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5. Discussão dos resultados: estruturas contrastivas com estabilização
tardia
Ao longo deste capítulo, destaca-se o contributo da investigação desenvolvida
para o aprofundamento do estudo sobre aquisição de conectores contrastivos e do
estudo sobre as relações que se podem estabelecer entre conhecimento linguístico e
aprendizagens formais, como a aprendizagem da competência de escrita. Para isso,
retomam-se as questões remanescentes dos resultados apresentados com a análise
quantitativa (secção 4.5.), desenvolvendo-se uma análise explicativa, consolidada pelo
tratamento descritivo e qualitativo de alguns dos dados antes quantificados. Esta análise
permitirá tornar clara a relevância dos resultados encontrados para a discussão de
algumas das hipóteses teóricas que têm sido apresentadas na literatura.
Na primeira secção, em 5.1., debate-se o carácter tardio da aquisição de
conectores concessivos, particularmente em comparação com a precocidade da
aquisição de conectores adversativos, discutindo-se, nomeadamente, os resultados da
aquisição de mas. Primeiro, discute-se a validade da hipótese teórica de Evers-Vermeul
(2005) para a explicação da ordem de emergência de conectores, tendo por base a
análise de dados de aquisição e de frequência do português. Seguidamente, reflecte-se
acerca da hipótese referida e da questão da aquisição de conectores concessivos
factuais. De forma a encontrar uma explicação para a aquisição tardia de conectores
concessivos factuais, são analisados outros factores que têm sido apontados como
razões para o carácter tardio da aquisição deste tipo de conectores. Em concreto,
sistematizam-se alguns aspectos dos resultados que contribuem para o debate em torno
do papel do input na aquisição de conectores. Seguidamente, sendo a selecção de modo
conjuntivo outra das razões apontadas por alguns autores (Prada: 2003, e.o.) para o
carácter tardio da emergência de concessivas, são apresentados dados sobre o domínio
do conjuntivo nas produções escritas dos alunos do quarto ano.
Apresentando argumentos de outra natureza relativamente ao carácter tardio da
aquisição de conectores concessivos, a secção 5.2. destina-se à discussão do tipo de
conhecimento envolvido na aquisição de concessivas factuais e não factuais. Para esse
efeito, convocam-se os resultados encontrados para a aquisição de conectores
condicionais, particularmente de condicionais-concessivos. Nesta secção, mostra-se que
os dados encontrados corroboram a consideração, para estes conectores, da existência
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de uma subclasse de concessivas distinta da das concessivas estritamente factuais. A
análise dos dados relativos a ainda que e dos dados de produção induzida de frases
sustenta a hipótese de que há conhecimento semântico, em particular de natureza
aspectual, envolvido na estabilização tardia do conhecimento sobre concessivas.
Ainda nesta secção, defende-se que o domínio de conectores concessivos pode
ser considerado um aspecto definitório de níveis superiores de proficiência de língua e,
consequentemente, de um perfil de literacia linguística e de literacia de escrita.
Em 5.3., apresentam-se as estruturas concessivas como um problema para a
arquitectura da gramática e propõe-se que o domínio de concessivas, pelo menos as
factuais, pode ser entendido como um caso de variação linguística. Havendo alternativas
linguísticas a estas estruturas, discute-se uma explicação de factos como este no quadro
de representação da Gramática Universal do Programa Minimalista (Chomsky: 1995;
2001), seguindo a proposta de Adger e Smith (2005) e de Duarte (2009). Finalmente,
argumenta-se a favor de uma análise da aquisição de conectores concessivos enquanto
aquisição lexical, debatendo-se a natureza das aquisições lexicais.
5.1. O carácter tardio da aquisição de conectores concessivos
Nesta secção, que está organizada em torno das questões identificadas na secção
4.5., discutem-se razões apontadas para uma explicação do carácter tardio dos
conectores concessivos, sendo avaliadas algumas das hipóteses explicativas disponíveis
na literatura.
5.1.1. Por que razão são os conectores concessivos adquiridos mais tarde?
Os resultados de investigação apresentados no capítulo anterior permitem
confirmar que, tal como acontece em inglês, com although ou whereas (Diessel: 2004,
157), as primeiras ocorrências de conectores concessivos são tardias, considerando que
aparecem bastante tempo depois de conectores com valores semânticos adjacentes,
como mas e se, e que surgem em níveis de desenvolvimento, e etários, em que se pode
afirmar que já há um domínio bastante consolidado do conhecimento linguístico e de
competências comunicativas. Tanto os resultados do teste de compreensão oral, como
os resultados dos testes de produção, com indução de frases ou com escrita de texto,
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apontam para a estabilização tardia do conhecimento de conectores concessivos,
acompanhando o período de escolaridade.
Ao contrário, a análise das produções de mas, no corpus de Santos (2006),
publicada em Costa et al. (2008), confirma o facto de o conector coordenativo
adversativo ser um dos conectores mais precoces e um dos mais frequentes na altura em
que as crianças começam a produzir enunciados frásicos sintacticamente mais
complexos, o que está em consonância com dados para a aquisição de but
(Evers-Vermeul: 2005, 187-202) e de maar (ibidem). A discussão da explicação deste
carácter precoce do conector adversativo prototípico tem lugar num estudo da aquisição
de concessivas, na medida em que esclarecerá aspectos do conhecimento linguístico
envolvido na aquisição de conectores contrastivos, por comparação com a aquisição de
outros conectores. Esta explicação é indissociável da explicação da ordem de
emergência de conectores com valores semânticos distintos.
Os três estudos já mencionados (Diessel: 2004; Evers-Vermeul: 2005 e Costa et
al.: 2008) indicam que o conector mais precoce nas três línguas, inglês, holandês e
português, é o conector com valor básico aditivo e1. Relativamente à ordem de
emergência, para o inglês, Diessel (idem) apresenta a ordem que se descreve em (157),
segundo a qual but é mais tardio do que because (e do que so)2.
(157) and > because > so > but > when > if
Ao contrário, para o holandês (Evers-Vermeul: 2005) e para o português (Costa
et al.: 2008), as primeiras ocorrências do conector adversativo precedem as primeiras
ocorrências do conector causal, sendo as ordens de emergência as que se encontram em
(158) e (159), respectivamente:
(158) en > maar > toen > want3
‘e’ ‘mas’ ‘então’ ‘porque’
(159) e > mas > porque > se4
1 A esta conclusão chega-se através da análise de dados de fala espontânea. 2 Outros estudos para o inglês, referidos em Evers-Vermeul (2005), como Bloom et al. (1980) e Braunwald (1985), confirmam a precedência de because em relação a but. Os dados considerados são relativos a but como conector interfrásico. 3 Evers-Vermeul (2005) não considera os conectores condicionais.
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Uma explicação para a diferença de ordem nas três línguas não pode decorrer da
distinção entre estruturas sintácticas de coordenação e estruturas sintácticas de
subordinação, uma vez que não há uma correspondência linear entre a natureza do
conector e a ordem encontrada: os conectores causais because5 e porque são,
tipicamente, subordinativos e o conector causal want é coordenativo6.
A investigação levada a cabo por Bloom et al. (1980), revista em Bloom (1991)
apud Evers-Vermeul (2005, 187-188) leva a concluir que há um padrão uniforme entre
crianças inglesas no desenvolvimento de «coherence relations», que corresponde à
ordem enunciada em (160),
(160) aditivo<temporal<causal<adversativo
Contudo, no que diz respeito à aquisição dos conectores que marcam as relações
coesivas enunciadas em (160), verifica-se, em dados do inglês e do holandês
(Evers-Vermeul: 2005), a existência de variação individual na ordem de aquisição de
quase todos os conectores, excepto e, que ocorre quase sempre em primeiro lugar. De
modo a dar conta da variação encontrada nos dados do inglês e do holandês,
Evers-Vermeul (idem) propõe uma hipótese explicativa assente em três primitivos
conceptuais e semânticos envolvidos no processo de aquisição de conectores, segundo o
que foi preconizado por Sanders et al. (1992; 1993)7, numa abordagem cognitiva da
aquisição de relações de coerência. Estes três primitivos correspondem a «basic
operation», «polarity» e «source of coherence», sendo primitivos que se relacionam
entre si através da marcação de valores positivos ou negativos e que representam,
relevantemente, a complexidade semântica ou conceptual cumulativa que explica
diferentes ordens de emergência. Na figura (1), transcreve-se o modelo proposto por
Evers-Vermeul (2005: 194)8:
4 Costa et al. (2008) não consideram os conectores conclusivos. 5 Quirk e Greenbaum (1973: 313). 6 O conector causal subordinativo em holandês é omdat, que emerge mais tardiamente, segundo os dados de Evers-Vermeul (2005). Outros conectores como dus e daarom são pouco frequentes e igualmente tardios (idem, 229-242). 7 Sanders et al. (1992; 1993) consideram quatro primitivos: «basic operation», «polarity», «source of
coherence» e, também, «order of the segments». Este último não é tido em consideração na proposta de Evers-Vermeul, porque esta linguista o considera relevante apenas para conectores causais e uma vez que este primitivo entra em interacção com outro primitivo, «source of coherence» (Evers-Vermeul: 2005, 190). 8 A tradução é minha.
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aditivo positivo [α negativo, α causal, α temporal]
� � � � � �
� � � aditivo negativo
[+ negativo, α causal, α temporal] causal positivo
[α negativo, + causal, α temporal] temporal positivo [α negativo, α causal, + temporal]
� � � � � � � �
causal negativo [+ negativo, + causal, α temporal]
causal temporal [α negativo, + causal, + temporal]
Figura 1 – Hipótese baseada na interacção entre «operação básica», «polaridade» e «ordem temporal» Para facilidade de leitura do diagrama, a autora distinguiu, no modelo
apresentado, quatro hipóteses, que se transcrevem em (161)9.
(161) Hipóteses baseadas em complexidade cumulativa crescente (ibidem):
a. primeiro conector causal ≥ primeiro conector aditivo;
(= o primeiro causal não aparece antes da primeira ocorrência de um aditivo)
b. primeiro conector negativo ≥ primeiro conector positivo;
c. primeiro conector causal negativo ≥ primeiro conector causal positivo,
primeiro conector aditivo negativo;
d. primeiro conector temporal causal ≥ primeiro conector temporal (não causal)
≥ primeiro conector aditivo.
Segundo esta proposta, as duas primeiras hipóteses explicam a estabilidade nas
sequências de desenvolvimento, ao nível semântico, ao passo que as outras duas
hipóteses explicam a variação de ordens entre conectores de classes diferentes ou da
mesma classe, encontrada nos corpora.
O modelo prevê que o primeiro conector a emergir seja o conector aditivo, o que
está em consonância com o que se verifica nos dados do português, como foi referido
9 A notação «X ≥ Y» significa que X não emerge antes da primeira ocorrência de Y; a separação por vírgulas, como em «X, Y», significa que não há uma ordem relativamente a cada um dos elementos. A tradução é minha.
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inicialmente, de acordo com Costa et al. (2008). Relativamente ao conector contrastivo
adversativo (considerando but, em inglês, e maar, em holandês), representado como
«causal negativo», o modelo prediz que este não possa aparecer antes do conector
causal (because, want), o que explica, de forma directa, os resultados antes referidos
para o inglês (Bloom et al.: 1980; Braunwald: 1985; Diessel: 2004). Contudo, este
modelo não dá conta dos resultados quantitativos encontrados para o holandês e para o
português.
No modelo proposto, o valor contrastivo básico do conector adversativo é
representado como «causal negativo», com traços positivos para a «polaridade
negativa» e para a «operação básica causal», e subespecificado quanto ao valor de
«ordem temporal». Nesta representação semântica do conector adversativo, atribui-se a
este conector um traço de causalidade. A existência de traços causais é comummente
aceite na descrição de conectores concessivos, na literatura sobre a contiguidade entre
causais e concessivos (König: 1991; Rudolph: 1996; Varela: 2000; Capítulo 3, e.o.). De
um modo geral, a causalidade negativa das concessivas reside na relação, de certo modo
inversa, entre enunciados concessivos e enunciados causais, na medida em que a
concessiva subverte a relação esperada de causa / efeito, existindo uma espécie de
relação de causa / contra-efeito, que se ilustra com o contraste entre (162) e (163):
(162) Como o João perdeu muito dinheiro, está deprimido.
(163) Embora o João tenha perdido muito dinheiro, não está deprimido.
Como é evidente em (163), há uma negação do valor da pressuposição
(equivalente a se alguém perde muito dinheiro, então fica deprimida), como se
evidencia com a paráfrase em (164), construída com uma adversativa com polaridade
negativa:
(164) Paráfrase: Se o João perdeu muito dinheiro, então espera-se que esteja
deprimido, mas não está.
Uma proposição como (163) pode ser reescrita em (165), com uma adversativa
com valor equivalente, assente na mesma pressuposição e, consequentemente, com a
mesma propriedade de «causalidade negativa»:
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(165) O João perdeu muito dinheiro, mas não está deprimido.
Embora se reconheça a equivalência semântica entre conector adversativo e
conectores concessivos, relativamente a «causalidade negativa», Evers-Vermeul
considera que existe um valor não causal disponível apenas para o conector adversativo.
A equivalência semântica entre o conector concessivo although, único a poder operar
exclusivamente o valor «causal negativo», e o conector adversativo está na base do teste
usado por Evers-Vermeul para distinguir dois valores de but / maar: um valor «aditivo
negativo» e um valor «causal negativo». Esta distinção é particularmente importante
para a validação do modelo explicativo da ordem de emergência representado na figura
1, dado que este modelo é legitimado se as primeiras ocorrências de but e de maar
tiverem lugar em contextos em que o conector não tem valor contrastivo, com
causalidade negativa inerente, mas em que expressa um valor categorizado como
«aditivo negativo». Neste caso, a predição de que não há ocorrências de conectores
«causais negativos» (como os adversativos but, maar) antes de conectores «causais
positivos» (como because, want) será validada.
De modo a confirmar empiricamente o modelo proposto, Evers-Vermeul
complementa a análise quantitativa com uma análise qualitativa que inclui o tratamento
de resultados individuais dos dados do inglês, disponibilizados através dos estudos
referidos (Bloom et al.: 1980; Braunwald: 1985; Diesel: 2004), e dos dados de
produções de doze crianças holandesas.
Relativamente aos resultados para o inglês, a análise dos dados por criança
confirma ser o conector aditivo e o primeiro a emergir nas produções de todas as
crianças, o que confirma a primeira predição do modelo: o primeiro conector causal e o
primeiro conector negativo não emergem antes do primeiro conector aditivo.
No que diz respeito à ordem relativa entre conector causal e conector
adversativo, das produções das nove crianças inglesas estudadas, em sete confirma-se a
precedência de because sobre but e, em dois casos, ambos os conectores emergem ao
mesmo tempo. Esta constatação não põe em causa o modelo de Evers-Vermeul, que
prevê variação nas primeiras ocorrências de conectores «aditivos negativos» e «causais
positivos». Contudo, a confirmação do modelo mediante os dados das crianças inglesas
carece da confirmação de que os primeiros but produzidos têm um valor «aditivo
negativo» e não um valor «causal negativo», parafraseável por although. Esta
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confirmação não pôde ser feita, uma vez que os estudos ingleses não consideraram a
distinção entre valores «aditivo negativo» e «causal negativo» e os dados disponíveis
nem sempre apresentam todas as primeiras ocorrências. De qualquer modo,
Evers-Vermeul constata que os exemplos disponibilizados pelos três estudos são
exemplos de usos de but com valor «aditivo negativo», o que não põe em causa a sua
tese.
A primeira objecção à argumentação de Evers-Vermeul decorre da análise dos
dados ingleses, pelos resultados da aplicação dos testes de distinção entre os dois
valores em causa, atribuídos ao conector but. Observem-se os exemplos (166) e (167)10:
(166) Adult: It is called the skin of the peanut.
Naomi: But this isn’t the skin.
(Naomi, 2; 11) (Diessel: 2004, 164)
(167) Cause I was tired, but now I’m not tired.
(Kathryn, 2;11) (Bloom et. al.: 1980, 245)
De facto, numa primeira análise, os conectores but, tanto em (166) como em
(167), podem ser substituídos por and, sem que se perca o valor de contraste negativo.
Contudo, este facto, que decorrerá mais da plurifuncionalidade do conector aditivo do
que do valor aditivo de but, não descarta outras leituras. Em ambos os exemplos
apresentados, o conector but é, igualmente, parafraseável por although, com resultados
semanticamente adequados, ainda que pragmaticamente estranhos, dada a natureza do
registo de língua, que é oral e informal. Contrastem-se (166) e (167) com (168) e (169):
(168) - It is called the skin of the peanut.
- Although this isn’t the skin11.
(169) Cause I was tired, although now I’m not tired.
10 Em Evers-Vermeul (2005: 196), estes exemplos correspondem aos exemplos (21) e (23). 11 Sobre a possibilidade da existência de enunciados frásicos subordinados aparentemente autónomos em interacções orais espontâneas, ver Castilho (1998).
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Complementarmente, para a análise de resultados individuais, relativamente a
ordem de emergência de conectores, Evers-Vermeul examinou transcrições da produção
espontânea de doze crianças holandesas, disponíveis no CHILDES (MacWhinney:
2000). Trata-se de um corpus em que a maioria das transcrições foi realizada com uma
periodicidade quinzenal, o que corresponde a uma maior precisão de recolha de dados
em relação aos dados disponíveis para o inglês, que chegam a ter oito a doze semanas
de intervalo entre recolhas (por exemplo, em Bloom et al.: 1980, 259).
