trabalhadeira, mulher e guerreira - iesc · histórias de vidas e famílias 54 4.4.4....
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Trabalhadeira, mulher e guerreira
O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde
em uma abordagem de gênero
Clarissa Alves Fernandes de Menezes
Rio de Janeiro
Março de 2011
1
Clarissa Alves Fernandes de Menezes
Trabalhadeira, mulher e guerreira
O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde
em uma abordagem de gênero
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Saúde Coletiva.
Orientadora: Profª. Drª. Regina Helena Simões Barbosa
Rio de Janeiro
Março de 2011
2
Menezes, Clarissa Alves Fernandes
Trabalhadeira, mulher e guerreira: o (precário) trabalho das Agentes
Comunitárias de Saúde em uma abordagem de gênero/ Clarissa Alves
Fernandes de Menezes – Rio de Janeiro: UFRJ / IESC, 2011.
126 f: il.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva)- Universidade Federal do Rio de
Janeiro- UFRJ, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva- IESC, Rio de Janeiro,
2011. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Regina Helena Simões Barbosa.
1. Gênero; 2. Trabalho em Saúde; 3. Agente Comunitário(a) de Saúde. –
Teses - I. Barbosa, Regina Helena Simões. III. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, IESC , Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. IV. Título.
I. Referências bibliográficas: f. 118-121
FICHA CATALOGRÁFICA
3
Clarissa Alves Fernandes de Menezes
Trabalhadeira, mulher e guerreira
O (precário) trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde
em uma abordagem de gênero
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Saúde Coletiva.
Aprovada em ____/______/______
_____________________________________________
Profª. Drª. Helena Maria Scherlowski Leal David
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vera Joana Bornstein
____________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Helena Simões Barbosa (orientadora)
4
Dedico este trabalho às todas trabalhadoras da saúde,
precarizadas e efetivas, e às companheiras de luta do grupo
de mulheres Pão e Rosas.
5
AGRADECIMENTOS
Ao meu companheiro Leandro, por todo apoio, amor, paciência e compreensão,
injeções de ânimo e por sua enorme ternura e companheirismo. Aos meus progenitores, Iara e
Ricardo, que se tornaram meus grandes amigos e conquistaram minha admiração, por todo
amor, apoio, carinho, compreensão e acolhida. À minha irmã Laura pela disposição e carinho
em me ouvir e me ajudar em momentos difíceis e por suas sábias observações. Ao Gilson
Dantas, por seu apoio e estímulo. À Flávia e Bernardo, novos mineiros, pelas conversas
animadas e inspiradoras. À minha irmã Marília e ao meu sobrinho Leandro que mesmo
distante fazem parte dessa jornada. À Joana D’arc da Silva por toda dedicação e carinho.
À Prof.ª Regina Helena Simões Barbosa, orientadora deste trabalho, por toda sua
paciência e dedicação, e por sua valiosa contribuição para o processo de construção deste
trabalho. Às professoras Helena David e Terezinha Martins, pelas críticas construtivas e
aconselhamentos que permitiram o aprimoramento deste trabalho. À Vera Joana Bornstein
por sua contribuição à execução e aprimoramento deste trabalho.
À Valéria Cunha, pelo companheirismo, estímulo, apoio e críticas que foram
imprescindíveis. À Natasha e Flávia, companheiras de mestrado pelo apoio, pelos momentos
de descontração, angústias e risadas.. À Márcia Trotta, por todo apoio e por suas palavras
calmas e confortantes.
Aos colegas pesquisadores e pesquisadoras do projeto de pesquisa “Abordagem
interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes
comunitários de saúde” por compartilharmos idéias e achados. Às professoras da disciplina de
Saúde das Mulheres da ENSP, pelas excelentes trocas propiciadas em nossos encontros.
Aos colegas de mestrado pela troca de idéias, conhecimentos, experiências. Às e os
professores e funcionários/as do IESC por toda atenção. À CAPES pela bolsa.
6
Elogio da Dialética
A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta: Agora acaba de começar! E entre os oprimidos muitos dizem: Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais! O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio? De nós. De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem! Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".
Berthold Brecht
7
RESUMO
A presente pesquisa, de natureza qualitativa, teve por objeto de estudo o trabalho de
agentes comunitárias/os de saúde (ACS), apreendido em seu cotidiano de trabalho e de vida.
Para abordar tal objeto, foram consideradas as relações entre trabalho em saúde e gênero,
enfocando-se a dinâmica entre trabalho assalariado e trabalho doméstico não-remunerado.
Realizamos entrevistas semi-estruturadas com ACS que vivem e trabalham no Complexo da
Maré, município do Rio de Janeiro, região marcada por extensas carências sociais e pela
violência. O trabalho de ACS é fortemente marcado por questões de gênero entrelaçadas às
desigualdades de classe social. A abordagem conceitual adotada explicita a naturalização da
ideologia de gênero e da divisão sexual do trabalho que permeia esta profissão, que tem como
eixo a atenção à saúde das comunidades em que vivem. A maioria das ACS é recrutada entre
moradoras de comunidades, das periferias urbana e rural. O vínculo trabalhista é marcado pela
precariedade, configurando condições de aviltamento salarial, extensas jornadas de trabalho,
precariedade de instalações e meios para a realização do trabalho.
Os resultados mostraram que as ACS desenvolvem um forte compromisso social com
suas comunidades, o que, em função da não delimitação do tempo entre trabalho assalariado e
o trabalho doméstico não-remunerado, acarreta em uma sobrecarga de trabalho. As
trabalhadoras desenvolvem um conceito ampliado de saúde, compreendida como resultante de
múltiplos processos sociais. Por outro lado, o vínculo precário, os baixos salários e o não
reconhecimento do valor desta modalidade de trabalho pelas esferas governamentais gera
forte sentimento de frustração e desestímulo em relação à profissão. O olhar mais atento e
comprometido com esta importante categoria profissional fortalece uma concepção de
profissionais de saúde que têm necessidades enquanto seres humanos, enquanto força de
trabalho, enquanto mulheres, o que contribui para a luta destas trabalhadoras pelo
reconhecimento e valorização do trabalho, por melhores condições de trabalho, e em defesa
da Saúde Pública.
Palavras chave: gênero; trabalho em saúde; agentes comunitários/as de saúde;
programa saúde da família.
8
ABSTRACT
This research had as its study object community health agents (CHA) in their work and
life context. To approach such object the relationships between gender and health work,
focusing in the dynamics between remunerated work and not remunerated household work.
The work conducted by the community health agents is strongly punctuated by gender
issues intertwined with class inequalities. The conceptual approach chosen puts forward the
naturalization of gender ideology as well as the sexual division of work that permeates the
CHA work. This profession has as its axis healthcare in the same areas inhabited by the CHA
workers. Most CHA workers are recruited amongst slums, peripheral and rural areas. Their
labor contracts are marked by precarious conditions, degradation of wages, extensive
workdays, precarious installations and material to conduct their work.
This research is of a qualitative nature and had as its object to explore the CHA’s
perception of their work and life routines. We have conducted semi-structured interviews with
CHA workers that work and live in Complexo da Maré, a location marked by the extensive
social needs and violence. It is located in the city of Rio de Janeiro.
The results show that the CHA workers develop a strong social commitment with their
communities, which combined with the lack of boundaries between remunerated work and
household life entails a tremendous work overload with physical and psychological
implication. Related to their work in healthcare, it shows an enlarged concept of health,
understanding it as results of multiples social processes. On the other hand, the precarious
labor contracts, the low wages and the lack of recognition of this profession by the
government authorities, managers and health services, generate a deep frustration and want of
stimulus regarding the job. A closer and involved look at this important profession
strengthens one particular reasoning: they are healthcare workers with necessities as humans,
as workers, as women. This strengthens this profession’s struggle for recognition, for
according remuneration for its work, for adequate work conditions for this precious job of
caring and in defense of Public Health.
Keywords: gender, healthcare work, community health agents, family health program.
9
SUMÁRIO
Capítulo 1 10
1.1 Apresentação 10
1.2 Introdução 11
1.2.1 O neoliberalismo como contexto 13
1.2.2 O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o
Programa Saúde da Família (PSF) 19
1.2.3 Entre ser e estar: trabalho de ACS 23
1.3 Objetivos 28
Capítulo 2 29
2.1 A abordagem de gênero 29
2.2 Gênero em movimentação: conjugando a opressão e a exploração 34
2.2.1 Divisão sexual e social do trabalho 35
2.3 Algumas considerações sobre o trabalho das ACS a partir de um olhar de
gênero 40
Capítulo 3 43
3.1 Discussão Metodológica 43
3.1.1 Metodologia qualitativa 44
Capítulo 4 47
4.1 Os resultados da pesquisa 47
4.2 O Campo da pesquisa 48
4. 3 Entrada em campo 49
4.4 Breve perfil, contextos familiares e histórias de vida 51
4.4.1. Breve perfil sócio-familiar das entrevistadas 51
4.4.2. Breve contexto das famílias de origem 52
4.4.3. Histórias de vidas e famílias 54
4.4.4. Trabalhadeira, mulher e guerreira 63
4.5 Profissão: Agente Comunitária de Saúde 77
4.6 A saúde em perspectiva 98
4.7 Trabalho doméstico não-remunerado 105
4.7.1 A pesada e ‘prazerosa’ carga do trabalho doméstico não-remunerado 105
Capítulo 5 114
5.1 Conclusões 114
Referências Bibliográficas 118
Anexo 1 122
Anexo 2 123
Anexo 3 125
10
Capítulo 1
1.1. Apresentação
Esta pesquisa teve por objeto de estudo o trabalho de agentes comunitárias de saúde
(ACS), apreendido em seu cotidiano de trabalho e de vida. Para abordar tal objeto, foram
consideradas as relações entre trabalho em saúde e gênero através da análise da dinâmica
entre as esferas produtiva e reprodutiva do trabalho das mulheres.
A escolha do tema deu-se a partir de minha inserção no Programa de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (IESC), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi motivada pelo interesse em compreender a dinâmica
do processo de trabalho das mulheres, sobretudo daquelas que se inserem de forma
precarizada no mercado de trabalho, fenômeno que se intensificou principalmente a partir da
década de 1970. Na graduação em Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), participei do Núcleo de Relações de Trabalho, quando foi despertado o
interesse em compreender as condições de trabalho às quais estavam expostas as
trabalhadoras terceirizadas da limpeza na universidade. Busquei, então, uma primeira
aproximação do tema ‘trabalho e gênero’ na minha monografia de conclusão de curso
apresentada a essa instituição. Nesse trabalho, o conhecimento das conseqüências de
condições de trabalho precárias, aliadas a extensa jornada de trabalho, contato diário com
produtos químicos e desconhecimento sobre suas propriedades, ausência de equipamentos de
proteção individual no trabalho adequados às funções e esforço físico excessivo, dentre
outros, conjugados com o trabalho doméstico e suas repercussões à saúde, bem como com a
luta pela reivindicação de melhores condições de trabalho, despertaram-me o interesse na
busca por um aprofundamento sobre a temática.
Após o meu ingresso no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do IESC,
apresentou-se a oportunidade de me inserir no projeto “Abordagem interdisciplinar das
novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes comunitários de
saúde, coordenada pela professora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do
11
Rio de Janeiro (UERJ) Helena Maria Scherlowski Leal David, integrado por pesquisadoras/es
da UFRJ, UERJ e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)1, em curso desde 2007. Trata-se de
um projeto que propõe a construção de uma análise interdisciplinar das relações entre trabalho
e saúde, tendo como foco o trabalho do agente comunitário de saúde (ACS) em suas variadas,
complexas e múltiplas dimensões, materiais e simbólicas, objetivas e subjetivas, macro e
micro-estruturais2. De acordo com sua proposta interdisciplinar e objetivando avançar na
compreensão ampliada de um fenômeno complexo, o projeto é composto por distintos eixos
de análise, sendo que esta dissertação integra o eixo desenvolvido pelo grupo de pesquisa do
IESC/UFRJ, que explora a dimensão de gênero do trabalho de ACS.
1.2. Introdução
Nas últimas décadas, desde o final da ditadura e implementação de políticas de maior
abertura econômica e de ajustes estruturais do neoliberalismo, que será mais desenvolvido a
seguir, o Brasil passou por profundas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais
que marcaram a trajetória da saúde pública. Tais transformações inseriam-se em um contexto
global. Nesse contexto podemos elencar o enxugamento dos gastos sociais dos Estados, novas
formas de privatização dos serviços públicos, a focalização das políticas públicas voltadas aos
estratos mais pauperizados da população, flexibilização e precarização das relações de
trabalho e a correlata redução de direitos sociais e trabalhistas. É nesse contexto sócio-
histórico – marcado pela extrema concentração da renda e crescente dependência externa –
que ocorreu uma queda brusca da fecundidade, a entrada maciça de mulheres casadas e com
filhos na força de trabalho, bem como um aumento do número de famílias chefiadas por
mulheres (GIFFIN, 2002).
A conjugação destes distintos fatores se insere no que se denominou “ajustes
neoliberais” ou “neoliberalismo”. Para os fins deste trabalho, utilizamos a definição de
neoliberalismo de Perry Anderson (1995), para quem o neoliberalismo seria tanto uma
ideologia, como um programa de governo que foi implementado em distintos ritmos e formas
em diversos países, mas que teria alguns traços comuns, tais como o contundente corte de
1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e CNPq.
2 Informações extraídas do documento: DAVID, HMSL et al. Abordagem interdisciplinar das novas relações e
processos de trabalho em saúde: o caso dos Agentes Comunitários de Saúde. Relatório de Pesquisa. Rio de
Janeiro: EF/UERJ e IESC/UFRJ, 2009.
12
gastos sociais, a diminuição da intervenção do Estado na economia através de
desregulamentação financeira, bem como uma série de medidas que, visando oferecer uma
alternativa à crise da década de 1970, baixaram drasticamente os impostos sobre os altos
rendimentos e lançaram um amplo programa de privatização. A ofensiva neoliberal
ganhou força a partir de 1980, com o governo Thatcher na Inglaterra, estendendo-se para os
países desenvolvidos e em desenvolvimento nos anos e décadas subseqüentes.
Estudos apontam que, no contexto do neoliberalismo e de uma crescente
flexibilização e precarização das relações de trabalho, ocorreu um incremento na inserção da
força de trabalho de mulheres no mercado de trabalho e maior vulnerabilidade das
trabalhadoras diante da precarização das relações laborais (NOGUEIRA, 2006; ANTUNES,
1999). Esse processo teria como objetivo uma reorganização da produção internacional que se
aproveitaria dos baixos salários e da frágil regulamentação do trabalho em países em
desenvolvimento, com uma clara tendência de otimizar a super-exploração da força de
trabalho das mulheres, tal como apontado por Brito (2000).
É neste cenário que emergirá um/a novo/a trabalhador/a da saúde: o/a agente
comunitário/a de saúde (ACS)3. O surgimento do trabalho de ACS pode ser compreendido
relacionando-o com as tendências de flexibilização e precarização das relações de trabalho
também presentes no setor público, bem como com a redução dos gastos sociais do Estado.
Mas não somente: também é necessário considerar que a hierarquia atribuída às políticas de
saúde voltadas à atenção básica está ligada a essa redução nos gastos sociais, combinada com
a extensa oferta de Seguros Privados de Saúde4 acessíveis aos segmentos de maior renda,
aprofundando a intensa desigualdade no acesso e atendimento à saúde entre as distintas
classes sociais e mesmo desigualdade dentro de diferentes camadas das classes sociais.
A importância da contextualização das relações de trabalho sob a ofensiva
neoliberal reside na coincidência de diversas destas características apontadas no trabalho das
ACS. Pretende-se aqui tecer uma breve problematização do contexto de sua emergência.
Essas trabalhadoras são, quase majoritariamente, destituídas de direitos trabalhistas mínimos
e, em se tratando de executoras diretas da política de atenção básica em nosso país, pode-se
3 Os/as agentes comunitários de saúde em sua grande maioria são mulheres (questão que será discutida adiante).
Em função dessa forte marca de gênero, os/as ACS serão referidos sempre no feminino. 4 Para um panorama aprofundado sobre a atenção privada de saúde ver ANDREAZZI & KORNIS, 2003.
13
compreender essa precarização como uma expressão latente, ou claríssima para os defensores
da saúde pública, da terceirização e privatização do campo da saúde. Esses elementos,
conjugados com uma marca da precarização do trabalho das mulheres, ilustram e expressam-
se no trabalho de ACS, como se buscará apontar. A seguir, serão abordadas algumas das
principais tendências do neoliberalismo e suas repercussões para a saúde pública.
1.2.1. O NEOLIBERALISMO COMO CONTEXTO
Com o novo ciclo de mudanças do capitalismo, iniciadas na década de 1970, as
expectativas geradas após a 2ª Guerra Mundial, de que o crescimento econômico
corresponderia continuamente a uma melhora geral nas condições de vida, começaram a se
desfazer. O progressivo desmantelamento do Welfare State (Estado de Bem-Estar) e o
conseqüente aumento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade – por se
encontrarem sem emprego ou submetidas a formas precárias de trabalho, instáveis e sem
proteções trabalhistas –, por um lado, aumentou a demanda por uma atuação do Estado na
área social, mas, por outro, gerou uma expectativa não realizável, uma vez que o processo
econômico em curso, marchando rumo ao que hoje se denomina neoliberalismo, também foi
acompanhado do fortalecimento de posições e ações contrárias ao aumento e ou continuidade
do custeamento das áreas sociais pelo Estado (ALGEBAILE, 2005).
De acordo com Laurell (1995), na transição dos anos 1980 para os 1990 houve uma
queda vertiginosa dos salários e o crescente aumento do subemprego e do desemprego,
levando ao reconhecimento unânime de que houve, nesse período, um retrocesso social
dramático, um “emprobrecimento generalizado da população trabalhadora e na
incorporação de novos grupos sociais à condição de pobreza ou extrema pobreza” (p.151).
Foi no contexto de grandes cortes nos gastos sociais, redução dos serviços sociais públicos e
dos subsídios às políticas redistributivas que se deterioram as condições de vida da população.
Laurell (1995) enumera ainda as estratégias idealizadas pelos governos neoliberais
para reduzir a ação estatal no terreno do bem-estar social: a) privatização do financiamento e
da produção dos serviços; b) cortes dos gastos sociais, eliminando-se programas, reduzindo-se
benefícios e canalizando-se (parcos) gastos com os chamados “grupos carentes”, e c) a
descentralização em nível local. Sinalizando, dessa forma, para três objetivos neoliberais: re-
14
mercantilizar os bens sociais, reduzir o gasto social público e suprimir a noção de direitos
sociais.
Este conjunto de transformações é complexo e atingiu os países em formas e ritmos
distintos. Há que se apontar, entretanto, que o neoliberalismo foi acompanhado de toda uma
lógica e transformação na esfera produtiva. Em resposta à crise dos anos 1970 (que teve como
estopim a “crise do petróleo”), a burguesia,visando recuperar sua taxa de lucro e em busca de
sua ampliação, marchou sobre os trabalhadores para a implementação de um novo padrão de
acumulação de capital, tal como aponta Harvey (1995), a “acumulação flexível”. De modo
resumido, “acumulação flexível” consiste em combinar as formas de extração de mais-valia
absoluta5 e mais-valia relativa, aliada a uma nova forma de organizar e gerir o trabalho.
Aborda-se nesta pesquisa algumas das repercussões do neoliberalismo sobre o papel
do Estado, sobretudo no tocante às políticas públicas. Porém, compreende-se a readequação
do Estado a essa nova forma de organização e gestão do trabalho, engendrada a partir das
experiências do chamado “toyotismo” – em alusão à montadora japonesa Toyota, precursora
na implementação da reestruturação produtiva, que em busca da acumulação flexível,
reorganizou sua produção, distribuição, acumulação e gestão –, que serviu de exemplo para
outras empresas e até mesmo para que o Estado empregasse essas formas de re-organização
do processo de trabalho na esfera pública. Antunes destaca que as transformações no mundo
objetivo do trabalho foram tão intensas que se fizeram sentir no “privado” e no subjetivo da
humanidade e, no que concerne a gênero, nas mulheres:
foram tão intensas as modificações que se sucederam no processo de trabalho e
de produção capitalistas, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-
trabalho presenciou a mais aguda crise deste século [XX], que atingiu não só
sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e, no
mínimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser (2002,
p.71).
5 Compreendemos que a mais-valia absoluta esteja relacionada com a extensão da duração da jornada de
trabalho mantendo o salário constante. Já a mais-valia relativa, consiste na ampliação da produtividade física do
trabalho pela via da organização do trabalho através, por exemplo, da mecanização, inserção de maquinária
moderna. “A produção da mais-valia absoluta gira apenas em torno da duração da jornada de trabalho; a
produção da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos técnicos do trabalho e os
agrupamentos sociais. Ela supõe, portanto um modo de produção especificamente capitalista, que com seus
métodos, meios e condições nasce e é formado naturalmente apenas sobre a base da subordinação formal do
trabalho ao capital. No lugar da formal surge a subordinação real do trabalho ao capital.” (MARX, 1984,
p.106 apud TUMOLO, 2003).
15
No âmbito das transformações neoliberais no Estado, alguns autores advogam a
expressão contra-reforma do Estado (ou ainda “ajustes estruturais”), para o conjunto de
transformações no âmbito das (des) regulamentações estatais sobre a economia, a política e os
serviços públicos, em voga no neoliberalismo, tendo em perspectiva um Estado regulador.
Para Behring e Boschetti, houve uma abrangente contra-reforma que articulava postulados
ideológicos de que ela seria inevitável e irreversível, justificando suas medidas como técnicas,
sem necessidade de debate, produzindo como conseqüência uma desresponsabilização pela
política social (2010, p.148-155) Assim, Rocha e Ferreira (2005, p.65) postulam que
A Reforma do Estado, junto com outras medidas, desregulamenta os mercados,
promove abertura comercial e financeira, privatiza o setor público de serviços,
flexibiliza o mercado de trabalho em busca da estabilização monetária e se
constitui em uma das principais estratégias no conjunto das políticas de ajuste
estrutural.
As autoras pontuam que as reformas do Estado são processos que se desenvolvem
mundialmente, atingindo especialmente os países pobres. Assinalam que, na América Latina,
“a maioria dos países têm passado por mudanças administrativas na estrutura do Estado,
implantadas com a supervisão ditatorial do Banco Mundial, nas quais as reformas no setor
saúde passaram a ganhar proeminência nos discursos mais recentes”. Na esfera das políticas
de saúde, tais reformas apontam na direção da transformação de “políticas universalistas e
redistributivas em políticas focalizadas, destinadas aos segmentos mais vulneráveis dentro
dos vulneráveis” (Idem, 2005, p.66).
Ainda que não seja o foco deste trabalho, compreende-se ser necessário mencionar
que algumas diretrizes relativas às políticas de saúde são propostas por organismos
internacionais, tais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, aos países
chamados “em desenvolvimento” e contam com a aquiescência dos governos locais. Diversos
autores6
pontuam que os empréstimos de tais instituições a países como o Brasil são
condicionados, sempre, à implementação de suas diretrizes para as áreas sociais, com
destaque para o setor da saúde. Rizzotto (2000), que realizou um estudo buscando identificar
6 BERLINGUER, 2007; RIZZOTTO, 2000; DA MATTA, 2005.
16
em que medida as diretrizes do Banco Mundial permeiam as políticas nacionais de saúde,
postula que
Segundo o Banco, a idéia de que o Estado deveria arcar sozinho com o ônus da
seguridade social estaria mudando, e exemplifica dizendo que “economias
emergentes como o Brasil não poderiam arcar, mesmo com uma versão
reduzida do sistema europeu, especialmente em face do rápido envelhecimento
da população. Para obter maior segurança a um custo menor, é preciso
encontrar soluções inovadoras, que envolvam as empresas, os sindicatos, as
famílias e os grupos comunitários” (Banco Mundial, 1997, p.6 apud
RIZZOTTO, 2000, p.193)
É nesta perspectiva de ofensiva neoliberal que se define que esta forma de atenção
básica de saúde, já reinterpretada no neoliberalismo, seria prioridade do governo, tanto no
Brasil como em outros países da região. Concomitantemente, os processos assistenciais mais
complexos, necessários à integralidade na atenção à saúde, são reduzidos no âmbito público e
consideravelmente transferidos para os setores privados (ROCHA e FERREIRA, 2005).
Rizzoto (2000) sinaliza para uma interligação entre as diretrizes propostas pelo
Banco Mundial aos países periféricos, em especial ao Brasil, destacando que
...não se pode negar que determinadas políticas do Ministério da Saúde se
aproximam das orientações do Banco Mundial, e seguem a lógica da proposta
de reforma do Estado brasileiro. Podemos recuperar como exemplo, dentre
outros, a criação de subsistemas de saúde dentro do Sistema Único de Saúde
(SUS); o incentivo por meio de diversas ações à ampliação da iniciativa
privada na prestação de serviços de saúde; a transferência de funções do
Ministério da Saúde para agências reguladoras e organizações não estatais; a
reestruturação da própria estrutura do Ministério da Saúde, ou ainda, a criação
de programas como o PACS - Programa dos Agentes Comunitários de Saúde e
o PSF – Programa Saúde da Família, dirigidos para as populações mais pobres
(RIZZOTO, 2000, p.216)
Em meio a esse contexto, marca-se no Brasil a inscrição e o reconhecimento da saúde
enquanto direito de todos, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, na qual, pela
primeira vez na história do país, designou-se ao Estado o dever de proporcionar a todas as
pessoas o acesso universal ao sistema de saúde que deveria, de acordo com a lei magna,
abranger os problemas de saúde em toda a sua complexidade e de maneira integral.
17
Deste modo, a partir dos anos 1990, a consolidação do Sistema Único de Saúde
(SUS), que tem como princípios a universalidade, a integralidade e a eqüidade, se dará de
forma muitas vezes contraditória, haja visto o complexo cenário político de abertura
democrática que se apresenta no momento de constituição do SUS, em fins da década de
1980. Concomitantemente ao surgimento do SUS, conviveu-se com a ofensiva neoliberal para
a implementação dos “ajustes estruturais”, o que imprimiu óbices à proposta do SUS.
Em nosso país, a ofensiva neoliberal teve início no final do governo José Sarney e,
posteriormente, foi aplicada pelos governos Fernando Collor de Mello e Itamar Franco (1990-
1994), aprofundando-se e consolidando-se com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Essa política promoveu, em linhas gerais, a privatização das empresas estatais e dos serviços
públicos, corte nos gastos sociais, demissão de trabalhadores dos serviços públicos,
transferência do patrimônio público para setores do capital privado, como, por exemplo, as
parcerias público-privada (PPP), a instituição de Organizações Sociais (OS) e Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) como gestoras de serviços públicos, a
privatização de setores estratégicos, o aprofundamento da mercantilização de políticas sociais,
acompanhada da implementação de políticas sociais compensatórias e focalizadas em
detrimento das políticas sociais de caráter universal, além da retirada de direitos sociais e
trabalhistas dos trabalhadores, inclusive os da saúde. De acordo com Algebaile,
Nas suas ações mais visíveis, de venda direta de empresas estatais, o programa
de privatizações, iniciado no governo Collor, mas principalmente realizado
pelo governo Fernando Henrique Cardoso, atingiu setores variados: telefonia,
energia elétrica, mineração e siderurgia, setor petroquímico e diferentes áreas
do setor de transportes, como rodovias, portos e ferrovias, além de instituições
financeiras (especialmente os bancos estaduais) (2005, p.88).
A esta forma direta de privatização, somam-se outras formas de repasse de atividades
estatais para o setor privado (terceirizando alguns serviços), sendo que a gradual implantação
do mercado de planos de saúde foi reforçada através da intensificação dos problemas de
qualidade e de acesso ao atendimento público, além da redução de leitos hospitalares do SUS.
Essa política induziu os usuários de maior poder aquisitivo a buscarem os planos privados de
assistência à saúde (ALGEBAILE, 2005).
18
Acompanhando um fenômeno mundial, a terceirização no Brasil foi largamente
implementada, sobretudo a partir da década de 1990. A terceirização consiste no repasse, para
terceiros, de algumas tarefas “meio” do processo de trabalho e ou de produção. Essa
modalidade de contratação tem sido consideravelmente adotada em atividades sob
responsabilidade estatal sob o argumento da redução de custos de manutenção.
Assim como no setor privado, a terceirização tem sido muito utilizada para a redução
dos custos de produção no setor público. Assistiu-se à contratação de cooperativas, empresas
e organizações não governamentais (ONG) para a realização de parte das atividades inerentes
a um direito, sob o argumento de que isso levaria a uma eficiência maior. Essa política
também tem sido implementada para reduzir os gastos estatais com o funcionalismo,
permitindo ao Estado o enxugamento do corpo de funcionários em determinados setores,
reduzindo, dessa forma, seus gastos com direitos trabalhistas, bem como com o investimento
direto na qualificação e no aperfeiçoamento profissional (ALGEBAILE, 2005). A autora
destaca ainda que, a essas medidas, somam-se outras que tornam mais intenso o processo de
redução da esfera pública estatal, sendo a política de focalização mais uma face desse
processo. Utilizando o argumento de que o Estado gasta muito e mal na área social,
produzindo serviços que beneficiariam principalmente segmentos populacionais “não
necessitados” (que podem comprar os serviços), uma série de medidas voltadas para a
focalização da ação estatal através de serviços considerados mais essenciais, e voltados para
segmentos sociais considerados mais necessitados, tem servido para desmontar,
gradualmente, a concepção universalista (de um amplo conjunto de serviços estatais para
todos) que vinha orientando a lenta e tardia montagem da política social brasileira. A noção
de direitos sociais, neste marco, é substituída por “critérios de elegibilidade”, através dos
quais o Estado passa a definir o público que será atendido e o tipo de serviço que será
oferecido (ALGEBAILE, 2005, p.90-91).
Como sinaliza Stotz (2005), observa-se que, também no Brasil, a reestruturação (na
forma de acumulação) do capitalismo acarretou o fechamento de milhares de postos de
trabalho, principalmente os formais, isto é, aqueles com carteira assinada, especialmente na
indústria. O autor aponta ainda que, até 1996, cerca de 35% dos postos existentes na indústria
foram eliminados, ou seja, 1,5 milhão de empregos. Por outro lado, os novos postos de
trabalho criados, sobretudo no comércio e nos serviços (com destaque para a participação da
19
força de trabalho de mulheres), oferecem remuneração pior do que os postos de trabalhos
perdidos, muitas vezes sem contratos de trabalho que garantam direitos trabalhistas aos
trabalhadores.
Neste cenário, Bruschini (2007) ao analisar o trabalho das mulheres nos últimos dez
anos no Brasil, sinaliza algumas tendências no aumento da inserção de mulheres no mercado
de trabalho. Dentre elas, destaca-se a má qualidade do emprego e o baixo percentual de
contratos de trabalho com carteira assinada, merecendo ênfase o fato de que 30% da força de
trabalho das mulheres é composta por empregadas domésticas, 75% das quais sem carteira
assinada, além da existência de trabalho não-remunerado doméstico e trabalho agrícola não
assalariado para consumo próprio e da família. A seguir faremos um breve resgate histórico
dos programas de atenção básica à saúde nos quais a ACS atua.
1.2.2. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
E O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF)
Estas transformações na reconfiguração da ação estatal nas políticas públicas e no
mundo do trabalho marcam, conforme apontam Lima e Cockell (2008), o surgimento de um
trabalhador “atípico” – ou “sui generis”, como aponta Nogueira (2000): as agentes
comunitários de saúde (ACS). Nesse contexto de flexibilização das relações de trabalho, esse
novo trabalhador ou trabalhadora foi inserido na prestação de serviços de saúde pública,
porém, não veio a possuir vínculo formal de funcionário público, tendo contratos
estabelecidos pelos distintos governos municipais por meio de contratos temporários de
trabalho, mediante a intermediação de “terceiros” para a contratação.
O trabalho de ACS iniciou-se nos anos 1980, apesar de costumar-se apontar sua criação
em 1991, a partir de um estudo piloto desenvolvido pelo Ministério da Saúde no estado da
Paraíba, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS),
com a proposta de reorganização da atenção básica em saúde por meio do
emprego do trabalho de ACS, profissionais encarregados de mediar e articular
o serviço de saúde com a comunidade onde vive e trabalha (LIMA &
COCKELL, 2008:482-488).
20
Lima e Cockell (2008) assinalam que deve ser considerado que o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS) foi baseado em experiências anteriores no trabalho de agente,
como o médico da família, de Niterói, os agentes pastorais da Igreja Católica e visitadoras
sanitárias do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP).
Segundo Souza (2002 apud BORNSTEIN & STOTZ, 2008, p.260), a criação do PACS
recuperou diversas e diferentes experiências no país, sendo que a experiência de agentes
comunitários do Ceará foi a que, “com pioneirismo e abrangência estadual”, mais contribuiu
para o desenho da execução do programa nacionalmente. Essa experiência, que se
desenvolveu a partir de 1987, é destacada, conforme apontado em publicação do Ministério da
Saúde (2002), como uma criação inicialmente com características de “frente de trabalho”
diante da conjuntura de seca, em que um grupo de pessoas, composto, sobretudo por
mulheres, passou a realizar ações básicas de saúde em 118 municípios do sertão do Ceará.
Entretanto, a história que remonta ao surgimento desse novo tipo de trabalho é
perpassada por distintas contradições entre as experiências anteriores e sua adequação a uma
política de saúde “saneada” para os gastos públicos: referindo-se às iniciativas de
organizações religiosas, sobretudo católicas, David (2001, p.62 apud BORNSTEIN, 2007)
destaca que a “formação e utilização de agentes comunitários de saúde como força de
trabalho em saúde”, apontava para uma
perspectiva transformadora das relações entre profissionais e classes populares.
