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103 ISABELLY MOREIRA ARTES E CULTURA NO SERTÃO A MULHER NA POESIA DO PAJEÚ Isabelly Moreira A efervescência poética no Pajeú pernambucano revela mulheres poetas que também escreveram esta história. As diferentes gerações de poetisas carregam nos versos a memória e a relação da escrita nos contextos local e social. A poesia sempre escreveu a história da microrregião do Pajeú. Os vio- leiros repentistas e os cordelistas do sertão pernambucano conduziram essa narrativa pelo mundo afora. A partir de uma cultura predominantemente oral, eles rom- peram barreiras sociais e limites geográficos para mostrar à poesia o lugar onde ela mere- ce estar: na boca do povo. Fazendo uma visita rápida às nossas memórias, verifica-se que as mulheres poe- tas (ou poetisas, de acordo como cada uma prefira ser chamada) desenvolveram papel fundamental na poesia da região. No entan- to, poucos nomes ganharam destaque – se comparado à quantidade de homens poetas que tiveram notoriedade – pelos pesquisado- res, apologistas e pela mídia. Os motivos são vários para que a ênfase tenha sido dada aos homens: a presença masculina era mais nu- merosa – e até hoje é – na cantoria de viola e a maior parte de títulos publicados de cordel também era assinada por homens, e assim se estendia para os recitais. Com isso, eles ganhavam mais visibilidade. Torna-se evidente que os motivos não se restringem a dados matemáticos. Os va- tes ganhavam fama porque, para realizarem suas cantorias, as viagens eram frequentes e os públicos eram sortidos. As poetisas, em geral, por sua vez, cuidavam dos filhos e da família e executavam as tantas ativi- dades domésticas que o sistema patriarcal por tanto tempo impôs. Assim, viajar por aí improvisando versos estava fora de co- gitação para elas. E, ainda que não fossem casadas, “não pegava bem moça solteira sair pegada em braço de viola”, nas palavras de

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103isabElly MorEiraARTES E CULTURA NO SERTÃO

A MULHER NA POESIA DO PAJEÚ

Isabelly Moreira

A efervescência poética no Pajeú pernambucano revela mulheres poetas que também escreveram esta história. As diferentes gerações de poetisas carregam nos versos a memória e a relação da escrita nos contextos local e social.

A poesia sempre escreveu a história da microrregião do Pajeú. Os vio-leiros repentistas e os cordelistas

do sertão pernambucano conduziram essa narrativa pelo mundo afora. A partir de uma cultura predominantemente oral, eles rom-peram barreiras sociais e limites geográficos para mostrar à poesia o lugar onde ela mere-ce estar: na boca do povo.

Fazendo uma visita rápida às nossas memórias, verifica-se que as mulheres poe-tas (ou poetisas, de acordo como cada uma prefira ser chamada) desenvolveram papel fundamental na poesia da região. No entan-to, poucos nomes ganharam destaque – se comparado à quantidade de homens poetas que tiveram notoriedade – pelos pesquisado-res, apologistas e pela mídia. Os motivos são vários para que a ênfase tenha sido dada aos

homens: a presença masculina era mais nu-merosa – e até hoje é – na cantoria de viola e a maior parte de títulos publicados de cordel também era assinada por homens, e assim se estendia para os recitais. Com isso, eles ganhavam mais visibilidade.

Torna-se evidente que os motivos não se restringem a dados matemáticos. Os va-tes ganhavam fama porque, para realizarem suas cantorias, as viagens eram frequentes e os públicos eram sortidos. As poetisas, em geral, por sua vez, cuidavam dos filhos e da família e executavam as tantas ativi-dades domésticas que o sistema patriarcal por tanto tempo impôs. Assim, viajar por aí improvisando versos estava fora de co-gitação para elas. E, ainda que não fossem casadas, “não pegava bem moça solteira sair pegada em braço de viola”, nas palavras de

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104 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Maria Batista, mãe da cantadora Luzia Ba-tista, natural da zona rural de São José do Egito (PE). Numa conversa informal, ela acrescentou que só deixou a filha cantar porque o pai a acompanhava. Luzia se or-gulha de ter cantado com figuras renoma-das e de ter conseguido o seu espaço, muito embora tenha parado de cantar logo após o casamento, fato que hoje la-menta. O livro, recém-publi-cado, traz um recorte das suas produções poéticas, além de quebrar paradigmas, uma vez que Luzia é analfabeta e quase cega. Os versos “Meu Jesus, meu Deus, por que/A mulher é massacrada?/Por mais que ela se esforce/Termina discriminada” trazem a dura realidade de muitas mulheres.