Para a consideração do que constituiu uma primeira ocorrência de um conector,
Evers-Vermeul usou os seguintes critérios12: (i) correcção gramatical, (ii) ligação entre
orações e (iii) criatividade. O terceiro critério exclui usos que possam estar assentes em
memorizações de fórmulas, como expressões fixas ou repetições de enunciados.
Das produções das doze crianças analisadas, apenas em três casos a primeira
ocorrência do conector causal want precede a primeira ocorrência do conector
adversativo maar, ao contrário do que fora observado nas produções das crianças
inglesas. No caso de uma criança, aliás, o conector adversativo maar precede o conector
aditivo en. Nas produções dessa criança, o conector maar aparece aos 2;3.23, no
enunciado reproduzido em (170)13, e o conector en só aparece num ficheiro aos 2;4.9.
(170) Adulto: Je kan hem (= een radio) toch gewoon laten staan?
‘Podes deixar isso (= a radio) estar aí?’
Abel: Nee.
‘Não.’
Adult: Jawel.
‘Sim.’
Abel: Nee.
‘Não.’
Adult: Nou…
‘Bem...’
Abel: Maar ik moet even daar ee(n) tunnel bouwen. (Abel, 2;3.23)
‘Mas eu tenho de construir um túnel mesmo aqui.’
12 Sobre estes critérios, ver secção 4.2.. 13 Em Evers-Vermeul (2005, 200), o exemplo (14) corresponde ao exemplo (30). As glosas em português são minhas.
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O comportamento atípico desta criança e este exemplo em concreto constituem,
para Evers-Vermeul, um contra-argumento (que fica por explicar) e que não permite a
sustentação completa da primeira hipótese do seu modelo, segundo a qual um conector
com polaridade negativa, um «aditivo negativo», não apareceria antes de um conector
com polaridade positiva, um «aditivo positivo», como en.
Relativamente à questão da ordem relativa entre conectores «causais positivos»
(como o causal want) e «causais negativos» (como o adversativo maar, parafraseável
por um concessivo), Evers-Vermeul considera que esta ocorrência precoce de maar,
atestada em (170), corresponde a um uso «aditivo negativo» do conector e não a um uso
«causal negativo». De facto, maar, em (170), não pode ser parafraseado por um
conector concessivo, o que confirma a análise da autora. Note-se, aliás, que o enunciado
introduzido por maar (‘mas’) evidencia, pelo menos, uma intenção explicativa que, em
português, podia ser parafraseado pelo enunciado em (171).
(171) Abel: Mas é que tenho de construir um túnel aqui.
De acordo com a descrição proposta no Capítulo 3, este mas poderia ser um
marcador de mudança de tópico e, de qualquer modo, a eventual leitura explicativa
(positiva) de maar, glosada em (171), não invalidaria a segunda hipótese de
Evers-Vermeul, segundo a qual os conectores «causais positivos» podem aparecer ao
mesmo tempo que os conectores «aditivos negativos». O que a possibilidade desta
leitura aduz é a consciência de que, no domínio da aquisição de conectores, será
estranho considerar que estarão envolvidos apenas valores primitivos de cada conector,
sem interferência de outros factores que concorrem para a interpretação, como possam
ser variáveis discursivas e pragmáticas.
De acordo com a análise de Evers-Vermeul, o facto de nove das doze crianças
produzirem maar antes de want explica-se através do valor básico dos maar mais
precoces, todos analisados como «aditivos negativos». A autora, todavia, não apresenta
exemplos destes casos de «aditivos negativos», sendo o único exemplo transcrito o que
se encontra reproduzido em (170). Além deste exemplo, a autora inclui também um
exemplo, reproduzido em (172), em que maar é inequivocamente um conector «causal
negativo»:
(172) Slagboom gaat niet open. Maar hij kan wel erdoor. (Peter, 2;8.22)
222
‘A barreira não abre. Mas ele consegue passar.’
A constatação de que os primeiros adversativos são «aditivos negativos», e não
«causais negativos», sustenta a confirmação da hipótese de que não aparecem «causais
negativos» antes de «causais positivos», crucial para o modelo de Evers-Vermeul. Esta
constatação é reforçada pela observação de que o primeiro maar com valor causal
negativo (equivalente a uma concessiva factual), ilustrado em (172), aparece num
ficheiro de uma das crianças que produz o conector causal want antes de maar.
Uma vez que a análise quantitativa das produções de conectores contrastivos no
corpus de Santos (2006) revelou resultados muito semelhantes aos encontrados para o
holandês, e distintos dos do inglês relativamente a ordem de emergência, considerou-se
interessante verificar se, nos dados de crianças portuguesas, as conclusões de
Evers-Vermeul (2005) se confirmam.
O interesse desta análise de dados do português radica em dois aspectos
resultantes da abordagem quantitativa. Primeiro, a consistência da ordem de emergência
encontrada para o holandês (Evers-Vermeul: 2005) e para português (Costa et al.:
2008), dado que as primeiras ocorrências dos conectores maar e mas precedem as
primeiras ocorrências de conectores causais, want e porque, ao contrário do que
acontece em inglês (Bloom e tal.: 1980; Braunwald: 1985; Diesel: 2004;
Evers-Vermeul: 2005). O segundo aspecto decorre do contraste entre a frequência de
ocorrência do conector adversativo e a do conector causal, em inglês, em holandês e em
português, conforme se apresenta nos quadros 1 a 3.
Quadro 1 – Frequência de uso de because e de but (Diessel: 2004, 157)
CONECTOR TOTAL MÉDIA
because 949 19,9
but 328 6,6
Quadro 2 – Ocorrências totais de want e de maar (Evers-Vermeul: 2005, 209)
CONECTOR TOTAL14
want 307
maar 1052
14 Evers-Vermeul (2005, 209) não apresenta um valor médio de frequência de uso, mas apenas os valores totais de ocorrência, por criança.
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Quadro 3 – Frequência de uso de porque e de mas (Costa et al.: 2008, 135)
CONECTOR TOTAL PROPORÇÃO MÉDIA15
porque 56 0,0087
mas 111 0,0174
Apesar de não ser possível uma comparação linear entre os resultados
apresentados, devido a diferenças na constituição dos corpora e porque os critérios
usados para determinar frequência não são os mesmos, é legítimo comparar as
frequências médias de uso encontradas nos dados de cada língua. De facto, não deixa de
ser curioso que os resultados sejam, para o inglês e para o português, inversamente
proporcionais. Se, nas produções do inglês, a frequência média de ocorrência do
conector causal corresponde a mais do dobro da frequência média de ocorrência de but,
nas produções das crianças portuguesas, a frequência de ocorrência16 de porque
corresponde exactamente a metade da frequência de ocorrência de mas.
Embora, para o holandês, não tenha sido possível aceder ao valor médio da
frequência de ocorrência, Ever-Vermeul conclui que want é o conector que apresenta a
frequência mais baixa, da totalidade de conectores analisados, e maar é o conector com
maior curva de crescimento, a seguir a en: «[t]he fact that maar – of these three more
complex connectives – shows the sharpest and largest increase can be related to the
observation that more than half of the children produced this connective as their second
connective.» (Ever-Vermeul: idem, 209-210).
Em síntese, para o conector causal (because, want, porque) e para o conector
adversativo (but, maar, mas), as análises quantitativas mostram haver evidências
robustas da existência de uma diferença entre o inglês, por um lado, e o português e o
holandês, por outro. Constata-se esta diferença quer na ordem de emergência, quer na
frequência de ocorrência, que parecem ser correlacionáveis. Em inglês, because é mais
precoce e mais frequente do que but, ao passo que, em holandês e em português, maar e
mas emergem antes de want e de porque e são mais frequentes.
Para sustentar a sua hipótese teórica, Evers-Vermeul (idem) encontra uma
explicação para a precocidade do conector adversativo sobre o conector causal com base
na consideração de que os primeiros maar são destituídos do traço de causalidade
negativa dos conectores contrastivos. Esta explicação, que aponta para o carácter mais
15 Esta proporção equivale ao número de ocorrências de um conector / número de enunciados da criança (secção 4.3.). 16 Medida em termos de proporção de uso (secção 4.3.).
224
tardio da aquisição da causalidade negativa, secundariza a diferença interlinguística, que
parece ser muito evidente, entre os primeiros conectores causais e adversativos e que
carece da consideração de mais dados e de uma análise mais fina da gramática de cada
língua. A não consideração da diferença de comportamento na aquisição de conectores
causais, que parece evidente na análise dos dados das três línguas, constitui outra
fragilidade a apontar à análise proposta por Evers-Vermeul (2005).
Por outro lado, encontrar razões para uma explicação da precocidade de
emergência de mas e para a ordem relativa entre o primeiro conector adversativo e o
primeiro causal é importante para a fundamentação de uma explicação do carácter tardio
de conectores concessivos.
Para a análise das ocorrências de mas em dados de aquisição do português,
estabeleceu-se, como amostra, as produções de uma das crianças do corpus de Santos
(2006)17. A criança seleccionada foi T., que é a criança que mais cedo produz um
enunciado com mas, aos 2;1.7. A pesquisa foi processada automaticamente, com o
comando kwal (MacWhinney: 2000).
O quadro 4 apresenta, de forma sistematizada, todas as ocorrências de mas nas
produções de T.
Quadro 4 – Produções totais de mas nos dados de T. no corpus Santos (2006)
IDADE
CONECTOR
2;1.7 2;2.9 2;3.9 2;4.0 2;5.3 2;6.6 2;7.13 2;8.9 2;9.7 Total
mas
2 1 0 0 0 1 8 2 1 15
Numa primeira análise, descartam-se os casos em que as produções de mas
ocorrem em estruturas diferentes das da gramática alvo, identificadas como «não
canónicas» no quadro 5, ou ocorrem em enunciados resultantes de repetições, como no
exemplo (173). O quadro 5 apresenta estes dados.
(173) T. 2;1.7
*T: ati(r)ei o pau ao gato to to # mas o gato to to não +...
*MAE: não morreu.
17 O facto de a aquisição de mas não ser o tema central desta tese justifica que se tenham tratado apenas os dados de uma criança.
225
Quadro 5 – Enunciados com mas no corpus Santos (2006)
IDADE CONTEXTO
2;1.7 2;2.9 2;3.9 2;4.0 2;5.3 2;6.6 2;7.13 2;8.9 2;9.7 Total
Canónico — 0 — — — 1 5 1 1 8
Não canónico — 1 — — — 0 1 0 0 2
Repetição 2 0 — — — 0 2 1 0 5
A leitura do quadro mostra que há apenas dois casos de construções
consideradas marginais nas produções de mas de T., que, na verdade, podem não ser
casos de agramaticalidade categórica. Por exemplo, o enunciado em (174) parece
corresponder a uma hesitação que dificilmente se pode considerar diferente de
hesitações da fala espontânea de adultos. Este facto mostra que o grau de marginalidade
desta estrutura decorre, provavelmente, da situação de enunciação. E, além do mais, não
há evidência de que não seja uma hesitação marcada por um contraste, pelo que a
escolha de mas será mesmo a mais adequada. Observe-se o exemplo.
(174) T. 2;2.9
*MAE: olha # <e o> [//] # e estes # os gorilas # o que é que estão a fazer?
*T: xxx come(r) maçã.
*MAE: e mais?
*T: la(r)anja # mas [//] # bananas.
*MAE: bananas.
A exclusão destes dois contextos e dos cinco contextos de repetição,
semelhantes ao enunciado em (173), reposiciona a emergência de mas para mais tarde,
no ficheiro seguinte ao tido em consideração no estudo quantitativo. Assim, o primeiro
mas aparece aos 2;6.6.
Esta nova datação da primeira ocorrência não tem implicações na ordem de
emergência entre conectores: os primeiros porque de T. surgem no mesmo ficheiro, aos
2;6.6, mas não correspondem ao uso canónico do conector conjuncional causal. O
primeiro porque, reproduzido em (175), é usado como um conector desprovido de
qualquer valor causal:
226
(175) T. 2;6.6
*MAE: tu caíste e depois # bateste com o olho onde?
*T: na casa da tia Fê.
*MAE: sim # caíste na casa da tia Fê # mas bateste com o olho em quê?
*ALS: em que sítio Tomás?
*T: po(r)que a mãe # pôs gelo.
*ALS: a mãe xx +/.
*MAE: +< a mãe pôs gelo # pois.
*MAE: mas tu bateste com o olho onde # foi no livro?
O segundo porque parece ser um uso marginal do advérbio interrogativo,
aparecendo à cabeça de um enunciado interrogativo, em (176).
(176) T. 2;6.6
*MAE: ah@i # e o que é que tu disseste à doutora?
*T: eu di [: disse] a@ # eu caí.
*MAE: tu disseste a [?] ela que tu caíste # pois foi.
*ALS: hum@i.
*MAE: +< e mais?
*T: a@.
*MAE: e mais?
*MAE: que é que tu disseste mais a ela?
*T: po(r)que eu xx,, né [: não é],, o meu ai+ai?
*MAE: tu aleijaste e tinhas um ai+ai # pois é.
*MAE: e o que é que ela fez ao Tomás?
*T: u(m)a fita.
Em conclusão, as duas primeiras ocorrências de porque, nas produções de T.,
ilustradas em (175) e em (176), não correspondem ao uso estritamente causal deste
conector. O primeiro porque com valor causal nas produções de T. é atestado apenas
aos 2;9.7, no último ficheiro do corpus, depois de já terem sido produzidos mas
contrastivos.
227
Localizado o primeiro mas com características de conector contrastivo no eixo
temporal, aos 2;6.6, torna-se necessário proceder à descrição dessa e das produções
subsequentes. Assim, analisaram-se todas as produções com enunciados com mas,
distinguindo três contextos de ocorrência de mas: (i) suprafrásico, sempre que mas
ocorre como conector que ligue unidades superiores a períodos ou sempre que ocorre
como marcador discursivo de mudança de tópico, (ii) interfrásico, quando ocorre como
conjunção, a ligar enunciados oracionais, mesmo que esses enunciados sejam
descontínuos, por se tratar de interacções orais espontâneas e (iii) intrafrásico, em
contextos de ligação de constituintes (como em construções de Contraste Sintagmático)
ou em contextos de elipse (Capítulo 3). O quadro 6 sistematiza os resultados da análise.
Quadro 6 – Contextos de ocorrência de mas no corpus Santos (2006)
IDADE CONTEXTO 2;1.7 2;2.9 2;3.9 2;4.0 2;5.3 2;6.6 2;7.13 2;8.9 2;9.7 Total
Suprafrásico 0 0 — — — 0 1 1 1 3
Interfrásico 0 0 — — — 1 4 0 0 5
Intrafrásico 0 0 — — — 0 0 0 0 0
Finalmente, de forma a tornar a análise dos dados do português comparável com
a análise efectuada para o holandês, em Evers-Vermeul (2005), torna-se necessário
explicitar o valor semântico do conector mas que ocorre nos enunciados produzidos por
T. O quadro 7 apresenta esta informação.
Quadro 7 – Valores semânticos de mas no corpus Santos (2006)
IDADE CONTEXTO 2;1.7 2;2.9 2;3.9 2;4.0 2;5.3 2;6.6 2;7.13 2;8.9 2;9.7 Total
Aditivo positivo 0 0 — — — 0 1 0 0 1
Aditivo negativo 0 0 — — — 0 1 0 0 1
Causal negativo 0 0 — — — 1 3 1 1 6
Ao contrário dos resultados apresentados para a quase totalidade das crianças
holandesas, a primeira produção de mas de T. pode ter uma interpretação com um valor
«causal negativo», parafraseável por uma concessiva, como se pode constatar em (177)
e em (178).
228
(177) T. 2;6.6
*ALS: o que é que tu vais comer?
*ALS: estás aí a olhar.
*T: um [/] um pêssego.
*ALS: um pêssego?
*T: +< xx mas # tem # de se(r) # lavado [?].
*ALS: +< mas tens que lavar # poi(s).
*ALS: ah@i # tem de ser lavado # pois é.
Em primeiro lugar, pode afirmar-se que está excluída a hipótese de mas ter valor
negativo aditivo, sem qualquer traço de causalidade. Apesar de ser pouco natural a nível
pragmático, pelo grau de informalidade do contexto, é semanticamente legítima uma
paráfrase do enunciado de T. como a apresentada em (178), com uma concessiva.
(178) Paráfrase: Vou comer um pêssego, apesar de ter de o lavar.
Ao contrário, uma paráfrase com uma conexão com e e com uma interpretação
conclusiva só é aceitável pela natureza polissémica de e, mas não evidencia o valor
«aditivo negativo», como mostra o exemplo em (179):
(179) Paráfrase: Vou comer um pêssego e tenho de o lavar18.
Aliás, a pressuposição sobre a qual assenta a conexão estabelecida por mas, na
produção de T., parece ter uma natureza mais causal positiva do que estritamente causal
negativa ou concessiva. Note-se a equivalência do valor do enunciado em (180) com o
enunciado com mas de T., assumindo-se como pressuposição que «se é fruta para se
comer, tem de ser lavada»:
(180) Como vou comer pêssego, tenho de lavar.