Uma vez que o contexto inicial destes trabalhos era a ditadura militar instalada
no país e o envolvimento de setores do clero e de algumas ordens religiosas no
apoio às lutas e demandas populares contra este regime político. (Idem, p.1).
Após três anos do PACS, ocorreu a transição para o Programa Saúde da Família
(PSF), no qual as ACS também atuam desde 19947. Nesse ano o PSF foi concebido pelo
Ministério da Saúde com o objetivo de promover a reorganização da prática assistencial em
novas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para
a cura de doenças e no hospital. A atenção, como seu próprio nome expressa, está centrada na
7 O Ministério da Saúde, a partir de 1991 começa a implantar o Programa Nacional de Agentes Comunitários de
Saúde – PNAS, que em 1992 passa a se chamar Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS. Estes
programas estavam vinculados à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) até 1995 (BORNSTEIN & STOTZ,
2008).
21
família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e social, o que vem
possibilitando às equipes de PSF uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e da
necessidade de intervenções que vão além de práticas curativas8. Sobre o “aspecto físico e
social”, compreende-se: favelas ou mesmo grandes regiões pobres.
Em 1995, o PACS e o PSF foram transferidos para a Secretaria de Assistência à Saúde
(SAS). E, a partir de 1997, “o PACS e o PSF passam a ser prioridades do Plano de Metas do
Ministério da Saúde, sendo que em documento de sua Secretaria Executiva, o PACS é
considerado uma estratégia transitória para o PSF” (BORNSTEIN, 2007, p.09). Atuando no
PACS ou no PSF, a ACS tem como função promover ações de saúde, no marco de uma
atenção aos mais pobres entre os mais pobres, em que a precariedade das condições de vida
mesmo com decrescente taxas de desemprego se mantém.
Nos documentos oficiais, o PSF é formalmente apresentado como uma estratégia que
visa a mudança no modelo assistencial, a partir de uma substituição do modelo tradicional de
assistência à saúde, direcionado à cura de doenças e hospitalocêntrico, por outro modelo, no
qual as características centrais são: o enfoque na família a partir de seu ambiente físico e
social, como unidade de ação; a adscrição de clientela através da definição de território de
abrangência da equipe; estruturação de equipe multiprofissional; a ação preventiva em saúde;
a detecção de necessidades da população ao invés da ênfase na demanda espontânea; a
atuação intersetorial com vistas à promoção da saúde (BORNSTEIN, 2007, p.09)
O PACS e o PSF passaram a ser prioridades do Plano de Metas do Ministério da Saúde
a partir de 1997. Apesar de o PACS ser compreendido hoje em dia oficialmente como uma
estratégia transitória para o PSF, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-
RJ) mantém a referência a “sua meta de contribuir para a reorganização dos serviços de
saúde, integração das ações entre os diversos profissionais e para ligação efetiva entre a
comunidade e as unidades de Saúde” (SMS-RJ apud BORNSTEIN, 2007, p.3).
Após a segunda metade dos anos 1990, ocorreu uma acentuada expansão da cobertura
do PSF, acompanhada de mudanças no enfoque e nas formas de organização dos serviços e do
processo de trabalho, aumentando o componente ideológico e político da transformação de
8 BRASIL, 1998:01 apud MERHY e FRANCO, s/d.
22
modelo numa crescente visão do PSF como desafogador dos serviços de média e alta
complexidade, bem como um mercado de oportunidades de trabalho (STOTZ; DAVID;
WONG UN, 2005, p.59).
De acordo com Bornstein (2007), os documentos oficiais relativos ao PSF consideram-
no a principal estratégia que se volta à reorientação do modelo de atenção a partir da atenção
básica e, ao mesmo tempo, uma estratégia que pode imprimir nova dinâmica de organização
dos serviços e ações de saúde. Postula-se que o modelo procura agir sobre as necessidades em
saúde, atuando de modo preventivo, opondo-se à prática de somente esperar a demanda
espontânea. Ambos os programas (PACS e PSF) têm em comum, e como elemento inovador
no quadro funcional, a figura da ACS sobre o qual recaem expectativas de mediação,
aproximação e facilitação do trabalho de atenção básica em saúde. Porém, se de um lado, por
meio de sua inserção no serviço de saúde, é esperado que a ACS exerça um papel de controle
sobre a situação de saúde da população, por outro lado, a população almeja que a ACS agilize
e facilite seu acesso ao serviço de saúde, o que na maioria das vezes se dá de modo diferente
das expectativas da população atendida (BORNSTEIN, 2007, p. 2).
Em 1999, estes programas passaram para a Coordenação da Atenção Básica da
Secretaria de Políticas de Saúde (SPS) e, no mesmo ano, o governo federal define as
atribuições da ACS, no Decreto nº. 3.189/99, estabelecendo que cabe à ACS desenvolver
atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, por meio de ações educativas
individuais e coletivas, nos domicílios e na comunidade (BORNSTEIN & STOTZ, 2008).
Os princípios sob os quais deve atuar a unidade de Saúde da Família são apontados, no
documento do Ministério da Saúde (BRASIL, 1998): caráter substitutivo (substituição das
práticas convencionais de assistência por um novo processo de trabalho, centrado na
vigilância à saúde); integralidade e hierarquização (a unidade de Saúde da Família está
inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde); territorialização e
adscrição da clientela (trabalha com território de abrangência definido) e equipe
multiprofissional (a equipe de Saúde da Família deve ser composta minimamente por um
médico generalista ou médico de família, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de
quatro a seis ACS).
A problematização acerca do surgimento desses programas, agora tidas pelo governo
23
como Estratégias, uma vez que programas expressam um caráter temporal, traz muitas
contradições, pois, conforme foi apontado anteriormente, se constitui em uma política de
precarização das relações de trabalho e privilegiamento de ações focalizadas com menor custo
operacional para o Estado. Por outro lado, trata-se de experiências e concepções que podem,
possivelmente, vir a apontar para uma perspectiva de resistência e transformação do cenário
da saúde por esses novos atores sociais na saúde (BORNSTEIN, 2007).
O trabalho de ACS remonta há quase três décadas, entretanto, a profissão de ACS
somente foi criada pela Lei nº. 10.507 de 10 de julho de 2002. De acordo com o Art. 2º,
A profissão de Agente Comunitário de Saúde caracteriza-se pelo
exercício de atividade de prevenção de doenças e promoção de saúde,
mediante ações domiciliares ou comunitárias individuais ou coletivas,
desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob
supervisão do gestor local deste.
Segundo dados do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde (2008),
atuam hoje no Brasil 230.244 ACS, assistindo a um total de 113.688.944 de pessoas, sendo
5.477.211 habitantes do estado do Rio de Janeiro, onde atuam 9.922 ACS. Busca-se, a seguir,
tecer algumas considerações acerca do trabalho de ACS.
1.2.3. Entre ser e estar: trabalho de ACS
O trabalho enquanto elemento central de distinção entre o ser humano e os animais, é
constituinte deste e o difere do restante por sua capacidade de imprimir intencionalidade em
suas ações, agindo não apenas de modo instintivo, mas projetando idealmente uma finalidade
para determinada ação (ANTUNES, 1999, p. 136-137). No modo capitalista de produção,
entretanto, o trabalho humano torna-se uma mercadoria como qualquer outra, cujo preço é
determinado precisamente pelas mesmas leis que regem as demais mercadorias. O preço de
uma mercadoria é, em média, sempre igual aos custos de produção dessa mercadoria, logo, o
preço do trabalho é igual aos custos de produção de quem executará o trabalho, ou seja, o/a
trabalhador/a. Os custos de produção do trabalho consistem em tantos meios de existência
quantos os que são necessários para manter os trabalhadores em condições de continuar a
trabalhar, para sua sobrevivência (ANTUNES, 2005). No quesito “sobrevivência”, muitas
vezes o Estado é o agente que faz a intermediação através do oferecimento de alguns serviços
básicos, tais como a saúde. Já as mulheres historicamente desempenham um papel crucial no
24
tocante à sobrevivência, ou seja, à reprodução social, através do desempenho do trabalho
doméstico não-remunerado, que guarda muita semelhança com o trabalho em saúde, como
por exemplo a promoção da higiene, a educação e o cuidado com seus filhos, filhas, cônjuges,
idosos e outros.
Conforme foi apontado, o trabalho de ACS surgiu num contexto em que o Estado
reduz cada vez mais os gastos sociais, no qual, apesar do aumento do nível de emprego e da
redução da pobreza extrema, há continuidade das condições de vida precárias – expressas em
numerosos indicadores sociais como os de moradia, saúde, educação e, ainda, do baixo
aumento da renda embora tenha ocorrido incremento do consumo dos indivíduos e famílias.
Uma das principais características desse processo diz respeito ao que tem sido denominado de
precarização das relações de trabalho, mas também o desemprego, o subemprego, o emprego
precário, a ocupação temporária ou o trabalho informal. Diante desse cenário é que se propõe
analisar o trabalho desenvolvido pelas ACS numa arena social em que a pobreza é persistente
e onde sua própria condição de trabalho se dá de forma precária. Tal como apontado por Valla
(2005), relações de trabalho precárias são aquelas em que o trabalhador não possui direitos,
como aqueles regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou regime próprio do
funcionalismo público, tais como jornada fixa de 8 horas diárias ou até 44 horas semanais,
descanso semanal remunerado, férias anuais, 13º salário, vale transporte, licenças médica,
maternidade e paternidade, aposentadoria, entre outros.
Ainda que a existência de agentes de saúde remonte há mais de três décadas, o trabalho
da ACS, enquanto profissão reconhecida por lei, foi regularizada somente em 2002 (após mais
de vinte anos das primeiras experiências dos “agentes comunitários”), por meio da
regulamentação do exercício de sua atividade laboral pela Lei nº. 10.507/2002. Dentre suas
várias atribuições, pode-se mencionar algumas previstas na lei para posteriormente cotejá-las
com o trabalho cotidiano assalariado (e também o não assalariado) realizado pelas ACS:
a) desenvolver atividades de promoção da saúde, de prevenção das doenças e
de vigilância à saúde, através de visitas domiciliares e de ações educativas; b)
acompanhar, por meio de visita domiciliar, todas as famílias e indivíduos sob
sua responsabilidade (micro-região de até 750 pessoas), de acordo com as
necessidades definidas pela equipe; c) cumprimento da carga horária de 40
horas semanais; d) cadastramento das famílias e dos indivíduos; e) definição
precisa do território de atuação, mapeamento e reconhecimento da área adstrita,
25
que compreenda o segmento populacional determinado, com atualização
contínua, e f) diagnóstico, programação e implementação das atividades
segundo critérios de risco à saúde, priorizando solução dos problemas de saúde
mais freqüentes. (BRASIL, 2007).
Há muitas tensões que permeiam o trabalho de ACS. Conforme já mencionado
anteriormente, uma delas consiste no fato de que suas relações de trabalho não distam do
processo de reorganização do mundo do trabalho sob a hegemonia das políticas neoliberais,
uma vez que não são funcionários públicos, mas contratados por ONG, fundações, entre
outros. Além disso, o ACS é um dos principais agentes que implementam a Política Nacional
de Atenção Básica em nosso país, porém não integra o quadro do funcionalismo público (seja
municipal, estadual ou federal). Conforme pontuado por Stotz, David e Wong Un (2004),
diferentemente dos outros profissionais que integram as equipes (do PACS ou PSF), as ACS,
uma vez demitidas, não têm a possibilidade de se empregarem em outro município, em outros
bairros ou comunidades, posto que uma das condicionantes para que a ACS seja admitido é
ser morador da localidade. Essa última questão também é apontada por esses autores como
um elemento crítico no que diz respeito à influência política que pode ser exercida sobre a
ACS (seja dos gestores locais, das entidades empregadoras, dos secretários de saúde, ou
mesmo de forças políticas “dominantes” em determinada região).
Em estudo de revisão bibliográfica, Bornstein e Stotz apontam que as atribuições das
ACS fixadas na legislação referem-se, sobretudo, a atividades relacionadas aos programas
desenvolvidos pelas Unidades de Saúde e têm caráter biomédico e individual. Apesar das
ações coletivas e educativas também serem mencionadas, o Sistema de Informação da
Atenção Básica (SIAB) não solicita o detalhamento dessas, demonstrando, contudo, que o
programa é destinado às famílias, embora a exigência normativa seja do cadastramento
individual, seguindo a lógica de produtividade, tal como apontado por Merhy e Franco (s/d).
Diante disso, pode-se inferir que, para além das condições de trabalho particulares e precárias
desta trabalhadora da saúde na esfera pública, as exigências em relação à mensuração da
produtividade de seu trabalho se dão na base da mesma lógica aplicada em setores produtivos
e de toda ênfase da gestão do trabalho dada pelo neoliberalismo6.
O processo de trabalho em saúde tem como objetos não somente indivíduos portadores
de necessidades específicas de saúde, mas toda uma complexa organização social que se
26
reflete em suas condições de vida, as quais, por sua vez, incidem sobre as condições de saúde,
bem como prescrevem o trabalho e delimitam determinados instrumentos para sua execução
(no caso da ACS: o cadastramento dos atendimentos individuais no SIAB, a visita domiciliar,
a dimensão educativa do trabalhado prestado, entre outros).
Supondo-se condições materiais e culturais para que as famílias sejam capazes de se
apropriar das informações em saúde oferecidas pelas ACS para se prevenirem das doenças e
promoverem sua saúde, a perspectiva de promoção do auto-cuidado das populações é
perpassada por uma série de questões: baixo nível cultural e de educação formal das
populações atendidas; más condições de moradia e de vida (do saneamento à renda para poder
comprar alimentos); violência; desproteção social (no sentido de direitos) e outros. O trabalho
de ACS inevitavelmente esbarra em todas as questões relativas às péssimas condições de vida
dos indivíduos, das famílias e das populações, bem como na ausência de políticas públicas de
caráter abrangente: essa percepção transparece na visão crítica da profissional ACS sobre o
seu trabalho e a população atendida, conforme demonstrou-se no capítulo sobre o trabalho de
campo.
O trabalho de ACS tem características que levam a associá-lo com o trabalho doméstico
das mulheres, ou seja, a dimensão do cuidado e da educação. Desenvolvendo um trabalho de
educação em saúde, a ACS é responsável pelo acompanhamento de até 750 pessoas, ou 150
famílias, às quais deve oferecer um acompanhamento sistemático.
A conjugação de fatores e a problematização que se tratará com destaque, em função do
objeto e da proposta de abordagem conceitual deste projeto, consiste nos seguintes elementos:
a) os Programas (PACS e PSF) são voltados à família (e à comunidade), considerando-se o
papel destacado das mulheres no cuidado familiar, e b) o fato da maioria das ACS serem
mulheres, onde se ressaltam duas questões: a primeira, que profissões cuja característica
principal são o cuidar e ou educar historicamente são ocupadas por mulheres e, a segunda, o
duplo e, por vezes, o triplo trabalho que desenvolvem as mulheres.
Compreendendo o trabalho como categoria fundante do ser humano, bem como a
instrumentalização do trabalho que o ser humano desenvolve, buscou-se problematizar o
“saber” do trabalho de ACS enquanto uma conjugação de conhecimentos adquiridos sobre a
saúde, seja através de capacitação e ou empiricamente, e, particularmente, os conhecimentos
27
adquiridos através da socialização de gênero. Esse último remete à construção social do “ser
mulher” em nossa sociedade, o que será discutido no capítulo 3.
28
1.3. Objetivos
Geral
Considerando a dinâmica entre a esfera produtiva e reprodutiva, analisar as relações entre
trabalho comunitário em saúde e gênero tendo como objeto o trabalho das agentes
comunitárias de saúde na Área de Planejamento 3.1, do município do Rio de Janeiro.
Específicos
Identificar e analisar a dinâmica do processo de trabalho em saúde das ACS e sua relação
com a divisão sexual do trabalho;
Analisar o cotidiano e as especificidades do trabalho das ACS em suas dimensões de
gênero;
Identificar e analisar a percepção das trabalhadoras sobre as dimensões de gênero que
permeiam sua vida (no trabalho produtivo e reprodutivo).
29
Capítulo 2
2.1. A ABORDAGEM DE GÊNERO
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”
Simone de Beauvoir, 1949
“...a lei que escraviza a mulher e a priva da
instrução, os oprime também à vocês, homens
proletários”
Flora Tristán, 1842
Para analisar e compreender o (precário) trabalho da mulher na área da saúde, bem
como a percepção subjetiva das trabalhadoras sobre as representações de gênero, faz-se
necessária uma compreensão do trabalho produtivo e reprodutivo em suas múltiplas e
complexas dimensões e determinações, interligadas com a construção do papel da mulher na
sociedade capitalista. Para tal abordagem, considerou-se o “ser mulher” enquanto construção
sócio-história e a divisão sexual e social do trabalho como elementos organizadores da vida
social, o que exige analisar suas transformações e a forma como o capitalismo se apropria do
trabalho das mulheres.
Na área da saúde coletiva, diversos campos têm se debruçado sobre a questão de gênero,
particularmente a saúde reprodutiva – que trabalha de modo mais destacado questões sobre
sexualidade, reprodução e corpo – e a saúde do trabalhador – que desenvolve uma abordagem
sobre a inserção das mulheres no mercado de trabalho. A contribuição desses dois campos
para a saúde coletiva assume relevância porque trata-se de uma área interdisciplinar, que
incorpora e dialoga, em sua análise, com as contribuições das ciências humanas e sociais, o
que também as enriquece9. Em ambos os campos, se observa elaborações que buscam
9 Há uma grande produção de dissertações, teses e artigos nesses campos, em especial da Saúde Reprodutiva. Já
na Saúde do Trabalhador identifica-se um estudo voltado às profissões eminentemente femininas. Ambos,
também trazem contribuições teóricas e metodológicas à área da saúde. (BRITO, 2005).
30
contribuir para desconstruir uma concepção pautada unicamente numa visão biológica da
mulher. Ainda sobre esse ponto, destaca-se que, no campo da epidemiologia, muitas vezes o
gênero é empregado como descritor de sexo. Embora a visibilização das categorias de sexo
seja importante para revelar onde se localizam homens e mulheres nas questões de saúde, o
gênero não é redutível ao sexo, inclusive nas pesquisas. Compreende-se nesta pesquisa sexo
como marcador biológico e gênero as determinações sociais, históricas e individuais.
Neste trabalho, intenta-se compreender, a partir de uma abordagem de gênero, o
trabalho das mulheres na saúde, em específico o trabalho das ACS. Essas trabalhadoras são
atualmente agentes multiplicadoras de saberes e práticas de saúde, substantivamente
permeadas pelos saberes e valores apreendidos pelas mulheres através da socialização de
gênero – cultura, educação e valores sociais que reproduzem determinada “ideologia de
gênero” –, os quais busca-se compreender a partir da própria experiência das ACS.
2.1.1. INVADE A CENA UM “NOVO SUJEITO”: AS MULHERES NA EMERGÊNCIA DO GÊNERO
ENQUANTO CONCEITO
Como apontado anteriormente, o trabalho constitui uma dimensão fundamental da vida
dos seres humanos, portanto, é uma dimensão que sempre atravessa e é atravessada pelas
questões de saúde (BRITO, 2005). Porém, o modo como esses seres humanos vivenciam
(objetiva e subjetivamente) o “trabalhar” é permeado por diferenciações e contradições que
dependem de qual ser humano está se falando e como este se vê. Embora já houvesse, desde o
século XIX, elaborações acerca da problemática das mulheres10
, o gênero enquanto conceito
vai se constituir como tema de debate e construção no seio do movimento feminista a partir da
década de 1960. É também nessa década que se intensificam as elaborações na área da saúde
que vão questionar uma visão medicalizante e biologizante do corpo que expressa uma
postura unilateral do pensar e “fazer” saúde (MINAYO, 1992).
Rangel e Sorrentino (1994) destacam que as revoluções burguesas (Industrial e
Francesa) e o advento do capitalismo possibilitaram o desenvolvimento de uma consciência
coletiva sobre a situação de inferioridade social das mulheres, abrindo um caminho para uma
10 Ver Flora Tristan, 1993; Friedrich Engels, 1979; August Bebel, 1889. August Bebel escreve, em 1889, A
mulher e o socialismo, defendendo que “a tarefa histórica da classe operária está indissoluvelmente ligada à
tarefa de libertação da mulher” (RANGEL; SORRENTINO, 1994).
31
renascença nas ciências, na filosofia, na religião e nas artes, bem como criando também
condições para que se redesenhasse a participação, ou a história da participação, das mulheres
na sociedade. Resgatam o papel de Olympe de Gouges11
e Mary Wollstonecraft12
na
reivindicação dos direitos das mulheres no século XVIII. Também no século XIX, algumas
mulheres destacaram-se na reivindicação dos direitos das mulheres, tal como a franco-peruana
Flora Tristan, que denunciava a subordinação e aprisionamento das mulheres, em especial das
imigrantes, reivindicava o direito à educação e à organização dos trabalhadores e das
trabalhadoras e conclamava os operários a apoiarem a luta das mulheres: “Operários, tratem
de compreender bem isto: a lei que escraviza a mulher e a priva da instrução, os oprime
também à vocês, homens proletários” (TRISTAN, 1993 apud VIDAL & RECK, 2009, p. 47).
A interligação entre a opressão das mulheres e a exploração do proletariado marcou a
reflexão teórica e prática de diversas gerações de militantes da social-democracia européia,
bem como no desenrolar da revolução russa de 1917. Diversas experiências revolucionárias
para os padrões da época emergiram neste contexto, como as primeiras legislações da União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que inovaram ao garantir o direito ao voto, ao
aborto e várias outras reivindicações do movimento de mulheres que ainda não eram vigentes
em países mais desenvolvidos. O sufrágio universal tornou-se neste período a principal
bandeira internacional do movimento feminista.
O movimento feminista, após a onda sufragista que perdeu força na década de 1930,
voltou a se rearticular na década de 1960, conhecida como “segunda onda” do feminismo, no
mesmo período em que houve uma grande efervescência revolucionária nos países capitalistas
avançados. O conceito de gênero está, então, diretamente ligado à história do movimento
feminista, que, além das preocupações sociais e políticas, também se voltou para elaborações
teóricas. É a partir de então que será engendrado o conceito de gênero.
O ano de 1968 é considerado como um marco da rebeldia e da contestação, um período
de intensa manifestação coletiva da insatisfação e do protesto que já se expressavam de
11 Escreve a “Déclaration des droits de la femme et la citoyenne” ao calor da Revolução Francesa,
desmascarando a ausência das mulheres na “Declaração dos Direitos do Homem de 1789” (acusada de ser
girondina, foi morta na guilhotina em 1794), (RANGEL E SORRENTINO, 1994). 12
Escreve sua obra mais famosa em 1790 Defesa dos direitos da mulher, na qual critica o sexismo do filósofo
francês Rousseau, e afirma que as mulheres devem lutar pelo direito à educação como forma de superar a
opressão, denunciando a situação das mulheres na sociedade. (RANGEL E SORRENTINO, 1994).
32
formas latentes há algum tempo. Surgem, num primeiro momento, os estudos da mulher, em
que pesquisadoras, docentes e estudiosas aliavam o fazer intelectual à paixão política,
contestando a concepção da neutralidade da ciência, presente até nossos dias, assumindo que a
mulher não era somente objeto, mas também sujeito da ciência (LOURO, 1997).
Desenvolveu-se então um processo de elaboração teórica que buscava explicações para
as causas da opressão das mulheres, questionando a ciência institucionalizada como um dos
importantes sustentáculos da opressão feminina. Simões-Barbosa (2001) aponta que o
questionamento feminista sobre a opressão das mulheres colocou em cena novas questões, tais
como a dimensão política do corpo, da sexualidade e das relações íntimas, a relevância da
esfera doméstica para a produção e a reprodução social, entre outros aspectos da vida social
até então confinados à esfera privada e ou apresentados como naturais. Essas questões haviam
sido pouco desenvolvidas na história do marxismo, embora mereça registro os apontamentos
de Marx, particularmente no trabalho a Ideologia Alemã. O desenvolvimento da produção
teórica sobre as causas da opressão das mulheres possibilitou ainda um repensar crítico sobre
as relações natureza/cultura, corpo/mente, razão/emoção e teoria/práxis transformadoras,
contribuindo, dessa forma, para trazer a público o debate de questões até então excluídas ou
marginalizadas da política e da ciência.
A família, o casamento, a sexualidade e a vida privada foram expostas como espaços
onde se exercem relações de poder e de controle social. O ponto de observação socialmente
situado (standpoint) a partir de uma experiência de opressão, aproximava as mulheres de
outros setores sociais explorados e oprimidos, tais como os/as trabalhadores/as e ou os povos
pertencentes a (ou descendentes de) distintos grupos étnicos (SIMÕES-BARBOSA, 2001).
Tal “ponto de observação” rompeu a concepção binária e dicotômica da racionalidade
científica ocidental (proveniente do cartesianismo) rumo a um paradigma dialético e
relacional (SIMÕES-BARBOSA, 2001). Na década de 1970, os estudos sobre a família
passaram a ser subdividos em abordagens mais especificas. Surgiram nas universidades
departamentos e núcleos de estudos da chamada condição feminina. Do processo de
formulação do conceito de gênero, derivam distintas formas de concepção na construção de
gênero como categoria analítica, mas que se referem, em última instância, ao entendimento
das causas da opressão das mulheres e ou conhecimento de suas expressões.
33
Neste marco, a invisibilidade produzida através de múltiplos discursos e práticas que
caracterizavam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o universo da mulher “por
excelência”, que já vinha sendo questionada, foi rompida. Assume-se, então, com ousadia,
que as questões das mulheres eram “interessadas” e que, portanto, o estudo de tais questões
tinha (e têm) pretensões de mudanças (LOURO, 1997).
A partir dos estudos da mulher em múltiplos campos científicos, Giffin (1995) aponta
que revelou-se a importância do corpo na definição científico-social da mulher reprodutora.
Enquanto as investigações eram realizadas por homens, cabia à mulher a condição de objeto
do conhecimento, característico da ciência androcêntrica. A partir disso, percebe-se e busca-se
superar as dicotomias organizativas, no que se refere a gênero, entre sujeito/objeto,
mente/corpo, razão/emoção, cultura/natureza, entre outros, constituindo-se a mulher como
sujeito da ciência.
Scott (1995) pontua que o gênero é um termo proposto por aquelas que defendiam que a
pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada
disciplina, pois os estudos das mulheres acrescentariam não só novos temas, como também
iriam impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios dos trabalhos científicos.
Giffin (1995) ressalta que, para além dos fatores psíquicos que determinam os papéis
femininos como atribuições da “natureza” da mulher, reforçados pela cultura até então
vigente, qualquer prática que se desviasse das regras existentes do comportamento feminino
(esfera corporal e familiar) seriam vistas com deformações da natureza. Destaca também que
há uma discriminação sexual na esfera do trabalho, na estrutura social das profissões, valores
masculinos de dominação, hierarquização de profissões “masculinas” e correlata
desvalorização das “femininas”. Após uma década de estudos, o conceito de gênero vai
emergir como uma contundente rejeição ao destino biológico atribuído às mulheres pelo
discurso e prática sócio-científica dominante, que não somente se apoia como legitima a
sociedade pautada e construída por valores de opressão e exploração.
Enfatizando a construção social de feminino/masculino, e a dimensão de poder nas
relações entre homens e mulheres, o desenvolvimento do conceito de gênero acompanha,
historicamente, a simultânea recusa ideológica somente ao papel de reprodutora, confinada à
esfera familiar (GIFFIN, 1995).
34
Kergoat (1996), por sua vez, advoga o conceito de “relações sociais de sexo”. De
acordo com ela, a emergência de categorias de sexo como categorias sociais (empunhadas
pelo feminismo) permite demonstrar que papéis sociais de homens e mulheres não são
produtos de um destino biológico, mas construções sociais que têm uma base material e que
ganham significação a partir da experiência humana na cultura, portanto, também remetem ao
caráter relacional.
Scott (1995) traz algumas pertinentes indagações: como é que o gênero funciona nas
relações sociais humanas? Como é que o gênero dá um sentido à organização e à percepção
do conhecimento histórico? Afirma que as respostas vão depender exatamente do uso do
gênero como categoria de análise, o que, por sua vez, estará diretamente ligada com a
compreensão que se faz acerca das origens da opressão da mulher.
2.2 GÊNERO EM MOVIMENTAÇÃO: CONJUGANDO A OPRESSÃO E A EXPLORAÇÃO
A definição do conceito de gênero não é algo homogêneo, como ocorre na definição de
todos os conceitos, mas um conceito passível de distintas compreensões. Esse conceito
articulou dialeticamente, na sua origem, teoria e prática, sujeito e objeto de conhecimento,
tendo na sua teorização uma ferramenta para compreender, denunciar e ou transformar a
situação de opressão e exploração das mulheres (SIMÕES-BARBOSA, 2001).
Araújo (2000 apud SIMÕES-BARBOSA, 2001), aponta o gênero como “conceito
meio”, constituindo-se como uma forma de ampliar o olhar e entender a trajetória em
torno da qual a dominação masculina foi se estruturando, material e simbolicamente,
concomitante e articuladamente à constituição da sociedade de classes. Para desvelar as
bases fundantes do conceito de gênero que buscou-se empregar, se faz necessária uma
compreensão das origens das diferenciações sociais entre homens e mulheres.
Stolcke (1980) aponta que, no debate sobre as raízes da subordinação das mulheres, a
relação entre “condição feminina” e o “trabalho produtivo” aparece como tema central.
Diante dessas relações, também o casamento e a família, enquanto arranjos institucionais de
reprodução social em constante atualização, vão imprimir profundas conseqüências acerca do
papel da mulher no interior delas, e na sociedade como um todo. A seguir, a partir de um
resgate histórico, será feita uma exposição acerca da origem da família como lócus da
construção de gênero.
35
2.2.1 DIVISÃO SEXUAL E SOCIAL DO TRABALHO
Stolcke (1980) assinala que nem o casamento monogâmico, nem a família são
particulares ao capitalismo, nem tampouco se originam dele. De acordo com essa autora, as
instituições que estão nas raízes da subordinação das mulheres na sociedade de classes são os
arranjos vigentes de reprodução social: o casamento e a família. Em que pesem as diferenças
existentes no processo de concepção do conceito de gênero, Durham (1983) ao afirmar que o
reconhecimento de que a posição da mulher está condicionada por uma divisão sexual do
trabalho, que se institucionaliza e se reproduz no âmbito familiar, remete para a consideração
de que a compreensão da divisão sexual do trabalho, como base fundamental da opressão da
mulher, atualmente, tende a ser lugar-comum entre as elaborações que remontam ou retomam
os aspectos gerais, ou mesmo específicos, sobre as raízes da opressão da mulher. A família,
tal como é conhecida nos dias de hoje, é resultado de um longo processo histórico.
Segundo Engels, na medida em que os bens coletivos se converteram em propriedade
privada, o então “matriarcado”13
aos poucos foi cedendo lugar à supremacia do homem, a
partir da substituição da filiação feminina pela masculina e do direito hereditário matrilinear
pelo patrilinear. Segundo Engels, a família patriarcal nasceu com a propriedade privada e
modificou toda a estrutura da sociedade gentílica.
O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo
feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa;
a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do
homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da
mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda
mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada,
dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade,
mas de maneira alguma suprimida. (ENGELS, 1979, p.61)
Até a época dos antigos gregos e romanos, a humanidade se organizava de distintas
formas para a reprodução e produção de suas vidas, predominando as formas de relação
baseadas nos laços sanguíneos de linhagem materna. As mulheres, enaltecidas pela sua
possibilidade de gerar a vida e o mistério que isso guardava, ocupavam um lugar privilegiado
13 Preferimos o termo matrilinearidade, uma vez que a antropologia posterior à época de Engels veio a questionar
as teorias antropológicas em voga em sua época e que servem de subsídio a parte de seus argumentos, apontando
a falta de registros de sociedades matriarcais.
36
nas sociedades primitivas, uma das razões pela qual também aflora numerosas referências a
mitos de divindades femininas nesse período. Nessa época, a forma de se relacionar entre
homens e mulheres para a reprodução e para produzir os bens necessários para a subsistência
não era a mesma da sociedade atual. Todos os integrantes da comunidade deveriam trabalhar
para garantir a subsistência cotidiana. Entretanto, o aperfeiçoamento das técnicas de
agricultura e a domesticação dos animais, entre outras descobertas e desenvolvimentos
ensejados nesse período pré-histórico, deu lugar a um enorme avanço das forças produtivas
que permitiram que os seres humanos controlassem a produção de seu próprio sustento.
Emerge pela primeira vez a possibilidade de acumular um excedente com o que se produzia.
É nesse longínquo período histórico que se registra a origem da divisão da sociedade em
classes: os produtores, que faziam o trabalho necessário para sua subsistência, e o trabalho
excedente, com o qual se obtinha o produto para manter a existência de outra nova classe
ociosa, isto é, que se exime da obrigação de trabalhar para sua manutenção (ENGELS, 1979).
No decorrer da história, as classes trabalhadoras têm vivido em distintas condições,
segundo o desenvolvimento da sociedade (HUBERMAN, 1986). Na antiguidade existiam
trabalhadores escravos por diversas razões; na época medieval, eram servos dos senhores da
nobreza que possuíam as terras, enquanto nas cidades existiam artesãos que trabalhavam em
pequenas oficinas (HUBERMAN, 1986).