Curioso pensar que, mesmo sendo de um chão tão fértil culturalmente, ela nunca tenha duelado na viola com outra mulher. Atualmente, a dificuldade de se encontrar cantadoras em festivais de improvisos per-manece. Nomes como Anita Catôta (glosa-dora de primeira), Rafaelzinha (“poetisa da saudade”), Zefa Tereza (coquista) e Das Ne-ves Marinho provam que nem a morte apaga o legado construído por elas.

Severina Branca igualmente bebeu do elixir da eternidade ao propor o mote “O si-lêncio da noite é que tem sido/Testemunha das minhas amarguras”. Os pesos carrega-dos durante a vida de prostituição foram desabafados nos seus versos. A também conterrânea Beatriz Passos é a matriarca poetisa de uma família de poetas. Suas fi-lhas Cármem Beatriz e Cláudia também são poetisas. A neta Simone resume a história

da nossa gente no trecho do poema “Hino às Avessas”: “Nosso hino nasceu desafinado/Entoando uma falsa liberdade”. A bisneta Ana Luiza, aos 16 anos, demonstra o quan-to a poética passeia por diferentes idades: “Perdi esperanças sofrendo ilusões/Calei--me no tempo e na fala precisa/Nos versos de moça, artesã, poetisa/Juntando pedaços

de vis corações”.Também de uma família

de poetas, Bia Marinho (São José do Egito), mesmo com todos os percalços do mun-do artístico independente, nunca esteve fora dos palcos. Como uma das primeiras mu-

lheres do Pajeú que se propôs a viver de mú-sica, o seu canto é, antes de tudo, um canto de resistência. Poetisas como Bia trilharam caminhos para outras tantas vindouras, como Eriberta Leite, Naldirene Barros, Jéssica Gomes e Ana Clara Meneses.

A Tabira (PE) de Cármem Pedrosa e de Dulce Lima abriu as portas (inclusive para a literatura em prosa) para as novas gerações, como as poetisas Verônica Sobral, Andreia Miron, Alecssandra Ramalho, Pepita Lins e Wandra Rodrigues. Andreia, que também é cordelista, deu o recado no seguinte trecho:

Distante de preconceito

Rasguemos o nosso peito

Pra falar de feminismo

Que busquemos ser iguais

Pra que as lutas sociais

Não tenham nome

“modismo”

Severina Branca igualmente bebeu do elixir da eternidade ao propor o mote “O silêncio da noite é que tem sido/Testemunha das minhas amarguras”.

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Da geração atual, as mulheres têm aparecido mais, ocupando mais espaços que também são seus. Na modalidade da mesa de glosas, um quarteto de improvi-sadoras arranca aplausos da plateia a cada mote dado. Francisca Araújo (Iguaracy/PE), Dayane Rocha (Brejinho, Tabira) e as irmãs Elenilda e Erivoneide Amaral (Afogados da Ingazeira/PE) ocupam cadeiras quentes, pois a mesa de glosas, durante muito tempo, foi formada unicamente por homens.

As rodas de glosas sempre aconteceram de uma maneira mais informal, em mesas de bares, conversas de calçada e até como brincadeira para passar o tempo e ilustrar o papo de colegas. Aqui, novamente, temos um ponto relevante: em ci-dades de interior que não têm cinema, teatro, parques, museus, os bares são fortes alternativas de lazer, e por isso era natural que os poetas se encontrassem nos bares e protagonizassem glosas por horas a fio. E as poetisas continuavam de fora, pois, se hoje ainda se encontra quem implique com mu-lher bebendo rodeada de amigos, imagine no tempo de nossos avós. Talvez também por isso não se tenha registros de glosadoras que frequentavam as rodas. Talvez.

Monique D’Angelo, Izabela Ferreira e Dayane Lopes integram essa nova turma em Itapetim/PE. As três são poetisas e decla-madoras. Izabela estimula a luta coletiva ao dizer: “Quanto mais nos oprimem, nossa fala/Vai bradar como a história nunca viu”.

Do outro lado, em Tuparetama/PE, a parelha de Marianas (Teles e Véras) tam-bém integra um time forte.

Nos eventos locais, é perceptível o quanto os temas de teor crítico têm se in-troduzido com mais veemência e, paula-tinamente, as chagas das sociedades vêm ganhando atenção. A escrita da poesia po-pular, principalmente pelas gerações atuais, não gira unicamente em torno do regiona-lismo e dos romanceiros. Este papo de que a poesia nordestina fala predominantemente da seca e dos amores é verdade e é até ne-cessário para darmos uma aliviada nos pe-sos da vida real. Mas a poesia não deve ser enclausurada apenas a esses temas.