18 Uma interpretação estritamente aditiva seria desviante.
229
Note-se que este valor causal / explicativo de mas, ignorado na análise de
Evers-Vermeul, é comum ao identificado na produção transcrita em (170). Esta
observação, neste conjunto de dados, reforça dois aspectos a ter em consideração no
estudo da aquisição de conectores: em primeiro lugar, como já antes se sublinhou, não
estão em causa valores primitivos isoláveis, mas valores primários e secundários
frequentemente adjacentes; em segundo lugar, em determinados contextos, pode
observar-se pelo menos alguma contiguidade semântica entre enunciados com
conectores contrastivos factuais e enunciado com conectores causais (Rudolph: 1996;
Varela: 2000)19.
A leitura do quadro 7 mostra também que a maioria dos mas produzidos por T.
são verdadeiros conectores contrastivos, inerentemente causais negativos como (182),
parafraseável por uma concessiva, como (183).
(182) 2;7.13
*TOM: i(s)to é uma ca +...
*TOM: estes # é um (bo)cadinho da canoa.
*MAE: da canoa?
*ALS: +< [=! ri].
*TOM: é.
*ALS: é a canoa do pai?
*MAE: +< hum@i.
*TOM: não # é uma canoa ve(r)melh(a) <não é> [//] # mas # não é # do pai.
(183) Paráfrase: É uma canoa vermelha, embora não seja a do pai.
Naturalmente, a escassez de produções encontradas nesta análise de produções
de apenas uma criança não permite chegar a conclusões totalmente robustas. A análise
de mais dados permitirá validar algumas hipóteses que, de qualquer forma, são
suscitadas pelos dados desta amostra.
19 Varela (2000, 131) defende a equivalência semântica, em algumas construções, entre conectores causais e conectores concessivos, em exemplos como (i) e (ii): (i) Ele é rico. Não é feliz por causa disso. (ii) Ele é rico. Não é feliz apesar disso. Contudo, a interpretação destes enunciados como equivalentes não parece ser totalmente natural.
230
A análise desta amostra de produções precoces, em português, permite
problematizar uma das hipóteses teóricas de Evers-Vermeul (2005), fundada na
hierarquização de primitivos semânticos para explicar a ordem de emergência entre
conectores de classes diferentes. Sendo mas o segundo conector mais precoce, logo a
seguir a e, confirma-se a sua emergência antes de porque, o que está em consonância
com os dados do holandês. Contudo, o que, de forma crucial, pode pôr em causa a
hipótese desta linguista é o facto de as primeiras produções de enunciados com mas
expressarem conexões em que está presente, de forma inequívoca, o valor de
«causalidade negativa» comum a adversativas e a concessivas factuais, sendo apenas
duas as ocorrências de mas sem traços de causalidade.
De qualquer forma, este contra-argumento, identificado a partir da análise dos
dados do português, foi antes identificado quer na análise dos dados do inglês, por
exemplo com os enunciados transcritos em (166) e (167), nos quais se reconhece a
possibilidade de paráfrase com concessivas, como em (168) e (169), quer nos próprios
dados do holandês, que ficam por explicar, como o exemplo (170), que, ainda que não
seja parafraseável por uma concessiva, aparece antes de want e parece poder ter uma
leitura explicativa.
Complementarmente, outra objecção pode ser colocada à proposta teórica de
Evers-Vermeul: o facto de não ser preditiva quanto a uma ordem de emergência
alargada a conectores de outras subclasses semânticas, como os concessivos. De facto,
com base na conjugação dos primitivos semânticos adoptados pela autora, será
impossível encontrar uma explicação para o carácter tardio da emergência de
concessivas, que partilham das propriedades de adversativas quanto a polaridade, valor
semântico básico e ordem temporal. Afinal, partilhando as concessivas factuais destas
propriedades de adversativas, o que explica a sua emergência, efectivamente mais
tardia?
5.1.2. Que factores poderão explicar as ordens de emergência encontradas para os
conectores mais precoces? Que relação existe entre emergência e frequência no
input? Qual o papel do input na aquisição dos primeiros conectores?
O paralelismo entre precocidade de emergência de um conector e frequência de
uso, considerando tanto resultados globais como resultados por indivíduo é um dado
que sobressai da discussão da secção anterior, com particular destaque nos quadros 1, 2
231
e 3. A constatação da existência de tal paralelismo, porém, não se limita ao caso
particular da aquisição do conector adversativo e do conector causal, em inglês,
holandês e português, nas produções espontâneas das crianças. A consulta dos dados de
aquisição e dos resultados do teste de produção de texto, na secção 4.3., revela que os
conectores que primeiro aparecem são os mais frequentes nos enunciados produzidos
pelos mesmos sujeitos, quer nas produções espontâneas, quer nas produções escritas das
crianças e dos adultos. A conclusão de que emergência e frequência são
correlacionáveis ou, pelo menos, coincidentes é uma evidência consistente, suportada
pela análise quantitativa.
Retomando alguns dos resultados referidos, os quadros 8 e 920 permitem o
confronto entre escala de emergência de conectores de classes distintas e escala de
frequência dos mesmos conectores.
Quadro 8 - Emergência de conectores no corpus de Santos (2006)
I. T. I.M.
mas 2;4.19 2;1.7 2;2.18
porque 2;3.8/ 2;5.24 2;6.6 2;3.22
se 2;7.16 2;9.7 2;5.23
Quadro 9 – Proporções de conectores no corpus de Santos (2006)
I. T. I.M.
mas 0,0127 0,0023 0,0024
porque 0,0076 0,0005 0,0006
se 0,0009 0,0003 0,0004
Também com o intuito de pôr em confronto escalas de primeiras ocorrências em
produções escritas e escala de frequência, apresentam-se os quadros 10 e 1121, que, além
do mais, revelam que as ordens encontradas nos dados de aquisição e as ordens
encontradas nos dados de produções escritas são equivalentes relativamente aos
conectores mais precoces: mas, porque e se.
20 Secção 4.3.1., quadro 6 e quadro 10. 21 Secção 4.3.3., quadros 30 e quadro 31.
232
Quadro 10 – Escala de conectores mais precoces na produção de texto
mas porque se embora enquanto
9;3.13 9;5.01 9;6.26 9;11.13 14;8.03
Quadro 11 – Escala de proporção de conectores na produção de texto
mas porque se apesar de22 enquanto
5,38 5,25 4,61 0,59 0,03
Relativamente aos dados de produção, destaca-se a confirmação generalizada de
que existe, se não uma correlação, pelo menos uma coincidência entre precocidade de
emergência e frequência de ocorrências, nas produções das crianças, o que não é
novidade nos estudos de aquisição de conectores.
Paralelamente, no que diz respeito à frequência de estruturas linguísticas no
input, esta tem sido uma das explicações amplamente exploradas em estudos de
modelos de abordagem «usage based». Em estudos com este enquadramento teórico,
defende-se a existência de uma correlação positiva entre emergência de certas estruturas
linguísticas e frequência dessas estruturas no input, avançando-se para hipóteses que
apontam esta correlação como factor explicativo de ordens de emergência (Bybee:
1995; Langacker: 1988, e.o). Importa, contudo, esclarecer que os dados de frequência
que estão em apreciação não são dados de frequência no input, em sentido estrito, uma
vez que se trata da quantificação de produções no mesmo corpus em que se
identificaram as primeiras ocorrências. Assim, ao contrário de uma conclusão clássica
sobre eventuais correlações entre frequência no input (por exemplo, no input parental) e
precocidade de emergência, aponta-se para o facto de os conectores de uso mais
frequente na gramática da língua serem os primeiros conectores a ser adquiridos,
independentemente de se tratar da gramática do adulto, coincidente com o input, ou de
gramáticas mais precoces. Embora possa parecer que esta conclusão favorece uma
perspectiva «usage based», segundo a qual há uma relação de causalidade entre
frequência de uma unidade linguística no sistema e emergência dessa unidade, o
paralelismo encontrado, em dados recolhidos nas produções dos mesmos sujeitos, é um
22 A comparação entre os quadros 10 e 11 mostra que embora parece ser o conector mais precoce e apesar de o mais frequente. Como se fez notar na secção 4.3., a diferença de idades entre o aluno autor da concessiva de embora (9;11.13) e o autor da concessiva de apesar de (9;11.17) é de apenas quatro dias, o que não é muito significativo.
233
argumento mais favorável à defesa de hipóteses que pretendem explicar ordem de
emergência com base em factores internos à teoria linguística. Resultados como os
observados não descartam a hipótese de que a explicação para precocidade de
ocorrência e para frequência seja comum, residindo nas propriedades inerentes às
unidades linguísticas e ao seu funcionamento no sistema.
Alguns estudos, como os de Tomassello (2003), tentam articular a importância
atribuída ao input e factores internos à teoria linguística. No estudo da aquisição de
frases complexas, numa tese enquadrada pela linguística cognitiva e funcional, Diessel
(2004) defende que o input tem um papel preponderante na explicação da ordem de
aquisição de estruturas com determinados conectores, em inglês. Segundo este autor,
«The more frequently a complex sentence occurs in the input data, the earlier it
emerges in children’s speech. This suggests that input frequency plays a key role in the
acquisition process.» (idem: 6). Apesar de tomar a frequência como um factor chave
para a explicação das aquisições precoces, este factor interage com outro, a noção de
complexidade estrutural, interna ao sistema: «the order of acquisition is at least
partially determined by the semantic and morphosyntactic complexity of the emerging
constructions» (ibidem).
Considerando que ambos os factores, frequência e complexidade estrutural,
desempenham um papel na explicação da ordem de emergência da aquisição, a
discussão sobre o peso explicativo que cada um pode assumir não é fácil de discernir.
Sobre este aspecto, Diessel afirma que «Since the earliest complex sentences are not
only simple but also frequent, complexity and frequency are difficult to disentangle;
both correlate very closely with the order of acquisition.» (ibidem)
Equacionando o papel da frequência no input e da complexidade das unidades
emergentes em moldes diferentes, o estudo de Evers-Vermeul (2005) adopta uma
abordagem multifactorial para encontrar explicações para a ordem de aquisição de
conectores e admite explicações exclusivamente internas à teoria, com base na
complexidade sintáctica, na complexidade semântica e também na complexidade
pragmática, que explicam aspectos da frequência de uso das estruturas com conectores.
Em relação ao papel do input na aquisição de conectores, um contributo interessante do
estudo de Evers-Vermeul é a atenção a aspectos metodológicos no estudo do input
parental, criticando o facto de escalas como as apresentadas nos quadros anteriores, que
são usadas para evidenciar correlações entre frequência e ordem de emergência, serem
escalas que consideram apenas valores de quantificações totais de produção. Segundo a
234
autora, uma análise qualitativa da evolução do input permite outras conclusões sobre o
efeito do ambiente linguístico na aquisição.
A hipótese de que o input não é estável, havendo efeitos de modelização do
discurso dos pais ao nível de desenvolvimento das suas crianças, tem sido suportada por
alguns estudos empíricos. Por exemplo, os resultados de McCabe & Peterson (1997),
ainda que indirectamente, apontam para a existência de efeitos de adaptação dos
estímulos da linguagem dos pais: «They found that parents predate their children’s
so-called spontaneous explicit expression of causal links by approximately five months.
According to McCabe & Peterson (1997: 151), parents “scaffold their children’s
emergent causal language by asking questions, repeating or revising such questions,
occasionally answering those questions themselves, or abandoning them. Children
respond to parental causal questions before they make statements of causal connection
without such prompts (…).» (McCabe & Peterson: 1997, 151 apud Evers-Vermeul:
2005, 204).
De forma a avaliar, nos seus próprios dados, a validade de hipóteses como as de
Tomasselo (2003), segundo as quais as frequências do input parental são um factor
explicativo determinante, Evers-Vermeul apresenta uma análise estatística das
produções do conector toen na fala de duas irmãs e da mãe de ambas. Esta análise
quantitativa, que constitui uma vertente da sua abordagem multifactorial, é um
interessante contributo para o estudo do papel do input parental, uma vez que se trata de
uma mãe comum a duas crianças diferentes. Os resultados mostram que os índices de
produção da mãe não são estáveis, diferem entre as duas crianças, adaptando-se ao
estádio de desenvolvimento de cada uma. Em concreto, os picos de produção de toen no
discurso da mãe ocorrem em momentos diferentes no discurso dirigido a cada uma das
filhas, deixando em aberto a hipótese de que a frequência do input possa ser explicada
como efeito de modelização ao estádio de desenvolvimento da criança, em vez de, como
se preconiza em abordagens «usage based», ser o factor explicativo da aquisição.
Partindo de hipóteses como a explorada em Evers-Vermeul e tendo em
consideração a observação de que havia uma equivalência entre as frequências de
proporção dos conectores e, mas, porque e se nas interacções espontâneas das crianças e
nas das suas mães, Costa et al. (2008) procedem a uma análise estatística para confirmar
a existência de correlação entre as frequências das crianças e as das mães. Nesta análise,
foi aplicado um modelo estatístico de regressão linear, através do qual se procurou
verificar se a frequência de conectores no discurso da criança se comportava como uma
235
variável preditiva da frequência de conectores no discurso das mães, facto que
confirmaria a existência de modelização do input ao estádio de desenvolvimento da
criança, e se, ao contrário, a frequência de conectores no discurso das mães podia ser
considerada uma variável preditiva da frequência de conectores no discurso das
crianças, o que confirmaria a influência na aquisição da frequência do input. Com o
modelo, pretendia-se testar também se o Tempo é uma variável preditiva da frequência
de conectores no discurso das mães, o que provaria que o input não é estável, e se o
Tempo é uma variável preditiva da frequência de conectores no discurso das crianças, o
que seria revelador de crescimento.
Os resultados obtidos revelam que o Tempo é a variável com maior capacidade
preditiva dos conectores e, mas, porque e se na produção dos mesmos no discurso das
crianças, como seria de esperar, sendo sinónimo de crescimento, mas também no
discurso das mães, o que é, de certa forma, surpreendente. Se bem que se observe que os
quatro conectores analisados sejam cada vez mais frequentes, ao longo das observações,
o modelo não permitiu confirmar, não sendo conclusivo, que a frequência no discurso
das mães tenha capacidade preditiva da frequência dos mesmos conectores no discurso
das crianças, o que impossibilita qualquer conclusão em relação ao papel da frequência
do input parental na aquisição. Ao contrário, e embora não se tenha chegado à mesma
conclusão relativamente a todos os conectores, no caso do conector mas, a frequência
no discurso das crianças teve valor preditivo da frequência no discurso das mães: «a
frequência no discurso das crianças é capaz de explicar 12% da variação no discurso
das mães, sendo esta correlação significativa (p < .05)» (idem, 138).
Destes resultados, os autores destacam duas principais conclusões, uma relativa
ao papel da frequência do input e a outra relativa à instabilidade do input. Em primeiro
lugar, a hipótese de que a frequência de conectores no input é determinante para a
ordem de emergência e para a própria frequência no discurso das crianças não pôde ser
confirmada pelo modelo, o que não favorece abordagens «usage-based». A segunda
conclusão destaca-se pelo facto de os resultados mostrarem que o input não é estável,
confirmando hipóteses como as de McCabe & Peterson (1997) e de Evers-Vermeul
(2005): se a frequência de conectores no discurso das mães pode ser descrita com uma
linha de crescimento, o que não é esperável em situação de fala espontânea do adulto,
então poder-se-á admitir que há adaptação do discurso das mães ao estádio de
desenvolvimento da criança.
236
Os resultados da pesquisa sobre a aquisição precoce de concessivas, feita de
forma complementar ao trabalho desenvolvido em Costa et al. (2008), tendo por
referência o mesmo corpus, contribuem com mais dados favoráveis à hipótese de que o
input não é homogéneo.
A quantificação da produção de conectores contrastivos no discurso das mães,
apresentada em pormenor na secção 4.3., foi sintetizada no quadro 12, que é ilustrativo
da frequência de uso de conectores contrastivos no input materno.
Quadro 12 – Totais de conectores contrastivos produzidos pelas mães no corpus Santos (1996)
mas mesmo assim mesmo que nem que
1115 2 1 1
Embora a desproporção entre o número de ocorrências do segundo conector
mais precocemente adquirido pelas crianças – mas – e os demais conectores
contrastivos deixe clara a pouca saliência destes últimos do input materno, destacou-se
o facto de a concessividade não estar totalmente ausente do input com que as crianças
contactam. Mas, mais significativa ainda, é a constatação de que os quatro conectores
concessivos nunca aparecem em contextos de discurso dirigido às crianças, ocorrendo
em todos os casos em contextos de interacções entre adultos. Esta observação, além de
confirmar que não há homogeneidade no input, no que diz respeito à linguagem dirigida
às crianças, permite alguma especulação sobre o que parecem ser intuições dos adultos
acerca do estádio de desenvolvimento em que as crianças se encontram. Na verdade,
esta pesquisa de concessivas dos adultos em interacção com crianças mostra que estes
adultos, que recorrem abundantemente a nexos contrastivos com mas, escolhem não
usar concessivas quando se dirigem às crianças, embora as usem com outros adultos. A
natureza destas intuições, radicadas em conhecimento linguístico, justifica futura
investigação, que talvez venha a contribuir com mais informações sobre o papel
específico do input na aquisição. Um aspecto adicional, que parece interessante, será
aferir o grau de acerto das intuições dos adultos sobre o conhecimento linguístico das
crianças.