Com essa divisão social em classes, a sociedade mudou drasticamente, incluindo novas
relações entre os seres humanos para sua reprodução. Nessa nova sociedade, os que tinham
bens tiveram que assegurar-se da legitimidade de sua descendência, que logo seria a que
herdaria as propriedades (ENGELS, 1979). Nesse contexto a filiação adquiriu uma grande
importância, assim como a fidelidade da mulher a somente um homem. A linhagem
patrilinear se impôs e surgiu a forma familiar que, com muitas mudanças, ainda persiste na
sua essência nos dias de hoje.
As mulheres, consideradas somente em sua capacidade reprodutiva, se converteram em
um instrumento valioso para a reprodução da força de trabalho, sendo que sua sexualidade
somente interessará sempre e quanto se associe com a reprodução da espécie. Um exemplo
contemporâneo paradigmático dessa questão na área da saúde é o modelo assistencial
materno-infantil – que supostamente contemplaria a saúde da mulher como se esta somente
37
tivesse necessidades de saúde quando no período gravídico-puerperal14
. Engels (1979) aponta
que a monogamia, estreitamente vinculada com a questão da herança e do direito paterno, é
obrigatória para as mulheres, mas não para os homens.
No campo, além de garantir a herança, a família é uma unidade produtiva na qual seus
membros contribuem com o seu trabalho para a manutenção de todos. Por outro lado, com o
advento do capitalismo, a família das classes trabalhadoras se transformou em uma unidade
de assalariados para sua reprodução e para a manutenção dos assalariados, mas também para a
manutenção daqueles cuja força de trabalho não pode ser explorada pelo capital, como é o
caso dos filhos pequenos, idosos, doentes ou portadores de deficiências. É necessário o salário
de todos os membros capazes de vender sua força de trabalho. As mulheres, e inclusive as
meninas e os meninos, foram incorporadas substantivamente à produção fora de seus lares. O
capitalismo incorporou sua força de trabalho às fábricas, oficinas e empresas, mas não a
eximiu das tarefas domésticas, porque nesse trabalho não-remunerado radicava em grande
parte o sustento da família proletária, cada vez mais empobrecida para adquirir aquelas
próprias mercadorias e serviços que produzia em troca de um salário (STOLCKE, 1980).
Podemos considerar, até os dias de hoje, que a família é uma instituição cheia de
contradições, pois se constitui por laços afetivos, mas também econômicos e, sempre, esses
últimos são um fator que interfere nos primeiros, de distintas formas, tanto nas famílias
burguesas como nas trabalhadoras. A família também é considerada como um ninho de amor
e um espaço privado onde se busca amparo frente às outras instituições e relações sociais que
ordenam nossa vida (trabalho assalariado, por exemplo). Porém, ao mesmo tempo, é também
na família onde se exercita o poder, seja entre os cônjuges, seja dos pais em relação a seus
filhos.
É através de uma análise da ideologia burguesa que podemos compreender
como o casamento, a família e a herança servem, na classe operária, tanto para
reproduzir operários como para manter os já existentes, e, na classe
proprietária, para produzir herdeiros legítimos do patrimônio e dos privilégios
de classe. (STOLCKE, 1980, p.92).
14 “O fato de a mulher ser vista, na medicina moderna, essencialmente como mãe (...) orientou quase toda a
produção científica para os aspectos reprodutivos da saúde, privilegiando-se aqueles relativos à saúde do feto”
(AQUINO et al, 1995).
38
A dicotomia entre esfera privada (feminina) e esfera pública (masculina) também é
marcada pela divisão de papéis femininos e masculinos na cultura, expressos, por exemplo, no
fato de que homens fazem guerra e política e as mulheres, quando o fazem, é de modo
secundário. Por outro lado, o cuidado com as crianças e sua socialização inicial é sempre de
competência das mulheres, intervindo os homens de modo auxiliar ou complementar
(DURHAM, 1983).
Uma das consignas do movimento feminista da segunda onda, foi exatamente que “o
pessoal é político” (SIMÕES-BARBOSA, 2001; D’ATRI, 2008). Declarando e negando, não
somente essa dicotomia imposta, como a reclusão e opressão da mulher no âmbito doméstico
e fora dele. Acrescenta-se a isso que o papel das mulheres como educadoras de seus filhos e
filhas não dista de toda a estrutura simbólica e concreta que organiza a sociedade. Ademais,
essa educação também é permeada por aspectos políticos e ideológicos que não são alheios à
esfera “pública”, ao contrário, é uma maneira de reproduzir os aspectos simbólicos,
ideologias, moral e valores, que, na maioria das vezes, correspondem a um conteúdo
funcional e legitimador para a perpetuação da divisão sexual e social do trabalho, portanto,
para a manutenção da sociedade de classes.
Toda forma de organização social baseada na exploração e opressão requer mecanismos
que a mantenha. Nesse sentido, também é necessário que as mulheres aceitem a maternidade
como missão primordial, seu confinamento doméstico e sua dependência e dominação pelos
homens. É nesse marco que a ideologia vem reforçar a maternidade como a fonte de
gratificação das mulheres, enquanto sua função natural e correlata “vocação” natural para
criação dos filhos. Sendo o nascimento e a criação dos filhos uma vocação natural das
mulheres, essas não necessitam de quaisquer habilidades especiais. O cuidado com os filhos
não seria, então, um trabalho, e dessa forma, não digno de compensação para além do “prazer
de satisfazer os instintos mais íntimos de procriar e ver sua prole prosperar”. Em
comparação ao trabalho dos homens, que requer inteligência, esforço e perseverança, o
trabalho doméstico das mulheres não é somente inferior, mas também invisível (STOLCKE,
1980, p.102).
Stolcke (1980) assinala que, ainda que de um ponto de vista geral, as instituições do
matrimônio e da família possam parecer idênticas para as distintas classes sociais, na
realidade tem um significado social diferente. Uma mesma ideologia atravessa a sociedade,
no entanto, interage dialeticamente com outras determinações concretas, alterando-a,
39
apoiando-a e a reforçando de distintas maneiras e tendo distintas repercussões sociais. Isso
porque, no sistema capitalista, entre a família burguesa e a família operária existe uma
relação, tal como poderíamos compreender a relação existente entre capital e trabalho. Para as
classes possuidoras, casar-se com uma mulher que pertença a mesma classe e manter o
controle sobre a sexualidade das mulheres, são condições inerentes da instituição matrimonial,
pois
se a função primária das mulheres na vida é produzir herdeiros legítimos, isso
requer um controle efetivo sobre sua sexualidade. Esse controle pode ser
alcançado confinando-as (tanto quanto possível) a uma esfera exclusivamente
feminina, da qual todos os homens, com exceção dos de sua família, estejam
excluídos, isto é, ao lar, que é também a esfera na qual as atividades
relacionadas com a maternidade são desenvolvidas. (STOLCKE, 1980, p.102)
Por esta concomitante e estreita ligação do surgimento da família e das classes sociais,
onde se localizam a divisão sexual e social do trabalho, deve-se considerar esses dois
elementos em sua condição de indissociabilidade. Haja visto que, ao compreender suas raízes,
apreende-se que a perspectiva de superação da opressão da mulher está intrinsecamente ligada
à abolição da propriedade privada. Ainda que seja reconhecido que a opressão patriarcal sobre
as mulheres atinja a todas as classes sociais, a mulher burguesa pode se eximir de ser
explorada (D’ATRI, 2008; TOLEDO, 2005). Conforme assinala Stolcke, na sociedade de
classes,
... a divisão sexual do trabalho – a “domesticação” das mulheres – é, em última
instância, produto do controle dos homens sobre a sexualidade e a capacidade
reprodutiva das mulheres a fim de assegurar a perpetuação do acesso
desigual aos meios de produção (1980, p.89, grifo nosso).
Depreende-se deste histórico do papel da mulher na família e na sociedade que o objeto
deste projeto de estudo, portanto, insere-se duplamente no âmbito da reprodução social – que
perpassa tanto esferas “privadas” quanto “públicas” – por tratar do trabalho não-remunerado
realizado pelas mulheres (trabalho doméstico), conjugado com o trabalho assalariado e (mal)
remunerado das ACS. Ou seja, o trabalho de ACS se circunscreve no âmbito da reprodução
social (saúde), da manutenção “com vida” dos indivíduos e da mão-de-obra (seja empregada
ou desempregada), sujeitos esses que são força-motora e uma mercadoria para o sistema
capitalista.
40
Também se faz importante para a compreensão do trabalho da mulher identificar sob
quais novas formas a ideologia construída em torno do papel da mulher na família reproduz a
submissão da mulher, de modo a perpetuar pacificamente a reprodução social como encargo
exclusivamente das mulheres. Por outro lado, importa compreender como isso se expressa no
agir profissional das ACS, sobretudo se tratando de programas de saúde (PSF e PACS) que
têm como foco a família, fazendo recair ainda mais o trabalho não-remunerado sobre os
corpos e mentes das mulheres.
2.3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO DAS ACS A PARTIR DE UM OLHAR DE
GÊNERO
Aquino e demais autoras (1995), ressaltam que, desde muito cedo, as mulheres são
socializadas para o seu papel na reprodução social, e que esse processo de qualificação será
substantivamente útil para o capital. As autoras, baseadas em Kergoat (1990), apontam ainda
que a “docilidade, a paciência, a resistência para o trabalho monótono e repetitivo são
qualidades pretensamente naturais das mulheres, que resultam, na verdade, desse longo
processo de qualificação para o trabalho” (AQUINO et al, 1995).
Esta qualificação, supostamente vocação natural das mulheres, por constituir-se
como algo “inerente” às mulheres, são atributos com menor valor no mercado de trabalho,
sendo essa uma das razões pelas quais o salário pago às mulheres ainda seja, em pleno século
XXI, inferior ao dos homens para realizar o mesmo trabalho, apesar dos discursos
celebratórios de que as mulheres estejam conquistando o poder. Existem profissões que
constituem verdadeiros guetos da força de trabalho das mulheres, como é o caso do trabalho
em saúde, que tal como destaca Aquino e outras autoras:
...tem forte conteúdo relacional, no cuidado de outras pessoas, em situações de
dor e de sofrimento, envolvendo especificidades que se ajustam perfeitamente
bem às qualidades de destreza, paciência, interesse em ser útil e dedicação,
características ‘tipicamente femininas’ em nossa e em outras sociedades.
(AQUINO et al, 1995).
Para ilustrar a dimensão do que seriam esses “guetos” de força de trabalho de
mulheres, Fonseca (1996, p.63) sinaliza que, no Brasil, “entre as enfermeiras universitárias,
94% são mulheres; entre as técnicas de enfermagem, 89,5%; 91,5% entre as auxiliares e
88,5% entre as atendentes”. Há ainda recentes estudos que versam de alguma forma sobre a
41
saúde das mulheres em ocupações cujo perfil geral de trabalhadores é predominantemente de
mulheres, tal como o estudo de Nogueira (2006) sobre as tele-operadoras, o estudo de Brito
(2000) sobre as professoras, entre outros. O que se pretende demonstrar brevemente, é que as
ocupações e profissões que trazem marcas ou características do trabalho doméstico realizado
pelas mulheres permanecem, e se intensificam no neoliberalismo, em condição de
precariedade. É o que nos leva a indagar “a precarização tem rosto de mulher?”, em que pese
os homens também estarem submetidos à precarização. A condição de trabalho a que estão
submetidas as ACS também traz essa marca de precariedade: a remuneração está em torno de
um salário mínimo, os contratos são precários – através de ONG, fundações ou organizações
sociais (OS) – e a característica era a instabilidade até 201015
.
Aquino e outras autoras (1995), com base em estudos realizados em diversos países,
apontam que a
influência do papel da mulher na reprodução social é tão grande que a própria
escolha e a manutenção do emprego, da extensão das jornadas e dos turnos de
trabalho profissional incluem entre os critérios a possibilidade de conciliação
com o cuidado da casa e dos filhos (p.283).
Estes estudos revelaram que a proximidade entre a casa e o local de trabalho é um dos
critérios fundamentais de escolha de emprego, mesmo em detrimento de outros fatores como
o salário e a satisfação profissional (AQUINO et al, 1995). Estar próxima dos filhos é uma
das principais justificativas para manterem esse trabalho. A fala de uma ACS em um grupo
focal realizado em 2009, a partir de Projeto de Pesquisa Interdisciplinar, ilustra fortemente a
permanência de tais critérios para a escolha do emprego, sobretudo nesse caso, quando ser
morador da localidade faz parte não somente da escolha de quem procura o trabalho, mas uma
determinação contida na própria concepção do PSF e PACS: “a vantagem de ser ACS é
trabalhar perto de casa e, dessa forma, poder cuidar da casa e dos filhos ao longo da
jornada diária de trabalho” [fala de ACS] (DAVID et al, 2009).
Aquino (1995) aponta que a mesma divisão sexual do trabalho que mantém as mulheres
concentradas ainda hoje em poucas ocupações, consideradas tipicamente femininas, faz com
15 Com a aprovação da Emenda Constitucional nº 63, de 4 de fevereiro de 2010, em alguns municípios essas/es
trabalhadoras/es já são funcionários/as públicos. Ver mais em: http://www.conacs.com.br.
42
que sejam exclusivamente das mulheres as atribuições de cuidado da casa e dos filhos. Como
a frase da ACS acima demonstra, a sobrecarga do trabalho das mulheres é tida como
vantajosa por elas, apontando para o fato de que a ideologia propagada – as mulheres como
mães por excelência – ecoa de maneira expressiva. Além disso, toda uma ineficiente infra-
estrutura de serviços públicos, tais como a carência de creches, contribui para reforçar ainda
mais a necessidade das mulheres carregarem sob suas costas o peso do trabalho doméstico e o
cuidado com os filhos, conjugados com o trabalho assalariado.
No neoliberalismo, com a redução dos gastos do Estado em saúde (como nas demais
políticas sociais), torna-se útil a contratação de mulheres a baixo custo para exercerem um
trabalho de educação em saúde, por meio de ações preventivas, de promoção à saúde, entre
outras, para que as próprias famílias sejam capazes de produzir e administrar o auto-cuidado,
cujo custo recairá, mais uma vez, sobre as mulheres. Rocha e Ferreira (2005, p.67), apontam
para este aspecto contraditório de o PSF ter como foco a família, pois tem “um impacto
singular sobre as mulheres, historicamente responsabilizadas pelo cuidado com a saúde da
família”. Não se quer, com essas afirmações, negar a importância que têm o PSF e PACS,
bem como o papel que desempenham as ACS nas comunidades, pois a atenção primária à
saúde e a função da educação em saúde decerto trazem contribuições à saúde das populações.
Objetiva-se somente demonstrar a pertinência e relevância de um olhar crítico de gênero sobre
o trabalho de ACS, o que, através da pesquisa proposta, se buscará aprofundar.
43
Capítulo 3
3.1 DISCUSSÃO METODOLÓGICA
Por se tratar de uma pesquisa em que buscou-se conhecer e apreender o trabalho de
ACS a partir da própria percepção, assim como de suas percepções sobre a situação das
mulheres e as experiências dessas trabalhadoras, elegeu-se a metodologia qualitativa.
Compreende-se que essa metodologia é apropriada para estudos que se propõem a debruçar
sobre a dimensão subjetiva.
Parte-se do pressuposto de que a saúde coletiva é um campo interdisciplinar marcado
pela contribuição teórica e metodológica das ciências sociais. Um dos principais pontos de
partida para o desenvolvimento das ciências sociais no campo da saúde remete à crítica à
dicotomia biológico versus social construída pelas vertentes de cunho positivista16
. Tais
vertentes colocam a saúde inscrita unicamente no marco do biológico e ou das ciências
naturais, levando, dessa forma, ao desconhecimento da medicina enquanto produção social,
bem como das determinações sociais do processo saúde-doença (MINAYO, 1992). Nessa
mesma linha de pensamento, o “modelo biomédico”, conforme postula Simões-Barbosa,
define e trata a doença
... enquanto um transtorno funcional, orgânico e individual, cabendo ao médico
restaurar nos indivíduos sua “normalidade” funcional, produtiva e reprodutiva.
Em decorrência, a prática médica, ideologicamente, homogeniza os indivíduos,
suprimindo suas condições sociais, de sexo/gênero, de cultura e de raça (2001,
p.96).
A principal contribuição deste debate interdisciplinar na saúde foi, fundamentalmente, a
quebra do paradigma hegemônico na área da saúde, cristalizado no modelo biomédico de
cunho positivista. Ao tratar a saúde como resultado de um conjunto de fatores em que o social
também exerce influência sobre o processo de saúde-doença das populações, possibilitou-se
uma abordagem mais complexa do campo. Nunes (2006) sinaliza para “...a percepção da
16 O principal expoente do positivismo nas ciências sociais é Durkheim, que postula que “o escopo da sociologia
é estudar fatos que obedeçam as leis invariáveis, de forma objetiva e neutra, em que as ‘pré-noções’ e os ‘pré-
juízos’ provenientes da ideologia e visão de mundo do sociólogo tem que ser combatidos e eliminados através
das regras do método cientifico” (apud MINAYO, 1992:43).
44
teoria unicausal como incapaz de explicar as complexas relações entre condições de vida da
população e suas doenças ...”.
É a partir do questionamento do positivismo que se quebram alguns paradigmas no
campo da saúde e onde se insere o campo de estudos de gênero. Esse último, emerge
plasmado nas lutas do movimento feminista, em contraposição à “objetividade” e
“neutralidade” nas investigações científicas e, também, ao papel normativo e controlador do
modelo biomédico no tocante às mulheres e seus corpos. Nesse sentido, o feminismo,
questionando de forma contundente a ciência positivista, aponta para a construção de
paradigmas transformadores. Rompe com a separação e o distanciamento entre sujeito/objeto
do conhecimento, propondo a construção de paradigmas transformadores da ciência e da
própria realidade, pretendendo conhecer a realidade (objetiva e subjetiva) para transformá-la
(SIMÕES-BARBOSA, 2001).
Em face do exposto anteriormente, será abordada, a seguir, a relevância da metodologia
qualitativa, sobretudo quando se procura a apreensão das representações subjetivas dos
sujeitos.
3.1.1 METODOLOGIA QUALITATIVA
A questão da metodologia aplicada à investigação científica diz respeito aos
fundamentos sobre os quais o pesquisador se apoia para conhecer determinado objeto (que,
neste caso, afirma-se que é também um sujeito do conhecimento), bem como uma avaliação
sobre quais ferramentas/instrumentos serão eleitos para melhor aproximação/compreensão de
determinado objeto. A escolha metodológica deve refletir a natureza do objeto de
investigação. Neste projeto, propõe-se compreender as dimensões de gênero que perpassam o
trabalho de ACS através da percepção e experiência das trabalhadoras ACS. Desse modo, a
escolha da abordagem qualitativa é crucial quando objetiva-se a compreensão de dados
concernentes à esfera da subjetividade, das representações simbólicas e das relações sociais
que perpassam o cotidiano.
A metodologia qualitativa, segundo Minayo (1992) é importante para:
a) compreender os valores culturais e as representações de determinado grupo
sobre temas específicos; b) compreender as relações que se dão entre atores
sociais tanto no âmbito das instituições como dos movimentos sociais; c)
45
avaliar as políticas públicas e sociais tanto do ponto de vista de sua formulação,
aplicação técnica, como dos usuários a quem se destina.” (p. 134).
Com efeito, a abordagem qualitativa melhor se enquadra frente aos objetivos propostos
nesta pesquisa, tendo em vista que ela “parte do fundamento de que há uma relação dinâmica
entre indivíduo e sociedade, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto de estudo,
um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”. Amplia-se,
através desse olhar, “as possibilidades de interpretação e compreensão do cotidiano e
disponibiliza meios para apreender a complexidade humana.” (TOMAZ-MOREIRA et al,
2007).
Minayo (1992) postula que, na pesquisa qualitativa, há envolvimento do observador
com o observado em que esse envolvimento, ao invés de ser tido “como uma falha ou um
risco comprometedor da objetividade, é pensado como condição de aprofundamento de uma
relação intersubjetiva”. A autora aponta ainda que a pesquisa qualitativa demanda como
atitudes fundamentais a abertura, a flexibilidade, a capacidade de observação e de interação
com o grupo de pesquisadores e com os atores sociais envolvidos.
A pesquisa qualitativa permite uma importante aproximação de intimidade entre sujeito
e objeto, observador e observado, visto que os dois possuem a mesma natureza: “ela se
envolve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores, a partir dos quais as
ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas” (MINAYO & SANCHES, 1993).
Concebe-se que uma investigação não é neutra e tampouco distanciada do objeto, mas
permeada e influenciada pelo ambiente social, econômico, político e cultural do qual faz parte
o observador, assim como o objeto que é observado (BERMAN, 1997). Dessa forma,
conforme aponta Giffin (2006), compreende-se que os indivíduos e a realidade social são
mutuamente construídos, em que os sujeitos são historicamente construídos e construtores
na/da realidade social, seja na ciência, seja na vida cotidiana.
Minayo destaca que metodologias qualitativas são aquelas capazes de incorporar a
questão do significado e da intencionalidade como inerente aos atos, às relações e às
estruturas sociais, objetivando-se “...trabalhar com a percepção do vivido, com os
significados das motivações, atitudes e valores.” (1992, p.133).
46
Elegeu-se enquanto técnica para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada. A
entrevista semi-estruturada foi escolhida por permitir uma captação mais aprofundada sobre a
percepção e a compreensão das ACS acerca da dimensão de gênero relacionada ao seu
trabalho como ACS, permitindo que as entrevistadas expressem-se de modo livre, porém
seguindo um eixo norteador baseado em um roteiro semi-estruturado (Anexo 2). Buscando
compreender e contextualizar os sujeitos da pesquisa, o primeiro eixo explorado nas
entrevistas foi a trajetória de vida. A fim de compreender as condições e a percepção das ACS
sobre sua condição de vida e trabalho, explorou-se os eixos sobre o trabalho assalariado como
ACS, a percepção e condição de saúde e, ainda, aspectos relativos à esfera privada, sobre a
família e o trabalho doméstico (não remunerado) que realizam as trabalhadoras.
Para a análise de dados foi realizada uma leitura exaustiva das entrevistas, permitindo a
apreensão das ideias centrais e de relevância sobre o tema pesquisado, considerando os quatro
eixos abordados nas entrevistas, reagrupando-se as categorias posteriormente. Essa leitura
exaustiva permitiu à pesquisadora organizar os dados em categorias que foram estabelecidas a
partir da leitura, buscando estabelecer relações dialéticas entre as categorias empíricas e as
categorias analíticas teoricamente estabelecidas, num contínuo processo de
construção/desconstrução/reconstrução do olhar sobre os dados coletados (MINAYO, 1992).
Tendo por objeto central o trabalho das agentes comunitárias de saúde, a análise e a
interpretação se deu a partir da perspectiva de gênero e da dialética da produção-reprodução,
abordado no capítulo conceitual.
Esta dissertação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IESC/UFRJ, sob o
parecer nº139/2010, processo nº05/2010, e está de acordo com a Resolução CNS nº. 196, de
10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, que aprova diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
47
Capítulo 4
4.1 Os resultados da pesquisa
Neste capítulo serão apresentados os resultados a partir da descrição da entrada
em campo e o contexto no qual foram realizadas as entrevistas. Na sequência, a exposição é
composta por quatro grandes blocos, a partir dos quatro eixos utilizados no roteiro da
entrevista, a saber: 1) perfil, contextos familiares e breve história de vida; 2) trabalho
assalariado: profissão ACS; 3) trabalho e saúde e 4) o contexto familiar atual e trabalho não-
remunerado.
Por razões de segurança das entrevistadas, não se discorrerá sobre as unidades de
saúde específicas nas quais se inserem, limitando-se a realizar uma breve caracterização geral
da constituição do PACS e PSF no Complexo da Maré, que conta com 63 unidades de PSF
com 220 equipes e 33 equipes do PACS17
.
Como explicitado anteriormente, as agentes comunitárias de saúde são, em sua
grande maioria, mulheres. Apontou-se ainda que determinadas profissões de saúde tem
historicamente uma marca feminina em sua composição e, também, trazem uma marca da
precariedade em sua inserção no mercado de trabalho. Como foi previamente discutido, esses
dois aspectos guardam intensa relação. Essa “marca feminina” na profissão pode ser atribuída
ao papel da mulher na sociedade, que articula saberes e sentimentos, bem como “deveres”
femininos – o cuidar, ensinar, organizar e ajudar –, essenciais à construção dessa profissão no
contexto em questão.
O trabalho precário de promoção da saúde em um território pobre, onde as próprias
trabalhadoras vivem em condições iguais ou semelhantes à população, tem contribuído para
um alargamento da sua compreensão sobre o que é saúde, uma vez que sua própria
experiência profissional se desenvolve junto a relações sociais e de amizade.
17 DIAS, Márcia Mochel.
http://www.cebes.org.br/anexos/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_palestra%20de%20M%C3%A1rcia%20Mochel
%20Dias.pdf.
48
A abordagem de gênero proposta como fio condutor desta pesquisa permite a
compreensão de velhas questões que ganham novas formas, bem como desvelam as
contradições de alguns avanços da luta das mulheres no século XXI, em que antigos valores
atualizaram-se ganhando formas novas, dentre as quais aponta-se a feminização do trabalho e
a feminização da pobreza, como umas das consequências do período denominado
neoliberalismo.
4.2 O Campo da pesquisa
As trabalhadoras convidadas a participar da pesquisa são ACS do PSF que atuam na
cidade do Rio de Janeiro, no Complexo da Maré, que se localiza na Área de Planejamento (ou
Área Programática – AP) 3.1, na Zona Norte, que compreende 28 bairros e uma população
total estimada para o ano de 2006 de cerca de 895.000 habitantes (SMSDC/PCRJ, 2009).
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil, a AP 3.1 possui 49 equipes do PSF
distribuídas pelos diversos bairros da região. Além de mais 5 PACS, sendo que todas equipes
do PACS da AP 3.1 estão localizadas no Complexo da Maré: PACS Elis Regina, Operário
Vicente Mariano, Samora Machel, Nova Holanda e Hélio Schimidt.
A pesquisa desenvolveu-se no Complexo da Maré, localizado entre a Avenida Brasil e a
Linha Vermelha, à margem da Baía de Guanabara. A população total desse Complexo,
segundo o Censo Maré 2000 realizado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
(CEASM)18
, era, há dez anos atrás, de 132.176 habitantes, abrigados em 38.273 domicílios e
distribuídos em 16 comunidades19
. Para que se possa tentar dimensionar, ou estimar, a
população atual do Complexo, é possível que essa região tenha recebido centenas (ou
milhares) de novos residentes, pois se comparar-se o crescimento observado em 9 anos, de
1991 a 2000, a população residente no Complexo da Maré aumentou de 62.458 (1991) para
132.176 (Censo Maré, 2000 apud BORNSTEIN, 2007), ou seja, um crescimento populacional
que representa mais de 50%. Considera-se esse Complexo como um dos mais populosos do
18 Os dados referidos sobre o “Censo Maré: Quem somos?” foram extraídos de BORNSTEIN (2007) e do site da
Redes de Desenvolvimento da Maré (REDES), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Sítio: http://www.redesdamare.org.br (acesso em 02/12/2009). O Censo Maré 2010/2011 ainda se encontrava em
processo de coleta de dados no início de 2011. 19
São elas: Marcílio Dias, Praia de Ramos, Roquete Pinto, Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda, Parque
Maré, Nova Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau, Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiros, Vila dos
Pinheiros, Novo Pinheiros, Vila do João e Conjunto Esperança.
49
Rio de Janeiro e, desse modo, constitui-se em local de grande concentração de população de
baixa renda (BORNSTEIN, 2007).
4. 3 Entrada em campo
As entrevistas foram realizadas nas próprias comunidades em que trabalham e vivem
as agentes comunitárias de saúde. Buscou-se a adequação ao que fosse melhor para cada
entrevistada (horário, dia e local de preferência), realizando as entrevistas em diversos locais,
seja nas próprias casas das entrevistadas, seja em associações ou em salas de alguns
equipamentos sociais das comunidades20
, procurando propiciar sempre um ambiente em que
se sentissem à vontade.
As entrevistadas foram selecionadas a partir de um grupo focal realizado pela
orientadora desta dissertação, no qual foram convidadas a deixarem seus contatos telefônicos
para posterior participação na pesquisa, mediante entrevista individual. Algumas dessas
mulheres foram excluídas por não trabalharem/residirem no Complexo da Maré, outras não
conseguiu-se contatar. Após contato telefônico foram realizadas duas entrevistas a partir dessa
lista obtida no grupo focal e, posteriormente, utilizada a estratégia “bola de neve”, na qual as
entrevistadas indicavam outras colegas de trabalho para participarem das entrevistas
individuais.
O ambiente das entrevistas foi construído de forma a propiciar uma relação de
confiança e respeito, iniciando-se a partir da leitura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, além de ter sido propiciado informações extras e detalhadas sobre o direito ao
sigilo e os objetivos da pesquisa, sendo consolidado um compromisso por parte da
pesquisadora de contatá-las quando houver a devolução dos dados da pesquisa pelo conjunto
de pesquisadores que integram o “projeto âncora”21
.
20 Conforme exposto anteriormente, objetivando a preservação da identidade e segurança das entrevistadas não
serão identificadas as comunidades especificas nas quais foram realizadas as entrevistas, pois, tendo em vista a
complexidade das relações de poder e violência dentro das comunidades e o fato de uma ACS ter sido ameaçada
de morte em sua comunidade, optou-se por não fazer qualquer menção a qual unidade de saúde ou comunidade
dentro do Complexo da Maré onde foram entrevistadas. 21
Abordagem interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em saúde: o caso dos agentes
comunitários de saúde, coordenado pela professora da Faculdade de Enfermagem da UERJ, Helena Maria
Scherlowski Leal David, integrado por pesquisadoras/es da UFRJ, UERJ e Fiocruz. Apoio: FAPERJ e CNPq.
50
No transcorrer das entrevistas, diversos sentimentos afloraram, como insegurança,
nervosismo. Ao serem indagadas sobre suas trajetórias de vida e suas vidas adultas, também
se expressaram distintos sentimentos: a dor da perda de um ente querido, a dor da separação e
da humilhação pelo ex-marido, o temor pela vida do filho usuário de drogas, a alegria e
admiração por famílias unidas. Lágrimas, risos, silêncio. O riso, até mesmo ao relatar
situações de extrema violência, trouxe à tona as distintas formas de resiliência que carrega
cada uma das trabalhadoras entrevistadas. Além disso, algumas perguntas também
proporcionaram momentos de reflexões.
Entretanto, notou-se que também se manifestaram sentimentos de desconfiança e
medo, em relação aos quais, dentre alguns motivos, supõe-se que a recente mudança da
empresa gestora tenha contribuído significantemente, além da situação de conflito constante
imposta pelos grupos armados. Essa desconfiança expressou-se na recusa de algumas ACS,
indicadas por suas colegas de trabalho, em participar da pesquisa.
As entrevistas duraram, em média, uma hora e vinte minutos, no total de dez horas e
cinquenta minutos de entrevistas. Algumas entrevistas foram rápidas, sendo que a mais curta
durou trinta e sete minutos, pois a entrevistadora buscou respeitar o tempo e os limites de cada
entrevistada. Por outro lado, nas situações em que as entrevistadas traziam cenas vivenciadas,
trajetórias e sentimentos, foi permitido que as ACS discorressem sobre os assuntos. A
entrevista mais longa teve a duração de duas horas. Avaliou-se que esse modo de conduzir as
entrevistas foi muito profícuo.
As emoções que vieram à flor da pele nas entrevistadas, por vezes também
emocionaram a pesquisadora, registrando-se que, numa entrevista em específico, o fato da
emoção ter sido mútua possibilitou a construção de um espaço de cumplicidade. Isso
propiciou que a entrevistada, embora estivesse muito nervosa e apreensiva no início da
entrevista, fosse se sentindo mais à vontade com o decorrer das perguntas.
A entrada em campo ensejou, para além de densos dados empíricos, um enorme
aprendizado de vida, de significados. Aprendi, não pelos livros ou por relações sociais de
proximidade, mas ao ouvir uma diversidade de adversidades, um profundo sentido da
resiliência do ser mulher e guerreira.
51
4.4 Breve perfil, contextos familiares e histórias de vida
Objetivando a apreensão do cotidiano e as especificidades do trabalho das ACS e suas
dimensões de gênero, iniciou-se as entrevistas buscando que as trabalhadoras relatassem
brevemente suas trajetórias de vidas, desde a infância até a vida adulta, iniciando com a
pergunta sobre seu local de origem. Da mesma forma, buscando evidenciar contextos de suas
famílias de origem estimulou-se que relatassem o que conhecem acerca da infância de seus
pais, de maneira a configurar o processo de “transição de gênero”, como tratado abaixo,
através de um olhar geracional.
4.4.1. Breve perfil sócio-familiar das entrevistadas
Foram realizadas nove entrevistas em profundidade com agentes comunitárias de
saúde que trabalhavam e viviam no Complexo da Maré (CAP3.1). As entrevistadas tinham
em média 36,7 anos, sendo que a mais nova tinha 21 e a mais velha 54, na ocasião das
entrevistas. A maioria possuía o ensino médio completo (sete), duas o ensino fundamental
completo e uma estava estudando para concluir o ensino médio.
