia contribui para incentivar a
correção em caso de erro. Já Teles (2008) defende que um software focado nas dificuldades de
aprendizagem deve promover a interação entre a criança e o computador através da emissão de
palavras ou sílabas de forma prolongada ou repetida, possibilitando a identificação dos sons para
posterior escrita.
Para este estudo, optou-se pelo uso do recurso tecnológico SCALA – Sistema de
Comunicação Alternativa para Letramento de Pessoas com Autismo – que visa apoiar o processo de
desenvolvimento de crianças com autismo e/ou com déficits de comunicação, mas que, ao longo do
tempo, tem se mostrado uma ferramenta de apoio para o processo de alfabetização/letramento em
geral, independentemente do tipo de desenvolvimento do aprendiz (BEZ, 2014), e por se tratar de
um recurso tecnológico que tem promovido o desenvolvimento de habilidades e de esquemas de
comunicação por meio da tecnologia no âmbito da educação, em especial, da inclusão escolar. O
processo de desenvolvimento, tanto da ferramenta computacional como do sistema, partiu de uma
perspectiva metodológica sócio-histórica, que contempla não apenas o sujeito com autismo, mas os
contextos de interação com outros parceiros. Essa abordagem metodológica amplia o foco de
investigação para os contextos sociais nos quais as práticas culturais de comunicação e de
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letramento são desenvolvidas por diferentes participantes, entre os quais, sujeitos não oralizados.214
Em um nível micro, as tríades sujeito-mediador, sujeito não oralizado e ações mediadoras são o
ponto de partida para a compreensão dos processos de mediação com tecnologias. Assim, os
estudos de caso utilizando o SCALA envolveram, nos últimos dois anos, sujeitos de diferentes
faixas etárias e com diferentes níveis de letramento, que utilizaram diferentes dispositivos e
protótipos do programa de CA, incluindo material de baixa tecnologia em um processo de
desenvolvimento em espiral215 (PASSERINO, 2011).
O SCALA foi produzido a partir de quatro estudos: as pesquisas de Passerino (2005) e de
Bez (2010, 2014), realizadas com crianças com TEA, na busca por estratégias de mediação de
comunicação, e a pesquisa de Ávila (2011), que desenvolveu o primeiro protótipo. O software
SCALA é gratuito, sob licença Creative Commons, está disponível em duas versões: web
(http://scala.ufrgs.br/Scalaweb/) e dispositivo móvel tablet (download - http://scala.ufrgs.br/). O
sistema possui um módulo para a construção de pranchas de comunicação e um para a construção
de narrativas visuais. O módulo prancha tem agregado o protótipo de um sistema de varredura.
Também possui o protótipo de um módulo de chat, chamado “comunicador livre”. Esses dois
protótipos experimentais estão disponíveis somente na versão web.
O módulo prancha permite criar, editar e visualizar pranchas de comunicação com diferentes
layouts para configuração. Em cada célula da prancha, é possível inserir um pictograma do banco
de pictogramas disponíveis. Para adicionar um pictograma, basta escolher uma das categorias do
menu esquerdo e selecionar a imagem desejada ou utilizar o sistema de busca. As opções de
categorias são: Pessoas, Objetos, Natureza, Ações, Alimentos, Sentimentos, Qualidades e Minhas
Imagens. A categoria "Minhas Imagens" contém figuras importadas pelo usuário para o aplicativo
SCALA. A mesma figura pode ser adicionada diversas vezes e a legenda pode ser mudada usando-
se a opção de edição. Para cada quadro no módulo prancha, é possível também gravar som ou
utilizar um sintetizador de voz para fazer a leitura da legenda, quando acionada a funcionalidade
visualizar.
214 É a ação desenvolvida pelas pessoas em interação social, apropriando-se dos instrumentos de mediação, com a
finalidade de modificar seu comportamento ou de outras pessoas ou modificar o meio (WERTSCH, 1999).
215 Para conhecer as produções e os subprojetos, acessar site: scala.ufrgs.br
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O módulo história permite a criação de narrativas simples a partir da utilização de símbolos
com possibilidades de ampliação, rotação e inserção de planos de fundo: escolha de uma cor na
paleta de cores, escolha de um cenário predefinido, buscar uma imagem do computador ou desenhar
o próprio cenário. No módulo narrativas, os layouts são para a construção dos cenários, nos quais os
objetos e as personagens são inseridos. A narrativa pode ser adicionada sob a forma de texto oral ou
escrito. A forma de exportar e de imprimir permite compartilhar as produções nas redes sociais e
também exportar em formato pdf, e jpg.