Um problema identificado na análise de Costa et al. (2008) foi a não
coincidência entre crescimento da produção de conectores no discurso das mães e a
confirmação do valor preditivo do discurso das crianças em relação ao das mães. Por
outras palavras, o modelo aplicado não pôde confirmar que a frequência de conectores
237
das mães espelhasse o número de conectores efectivamente produzido pelas crianças.
Este problema deixa em aberto a possibilidade de que os efeitos de modelização do
discurso das mães seja mais um efeito do que estas intuem sobre a capacidade de
compreensão das crianças do que uma adaptação ao que as crianças já estão aptas a
produzir, no domínio linguístico.
Em síntese, embora a incursão nos dados de aquisição precoce de conectores não
tenha confirmado integralmente a explicação de Evers-Vermeul (2005) para a ordem de
emergência de conectores com base em primitivos semânticos, a hipótese de que existe
uma relação de causalidade entre frequência no input e emergência na aquisição
também não pôde ser sustentada. Ainda que os resultados da análise quantitativa tenham
confirmado a existência de equivalência entre frequência e ordem de emergência dos
primeiros conectores, defendeu-se, com Evers-Vermeul (2005) e com Costa et al.
(2008) que os factores explicativos da ordem de aquisição podem ser os mesmos que
determinam a frequência de uma unidade ou de uma estrutura linguística. Ainda
relativamente ao papel do input na aquisição, a pesquisa sobre os conectores mais
frequentes contribuiu para a confirmação da existência de efeitos de modelização do
input, determinados por intuições dos adultos sobre o estádio de desenvolvimento
linguístico das crianças.
Numa perspectiva generalista, as duas hipóteses explicativas da ordem de
aquisição radicam uma nos efeitos da frequência do input e outra na complexidade
estrutural. As abordagens «usage-based», que encontram na frequência de ocorrência de
estruturas a razão para a precocidade de aquisição, deixam a descoberto a explicação
para as aquisições tardias, para além do factor temporal. Se a pouca frequência de
concessivas é para Diessel (2004, 157) uma das justificações para a inexistência desta
classe de orações nas produções do seu corpus, ficam ainda por explicar os factores que
viabilizam, apesar da pouca frequência, a aquisição de estruturas como estas.
Considerando a hipótese da complexidade estrutural, para explicar quer as
aquisições mais precoces, quer o carácter tardio de estruturas como as concessivas,
importa, antes de mais, obviar uma aparente contradição destas assunções relativamente
à aquisição de conectores. Por exemplo, Diessel conclui que as frases complexas que
são adquiridas primeiro são as mais frequentes e, simultaneamente, as menos
complexas, chegando mesmo a admitir a independência da complexidade como factor
explicativo da aquisição: «Since the earliest multiple-clause structures are both simple
and frequent, the two factors, i.e. frequency and complexity, are difficult to disentangle.
238
However, that complexity is an important factor independent of frequency is suggested
by the ‘delay’ in the acquisition of some especially complex structures» (idem, 178)23.
Se se preconizar que são as estruturas e unidades menos complexas as que são primeiro
adquiridas, como explicar que são conectores plurifuncionais, como o aditivo e e o
adversativo mas os primeiros a ser adquiridos? No paradigma das palavras conectivas, a
que corresponde a complexidade, se não for à acumulação de possibilidades de
distribuição sintáctica e de funções semânticas e discursivas? Então, em que medida
mas pode ser considerado menos complexo do que embora?
Conectores concessivos factuais e o conector mas são semanticamente
comutáveis em contextos em que este último ocorre em posições interfrásicas (Capítulo
3). Contudo, em alguns contextos, como em estruturas de Despojamento, em Contraste
Sintagmático ou na ligação de unidades discursivas, mas não pode ser substituído por
embora ou por apesar de (Matos e Prada: 2005). Do ponto de vista da acumulação de
funções, pela sua plurifuncionalidade sintáctica, semântica e discursiva, mas é um
conector mais complexo do que os conectores concessivos factuais. Constata-se, então,
que, havendo conectores com o mesmo valor, ao contrário do que seria esperado,
emerge primeiro o estruturalmente mais complexo. Esta conclusão conduz à reflexão
em torno de dois aspectos: em primeiro lugar, a explicação da aquisição de mas e, em
segundo lugar, o reconhecimento dos factores que podem explicar que os conectores
concessivos sejam adquiridos postumamente.
Relativamente à aquisição de mas, a amostra de dados de produção individual de
uma criança do corpus de Santos (2006) permite sustentar a hipótese de que, quando um
conector é adquirido, não é dominado o conhecimento inerente a toda a sua
complexidade desde o início. Conforme se pode ler no quadro 6, acima, das três funções
de mas, identificam-se três ligações suprafrásicas e cinco interfrásicas, não havendo
qualquer ocorrência do conector adversativo em contextos de ligação de constituintes
internos à frase ou em contextos de elipse. Hipótese semelhante poderá ser colocada em
relação aos valores semânticos do mesmo conector: registam-se seis casos de mas com
valor contrastivo básico, um caso com valor aditivo positivo e outro com valor aditivo
negativo.
23 Diessel admite ainda que outros factores confluem para a explicação do carácter tardio de algumas estruturas: «In addition to frequency and complexity, the pragmatic functions of complex sentences can
have a significant effect in their development.» (Diessel: 2004, 179)
239
A ideia de que um item plurifuncional, quando é adquirido, não é logo
plenamente dominado não é estranha na literatura sobre aquisição. A propósito de
aquisição de conectores, Evers-Vermeul (2005) discute o conceito de «aquisição»
distinguindo diferentes graus de domínio de um conector, desde a primeira emergência
até ao uso pleno de uma mesma unidade, que pode envolver a manifestação de
conhecimento linguístico da mesma unidade com distribuições gramaticais diferentes.
No que diz respeito à aquisição de mas, a autora defende que os usos mais precoces de
mas correspondem a um valor – aditivo negativo – que não é o seu valor básico, o que
constituiu uma perspectiva de aquisição progressiva da complexidade estrutural.
Em estudos de aquisição da plurifuncionalidade semântica de outras unidades,
hipóteses em certa medida equiparáveis têm sido apresentadas. Crain et al. (1992)
mostram que, em estádios precoces de aquisição, a interpretação dos diferentes escopos
do advérbio only não está disponível. Inicialmente, as crianças estão apenas aptas a
fazer uma interpretação de escopo largo. Só mais tarde, aplicam aos contextos
específicos as interpretações mais restritas e adequadas24.
Considerando a hipótese de que, quando o conector mas é adquirido, não o é
plenamente, mas apenas numa das suas funções, fica descartado o problema de ser
adquirido um conector estruturalmente mais complexo. Aliás, se a explicação para a
plurifuncionalidade for enquadrada por uma hipótese de subespecificação de traços, mas
será um conector subespecificado e menos complexo do ponto de vista da aquisição,
podendo entender-se que plurifuncionalidade não é sinónimo de complexidade para a
aquisição.
No entanto, mantém-se o problema de explicar que factores tornam a aquisição
dos conectores concessivos mais tardia. Ainda que, no estádio inicial de aquisição, mas
não seja um conector tão complexo como o é na gramática do adulto, não poderá ser
considerado estruturalmente menos complexo do que os conectores embora e apesar de.
Tendo sido infirmada a hipótese de que os primeiros conectores adversativos
tenham valor «aditivo negativo», ou outro diferente, com a análise das produções de T.
antes apresentada, pode considerar-se que conectores como mas, embora e apesar de
operam valor semântico primário equivalente - de contraste - não podendo ser a sua
complexidade semântica o factor diferenciador de ordem de aquisição. Do ponto de
vista distribucional, tanto o conector adversativo como os conectores concessivos têm
24 Para explicar esta evolução, Crain et al. (1992) recorrem ao «semantic subset principle».
240
comportamento de conjunções, ligando constituintes oracionais, o que também não
permite diferenciá-los. Que factores poderão, então, explicar a diferença de ordem de
aquisição entre conector adversativo e conectores concessivos factuais?
Seguidamente, ponderam-se três factores diferenciadores do conector
adversativo e dos concessivos, sendo um dos factores externo ao sistema linguístico e os
outros dois internos. O primeiro factor é a frequência, cujo papel na aquisição de
conectores, em geral, foi antes discutido, e os outros dois são, em primeiro lugar, as
diferenças sintácticas decorrentes da participação em estruturas de coordenação ou de
subordinação e, em segundo lugar, as diferenças envolvidas na selecção de modo,
especificamente de modo conjuntivo.
Como é evidente na análise quantitativa apresentada na secção 4.3., a frequência
de produção de mas é amplamente superior às produções de embora e de apesar de.
Mesmo considerando as produções dos adultos, que podem ser tomadas como evidência
da gramática do adulto e, por isso, do input adulto, a desproporção é elevada, como
ilustra o gráfico da figura 2.
Figura 2 – Proporções de conectores contrastivos factuais nas produções de adultos escolarizados25
Contudo, retomando a argumentação anterior, relativa ao papel do input na
aquisição de conectores, e tendo em consideração resultados de análises como a de
Evers-Vermeul (2005) e a abordagem estatística de Costa et al. (2008), verifica-se que,
embora se possa constatar que existe uma correlação positiva entre a precocidade de
25 Corpus de produção de textos por adultos escolarizados (secção 4.1., 4.3. e Anexos 4 e 5).
241
aquisição de mas e a sua proporção de ocorrência, não há evidência de que essa
correlação sustente uma relação de causa-efeito. Em consonância com o que é
defendido em Costa et al. (2008), conclui-se que os factores que poderão explicar a
precocidade de mas face a embora e a apesar de poderão ser, efectivamente, os mesmos
que explicam os valores de frequência deste conector. Afinal, por que razão um
conector é mais frequente que outros, seus equivalentes, no sistema?
A diferença estrutural mais óbvia entre o conector adversativo e os conectores
concessivos reside no facto de o primeiro participar numa estrutura de coordenação e os
segundos numa estrutura de subordinação. Face a isto, poder-se-á colocar a hipótese de
que, havendo dois conectores em concorrência, se adquire primeiro o conector
coordenativo, assumindo-se que a coordenação é adquirida mais precocemente. Alguns
argumentos, porém, fragilizam esta hipótese.
Primeiro, considerando uma abordagem descritiva, de entre os três tipos de
subordinadas, são as subordinadas adverbiais as que mais se aproximam de estruturas de
coordenação, pelo seu carácter periférico (Lobo: 2003), sendo subordinadas adjectivas e
subordinadas relativas estruturas que envolvem um maior grau de encaixe. Havendo
distinção a fazer entre graus de encaixe sintáctico, que justifiquem a diferença, na
aquisição, entre coordenação e subordinação, esta será menos evidente entre
coordenadas, como as adversativas, e subordinadas adverbiais, como as concessivas.
O facto de se defender que propriedades gerais da coordenação e da
subordinação não são suficientes para explicar as diferenças de ordem de emergência
entre adversativas e concessivas não exclui a hipótese de que propriedades da
subordinação que interagem com a interpretação, ao nível discursivo, não concorram, a
par de outras razões, para o carácter tardio da aquisição de concessivos. De entre estas,
destaca-se a mobilidade de subordinadas adverbiais, aspecto que será abordado
posteriormente.
Cumulativamente, do ponto de vista da aquisição da sintaxe, os dados
disponíveis para o inglês também não permitem concluir que as diferenças entre
coordenação e subordinação tenham impacto na diferenciação da ordem de emergência
de conectores coordenativos e subordinativos. Segundo os dados de Diessel (2004), há
produção de, pelo menos, algumas estruturas de subordinação completiva e relativa
desde cedo, a par da aquisição dos primeiros conectores coordenativos (como and e but)
242
e dos primeiros conectores subordinativos adverbiais (como because)26, sendo inviável
a suposição de que estruturas de coordenação emergem antes de estruturas de
subordinação. Aliás, na análise que propõe, Diessel (idem, 149-173) trata conjuntamente
os resultados da aquisição de estruturas de coordenação e de estruturas de subordinação
adverbial, tendo em consideração a contiguidade existente, quer no processo de
aquisição, quer na gramática do adulto: «adverbial subordination and clausal
co-orditation form a continuum of related constructions» (idem, 149).
Finalmente, um último argumento contra a hipótese de os conectores
coordenativos serem mais precoces do que conectores subordinativos é evidente se se
considerar o facto de, em inglês, because, conjunção subordinativa causal, emergir antes
de but, conjunção coordenativa adversativa. Por outro lado, tendo em consideração quer
os dados do corpus de Santos (2006), em Costa et al. (2008), quer as produções escritas
do quarto ano, sexto ano e nono ano, constata-se que, no paradigma semanticamente
contíguo de causais e explicativas, se adquire primeiro o conector porque, subordinativo
causal, e só mais tarde há produção de pois, enquanto conjunção coordenativa
explicativa27.
5.1.3. O modo conjuntivo é um precursor linguístico da aquisição de concessivas?
A obrigatoriedade de selecção de modo conjuntivo, decorrente do recurso à
maioria de conjunções e de locuções conjuncionais concessivas factuais (como embora,
ainda que, se bem que) e condicionais (como ainda que, mesmo que e mesmo se) tem
sido um aspecto encarado como uma razão para a menor frequência de concessivas e
para o seu carácter mais tardio. A este propósito, Edite Prada, defendendo, com
Martelotta (1998) e Lapa (1984), a preferência dos falantes pelas estruturas
26 Recorde-se que, segundo Diessel (2004), a ordem de emergência, coincidente com a escala de frequência, equivale a and > because > so > but > when > if. 27 A ocorrência do conector porque do paradigma dos causais/explicativos, nas produções de T. (corpus de Santos: 2006), que ocorre no último ficheiro, tem valor causal e não explicativo (embora pertença a um fragmento ancorado no contexto situacional), o que suporta a ideia de que, neste paradigma, se adquire primeiro a conjunção subordinativa e só mais tarde a coordenativa, como pois, ou a função coordenativa de porque: (i) T 2;9.7 *TOM: é # eu tenho t(r)ês. *MAE: pois tens. *ALS: [=! ri]. *TOM: po(r)qu(e) ist(o) é da cabeça. Nas produções espontâneas das crianças, não há produções de pois conjuncional explicativo.
243
adversativas, refere que estes, quando «optam pela concessiva, a sua escolha recai
sobre construções que não impliquem o uso de conjuntivo» (Prada: 2003, 666).
Com base na análise de dois corpora de produções escritas – o corpus A, com
textos produzidos por jovens entre os catorze e os vinte anos, e o corpus J, com um
conjunto aleatório de textos de jornais e de revistas, Prada (idem) conclui que, mesmo
no domínio da produção de conectores concessivos, se observa um recurso muito
limitado da produção de concessivas com conjuntivo. Em concreto, no corpus A, dos
vinte e oito exemplos de concessivas, apenas oito (28,6%) são estruturas com
conjuntivo. Um resultado paralelo pôde ser observado no corpus J: somente cinquenta e
cinco dos cento e noventa e três exemplos, ou seja, 28,5% das construções integram
verbos no modo conjunto. Com base nestes resultados, a autora propõe uma escala de
preferência na produção de contraste: (i) coordenada adversativa, (ii) subordinadas
concessivas sem recurso a conjuntivo e (iii) recurso a concessivas com conjuntivo.
Conclusões como a apresentada têm como implicação a sugestão de que o
conjuntivo é um modo ainda em estabilização, pelo menos em fases mais precoces da
escolarização. Por outro lado, a ideia de que as concessivas de infinitivo, preferidas
pelos jovens escritores dos corpus A de Prada (idem), são, na globalidade, mais
frequentes do que as concessivas de conjuntivo leva a concluir que um conjunto de
construções, como as de apesar de, não obstante, mesmo com gerúndio, entre outras,
são as preferidas pelos jovens escritores, em detrimento das concessivas de embora,
ainda que e mesmo que.
De forma a avaliar a hipótese de que o conjuntivo não está ainda adquirido em
fases iniciais da escolarização, procedeu-se a uma análise qualitativa dos textos
produzidos pelos alunos do quarto ano, de que se dá conta em seguida28. Posteriormente,
comparam-se os resultados obtidos no corpus de diagnóstico, relativamente à produção
de concessivas sem conjuntivo e de concessivas com conjuntivo.
Para a análise da produção de conjuntivo em textos do quarto ano,
seleccionaram-se, como relevantes, os contextos de uso obrigatório de conjuntivo
descritos em Duarte (1992), que são enunciados no quadro 13.
28 Estes dados foram primeiramente explorados em Costa (2006) e em Costa (2007).
244
Quadro 13 – Usos de conjuntivo em produções escritas de crianças entre os 9;3.13 e os 10;2.07
Contextos de uso obrigatório de Conjuntivo
Total de contextos
Total de estruturas correctas
% de estruturas correctas
FRASES MATRIZ Com advérbios como oxalá, talvez, … 1 1 100% Em frases imperativas e exclamativas 12 12 100%
FRASES COMPLEXAS Em subordinadas completivas finitas dependentes de verbos factivos, volitivos, optativos e declarativos de ordem
10
10
100%
Em algumas relativas restritivas com antecedente desconhecido ou com um antecedente que não existe
4
4
100%
Em algumas subordinadas adverbiais finitas conjuncionais 18 17 94,4% Total 45 44 -
A leitura do quadro 13 deixa perceber que foram identificados quarenta e cinco
contextos de uso de modo conjuntivo nos vinte e quatro textos dos alunos de quarto ano.
Entre estes contextos, encontram-se estruturas de conjuntivo em frases matriz, por
exemplo dependentes de advérbios como talvez, em (184), ou em frases imperativas
exortativas, de que é exemplo (185)29.