Do total de entrevistadas três viviam juntos com suas famílias: parceiros, filhos e ou
família estendida (netos ou sogros). Cinco das entrevistadas viviam somente com seus filhos e
os sustentam sozinhas. Apenas uma ACS entrevistada vivia com os pais, a mais jovem delas,
sendo a única trabalhadora entrevistada que não tinha filhos. A maioria tinha dois filhos,
sendo que A09 tinha três. Em relação à religiosidade, três trabalhadoras declararam ser
católicas, sendo que somente uma declarou-se praticante. Duas entrevistadas relataram ser
evangélicas praticantes, e uma espírita, mas não praticante. As outras três entrevistadas
declararam não ter religião.
Todas as entrevistadas trabalhavam como agentes comunitárias de saúde há pelo
menos mais de um ano. A média de anos de trabalho como ACS é de 4,8 anos, entretanto,
quatro das entrevistadas trabalhavam entre 1 e 2 anos como ACS, duas de 3 a 7 anos e três de
8 a 11 anos. A que trabalhava há menos tempo tinha um ano e nove meses de atuação no
momento da entrevista e a que atuava há mais tempo como ACS relatou trabalhar há onze
anos (apesar de ter tido um período de afastamento). Todas as agentes comunitárias de saúde
entrevistadas eram contratadas pela Organização Social Viva Comunidade.
52
À luz da metodologia qualitativa busca-se não somente a exposição e interpretação de
dados, de modo a possibilitar generalizações a partir de uma vasta amostragem empírica, mas,
sobretudo, uma imersão, uma aproximação com o universo empírico, um afastamento e um
retorno aos dados do campo (tendo como sustentáculo a base conceitual e metodológica
apresentados nos capítulos 2 e 3). Com isso, visa-se adentrar em seus sentidos e contextos,
compreendendo que os seres humanos – suas percepções, sentimentos, valores e atitudes –, se
constituem e se desenvolvem socialmente, portanto, o particular, a singularidade das
entrevistadas compõe essa totalidade social se entrelaçando numa relação dialética. A seguir
serão abordados os contextos familiares, as trajetórias e as histórias de vida das trabalhadoras.
4.4.2. Breve contexto das famílias de origem
O processo que se acompanhou nas últimas décadas de feminização do trabalho e
da pobreza, cunhando uma transição de gênero (GIFFIN, 1994), oferece uma
contextualização e lentes cristalinas para compreender e situar historicamente as trajetórias
individuais/coletivas das trabalhadoras entrevistadas e de suas famílias. Para isso buscou-se
resgatar em um primeiro momento da entrevista as trajetórias das entrevistadas em sua
infância e adolescência até a vida adulta, estimulando a que também relatassem aspectos da
infância e da vida de seus pais.
As trajetórias das famílias das entrevistadas foram marcadas por dificuldades,
pobreza, privações, fome, violência, migrações e muito trabalho. Difícil, pesada, sofrida,
“turbulada”: essas foram algumas das palavras utilizadas para expressar a infância de seus
pais.
Oriundas de famílias em que as condições materiais de vida foram permeadas por
dificuldades, todas as trabalhadoras quando estimuladas a falar sobre a infância de seus pais
ressaltaram aspectos negativos acerca das dificuldades que tiveram em suas vidas: separação
dos pais, abandono, morte, famílias com muitos integrantes, violência, maus-tratos, o trabalho
desde cedo em detrimento dos estudos.
O trabalho árduo desde a tenra infância foram marcas de vida de algumas das
entrevistadas, e também de seus pais. A01, A04 e A06 são de famílias oriundas do nordeste,
em que o trabalho dos pais no campo iniciou desde cedo. Uma infância pesada e vida difícil
53
tiveram seus pais, passando pela fome. A04, nascida no Rio, filha de pais nordestinos fala
sobre essa vida difícil e o processo de migração:
Meu pai perdeu a mãe, ele ainda era jovem, era menino, e... teve uma vida
difícil, né, teve que, pra sobrevivê, ia pro roçado, e passou fome, e é do tempo
que, quando veio pra cá, pro Rio, ele veio de caminhão, chamava de pau de
arara, naquele tempo, né. (...) Minha mãe veio pra cá menina, nunca voltou, né,
em Campina Grande, nunca teve essa oportunidade.
A06, ao discorrer sobre a infância de seus pais, ressaltou que ambos sempre
trabalharam e sinalizou para a difícil infância deles dizendo:
Aí, minha mãe, foi criada na roça, lavoura mesmo, cavando lá, teve uma
infância, uma infância pesada, meu pai também, mas todos os dois foram
criados assim, trabalhando. Lá em casa, graças a Deus, ninguém teve uma
infância violenta.
Na procura de estratégias de sobrevivência, as famílias tornam-se dependentes do
trabalho remunerado e não-remunerado de todos, ou de boa parte de seus integrantes –
considerando que os homens, em geral, se eximem do trabalho doméstico não-remunerado. O
analfabetismo também integra este cenário, como consequência e agravante – dificultando
uma melhora, ainda que pequena, de vida – diante da situação de pobreza, tal como expressou
A01 sobre seus pais: “... eles colhiam, plantavam, colhiam, se alimentavam e passavam né,
faziam trocas com os vizinhos (...) a infância da minha mãe foi muito triste. Minha mãe não
estudou, num tinha... até hoje ela é analfabeta, meu pai também...".
A educação, compreendida neste contexto específico enquanto educação formal,
se expressou como uma importante conquista de vida. A07 comentou que,
a infância dela [mãe] foi sofrida, assim, ela passou dificuldades com a minha
vó, apanhou muito. Mas assim, concluiu os estudos dela, ela foi a única filha
que concluiu o segundo grau, as outras tudo não terminaram, foram terminar
agora depois de grande. Aí agora a gente vive bem assim, assim a gente tem
tudo, é pobre mas tem tudo.
A violência enquanto categoria advinda do universo empírico, perpassou as vidas
das trabalhadoras e de seus pais, emergindo em todos os eixos temáticos explorados. A09
54
narrou, ao ser perguntada sobre a infância de seus pais: “Da minha mãe foi cercada de
violência e maus tratos. E na minha assim, teve a parte dos maus tratos, e a parte quase
concretizada, assim, de violência sexual. Então, não foi boa pra nenhuma das duas.” Adiante
será abordada, em tópico à parte, a violência praticada contra as mulheres.
A transição de gênero foi evidenciada quando se comparou as ocupações que
tiveram as mães das trabalhadoras com as suas próprias ocupações. Em relação à ocupação de
suas mães, essas exprimem uma forte marca de gênero: uma auxiliar de enfermagem, uma
babá, uma costureira, uma feirante e quatro “do lar”. Em contraposição às suas mães, cinco
das entrevistadas sustentam sozinhas seus filhos. A seguir serão tratadas as trajetórias de vida
das entrevistadas, a partir de memórias e relatos que trouxeram da infância e juventude, bem
como as compreensões acerca da família e do “ser mulher”.
4.4.3. Histórias de vidas e famílias
Como as ACS são trabalhadoras multiplicadoras de saberes e práticas de saúde,
substantivamente permeadas pelos saberes e valores apreendidos pelas mulheres através da
socialização de gênero – cultura, educação e valores sociais que reproduzem a “ideologia de
gênero” –, que influem e são parte constitutiva de seu cotidiano de vida e trabalho, convidou-
se as trabalhadoras a discorrer brevemente sobre suas histórias de vida, desde a infância,
passando pela adolescência até sua vida adulta, buscando apreender o contexto anterior e o
concomitante ao momento em que se tornaram agentes comunitárias de saúde.
Os relatos das entrevistadas expressaram que suas vidas na infância e adolescência
foram marcadas por situações de dificuldades financeiras de suas famílias de origem o que,
assim como seus pais, as levou a trabalhar desde cedo, buscando trabalho assalariado, em
alguns casos em detrimento da conclusão dos estudos, e compartilhando com suas mães, ou
assumindo como responsável, o trabalho doméstico não-remunerado.
A02, que tem quatro irmãos, desde quatorze anos trabalhou como costureira. Ao
ser perguntada sobre sua infância disse ter sido difícil e que teve que deixar de estudar para
ajudar sua família: “Era tudo muito difícil pra gente, né? (...) Não pude concluir [o ginásio],
tive que trabalhar, mas eu fui concluí-lo depois que eu casei, né?”.
55
A01 passou parte da adolescência trabalhando como empregada doméstica. De
empregada doméstica à acompanhante da filha dos patrões no bairro de Copacabana, relatou
ter sido acolhida por eles, vivência que lhe trouxe um ressentimento ao ter que retornar para a
casa de seus pais na Maré. A01 descreveu essa transição e o retorno à comunidade frisando
que “Aí quando eu vim pra cá [Maré] eu fiquei assim meia desolada, decepcionada sabe, (...)
largar as coisas que tinha, as roupas que eu tinha, o conforto que eu tinha, e voltei a morar
num barraco”.
A06, quando perguntada sobre quem a cuidara, disse ter sido a mãe, porém,
agregou a essa lembrança, o fato de ter trabalhado na casa de um casal, dizendo que morou
“mais só”, tal como procurou demonstrar no seguinte relato: “Eu morei com um casal. Eu
ajudava eles, aliás, eu acho que eles cuidavam de mim, né. Era assim eu ficava a semana
toda lá, com eles né, só voltava no final de semana”.
Assim como A01, no caso de A06 o trabalho doméstico como “natural” da esfera
feminina, com uma carga afetiva, pode vir a ocultar a relação patronal existente e pode,
também, acarretar a super-exploração dessas trabalhadoras devido ao vínculo afetivo
estabelecido com seus patrões. De outro lado, pode mesmo dar margem a uma compreensão
de que a relação patronal seja uma “troca de favores” ou, ainda, como A06 disse, uma
“ajuda”, em que ela era a mais ajudada, cuidada, do que “ajudava” (trabalhava). A
invisibilidade do trabalho doméstico e a construção social de que é uma tarefa “naturalmente”
realizada pelas mulheres, aliado à necessidade de um trabalho, agudizam essa relação22
.
Mas A06 começou a trabalhar antes desta experiência. Após emigrarem para São
Paulo, quando tinha oito anos perdeu seu pai e retornou com sua mãe e irmãos para a Paraíba.
Começou a trabalhar aos 12 anos e era também responsável por cuidar de seus seis irmãos
mais novos:
22 Esses relatos auxiliam a ver uma das dimensões perversas da informalidade do trabalho eminentemente
“feminino” e realizado por mulheres, sobretudo, se levar-se em consideração que, segundo pesquisas do IBGE,
em 2009 72,4% das trabalhadoras domésticas não possuíam carteira assinada. Ausente o vínculo empregatício
formal, tal fato pode se configurar em prejuízo para as próprias trabalhadoras, em termos de direitos trabalhistas
(como por exemplo: férias remuneradas, décimo-terceiro salário, licença-maternidade, aposentadoria). Aliado a
essas questões, a profunda desigualdade social em nosso país contribui, substantivamente, para a compreensão
expressa pelas trabalhadoras em relação a seus patrões, sentindo-se, de certa forma, privilegiadas pela relação
estabelecida.
56
...É, ele enfartou eu tinha oito anos. Ele enfartou no volante, na estrada. Tava
indo fazer compra no CEASA. Aí voltei, né, minha mãe voltou com a gente,
sete filho, pra começar tudo do nada. Aí chegamo lá, foi aquela luta né, aquela
luta todos os dias, é, uma dificuldade tremenda, porque sete criança, para uma
pessoa só tomar conta. Todo mundo começou lá em casa a trabalhar cedo, eu
comecei a trabalhar com 12, ajudava ela, vivia na feira, ia ajudava, voltava,
estudava e trabalhava, estudava e trabalhava, e ainda olhava meus seis irmão.
Nas famílias chefiadas por mulheres, em que as mães eram as únicas responsáveis pelo
sustento familiar, as filhas mais velhas assumem o trabalho doméstico e o cuidado com os
mais novos. Assim como A06, também A09 e A05 eram responsáveis pelo cuidado com os
irmãos e irmãs mais novos.
A09, nascida no Rio de Janeiro, foi mandada à Bahia com seis anos aos cuidados de
uma tia. Aos nove anos retornou para sua cidade natal para cuidar dos quatro irmãos, pois sua
mãe precisou realizar uma cirurgia:
E aí, eu, até os meus 19 anos, era só de casa pra escola, da escola pra casa,
porque eu tinha que tomar conta dos meus irmãos que eram menores, então
assim, num tive muito, essa adolescência de rua, de curtição, de muitos
colegas, eu num tinha.
Essa atribuição de gênero designada às filhas mais velhas – o cuidado com irmãos e
tarefas domésticas –, é percebida por A05, a qual quando discorreu sobre sua adolescência a
comparou com a dos homens:
A minha adolescência não foi muito divertida. Eu era muito preocupada em
estudar, e eu não podia porque minha mãe enquanto morava com a gente ela
obrigava, ela fazia os mais velhos tomarem conta dos mais novos. Então a
gente não podia fazer as coisas que a gente queria, fazer os cursos que a gente
queria. E eu não tive uma adolescência muito alegre, como a maioria dos
homens. Era muito preocupada pra agradar ela, com medo dela ir embora
porque ela sempre ameaçava de ir embora, cuidar da casa, dos meus irmãos e ir
pra escola que eu gostava muito.
A figura materna foi protagonista da construção da história de suas vidas e, em
alguns casos, também a anti-heroína. De uma forma ou de outra, ambas as compreensões, da
contemplação à expectativa e desapontamento, carregam a marca da construção social do
57
gênero em nossa sociedade – o ser mulher como ser mãe, cuidadora, amorosa, instintivamente
ou “naturalmente” protetora.
Para a maioria das trabalhadoras entrevistadas, ao serem estimuladas a falar sobre
quem as cuidara na infância, a mãe (no caso de A08 a avó) foi a responsável pelos cuidados.
Entretanto, três das trabalhadoras relataram terem sido cuidadas por seus pais. A01, cujos pais
viviam e trabalhavam juntos, relatou ter sido sua mãe quem a cuidou “durante os dias que ela
não era feirante”. A09 foi para Bahia ainda pequena onde viveu com uma tia, mas aos 9 anos
retornou para a casa de sua mãe no Rio de Janeiro.
A crescente feminização do trabalho e da pobreza agudizam as exigências sociais
sobre as mulheres e as expectativas em torno delas, principalmente quando tem filhos. Espera-
se que sejam mulheres “Atlas” (BERMAN, 1997). A05 ao ser perguntada sobre sua infância,
e quem a cuidara, iniciou afirmando ter sido sua mãe “minha vida toda”. Entretanto, ao ser
estimulada a discorrer sobre sua relação com sua família, com seus irmãos, pediu para que a
entrevistadora parasse a entrevista e perguntou se o que se esperava era a verdade. Esse
acontecimento demonstrou o inevitável abismo que se abre quando as expectativas sociais –
de mulheres atlas e mães carinhosas e abnegadas “por excelência” – são dissonantes em
relação a realidade enfrentada, gerando, assim, desapontamentos e decepções. Narrou A05:
Minha mãe fez muitas escolhas na vida dela que depois ela desistiu, como
casar e ter três filhos. Então depois que ela se viu casada e com três filhos ela
não queria mais isso pra ela. Então ela, ela se separou do meu pai e criou os
filhos um pouco jogados. Ela não queria mais ter filhos e queria procurar a vida
dela. Enquanto ela não teve como se livrar deles ela foi cuidando. Um dia ela
pode se livrar de todos eles, ela abandonou eles e foi morar com outro homem.
A gente tinha certa idade. Cada um procurou um canto, cada um procurou
sobreviver a sua maneira. E ela nem olhou pra trás. Então uma infância um
pouco difícil. Não foi pior porque eu não passei fome totalmente. Tinha pouca,
tinha coisas ruins pra comer mas tinha. Sempre tive que me vestir, procurava
me vestir dignamente. Concluí meu primeiro grau dentro da casa dela. Então
acho que nós sobrevivemos a isso.
Em função de abusos sexuais por parte de dois padrastos e em face dessa cruel
experiência de vida, A09 ainda não se considerava pronta para perdoar a mãe. Tendo em vista
que as violências sofridas originaram-se dos padrastos, bem como que sua mãe a repreendia e
58
não a deixava sair de casa onde tinha que ficar cuidando de seus irmãos mais novos, atribui a
algum tipo de patologia os erros que considera que sua mãe cometeu, tal como declarou:
...ela [mãe] não tinha uma mente saudável, precisava de um marido do lado
dela pra cuidar dos filhos, e era o que ela fazia, tentava com quem aparecia.
(...) até os meus 19 anos, era só de casa pra escola, da escola pra casa, porque
eu tinha que tomar conta dos meus irmãos que eram menores, então assim,
num tive muito, essa adolescência de rua, de curtição, de muitos colegas, eu
num tinha. Até porque a minha mãe num deixava eu ir do portão pra fora, pra
ficar conversando com ninguém.
Por quê?
Sei lá, ela já me humilhou tantas vezes, eu lembro que teve uma vez que ela
chegou do trabalho eu tava assim sentada ela começou a xingar, num queria
ninguém no portão, sei lá, era o jeito dela cara, doente, hoje eu entendo que ela
era doente, tendeu? Há pouco tempo assim que eu tenho essa noção, eu falo até
pra minha psicóloga, hoje eu posso entender, mas não significa que eu perdoei
ela não, conforme o tratamento assim, vai evoluindo, aí você vai aprendendo a
lidar mais com isso, de perdoar de verdade quem sabe um dia, entendeu?
A08, filha de mãe e pai jovens, 16 e 19 anos respectivamente, relatou que, por sua
mãe ser muito jovem, foi viver na casa do pai, aos cuidados da avó e tios paternos até a
adolescência. Sua avó, acometida por problemas de saúde, não podia levá-la à escola e por
isso foi alfabetizada em casa por um tio que é professor. Seu pai casou-se novamente, porém
sua avó temia que fosse maltratada pela esposa de seu pai por ser muito parecida com sua
mãe. Assim, permaneceu entre a casa de sua avó e de seus tios até os treze anos. Adolescente,
decidiu ir morar com sua mãe, pois
eu fui criando uma ilusão na minha cabeça, que eu tinha que morar com minha
mãe, devido a ela ser muito minha amiga, (...) ela num me dava bronca, porque
ela num participava da minha educação, ela participava de eventos bons, que
era aniversários (...) porque ela sempre traz presente, porque ela sempre tá de
bem comigo, ela nunca briga e ela sempre deixa fazer o que eu quero. Só que,
infelizmente, (...) a minha mãe ela não teve limite comigo.
Entre as expectativas, encantos, decepção, esta jovem trabalhadora, aos 27 anos,
narrou sua história de vida e alguns percalços deparados ontem e hoje, os quais serão
descritos buscando evidenciar as nuances de gênero que delinearam os caminhos percorridos
59
em vários períodos de sua vida, além de trazer à tona questões que, enquanto trabalhadoras da
saúde e moradoras de regiões pobres, permeiam suas vidas e cotidiano de trabalho.
Aos catorze anos A08 foi morar com sua mãe em Duque de Caxias – RJ e em
seguida vivenciou difíceis situações. Conheceu um garoto, por quem se apaixonou e com
quem teve relações sexuais, relatando sobre isso: “achava que ele era o homem da minha
vida, que ele era, ia ser o pai dos meus filhos, que eu ia envelhecer do lado dele, e que ele ia
ser muito bom pra mim, meu príncipe encantado”. A08 informou que após ter iniciado
relações sexuais com seu “príncipe encantado”, o relacionamento entre eles se modificou,
porque “ele se tornou dono da minha pessoa, ele era machista, não gostava que eu saísse”, o
que a levou a conversar com sua mãe sobre o ocorrido, em busca de ajuda. Começou a utilizar
anticoncepcional e, ainda segundo seu relato, “fui morar com ele, obrigada, é, meio que
obrigada, porque a minha mãe deu o aval à ele: ‘não, você vai ter que levar ela, porque ela é
direita, ela não é qualquer uma’”.
A08, que viveu com este rapaz até os dezesseis anos, afirmou ter se decepcionado
muito, pois “aquele castelo todo era tudo de areia né, aí eu fui viver uma vida de casada
muito nova, e ele por ser usuário de droga, depois começou a se envolver no tráfico...”. Ao
narrar sucintamente o período em que viveu com o seu primeiro parceiro até o momento em
que foi assassinado, A08 condensou diversos imperativos sociais que pesam sobre as
mulheres, expectativas de viver e “ser feliz para sempre” com seu companheiro, apesar da
violência e dificuldades:
Aquela menina que era bonita, sorridente, os cabelos muito bonitos, os dentes,
eu tinha esses cuidados todinhos com a minha vó, isso foi perdendo (...), aquela
garota bonita né, e fui ficando uma garota feia, acabada, ai meus cabelos
começaram a ficar feios, porque eu não tinha dinheiro para ir no salão, e ele
não me dava, aí eu comecei a não ter recursos pra se tratar, (...) aí eu fui
ficando doente né, ficando com problemas nos dentes, problema de pele, é,
problema, que ele também me traia, problemas ginecológicos, é, muito nova
né, aí acabou que ele faleceu. É, quando eu tinha 16 anos eu fiquei viúva. E eu
fiquei muito ruim, porque assim, mesmo ele tendo problemas de ser usuário de
drogas, por ser violento né, eu achava ele, por ser o primeiro homem da minha
vida, ele ia viver comigo pra sempre. E foi muito triste a morte dele, foi na
minha frente, ele morreu nos meus braços, devido, ele ter problemas de, ser do
tráfico né, na época, e, foi num domingo né, aí ele tava armado, aí entrou a
polícia, e matou ele.
60
Após a morte de seu companheiro, A08 retornou para a Maré para reconstruir sua
vida. Aos dezessete anos começou a trabalhar como auxiliar administrativa em um posto de
saúde onde depois trabalharia como agente comunitária de saúde. Iniciou nesse período uma
nova relação com um rapaz trabalhador dez anos mais velho, que era seu amigo, e foi esse
relacionamento que lhe trouxe uma filha. Mas A08, aos 21 anos, novamente ficou viúva. Já
quando vivia com seu companheiro, descobriu que ele também era usuário de drogas, “porque
infelizmente dentro da comunidade tem muito isso né (...). Aí pra piorar minha situação, ele
entrou também no tráfico, depois”. Sobre o fato de seu companheiro ter entrado para o tráfico
A08 se indaga se seria pela dependência das drogas ou por uma questão de “consciência”,
uma vez que ele tinha três filhos e era elevada a quantidade de dinheiro que ganhava no
tráfico. O atual companheiro de A08, com quem teve seu segundo filho, também é usuário de
drogas. Com resiliência A08 tem esperanças de ajudá-lo a superar.
Para A02 e A07 suas mães são mulheres que as inspiram e por quem têm muita
admiração. A02 ao relembrar de sua mãe, que havia falecido há 6 anos no momento da
entrevista, se emocionou bastante, afirmando posteriormente que sua mãe “é uma pessoa
especial (...). Sabe, não gostava de bagunça, de fofoca, procurava, assim, ajudar as pessoas.
Tinha muito amigo mesmo. Uma pessoa muito especial mesmo.” A07 que morava com sua
mãe, por quem tem grande admiração e mantém boa relação, é dela uma amiga.
Observa-se uma diferença geracional, em comparação às suas mães, no modelo
reprodutivo, no tocante às expectativas reduzidas de quantidade de filhos que as ACS têm e
gostariam de ter, apesar de que somente uma das entrevistadas relatou ter planejado os filhos.
Ou seja, seis das entrevistadas relataram não ter planejado os filhos, uma não respondeu e
outra não tem filhos. Em relação a uma elevada expectativa concernente à quantidade de
filhos, A04 gostaria de ter 5 filhos. Já A03 diz que sua infância foi “como todas as outras”:
que brincava, estudava e outros. Entretanto, ao ser indagada sobre sua adolescência, com
resignação, disse que foi muito pouco, pois teve um filho fruto de uma gravidez inesperada
ainda aos 16 anos.
A seguir serão abordadas concepções e percepções das ACS sobre família.
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“Uma família, culturalmente falando, seria pai, mãe e filho...”
Com objetivo de compreender as percepções e valores construídos sobre a família,
foram feitas duas perguntas: como elas achavam que deveria ser uma família e,
posteriormente, objetivando comparar o almejado e o vivido, indagou-se como era a família
delas. Na maioria dos relatos o “ideal” abordado não teve como epicentro um padrão de
família nuclear, mas as entrevistadas expressaram os valores e sentimentos necessários para
que sua própria família adentrasse a um modelo ideal para elas mesmas, no sentido de
melhorá-la. Alguns relatos expressaram uma compreensão de família como família nuclear, o
que ficou melhor evidenciado quando constatou-se que as três trabalhadoras que narraram sua
satisfação com suas famílias como elas são, experienciavam uma família nuclear, como se
verá a seguir.
“Acima de tudo respeito e compreensão”
Os signos atribuídos à família “como ela deveria ser” estiveram ligados a valores e
aspirações de sentimentos como respeito, união, amor, compreensão e companheirismo para
A03, A08, A07, A01, A02 e A09.
A08, que vivia com sua filha e filho e seu companheiro (junto à família dele), destacou
que em uma família é precisa ter união, respeito, companheirismo e “o amor acima de tudo,
porque a família é muito importante, é um elo, é de Deus, é um elo que todo ser humano que
ter, e sonha em conquistar”, e complementou apontando que não importa a composição dessa
família, já que “pode ser como for: pai e mãe; pai e mãe e sogra e filhos, e netos, como eu
vivo; vó e neto; tio e tias, né, e assim vai, mas num deixa de ser uma família”. Criada pela avó
paterna, A08 descreveu sua família apontando seus sentimentos e valores acerca da sua
família “adquirida”, em relação a qual destacou que o respeito dos filhos e filhas com os pais
é fundamental e comentou sobre seus sogros que “são pais bons, são pessoas humildes, uma
família bonita de se ver, mas pouco valorizada, pelos filhos”.
Três trabalhadoras, A07, A01 e A02, que vivem em lares com a presença das figuras
maternas e paternas, filhos e netos, apontaram que uma família precisa de ser unida, se ajudar
e ter amor, e narraram satisfação com suas próprias famílias. A01 descreveu também seu
desejo de que seus filhos saiam de casa e constituam suas próprias famílias. Destaque-se o
62
relato de A07: “A minha família é assim, graças a Deus, minha família num tenho do que
reclamar não. Todo dia eu agradeço a Deus pela família e pela mãe que eu tenho.”
A03 relatou que sua “família é minha, meia, tur, turbinada”. Vivia, por ocasião da
entrevista, com sua filha mais nova e tinha um filho usuário de drogas e envolvido com o
tráfico. Destacou não importar que uma família seja composta por pai, mãe e filhos, sendo
imprescindível “acima de tudo respeito e compreensão.”
A05, em que pese ter expressado como os valores sociais vigentes impõem a ideia de
que a família “ideal” seria aquela composta por pai, mãe e filhos, relatou que ela e seus filhos
são uma família, não importando essa imposição cultural: “A minha família pra melhorar ela
só precisaria que eu fosse uma mãe melhor. Eu acho que eu sempre... Acho que eu posso
fazer mais pelos meus filhos. Mas somos uma família, não importa.” Evidencia-se neste relato
que apesar de dizer que “Uma família, culturalmente falando, seria pai, mãe e filho”, A05 ao
negar essa construção histórica, social, cultural e ideológica expressou uma exigência,
igualmente socialmente construída, de uma “mãe ideal”.
De uma forma enfática A04 expressou seu profundo desejo, arraigado em suas
aspirações e reforçado por sua religiosidade, de construir uma família com pai, mãe e
filha(os), e considerou que sua família estava “quebrada”:
Uma família pra mim tem que ser uma família de pai, de mãe, de filhos, cada
um exercendo seu papel, né. (...) é no perfil da família, que eu considero uma
família, eu vejo uma família assim... quebrada né, houve uma quebrada, e uma
divisão da família, né. É, por exemplo, a minha família que convive comigo
hoje, ela vive sem o pai, né, então quebrou o elo da família, mesmo porque
esse pai também num dá continuidade ao papel que é dele, de procurar saber
como ela ta, de ter um relacionamento, então eu vejo a minha família assim,
hoje assim, com esse, um pouco dessas dificuldades nessa área, né? (...) padrão
de família que eu entendo que é uma família, pai, mãe, filhos, netos, todo
mundo com defeito, se resol... com problemas, se aceitando, um aceitando o
outro, suportando o outro, se resolvendo, se perdoando, se amando, eu acho
que família é isso. Acho que a família não é perfeita, né? a família ela tem
defeitos, mas assim, o amor, aquele elo da família, aquele amor é, ele supera,
um supera o defeito do outro e vai se amando, e vai vivendo e vai dando
continuidade, né.
Sem filhos, sem marido “como mãe”, ajudando os outros...
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Em meio a uma vida difícil – trabalhando como ACS, estudando à noite, fazendo
biscates e convivendo com a cobrança por sua ausência por parte de um dos filhos enfermo –,
é relevante destacar o depoimento de A06 porque, contraditoriamente, ela expressou a
negação de uma “destinação” das mulheres para a maternidade, ao passo que afirmou que,
embora no seu padrão de família atual não se incluísse o desejo de ter filhos, ela gostaria de
ajudar mais as pessoas, exercendo nessa ajuda o papel de “mãe”:
Então o padrão de família pra mim, hoje, poderia até casar, mas eu não teria
filho não, eu acho que até casar num precisa não, ficava com o namorico, e, e,
e, pronto, ficava assim, e, e, e, dava meu tempo assim, mais pra os outros,
porque eu vejo tanta gente só, precisando de ajuda, tanta gente assim
abandonada, que precisa de ajuda. (...) Eu me daria mais pra ajudar os outros,
pra pegar conhecimento, se envolver, e ajudar, ajudar, acho que eu seria mais
como mãe, numa hora dessas.
Conforme foi destacado no capítulo 2 é no seio da família que se constitui a opressão da
mulher. Desenvolvendo-se e modificando-se ao longo dos séculos de acordo com a
organização social vigente, é, sobretudo, na família onde os papéis de gênero (de mulheres e
de homens) delineiam-se. Por isso, a seguir serão abordadas as compreensões perquiridas do
que seria “ser mulher” e quais qualidades deveriam ter um parceiro ou parceira.
4.4.4. Trabalhadeira, mulher e guerreira
Ser mulher e “guerreira” ou ser mulher e “sereia”?
Buscando com que expressassem elementos que fornecesse base empírica para
identificar na percepção das entrevistadas quais são as qualidades do “ser mulher”, perguntou-
se qual mulher elas gostariam de ser ou que mulheres admiravam. Pode-se identificar a partir
das trajetórias de vida e dos relatos, neste tema, que as visões (negativas ou positivas) que as
trabalhadoras tinham de suas mães e de seus ensinamentos, ou das figuras femininas de
referência (avó, tia ou mulheres que não são da família, mas que ajudaram as entrevistadas de
alguma forma), influíam em suas aspirações, em suas expectativas em relação a si mesmas e
às mulheres que admiravam ou tinham por referência.
As mulheres de referência (que admiravam ou queriam ser) eram para as entrevistadas
mulheres fortes, “guerreiras” que lutaram e lutam pela sobrevivência de suas famílias (A01,
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A07, A06 e A04); mulheres que lhes proporcionaram ensinamentos (A02, A03, A08 e A09) e,
ainda, mulheres cujas histórias de vida lhes inspiravam (A01 e A05).
Destaque-se o depoimento de A06, por expressar um auto-reconhecimento de suas
fortalezas, quando afirmou que admira a si mesma e todas as mulheres guerreiras:
Acho que eu admiro a mim mesmo. Admiro as mulheres guerreiras, que
arregaçam a manga, que são trabalhadeira, que estão ali pra viver a vida, pra
contribuir, pra ajudar. Não admiro uma mulher, mas admiro as mulheres que
arregaçam a manga. Eu admiro uma pessoa que ninguém conhece, uma
advogada, o jeito dela agir, assim admiro muito. Ela acorda seis horas da
manhã e vai dormir 23hs. Admiro mulher que não é acomodada, que não gosta
de ficar em casa, que tem determinação. A mulher que é a rainha das mulheres.
Me considero uma dessas.
A01 relatou que sua avó paterna era neta de escravos e a descreveu como uma guerreira,
por ter enfrentado a discriminação social e da família de seu avô paterno (filho de
portugueses), por ter tido 18 filhos e, ainda, porque “andava, fumava, dançava, fumava
cachimbo ainda por cima”, enfim, era forte.
A01 e A05 também expressaram em seus relatos admiração por mulheres que são
figuras públicas (uma atriz, Thais Araújo, e a outra uma figura política, Marina Silva), pelo
fato dessas mulheres terem “começado de baixo”, como disse A01 sobre sua admiração por
Thais Araújo, ou por ter “uma história de vida muito maravilhosa. Aprendeu a ler já tarde, e
não parou mais”, narrou A05 sobre Marina Silva.
Algumas trabalhadoras, A01, A09 e A07, mencionaram também “qualidades” físicas,
como a beleza e ideais de beleza “padrão” vigente, positiva e negativamente. A07 referiu que
gostaria de ser igual a uma cantora por sua beleza, ressaltando que mesmo após ter tido filho
continuou bela, e, por outro lado, uma mulher guerreira como sua mãe. As imposições
socioculturais de padrões de beleza socialmente impostos (corpo esbelto, cabelos lisos,
aspecto jovem, entre outros), expressaram-se nessa entrevistada em específico, na qual
características almejáveis de caráter e personalidade se opuseram às características físicas
externas. A seguir o relato de A07 que evidencia essa oposição: “queria ter a garra e a força,
assim, a coragem de vida que a minha mãe tem e teve. E de beleza, acho a Cláudia Leite
linda, queria ser igual ela, e ter filho e continuar linda como ela continuou”. De uma forma
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mais simples e sem a dicotomia manifestada por A07, A09 também expressou a beleza como
um valor importante, sem que, contudo, tivesse muito destaque em seu relato, destacando a
contribuição dessa mulher em sua vida: “Pô, talvez a minha psicóloga, a X. Ela é nova, ela é
bonita, tendeu? Mas ela fez a diferença na minha vida, tendeu? (...) Eu falo assim, eu tô
crescendo de um ano pra cá, graças a ela”.