Figura 1: Módulo de Narrativas visuais
Fonte: SCALA
O módulo narrativas possui as categorias de pictogramas216 Pessoas, Objetos, Natureza,
Ações, Alimentos, Sentimentos, Qualidades e Minhas Imagens. A categoria "Minhas Imagens"
contém as figuras importadas pelo usuário para o aplicativo SCALA. A mesma figura pode ser
adicionada diversas vezes e a legenda pode ser mudada por meio da opção edição. Há uma
categoria extra nesse módulo: os “Balões de diálogos”, que permitem a inserção de pequenos
diálogos. Em algumas imagens da categoria ações, existe a funcionalidade da animação, que
contempla funcionalidades como importar imagens, editar sons, salvar, exportar, layout,
visualizar/reproduzir, ajuda (tutorial) e gerenciar os diferentes arquivos gerados pelo sistema. No
módulo narrativas visuais, a edição possibilita rotar imagens, espelhar, inverter e aumentar ou
216 Os pictogramas utilizados no SCALA são, em sua maioria, do Portal ARASAAC e alguns foram especialmente
criados pelo grupo TEIAS.
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diminuir além de organizar para frente ou para trás as imagens que apresentam sobreposição. Há
ainda a possibilidade de escrita da história para posterior reprodução sonorizada, por meio de
sintetizador de voz ou de gravação do usuário, quando acionada a funcionalidade reproduzir.
Estudos de Passerino e Bez, (2013, 2015), Bez, (2014), Monte; Passerino (2015), Foscarini e
Passerino (2015) trazem resultados do uso do Sistema SCALA para o desenvolvimento da
comunicação e da interação social de alunos com autismo e como apoio ao processo de
alfabetização para alunos em geral.
Nessa perspectiva, considerando as questões que envolvem a Dislexia e o potencial do uso
das tecnologias digitais, questiona-se: de que forma a construção de histórias no sistema Scala pode
auxiliar no desenvolvimento linguístico de pessoas com dislexia?
1 OBJETIVO
Para discutir essa temática e para responder à questão de pesquisa, este trabalho tem como
objetivo verificar em que medida a construção de histórias no sistema SCALA pode contribuir para
o processamento fonológico e ortográfico de pessoas com dislexia.
2 MÉTODO
Para atingir o objetivo proposto e contribuir com as discussões na área, realizou-se uma
pesquisa de cunho qualitativo, a fim de obter “dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos
interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os
fenômenos segundo a perspectiva [...]” dos participantes da situação em estudo (GODOY, 1995, p.
58). Dentro do paradigma qualitativo, foi adotado, para esta investigação, o estudo de caso por ser
“uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da
vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente
definidos” (YIN, 2003, p. 32). Com relação à técnica de pesquisa, utilizou-se a observação
participante na qual o pesquisador participa ativamente das atividades em conjunto com o
observado. Essa observação seguiu uma postura dialética do investigador perante o sujeito e o
contexto pesquisado. Partindo dos pressupostos da teoria sócio-histórica, a observação participante
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foi fundamentada no “método da dupla estimulação”, de Vygotsky, na qual a investigação não se
limita a modelos artificiais, alheios ao mundo real, mas a estudar os processos complexos imersos
na influência das variáveis culturais (VYGOTSKY, 1998).
O sujeito do estudo foi um menino de 10 anos, que frequenta o 4º ano do Ensino
Fundamental, em uma escola privada de São Leopoldo (RS). Possui diagnóstico conforme CID
(Código Internacional de Doenças) R48 (Dislexia) e F90 (Transtorno de Atenção e Hiperatividade).
A pesquisa seguiu a estrutura das etapas descritas a seguir: estudo do Sistema SCALA,
Atendimento propriamente dito com o menino, elaboração e escrita dos resultados, discussão acerca
dos objetivos propostos, finalizando-se com algumas considerações finais.
Nos atendimentos psicopedagógicos são utilizadas diferentes metodologias que tem como
objetivo auxiliar no desenvolvimento da leitura e escrita, de maneira lúdica através de leitura e
gravação de textos, bem como jogos de palavras.
3 RESULTADOS
As atividades utilizando o Sistema SCALA com o menino cujo desenvolvimento da leitura e
da escrita está sendo investigado foram realizadas entre outubro e novembro de 2016, com o
objetivo de explorar e criar histórias em atendimentos psicopedagógicos. O menino em questão
estava, no momento da realização da pesquisa, no 4º ano do Ensino Fundamental em uma escola
privada de São Leopoldo (RS). Ele está alfabetizado, tem boa forma de comunicação oral, mas,
eventualmente, troca os fonemas. Os atendimentos psicopedagógicos (extracurriculares) acontecem
a cerca de 1 ano e meio, três vezes por semana, no contexto familiar.
Para a coleta de dados, foram construídas duas histórias no SCALA, no modo Narrativas
Visuais, em três atendimentos. A primeira história foi realizada em 2 atendimentos de 1 hora cada,
no mês de outubro de 2016, em atendimento domiciliar. Foi constatado que o menino não possuía
contato regular com o computador, em função disso, demonstrou insegurança no manuseio inicial.