(184) *MK4 (9;10.09):Ora [%spe: Ura] aqui está uma resposta difícil [%spe: difísil]
mas um colega meu teve uma grande ideia [%spe: 0,] que era fazer clones dos
animais e assim talvez desse resultado [%spe: resoltado] [%spe: 0.] .
(185) * FF4 (9;7.28): Não estrague a vida dos animais .
Relativamente aos contextos de uso de conjuntivo em frases complexas, foram
identificadas estruturas com conjuntivo em orações relativas restritivas, exemplificadas
em (186), e em orações completivas dependentes de verbos factivos, volitivos e
optativos, como se ilustra em (187)30, com um verbo volitivo.
(186) * FA4 (10;2.07): 0apesar+de serem irracionais [%spe:inrracionais] [%spe: 0,]
devem ter um dono que goste deles (domésticos) .
29 O sublinhado é meu. 30 O sublinhado é meu.
245
(187) * FB4 (10;1.11):Espero que tenham gostado da minha opinião [%spe:
opiniam][%spe *,] e peço~vos [%spe:peso~vos] que sejam tão defensores dos
animais quanto eu .
Esta análise de contextos de uso de conjuntivo permitiu constatar que há maior
frequência de recurso a modo conjuntivo em contextos de subordinação adverbial, tendo
sido identificadas dezoito frases complexas deste tipo, entre as quais se contam uma
subordinadas adverbial final, construída com para que, em (188), uma subordinada
adverbial com valor temporal/condicional, construída com quando, em (190), duas
subordinadas adverbiais concessivas, ambas encabeçadas por embora, de que é exemplo
(189), e catorze condicionais construídas com a conjunção se.
(188) * FI4 (9;10.12): Os cientistas [%spe: 0,] em vez de trabalhar com os animais
[%spe: 0,] deviam era deixar fugir todos , para que eles não sofressem [%spe:
sufrecem] mais .
(189) * MJ4 (9;11.13): Embora alguns sobrevivam [%spe: subrevivam] , o seu Adn está
afectado por doenças , e isso pode contagiar os humanos .
(190) ME4 (10;0.26): Também as cobras às [%spe: ás] vezes são caçadas por bem para
eles [*] tirarem o veneno para [%spe: 0,] quando atacar alguma pessoa
[%spe: 0,] na [*] a envenenar .
Das catorze subordinadas condicionais, todas com valor hipotético, cinco são
orientadas para o passado, sendo construídas com imperfeito do conjuntivo, como (191)
e nove recebem uma interpretação hipotética de orientação para o futuro, tendo o verbo
no futuro do conjuntivo, como (192)31.
(191) * MK4 (9;10.09): O problema é que [%spe: 0,] se os clones tivessem problemas
[%spe: 0,] podiam atacar os humanos e assim gerasse [*] uma guerra entre
humanos e clones.
31 O sublinhado é meu.
246
(192) * ML4 (10;1.05): Mas se não o fizerem haveremos de chegar a uma altura em que
não temos mais animais .
Como se pode depreender da leitura dos exemplos apresentados, as formas
verbais de conjuntivo seleccionadas são morfologicamente adequadas, havendo apenas,
com bastante frequência, erros de representação gráfica dessas formas. O quadro 14 dá
conta dos tipos de erros encontrados no uso de formas verbais de conjuntivo.
Quadro 14 – Tipologia de erros de conjuntivo em produções de crianças entre os 9;3.13 e os 10;2.07
FORMAS COM ERROS
FORMAS
CORRECTAS
ORTOGRÁFICOS
MORFOLÓGICOS
SINTÁCTICO-
-SEMÂNTICOS
6 0 1 11
33,3% 0% 5,5% 61,1%
No quadro apresentado, consideram-se formas com erros ortográficos as formas
de conjuntivo representadas, na escrita, de modo incorrecto, sendo disso exemplo as
transcrições dos dados em (188) e em (189) acima, na linha [%spe]. O conhecimento de
língua implicado no conhecimento ortográfico decorre, naturalmente, do ensino formal
e a percentagem de erros identificada corresponderá a problemas na aprendizagem
formal da escrita, que poderão ser justificados pelo facto de se tratar, apenas, de um
quarto ano de aprendizagem desta competência.
Não foram encontrados quaisquer erros morfológicos nas formas de conjuntivo,
ou seja, não foram encontradas representações gráficas que pudessem indiciar um mau
domínio da estrutura interna das formas verbais em análise, o que leva a concluir que
não há evidências para se afirmar que a morfologia do conjuntivo possa ainda estar em
fase de aquisição ou de estabilização. Desta forma, mesmo que se considere a hipótese
de que o conjuntivo é um precursor linguístico da aquisição de concessivas, fica
fragilizada a hipótese de que o não domínio do conjuntivo justificaria a fraca ocorrência
de concessivas, dado que se pode concluir que os alunos, no quarto ano, dominam o
conjuntivo nos seus contextos de uso obrigatório, embora praticamente não produzam
concessivas.
Foram considerados erros sintáctico-semânticos os erros que envolvem uma má
selecção de tempo e modo do verbo da subordinada, o que tem implicações na coesão
247
têmporo-modal interna à frase complexa. A transcrição em (193) é o único exemplo de
erro semântico, na construção de um enunciado condicional32.
(193) *MD4: Eu não acho bem o que estão a fazer aos animais , porque [%spe: por
que] os animais [%spe: animai] são nossos [%spe: nosos] amigos e nós
devemos protegê~los [%spe: protegelos] senão [%spe: se não] qualquer dia
os cães [%spe: 0,] os gatos , os macaco [*] e muitos [/?] animais ficariam em via
[*] de extinção [%spe: estinção] , [%spe: 0;] mas se não pormos [*] a
vida dos animais [*] [%spe: 0,] púnhamos [%spe: punhamos] a vida das
pessoas [%spe: *,] e eu também não gosto disso .
No dado transcrito em (193), a selecção de uma forma de infinitivo flexionado
do verbo pôr, a forma pormos, em vez da selecção de imperfeito do conjuntivo, na
subordinada condicional, motiva um erro sintáctico, por má selecção de modo, e um
erro semântico, pela descontinuidade provocada na coesão têmporo-modal da frase
complexa, decorrente da ocorrência de imperfeito do indicativo na subordinante. Ora,
este tipo de erro é idêntico a outros desvios encontrados nas produções de concessivas
das crianças do quarto ano, no teste de produção induzida de frases, e também se
assemelha a erros atestados nos dados de Prada (2003), parecendo ter alguma relevância
para a descrição do estádio de desenvolvimento em que se encontram estes alunos
relativamente a conhecimento inerente a coesão têmporo-modal.
Em conclusão, face à análise de usos de conjuntivo nas produções de alunos do
quarto ano, o menor uso de construções concessivas com recurso a este modo, que
resulta na fuga ao conjuntivo observada em Prada (2003), não pode ter como causa o
facto de o modo conjuntivo ainda não estar adquirido por volta dos dez ou onze anos.
Nesta fase, os alunos recorrem a formas do conjuntivo em contextos de uso obrigatório,
em consonância com os padrões da gramática do adulto. O erro encontrado, transcrito
em (37), não evidencia que se evite o conjuntivo, mas que haja problemas de selecção
têmporo-modal na estruturação da frase complexa.
Note-se ainda que os dados de produção de concessivas na escrita de textos por
alunos do quarto ano não permitem corroborar totalmente o segundo parâmetro da
escala de produção de estruturas contrastivas, proposta em Prada (2003), segundo a qual
32 O sublinhado é meu.
248
são preferencialmente usados os conectores concessivos que não requeiram a selecção
de conjuntivo, tanto entre os jovens escritores, no corpus A, como nas produções
escritas da imprensa, no corpus J. Considere-se a figura 333.
Figura 3 – Proporções de conectores concessivos
Tendo em consideração a totalidade de conectores concessivos produzidos pelos
alunos do ensino básico, por um lado, o pelos escritores adultos, por outro, verifica-se
que a conclusão de Prada (idem) é validada, sendo apesar de o conector com maior
proporção de uso entre os escritores mais jovens34, se se considerarem apenas os
conectores conjuncionais. Na totalidade das produções, observa-se igualmente que a
proporção de uso de conectores que não exigem conjuntivo (apesar de, mesmo, não
obstante, ainda assim e mesmo assim) é superior à proporção de uso de conectores de
conjuntivo (ainda que, embora, mesmo que). Esta situação inverte-se nas produções dos
adultos.
Ao contrário do observado por Edite Prada, no corpus J, as produções de textos
de adultos escolarizados revelam uma proporção superior de uso de conectores que
33 A figura 3 é a figura 5 na secção 4.3. 34 Apenas a consideração das produções do sexto ano isoladamente contraria este raciocínio. Contudo, o número de produções isoladas, correspondente a um apesar de, um embora e um mesmo que, é escasso para a apresentação de uma contra-argumentação.
249
exigem o recurso ao conjuntivo (0,49% de conectores com conjuntivo vs. 0,42% de
conectores sem conjuntivo). Esta constatação poderá consolidar a ideia de que o recurso
a estruturas com conjuntivo é uma marca do perfil de escrita adulto. Contudo, esta
hipótese só poderia ser inteiramente verificada mediante a análise de proporções de uso
de outras estruturas de conjuntivo, para além das concessivas. De qualquer forma, a
constatação de que os jovens escritores produzem menos concessivas de conjuntivo do
que os escritores adultos escolarizados, que manifestam um uso mais diversificado de
conectores e recorrem mais a construções concessivas com conjuntivo, corrobora a
hipótese de que o domínio pleno de concessivas de conjuntivo é uma característica do
perfil de níveis superiores de mestria de língua e, consequentemente, de literacia
linguística e de literacia de escrita.
5.2. O conhecimento envolvido na aquisição de concessivas
Na secção anterior, discutiram-se factores candidatos a ter poder explicativo
sobre o carácter tardio da aquisição e mestria de produção de estruturas concessivas. A
análise dos dados proposta excluiu a ideia de que cada um destes factores, considerado
isoladamente, poderia constituir a explicação dominante do facto de as concessivas
serem adquiridas mais tarde e do facto de, simultaneamente, terem um baixo índice de
frequência. Assim, a análise da influência do input, como factor preponderante na
explicação do carácter tardio dos conectores concessivos, conduziu à conclusão de que
este factor, externo às características intrínsecas das unidades em análise, não tem um
poder explicativo suficientemente forte. As hipóteses que radicam numa análise interna
ao funcionamento do sistema linguístico também não puderam ser sustentadas: a
hipótese de Evers-Vermeul (2005), de que a causalidade negativa, inerente ao valor
semântico de adversativas e concessivas, é adquirida mais tarde não foi validade pela
análise de dados do português. De igual modo, outras duas hipóteses assentes em
características gramaticais cruciais na descrição de concessivas – o facto de serem
estruturas de subordinação e o facto de estarem frequentemente associadas ao uso de
modo conjuntivo – foram excluídas, não podendo os factores em análise ser
considerados razões inequivocamente fortes para a explicação da aquisição e domínio
tardio de concessivas.
Assumindo uma abordagem multifactorial da questão – a explicação do carácter
tardio da aquisição de concessivas - analisam-se, nas secções seguintes, factores que,
250
concomitantemente, concorrem para o facto de estas estruturas serem compreendidas,
produzidas e usadas tardiamente.
5.2.1. Que tipo de conhecimento pode ser factor explicativo do carácter tardio da
aquisição de concessivas?
Tanto nos dados de produção de texto, em Prada (2003), como em alguns dados
de produção de texto dos alunos do quarto ao nono ano e, em particular, nos dados de
produção induzida de frases, os erros mais salientes, nas estruturas concessivas, são
desvios que radicam ou numa errada selecção de modo ou numa selecção de tempo do
conjuntivo errada, com consequências nefastas para a coesão têmporo-modal. Um
terceiro tipo de desvio evidencia um domínio incipiente da manutenção aspectual que
tem de ser garantida para a coesão de uma estrutura complexa concessiva. Dada a
proeminência de desvios como os enunciados nos dados que se apresentam em seguida,
defende-se, como em Costa (2007), que o domínio tardio de conhecimento linguístico
de natureza sintáctico-semântica, responsável pela coesão têmporo-modal e pela coesão
aspectual na estruturação de enunciados frásicos complexos, é um dos factores que
justificam o carácter tardio da aquisição de concessivas, provavelmente o principal, pelo
carácter matricial do conhecimento envolvido.
Nos dados apresentados em Prada (2003), entre as produções de alunos a
frequentar o oitavo ano ou com quinze anos, encontram-se erros que revelam
desconhecimento lexical do item conjuncional, manifesto na produção de um conector
concessivo com uma estrutura interna inexistente no português europeu padrão. São
casos desse tipo os exemplos que se reproduzem em (194) e (195):
(194) *Gosto muito dos amigos, embora de conhecer poucos. 15B02A02
(195) *O tempo está óptimo embora que as noites estejam frescas. 8ºD, Fev. 200035
Este tipo de erro, que revela que os itens correspondentes aos conectores
concessivos não estão disponíveis no léxico activo destes falantes, pelo menos no
formato padrão, também foi encontrado no teste de produção de frases de alunos do
35 Exemplos (12) e (15) em Prada (2003, 671-672).
251
nono ano. O único «não obstante» conjuncional, que ocorre numa produção de um
aluno de nono ano, corresponde a uma locução com uma estrutura desviante, com
consequências nos critérios sintácticos de selecção têmporo-modal.
(196) *WRI51 (16;10.20): Eu acho que não se deve fazer experiências [%spe:
experiencias] em animais , porque [%spe: 0,] não+obstante de [*] serem
importantes para a descoberta de vacinas [%spe: 0,] que sem dúvida é o mais
importante [%spe: 0,] não acho que se devam utilizar animais .
Se este erro de desconhecimento de propriedades de selecção de itens funcionais
tem registo até uma idade que pode ser considerada tardia para a mestria de uma língua
materna – o final da escolaridade básica –, há outro erro sintáctico do mesmo tipo que
permanece até bem mais tarde: a não selecção de conjuntivo em estruturas com
conectores que o exigem. Este erro é atestado tanto nos dados de Prada, em (197) e
(198)36, como em produções de adultos escolarizados, em dados como os de Costa
(2005), reproduzidos em (199) e em (200)37. Nos quatro exemplos que se transcrevem
em seguida38, os conectores seleccionados são, com a excepção de ainda que, que é
ambíguo, conectores típicos de concessivas factuais.
(197) (?) Se algum dia puder viajar para outros planetas, vou, se bem que eu acho
impossível acontecer na minha geração… 19C06D01
(198) *Embora consideram em privado esta situação “inaceitável”, os quinze assumem
que têm de ser realistas… Público, 10/12/1999, p.4
(199) *Olá, Muito Boa tarde. Tal como a Sonia, eu também adquiri um último andar
nas Colinas. Ainda não estou lá a morar, ainda que vou lá muitas vezes. [Fórum on-
line JFQA]
(200) *Se bem que os sindicatos nem sempre conseguem atingir todos os seus
objectivos, a história tem mostrado que (...) [“Sup” Jornal da Fenprof Nº51]
36 Exemplos (18) e (19) em Prada (2003, 672). 37 Exemplos (19) e (22) em Costa (2005, 500-501). 38 O sublinhado é meu.
252
Ressalve-se, como foi descrito no Capítulo 3 relativamente a este erro, que de
acordo com Epiphanio Silva Dias (1917), a opção por um tempo do modo indicativo
num enunciado concessivo corresponderia, numa diacronia anterior da nossa língua, à
marcação de uma leitura factual. Assim, poder-se-á colocar a hipótese de que as
hesitações dos falantes relativamente ao modo seleccionado na concessiva, em
enunciados de interpretação factual, possam corresponder a um traço residual de uma
diacronia da língua que atribuía ao indicativo a leitura factual. Porém, outros erros de
selecção, sinais inequívocos de mau domínio tardio, são ilustrados nos dados de Prada,
como a selecção de infinitivo, em (201)39:
(201) *Embora estar cá só há dois dias gosto muito desta escola. 15B02A01
Além de desvios em enunciados concessivos prototipicamente factuais,
diferentes estudos têm identificado desvios, com um elevado grau de aceitabilidade por
parte dos falantes, de selecção de indicativo com locuções tipicamente
condicionais-concessivas, como mesmo se. Em (202) e (203), reproduzem-se dois
exemplos, de Varela (2000) e de Prada (2003), respectivamente.
(202) Mesmo se a distribuição da população não é normal, a distribuição das médias
tende a aproximar-se da normal. (Varela: 2000, 56)
(203) Mesmo se Ancara está longe de reunir as condições (...) para iniciar as
negociações de adesão, o novo passo traduz a vontade dos quinze de trazer a Turquia
para a esfera europeia... Público, 10/12/1999 (Prada: 2003, 672)
A propósito de desvios deste tipo, e da sua frequência e aceitabilidade, Costa
(2005) levanta a hipótese de, sem invalidar a interpretação condicional-concessiva do
enunciado, se tratar de uma estrutura de modificação de uma oração condicional de se
pelo advérbio mesmo. Não se tratando da locução conjuncional concessiva mesmo se,
mas sim de uma oração condicional real, estaria explicada a aceitabilidade do enunciado
com indicativo, mais uma vez associada a leitura fortemente factual.