Em uma expressão de negação à imposição do padrão de beleza socialmente construído,
A01 narrou, no momento inicial da pergunta, que não se espelhava em nenhuma, que “não me
troco por nenhuma novinha não”. Seguindo seu relato, ao rejeitar a possibilidade de uma
intervenção cirúrgica para modificar seu corpo, mesmo reconhecendo e partindo desses
padrões, afirmou que:
Eu não me espelho em nenhuma não, não me espelho, eu não tenho esses
negócio assim de querer tirar banha, fazer, como é o nome, lipoaspiração, botar
silicone, isso aqui, isso aqui não me pertence, isso aqui é tudo sutiã de encher,
que os peitos tá tudo lá embaixo. Mas também não tá tão caído assim não. Mas
eu não me vejo fazendo isso, eu me sinto bem assim como eu sou. Eu pesava
mais, eu pesava noventa e dois quilos, hoje em dia eu me vejo como uma
sereia, né, pela forma de antigamente.
Ser ACS e mulher
Buscando com que expressassem suas visões sobre si mesmas e a tecer relações entre o
“ser mulher” e “ser ACS”, foi perguntado para as entrevistadas como elas se veem como ACS
e como mulher.
Guerreira
A06 destacou gostar de seu trabalho e realizá-lo com dedicação e que, como mulher,
“me acho uma guerreira (...) não sou acomodada”. Entretanto, ao final de seu relato,
sinalizou que não se sente completamente realizada enquanto ACS, pois ainda existem coisas
que gostaria de fazer e ver acontecer.
A04 e A07 também apontaram que como mulheres se sentem guerreiras. A04 destacou
que como ACS se sente importante, pelo fato das pessoas virem à sua procura e por poder
ajudar, pois “isso pra mim é maravilhoso, quando eu consigo ajudar”. A07 se considera uma
boa profissional, entretanto, apesar de gostar do trabalho de ACS, almejava um trabalho
melhor, pois “o ruim é que você não tem pra onde crescer”.
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Cuidando em casa, “ajudando” no trabalho
A01 ressaltou que para ela “casou bem, ser ACS e mulher”, pois “gosto de ajudar”. O
imbricamento que foi sinalizado na discussão conceitual entre o “ser ACS” e “ser mulher”,
pode-se evidenciar nessas narrativas, nas quais as trabalhadoras se reconhecem e se doam,
seja no trabalho, seja em suas casas, como partes complementares – ajudando as pessoas em
seu trabalho e contribuindo na comunidade, e como mulher –, tal como relatou A02:
E como mulher, assim, cuidar do meu marido, das minhas filhas, meu neto e
dos meus irmãos que estão sempre precisando de mim; e de outras pessoas
também, até, aqui, vizinhos, né? Que eu não vou lá, não é a minha área, mas
estão sempre me pedindo alguma coisa: ou pra marcar consulta, ou pra pegar
receita, né? Pegar os remédios, que às vezes trabalha não tem tempo, entendeu?
Sobre esse sentimento valioso que possuem as mulheres residem contradições, que, por
um lado, pode favorecer à maior exploração do trabalho delas, tal como A02 relatou acima,
pois trabalha mesmo fora do horário de trabalho sem receber hora extra, e, por outro lado,
fortalece os vínculos e laços de solidariedade dessas trabalhadoras e as pessoas, as famílias
que atendem.
A03 também se considera uma guerreira e narrou que “apesar dessas dificuldades todas
que eu falei, eu me vejo quase que heroína nas duas fases”. E mais: apontou que mesmo em
situações de dificuldades sempre conseguiu resolvê-las, dar um “jeitinho” para ajudar as
pessoas: “teve três meses de salário atrasado, né, direto, e, não passei fome, não passei
necessidade (...) não tive ajuda de ninguém, e... ainda tirei da minha casa já pra ajudar
algumas pessoas...é recompensas que a gente vai adquirindo”.
“Ser ACS faz eu crescer como mulher”
A05 considera que trabalhar como ACS a faz “crescer como mulher”. Depois de
mencionar que se sentia impotente por não poder fazer mais coisas, por não poder ajudar
mais, por não conseguir explorar suas ideias e fazer o que gostaria, relatou:
As experiências das outras pessoas também nos ajuda a crescer. Como mulher
tento melhorar todos os dias, tento ser boa mãe, tento ser boa funcionária, ser
boa dona de casa, mas dona de casa é quase impossível. Eu não aprendi nada e
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depois de velha não quis aprender, enrolo, mas eu faço direitinho. Agora como
mãe eu tento me aprimorar, como ser humano.
“Eu me vejo gente”
Não discorrendo diretamente sobre os significados do ser mulher, ou ser ACS, A09
destacou que “eu me vejo gente. Gente que sabe o que é, o que faz. Eu me vejo pessoa que
respeita o outro. Eu faço minhas coisas e assumo. Faço as coisas com mais consciência.”
Marcando que independente de ser mulher, ser ACS, o respeito às pessoas e a consciência de
saber o que é e o que faz são importantes questões, A09 disse se reconhecer enquanto ser
humano e que anteriormente não se reconhecia. No mesmo sentido A08 relatou: “me vejo
importante. Importante dentro da minha casa, na rua também. Porque a gente trabalha com
saúde, temos muita informação. E a vida é saúde.”
“Sujeito homem...”
As trabalhadoras foram convidadas a pensarem uma situação hipotética, em que
pudessem escolher um parceiro/a ideal, pedindo para que descrevessem as qualidades que
teriam. O intuito com essa pergunta foi explorar as aspirações em relação ao exercício da
afetividade e sexualidade, buscando apreender os valores e sentimentos que expressam quanto
às características que compreendem e valoram de modo positivo em uma pessoa, com a qual
tem ou gostariam de se relacionar afetiva, amorosa e sexualmente.
“Seria este mesmo que eu tenho”
A01 e A02 expressaram satisfação com seus atuais maridos. A01 apontou que seria o
atual pelo fato dele não a perturbar e sempre “dizer amém pra tudo”, entretanto discorrendo
sobre os motivos pelos quais “seria este mesmo”, apontou que, se pudesse mudá-lo,
modificaria algumas características físicas e “colocava ele que nem o Humberto Martins,
aquele espacinho no queixo, aquele peitoral e aquela altura”.
A02 relatou “que é o meu marido mesmo, porque ele é uma pessoa ótima”, e mesmo
que tome “as cervejinhas dele, mas não é de dizer que ele bebe, assim. (...) É uma pessoa que
entrou no meu caminho. É muito boa, sabe? É um bom marido, um bom companheiro, é um
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bom pai, um bom amigo”. Apesar de destacar um fato que lhe causava algum incomodo (seu
marido tomar cerveja), as características que para ela são importantes primavam sobre esse
seu incomodo.
Sinceridade e honestidade
A03, solteira na época da realização da entrevista, afirmou que não avaliava por
questões e características físicas, mas qualidades de caráter, de personalidade, destacando o
companheirismo, e que essa pessoa “seja trabalhador, entendeu, honesto... e sincero”.
Separada há apenas alguns meses na época da entrevista, A04 demonstrou-se ressentida
pela separação e relatou: “Ah, eu bloqueei isso dentro de mim, agora tem que buscar lá no
baú. Qualidade, qualidade, ser uma pessoa sincera, verdadeira primeiramente com ele
mesmo, né? Amar ele mesmo, né (...)”.
Destaque-se o depoimento de A08, cuja trajetória de vida foi conturbada e marcada
pela morte de dois companheiros, que apontou:
primeiro é respeito. Não é que não me respeite. Respeite os pais, acho isto
muito importante, bonito. Isto é o princípio, pai, mãe, tio. Um homem
compreensivo, menos ciumento, o meu é meio abusivo, não chega a ser
violento. Mas é bobeira, acho infantil. Acho que o homem tem que ter a
disposição que eu tenho, assim para procurar emprego. Ser honesto, seguir o
caminho do bem.
A09 destacou que uma das qualidades seria o respeito com sua “condição de mulher” e
“não ser submisso”. Foi a única trabalhadora que mencionou a palavra prazer: “Poder
conversar, prazer de estar perto. Hoje é muito fácil sentir prazer um minuto e desgosto no
outro. Teria que ser respeitoso”.
“... Esse homem não existe”
A06, que também vivia sozinha com os filhos, descreveu a seguir uma definição do que
seria o “sujeito homem”:
Eu acho que tem que ser meu amigo, ele tem que ser fiel, mas tem que ser o
que meu pai chamava de sujeito homem. Mas falam que eu sonho demais, que
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esse homem não existe. (...) Sujeito homem é aquele que quando aceita a
mulher aceita com o pacote, os filhos. É aquele que ensina boas coisas a esses
filhos. Que tem que passar pra esses filhos como se respeita uma mulher, como
que é ajudar essa mulher, como que é ser honesto. Que eu não quero um
homem na minha vida que ensine a meus filhos como esculhambar uma
mulher, como esculachar uma mulher, como não ajudar uma mulher e mesmo
assim comer às custas dela. Acho que tem que ser meu amigo, tem que ser fiel
como parte desse sujeito homem. Sujeito homem é um ser assim, que respeita a
mulher, que aceita ela como ela vem e que ajuda.
Violência: “mal de muitas, problema de quem?”23
A situação de vulnerabilidade social, pobreza, privações materiais e afetivas e a
violência – “doméstica”, policial ou do tráfico –, são marcas expressivas das memórias e
depoimentos de suas trajetórias de vida, bem como de suas mães e pais. A violência (contra
mulheres e crianças) também perpassou diversas histórias e trajetórias de vida, desde a
infância à vida adulta. Partindo do pressuposto que a prática de atos violentos – físicos,
materiais, psicológicos – implica uma relação de poder, foram categorizados a seguir alguns
casos narrados pelas entrevistadas.
Violência dos pais contra os filhos
A04 relatou que sua infância foi conturbada, pois seu pai “tinha uma criação de
esquema de Hitler, ele era um ditador”, agregando que ela e seus três irmãos, “não tinha uma
liberdade, né, pra expressar o nosso sentimento, as nossas emoções, nós tínhamos que ser
aquilo que ele queria que nós fôssemos, entendeu?”. Para além da impossibilidade de
expressar-se, de “ser diferente” do que almejava seu pai, o uso de violência física – violência
essa que quando perpetrada pelos pais é comumente aceita como forma de impor “limites” às
crianças –, foi parte da vida de A04, que relatou: “ele [seu pai] fazia palmatória pra bater na
gente” e, nesse momento, agregou um conhecimento sobre os usos desse artefato (palmatória)
dizendo que era utilizado para punir os escravos. Em meio ao seu relato, A04 buscou justificar
as atitudes de seu pai, dizendo que “ele não teve carinho né, de pai e mãe, a mãe morreu era
pequeno, o pai dele era um homem grosso, só batia, então ele, ele ia passá o que ele não
aprendeu”. Esse movimento de reflexão sobre as causas que levaram seu pai (e mãe, no caso
23 “Mal de muchas, problema de... ¿quién?”. Traduzido do jornal Pan y Rosas nº 07, Argentina, 2008. Disponível
em http://www.pyr.org.ar/spip.php?rubrique21
70
de A09) a terem atitudes violentas é interessante, pois parte de uma concepção que não toma
atitudes violentas como algo natural ou biológico (genética), mas como uma construção
social, histórica e cultural. Ainda que se possa compreender que haja uma diferenciação de
gênero entre violência dos pais contra os filhos, separou-se os temas por se tratar de uma
relação de poder específica, entre pais e filhos/as, distinta de outras que foram identificadas
nos relatos de demais entrevistadas: homens e mulheres numa relação conjugal, homens que
vitimizavam mulheres com quem não tinham nenhuma relação, homens que tentavam abusar
das filhas de suas parceiras, homens que controlavam e reprimiam as ações, condutas, formas
de vestir, entre outros, de suas parceiras, por nutrirem o sentimento de que eram sua
propriedade.
Violência contra a mulher
Identificou-se a partir do relato de A04, A06, A08 e A09 situações de violência
praticada por seus parceiros, e, no caso de A09, tentativas por parte de dois padrastos, cujo
espectro distribuiu-se desde a violência física à violência psicológica, da privação de
liberdade de ir e vir à imposição de condutas. A04, cuja educação por parte de seu pai foi
severa, e suas ações e vontades controladas ao máximo (até mesmo era proibida de escutar
Michael Jackson, por exemplo), ao expressar sua insatisfação com seu primeiro casamento fez
uma comparação com sua experiência de vida anterior:
Sendo que eu sai daquele mundo e entrei num mundo muito parecido, porque
ele por ser mais velho do que eu ele também assim, me prendia, me coibia de
algumas coisa, me proibia, entendeu? [...] tive que me separar porque ao
mesmo tempo também é uma pessoa violenta quer dizer, é, quase a mesma
coisa [que na casa de seus pais], com algumas diferenças.
É positivo esse relato de A04 porque, em função de suas convicções religiosas ela
compreendia o casamento como uma questão importantíssima em sua vida, porém, apesar
disso, não se permitiu seguir mantendo uma relação conjugal violenta.
Destaque-se neste ponto o relato de A09, que foi quem mais aprofundou sua narrativa
acerca do conjunto de situações violentas a que esteve submetida e cujas consequências foram
severas, chegando a estar perto da morte. As primeiras experiências da violência foram
quando criança, por parte de dois padrastos, “que pra mim nunca foram pai, pelo menos de 3
71
que eu tive, 2 tentaram me violentar, que eu era a mais velha né.”. A09, ao narrar sua vida
adulta, iniciou dizendo que teve filhos com um homem que a violentou quando tinha 20 anos
e com quem foi forçada a viver, pois “ele tinha assim, um conhecimento indireto com a minha
família, ele fez eu escolher assim, ou eu, ou a família, então sofri eu 5 anos na mão dele,
quase morri” . Continuou relatando que, dois meses antes da entrevista, havia passado por
uma cirurgia, cuja necessidade foi decorrência desses anos em que viveu com o pai de seus
filhos. A seguir seu relato, no qual é possível identificar certa contemplação pelo caminho que
tomou seu ex-marido.
...há dois meses, operei uma das sequelas dessa minha vida que foi a
articulação quebrada, mas posso te falar, e, eu sei que há 3 anos ele foi
internado numa clinica de maluco de tanto usar droga, né? Ele era muito
espertão, muito fortão, muito bonzão, e com trinta anos tava lá na merda.
A violência contra as mulheres é uma problemática importante para o campo da saúde
coletiva e vem ganhando algum destaque na sociedade como uma questão social. São muitas
as barreiras sociais que necessitam ser superadas para a cessação de um ciclo de violência
perpetrada por pessoas próximas, cônjuges, pais ou padrastos, irmãos, tios, vizinhos, entre
outros.
Preconceito e identidade racial
Este tema emergiu das falas das entrevistadas manifestando-se em percepções de duas
trabalhadoras. A09 expressou o preconceito social que sofrem os negros que vivem em
comunidades quando, ao relatar que está sempre arrumada e cheirosa para visitar os usuários,
justificou-se afirmando: “gente eu já sou preta, favelada, já passei dos 18, eu vou bater na
porta dos outros esmulambada?”. Esse relato de A09 desnudou uma não tomada de
consciência no tocante à discriminação e preconceito social e racial. A não consciência do
preconceito e da discriminação racial é umas das formas mais bem sucedidas para a
manutenção dessas discriminações.
Ao tratar do seu arranjo familiar atual, A08 afirmou que apesar de ela e sua filha serem
negras não sofriam preconceito na casa dos pais de seu companheiro, onde vivia com sua filha
e seu filho.
72
eles [sogra e sogro] ganharam uma filha né, que eles num tem, só tem filhos
homens. Mesmo eu sendo diferente, sendo negra né, não tem preconceito com
isso lá dentro, a minha filha também é negra, o meu filho já é clarinho de
cabelo lisinho igual ao pai dele, mas não tem preconceito, a gente não tem
divisão, o que é meu é de todos, o que é deles é meu também.
Identificou-se no relato de A08 uma consciência da discriminação social em relação aos
negros, mas também uma não consciência identitária, já que, ao expressar que seu filho é
“clarinho” e de “cabelo lisinho”, reconhece o “ser negro” a partir da tonalidade da pele e dos
cabelos e não como uma identidade cultural, expressando, desse modo, como vê se manifestar
o preconceito.
A situação das mulheres no mundo em que vivemos...
Objetivando apreender as percepções das entrevistadas acerca das mudanças que
atravessam a sociedade e seus impactos sobre a situação das mulheres, as trabalhadoras foram
convidadas a relatarem sua percepção sobre a situação das mulheres no mundo em que
vivemos, comparando-a com anos atrás, em relação às suas avós e suas mães, e, em seguida,
foi perguntado suas percepções sobre as possíveis mudanças na situação dos homens.
Mudou muito
Cinco trabalhadoras consideraram que a situação das mulheres melhorou e dentre
alguns motivos elencaram: as mulheres têm sua independência e podem trabalhar; podem
escolher seus parceiros e não serem submissas. A2 agregou: “E... muitas delas, assim, vão à
luta, vão à luta, né, pra conseguir um ideal na vida. Tem que lutar, tem que vencer na vida,
sabe? Procurar trabalho digno, que corresponda à altura dela e ser alguém mesmo”.
A03 também apontou que as mulheres conseguiram mais status ao se inserirem em
profissões antes unicamente masculinas, elencou algumas delas e referiu uma importante
tendência observada no Brasil, ou seja, o crescimento das mulheres “chefes de família”:
motorista de caminhão, motorista de ônibus, e... metalúrgico, pedreiro... hoje
em dia nós tamos em todas as, quase todas as profissões, inclusive acho que em
todas né? Acho que... conquistamo muito os, nossos espaços. Igual,
antigamente era chefe e família, hoje tem a chefa né? A dona chefa. Eu
acho que é positivo.
73
A07 e A09 acreditavam que a situação melhorou e ambas destacaram a violência. A07
de uma forma positiva, dizendo que “A gente tem leis, só pra gente, entendeu”, e A09, que
viveu 5 anos com um parceiro violento, fez uma leitura crítica, apontando que não considera
que a violência contra as mulheres tenha aumentado, mas para ela a diferença é que agora
denunciam mais:
Acho que está melhor. Esta violência que a gente reclama não é porque está
mais, é porque hoje a gente reclama. Assim a mulher reclama, fala. Assim a
delegacia da mulher é muito falha. Não tem policial que vai lá tirar o homem lá
da casa, que fique na casa. Aí acontece o que você vê na TV, denunciou e
morreu. Mas hoje em dia tem assistente social, tem CRM (Centro de
Referência para Mulheres), tem estudo, tem profissões.
A08 apontou aspectos contraditórios comparando uma realidade geral à realidade da
comunidade e de sua experiência de vida, afirmando que “as mulheres estão mais resolvidas.
Não estão querendo casar. As meninas de hoje em dia querem estudar”, mas ressaltou que a
realidade que vivencia na comunidade é que “uns entram no tráfico outros fazem coisas
erradas para ter dinheiro”. A08 que já teve dois companheiros assassinados, fala para seu
atual companheiro: “O que importa é dignidade aí vou te tratar que nem um rei. Não adianta
estar com um homem cheio de dinheiro, mas dinheiro não é tudo.”
Melhorou... mas não muito
A01 começou a responder afirmando que observa muitas mudanças: “antigamente as
mulheres eram muito submissas, apanhavam e não davam queixa. Eu digo se você denunciar
vai conseguir a guarda de seus filhos, emprego”. Refletindo durante sua narrativa, ao falar
sobre a Lei Maria da Penha, apontou que “não funciona, quantas são assassinadas e eles
esperam ser assassinadas e eles não fazem nada”. Posteriormente, mencionou que as
“mulheres deram um pequeno salto, um saltinho, não um salto. Ficar lavando cueca de
marido, eu digo, eu não faço isso, que saia pelado. (...) Falta as mulheres correr atrás, é
comodismo”.
“Piorou porque essa parte feminista que a mulher conquistou”
A04 considerou que houve algumas melhoras, que as mulheres conquistaram
“algumas coisas que era, é... alguns tabus né, que a mulher não podia”, entretanto a seguir
destacou que:
74
Piorou porque essa parte feminista que a mulher conquistou, da mulher ter o
mesmo direito que o homem, isso na minha opinião, piorou por que? Tirou a
mulher do seio familiar, né, do convívio com os seus filhos, a qual, eu entendo
que a mulher, aliás os filhos, precisa muito da mãe, muito da presença da mãe e
essa revolução é, como é que se diz... desenvolvimento que teve na vida da
mulher atrapalhou muito o eixo familiar (...) Eu entendo que a família perdeu
muito, os filhos perderam e, consequentemente a mãe perdeu, os seus filho. Aí
eu acho que isso não vale a pena. Eu acho que é muito pior assim a mãe. Perde
em não trabalhar, mas ganha ali criando seus filhos, criando aquele elo e tá
com a sua família e você vai criar filhos fortes porque você vai ta ali presente,
eu entendo assim.
Nesta compreensão manifestada por A04 evidencia-se a ideologia construída em torno
do papel fundamental que tem a mulher na constituição da família monogâmica, tal como foi
apontado no capítulo 3, sobrepesando sobre ela todas as responsabilidades com os cuidados
da família, no qual a independência das mulheres e sua presença reduzida nos lares torna-se
signo de destruição da família.
“Algumas mulheres melhoraram e algumas mulheres se degradaram”
A05 e A06 destacaram algumas melhoras no tocante às mulheres imporem suas
vontades, seus desejos, como não “casar e morrer ao lado de um homem que ela não queria”,
diz A05 sobre sua mãe que foi “encarar a vida”. A05 também apontou os aspectos negativos
dessas escolhas que fazem as mulheres:
Essa geração de mulheres tinham que trabalhar muito pra sustentar os filhos
porque não tinham mais os maridos. Então os filhos muitas vezes foram
educados sozinhos. Esses filhos acabaram engravidando cedo e não tiveram
exemplo de família. Então quando você tem exemplo de uma coisa você não
pode viver essa coisa. E essa geração também, tá criando os filhos a deus-dará.
Acha que ter filho é ter um boneco.
Sem mencionar a fuga das responsabilidades que teriam os homens, pais desses filhos,
A05 mencionou que em alguns lugares as mulheres estariam em uma situação melhor,
entretanto “nas comunidades tá muito triste”, pois
algumas mulheres que acham que tudo na vida é diversão, não tem
responsabilidade alguma.(...) Elas confundiram liberdade sexual com liberdade
de sexualidade. (...) Liberdade sexual é ter direitos a certas coisas, é poder lutar
por certas coisas, pra ganhar tanto quanto o homem, conseguir chegar a certos
75
cargos, a ser aceita, a não ser vista como um objeto sexual. Muitas delas
gostam de ser vistas como objeto sexual, eu não acho que isso é legal, e tá na
moda. Eu sou um pouquinho moralista.
Neste mesmo sentido ressaltou A06, quando afirmou que apesar de ter melhorado,
“piorou na parte da privacidade”, pois as mulheres “estão muito fáceis, e isto está
prejudicando aquelas mulheres daquela classe que é mais elevada”, colocando, assim, uma
oposição e uma dificuldade criada para as mulheres “guerreira, trabalhadeira” pelas mulheres
“fáceis”, apontando que essas jogam “contra”. A06 terminou seu depoimento com uma forte
esperança de que a situação vai mudar: “Pelo que minha mãe contou, o pai dela não queria
que ela trabalhasse. Teve uma mudança, uma conquista muito grande. Acho que vai mudar
mais. Mas, se as mulheres guerreira lutar, vai mudar mais”.
E como você percebe a situação dos homens?
A situação dos homens na percepção da maioria das entrevistadas piorou. Para A04 os
homens não estão exercendo seus papéis de “homem”: “que ele é o provedor, ele é o protetor,
ele é o exemplo, e eu vejo que isso os homem ta perdendo. Ta ficando tudo nas costas das
mulher”. Evidencia-se, dessa forma, uma percepção que é realidade em todo o nosso país,
como foi apontado anteriormente.
“Não tiveram homens próximos pra mostra a eles o que era ser o sujeito homem”
A05 teceu uma percepção relacional, entre a situação dos homens e mulheres,
ressaltando que os homens, por “fazerem parte da geração de mulheres que tá sozinha eles
também não tem uma noção”, apontando que não tiveram exemplos de figuras masculinas
“dentro de casa pra mostra a eles o que era ser o sujeito homem”.
Neste item A05 destacou a falta de responsabilização que têm os homens – e mulheres
–, no cuidados com os filhos, apontando que “ter um filho não é só botar no mundo”. E
comparando os dias de hoje com décadas passadas, disse que:
Antigamente, um garoto engravidava uma garota e chamava a família pra
conversar e falava: “Agora vocês vão ter um filho e isso é sério”. Hoje em
dia uma menina de doze, treze anos que tá grávida e a mãe fala:“Ah! Tá
grávida!” E o menino não pensa em nenhum instante em assumir, tanto
quanto ela.
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Depende da mulher: mudar o homem ou optar e ficar só
A01 e A06 não elencaram mudanças referentes à situação dos homens. A01 relatou
que ainda “tem muita violência contra a mulher, dos antigos”, mas que dependeria da mulher
boa parte da mudança do homem, e indicou como aos poucos foi mudando seu marido,
impondo limites às “farras” em sua casa. A01 ressaltou que: “Se a mulher quiser ela muda o
homem”.
A06 não compreendia que houve muitas mudanças, mas que os homens somente
estariam aceitando a mulher no mercado de trabalho, destacando que “no cotidiano eles não
respeitam as mulheres. (...) Aquele homem cavalheiro, que sabia chegar, isto acabou. Acho
que tem muita mulher que aceita um homem qualquer”. Destacou também que mesmo com
essa aceitação das mulheres no trabalho os homens se consideram “mais no valor e na
autoridade”. Afirmou que as mulheres estão fazendo opções e que acreditava ser “melhor
ficar só do que [com] um companheiro que não seja amigo, companheiro. É melhor ficar só.
A maioria das minhas amigas são só.”
Perderam o lugar ou as mulheres os alcançaram?
Quatro trabalhadoras compreendiam que os homens estão perdendo algumas posições
(no mercado de trabalho) para as mulheres. A08, se baseando na realidade da comunidade,
destacou a falta de perspectiva de alguns jovens, em almejar um crescimento profissional, por
se apegarem a ideia de “ganhar dinheiro”.
A02 e A03 marcaram que houve pequenas mudanças, pois as mulheres estão
ocupando mais espaços, mais postos de trabalho e até assumindo tarefas outrora consideradas
“coisas de homem”. A02 comentou que os homens “acham negativo, pois parece que está
tomando o lugar deles em alguma área, né? Mas deve ser positivo, porque ali você tá
convivendo com a mulher, né, umas companheiras, tá olhando a boniteza da companheira e
tudo, né? De repente paquera alguma.”
A03 considerou que os homens estão “meio acuados”, pois estão perdendo seu status e
relatou reclamações de homens: “poxa, é, deixa isso aí pra mim fazer, isso é trabalho de
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homem”, ou seja, A03 observou que os homens estão reivindicando o seu papel na divisão
sexual do trabalho.
Piorou ...
Por fim, somente A09 destacou enfaticamente que a situação dos homens piorou.
Considerou que alguns imperativos sociais na construção do “ser homem”, como por exemplo
“homem não chora, não tem necessidades”, os tenham reprimido em função das exigências
sociais também construídas em torno do “ser homem” – não pode chorar e tampouco
demonstrar suas fraquezas, gerando, desse modo, uma “balança desequilibrada”.
Finda a apresentação da contextualização das trajetórias e histórias de vida, de
percepções sobre a família e o “ser mulher”, por fim, da percepção sobre situação das
mulheres e dos homens hoje, serão abordadas a seguir as percepções e depoimentos sobre o(s)
trabalho(s) remunerado(s) das entrevistadas.
4.5 PROFISSÃO: Agente Comunitária de Saúde
Com o objetivo de apreender as relações do trabalho assalariado das agentes
comunitárias de saúde com as questões de gênero, bem como a percepção das trabalhadoras
sobre essas, percorre-se neste tópico questões referentes às suas compreensões da dinâmica do
trabalho cotidiano que desempenham as ACS no exercício dessa função.
As vantagens e desvantagens em ser ACS...
A socialização de gênero em nossa sociedade molda os seres humanos homens e
mulheres para desenvolver papéis sociais, tal como já foi apontado anteriormente, no qual as
mulheres são educadas e educam para o desenvolvimento de atenção e cuidado com os outros.
Considerando essa construção histórica e social é que observa-se nos relatos das agentes
comunitárias de saúde essa marca de gênero. A maioria das ACS (7) apontou dentre as
vantagens do trabalho poder ajudar os usuários. Duas trabalhadoras apontaram estar perto de
casa como sendo a maior vantagem, o que também traz uma marca de gênero. Além disso,
também foi ressaltada a importância de ter a carteira de trabalho assinada, não precisar de
pegar ônibus para ir ao trabalho, dispor de certa flexibilidade e a criação de vínculos de
amizade com os usuários. A fala de A01 evidenciou essa marca de gênero ao apontar que a
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vantagem do trabalho de ACS é “ser conhecida, acolhida (...) eu me sinto assim minha
famílias eles, e eles minha família”.
Foi observada outra forte expressão de gênero nas respostas das ACS sobre as
vantagens deste trabalho, no fato da proximidade dos filhos constituir-se em uma vantagem
destacada, sobretudo para as trabalhadoras que são as “chefes de família”. A04, que trabalha
como ACS há 11, com algumas breves interrupções, relatou que:
(...) pessoalmente, por exemplo, o que eu acho de vantagem é que é perto da
minha casa, uma das vantagens, eu posso tá assim, conciliando a minha casa
com o trabalho. (...) Ta controlando filho, na época que eu trabalhei pela
primeira vez meus filhos era pequeno, então dava pra eu faze esse controle,
dava pra eu trabalha, dá conta do meu trabalho, vim em casa, vê como é que
tava, e muitas das vezes até bota um arroz no fogo.
A05 que é chefe de família e tem dois filhos pequenos, relatou que estar perto de
sua casa é uma vantagem de trabalhar como ACS, apontando também para um tipo de
situação – a violência social urbana – que se entrelaça à vida de homens e mulheres que
vivem ou trabalham em comunidades: “A gente tá perto dos filhos. (...) Se acontecer qualquer
coisa aqui a gente pode buscar nossos filhos, entendeu? É, o, tanto o posto quanto as creches
vivem no mesmo sistema: se acontecer qualquer coisa eles fecham.”
Com algumas exceções no tocante ao apontado pela maioria das entrevistadas, A03
destacou que a principal vantagem do trabalho de ACS é garantir o sustento de sua família e,
em segundo lugar, elencou que a partir desse trabalho pode conhecer os problemas da
comunidade: “a gente acaba ficando mais solidário com a comunidade, a gente fica sabendo
das coisas que tá acontecendo aqui”. Dentro da comunidade são diversas as situações e
condições de vida das pessoas e A03 compreendia que também é uma vantagem ter esse
conhecimento, conhecer as distintas realidades, ou seja, nas suas palavras: “se eu trabalhasse
fora, eu não sabia que aqui na Maré ainda tem fome. Se eu morasse em outro lugar. E aqui
dentro ainda tem fome”. Agregou a essa sua constatação uma visão crítica sobre essa
realidade, não culpando as próprias pessoas como responsáveis pela pobreza (algo muito
corriqueiro no senso comum alentado pelos grandes instrumentos midiáticos das classes
dominantes), mas apontando um viés político, quando diz que os “Políticos que só querem se
dar bem em cima das pessoas, entendeu? Você anda aqui nas ruas, nas principais, você vê
79
tudo muito bem. Mas se você começar a se deslocar lá pra dentro, você vai ver o total
descaso.”
Em comparação à população da comunidade, as e os ACS foram identificados por A08
como privilegiados em razão de sua categoria levar informações para a saúde, para a vida das
pessoas e, assim, serem alvo de retribuição, de manifestação de gratidão por ajudar. Por outro
lado, esse sentimento das/os ACS serem “privilegiados” em função de deterem
conhecimentos em saúde, pode despertar uma consciência crítica acerca da situação das
comunidades, levando-as/os a apontar a necessidade de políticas públicas educacionais para a
população, como se verá adiante.
Para A06, cujo sonho era ser ACS, ter um trabalho formal e carteira de trabalho
assinada foi o que apontou como vantagem. Aliado a isso agregou que o fato de saber estar
ajudando, estar trabalhando na área da saúde, propicia conciliar a necessidade de ter um
trabalho assalariado com a realização de algo que goste e ressaltou: “é bem diferente você
trabalhar como vendedora, e você trabalhar como ACS”. Evidencia-se também nesse relato
de A06 um (auto) reconhecimento do valor e da importância do trabalho de ACS.