Na sequência, foi apresentado a ele o SCALA e algumas instruções de uso. Isso prendeu a atenção
do menino, que se interessou especialmente pela procura dos pictogramas.
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Aos poucos, foi se efetivando a proposta da criação da história com tema livre. Primeiro, foi
escolhido o cenário de plano de fundo. Após, buscaram-se as imagens de personagens. Na
sequência, o menino foi instigado à escrita de diálogos nos “balões de fala”.
A história apresentava uma situação de confronto entre o bem e o mal representada por
pictogramas de policiais, guardiões, super-herói, uma arqueira e um ladrão. A história criada tinha
início, meio e fim, apesar de sua construção não ter sido linear. A Figura 2 apresenta a história
criada pelo menino.
Figura 2: Primeira História
Fonte: autoria própria
Durante a elaboração da história, em diversos momentos, o menino repetia oralmente as
palavras que tinha escrito e, dessa forma, identificava seu próprio erro, como, por exemplo, na
palavra “vou”, que ele tinha escrito “fou” (trocou a letra “v” pela letra “f”). Além disso, ele também
trocou as letras “g” pelo “c” e “b” pelo “p”, ou seja, tende a trocar letras que representam fonemas
vozeados por letras que representam fonemas desvozeados.
O terceiro atendimento teve como foco inicial a realização dos temas escolares, quando eles
estavam concluídos, o menino demonstrou interesse de voltar a construir uma história. Perguntou-se
se desejava continuar a história anterior, mas, o menino quis criar uma nova história. No tempo que
restava do atendimento, iniciou, mas não conseguiu concluir a história. Essa história versava sobre
uma festa de casamento em um castelo. Ele representou três casais de noivos, quatro casais de
pessoas dançando, em cima do castelo, diversos policiais, um noivo alado, com duas espadas e uma
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imagem do diabo. Em frente ao castelo, colocou uma casa. O cenário da segunda cena tem como
plano de fundo o mar. Em uma faixa de terra, estão três casais de noivos, um pirata e um noivo com
uma espingarda e uma espada. No mar, há duas canoas com remos e um barco à vela. A Figura 3
representa a história iniciada. No atendimento seguinte, o menino não demonstrou interesse pela
continuação da história.
Figura 3: Segunda História
Fonte: autoria própria
A construção dessas histórias no sistema SCALA foi uma experiência muito gratificante
para o menino, apesar de ele não ter contato frequente com o computador, o que causou muita
insegurança, principalmente, na hora de digitar as frases. Inclusive, em função deste aspecto,
durante o período de apropriação do menino com a tecnologia (tanto o SCALA como com o
dispositivo), algumas palavras tiveram que ser digitadas pela terapeuta, pois ele apresentou
resistência para escrever.
Durante a criação das histórias, o menino mostrou-se muito instigado a procurar os
pictogramas, principalmente de vilões e de personagens de histórias que ele vivencia através de
jogos de videogame.
4 DISCUSSÃO
Os disléxicos geralmente apresentam dificuldades de relacionar grafema (letra) com os
fonemas (sons), tendem a inverter a posição das letras dentro da palavra. Fato que foi observado
durante a produção escrita da primeira história (Figura 1), na qual, primeiramente, as frases escritas
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foram: “Eu sou Patman e fou pecar este pandido”. Nessa frase, houve trocas envolvendo os pares
de letras “p” e “b”, na escrita nas palavras “batman>patman”, “bandido> pandido”, e “v” e “f”, na
escrita da palavra “vou>fou”, e no par de fonemas /g/ e /c/ na escrita da palavra “pegar>pecar”.
Conforme Capellini, Cunha e Batista (2009), a disortografia é a escrita incorreta, com erros
e trocas de grafemas, alteração atribuída às dificuldades no mecanismo de conversão letra-som, que
interferem nas funções auditivas superiores e nas habilidades linguístico-perceptivas, fazendo parte
do quadro da dislexia do desenvolvimento. As crianças que apresentam dislexia do
desenvolvimento possuem o sistema fonológico deficiente, o que ocasiona alterações na conversão
letra-som. Assim, a correspondência letra-som não consegue ser armazenada, provocando leitura e
escrita lenta, confusão entre palavras similares, tanto na leitura como na escrita e alteração na
compreensão da leitura e escrita ineficiente.
A escrita da segunda frase: “ Vamos pecar esse bandido!”, apresentou alteração no par de
letras “g” e “c”, na escrita da palavra “pegar>pecar”, novamente, e, na escrita da última frase:
“Temos que devender o paú”, apresentou alteração no par “f” e “v”, na escrita da palavra
“defender> devender”, e dos fonemas “b” e “p” da palavra “baú>paú”.