39 Exemplo (14) em Prada (2003, 672).
253
De desvios deste tipo, com mesmo se e indicativo, não se encontram ocorrências
nas produções textuais, nem entre os escritores mais jovens, do ensino básico, nem entre
os escritores mais experientes do grupo de adultos escolarizados. Aliás, ao contrário dos
resultados encontrados para o corpus A de Prada (2000; 2003), nos quais, das vinte e
oito concessivas encontradas, catorze são estruturas desviantes (Prada: 2000, 205), no
corpus de produções escritas de alunos do quarto ao nono ano a incidência de
concessivas com desvios em relação à gramática alvo é relativamente baixa, como se
pode verificar no quadro 15. De facto, o que é notório neste corpus, face ao número
total de textos (vinte e quatro no quarto ano, dezassete no sexto ano e cento e vinte e
sete no nono ano), é a diminuta produção destas estruturas.
Quadro 15 – Total de concessivas canónicas e desviantes no corpus de produção de texto
4º Ano40 6º Ano 9º Ano
Canónicas 6 3 49
Desviantes 1 0 4
A estrutura mal construída produzida por um aluno do quarto ano consiste num
curioso dado que parece evidenciar uma tentativa de expressão da condicionalidade
concessiva numa estrutura com apesar de, seguida do verbo modal poder41. Das quatro
estruturas desviantes encontradas nas produções de nono ano, conta-se um caso de
selecção de indicativo numa concessiva com embora, a violação das propriedades de
selecção de não obstante e duas situações de desvio semântico no uso de estruturas com
apesar de e mesmo que. Os resultados do quadro 15 reflectem a ausência generalizada
do recurso a concessivas, mesmo nos textos de opinião dos alunos no final da
escolaridade básica.
Não havendo produção significativa de concessivas nos textos escritos pelos
alunos do quarto ao nono ano, importa considerar os dados de produção de concessivas
no teste de indução de estruturas. A análise das estruturas concessivas, em particular as
desviantes, produzidas numa situação em que os alunos foram levados a construir
40 Incluem-se as duas produções do sujeito FA4 não contabilizadas na análise quantitativa, por se tratar de um apesar de sintagmático (apesar de tudo), num caso, e de uma estrutura mal construída de apesar de com o verbo poder, no outro. 41 Trata-se do enunciado em (i), que se analisa adiante, em (82). (i) *FA4: <As pessoas que não tratam bem os animais [%spe: 0,] apesar+de mais tarde o mal se poder virar contra elas [%spe: 0:]
alguns animais tornam~se maus [%spe: 0,]> [*] .
254
concessivas, revela-se particularmente relevante para a elaboração de um perfil do
conhecimento de concessivas ao longo da escolaridade básica. Os dois erros analisados
antes, encontrados nas produções de nono ano, que radicam em conhecimento
semântico da coesão dos enunciados complexos concessivos, são exemplo do tipo de
desvio predominante nas dificuldades evidenciadas neste teste para produzir
concessivas.
Seguidamente, apresenta-se uma análise qualitativa dos dados de produção de
concessivas, comparando os resultados encontrados na produção livre na escrita de
textos e os resultados encontrados no teste de produção induzida.
Entre as produções de texto do quarto ano, encontram-se ao todo cinco
concessivas, três de apesar de e duas de embora. Deve salientar-se ainda, destes dados,
que apenas três alunos produziram as cinco frases concessivas, sendo um o autor de
duas frases concessivas factuais com apesar de e outro o único a usar frases com
embora. Em termos percentuais, relativamente ao universo da turma, estes três alunos,
representam 12,5%. Esta é a percentagem de alunos que, no quarto ano, manifesta já ter
capacidade para produzir por iniciativa própria enunciados com pelo menos alguns
conectores concessivos42, dado que usam espontaneamente concessivas nos seus textos
e respondem com sucesso ao teste de produção induzida.
A análise dos erros e desvios semânticos dos enunciados concessivos produzidos
pelas crianças do quarto ano, em contexto de produção induzida, revelou ser
extremamente produtiva, uma vez que permitiu obter informações sobre a natureza do
conhecimento linguístico que está implicado nesta fase incipiente da estabilização do
conhecimento de concessivas.
A análise quantitativa dos dados do teste de produção induzida de frases
sustentou a hipótese de que a aquisição de concessivas está em desenvolvimento ao
longo da escolaridade básica, havendo crescimento entre os três ciclos de ensino e
resultados positivos, acima dos 95%, no grupo de controlo de adultos escolarizados.
Como se antecipou no comentário aos dados feito na secção 4.3., alguns erros
revelam desconhecimento de propriedades semânticas de selecção dos conectores
concessivos, com consequências ao nível da estrutura sintáctica resultante, o que indicia
42 Em entrevista à professora do quarto ano, que foi inquirida relativamente ao perfil da turma e de alguns alunos, destacou-se o facto de a aluna autora de duas das concessivas ser uma aluna com hábitos de leitura. Este perfil de aluno pode ser tomado como uma evidência de que a leitura pode ser motor do alargamento do capital lexical, o que é, aliás, defendido em Giasson (1993).
255
desconhecimento dos padrões distribucionais destes itens, que não são usados como
conjunções em exemplos como (203).
(203) *FJ4 (10;1.12): Hoje tenho de <apesar de> [*] uma prenda para a minha mãe .
Em exemplos como (203), pode considerar-se que não há evidência de existir
conhecimento lexical de apesar de, enquanto item conjuncional. Outros erros há que
revelam desconhecimento lexical, em relação à estrutura canónica do conector
concessivo, havendo, porém, uma aproximação à estruturação de uma frase complexa.
Veja-se, por exemplo, (204).
(204) *MC4 (9;6.06): Mesmo se a tartaruga anda depressa apesar que as tartarugas nunca ganham as corridas .
Uma estrutura desviante, como a exemplificada em (204), assemelha-se aos
enunciados de Prada (2003), transcritos acima em (194) e (195), e indicia que a
aquisição de conectores concessivos está fortemente associada à expansão do
conhecimento lexical, com consequências para o desenvolvimento do conhecimento
sintáctico e semântico, podendo nisto radicar uma das explicações para o seu carácter
tardio.
No processo de aquisição de estruturas concessivas, após a integração do
conector no léxico, enquanto item conjuncional, segue-se a estabilização da sua
produção em conformidade com os requisitos sintácticos e semânticos comportados por
estes itens. Estruturas desviantes, como a apresentada em (205), mostram uma produção
incipiente de embora, que parece não deter poder concessivo autónomo e necessita de
um reforço com mas.
(205) *MA4 (9;6.20): Embora vocês não acreditem , mas fadas e bruxas habitam na floresta .
Estabilizada a capacidade de usar os conectores concessivos como conjunções,
na estruturação de enunciados complexos, identificam-se erros de má selecção de modo
e de tempo verbais, que não se limitam a uma troca de conjuntivo por indicativo, como
antes se ilustrou, até em produções de adultos escolarizados. Efectivamente, com alguns
conectores, como se bem que, a preferência por indicativo, em contextos de uso
256
obrigatório de conjuntivo, é o erro que persiste até mais tarde. De forma diferente, nas
primeiras produções das crianças, com um grau de maior distanciamento em relação à
gramática do adulto, em enunciados de concessivas prototipicamente factuais, atesta-se
a opção por indicativo, como em (206), e por conjuntivo, como em (207), em vez de
infinitivo.
(206) *FF4 (9;7.28): Apesar de o Pedro estava [*] com muita febre , o pai levou ao
futebol .
(207) *MB4 (9;3.13): Apesar de o Pedro esteja [%spe: estega] [*] com muita febre , o
pai leva~o [%spe: levao] ao futebol .
O enunciado em (208) revela uma opção ambígua entre infinitivo ou futuro do
conjuntivo num contexto de presente de conjuntivo.
(208) *FB4 (10;1.11): As fadas e as bruxas habitam a floresta [%spe: 0,] embora vocês
não acreditarem [*] .
Em (209), surge mais uma das ocorrências de presente do indicativo por presente do conjuntivo.
(209) *MB4 (9;3.13): Eu [%spe: 0,] ainda que sou [*] sportinguista [%spe
seportengiste] [%spe: 0,] vou ver o jogo que futebol [%spe: fotebol] .
Os erros em enunciados com conectores tipicamente condicionais-concessivos
consolidam a ideia de que um dos estádios de estabilização do conhecimento de
concessivas consiste na capacidade de seleccionar o tempo e modo adequados ao
conector. Também entre as produções com conectores condicionais-concessivos se
encontra a preferência por presente do indicativo, como em (210).
(210) MB4 (9;3.13): Mesmo se a tartaruga anda [*] depressa , as tartarugas nunca ganham corridas .
257
Os erros mais salientes, entre os enunciados com conectores
condicionais-concessivos, são erros de má selecção de tempo43, frequentemente entre
tempos do modo conjuntivo, como se verifica nos três exemplos seguintes. Uma vez
mais se sublinha o facto de a morfologia do modo conjuntivo estar já adquirida, estando
em estabilização, eventualmente, a sua adequação ao contexto sintáctico configurado
pela selecção do conector.
(211) *FE4 (9;11.17): Mesmo que estiver frio [%spe: 0,] eu como um gelado .
(212) *MJ4 (9;11.13): Mesmo se o meu computador esteja estragado, divirto~me
[%spe: diverto~me] .
(213) *FA4 (10;2.07): Mesmo se as tartarugas andem depressa [%spe: 0,] as
tartarugas nunca ganhariam as corridas .
Outro tipo de erro atestado parece indiciar que, apesar de ter havido uma
integração do conector no paradigma das palavras conjuncionais, o seu uso é desprovido
de valor concessivo estrito, podendo ser substituído, de forma mais adequada, por um
conector com um dos valores inerentes a concessivas, como o valor causal ou o valor
condicional. Para ilustrar esta hipótese, contraste-se a estranheza da frase complexa
produzida por um aluno, em (214), na qual se recorre a um conector contrastivo, sem
que haja contraste semântico entre as proposições, com a sua paráfrase causal (215) e
condicional (216).
(214) *FD4 (9;11.02): Ainda que ganhe [%spe: 0,] fico contente .
(215) Já que ganho, fico contente.
(216) Se ganho, fico contente.
Além dos erros antes apresentados, que permitem concluir que o conhecimento
sintáctico que garante a adequada selecção têmporo-modal é um dos conhecimentos
43 Entre 147 produções agramaticais contabilizadas no quarto ano, indicadas no quadro 16, da secção 4.3., 74,8% são erros como os mencionados.
258
cruciais na estabilização do conhecimento sobre concessivas, outros erros, associados a
coesão têmporo-modal e aspectual, com incidência não só na subordinada, mas na
totalidade da estrutura complexa, corroboram a hipótese de que a aquisição plena de
concessivas depende de conhecimento semântico estrito, como o conhecimento que
sustenta a coesão aspectual de enunciados complexos. Estes desvios na coesão
têmporo-aspectual são mais frequentes em enunciados com conectores típicos de
condicionais-concessivas e manifestam um maior grau de aceitabilidade, pelo que, na
análise quantitativa, não foram considerados como erros categóricos, mas desvios ao
formato semântico padrão (secção 4.3.3.).
Retomando a exposição iniciada na secção 4.3., relativamente a estas
construções, em enunciados como (217) e (218), a estranheza poderá ser explicada pelo
facto de a locução subordinativa concessiva mesmo se, típica das condicionais
concessivas, ser usada como tendo um valor estritamente condicional.
(217) * ME4 (10;0.26): Mesmo se for [%spe: fôr] presidente , vou ser bom .
(218) *MN4 (9;11.06): Mesmo se ganhar um prémio vou ao Brasil .
Aceitando esta hipótese, dar-se-ia o caso de estes conectores concessivos
fazerem parte do repertório lexical disponível, mas estarem integrados no paradigma de
conectores semanticamente contíguos, como os condicionais, adquiridos mais cedo. Só
com a especificação do conhecimento de mesmo se se estabilizaria a sua função
enquanto nexo condicional-concessivo. Efectivamente, note-se que as paráfrases de
(217) e de (218), em (219) e em (220), com a conjunção se, são enunciados
perfeitamente aceitáveis, o que corrobora a ideia de que se está a atribuir à locução um
valor mais genérico dentro da condicionalidade, ou seja, o mesmo valor da conjunção
condicional se.
(219) Se for presidente, vou ser bom.
(220) Se ganhar um prémio, vou ao Brasil.
No caso da interpretação da frase construída em (218), a única leitura que parece
disponível é a estritamente condicional. Quanto à frase complexa produzida em (217),
259
outra hipótese de explicação para a estranheza do enunciado pode ser o domínio ainda
incipiente dos mecanismos que garantem a coesão têmporo-aspectual, como a selecção
de tempos verbais (pelo valor aspectual que o tempo codifica) ou como a selecção de
complexos verbais com auxiliares aspectuais. Para comprovar esta hipótese de
explicação, compare-se a aceitabilidade de (221)44, com um predicado complexo, com
vir a, com a estranheza de (217).
(221) Mesmo se vier a ser presidente, vou ser bom.
Entre as produções de concessivas resultantes do teste de produção induzida,
vários são os enunciados que se percebe que não são integralmente adequados, ou
felizes, e cuja estranheza não decorre de erros de má selecção de modo ou de tempo
verbal. A formação deficiente destes enunciados, maioritariamente construídos com
conectores típicos de condicionais-concessivas, pode ter uma explicação semelhante à
segunda hipótese de explicação do exemplo (217), radicada em conhecimento de
natureza aspectual. Assim, outro exemplo deste tipo de conhecimento encontra-se em
(222), enunciado que, além do mais, ilustra incapacidade para articular, num só período,
garantido coesão têmporo-aspectual, três enunciados proposicionais conectados através
de nexos contrastivos (mesmo que, não só, mas também).
(222) *MC4 (9;6.06): Mesmo que eu ganhe , eu não só [%spe: so] gostei de ganhar
[%spe: 0,] mas também [%spe: tambem] fico contente por participar [%spe: partissipar]
.
Finalmente, outro factor associado a conhecimento linguístico estritamente
semântico, que sobressai da tipologia de erros encontrados na produção induzida de
frases concessivas é o uso de conectores condicionais-concessivos, mesmo que e mesmo
se, em contextos típicos de concessivas factuais. São disto exemplo os enunciados (223)
e (225) a (227).
Embora o dado em (223) possa ser explicado à luz de uma das hipótese de
explicação antes colocadas, podendo tratar-se de uma má selecção de elementos
aspectuais no predicado da concessiva, o que poderia ser resolvido com uma paráfrase
44 Neste caso, a aceitabilidade do contraste implicaria a assunção de que, normalmente, ser presidente é
ser mau.
260
como a de (224), tanto o enunciado em (223) como os enunciados de (225) a (227)
tornar-se-iam adequados com um conector factual típico, como apesar de, em (228) a
(231), ou mesmo com gerúndio, em (232) a (235).
(223) *MB4 (9;3.13): Mesmo que eu seja futebolista [%spe: 0,] também posso nadar .
(224) Mesmo que um dia eu seja futebolista, também posso/poderei nadar.
(225) *ML4 (10;1.05): Mesmo se conseguir fazer o trabalho , na [*] me apetece <o
fazer> .
(226) *ML4 (10;1.05): Mesmo que seja bom aluno [%spe: 0,] posso ter uma nota
negativa .
(227) *FI4 (9;10.12): Mesmo que tenha calor [%spe: 0,] não posso tirar a camisola
porque [%spe: *,] estou a transpirar .
(228) Apesar de eu ser futebolista, também posso nadar.
(229) Apesar de conseguir fazer o trabalho, não me apetece fazê-lo.
(230) Apesar de ser bom aluno, posso ter uma nota negativa.
(231) Apesar de ter calor, não posso tirar a camisola porque estou a transpirar.
(232) Mesmo sendo eu futebolista, também posso nadar.
(233) Mesmo conseguindo fazer o trabalho, não me apetece fazê-lo.
(234) Mesmo sendo bom aluno, posso ter uma nota negativa.
(235) Mesmo tendo calor, não posso tirar a camisola porque estou a transpirar.
261
Note-se, antes de mais, que nos enunciados (223), (225), (226) e (227) há uma
adequada selecção de tempo e de modo verbais, em função do conector seleccionado,
não havendo qualquer erro sintáctico que explique a estranheza percebida, que decorre,
efectivamente, da selecção de locuções condicionais-concessivas em enunciados em que
se opera uma leitura factual, condicionada aspecto lexical dos predicados das
concessivas, quase todos de natureza menos dinâmica (são predicados de estado).
O facto de não se atestar o reverso deste tipo de desvio (há conectores
condicionais-concessivos usados como factuais, mas não há conectores factuais usados
como condicionais-concessivos) conduz à hipótese de que a diferença entre factualidade
e condicionalidade (já adquirida para condicionais) seja uma diferença que, no âmbito
da aquisição da concessividade, já de si tardia, seja ainda mais tardia. Segundo esta
hipótese, em primeiro lugar estabilizar-se-ia o conhecimento de conectores concessivos
factuais e só depois o conhecimento de conectores concessivos se generalizaria a
condicionais-concessivos.