No mesmo sentido, A09 destacou que “não pegar ônibus, não ter ninguém
controlando o tempo todo, a amizade com usuários. (...) Amor do ser humano, assim, você
percebe que você ama, e que você é amado”
O compromisso profissional e social que as trabalhadoras estabelecem com seus
usuários é também uma via de mão-dupla, em que a ACS, quando necessita, é ajudada pelos
usuários e por suas colegas, desvelando-se redes de solidariedade que transpassam (e são
essenciais para a população) os programas sociais e de saúde. O emocionante e autocrítico
relato de A09 demonstra essa solidariedade, bem como o profundo envolvimento percebido
por ela mesma, quando relatou que:
(...) eu tava falando ontem pra uma colega, eu tô com medo de quando aparecer
a oportunidade deu ir embora eu queira ficar devido à amizade e o carinho dos
usuários. Agora há pouco tempo eu operei, me trataram aqui igual a um bebe,
entendeu? Então é assim, a vantagem é essa, é o amor do ser humano mesmo,
que você assim, você ama e você percebe que você é amado. Eu tive a minha
mãe, e o único gesto que eu lembro de carinho que ela teve comigo foi quando
eu tive dengue hemorrágica ela passando, eu falo e dá uma sensação assim,
80
dela passando a mão no meu rosto, que eu passei três dias desacordada. Mas
cara, quando eu operei aqui, foi gente na minha casa fazer minha comida,
brigar pra eu não falar, botar esparadrapo na minha boca pra eu não rir, porque
eu fico rindo até nervosa, entendeu?
O morar onde trabalha, e trabalhar onde mora, revela um entrelaçamento de
necessidades, tais como: poder levar os filhos na escola, almoçar em casa e alimentar os
filhos, “estar sempre por perto”. Essa “facilidade”, no entanto, além de sobrecarregar as
mulheres com a dupla jornada, evidencia a injusta divisão sexual do trabalho, pois a dupla
jornada se estende não somente no tempo de trabalho após a jornada do trabalho assalariado,
mas também em intervalos de tempo durante essa jornada – por exemplo, tome-se as ACS que
cozinham durante o horário de almoço, período no qual deveriam se alimentar e descansar.
Em consonância ao apontado como vantagens em ser ACS, dentre as desvantagens no
trabalho a maioria das trabalhadoras (7) destacou a falta de resolutividade com que se
deparam diante dos problemas e demandas da população. Compreendendo e vivenciando de
perto uma ampla gama de situações e condições de vida e de saúde, as entrevistadas
expressaram um sentimento de impotência diante de dificuldades sociais que não podem
resolver, bem como em relação à falta de recursos e de médicos na Unidade de Saúde. A
sobrecarga do trabalho é reforçada pelo vínculo emocional que as trabalhadoras desenvolvem,
o que pode vir a se intensificar diante de situações-problemas em que as trabalhadoras não
podem oferecer uma saída, não podem ajudar, tal como demonstra o relato de A05 que,
quando indagada sobre as desvantagens, apontou “ser coisas que não podem resolver”.
Estimulada a relatar quais tipos de problemas não podiam ser resolvidos, narrou uma situação
dramática sobre a qual, ainda que tivesse conhecimento de que se constituía em grave prática
de violência, não poderia se pronunciar:
se a gente encontra uma situação que uma menina está sendo estuprada por um
parente próximo a gente não pode se envolver. Porque dependendo do que a
gente fizer a própria família se volta contra a menina. Ou dependendo do que a
gente falar pode ser... Eu pelo menos me sentiria culpada pelo resto da vida se
alguém perdesse a vida, onde nós moramos.
A forma velada na qual A05 descreveu a situação foi algo recorrente em diversas
entrevistas: ora eram empregadas frases com sujeitos ocultos, ora falas baixinhas, sempre que
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relatavam ou diziam algo relacionado às complexas relações de poder que se estabelecem nas
comunidades.
O comprometimento e envolvimento, tanto profissional quanto emocional, das agentes
comunitárias de saúde com as famílias que atendem, bem como as dificuldades enfrentadas no
dia-a-dia de trabalho, agudizam esse sentimento de impotência perante as distintas – e difíceis
– situações com as quais se defrontam. Nesse cenário, algumas ACS também apontaram como
uma desvantagem a falta de reconhecimento por parte dos gestores e dos órgãos
governamentais pelo trabalho que realizam e a falta de valorização dessa categoria
profissional. Aliado a essa falta de reconhecimento, também foi destacado que há um
desconhecimento acerca do trabalho que realizam por pessoas que, por um lado, veem desde
fora o trabalho de agente comunitário de saúde, e, por outro lado, contam com a possibilidade
de ter sua opinião considerada, como por exemplo os parlamentares e os gestores. No dizer de
A09: “falta de respeito, você ouve muita gente que não valoriza, que não conhece, e que tem
vez de opinar, elas poderiam estar aqui pra conhecer nosso trabalho, mas na verdade elas só
querem impor a visão delas(...)”. A09 agregou a isso a afirmação de que há um desgaste
emocional, “psicológico do agente de saúde, tem que ser muito, pra ele assim, muito firmado,
muito baseado na certeza de que vale a pena”.
A desvalorização da profissão de ACS foi apontada com o duplo sentido de
desconhecimento e não reconhecimento do trabalho que realizam pelos governos e gestões
públicas (e privadas). Essa compreensão, comum a todas as ACS entrevistadas, ainda que em
diferentes hierarquias valorativas, é também identificada por A04 que, no entanto,
acrescentou à falta de reconhecimento da profissão o baixo salário que recebem. A04
relacionou e justificou sua compreensão do baixo salário pago aos ACS em decorrência de
que, por morarem na comunidade, as/os ACS desempenham atividades relativas ao trabalho
mesmo fora de sua jornada laboral. A seguir encontra-se a reprodução do depoimento de A04,
no qual descreveu que a jornada do ACS, em função desse trabalhador morar na comunidade,
se estende no tempo:
É, o... agente comunitário de saúde ele trabalha muito, ele não é agente
somente é, (...) de oito às cinco (...). É vinte e quatro à quarenta e oito horas de
trabalho, então nunca deixa de trabalhar, se eu vô no mercado, se eu vô numa
82
festa, na onde eu estiver, se eu to passando na rua, se eu vô na padaria e enfim,
(...) então acho assim, que a desvantagem também, é...o salário, né?
Aliado à ocorrência de serem ACS não somente durante o horário de trabalho, A04
fez também comparações sobre a relação do seu trabalho e o salário recebido por outros
profissionais da Unidade de Saúde, os quais findado seu horário de trabalho dele podem se
desligar, pois não vivem ali na comunidade. Desenvolve uma percepção crítica sobre a
diferenciação em relação aos demais profissionais das equipes do PSF e dos postos de saúde,
destacando também a partir do que percebe e vivencia a existência de uma hierarquia
profissional:
Porque, há uma doação, né, há um esforço e ganhamos pouco e pessoas assim,
como, eu vejo assim, (...) a gente assim ganhando é, um salário mínimo pra dá
assim, o nosso sangue e, e as pessoas que ganham quatro mil, tá ganhando
quatro mil pra trabalhar de sete às quatro, trabalhar entre aspas, depois vai
embora, entra no seu carrinho e a gente continua trabalhando, né?
Representando, vestindo a camisa do PSF, do PACS quando era antigamente e
ali não tendo esse reconhecimento, que inclusive a nossa profissão ainda não é
reconhecida, outra desvantagem, entendeu?
No tocante à falta de reconhecimento apontada como uma das desvantagens em ser
ACS, e diante da natureza coletiva do próprio trabalho, A07 fez uma conexão com a falta de
estrutura material, com aspectos negativos das relações interpessoais e profissionais no local
em que trabalha e sinalizou ainda para a hierarquia profissional, embora enfatizando gostar do
trabalho “em si”. Depois de indagar-se “(...) porque nem tudo depende só de você, né?”,
afirmou:
(...) o que é ruim é a estrutura, porque, às vezes não tem ficha pra você fazer
cadastro, certas dificuldades assim, que desestimulam, entendeu? A ignorância
às vezes de certos funcionários aqui dentro, chega e num fala direito. Sabe, o
ACS assim, é muito menosprezado, se fosse mais reconhecido, seria melhor,
porque em si o trabalho não é ruim, só que a gente não é reconhecido.
Quando foi estimulada a discorrer sobre quais possíveis desvantagens vê enquanto
trabalhadora, A07 afirmou não ter queixas, exceto pelo salário baixo. Apontou que gostaria de
um emprego melhor não pelas designações que o trabalho como ACS lhe coloca, mas pela
remuneração. Sendo a única trabalhadora entrevistada que não tinha filhos, refletiu sobre sua
83
condição de vida atual e uma futura, dizendo que para ela que está solteira e somente ajuda
sua mãe o salário é suficiente, mas pensa que “(...) quando eu for ter família e tal, aí vai ficar
mais difícil, entendeu, com o salário de ACS”. Essa reflexão que fez A07 é a realidade de
todas as outras entrevistadas.
“Só de saúde não dá pra viver”
Diante da divisão social e sexual do trabalho no capitalismo, na qual se
desenvolvem nichos de atividades predominantemente de mulheres, observou-se entre as
entrevistadas que as atividades remuneradas “extras” que desenvolvem constituem-se em uma
jornada de trabalho triplamente de mulher, associadas ao papel social designado para as
mulheres. Como foi apontado anteriormente, cinco trabalhadoras são chefes de suas famílias e
arcam sozinhas com o cuidado e sustento dos seus filhos. Dessas, três relataram possuir outra
fonte de renda, além de A08 que, quando estava solteira e pagava aluguel, também tinha outra
fonte de renda, uma vez que trabalhava em festas de crianças.
A06, A05 e A09 possuíam outras fontes de renda, para complementar o salário,
trabalhando nos finais de semana. No caso de A06, além de estudar para completar o ensino
médio, trabalhava nos finais de semana cuidando de idosos e crianças e, além disso, também
fazia faxina e tinha um “bico” todas as quintas-feiras à noite. Já A05 fazia faxinas aos finais
de semana. A09 é massoterapeuta e também realizava trabalhos voluntários na Igreja que
frequenta. Diante da compreensão que o trabalho de ACS é um trabalho precário, como
apontado no capítulo 1, algumas trabalhadoras se viam compelidas a buscarem outras fontes
de renda, desvelando-se jornadas triplamente femininas, desde aquelas em que as
entrevistadas desenvolvem atividades remuneradas (uma ou mais) até as não-remuneradas na
esfera da reprodução. Essa percepção da precariedade é apontada por A06 que, ao discorrer
sobre suas fontes de renda alternativas ao trabalho de ACS, afirmou: “Porque só de saúde não
dá pra viver.”
Buscando a apreensão de uma consciência crítica sobre um dos aspectos da
precarização do trabalho as entrevistadas foram estimuladas a refletir e relatar se o seu salário
vigente corresponderia ao trabalho que fazem como ACS e qual deveria ser, então, na opinião
delas, o seu salário de acordo com o trabalho e a jornada diária.
84
Identificou-se que quatro entrevistadas (A02, A05, A09 e A07) se basearam na
realidade das comunidades em que vivem para discorrer sobre essa relação, tecendo
comparações com o salário mínimo e com as condições de trabalho e de vida percebidas na
comunidade. Ainda que em algum momento A02, A09 e A07 tenham afirmado que
consideravam o salário baixo, foi identificado nas suas falas uma naturalização da
precarização do trabalho. Para destacar essa ausência de uma consciência crítica identificou-
se distintos níveis de compreensão de A02, A09 e A07 abaixo sinalizados.
A02, apesar de inicialmente expressar conformidade com a remuneração por seu
trabalho comparando-a com o salário de outras pessoas, expressou no desenvolvimento de sua
fala que seria necessário um salário maior do que o atual. Relatou que pelo fato de os ACS
serem “pessoas simples”, quando ganhava mais do que o salário mínimo já era algo que lhe
deixava “mais alegrinha”, mas, “se pudesse ser um salário melhor de, sei lá, de mil reais, sei
lá, alguma coisa assim, era ótimo, né? Porque, nunca é demais, né, a gente poder ganhar
bem melhor, né?”.
A09 afirmou achar o salário baixo, entretanto considera que o/a ACS é privilegiada/o
por trabalhar perto de casa e ter flexibilidade (por exemplo: em um dia de chuva as tarefas
podem ser realizadas dentro do posto de saúde e as visitas domiciliares agendadas para outro
dia). E concluiu em relação ao salário: “(...) se ele chegasse a mil reais tava bom. Tendeu?”.
A07 negou que o salário corresponda às reais tarefas desenvolvidas, porém, em uma
perspectiva conformista, afirmou que o salário atual dos ACS seria justo se somente fosse
realizado o trabalho de ACS, porque “o trabalho num é pesado, então a gente num pode
querer ganhar aquela fortuna né.” Entretanto, esse depoimento de A07 revelou-se
contraditório, haja vista sua afirmação anterior de que o salário não daria para seu sustento
caso tivesse sua própria família. Isso desnuda compreensões conflitantes que encontram
pouco eco ou embasamento em uma formulação consciente da contradição entre a
necessidade enquanto trabalhadora e a remuneração recebida pelo trabalho.
Apesar de terem recebido um aumento próximo à época da realização das entrevistas,
somente A01 e A03 expressaram em suas falas uma satisfação imediata em relação ao salário
atual. A03 disse que “(...) agora o salário não tá injusto não. Porque foi remunerado,
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entendeu, e assim, o que deixava muito a desejar também era os atrasos, né... agora parece
que vai normalizar”.
Em contraposição a essa naturalização da precarização do trabalho, três trabalhadoras,
A04, A06 e A08 levaram em consideração a importância do trabalho de ACS ao tecerem uma
comparação em relação ao salário que recebem e o trabalho que desenvolvem. A08 ressaltou a
importância do trabalho, pois “a gente tem que lidar como um todo, com a pessoa, vai até a
casa da pessoa, a gente acolhe aquela pessoa (...) depois vai pegando afinidade, e vai
descobrindo outras coisas”. A08 considerou que, pelo fato de ser muito importante a
profissão de ACS, deveriam ganhar pelo menos 2 salários mínimos, enquanto A04 e A06
achavam que deveriam receber R$1.500 e R$2.000, respectivamente. Ainda que essas três
trabalhadoras tenham apontando a necessidade de um salário melhor, não se identificou uma
consciência crítica mais ampla sobre a questão salarial.
De se destacar que somente uma entrevistada desenvolveu um pensamento crítico em
relação à precarização do trabalho. Partindo da comparação de sua remuneração com o salário
mínimo, A05 ressaltou que “pro salário normal” acha “bem razoável” e, desenvolvendo uma
reflexão sobre o próprio salário mínimo, afirmou: “Mas eu acho que o salário mínimo deveria
ser maior para todos”. Explicando sua compreensão de que o salário tido como “normal”, o
salário mínimo, deveria ser maior para todos, afirmou que:
(...) o negócio do mínimo, botando num lápis você... O preço do aluguel, água,
luz, telefone, uma família de dois filhos, marido e mulher pra viver na mesma
casa. Eu acho que o salário mínimo não daria pra isso.
Essa compreensão desenvolvida por A05 se aproxima da formulação do salário
mínimo necessário calculado pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas
(DIEESE)24
, com base nos preceitos constitucionais, porém o salário mínimo nominal
24 “Salário mínimo necessário: Salário mínimo de acordo com o preceito constitucional – “salário mínimo fixado
em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado
periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim” (Constituição
da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). Foi considerado em
cada mês o maior valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de dois adultos e
duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto. Ponderando-se o gasto familiar, chegamos
ao salário mínimo necessário” (DIEESE, 2010).
86
equivalia a aproximadamente ¼ do salário mínimo necessário levando em consideração o
calculo para o mês de dezembro de 201025
.
“Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”
A divisão sexual do trabalho é um dos aspectos que contribui para que as mulheres em
nossa sociedade encontrem diversos entraves no tocante à organização político-sindical,
enfim, para tomar para si a luta coletiva por melhores condições de trabalho e de vida.
Buscando apreender essa expressão da divisão sexual do trabalho e mesmo experiências que
pudessem apontar para uma superação desses obstáculos, estimulamos as ACS entrevistadas a
apresentarem relatos sobre sua participação em algum tipo de manifestação, bem como sobre
sua participação em agremiações, organizações ou sindicatos. Nesse sentido, quatro ACS
relataram ter participado de uma passeata realizada em 2008 cujas reivindicações eram
aumento salarial e regulamentação da profissão (exigindo a regulamentação da Lei nº. 11.
350, de 5 de outubro de 2006)26
.
Dentre as outras cinco ACS que relataram não ter participado de nenhuma
manifestação, passeata ou processo de luta, identificou-se na fala de A06 e A07 mais um
aspecto que dificulta a organização político-sindical: ao explicitar os motivos pelos quais não
participaram da manifestação dos ACS elas disseram que não foram liberadas do trabalho.
Diversas questões se entrelaçam na construção desse pensamento pouco crítico – haveria de
ocorrer algum tipo de liberação por parte das suas respectivas chefias para que pudessem lutar
por seus direitos –, sendo uma delas a instabilidade do vínculo trabalhista (e o temor pela
perda do emprego), e a outra a ausência de consciência coletiva crítica que aponte para a
compreensão da importância da organização enquanto trabalhadoras exatamente no sentido de
lutar por melhores condições de trabalho e por sua estabilidade empregatícia.
25 Segundo o cálculo do DIEESE em dezembro de 2010 o valor do salário mínimo nominal era R$ 510,00
enquanto o salário mínimo necessário era R$ 2.227,53. 26
Manifestação na Av. Presidente Vargas complica trânsito no centro. O Globo online. 18/06/2008. Disponível
em
http://oglobo.globo.com/rio/transito/mat/2008/06/18/manifestacao_na_presidente_vargas_complica_transito_no_
centro-546854095.asp
87
Em relação a essa instabilidade e temor pela perda do emprego, A02, que informou ter
participado da manifestação, pois “nesse dia, da passeata, a gente tomou força e fomos”,
sinalizou haver um temor coletivo em relação à participação política dos ACS ao afirmar:
Era sempre muito difícil toda vez que tinha, assim, uma passeata pra
reivindicar coisas melhores pra gente. Sempre davam alguma coisa assim:
“Melhor vocês não irem, se não vocês vão ser mandados embora”, né? Quer
dizer, a gente ficava meio que com medo.
Um relato chamou a atenção para o fato de que, diferentemente das demais
entrevistadas, o temor apontado por A09 não se articulava com as relações de trabalho, mas
sim com a violência policial, ou seja, contraditoriamente explicou sua não participação na luta
das/os ACS enquanto trabalhadora, afirmando, de um lado, que ajudava a população na igreja
que freqüenta e, de outro lado, manifestou um ponto de vista crítico em relação à violência
policial que ocorre muitas vezes em manifestações políticas:
Não, não. Sempre tive medo, entendeu? (...) Eu posso planejar, ajudar aqui no
posto, quando tava tendo a epidemia de dengue, acho que foi em 2008, né? (...)
Eu participo, mas assim, participar de um protesto em via pública, eu tenho
medo por causa da violência policial, tendeu? Você tá reivindicando um direito
seu e ainda vai tomar pancada, como se fosse um lixo.
Apesar de quatro trabalhadoras terem relatado participar da manifestação dos ACS,
essa se tratou de uma participação pontual, haja vista que o engajamento político de caráter
mais permanente na participação sindical foi raro entre as entrevistadas, como abordaremos a
seguir.
No tocante à organização sindical apenas duas ACS, A01 e A04, relataram experiência
de participação anterior, em algum momento de suas vidas, em sindicato/associação. Sete das
trabalhadoras entrevistadas relataram não participar e não possuir experiência de participação
anterior em sindicato/associação.
Três trabalhadoras, A03, A07 e A06, relataram não participar do sindicato/associação
por falta de tempo.
Revelou-se, assim, que a socialização de gênero, o acúmulo do trabalho assalariado, o
trabalho doméstico não-remunerado e o cuidado com os filhos ou, ainda, mesmo o estudo
88
como no caso de A06 e A07, impactam e constituem-se em percalços no sentido da
organização político-sindical das ACS. Destaca-se o relato de A06, que além de estudar a
noite e ter outros trabalhos para complementar o salário que recebe como ACS, ressaltou ter
vontade de poder se engajar politicamente:
Bom, do meu ponto de vista assim, tempo, não tenho tempo né. (...) eu saio
daqui vou pra escola. Tem dia que eu saio daqui e vou fazer um bico à noite.
Eu falto na quinta, porque na quinta eu faço um bico a noite, coisa rápida. Eu
gostaria sabe, de me envolver mais. Mas por enquanto. A vida é assim né, tem
que abrir mão de uma coisa, pra pegar outra. Ou eu vou sustentar a minha casa
né, e correr atrás de melhorar a minha situação, ou eu, vou me dedicar aos
estudos. A vida não é fácil. Mas se o meu salário fosse melhor né, aí quem sabe
eu poderia (...) quem sabe um dia.
Duas trabalhadoras, A08 e A09, apontaram não ter participação político-sindical,
entretanto, destacaram suas ações religiosas. A09 ao ser estimulada a discorrer sobre sua
participação em alguma agremiação, organização ou sindicato, indagou à entrevistadora se “a
igreja vale?” e discorreu sobre a ação social e assistencial que desenvolve junto à Igreja
Batista na realização de bazares e mutirões para arrecadação de donativos, desnudando, desse
modo, o aspecto da socialização de gênero, a partir do qual as mulheres desenvolvem um forte
sentimento de atenção e cuidado com os outros, o que, por outro lado, pode ser utilizado para
suprir a ausência de políticas públicas no âmbito da assistência social à população.
Dentre as duas trabalhadoras que relataram participar do sindicato/associação, foi
identificado que somente A01 participava mais sistematicamente, pois era vice-representante
das/os ACS em sua unidade e relatou estar sempre em contato com os diretores da Associação
Municipal de Agentes Comunitários de Saúde – AMACS-RJ. A04, por sua vez, disse somente
ter participado da fundação do sindicato das/os ACS e manifestou ter dificuldades no tocante
à organização sindical devido a pouca disseminação da informação sobre o sindicato em seu
local de trabalho.
Qualificação ou ‘vocação’?
Buscando explorar os aspectos da socialização de gênero que qualificam as mulheres
para o trabalho, perguntou-se para as ACS como foi que adquiriram o conhecimento
necessário para desenvolverem o seu trabalho. Seis trabalhadoras relataram ter frequentado
89
cursos, capacitações ou cursos de formação. Três trabalhadoras disseram ter aprendido “na
prática”, no dia-a-dia do trabalho, com outras colegas. Nesse ponto, observou-se não haver
uma associação direta entre a qualificação profissional e o trabalho cotidiano das mulheres
nas tarefas reprodutivas, evidenciando-se uma naturalização da ideologia de gênero. Uma
exceção relativa – pois não houve associação de forma direta –, que se aproximaria dessa
compreensão, foi o relato de A09, a qual resgatou sua experiência anterior de professora como
qualificação para desenvolver o trabalho de ACS, quando apontou que seu conhecimento:
foi adquirido no dia-a-dia, e eu assim, eu sempre tive facilidade de me
comunicar, entendeu? Então quando eu vim pra cá, eu só vim assim,
completando o que eu já tinha, um pouquinho da minha experiência de
professora, um pouquinho da minha curiosidade, usando muito, como é que
fala? As pessoas falam que eu sou muito persuasiva (...).eu não tenho medo de
perguntar, eu não tenho medo de dizer que eu não sei, eu quero aprender, eu
sou curiosa, as vezes eu sou até chata, entendeu?
Perguntadas se a qualificação das ACS era reconhecida pela equipe, sete das
trabalhadoras responderam positivamente, tal como destaca A01: “Reconhece, porque sempre
vem em cima. Até o próprio enfermeiro, vem tirar alguma dúvida (...)”. Identificou-se,
entretanto, que todas as respostas, positivas e negativas, em relação ao reconhecimento da
qualificação pela equipe, expressaram que a qualificação das mulheres para o trabalho de
cuidado é uma qualificação importante para o desenvolvimento do trabalho de ACS, tal como
relatou A04:
porque, inclusive a minha supervisora ela fez, ela até me corrigiu, porque assim
eu me envolvo tanto né, porque eu gosto, eu faço, ser agente de saúde pra mim,
lidar com pessoas, ajudar pessoas, eu gosto, tá dentro de mim que me faz muito
bem (...) Então ela até às vezes me corrige, “você dá muita confiança, você não
pode fazer isso, eles também tem que aprender, tal”, então eu me envolvo, eu
entendo assim, não que eu sou melhor, mas que eu faço por amor.
A02 e A06 foram as duas trabalhadoras que responderam que sua qualificação não era
reconhecida pela equipe de trabalho. A02 afirmou que “Tamos muito desgastado mesmo. E
vâmo ver daqui pra frente como é que vai ser agora. Tomara que sim, tomara que a gente
tenha bastante reconhecimento nessa capacitação da gente, né?” e, com esperança de que
haverá melhorias, destacou em seu relato que também as ACS realizam trabalho dentro da
unidade de saúde muito além do trabalho prescrito, no qual as ACS chegam até mesmo a
90
verificar pressão e glicemia de pacientes, “Porque eu mesma, olha, eu sou uma Agente de
Saúde aqui que aceito verificar pressão, glicemia, sabe?”, finalizou A02.
Já A06 compreende que sua qualificação não era reconhecida pela equipe e diz
porque:
(...) eu causo muita polêmica. Eu sou aquela que mexe lá dentro, eu sou a que
trabalha, a que gosta de puxar o saco, a que os clientes vem procurar, a que os
clientes não vem se queixar que eu não estou trabalhando, tendeu? E isso,
assim, causa uma polêmica, eu não sou reconhecida por isso. Assim, se eu não
fizesse o meu trabalho estava tudo bem.
Quando perguntadas se sua qualificação era reconhecida pela comunidade seis
entrevistadas afirmaram serem reconhecidas e três trabalhadoras, A03, A04 e A05, frisaram
que o reconhecimento era contraditório, pois contavam com o reconhecimento de algumas
pessoas e de outras não.
Remarcando a compreensão do trabalho de ACS como um/a mediador/a entre a
população e o serviço de saúde, A01 destacou, ao afirmar que sua qualificação é reconhecida
pela comunidade, que seu
trabalho aqui é a prevenção, então, ‘já tô te avisando, seu pai é diabético, sua
mãe, já tem hanseníase, ó, então tô te passando a realidade’. A gente tem que
jogar isso sabe, falar a linguagem dele, num vem falar muito, é, linguagem,
técnica, que num funciona não. Tem que falar a linguagem popular mesmo.
Identificou-se que esse reconhecimento por parte da comunidade acerca da
qualificação e do trabalho desenvolvido pelas ACS, também se constitui e se apóia em um
forte comprometimento e envolvimento das trabalhadoras com a comunidade, o que é
destacado por A06 e A09, ao afirmarem que só continuam neste trabalho pelo reconhecimento
da comunidade, ou seja, pelos usuários.
Já A03, A04 e A05, que apontaram ser contraditório o reconhecimento da comunidade
em relação ao trabalho das ACS, destacaram que em situações diversas, quando as ACS não
podem resolver determinadas questões, os usuários ficam insatisfeitos. A05 discorrendo sobre
sua compreensão da contraditoriedade, ressaltou que também há desconhecimento da
91
comunidade em relação ao que é o trabalho de ACS e sobre o PSF (ou ESF). A05, ao
sinalizar, ainda que metaforicamente, para a compreensão de que o trabalho de ACS é um
trabalho coletivo, porém como muitas vezes emergem situações de trabalho para as ACS
mesmo fora da área que é de sua responsabilidade, afirmou: “A gente fica triste com certas
coisas. Mas não é um trabalho perfeito, né? São vários braços, um trabalha, mas às vezes o
outro fica meio parado”.
Agente Comunitária/o de Saúde: homem e mulher tem diferença?
A maioria das entrevistadas (7) ao serem estimuladas a relatar se vêem diferença no
trabalho realizado pelo ACS que é homem e pela ACS que é mulher, disseram não achar que
existam diferenças entre o trabalho do ACS homem e da ACS mulher. Entretanto, mesmo
considerando, a princípio, que não hajam diferenças, a pergunta levou a que refletissem e,
nesse processo de pensar e repensar o trabalho, mesmo tendo afirmando que ACS homens e
mulheres na prática fazem o mesmo trabalho, A03, expressando uma naturalização da
ideologia de gênero e a divisão binária construída socialmente – mulher igual (=) emoção
versus homem igual (=) razão –, diz que:
A não ser quando você pega aqueles casos, assim, que você tem que dar mais
assistência... né, a mulher é mais emotiva, entendeu, ela vai dar mais uma, uma
atenção.
E o homem?
O homem é mais com a razão, né. Então assim, eles são poucos, né. São...a
primeira vez que eu to trabalhando com ACS homem. E assim, vem gente
mais, é... eles ficam mais com a parte burocrática né, e a gente fica mais com o
atendimento, entendeu?
Já A08, apesar de ter afirmado inicialmente não ver diferença entre o trabalho
desenvolvido pela ACS mulher e o ACS homem, no decorrer de sua fala, ao ressaltar que é
“muito profissional”, “muito meio que igual”, faz uma inflexão na qual diz que talvez o
carinho seja diferente, também expressando com destaque uma naturalização da ideologia de
gênero quando aponta que “...o homem é o homem né, mulher é mais mãe, mais delicada,
mais atenciosa né assim né”.
92
De igual modo, A01 afirmou a princípio não ver diferença entre o trabalho de
mulheres e homens ACS, porém, ao pensar sobre algumas situações que se colocam no dia-a-
dia do trabalho, registrou que a usuária se sente mais à vontade para tratar de alguns temas
com as ACS mulheres do que com os ACS homens. Fazendo uma reflexão sob o ponto de
vista do ACS homem em relação a uma usuária, A01 também afirmou a que o ACS homem
precisa ter mais cuidados, pensar bem nas palavras e nas orientações “porque ele não sabe
qual vai ser o comportamento daquela usuária, em ele ser um homem. De repente ele vai
falar alguma coisa, ela já vai achar que é outra totalmente, pode fazer confusão, tendeu?”.
A relação apontada anteriormente, que se traduziria no fato das mulheres usuárias se
sentirem mais à vontade para falar sobre determinados temas com outras mulheres (ACS), foi
destacada no depoimento de A04 e revela duplamente um relevante aspecto do trabalho de
ACS em suas marcas e atribuições de gênero, mas evidencia também para algo muito
importante para a promoção da saúde das mulheres:
...os ACS trabalha muito mais com as mulheres, porque é as mulheres que
ficam em casa, né, os que procuram mais, né, então, tem coisa que a mulher
fala pra, pro ACS mulher que ela não tem coragem de falar pro ACS homem.
(....) Por exemplo, (...) uma vez de uma senhora que ela não fazia preventivo
porque ela tinha vergonha, ela tinha um caroço na mama, e ela também tinha
vergonha de mostrar, então isso foi trabalhada, através da, do que eu aprendi,
ali, até no, como eu falei desse grupo de, de câncer de mama, tal, então eu
ensinei a ela, ela encontrou, ai eu expliquei pra ela a necessidade tal, do, desse
planejamento, de fazer o papa-nicolau, então aí ela se abriu, se sentiu segura,
falou que se não fosse médico homem que ela faria, expliquei a ela como é que
era e que aquela pessoa que ta ali estudou, ta cansada de ver aquelas parte,
conhece por dentro e por fora e assim eu consegui conquistar a confiança pra
ela ir fazer o... o preventivo. Então, a vergonha, a timidez daquela pessoa com
certeza ela não vai abrir pra um ACS homem, entendeu?
A02, A05 e A09 relataram não ver diferença. A09 não falou sobre a questão,
declarando não conversar sobre os casos com os colegas ACS homens em função do sigilo
garantido aos usuários e suas famílias. A05 afirmou categoricamente não ver diferença, e
falou elogiosamente do colega homem, dizendo que “as usuárias dele tem uma dependência
dele muito grande. As velhinhas principalmente”. A02 analisou a situação de forma bem
parecida a A05: depois de ressalvar que apesar de que no começo ter sido um pouco diferente,
93
concluiu, em relação aos usuários, que agora “eles tão tendo mais confiança até mesmo nos
ACSs homens”.
A preferência dos usuários: ACS homem ou ACS mulher?
Ao perguntar se as trabalhadoras acham que os usuários veriam diferenciação entre o
trabalho do ACS homem e da ACS mulher, cinco entrevistadas mencionaram exemplos ou
situações, sinalizando positivamente quanto a essa questão. Destaca-se o depoimento de A05,
no qual é evidenciada uma compreensão reflexiva sobre a pergunta colocada: são abordados
diversos aspectos de gênero sobre as profissionais, sobre as formas de organização social,
sobre o comportamento dos adolescentes e, além disso, A05 trata de uma questão de grande
relevância que buscamos identificar acerca das marcas de gênero do trabalho de ACS e a
relação sobre a qualificação para o trabalho de cuidado a partir da socialização de gênero:
A mulher normalmente, assim, culturalmente ela é mais acolhedora, né? Mas o
trabalho dos homens aqui também são muito bons, mas só tem dois. Mas a
mulher normalmente ela é mais acolhedora quando vai chegar. Normalmente
quem trabalha é o homem, quem fica em casa é a mulher. Normalmente aquela
idosa que fica sozinha no final da vida é mulher. A adolescente... Normalmente
os meninos não falam muito os problemas, as meninas falam mais. Pra se
aproximar de uma mulher, de outra mulher, é mais fácil do que você se
aproximar de um homem. Isso eu acho. O trabalho de agente comunitário é
uma coisa social, é uma coisa maternal às vezes. A gente tem que ter o
cuidado às vezes com alguns usuários...é quase que tomar conta. Controlar
quando vem, se vem e buscar em casa. Coisa que não ensinam muito nos
livros, mas que a gente aprende na prática.