Para Capellini, Cunha e Batista (2009), os erros na sequencialização dos grafemas também
estão relacionados com o processamento da fala e se manifestam como erros de omissão e adição de
segmentos e alteração na ordem dos segmentos, gerando uma dificuldade para identificar a
sequência fonêmica correta durante o processamento da fala e a sua correspondência grafêmica.
Outro tipo de erro é o de segmentação da cadeia de fala, que ocasiona segmentação indevida de
palavras e união incorreta de palavras. Isso está diretamente relacionado com a consciência lexical.
Capellini, Cunha e Batista (2009) ainda expõem que as características da disortografia fazem
parte do processo de apropriação do sistema ortográfico da língua, mas são superadas ao longo da
escolarização. Entretanto, no caso de crianças com disortografia decorrente do quadro de transtorno
de aprendizagem, essas características não desaparecem com a progressão da escolaridade,
mostrando-se persistentes, isso porque possuem dificuldade de fixar as formas ortográficas das
palavras, apresentando como sintomas típicos a substituição, omissão e inversão de grafemas,
alteração na segmentação de palavras, persistência do apoio da oralidade na escrita e dificuldade na
produção de textos.
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Ao reler a história, o menino deu-se conta das trocas e questionou com qual letra deveria
escrever tais palavras. Nesse momento, ficou repetindo as palavras em voz alta, para ter certeza de
qual grafema (letra) correto deveria usar, como, por exemplo, da palavra “vou”. Entretanto, outras
palavras tiveram que ser digitadas pela terapeuta, pois houve resistência para reescrever. Cagliari
(2005) explica que esse tipo de troca de letra ocorre porque, geralmente, ensina-se a escrever em
silêncio. Isso quer dizer que as crianças não devem pronunciar as palavras que irão escrever em voz
alta, o que dificulta ou impede que se deem conta dos sons que compõem tais palavras.
Nesse sentido, tendem a articular as palavras sem produzir sons ou as sussurram e, assim,
acabam por não terem pistas, acústicas ou sonoras, que auxiliem na detecção do tipo de fonema,
vozeado ou desvozeado. Ocorre que, quando articulados sem som, ou quando sussurrados, os
fonemas vozeados tendem ao desvozeamento, o que, ainda de acordo com o mesmo autor, pode ser
a razão pela qual as consoantes vozeadas tendem a ser substituídas pelas consoantes desvozeadas
muito mais frequentemente do que no sentido inverso que, de acordo com suas observações, tem
uma ocorrência muito rara.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com os dados obtidos nesta pesquisa, pode-se verificar que o uso do Sistema
SCALA motivou a construção de histórias de uma criança com dislexia, uma vez que pessoas com
esse distúrbio tendem a apresentar insegurança em relação à produção textual.
O uso do recurso tecnológico foi essencial para o incentivo e apoio do desenvolvimento da
linguagem, isso porque, como se sentiu motivado a construir uma história no computador, o menino
prestou mais atenção em sua produção. Além disso, o fato de a professora ter solicitado a leitura da
história em voz alta, fez com que a criança sentisse certo estranhamento com relação a sua produção
escrita, o que a levou a repetir várias vezes as palavras escritas oralmente. Essa repetição oral
proporcionou uma reflexão com relação aos fonemas-grafemas usados e, assim, conseguiu corrigir
seus próprios erros.
Dessa forma, pode-se dizer que o SCALA é uma ferramenta interessante para crianças que
precisam utilizar diferentes sentidos para desenvolver sua competência de leitura e escrita, uma vez
que possibilita associar à língua escrita, imagens e sons, recursos que são atraentes para qualquer
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criança. Além disso, como é fácil de usar, atinge também crianças com poucas habilidades de uso
da tecnologia, como é o caso do menino investigado, e de outras crianças com algum tipo de
deficiência.
Assim, o SCALA pode ser considerado um recurso tecnológico que tem promovido
habilidades e esquemas de comunicação por meio da tecnologia em sua aplicabilidade no âmbito da
Educação, em especial da inclusão escolar.
A partir de tal experiência, foi possível a análise do processamento fonológico e ortográfico
da produção escrita desse menino com dislexia, verificando ocorrência de trocas de letras
desvozeadas e vozeadas. De acordo com alguns estudos de Capellini, Cunha e Batista (2009), essa
ocorrência é comum em crianças com histórico de alteração de linguagem, em comparação àquelas
que não têm esse histórico. No entanto, os dados sugerem que crianças com história de atraso no
desenvolvimento da linguagem apresentem maior número de ocorrência de trocas desvozeados e
vozeados que as demais.
Desse modo, constatou-se que existe uma maior interferência da modalidade de fala em
relação à escrita, reforçando que é relevante efetuar-se intervenções precoces para que a pessoa com
dislexia tenha possibilidade de desenvolvimento otimizado.
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