É até natural que essa poética beba bem mais da fonte do regional, pois a iden-tidade com o meio no qual se vive é imensa.

Contudo, o fato de morarmos nos interiores sertanejos não nos coloca à margem do cená-rio mundial. Fazer da poesia um amplificador da voz fe-minina é poder afirmar que a arte também é política e que

as poetisas avançam nesse contexto. Não uso desse argumento para afirmar

que a poetisa tem que escrever sobre tema de amor porque vai arrancar mais aplausos ou que tem que asseverar a crítica porque o momento sempre pediu. Aliás, ninguém tem que nada! A poesia popular, embora siga regras rígidas de escrita, é livre por senti-mento. Pois desse sentimento, sendo sin-cero e coletivo, a revolução social se torna o próprio mote.

O verso libertador deve ser uma cons-tante em nossas vidas, pois esse sertão de “cabra macho”, de “menino homi”, de “muié sera” e outras tantas aberrações que aumen-tam o estigma e estimulam a violência contra

Fazer da poesia um amplificador da voz feminina é poder afirmar que a arte também é política e que as poetisas avançam nesse contexto.

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a mulher, infelizmente, está longe de virar só causo. Bem disse Celeste Vidal nos versos: “Acordas/Para a luta da vida/Mulher. Já que não podemos dormir diante dos machismos disfarçados de piadas e gentilezas”.

É fundamental cultivar as nossas raí-zes, vates que nos antecederam. Contudo, é igualmente crucial furarmos as bolhas regionais para ampliar as vozes e as lutas.

Para dar fala a quem não tem e para ocupar os espaços que também são nossos. Uma causa jamais anula outra, apenas se somam. Uma mulher sertaneja, antes de ser flor, é espinho. Antes de ser musa, é guerreira.

Encerro com uma poesia de minha au-toria em nome de todas as mulheres poetas idas e vivas, anônimas e que não caberia citar aqui.

Nós mulheres morremos todo diaPelas mãos de maridos, namorados.O jornal sanguinário anuncia: Mortes, mortas, destinos desgraçados.Uma ossada encontrada num terreno;Um pulmão perfurado leva um dreno;Na cintura: uma faca dele, nela;Os sinais de defesa em cada mão,Ironia cruel da criaçãoQuando a fêmea fratura uma costela

Justo nela? Do elo em criatura!Sim. O barro que faz é o que enterraE o homem que beija é o que torturaE que tenta explicar da vez que erra,Joga a culpa pra ela e pra o ciúmeCulpar vítima aqui virou costume.Sinto nojo da frase de um carrascoQue vomita jargão de um bem eterno E o que foi paraíso vira infernoSe a palavra do amor se torna asco.

Um fiasco contorna a profissãoQue também é cenário de assédio.Vira e mexe a figura do patrãoÉ a causa de um trauma sem remédio. Mexe e vira, o transporte coletivo,Filas bancos e becos são motivoPara que a mulher se apavoreCom o gesto obsceno do agressorOu qualquer falsa forma de amorFaz com que cada caso só piore.

Que se tore o machismo matadorInquilino de irmãos, amigos, pais...Que o Estado se torne protetorPara que não sejamos numerais.Que a voz da mulher não silencie, E nenhum dedo em riste atrofieFrente à cara covarde e à covardia.Toda causa exige compromisso E enquanto alguém se cala omissoNós mulheres morremos todo dia.

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107isabElly MorEiraARTES E CULTURA NO SERTÃO

Isabelly MoreiraNasceu em São José do Egito, no sertão pernambucano. Iniciou seus trabalhos como

declamadora. Autora de vários cordéis, incluindo títulos voltados para a literatura infantil,

Belinha, como também é conhecida, publicou em 2017 o seu primeiro livro, intitulado

Canta Dores. A poetisa também produz eventos culturais e integra projetos musicais.

Referências

BATISTA, Luzia. Poetisa sonhadora: versos e canções. 1. ed. São José do Egito: RS Gráfica Editora Ltda., 2018.

NA CAATINGA não tem só mandacaru. Direção: Tauana Uchôa. Produção: Que Tau Produções. Recife, 2016.

TEM CRIANÇA no repente. Direção: Francisco Eduardo Alves Crispim. Produção: Madre Filmes. São José do Egito, 2018.

VIDAL, Celeste. Metade sol, metade sombra. 1. ed. Tabira, 1994.