Por outro lado, A06 em seu relato evidenciou o preconceito que sofre em sua
comunidade por ser solteira ou, conforme disse, acredita ser “um pouco visada”, o que a leva
a afirmar que se fosse homem não sofreria esse preconceito e, ao final, destacar
assertivamente que, apesar dessa dificuldade que encontra, é preciso romper com isso:
Eu acho que se eu fosse um homem, que vive só, eu teria mais facilidade de
encarar, de mostrar com outros olhos o meu trabalho (...) Pela minha
autoridade masculina. (...) Mas pra mim num me agrada não, tendeu. Eu acho
que a mulher tem que quebrar os obstáculos da sociedade.
94
A01, A02 e A07 mencionaram não enxergar diferença em relação à percepção dos
usuários, pois nunca se ouviu reclamação sobre essa questão e pelo fato de os ACS homens
terem conquistado os usuários. Já A09 afirmou não saber. Destaca-se, no depoimento de A01
sobre essa questão, trecho em que afirma que os usuários “Vêem todos como profissionais.
Vêem todos como profissionais. Tendeu. Nesse ponto aí, eles vêem todos como profissionais
mesmo”.
Ser ACS e mulher: influencia positiva ou negativamente no cotidiano de trabalho?
Quatro trabalhadoras, A01, A02, A03 e A09 relataram nunca terem passado situações
no trabalho em que o fato de ser mulher tenha influenciado em aspectos positivos ou
negativos. Já A04 e A06 trouxeram relatos sobre aspectos positivos no trabalho. A04,
apontando o fato das mulheres se abrirem mais com outras mulheres, buscarem pontos de
apoio, e dos homens se sentirem mais à vontade com outros homens: “Creio que ele como
homem já iria abrir prum agente de saúde homem.”
Nunca com elas: estratégias de prevenção de situações adversas
Mesmo não apontando aspectos positivos ou negativos que já tenham vivenciado, A07
e A08 narraram suas estratégias de prevenção de situações adversas (ser vítima, ou estar em
uma situação em que se torne vulnerável, de algum tipo de violência na realização de visita
domiciliar – VD). A seguir o relato de A07 que ilustrou como ela aborda essas situações:
Não, às vezes tem certas casas que eu não gosto de ir sozinha, aí aquela casa ali
né, ai vai uma amiga, uma outra ACS, porque às vezes ou é área de risco né,
ainda mais no lugar que a gente mora, aí a gente conversa com o enfermeiro,
que até indo duas ACS mulher, num dá, fica chato né, porque tem prédio
mesmo, que só mora, menino de, do movimento e tal, a gente explica a
situação pra enfermeira, tal. Às vezes é necessário ir né, porque não mora só
pessoas..., então tem que ir lá, nas outras casas, aí só isso, tem certas casas que
é mais difícil o acesso, aí sendo mulher fica mais fácil, porque às vezes ou é
homem sozinho, assim, nunca aconteceu comigo, mas já, tem pessoas que
assim às vezes dá em cima, coisa do tipo e tal, mas comigo nunca aconteceu.
Já A06 relatou ter passado por uma situação em seus primeiros meses de trabalho, em
que:
95
(...) eu cheguei pra faze uma VD, é uma senhora que não tá comigo mais, uma
senhora de 80, tava com 80 anos. Acamada. Eu cheguei lá, não sabia né, que
era minha primeira VD lá, entrei lá pra fazer a VD, quando eu entrei ele
trancou a porta. (..) A intenção dele era fazer alguma coisa comigo. (...) Desde
então, casa de uma pessoa só assim, eu não entro mais só. (...) só com
enfermeiro, técnico, aí vou e entro. Graças a deus agora só tenho uma pessoa
que mora só. Mas aprendi muito.
Se pudesse...o que mudaria no seu trabalho?
Para finalizar esse eixo temático foi perguntado para as ACS o que elas mudariam no
seu trabalho se pudessem fazê-lo. As respostas foram as mais diversas, evidenciando muitos
percalços a serem superados, cuja resolução ou melhoria seria mais bem pensada ao dar voz a
essas trabalhadoras, que muito tem a contribuir, não somente quanto ao fato de serem
conhecedoras das insuficiências, dificuldades e necessidades, mas sim como sujeitos ativos na
reflexão e elaboração que permitam melhorias e superação das dificuldades.
Melhorias para o atendimento ao usuário
Desnudando a rotatividade do profissional médico em sua equipe, A01 destacou que
quando “tem um médico na nossa equipe, tudo é mais fácil, você vai pra rua, tem dois dias da
semana que eles fazem visita domiciliar, ou seja, aquelas pessoas acamadas, que não tem
acesso pra, pra vim a unidade (...)”. A01 fez um elogio à médica que trabalhou em sua equipe
e informou que ela fazia visitas domiciliares.
A03 enfatizou que uma forma de melhorar o atendimento seria com a contratação de
médicos da própria comunidade, além da necessidade de qualificação profissional, pois “tem
pessoas que não sabem lidar com o público e isso vai, é...inibindo também eles de
freqüentarem mais, entendeu, tinha que ter mais informação, mais diálogo na... com eles,
mais paciência [com os usuários]”.
No mesmo sentido apontado acima, sobre a contratação de profissional que vive na
própria comunidade, A04 destacou que mudaria a forma de contratação dos outros
profissionais da equipe, aos quais não são exigidos, igual às ACS, que residam na localidade
em que trabalham, e apontou que na comunidade também existem enfermeiros, técnicos. A04
nesse relato fez uma comparação com o trabalho desenvolvido pelas/os ACS e disse acreditar
96
que o trabalho desses outros profissionais seria muito mais qualificado se também fossem
residentes, pois “quem mora na comunidade precisa dum emprego, né, e ali é se doar, e,
outra coisa, assim como agente comunitário, ele não é somente naquele horário, ali, ele é
integral, eles também iam ser”.
A05 destacou a necessidade de uma expansão da ESF:
No geral eu acho que eu expandiria mais. Eu sou assim, se eu puder eu
marco consulta pra todo mundo. Os médicos têm que andar com a agenda
debaixo do braço senão eu encho a agenda deles, entendeu? Eu quero que
todo mundo faça consulta, eu quero que todo mundo faça preventivo, eu
quero que todo mundo converse, quero que todo mundo venha aos grupos.
Esta expansão implicaria na ampliação das equipes e de seu quadro de profissionais.
A05 apontou, tanto a necessidade de uma ampliação das equipes quanto a necessidade e
importância das capacitações e cursos para os ACS: “tem que fazer muitos cursos pra gente
poder aprender e poder passar pras outras pessoas, pra poder identificar as doenças desde o
início pra poder passar pro médico também”. Essa trabalhadora ressaltou ainda a importância
do trabalho de ACS e do PSF para os usuários, não em um sentido médico-centrado e
curativo, mas como uma forma de contribuir para que as pessoas tenham perspectivas, pois:
Abrindo a mente das pessoas pras pessoas irem ao médico. A mente das
pessoas abre pra outras coisas. Que às vezes a mente das pessoa... ela só
precisa de uma porta. Você abre aquela porta a mente dela se abre pra outras
perspectivas. Tem mulheres que não tem perspectiva de vida aqui. Tem
adolescente que não tem...e às vezes com uma conversa você pode
melhorar. Então tem que ser mais aberto, só isso.
“Mais condições pro ACS trabalhar, com dignidade”
Foram apontadas diversas mudanças necessárias para a melhoria das condições de
trabalho, a partir das quais pode-se também evidenciar as dificuldades enfrentadas no seu dia-
a-dia. Desde cadeiras para se sentarem à necessidade de melhores salários, passando por mais
capacitações, as trabalhadoras enfatizaram necessidades suas – melhores salários por exemplo
–, porém enfatizaram também mudanças na rotina de trabalho, tal como o desenvolvimento de
mais ações de rua.
A maioria das entrevistadas destacou a necessidade de mudanças na infra-estrutura
do(s) Posto(s) de Saúde. A06 afirmou que é preciso ter mais “material, lidar mais com o
97
povo. Como é que você vai trabalhar sem material. Ficamos dois meses sem medicamento. As
salas eu ia ampliar, ia fazer uma mudança geral”. No mesmo sentido discorreu A09,
frisando que é preciso “dar condição básica, como ventilador, porque, é um inferno”, sendo
que também foi destacada a necessidade de ter mais cadeiras e mesas que contemple a
necessidade das ACS, tal como explicou A07: “Porque a nossa sala, às vezes você quer
escrever na ficha, alguma coisa, às vezes não tem mesa suficiente, num tem cadeira (...)”. Em
igual sentido A01enfatizou:
Uma sala melhor pra atender né, porque coitado dos enfermeiros, num tem
uma sala melhor, nem os médicos pra atender né, uma sala sem um ar
condicionado, tendeu, material falta, ah, é muita coisa se fosse pra mudar.
Começaria logo pela sala, porque, estrutura para trabalho, infelizmente aqui
é geral, tá precisando mesmo, aí seria bem melhor.
Também foi elencado dentre as mudanças almejadas a ampliação do horário de
almoço, de uma hora para uma hora e meio ou duas horas, como expôs A02:
pra poder a gente ficar mais relaxada, assim, poder almoçar em casa, chegar
e tomar um banho, entendeu? Principalmente no calor, né? Que a gente já
anda na rua o tempo todo, né? Quando tá muito calor a gente às vezes não
consegue nem sair né. É muito quente, parece que queima seu cérebro,
entendeu?
A04, A06 e A08 elencaram a necessidade de um salário melhor para os ACS. A08
destacou que a primeira coisa que mudaria seria o salário, ponderando que as ACS moram na
comunidade e precisam também mostrar-se com saúde: “se a gente não está bem fica
complicado. A gente tem que começar com as coisas em casa. Em casa tudo tem que estar
limpo, arejado. É fundamental a gente estar com saúde. Eu mudaria de salário, a gente
precisa ter um piso bom pra viver melhor”. Além disso, A08 também apontou as seguintes
necessidades: ter um uniforme; participar de mais capacitações, pois são vários pacientes com
diversos tipos de doença, e – em tom de sugestão – apresentou uma alternativa ao
preenchimento das fichas por meio da utilização de palmtops pelos ACS, porque agilizaria o
trabalho. Ainda sobre a rotina e o cotidiano de trabalho, A01 indicou que, além das visitas
domiciliares, as/os ACS poderiam fazer mais atividades na rua, tais como palestras e passeios.
Sobre as relações com os colegas de trabalho, A02 ressaltou que melhoraria “a
educação das pessoas assim de níveis mais superior à gente: poder falar com a gente melhor,
né?”, evidenciando e chamando a atenção para a hierarquia profissional. No tocante às
98
relações com os colegas, A06 destacou que poderia haver uma fiscalização no sentido de
acompanhamento do trabalho, pois relatou ser mal quista por alguns ACS em seu local de
trabalho porque ela faz bem o seu trabalho. Dessa forma, segundo ela, se estabeleceria
elementos e resultados que serviriam de base para comparações.
“Pra gente poder respirar melhor e encarar”: melhores condições de trabalho para os
ACS
As trabalhadoras lidam, vivenciam e compartilham em seu cotidiano de trabalho as
mais diversas situações, dificuldades e sentimentos: a violência, o medo, o abandono, as
privações materiais e a fome. Envolvem-se com os problemas e dificuldades dos usuários, têm
as suas próprias dificuldades, além daquelas partilhadas por todos que vivem ou trabalham no
Complexo da Maré. Essas questões inevitavelmente influem na saúde destas mulheres. A02,
ao ponderar que as ACS poderiam ter passeios para que possam “espairar a cabeça melhor”,
apontou a necessidade da implementação de mecanismos que auxiliem a “respirar melhor e
encarar, é, o nosso trabalho, assim melhorar até, porque é muita coisa que a gente vê na
comunidade”. E continuou: “nós passamos violências de negócio de facções de tiro, esse
negócio. Isso mexe muito com a gente, com os nossos nervos, né?”.
No mesmo sentido A08 e A09 registraram a necessidade de atendimento psicológico
para as/os ACS. Destaca-se a seguir o relato de A09:
Eu procuraria auxiliar elas como pessoas, para que melhorasse a qualidade
como profissional. Aqui, a gente precisa muito de um psicólogo. Você
imagina você não ter preparo emocional, dependendo da sua vida ou por não
conhecer assim o ambiente de outras pessoas, lidar com tanta realidade
diferente, você ter que dar sua informação, seu emocional, seu tempo, e não
ter alguém que te ouça também. Então as meninas reclamam, sofrem muito,
emocionalmente.
4.6 A saúde em perspectiva
Neste eixo, com o objetivo de explorar a temática da saúde buscando apreender como
se dão os cuidados com a saúde das ACS, estimulou-se as entrevistadas a falarem sobre sua
compreensão de saúde para posteriormente abordar os cuidados com sua própria saúde. Ao
final, foi indagado se houveram mudanças relativas à sua condição de saúde após terem
99
iniciado o trabalho como ACS. Buscou-se evidenciar que, para se pensar a saúde destas
trabalhadoras, é necessário considerar a articulação de duas esferas – o trabalho assalariado (e
sua falta de limitações espaciais e temporais, como já abordado) e o trabalho doméstico não-
remunerado – para se compreender como a saúde desenvolve-se transversalmente às duas
esferas.
“Saúde é o tudo. É o centro.”
Como compreensão de saúde a maioria das trabalhadoras entrevistadas expressou uma
visão ampliada de saúde. Sete trabalhadoras identificaram saúde como sendo um conjunto de
manifestações sociais, psicológicas e culturais, portanto, apontaram as necessidades sociais no
marco do pensar a saúde como “qualidade de vida” e “bem-estar”.
A01 desenvolveu elementos da saúde como condições de vida, agregando a
necessidade de lazer, perpassada, diante da realidade local e regional, pela questão da
violência urbana, porque saúde é “Bem estar, moradia digna, saneamento básico, lazer, sabe?
Sem você ter preocupação de você sair da sua casa, sentar naquela pracinha com o seu neto,
sem ter um conflito de repente.”
Reproduz-se a fala de A02 que destacou um conjunto de fatores que juntos compõem a
sua compreensão de saúde, aos quais agregou também a questão da violência urbana, ao dizer
o que compreende como saúde,
...assim, você ter uma moradia, você ter um trabalho, né? Você ser bem atendida
no posto de saúde próximo da sua casa, você ter uma alimentação saudável, né? É,
você ter assim, educação, entendeu? (...) Você poder se evoluir. É, moradia,
condição de vida pras pessoas né, e, menos violência também, né, que a gente tá
vendo hoje em dia o mundo tá muito violento. Os governantes, acho que eles
perderam, assim, como eles vão segurar isso pra poder acabar com essa violência
toda, né?
Duas trabalhadoras desenvolveram compreensões nas quais as condições de vida não
foram expressas. A07 desenvolveu uma compreensão partindo do equilíbrio da vida, do
binômio saúde física-saúde mental, também mencionada por A03 e A09. Assim se manifestou
100
A07: “Pensar saúde por completo né, assim, mente, ter uma vida equilibrada. Porque às vezes
o psicológico também abala a saúde do corpo né, então não adianta. Uma pessoa que vive
assim muito abaixo de stress, num tem saúde, às vezes ela pode tá tudo bem no corpo dela,
mas aí o stress vai acabar desencadeando alguma coisa, na pessoa (...)”
Corroborando a compreensão de que saúde não é somente ausência de doenças, A05
de maneira nítida expressou sua visão afirmando que “A saúde acho que é de todas as partes,
não só a parte que o médico cuida, entendeu? A pessoa viver melhor, viver mais feliz, num
ambiente limpo, melhor, com mais dignidade. A saúde é tudo isso.”
Foi apontado neste tópico uma crítica aos profissionais médicos, que somente realizam
o trabalho de modo a cumprir a rotina, na formulação desenvolvida por A06 quanto à sua
compreensão sobre a saúde: “Saúde é o tudo. É o centro. O principio, o começo, o meio e o
fim. É você estudar, compreender, não adianta ter diploma de doutora e chegar paciente e eu
falar que não vou atender porque já fiz minha contagem.” A06 expressou uma visão de que
saúde não é somente a ausência de doenças e, ao lado disso, indicou que o profissional de
saúde deve ter uma capacidade investigativa para compreender as causas, pois, segundo ela, a
“Saúde é um tudo. Saber que você tá trabalhando com tudo, não é só uma dor de cabeça, às
vezes uma dor de cabeça é outra coisa pra você buscar.”
E a saúde das ACS?
Em relação à própria saúde das agentes comunitárias de saúde, cinco trabalhadoras
disseram não considerar ter uma “boa saúde”, ou seja, A01, A03, A04, A05 e A06 sinalizam
para stress, dificuldades de dormir, necessidade de acompanhamento psicológico, tabagismo e
baixo salário.
As outras quatro trabalhadoras entrevistadas, A02, A07, A08 e A09, relataram
considerar ter uma “boa saúde” por fazer exercícios, dispor de uma boa alimentação, acessar
as atividades de prevenção e mesmo ter uma ótima família. Frise-se: A01, que apesar de ser
fumante, reconsiderou sua resposta baseada em reflexão sintetizada pelo fato de que diante de
sua dinâmica de vida agitada somente uma pessoa com “boa saúde” poderia agüentar.
Identificou-se cotejando a compreensão de saúde expressada anteriormente e as
respostas referentes à sua própria condição de saúde e qualidade de vida algumas contradições
101
em relação ao conteúdo. No caso de A01 e A02, que haviam apontado que a violência urbana
também interfere na condição de saúde e qualidade de vida, ao pensarem sobre sua própria
saúde não tocaram nessa questão.
O relato de A02 chamou a atenção: ao descrever sua condição de saúde, que considera
‘boa’, sua argumentação esteve fundamentalmente centrada nas relações familiares. Disse que
“graças a Deus” tem uma ótima família, falou sobre suas filhas e seu genro, que considera
“maravilhoso”, bem como do lugar especial que ocupa o neto em sua vida diante da difícil
perda de sua mãe: “é uma pessoa [neto] que me ilumina e que me leva pra frente e que com a
perda da minha mãe ele que me levanta, mesmo sendo seis anos atrás, mas a falta dela é
muita. E ele que me levanta. Ele é fantástico.” Foi identificado que esse relato também se
delineia tendo em vista uma compreensão ampliada de saúde, pois, nessa, as relações sócio-
afetivas são consideradas como parte integrante da saúde.
A04 descreveu sua própria saúde de acordo com a compreensão de saúde e qualidade
de vida expressa anteriormente, ressaltando a dimensão das condições de vida ao afirmar que
“...o meu salário ele num me proporciona a, a tudo isso que a Constituição fala, que o ser
humano precisa, então eu num tenho uma boa saúde por isso.”
Apesar do postulado há muito defendido, e incorporado socialmente, da divisão
binária entre homem iqual (=) razão versus mulher iqual (=) emoção, isso nunca se deu
quando o assunto é sexualidade, uma vez que socialmente justifica-se que o homem
“instintivamente” necessita ter realizações sexuais, enquanto as mulheres supostamente não
teriam esse “instinto”27
ou mesmo o desejo que teriam os homens. Diante dessa repressão da
sexualidade feminina, identificou-se que somente uma ACS elencou dentre os fatores que
contribuem para sua saúde a prática de relações sexuais. A09 destacou como um dos
componentes para uma ‘boa saúde’ estar sexualmente saudável. Além disso, como expressão
de uma vida marcada pela violência, enfatizou ter hoje uma ‘boa saúde’ em função de não ter
27 Não é nosso objetivo tecer análises sobre a sexualidade, nem das suas representações sociais. Entretanto, tal
como desenvolvemos no capítulo 2, segundo a análise marxista o controle da sexualidade das mulheres é um
mecanismo fundamental na constituição, desenvolvimento da propriedade privada e sua manutenção garantida
ideologicamente através da família, costumes, e instituições. A sexualidade das mulheres é reprimida, enquanto a
dos homens estimulada, além disso, no senso comum a sexualidade deve desenvolver-se somente na
heterossexualidade, buscando normatizar o exercício da sexualidade. Porém esse debate teórico sobre a
sexualidade e suas formas de expressão, repressão, desfrute, avança em aspectos que não abordou-se aqui.
102
mais um marido violento e de não ser uma mãe violenta. A09 chamou a atenção para a
contribuição do acompanhamento psicológico para sua “boa saúde” e concluiu afirmando que
“recomendo para minhas amigas”.
Mas o próprio contexto de vida, trabalho assalariado, baixa remuneração e um
conjunto de fatores concernentes às relações de trabalho – quanto mais precário é o trabalho
maiores percalços resultam para que as trabalhadoras possam, inclusive, cuidar de sua saúde.
Exemplificando com o caso de A03, mesmo necessitando de acompanhamento psicológico, a
ACS não conseguiu acesso a tal acompanhamento. Essa trabalhadora tem um filho usuário de
drogas e envolvido com o tráfico, fato que a deixa emocionalmente abalada e, também, à sua
filha. A03 considera não ter uma boa saúde e, em face disso, sente necessidade de
acompanhamento psicológico. Refere ainda que a situação na qual está imersa interfere no seu
trabalho, o qual “também acaba ficando prejudicado”. Dentre as faces perversas das relações
de trabalho é emblemática a descrição dessa trabalhadora: relata não poder procurar um
acompanhamento psicológico, em função de seu vínculo precário – à época temporário devido
à mudança da empresa, ou OS, contratante direta –, por temer ser demitida, como expressou
em sua fala: “se você começa a procurar muitas especialidades né, mostrar que é doente,
você não tá apta pra trabalhar... então, tem que segurar.” As necessidades – o que seja
necessário para que estejam aptas para desenvolver as atividades laborais – enquanto força de
trabalho, se entrelaçam inevitavelmente com suas necessidades de vida e de saúde, enquanto
mulheres e seres humanos, as quais são ainda reforçadas pela própria natureza do trabalho –
que implica lidar com situações diversas pelas quais atravessam os usuários e famílias que
acompanham e com os quais desenvolvem laços de afetividade.
A maioria das entrevistadas relatou que sua saúde melhorou depois que começaram a
trabalhar como ACS. Em consonância com o conceito ampliando de saúde que
desenvolveram, dentre os cuidados com sua saúde elencaram, além de realização do
“preventivo” e da mamografia, preocupação com a alimentação, com o descanso e com a
prática do “exercício da felicidade” – que segundo A05 é ajudar as pessoas. Também
relataram acesso ao dentista, realização de atividades físicas e, afora isso, conversar e
desabafar. A03, que à época da entrevista enfrentava uma situação difícil com seu filho,
considera que conversar e desabafar é uma forma de manter-se calma e continuar fazendo seu
trabalho sem que percebam sua profunda tristeza por temer pela vida de seu filho (e também
103
por ela temer pela perda do trabalho). A solidariedade das colegas de trabalho e do/as
usuário/as foi uma marca importante para A09, que, quando realizou uma cirurgia, pôde
contar com carinho e ajuda.
Algumas trabalhadoras, entretanto, apontaram alguns aspectos em que trabalhar como
ACS impactam sobre sua condição de saúde. A07 se esforçava para manter-se calma e
tranqüila, pois o “psicológico me abala muito, ficar triste com alguma coisa, logo mexe
comigo”. A02 se queixou do novo sapato, que é muito pesado e lhe dá dores. Já A03 relatou
que adquiriu um esporão e uma tendinite no pé, porém também destacou que passou a cuidar
mais de sua hipertensão, ou seja, passou a cuidar mais de sua saúde depois que começou a
trabalhar como ACS.
A necessidade de ter que batalhar para sustentar e cuidar sozinha dos filhos, se dá,
muitas vezes, em detrimento do auto-cuidado, o que é agudizado pela necessidade de
trabalhos extras e do estudo. Esse é o caso de A06, cujo depoimento forneceu pistas de que
está com uma doença grave:
É...eu tô meio relaxada. Tô com alguns problemas, no intestino também.
Mas aí agora eu vou voltar. Eu vou recorrer, mas como está neste processo
de mudança, tenho medo de ouvir o que eu não quero ouvir. Faço muita
prece, mas tenho muito medo, de não ser boa coisa. tenho que correr atrás
logo, pra minha família, pros meus filhos. Eu estou fazendo as coisas por
etapas. Só que o tempo é muito curto.
Vivendo e trabalhando em/na comunidade: contornos, desconfortos e a emergência de uma
“nova” categoria, a violência
Desde relatos de memórias de infâncias e de trajetórias de vida, comparações do
passado com o presente aos relatos de casos de usuários, a violência urbana perpassou as
narrativas das entrevistadas em diversos momentos. O relato de A01 sobre sua infância
demonstrou que apesar das dificuldades enfrentadas diante da pobreza, como viver em casas
de palafita e a falta de água potável, viver na comunidade era mais tranqüilo, pois não havia
esse nível de violência que atualmente se observava.
Também se expressaram nos depoimentos das agentes comunitárias de saúde o fato de
que a violência altera a rotina de trabalho e de vida, pois quando há conflito não se pode sair
na rua, bem como instala-se certa tensão e medo constante, conforme descreveu A01 ao
104
afirmar ser preciso sempre ter cuidado por onde se anda. As entrevistadas também relataram
alguns casos, envolvendo usuários, cujos problemas de saúde derivavam dessa situação de
violência e acarretavam depressão, medo constante, pressão arterial elevada. Destaca-se a
seguir o relato de A02 sobre uma situação vivenciada por uma usuária:
A gente fica chocada com certas coisas, sabe? Que a gente tem uns usuários
na Rua X, né, que aí a gente foi lá fazer uma visita e de repente encontrei
uma pessoa na rua e aí ela queria assim, aqui no posto pegar um
encaminhamento. E falei ‘porque, você tá doente?’ mas eu vi um curativo
nela aqui no ombro. Aí ela falou assim: ‘Não, é porque eu tava sentada, no
sábado’, tem duas semanas isso, ‘tava sentada no sábado dentro de uma
igreja evangélica, com uns colegas assim, né, e quando foi meia noite que a
gente foi guardar as coisas’, de repente ela começou a sentir um negócio
assim no ombro mas não tinha barulho de tiro de nada. Aí quando ela
passou a mão tava tudo oleoso o ombro dela. Quando foi ver era uma bala
que não sabe de onde essa bala veio, né, e pegou o ombro dela.
Algumas situações impõem limites que vão para além da circulação livre pelas ruas
onde moram e também colocam dilemas éticos às ACS. A09 nos narrou uma situação
hipotética, na qual teria conhecimento de que uma menina seria violentada, mas sua família
teria “poder”. Nessa situação ela não apresentaria denúncia, já que se sentiria culpada caso
alguém onde mora perdesse a vida por causa dela.
As drogas também se desvelam uma problemática enfrentada pelas trabalhadoras,
afetando sua vida e sua saúde, pois seus filhos ou companheiros são usuários de drogas,
estabelecem algum tipo de relação com o tráfico ou são do tráfico, de acordo com a narrativa
de A08, A09 e A03.
Por fim, se destaca a situação de A06, que por inimizades criadas dentro do local em
que trabalha, por ela se destacar como uma boa ACS, já foi ameaçada por algum colega de
trabalho:
Porque na verdade, eu até entendo, os meus colegas de trabalho, porem não
justifica, um erro não justifica o outro né... se o salário tá pouco, se a carga
de serviço aumenta, bom, e daí? Eu não preciso fazer o meu trabalho? Eu
estou pra que? Pra fazer o meu trabalho. Tendeu? Então eu vou fazer o meu
trabalho. Eu gosto, eu não to ali, também não é só porque, ‘ai, eu tô, eu
optei por isso, porque é uma necessidade’.
Pra você ter uma idéia quase ninguém fala comigo, hahaha. É eu temo aqui.
Eu sou, não sou. É, eu tenho afinidades com alguns de lá, mas tem uns que
não me suportam. Até já falaram assim, ‘ó, vai pro aquário’.
105
O que é isso?
É um modo de ameaça, mas não vem ao caso não, deixa pra lá. Eu num sei
se vai valer a pena eu ficar.
4.7 Trabalho doméstico não-remunerado
Como foi desenvolvido mais extensamente no capítulo de discussão teórico-
conceitual, sob a divisão sexual do trabalho no capitalismo, o lugar do trabalho doméstico
não-remunerado efetuado pelas mulheres é funcional à reprodução da força de trabalho da
qual o sistema não pode prescindir. Como abordou-se anteriormente, desenvolvem-se uma
gama de mecanismos sociais, culturais e ideológicos que atuam na manutenção da
“naturalização” do trabalho doméstico não-remunerado realizado pelas mulheres na esfera
doméstica. Ao trabalho assalariado, é acrescido às mulheres o trabalho doméstico não-
remunerado cuja responsabilidade e “aptidão” é histórica, social e culturalmente atribuída às
mulheres. Buscando evidenciar essa sobrecarga discorre-se na análise a seguir sobre essa
dupla, e às vezes tripla, jornada de trabalho.
4.7.1 A pesada e “prazerosa” carga do trabalho doméstico não-remunerado
Tendo por objetivo conhecer a dinâmica de vida das trabalhadoras entrevistadas no
que tange à esfera “privada” para evidenciar a sobrecarga a qual estão submetidas, elas foram
estimuladas a relatarem como se dividem entre o trabalho de ACS e o trabalho “de casa”,
quem realiza os afazeres domésticos, quem cuida dos filhos, se os companheiros, filhas e
filhos dividem as tarefas com elas. Também foram convidadas as ACS a relatarem se gostam
(ou não) de realizar tais tarefas e, por fim, a descreverem uma situação hipotética sobre como
mudariam a divisão de tarefas em suas casas.
A maioria das entrevistadas é responsável pelo trabalho doméstico não-
remunerado, algumas tendo algum tipo de ajuda de outros membros da família. Duas
entrevistadas, A07 e A08, ajudam suas mãe e sogra, respectivamente. Foi identificado que há
uma naturalização referente à execução das tarefas domésticas exclusivamente pelas
mulheres.
“É uma correria só, mas eu dô conta”
106
Aliado ao relato de ser ACS não somente durante as 40 horas de trabalho, mas
também assumir essa atribuição muitas vezes fora do horário de trabalho por viver na
comunidade onde desempenha suas atividades laborais, é que se localiza a (sobre)carga do
trabalho doméstico não-remunerado. A01 ao discorrer sobre como concilia o trabalho de ACS
com o trabalho doméstico não-remunerado, afirmou que “Ah minha filha é uma correria só,
mas eu dô conta. Antes de eu vim pra cá, (...) eu adianto meu serviço, um pouco, o serviço
doméstico, que além de ter marido e filho, eu ainda tenho sete cachorro”. Continuando seu
relato, A01 também teceu uma comparação do trabalho doméstico não-remunerado com o
trabalho de ACS, “...o trabalho de casa, rende mais, é, dá mais trabalho do que aqui [na
Unidade de Saúde], porque em casa, se você for ficar em casa, você todo dia você tem um
serviço pra fazer extra”.
A02, que vivia com o marido, uma das filhas e cuidava do neto em dias alternados,
descreveu sua jornada de trabalho doméstico não-remunerado, ficando nítido que as
atribuições de limpeza, alimentação e cuidado com o neto ficavam exclusivamente a seu
encargo, como expressou no relato a seguir:
...além de ter o trabalho de casa tem o neto, que quando minha filha tá de plantão
eu tenho que pegar ele na escola, né? (...). E aí a gente chega, toma banho, tudo,
vou cuidar dele, dar janta e tudo. E ajeitar alguma coisa que tiver pra janta, porque
tem a minha filha solteira, tem o marido, tem o neto que dia sim dia não fica em
casa, né? E... passar uma vassoura na casa assim bem de leve, tá? Porque só final
de semana mesmo que dá pra passar uma vassoura na casa melhor, passar pano,
tirar pó, esse negócio todo.
Essa corrida de sair do trabalho para pegar as crianças também fazia parte da vida
de A05 e A06. Com dois filhos pequenos, única responsável pelo cuidado e sustento familiar,
A05 saia de manhã e levava seus dois filhos para creches em locais diferentes. Ao final do
expediente de trabalho, às 16h30, ia para casa preparar o jantar e arrumar a casa, saia de casa
às 18h para buscar um dos filhos, que sai da creche às 16h na casa de uma mulher que o busca
e fica com ele até às 18h, e depois ia buscar seu outro filho na creche. A05 relatou que
“durante a semana eu faço comida e ajeito a casa e cuido deles” e que no final de semana
fazia “o trabalho mais pesado”. Relembre-se que em alguns finais de semana A05 também
107
fazia faxina para obter uma complementação de renda, configurando uma tripla jornada de
trabalho.
A06, também mãe de dois filhos, era a única responsável pelo cuidado e sustento
de ambos, além de realizar faxinas e cuidar de idosos nos finais de semana e na quinta-feira à
noite estudar para concluir o ensino médio. Acordava cedo, dava medicação para o filho mais
novo, preparava seu lanche e ia para o trabalho. No horário de almoço ia para casa,
alimentava os filhos, levava o mais novo para a escola e voltava para o posto de saúde.
Quando terminava o expediente do trabalho remunerado, retornava para sua casa, preparava o
jantar e ia para a escola. Ao voltar, tarde da noite, colocava roupas para lavar na máquina,
fazia uma limpeza mais simples e... “quando eu vejo, já é meia-noite, uma hora. Aí vou
dormir, já to cansada já, aí vou dormir. É assim, é, é uma rotina assim, estressante, mas acho
que dá pra viver”. Pode-se dizer que A06 desdobrava seu tempo, sua energia, em uma
quádrupla jornada de trabalho.