Os dados da análise quantitativa suportam esta hipótese, uma vez que, nas
produções do quarto ano, não há qualquer conector condicional-concessivo e a primeira
locução produzida no corpus de diagnóstico é um uso isolado de mesmo que, no sexto
ano. Isto não significa que a condicionalidade, expressa com modalidade epistémica,
não esteja já disponível na gramática de pelo menos algumas das crianças de quarto ano,
que produzem condicionais e concessivas factuais. Aliás, uma aluna do quarto ano tenta
produzir um dos enunciados com apesar de com valor condicional, mostrando ter
disponível a estratégia de expressar condicionais-concessivas com o recurso ao verbo
modal poder, ainda que a construção da estrutura complexa não seja bem sucedida.
(236) * FA4 (10;2.07):<As pessoas que não tratam bem os animais [%spe: 0,]
apesar+de mais tarde o mal se poder virar contra elas [%spe: 0:] alguns animais
tornam~se maus [%spe: 0,]> [*] .
Uma pista interessante para avaliar a hipótese de que a aquisição de concessivas
factuais tem precedência sobre a aquisição de concessivas-condicionais é a análise dos
dados de produção de ainda que, conector ambíguo entre os valores factual e
condicional.
262
5.2.2. Como se desenvolve o conhecimento de «ainda que»?
Uma vez que ainda que é, de entre os conectores concessivos, o conector mais
plurifuncional, podendo operar valor factual, hipotético e contrafactual (Capítulo 3), a
análise dos dados da sua produção torna-se particularmente interessante, pela
contribuição que pode trazer relativamente ao tipo de conhecimento envolvido na
aquisição de concessivas.
Nos dados quantitativos totais relativos à produção de texto, ainda que é um dos
conectores concessivos menos frequentes. Não há qualquer produção desta locução nos
textos de diagnóstico do quarto ano, do sexto ano ou do nono ano. Os três ainda que
produzidos por alunos do nono ano ocorrem nos textos escritos após a intervenção
educativa, o que pode ser indiciador de que o recurso a este conector foi estimulado pela
consciencialização do seu funcionamento. Mesmo entre as produções de adultos
escolarizados, esta locução concessiva é uma das menos frequentes, com uma proporção
de 0,13, igual à proporção de mesmo que.
Contudo, como antes se explicitou, o facto de não se atestarem produções de
enunciados com ainda que nos textos dos alunos do ensino básico não significa que
estes ainda não tenham adquirido este conector ou sejam incapazes de o produzir. São
os dados do teste de produção induzida de frases que revelam que, pelo menos no
quarto ano, uma considerável percentagem de alunos (48,1%) é incapaz de formar uma
estrutura correcta com ainda que. O quadro 16 sintetiza os resultados da tarefa A do
teste de produção induzida de frases com ainda que, no quarto ano.
Quadro 16 – Concessivas de ainda que em produção induzida
4º ano
De acordo com a gramática alvo
Desviantes
Sem resposta
Factuais Hipotéticas Ambíguas entre F e H
Contrafactuais Ambíguas entre H e C
8,3% - 41,6% - - 33,3% 14,8%
Dada a plurifuncionalidade deste conector, seria de esperar maior diversidade na
expressão dos diferentes valores. Os resultados da turma do 4º ano, porém, mostram,
por um lado, uma percentagem significativa de frases mal construídas e de estímulos
sem resposta e, por outro, a inexistência de concessivas inequivocamente condicionais.
Aliás, a maioria das construções condicionais-concessivas obtidas na produção
induzida de frases tem concessivas com predicados de estado, que, embora ambíguos
263
entre o valor factual e o hipotético, são tendencialmente mais naturais na leitura factual.
A título de exemplo, observe-se o enunciado (237).
(237) *MJ4 (9;11.13): Ainda que esteja um dia solarento [*], fico em casa.
Por fim, saliente-se relativamente aos dados de produções com ainda que, quer
nos dados de produção induzida, quer nas produções textuais, a total inexistência de
enunciados com valor contrafactual. Das três produções em escrita de texto de frases
concessivas de ainda que, em textos do nono ano, há uma concessiva com valor factual,
uma estrutura com interpretação factual com elipse do predicado e a terceira é uma
concessiva ambígua entre o valor hipotético e o valor contrafactual. O facto de também
não existirem concessivas contrafactuais entre as produções de concessivas de ainda
que dos adultos (quatro factuais e uma ambígua entre os valores factual e hipotético)
impede que a ausência de enunciados contrafactuais possa ser tomada como evidência
de uma eventual menor mestria de enunciados com este valor. Aliás, relativamente à
produção de concessivas contrafactuais, os dados obtidos, com os demais conectores
condicionais-concessivos, também não são muito conclusivos: (i) na produção de texto,
no quarto ano, não há conectores condicionais-concessivos e não há enunciados
contrafactuais ou ambíguos entre o valor hipotético e o valor contrafactual, (ii) a
primeira condicional-concessiva produzida no corpus de diagnóstico, no sexto ano, é
contrafactual e (iii) na totalidade das produções de concessivas, na produção de texto, só
existe outro exemplo de concessiva contrafactual, produzida no texto de um adulto.
Estes factos levam a crer que o estudo da contrafactualidade em concessivas deverá ser
aprofundado mediante a análise de mais dados, em particular dados de produção
induzida.
A análise das estruturas com ainda que, produzidas tanto no teste de produção
induzida, como na escrita de textos, confirmou a tendência, observada na análise
quantitativa de outros conectores, de um claro predomínio do valor factual sobre os
valores condicionais. A constatação deste facto permite sustentar a hipótese de que o
percurso de aquisição de um conector plurifuncional, como ainda que, tenha início em
um dos seus valores, o factual, que pode ser considerado mais abrangente na
concessividade estrita, ficando só mais tarde disponível uma especificação
correspondente aos valores condicionais de concessivas. Note-se que este percurso de
estabilização do conhecimento do conector plurifuncional ainda que é semelhante ao
264
proposto antes para mas, nos dados de aquisição precoce, que inicialmente também não
está disponível para todos os contextos em que pode ocorrer na gramática alvo.
5.3. O lugar da aquisição de concessivas no sistema linguístico
A análise de erros e de construções desviantes, na produção de concessivas no
teste de produção induzida e na produção de texto, abriu uma janela sobre os tipos de
conhecimento linguístico envolvidos no processo de estabilização do conhecimento de
concessivas, permitindo propor, em (238), um elenco de requisitos linguísticos para a
mestria de uma estrutura concessiva.
(238) Requisitos linguísticos para a mestria de uma estrutura concessiva
(i) conhecimento da natureza funcional do item, manifestado pelo reconhecimento do
seu padrão distribucional de item conjuncional;
(ii) conhecimento sintáctico relativo às propriedades de selecção, manifestado por uma
adequada selecção de tempo e de modo na concessiva, em função de cada conector
concessivo;
(iii) conhecimento sintáctico-semântico relativo a propriedades de selecção,
manifestado por uma selecção têmporo-modal que garanta a coesão na estrutura
complexa que integra a concessiva;
(iv) conhecimento semântico relativo a propriedades aspectuais, manifestado por uma
selecção aspectual que garanta a coesão na estrutura complexa que integra a concessiva;
(v) conhecimento semântico relativo a configurações aspectuais de predicados que
legitimam enunciados de valor factual ou de valor condicional, manifestado por uma
selecção de conectores factuais ou de conectores condicionais adequada aos predicados
da concessiva.
Exceptuando talvez o último tipo de conhecimento, que é inerente a concessivas,
nenhum dos tipos de conhecimento enunciados de (i) a (iv) pode ser tomado como um
factor explicativo para o carácter tardio da aquisição de concessivas. Ainda que estes
conhecimentos possam ser considerados pré-requisitos linguísticos para o conhecimento
de concessivas, trata-se de conhecimentos já disponíveis na gramática das crianças,
manifestados em estruturas complexas de aquisição precoce, quando as crianças ainda
265
não produzem concessivas. Aliás, a capacidade de produzir nexos equivalentes, como o
adversativo, em relação a concessivas factuais, e nexos contíguos, como o condicional,
em relação a condicionais-concessivas, manifesta-se muito antes da capacidade de
produzir concessivas, como se verificou pela análise dos dados de aquisição no corpus
de Santos (2006). Neste sentido, o problema da explicação do carácter tardio de
concessivas pode ser encarado como um desafio ainda maior: como explicar o que
espoleta a aquisição de nexos cujos requisitos linguísticos já estão preenchidos no
sistema linguístico?
5.3.1. A mestria de concessivos é uma característica de um perfil de «literacia
linguística» e de «literacia de escrita»?
Prosseguindo uma abordagem multifactorial, após a análise de factores internos
à gramática, implicados no processo de desenvolvimento do conhecimento de
concessivas, torna-se premente considerar outros factores, externos à gramática nuclear,
que possam contribuir para uma explicação do carácter tardio de concessivas.
Embora, na discussão apresentada no início do presente capítulo, no ponto
5.2.1., se defenda que as explicações que atribuem um papel preponderante a factores
extra-linguísticos, como a frequência do input, são explicações ineficazes para a
aquisição das estruturas da gramática da língua, importa perceber o papel de
determinados factores externos ao sistema linguístico – ou, pelo menos, externos à
gramática nuclear, como factores discursivos e factores pragmáticos, que funcionam
como motores de desenvolvimento linguístico associados a níveis superiores de
proficiência de língua.
Estudos sobre desenvolvimento da pragmática, sobre produções orais e escritas
de diversos géneros, reportam crescimento da produção de subordinadores, no eixo
temporal, a par da estabilização da produção de conectores coordenativos (Van Hell et
al.: 1999, e.o., apud Evers-Vermeul: 2005). No estudo de Van Hell et al. (idem),
desenvolveram-se análises quantitativas e qualitativas de narrativas escritas em
holandês por crianças do quarto ano, com nove a dez anos, por crianças do sexto ano,
com onze a doze anos, por adolescentes de um nível secundário, com quinze a dezasseis
anos, e por um grupo de adultos. A produção de estruturas coordenativas, com
conectores como o coordenativo en (e), o adversativo maar (mas), o causal want
(porque) e o conclusivo dus (então) revelou-se estável nos quatro grupos, quer quanto a
266
frequência, quer quanto ao recurso a estes quatro nexos por cada um dos grupos. Já no
que diz respeito ao recurso a conectores de subordinação, o estudo permitiu concluir
que, ao contrário da estabilidade de coordenativos, há desenvolvimento com a idade. A
análise qualitativa mostrou, em concreto, que o quarto ano e o sexto ano usam menos
conjunções de subordinação do que os alunos do secundário e os adultos, embora sem
haver diferenças notórias relativamente a algumas conjunções temporais e causais. Mais
especificamente, a análise qualitativa das produções revelou que os adultos usavam
todos os tipos de subordinativas, enquanto os alunos entre os quinze e os dezasseis anos
usavam apenas 64% dos tipos de conexões de subordinação considerados e os alunos do
quarto e do sexto ano apenas 45% (Van Hell et al.: idem apud Evers-Vermeul: 2005,
184).
Não sendo os dados totalmente equivalentes, salientam-se algumas semelhanças
com as conclusões a que se chegou na secção 4.3., na análise quantitativa da fase de
diagnóstico. Embora não se tenha observado estabilidade no uso de nexos
coordenativos, havendo, por exemplo, diminuição da proporção de uso de nexos
coordenativos mais precoces quando se começam a usar outros nexos, confirma-se a
existência de crescimento de uso de conectores subordinativos, como os concessivos, ao
longo da escolaridade e com a idade. Tanto em relação a nexos subordinativos em geral,
como em relação ao recurso a nexos coordenativos estruturados com advérbios
conectivos (como porém e no entanto), são os adultos escolarizados quem manifesta
uma maior e mais e diversificada produção.
Outros estudos sobre o desenvolvimento das relações coesivas publicitam
resultados paralelos. No estudo experimental de Spooren et al. (1996) apud
Evers-Vermeul (2005), conclui-se que crianças entre os seis e os sete anos produzem
menos relações com nexos que envolvem conhecimento pragmático do que crianças
entre os onze e os doze anos e que, com a idade, as crianças se tornam mais proficientes
a marcar nexos argumentativos com o recurso a conectores. Com os dados do estudo
experimental referido antes, Spooren (1997) investigou o grau de especialização
semântica com que crianças de diferentes idades usavam conectores e concluiu que,
inicialmente, as crianças marcam as relações coesivas com conectores menos
específicos, deixando ao seu interlocutor o papel de inferir o que pretendem, e que, com
a idade, tornam mais específicas as relações coesivas no seu discurso.
O estudo de Spooren (idem), em particular, leva a crer que a natural evolução
das necessidades conversacionais e pragmáticas, associada à formalidade das situações
267
comunicativas da escola, gera a necessidade de se especificarem nexos coesivos que
antes, em situações comunicativas primárias, eram assegurados com estruturas básicas.
Partindo desta hipótese, podemos encontrar na necessidade de especificação dos nexos
coesivos o motor que leva a que só tardiamente, face aos desafios de situações
comunicativas mais formais, da leitura e da escrita, as coordenadas adversativas sejam,
em alguns contextos, substituídas por subordinadas concessivas factuais. Do mesmo
modo, com o grau crescente de exigências comunicativas e com o domínio de níveis
crescentes de literacia, surgirão as necessidades pragmáticas de expressar nexos
condicionais mais específicos, como os condicionais-concessivos.
Além de se reconhecerem factores pragmáticos promotores da aquisição de
concessivas, factores de natureza discursiva concorrem igualmente para o necessário
aparecimento destas conexões, em resposta a desafios linguísticos mais sofisticados. A
ideia de que a aquisição de alguns conectores e, consequentemente, de algumas
subclasses de frases complexas é mais tardia, não só por razões de frequência e de
complexidade, mas também por razões pragmáticas é defendida em Diessel (2004, 180):
«Other complex sentences seem to emerge late because their pragmatic functions are
not really useful in early child speech». É nesta linha de argumentação que o autor
explica a emergência mais tardia de subordinadas adverbiais iniciais, considerando que
estas estruturas não cumprem necessidades específicas do discurso da criança em
estádios de aquisição precoce.
Esta perspectiva de Diessel (idem) pode dar conta do desenvolvimento da
expressão de nexos contrastivos, na medida em que a expressão da contrastividade
parece estar basicamente assegurada pelo recurso a coordenadas adversativas até ao
momento em que necessidades expressivas mais sofisticadas, estimuladas, em
particular, pelo desenvolvimento da competência de escrita, exigem, por exemplo, a
capacidade de manipular ordem de constituintes, com a finalidade de controlar efeitos
discursivos. Ora a diferença crucial, consensualmente descrita na literatura, entre
adversativas e concessivas reside no facto de estas, por serem uma estrutura de
subordinação adverbial, poderem ocorrem em diferentes posições, sendo, tipicamente, a
sua posição mais frequente a inicial. A possibilidade de a proposição contrastiva
veicular, simultaneamente, contraste e informação background é uma especificidade das
concessivas (Flamenco García: 1999; Lobo: 2003). Esta e outras propriedades de
estruturas concessivas, com efeitos discursivos, como a possibilidade de intercalar a
frase concessiva, destacando discursivamente outros constituintes da frase (Lopes:
268
1989), são factores distintivos, que suprem necessidades discursivas que surgem mais
tarde, em função do desenvolvimento da literacia de leitura e de escrita.
Havendo evidências como as que se acabam de referir para afirmar que a
confluência de aspectos do desenvolvimento pragmático e discursivo, associada ao
desenvolvimento das literacias, pode ser considerada um factor explicativo para a
aquisição tardia de concessivas, importa reflectir acerca das diferenças entre o
conhecimento linguístico nuclear, adquirido de forma espontânea por qualquer falante, e
o conhecimento linguístico alcançado por falantes com níveis mais elevados de literacia
linguística (Berman: 2004). Esta mesma questão é equacionada em Duarte (2009, 6), em
termos de diferenças entre modo oral e modo escrito: «A consciência das diferenças
entre modo oral e modo escrito leva-nos à formulação de uma interessante questão:
como caracterizar o conhecimento dos falantes adultos com níveis satisfatórios de
literacia que lhes permite um uso da língua distinto no modo oral e no modo escrito?
Esta questão, obviamente, insere-se no problema mais geral de descobrir como dar
conta da variação linguística atribuível a factores históricos, sociais, geográficos e
contextuais».
Antes de integrar a questão da aquisição tardia de concessivas no âmbito mais
vasto da variação social e contextual, sublinhe-se que uma das conclusões que é
sustentada pelo trabalho experimental sobre produção de concessivas é a da
consideração do uso, progressivamente mais proficiente, de concessivas como um traço
caracterizador não só, especificamente, de um perfil de literacia de escrita, em particular
no domínio dos géneros com carácter argumentativo, mas também de um perfil de
«mestria linguística» (Sim-Sim, Duarte e Ferraz: 2007) ou de «competência elaborada»
(Menyuk e Brisk: 2005).
Os resultados apresentados na secção 4.3. revelam, entre o quarto e o sexto ano,
problemas na compreensão e produção de concessivas, o que corresponderá a um
estádio de desenvolvimento cuja estabilização se dá mais tarde: são os alunos do nono
ano que manifestam um comportamento mais próximo do dos adultos, confirmando a
existência de uma correlação positiva entre nível de escolaridade e mestria de
concessivas. Que esta estabilização se dê por volta do nono ano é um dado
extremamente interessante, por ser coincidente com as conclusões de outros estudos
caracterizadores de estádios intermédios e tardios de estabilização de conhecimento
linguístico. Por exemplo, em Duarte (2009), a análise comparativa dos resultados de
Fontes (2008) e de Valente (2008) mostra que o conhecimento de relativas canónicas de
269
PP só começa a estabilizar a partir do nono ano, sendo, à semelhança de concessivas,
uma estrutura de aquisição tardia, sensível aos efeitos da escolarização.