Os relatos acima ilustram bem a dinâmica de vida de mulheres da classe
trabalhadora, que executam longas e extenuantes jornadas de trabalho em várias atividades
“domésticas” associadas à produção – geração de renda – e à reprodução – no cuidado com a
família.
Morar perto...resolvendo problemas
Dois relatos, ao versarem sobre a conciliação entre as tarefas domésticas e o
trabalho de ACS, tiveram como tema central a proximidade do local onde era desenvolvido o
trabalho assalariado e suas casas, sendo que A04 apontou os aspectos positivos e A03 os
negativos. Ambas trabalhadoras viviam com suas filhas, sendo que A03 também tinha um
filho envolvido com drogas e o tráfico: isso lhe trazia profundo sofrimento e identificou-se,
pelo seu relato, que a presença do filho era mais itinerante em sua casa.
A04 destacou positivamente o fato de morar próximo ao local de trabalho
possibilitando, dessa forma, auxiliar a filha em caso de alguma necessidade durante o dia. Já
A03, apontou que via uma dificuldade maior em conciliar as tarefas domésticas e o trabalho
assalariado, agora que estava trabalhando em um posto que era muito mais próximo de sua
casa, e teceu uma comparação com o antigo local de trabalho:
108
Olha, é...é difícil. Mas eu tento fazer (...) Então, é... ficava lá, entendeu, saia de lá
e, meus pacientes ficavam lá porque é diferente assim, é, é longe. E aqui às vezes é
tanta gente batendo na minha porta, me pedindo remédio, me pedindo pra
socorrer...
Apesar dessa dificuldade adicional inicialmente apontada, A03 afirmou que “...eu gosto
da minha casa, então eu sempre arrumo tempo pra minha casa”, evidenciando, dessa forma,
a injusta divisão sexual do trabalho, em que a casa é um espaço importante pelo qual zelam e
cuidam.
As mulheres ascendentes na estrutura familiar se encarregam das tarefas domésticas
Foi identificado a partir do relato de A07 e A08 que há uma delegação geracional do
trabalho doméstico não-remunerado, que imprime um traço distintivo nas responsabilidades,
no qual a mulher mais velha é quem assume de forma mais integral as responsabilidades pelas
tarefas domésticas. A07, filha única e que ainda vivia com a mãe e o padrasto, afirmou que
quem faz “A maior parte é ela [sua mãe], que fica mais tempo em casa mesmo, porque ela
trabalha em casa mesmo. Mas aí eu ajudo ela, quando eu to em casa eu a... faço”.
A08, que tinha passado a viver com seu companheiro e seus dois filhos na casa da
família dele, relatou que chegava em casa cansada por andar bastante, já que sua área de
trabalho é um pouco distante, amamentava seu filho mais novo e, salientou, que “como eu to
morando com a minha sogra, às vezes a comida tá pronta, eu, mais que descanso né, eu
arrumei uma mãe né.” Evidencia-se nessa afirmação de A08 uma naturalização do papel
social das mulheres que têm filhos em assumirem as responsabilidades pela alimentação,
limpeza e cuidados com os descendentes (neto, nesse caso), quando apontou que “ganhou
uma mãe”, pois chegava em casa e já está tudo pronto. Fica evidente também uma
solidariedade inter-geracional entre as mulheres.
A divisão familiar do trabalho doméstico
Para apreender como é estruturada a divisão sexual do trabalho doméstico não-
remunerado, também foi perguntado se os companheiros/as ou filhas e filhos dividiam as
tarefas domésticas com as entrevistadas. Os resultados confirmaram que a divisão sexual do
trabalho doméstico não-remunerado a cargo das mulheres é desfavorável ao sexo feminino,
109
verificando-se a contribuição dos integrantes da família se efetivando como uma ajuda ou
complemento. A maioria das entrevistadas relatou que seus filhos, filhas e companheiros
apenas ajudam na realização das tarefas domésticas.
Três trabalhadoras realizavam quase todas ou todas as tarefas sozinhas. A02 fazia
tudo sozinha e ainda cuidava do neto. A03, não deixava a filha fazer porque é perfeccionista.
A05 morava sozinha com filho e filha muito pequenos. A06 relatou que sua filha a auxiliava,
porém, como era uma jovem, “ela gosta mais de ficar no computador, escutando musica, mas
ela me dá uma, já tá dando uma boa reforçada, já tá me ajudando já”
“Essas coisas de homem ele que faz”
A07, jovem trabalhadora que vivia com sua mãe e padrasto, relatou que seu “padrasto
não faz nada. Só joga vídeo game quando chega do trabalho.” A única exceção em que o
padrasto ajudava na casa, é “quando tem assim uma coisa mais pesada, ele faz, que nem
limpar o ventilador de teto, instalar alguma coisa assim, essas coisas de homem ele que faz”.
Esse relato traz à tona a idéia introjetada, não somente de “sexo frágil” e seu correlato “sexo
forte” – o homem – que realiza no lar somente as tarefas “pesadas” e mais “qualificadas”,
expressando uma divisão sexual do trabalho.
E... você gosta de realizar as tarefas domésticas?
A maioria das entrevistadas relatou gostar de realizar alguma tarefa doméstica,
com exceção de A07. Identificou-se uma naturalização dos papéis socialmente impostos às
mulheres que também delineiam os sentimentos de gostar de organizar, limpar e “colocar no
lugar”, apreendidos a partir da socialização de gênero.
A09 justificou gostar da execução do trabalho doméstico não-remunerado por
considerá-lo terapêutico, dizendo: “Até quando tô nervosa arrumo o guarda-roupa umas
quinhentas vezes”. O relato de A01 a seguir se entrelaça na justificativa acima, quando
destacou ter “agonia” de ver os móveis durante certo tempo no mesmo lugar:
Adoro arrumar a casa. Tô te falando que eu tenho agonia, os troços [móveis] lá de
casa têm que ficar puxando [mudando de lugar], eu num gosto de armário de
110
parede, não gosto, (...) você num pode tirar toda hora. Eu gosto, eu só num gosto
de passar roupa. (...) Mas limpar, cozinhar, organizar, eu gosto.
Dentre as tarefas domésticas, passar roupa também não foi elencado no relato das
preferências de A06 que afirmou gostar de “fazer tudo, só num gosto de cozinhar. Eu não
gosto de cozinhar não. Eu gosto mais de organizar, de colocar no lugar, limpar...
A08 disse adorar uma casa limpa, mas ressaltou não ser tão “chata”. Já A02, em
seu relato frisou que a sujeira, até mesmo “ver um pêlo no chão”, lhe causa incômodo, e que
limpa e faz ela mesma porque gosta “das suas coisas muito arrumadas”. E ao relatar a
desordem esporádica do quarto de sua filha, A02 destacou que sua ação cotidiana também
contempla a organização e limpeza do quarto da filha adulta, que carinhosamente descreveu:
E eu como não gosto da bagunça vou lá e desviro toda a roupinha, dobro,
boto no cabideiro. Ajeito a colcha, lavo o banheiro que tem um banheiro no
quarto dela e aí por diante, né? Mas gosto muito da limpeza dentro de casa
porque é muito importante, também, né? Saudável também, né?
O relato que mais chamou atenção foi o de A04, porque afirmou amar a execução
das tarefas domésticas e ser dona de casa e mãe, descrevendo de forma cristalina a égide sob a
qual socialmente busca-se construir e desenvolvem-se os valores e papéis de gênero para as
mulheres:
Gosto. Ah, eu, olha, foi como eu coloquei naquela resposta ali, assim, que se
eu pudesse planejar eu tinha cinco filhos. É, porque assim eu amo assim
essa parte doméstica sabe assim? Eu gosto de ser mãe, de ser esposa, de ser
dona de casa, dona do lar, eu gosto. Pena que eu não dei sorte de arrumar
um homem que, fizesse a parte dele né, como manda o figurino, esposa,
esposo, filhos (...)
Ainda que a realidade econômica e social soterre esse anseio introjetado como
continuidade de uma ideologia secular para as parcelas femininas da sociedade, cujas
mulheres trabalhadoras necessitam (e sempre o fizeram) sair de casa para ter um trabalho
remunerado de modo a contribuir no sustento familiar, como o relato de A04 demonstrou,
essa forma de organização familiar e papéis de gênero seguem sendo uma aspiração
apreendida pelas mulheres que perpassa várias instâncias e fases da vida – desde a infância
nas brincadeiras, nas escolas, na televisão, nas próprias casas, entre outros.
111
No mesmo sentido do apontado acima, identificou-se que o trabalho doméstico
não-remunerado é encarado como não-trabalho, identificado ao amor materno. Ao tratar da
sua família A02, que também parou de trabalhar depois do casamento, relatou: “E depois
minha mãe casou, ficou só meu pai trabalhando e minha mãe cuidando da gente (...)”,
Por fim, A07 foi a única trabalhadora que não relatou gostar de realizar pelo
menos uma tarefa doméstica em especifico, destacando os elementos “disposição” e
“cansaço” como definidores da realização ou não das tarefas domésticas, as quais, em última
instância, estavam sob responsabilidade de sua mãe.
Foi identificado que o sentimento de “gostar” das tarefas domésticas acabava por
justificar o fato de que outros integrantes da família não contribuíssem igualmente, no qual se
expressa uma naturalização de que as atribuições domésticas devem ser realizadas unicamente
pelas mulheres, não levando a um questionamento mais profundo dessa injusta divisão, o que
será apontado a seguir.
E se...pudessem mudar a divisão do trabalho doméstico não-remunerado....
Quando perguntadas se pudessem mudar a divisão das tarefas domésticas, quatro
trabalhadoras relataram que não modificariam essa divisão. Em geral expressou-se uma
naturalização de que as tarefas domésticas devem ser atribuição das mulheres, mas também
certo “alívio” ao considerar a possibilidade de modificar essa situação. A02 relatou que seria
“tão bom! Eu botava o marido pra fazer alguma coisa, né? E, ela (filha) pra me ajudar mais
ainda, né? Principalmente o quarto dela, arrumar melhor, e as roupas dela que tem roupa
que não acaba mais lá naquele armário.”
A05, que vive só com dois filhos pequenos, disse que modificaria a situação
contratando uma empregada doméstica: “Ah eu teria uma empregada. Ganharia mais
dinheiro e teria uma empregada”. A07 pensou uma re-divisão das tarefas domésticas entre ela
e sua mãe, para que não realizasse uma tarefa que lhe desagradava (lavar o banheiro)
deixando essa tarefa sempre para sua mãe, porém não incluiu seu padrasto nessa re-divisão,
mesmo tendo afirmado que ele “só joga videogame”.
A09 relatou que seus filhos “Desde os cinco eles lavam as cuecas deles, e a menina
coloca no cestinho. Eles são muito pequenos. São muito pequenos, quero eles estudando”.
112
A03 disse que não modificaria a divisão do trabalho doméstico, pois é muito perfeccionista, e
sua filha não faria do jeito que ela gostaria. A01, por motivos semelhantes, afirmou que não
gostaria de mudar – “não, deixa do jeito tá” –, porque não gosta que cozinhem e narrou uma
cena em que seu marido cozinhou para agradá-la: “... mas que comida ruim, Deus me livre, eu
tive que engolir aqui dizendo que tava uma delícia pra não desanimar o marido né, mas Jesus
da cruz...”.
Se pudesse mudar o mundo, o que faria...
Com muita vivacidade, porém com certa estranheza a princípio, ao serem indagadas
sobre sonhos, sobre as transformações que fariam em suas vidas e no mundo, semear
sentimentos como amor e respeito marcaram os relatos. Acabar com a violência também é
uma das aspirações fortemente presente nos depoimentos das trabalhadoras. Como nos diz
A03, fazer “da arma que mata ia sair flores, entendeu, e... ter mais solidariedade, ensinar o
povo a ser mais, humano... mais, humilde né?”. Além disso, gostariam de viajar, conhecer
lugares do mundo, desejariam que os filhos tivessem uma família, que não passassem por
tudo o que elas passaram. As ACS também enfatizaram: a existência de mais emprego e mais
educação, ao lado do desejo de que os filhos ingressassem em uma universidade. Para
finalizar este capítulo, será reproduzido a seguir o alentador depoimento de A05:
Eu acabaria com o sofrimento, interno e externo. Eu acabaria com o
sofrimento. Faria as pessoas respeitarem mais, né? Uma regra seria básica: o
direito de um termina onde o outro começa. Acabaria com o sofrimento das
pessoas, sabe? É mais difícil sofrer. O sofrimento físico, espiritual, mudaria.
E como que você acha que acabaria esse sofrimento?
Ah... aí é complicado. Aí tem essa questão do governo. Por mágica não iria
ser. E a questão do governo, mas aí seria uma utopia que é quase impossível
[risos]. Eu investiria mais nas pessoas, na educação, tentaria diminuir o
preconceito. Por exemplo, aqui: se eu pudesse, eu faria mais projetos sérios.
Eles não levam fábricas pro interior? Eu traria fábricas aqui pra dentro, as
pessoas aqui teriam mais oportunidade de trabalhar, entendeu?
Eu investiria mais na educação. Bons professores. Professores que não
achassem que porque estão na comunidade que as pessoas daqui não vão a
lugar nenhum, que não precisam ensinar nada. Investiria em melhores
professores. Tão investindo em melhores profissionais aqui no posto, porque
não podem investir em melhores profissionais nos colégios, entendeu? As
pessoas têm que começar por baixo.
113
Temos que trabalhar, as pessoas que já tem certa idade, e isso aqui é um
bom lugar. O CRM trabalha as pessoas já de certa idade. Nós temos que
começar a trabalhar também a mente das crianças pra que as coisas nesse
sentido possam se mudar. Dar esperanças, porque os jovens estão muito
desanimados, muito sem perspectiva de vida. Como a gente pode esperar
que os jovens cheguem em algum lugar se com oito, nove anos ele: “Ah eu
sou burro mesmo, eu já vou morrer assim.” Oito anos. Ele tem potencial
igual a qualquer outra criança que nasce no Amazonas, que nasce no Japão.
Quem nasceu fora, dentro da favela tem a mesma capacidade mental, e ele
já tá desgostoso da vida. Com oito anos ele tá assim, onde mais ele pode
acabar? Acho que mudando dando mais esperança e investindo mais nas
pessoas, no conhecimento. Conhecimento e emprego é muito bom pras
pessoas. Que emprego dá dignidade, e o conhecimento dá esperança.
114
Capítulo 5
5.1 Conclusões
Buscou-se nesta pesquisa tecer uma análise articulando classe social (trabalhadoras
precarizadas), gênero e o trabalho em saúde. Para isso localizou-se a Estratégia Saúde da
Família em um contexto de ofensiva neoliberal e discorreu-se sobre como essa política tem
como espinha dorsal o trabalho de mulheres (e minoritariamente de homens). Justamente
nesse contexto tornou-se um fator explicativo que aquelas que são historicamente
responsáveis pelo cuidado dos integrantes da família sejam quem desenvolve –
majoritariamente – o trabalho como agente comunitárias/os de saúde.
A tradução deste contexto geral do neoliberalismo perpassou diversos aspectos das
trajetórias de vida, bem como das percepções de seu trabalho e saúde nas entrevistas. Em suas
falas emergiu o contexto precário desse trabalho em saúde e da própria ESF ao lado de
dificuldades do trabalho como ACS (falta de insumos, “produtividade” – preencher/cadastrar
um número certo de famílias –, precárias condições estruturais nas unidades de saúde), o
“amor” em ajudar os vizinhos e amigos, a dedicação, ou mesmo vocação, ao trabalho em
saúde e as dificuldades para sua realização. Essas dificuldades expressam um contexto
particular, específico dessas ACS, mas corroboram diversos apontamentos feitos no capítulo
referente à saúde no neoliberalismo.
É também nesse mesmo contexto onde o nosso país passa por transformações
referentes à divisão sexual do trabalho, o que se expressou nas falas das próprias ACS. Uma
destas mudanças é a redução da taxa de fecundidade, “feminização do mercado de trabalho, o
aumento de famílias chefiadas por mulheres e o aumento de famílias do tipo monoparental e
unipessoal.” (BANDEIRA et al, 2009, p.110). Essas ACS se encaixam nesse contexto, tendo
menos filhos que suas mães e atualmente, ou em sua trajetória de vida, experimentado
situações de família monoparental.
Estas mulheres que enfrentam cargas emocionais e materiais decorrentes de sustentar
ou contribuir em grande medida para o sustento e reprodução familiar, particularmente nas
grandes responsabilidades quanto ao trabalho doméstico não-remunerado, como também
115
carregam dificuldades advindas de sua condição trabalhista, salarial e de assumir tal profissão
como vocação.
O vínculo emocional e afetivo, junto ao compartilhamento geográfico, social e cultural
com a população atendida, traz às ACS um comprometimento ainda maior com seu trabalho,
muitas vezes sem limites de horário, em uma aproximação de suas próprias visões do que
seria ser uma mulher ou uma mãe. Não há local onde deixa-se de ser ACS nem horário livre
de ser ACS, tal como se concebe o “ser mãe”. Esse trabalho de ACS “24 horas”, sem custo
adicional para o Estado, mostra uma perversa relação entre o público e o privado. O trabalho,
concebido “normalmente” como algo separado do âmbito familiar e privado pelo espaço e
pelo tempo, se mistura no trabalho das ACS em detrimento muitas vezes das condições de
saúde das próprias trabalhadoras e, apesar de não se insurgirem contra isso, diversas delas
apontam essa contradição, ao mesmo tempo em que criticam os médicos que não buscariam
atender à comunidade com o mesmo zelo e dedicação do que elas.
Compreende-se que para analisar o trabalho destas mulheres as duas esferas – a
pública e a privada – estão imbricadas. Em primeiro lugar pelas exigências da organização do
trabalho em seu próprio local de moradia, mas também pela própria interiorização de valores
construídos em torno do “ser mulher” pelas próprias mulheres ACS. É relevante evidenciar e
trazer à tona as tensões concretas do cotidiano dessas trabalhadoras, e particularmente em sua
expressão da dicotomia trabalho não-remunerado versus trabalho assalariado, o que perpassa
a vida de milhões de mulheres em todo o mundo.
Como foi observado desde o início da pesquisa a ACS é uma profissão marcada por
uma composição majoritária de mulheres. Isso, por um lado, reforça e por outro lado trás à
tona, as tensões neste entrecruzamento de classe, gênero e trabalho em saúde. A própria
prática e idéia de trabalho em saúde, por sua vez, também expressa um particular
entrecruzamento de classe e gênero, práticas e ideologias e sua contraposição e interiorização
pelas trabalhadoras. É justamente nas tensões e fronteiras entre essas múltiplas determinações
que buscou-se apreender o objeto, as ações e visões desse objeto como um sujeito de
conhecimento e também de transformação da sociedade.
116
Contraditoriamente, boa parte dos diretores da AMACS-RJ são homens28
, o que, tal
como foi evidenciado, mostra que o engajamento político das mulheres ainda está perpassado
pela injusta divisão sexual do trabalho e sua reprodução na esfera pública, com menor
participação de mulheres em instâncias políticas e associativas. Contudo, não ser parte da
organização sindical não significa que as entrevistadas não expressem visões e ideias sobre o
que poderia ser feito, ao contrário, elas relatam experiências de manifestações políticas, bem
como compreendem seu próprio cotidiano de vida e trabalho como uma luta por melhores
condições de vida para elas e as famílias e indivíduos assistidos.
Uma das expressões de como em seu próprio trabalho é perpassado pela socialização
de gênero e também decorrente da divisão sexual do trabalho é o não reconhecimento de suas
qualificações profissionais. O Estado e as OS se apropriam da socialização de gênero das
mulheres e sua decorrente ideologia e práticas do cuidado com o outro como algo
“naturalmente de mulher” (e não uma qualificação, uma construção social e histórica),
portanto, “naturalmente” mal pago. A falta de reconhecimento pelo importante trabalho que
realizam, bem como a baixa remuneração salarial foram elementos ressaltados nas entrevistas.
A questão da remuneração salarial emergiu no relato das entrevistadas, inclusive como uma
expressão de meios tanto para garantir a própria saúde quanto o trabalho na saúde, e não só
como meio pecuniário para realização de necessidades materiais.
No tocante à questão salarial emergiu uma visão abrangente e ampliada da saúde pelas
ACS. Contrapondo-se a uma compreensão de saúde médico-centrada e curativa, descreveram
um conceito que abrange dimensões como felicidade, emprego, salário e violência, bem como
a própria saúde entendida também como o direito à saúde, ressaltando-se as dificuldades de
falta de insumos e as precárias condições para efetivar o pleno direito à saúde e à qualidade de
vida.
A violência que perpassou a narrativa de todas as entrevistadas como contexto social e
problema de saúde, comprova que tal questão é muito importante para o campo da saúde
28 Do site da AMACS: “Atualmente a diretoria é composta pelos seguintes companheiros: AP 2.2 Leonardo
Fernandes (Diretor Executivo ); AP 2.2 Felipe Vieira; AP 3.1 Leonel Rocha; AP 3.1 Wagner de Souza; AP
3.3 Marcio Caudeluci; AP 3.3 Guaracira A. Chiappetta; AP 5.1 Kelson Moraes; AP 5.1 Ronaldo Moreira; AP
5.2 Viviane; AP 5.2 Ana; AP 5.3 Gustavo de Souto; AP 5.3 Aparecida de Paula”. Disponível em:
http://www.amacsrj.hdfree.com.br/amacs.html (acesso: 20/02/2011).
117
coletiva. Além de polêmica e repleta de contradições do ponto de vista ético-político, pois
existem fissuras entre o conhecimento/teoria e a prática/ação cotidiana, constitui-se em um
tema importante para a continuidade de pesquisas, reflexões e ações individuais e coletivas.
Isso, buscando identificar suas expressões, contradições e raízes para melhor compreender as
possíveis estratégias de enfrentamento que possam ser traçadas nas esferas: da ação política
das próprias mulheres e da implementação de políticas públicas.
No decorrer das entrevistas emergiram reivindicações das ACS quanto ao
reconhecimento de sua profissão não somente do ponto de vista de sua remuneração
individual e de melhorias na infra-estrutura dos postos de saúde, mas também sua contratação
como funcionárias públicas. Essa reivindicação mostra um anseio de melhorias em sua
condição individual e pontua elementos para uma visão crítica, tanto do trabalho em saúde
quanto da saúde pública em um contexto de ofensiva neoliberal, levando a um
questionamento objetivo de seus vínculos empregatícios como terceirizadas. Nesse sentido,
ainda que circunscrito a reivindicação de sua contratação como funcionária pública, oferecem
elementos para uma crítica da principal política de saúde governamental, a ESF, que se
sustenta sobre o trabalho árduo e precário dessas e de outras/os 200 mil ACS terceirizadas/os
por meio de ONG, OS e fundações em todo país29
.
Devido aos objetivos deste trabalho, ao explorar o trabalho das mulheres ACS em uma
abordagem de gênero e classe social, englobando e conjugando a esfera pública e a privada,
não foi abordado a questão da raça/etnia. Seguramente o trabalho seria muito mais completo,
mas por limitações temáticas e temporais, optou-se por não agregar essa questão como parte
dos objetivos e eixos a serem explorados. No entanto, como não poderia deixar de ser em um
país marcado historicamente pela escravidão e pela imbricação de desigualdades sociais e
raciais, a questão da raça/etnia emergiu nos próprios relatos das trabalhadoras.
É preciso um olhar mais atento a esta importante categoria profissional. Sua atuação e
reflexão iluminam situações relacionadas ao direito à saúde, à qualidade de vida e aos direitos
trabalhistas contra a precarização no contexto neoliberal vigente, bem como apontam suas
necessidades enquanto seres humanos, enquanto força de trabalho, enquanto mulheres.
29 Excetuando alguns municípios do nordeste do país onde foram efetivados como funcionários públicos.
118
Esta pesquisa não é só uma exposição das idéias e condições particulares, mas um
esforço para fazer com que as vozes das ACS sejam ouvidas. Pensar em como avançar na
consolidação da saúde como um direito, na luta e resistência contra a sua privatização por via
de terceirizações, trabalhos temporários, entre outros. Isso exige ouvir a voz destas
trabalhadoras, que muito tem a contribuir não somente pelo fato de serem conhecedoras das
insuficiências, dificuldades, necessidades de saúde da população, mas como sujeitos ativos na
reflexão e elaboração que permitam a superação das dificuldades e a garantia dos direitos.
O pensamento crítico na saúde coletiva pode parcialmente ser avançado nos gabinetes
de nossas pesquisas, como parte do pensamento crítico universal avançou nos gabinetes com
Marx e Engels se debruçando nos tomos do Museu Britânico. Porém esse mesmo exemplo do
século XIX exige uma atuação consciente para que esse mesmo conhecimento transforme-se
em ação, práxis. É preciso um esforço consciente de compreensão, entendimento, mas
também de sua tradução prática e ativa. As ACS entrevistadas são mulheres guerreiras –
assim mesmo elas se vêem –, sendo preciso, de um lado, avançar nesse conhecimento e, de
outro, concebê-lo como um dos instrumentos úteis para que as agentes comunitárias de saúde
sejam sujeito de sua própria luta. Tais mulheres trabalhadeiras e guerreiras podem contribuir
muito com ideias, mas também na resolução de sua própria batalha contra as amarras que as
oprimem e oprimem a todas as mulheres e trabalhadores/as.
Este inicial esforço de compreensão científica que foi demonstrado nesta pesquisa é
também um esforço inicial para a sua continuidade como luta pelo conhecimento da
sociedade, mas também parte da resistência e luta pela sua transformação.
119
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123
ANEXO 1
Ficha de Identificação COD.: __________
Idade: _____________
Escolaridade: ( ) 1o. grau incompleto ( ) 1
o. grau completo
( ) 2o. grau incompleto ( ) 2
o. grau completo
( ) 3o. grau incompleto ( ) 3
o. grau completo
Profissão: _____________________________________
Estado civil: ( ) casada ( ) solteira ( ) viúva ( ) separada/divorciada
( ) coabita com parceiro/a ( )outra Qual? ________________________
Há quanto tempo vive com parceiro/a atual: _________
Teve outros casamentos? ( ) sim ( ) não Quantos? _________
Que idade você tinha quando casou/morou junto pela primeira vez? ________________
Com quem mora atualmente:
( ) parceiro/a (companheiro/a, namorado/a, marido)
( ) filhos Quantos? ___________________________
Idades: _____________________________
( ) parentes Quantos? ___________________________
( ) outros Quantos? ___________________________
Você tem o número de filhos que queria ter? ( ) sim ( ) não
Se pudesse planejar, quantos filhos você teria? ______________________
Que idade tinha quando nasceu o primeiro filho? ____________
Foi planejado? ( ) sim ( ) não
Quantas pessoas trabalham em sua casa? ________________________
Quantas têm carteira assinada? _________________________________
Qual era (ou é) a ocupação de sua mãe: _____________________________
E de seu pai: ___________________________________________
Você tem alguma religião? _______ Qual? ______________________
É praticante? _____________________________________________
É ACS há quanto tempo? (meses e anos) _________________
Qual seu regime de contratação? ______________________ (celetista, temporário,
estatutário)
Qual é a instituição contratante? __________________________________
(CIEZO, FIOTEC, etc.)
124
ANEXO 2
ROTEIRO DA ENTREVISTA
Trajetória de vida
De onde você é?
Quem cuidou de você?
Como foi a infância de seus pais?
Como foi sua infância? Adolescência? Vida adulta? (trabalho e família)
Trabalho assalariado
Antes de ser ACS, o que você fazia?
Você foi ser ACS por quais motivos? (Escolha ou acaso?)
Quais as vantagens desse trabalho? E quais as desvantagens?
Você tem outro tipo de trabalho ou de fonte de renda?
Você considera que seu salário corresponde com o que faz em seu trabalho? Qual seria
em sua opinião, um salário de acordo ao seu trabalho e jornada diária?
Você participa de alguma agremiação, organização, sindicato? Caso não, por quê?
(Explorar as barreiras de gênero)
Você já participou de algum processo de luta do sindicato, ou de alguma manifestação
ou passeata? Caso sim, qual?
Você se define como sendo parte de qual classe social?
Como adquiriu o conhecimento necessário para desenvolver o trabalho de ACS?
(capacitação, conhecimento ou formação prévia)
Você acredita que sua qualificação é reconhecida pela equipe? E pela comunidade?
Você vê alguma diferenciação no trabalho desenvolvido entre o ACS homem e a ACS
mulher? Se sim, qual (is)?
Você acha que os usuários vêem diferenciação entre o trabalho do ACS homem e da
ACS mulher? Se sim, qual (is)?
Você já passou por uma situação no trabalho em que o fato de ser mulher tenha
influenciado negativa ou positivamente?
O que você mudaria no seu trabalho?
Trabalho e saúde
O que você compreende como saúde?
Você considera que tem uma “boa saúde”?
Como você cuida da sua saúde?
Quem cuida de sua saúde?
Sua saúde mudou depois que você começou a trabalhar como ACS? (positivo e
negativo)
O seu trabalho favorece a sua saúde ou a prejudica?
Família e trabalho não-remunerado
Como você se divide entre o trabalho de ACS e o trabalho de casa?
O seu salário é importante para manutenção da família?
Quem faz as tarefas de casa (lavar, passar, cozinhar, arrumar)?
Quem cuida dos filhos?
125
Você gosta de realizar as tarefas domésticas?
Quantas horas por dia você gasta realizando tarefas domésticas?
O seu marido (namorado, companheiro) trabalha?
O seu marido (companheiro, namorado) divide com você as tarefas de casa? E os(as)
filhos(as)?
Caso você pudesse modificar a divisão de tarefas na sua casa, como você faria?
Como acha que deveria ser uma família?
E como é a sua família?
O que acha que é o papel da mulher dentro de uma família? Qual deveria ser esse papel?
Você tem tempo para o descanso e lazer? Quando? O que você faz?
O que você deseja para seus filhos?
O que você mudaria na sua vida? Qual mulher você gostaria de ser ou que você admira?
Se pudesse escolher um(a) parceiro(a) ideal, que qualidades ele teria?
Como você percebe a situação das mulheres no mundo em que vivemos?
E como você percebe a situação dos homens?
Como você se vê como ACS e como mulher?
Quais coisas você gostaria de fazer e ainda não fez?
Se pudesse mudar o mundo o que você faria?
126
ANEXO 3
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Você foi convidada(o) à participar da pesquisa intitulada “O (precário) trabalho dos
Agentes Comunitários de Saúde em uma abordagem de gênero” de responsabilidade de
Clarissa Alves Fernandes de Menezes, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do
Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ. Esta pesquisa integra uma pesquisa mais ampla
intitulada “Abordagem interdisciplinar das novas relações e processos de trabalho em
saúde: o caso dos agentes comunitários de saúde”, coordenada pela Professora da
Faculdade de Enfermagem da UERJ Helena Maria Scherlowski Leal David, integrado por
pesquisadore(a)s da UFRJ, UERJ e Fiocruz.
Compreendemos que o trabalho realizado pelo ACS hoje é de suma importância para a saúde
pública no Brasil. Cada ACS é parte disso, e conhecer profundamente a dinâmica de seu
trabalho e vida é relevante para pensar e repensar os rumos da atenção básica à saúde.
Nesta pesquisa você participará de entrevistas individuais sobre assuntos referentes ao
trabalho de ACS na comunidade e questões referentes ao cotidiano de vida e trabalho, que
visam conhecer a dinâmica entre o trabalho e a vida das mulheres que são ACS. Você também
responderá um formulário com as perguntas: idade, sexo, estado civil, religião, número de
filhos, vinculo empregatício.
Você não terá custo ao participar deste estudo. As informações obtidas através dessa pesquisa
serão confidenciais e asseguramos o sigilo sobre sua participação. Os dados não serão
divulgados de forma a possibilitar sua identificação, serão gravados e usados apenas para fins
do estudo, bem como o acesso aos dados será feito somente pelos pesquisadores do grupo. A
divulgação dos resultados ocorrerá somente sob a forma de relatórios e artigo em publicações
científicas.
Durante as entrevistas você poderá recusar responder qualquer pergunta, assim como
interromper ou se retirar a qualquer momento, sem que explicações lhe sejam solicitadas ou
que venha a sofrer qualquer tipo de dano ou prejuízo.
Sua participação neste estudo é voluntária e ao participar desta pesquisa, você não está
desistindo de nenhum direito. Os riscos relacionados com sua participação são o desconforto
que pode ser causado por algumas perguntas. Os benefícios desta pesquisa serão a ampliação
de conhecimento sobre as situações e condições de trabalho dos ACS. Você receberá uma
cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço institucional da pesquisadora principal
e do Comitê de Ética em Pesquisa, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua
participação, agora ou a qualquer momento.
127
___________________________________
Clarissa Alves Fernandes de Menezes
Contato com a pesquisadora:
Clarissa Alves Fernandes de Menezes – Telefones: (21) 2598-9328/ 9331/ 9271- Praça Jorge
Machado Moreira, Cidade Universitária – Ilha do Fundão / Rio de Janeiro – RJ.
Declaro que entendi os objetivos e as implicações de minha participação na pesquisa e
concordo em participar.
Nome
__________________________________________________
Assinatura
__________________________________________________
Rio de Janeiro, ______ de _____________ de 2010.
Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com a pesquisadora responsável, comunique o fato à Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva pelo telefone (21) 2598 93 28 ou pelo e-mail cep@iesc.ufrj.br. O Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ fica na Praça Jorge Machado Moreira, Cidade Universitária – Ilha do Fundão / Rio de Janeiro – RJ. Tel: (21) 2598 - 9293 -www.iesc.ufrj.br.
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