Finalmente, segundo a análise quantitativa da secção 4.3., são os escritores mais
escolarizados e os mais experientes, os adultos do grupo de controlo, que revelam
mestria no uso de concessivas, pois produzem mais concessivas e recorrem a conectores
mais diversificados. Estes resultados confirmam a hipótese de que o domínio de
concessivas, na produção escrita, pode ser tomado como um indicador de perfil de
literacia de escrita e de um domínio de língua mais sofisticado e proficiente.
5.3.2. Afinal, qual a natureza do conhecimento de concessivas? Qual o seu lugar na
Gramática?
A explicação da aquisição de conectores concessivos e de subordinadas
concessivas é um desafio ainda mais interessante quando se considera que o
conhecimento linguístico que pode ser tido como precursor do conhecimento de
concessivas está estabilizado muito tempo antes de sua aquisição. Afinal, pouco há a
adquirir no momento em que se adquirem concessivas: (i) os valores semânticos
inerentes a concessivas são expressos desde cedo, com adversativas, causais e
condicionais; (ii) a sensibilidade a factualidade / condicionalidade manifesta-se desde a
produção de enunciados condicionais; (iii) a manipulação discursiva de informação, em
enunciados complexos, está disponível com a produção das subordinadas mais precoces
(causais, condicionais…); (iv) a interpretação pressuposicional associada à interpretação
de enunciados concessivos é também, frequentemente, condição para a interpretação de
adversativas; (iv) até mesmo a consciência de valores aspectuais de predicados, crucial
para a adequada selecção de conectores concessivos, se evidencia desde cedo, noutras
frases complexas. Sob esta perspectiva, há mais evidências para defender que a
aquisição de concessivas é uma aquisição lexical do que para defender que se trata de
aquisição de um conhecimento gramatical nuclear. Este processo de aquisição lexical
corresponde a alargamento do conhecimento do repertório de itens lexicais e funcionais,
os quais comportam alargamento do conhecimento sintáctico e semântico, na medida
em que participam em estruturas sintácticas diferentes, que expressam um mesmo valor
semântico ou valores semânticos contíguos.
O conhecimento linguístico configurado num item como uma conjunção
concessiva tem uma natureza mais funcional do que lexical, na medida em que se trata
270
de um complementador. Contudo, à semelhança de outras categorias funcionais,
comporta informação semântica, interpretável, cujas propriedades explicam alguns
efeitos de variação linguística. É, aliás, a informação semântica destes itens que
assegura a sua principal função, no estabelecimento de nexos com valores
especializados. Em síntese, a aquisição de concessivas não provoca alterações
concomitantes nos processos da gramática da língua, explicáveis em termos de
maturação ou de continuidade do conhecimento linguístico, traz somente alargamento
do repertório lexical e, consequentemente, do repertório de valores semânticos (por
exemplo, com a expressão de nexos como os de condicionais-concessivas) e do
repertório de estruturas sintácticas (através dos múltiplos formatos frásicos – de
indicativo, de conjuntivo, de infinitivo, com elipses – que permitem expressar
contraste).
Numa perspectiva de desenvolvimento pragmaticamente motivada, poder-se-ia
entender o percurso de desenvolvimento de concessivas em função da valoração que
cada um dos conectores concessivos assume, havendo um lugar único na gramática da
língua para cada uma das estruturas geradas por cada conector. Este pode ser o caso da
diferenciação entre concessivas factuais e concessivas-condicionais, no momento em
que se estabiliza o conhecimento especializado dos dois subconjuntos maiores de
conectores concessivos.
Considerando o conjunto de conectores de que se registaram ocorrências na
totalidade dos corpora analisados, as conclusões a que se chegou com os resultados da
análise qualitativa e com os requisitos linguísticos para a mestria de conectores
concessivos, identificados em (238), suportam a ideia de que o valor mais abrangente,
comum a todos os conectores concessivos, presente desde os estádios iniciais de
aquisição, é o valor contrastivo. Assumindo que a informação linguística de itens
conjuncionais, como os conectores concessivos, pode ser representada em termos de
traços, com pares atributo-valor, os conectores contrastivos são todos valorados como
[+contraste].
Os resultados da análise qualitativa dos dados revelaram precocidade e
predomínio dos conectores concessivos que operam valores factuais. A ideia de que o
valor factual é primeiramente adquirido foi consolidada pela detecção de erros, em
produções induzidas do quarto ano, com conectores tipicamente
condicionais-concessivos usados em enunciados com predicados de estado, em
condições estruturais que obrigam a leituras factuais. Estes dados permitem propor que,
271
além do atributo [contraste], os itens conjuncionais concessivos sejam valorados com
[factual], sendo este o valor assumido por defeito em estádios iniciais da aquisição de
conectores condicionais-concessivos. Em (239), apresenta-se o elenco de conectores
valorados com [factual] e, em (240), listam-se os conectores não factuais.
(239) [+contraste, +factual] = mas, apesar de, embora, se bem que.
(240) [+contraste, –factual] = mesmo que, mesmo se.
O facto de a produção de enunciados com condicionais-concessivos ser mais
tardia do que a produção de concessivas factuais pode decorrer da complexidade
estrutural de conectores condicionais-concessivos, cuja informação pode ser descrita em
termos de traços cumulativos: o valor condicional-concessivo consubstancia-se pela
valoração [factual] e [condicional]. Em (241), reescreve-se a proposta de representação
de conectores condicionais-concessivos.
(241) [+contraste, –factual, +condicional] = mesmo que, mesmo se.
Nos dados da produção induzida de alunos do quarto ano, como antes se
destacou, há vários casos em que as crianças usam conectores de
condicionais-concessivas em contextos específicos de conectores factuais, como nos
exemplos (223), (225), (226) e (227). A par destes casos, surgem dois exemplos de uso
de mesmo se com valor estritamente condicional, em (217) e (218). Esta oscilação das
crianças do quarto ano entre a atribuição, a locuções condicionais-concessivas, de valor
estritamente factual ou estritamente condicional evidencia que, no percurso de
desenvolvimento de condicionais-concessivas, a valoração de [factual] é uma etapa
relevante.
O valor dos conectores enunciados em (241) pode ser determinado em função da
matriz têmporo-modal do enunciado complexo cuja conexão garantem, assumindo dois
valores condicionais: o valor hipotético e o valor contrafactual. Em consonância com a
descrição apresentada no Capítulo 3, a activação do valor contrafactual decorre da
definição têmporo-modal da frase complexa a que a locução conjuncional
condicional-concessiva pertence. Note-se que o baixo índice de frequência de
concessivas com este valor impediu a exploração da aquisição de enunciados deste tipo,
272
embora se possa intuir que se trata de um tipo de estrutura de aquisição ainda mais
tardia, mesmo entre as concessivas, cuja investigação futura será do maior interesse.
Os dados da produção induzida de enunciados com ainda que, locução
plurifuncional, sustentam a hipótese de que o primeiro valor a ser produzido é o valor
factual, não havendo registo de enunciados de ainda que estritamente condicionais entre
as produções das crianças do quarto ano. O facto de serem condições semânticas, como
o valor aspectual de predicados, e pragmáticas as que permitem fixar, ou favorecer, uma
interpretação para as frases com ainda que suporta a proposta de que uma representação
da informação veiculada por esta locução deve dar conta da sua ambivalência entre os
valores factual e condicional, como se propõe em (242).
(242) [+contraste, α factual] = ainda que.
À semelhança do que se descreveu para os valores de condicionais, os valores de
ainda que são estabelecidos em função de configurações sintácticas com consequências
para a coesão têmporo-aspectual, de condições semânticas e de condições pragmáticas
(Capítulo 3).
A análise dos dados de produção texto e das produções induzidas mais precoces
e a proposta de representação, em termos de traços, dos conectores concessivos reforça
a ideia, consensual na literatura, de que existem duas subclasses distintas de
concessivas: as factuais (ou canónicas) e as condicionais-concessivas. O lugar que cada
subclasse de concessivas ocupa na gramática e as relações que estas estruturas
estabelecem com outras subclasses de frases são aspectos cruciais da sua diferenciação.
Em relação aos valores condicionais, as condicionais-concessivas estão associadas a um
elevado grau de complexidade estrutural e semântica. Comportando um valor
cumulativamente de [+contraste] e [–factual; +condicional], as subordinadas
condicionais concessivas detêm valores específicos, únicos no repertório de conexões
disponíveis na gramática, não sendo comutáveis por outras frases contrastivas ou por
outras frases condicionais. A sua aquisição corresponde, efectivamente, ao crescimento
de conhecimento sintáctico e semântico, que conduz ao alargamento do repertório de
subclasses de subordinadas.
Ao contrário deste paradigma das frases resultantes de conexões com itens com
valores cumulativamente contrastivos e condicionais, as subordinadas concessivas
factuais operam um valor semântico básico equivalente ao de coordenadas adversativas.
273
Neste conjunto de estruturas, verifica-se a existência de diferentes configurações
sintácticas que convergem num mesmo nexo semântico – o contrastivo factual -, o que
se esquematiza em (243):
(243) Configurações sintácticas e valor de contrastivas factuais
Não Finitas com infinitivo flexionado - apesar de [+contraste; +factual]
com indicativo – mas [+contraste; +factual]
Finitas
com conjuntivo – embora, se bem que [+contraste; +factual]
Relativamente a concessivas factuais, o facto de o conhecimento destas
estruturas de subordinação e do conhecimento da coordenada adversativa de mas
corresponder a um conjunto de opções sintácticas, semânticas e discursivas associadas a
uma mesma interpretação semântica poderia constituir um problema para a arquitectura
da Gramática.
O estudo de construções que são casos de inexistência de uma relação de um
para um entre a componente sintáctica e a componente interpretativa, de que são
exemplo o par coordenadas explicativas / subordinadas causais e o par coordenadas
adversativas / subordinadas concessivas, conduz a reflexões que podem ajudar a
esclarecer o modo como funcionam as interfaces na Gramática, no quadro do Modelo de
Princípios e Parâmetros (Chomsky: 1995). Considerando construções como as
explicativas e as causais, com diferentes estruturas sintácticas e a mesma interpretação
semântica, Lobo (2003, 60) faz notar que «[D]e facto, na arquitectura da gramática do
Modelo de Princípios e Parâmetros, em particular na sua versão minimalista, as
unidades necessárias à formação de uma frase são retiradas do léxico numa só
operação, e são agrupadas progressivamente duas a duas na sintaxe de acordo com
propriedades de selecção das unidades lexicais. A estrutura derivacional daí resultante
é enviada para as componentes fonológica e semântica simultaneamente. Se a
interpretação de uma estrutura na componente conceptual-intencional for
exclusivamente o resultado da estrutura sintáctica, diferentes estruturas sintácticas
274
deveriam dar origem a diferentes ‘leituras’ semânticas». Havendo desajustes no
mapeamento entre a componente sintáctica e a componente interpretativa, uma vez que,
por exemplo no caso de adversativas de mas e concessivas factuais, várias construções
sintácticas correspondem a uma mesma ‘leitura’, pode considerar-se que esta não
conformidade decorre de diferenças marcadas não a nível estrutural, mas a nível lexical.
Consequentemente, entende-se que a interpretação semântica é, pelo menos em parte,
condicionada por traços semânticos inerentes aos itens lexicais, tendo a componente
sintáctica um papel praticamente nulo na construção da interpretação. Assim, no caso
concreto de conectores contrastivos, embora mas seja definido no léxico como
coordenador e embora e apesar de como subordinadores (sendo o primeiro finito e o
segundo não finito), todos partilham dos traços semânticos [+contraste] e [+factual].
Ainda que esta explicação seja comummente reconhecida na literatura, a
pergunta sobre o que condicionará um falante a escolher uma ou outra estrutura
sintáctica para expressar um mesmo valor semântico conduz a uma abordagem
alternativa da questão. Enquadrados pelo Programa Minimalista (Chomsky: 1995;
2001), em particular, pela sua implementação em Adger (2003), Adger e Smith (2005)
apresentam uma explicação, em termos de variação intralinguística, para casos em que
diferentes possibilidades sintácticas, que correspondem a uma mesma interpretação,
correspondem a escolhas tácitas do falante.
Tendo por base a ideia de que itens lexicais são colecções de traços,
morfofonológicos, sintácticos e semânticos, e que os traços sintácticos podem ser
puramente estruturais (não interpretáveis) ou receber uma interpretação semântica
(interpretáveis), considera-se que apenas os traços interpretáveis podem afectar a
interpretação. A ideia crucial defendida pelos autores é a de que a variação decorrerá de
os itens lexicais terem especificações diferentes para traços não interpretáveis e para a
componente fonológica e as mesmas especificações para traços interpretáveis, sendo
consideradas para análise duas situações: quando os itens lexicais comportam os
mesmos traços interpretáveis, mas traços não interpretáveis diferentes e quando a
inserção de morfemas desencadeia (‘triggers’) processos morfofonológicos diferentes.
Procedendo a uma análise da variação morfossintáctica de um dialecto escocês da zona
de Buckie, em Adger e Smith (idem) idenfica-se a existência de variação dentro de uma
mesma comunidade, com padrões de uso categórico que contrastam com padrões de
variação, em casos em que diferentes representações sintácticas fazem um mapeamento
para uma mesma interpretação semântica. Ao contrário de abordagens de tipo
275
«gramáticas em competição» e de abordagens que explicam a variação com base na
marcação paramétrica, na abordagem proposta por estes autores assume-se que a opção
por uma variante não é uma especificação da componente sintáctica, mas antes um
mecanismo separado, que interage com a sintaxe. Esta abordagem distingue-se das
outras por ser mais minimalista, na medida em que defende a existência de um único
sistema invariante, que comporta mecanismos universais. Nesta proposta, o que permite
a variação situa-se basicamente ao nível do indivíduo, ao passo que os factores que
influenciam a variação podem localizar-se quer ao nível individual, como aspectos de
processamento, quer ao nível da comunidade. Adger e Smith (idem, 15) explicam, a este
propósito, que cada falante «has a lexicon, a memorized store of pairings of syntactic
features and lexical meanings, and it is the choice of lexical item that is the source of
variation. This choice is influenced by various factors: ease of lexical access (perhaps
related to how common the word is), questions of speaker-hearer relationships, notions
of social identity, ease of processing etc.».
Considerando, como em Adger e Smith (idem), que manifestações de variação
de registo de língua, entre oralidade e escrita, ou entre diferentes graus de formalidade,
são manifestações semelhantes às analisadas na variação dialectal ou social, na medida
em que há padrões de variação não categórica e de variação aleatória, em Duarte (2009)
recorre-se ao «critério do uso» para se dar conta da variação decorrente de estruturas de
aquisição tardia, como alguns subtipos de relativas, em particular as relativas de PP
(Duarte: idem; Fontes: 2008 e Valente: 2008). Por «critério do uso» entende-se a
hipótese de que a variação possa ser explicada à luz da escolha tácita que cada falante,
individualmente, possa fazer, influenciado por factores de uso, externos ao sistema
linguístico. Esta hipótese, enquadrada pela proposta de Adger e Smith (2005) antes
apresentada, sintetiza-se nas seguintes palavras: «Our basic proposal here has been that
a Minimalist approach to syntax melds extremely well with the kinds of data that
variationists study because it has two core properties: it builds the notion of (tacit)
choice of lexical item into the syntactic system, and it allows derivations with different
lexical items to converge on the same basic semantic representation, thus capturing the
multiple form/single meaning notion of a linguistic variable. The orderly patterns of
variation seen across (groups of) individuals reduces to the lexical choice by an
individual speaker of functional elements with particular feature specifications. This
choice is influenced by a range of use-related factors, such as processing, frequency of
individual lexical items in the register or community discourse, and broader
276
sociolinguistic and communicative factors. These use-related influences are, for us,
outside the grammar proper, which is simply a specification of the syntactic, semantic
and morphophonological properties of lexical items together with an invariant syntactic
engine sensitive to these properties. They are, however, part of language in the broader
sense, and their study may impact on our understanding of how I-language is embedded
within other cognitive mechanisms.» (idem, 25).
A explicação do tipo de variação em Adger e Smith (idem) pode ser estendida a
outras situações de variação, como, de acordo com Duarte (2009), a alternância entre
relativas cortadoras e relativas de PP, bem como à alternância encontrada entre
coordenadas adversativas e subordinadas concessivas factuais, na medida em que (i) a
variação decorre da existência de diferentes matrizes sintácticas que resultam numa
mesma interpretação; (ii) se observam padrões de uso categórico (por exemplo, em
sujeitos em fases mais precoces de aquisição) que alternam com padrões de uso
alternativo (por exemplo, num mesmo sujeito, em diferentes registos, como oralidade e
escrita, ou até em variação livre); e (iii) a escolha de uma variante pode ser situada ao
nível das escolhas tácitas do sujeito e os factores que podem influenciar essa escolha
podem ser puramente individuais ou condicionados por aspectos contextuais ou sociais.
Sublinhe-se, finalmente, que uma explicação da aquisição de concessivas associada a
variação de natureza contextual ou social engloba não só a fundamentação para o
carácter tardio desta aquisição, mas também dá conta da explicação para a variação
individual, ou seja, para o facto de um mesmo falante, em momentos diferentes,
escolher expressar contraste ora com uma adversativa, ora com uma concessiva.
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