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SECRETARIA DA JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIAFUNDAÇÃO INSTITUTO DE TERRAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
“JOSÉ GOMES DA SILVA”
RELATÓRIO TÉCNICO-CIENTÍFICOSOBRE OS REMANESCENTES DA COMUNIDADE DE QUILOMBO DO
SAPATU/ELDORADO-SP
Julho/2000
2
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................................03
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NA DEFINIÇÃO TEÓRICA...................................................................06
3. O VALE DO RIBEIRA: OCUPAÇÃO HISTÓRICA E A FORMAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS.................................................................................13
3.1.OS PRIMÓRDIOS DA OCUPAÇÃO HUMANA E OS CICLOS ECONÔMICOS.......................................13
3.2. AS COMUNIDADES NEGRAS: BREVE RELATO SOBRE GÊNESE E HISTÓRIA..................................17
4. A ECONOMIA DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS............................................21
4.1. MODO DE VIDA E TERRITÓRIO TRADICIONAL...................................................................................21
4.2.PRÁTICAS ECONÔMICAS: ASPECTOS TRADICIONAIS E AS MUDANÇAS IMPOSTAS PELA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL..............................................................................................................................23
5. A COMUNIDADE DO SAPATU: ORIGEM E TERRITÓRIO..........................................31
5.1. A ORIGEM DA OCUPAÇÃO: NECESSIDADES DE EXPANSÃO AGRÍCOLA E A FUGA DO RECRUTAMENTO FORÇADO.........................................................................................................................31
5.2. SÍTIOS E BAIRROS: OS SUBGRUPOS QUE CONFORMAM O SAPATU...............................................37
5.2. AS MUDANÇAS NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO: A INVASÃO DO TERRITÓRIO QUILOMBOLA .......39
6. O SAPATU HOJE: INFRAESTRUTRA, ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E CONFLITOS INTERNOS.........................................................................................................................43
6.1.RELAÇÃO COM O ENTORNO E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA.................................................................43
6.2.A CONDIÇÃO QUILOMBOLA E AS DIVERGÊNCIAS INTERNAS.........................................................45
7. CONCLUSÃO.................................................................................................................49
8. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... .......51
3
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta uma série de elementos concernentes à
comunidade denominada Sapatu, localizada no município de Eldorado (região do
Vale do Rio Ribeira de Iguape - Estado de São Paulo), com o escopo de
estabelecer sua tipificação frente à condição de Remanescentes de Comunidade
de Quilombo, pleiteada pelos seus integrantes, permitindo-lhes, assim, o direito à
titulação de seu território, previsto no artigo n.º. 68 do Ato das Disposições
Transitórias da Constituição Federal de 1988, sob o enunciado: “Aos
remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos” .
Baseado em critérios antropológicos de fundo teórico, este Relatório
Técnico-Científico1 buscou analisar dados advindos tanto da pesquisa direta com
a comunidade quanto de fontes secundárias levantadas por pesquisa documental,
a fim de retratar os aspectos etnológicos que possibilitam a reconstrução da
história da comunidade e o resgate de sua origem étnica e da sua identidade
grupal, esta última fundamentada tanto pelas redes de sociabilidade calcadas no
parentesco e nas relações de trabalho quanto pela relação material e simbólica
que o grupo mantém com a área que ocupa.
1 A criação desta categoria de investigação denominada Relatório Técnico Científico, bem como os parâmetros que o norteiam, são resultantes dos esforços do Grupo de Trabalho criado pelo Governo do Estado de São Paulo por meio do Decreto nº 40.723, de 21 de março de 1996, que tinha por objetivo fazer proposições visando a plena aplicabilidade dos dispositivos constitucionais conferentes do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades de quilombos em território paulista. Foi integrado por representantes da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania, Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva”, Secretaria do Meio Ambiente, Procuradoria Geral do Estado, Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, Secretaria de Cultura, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Estado de São Paulo, Subcomissão do Negro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Secção São Paulo e Fórum Estadual de Entidades Negras. Os trabalhos deste Grupo levaram à criação: a) do Programa de Cooperação Técnica e de Ação Conjunta para identificação, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos e de sua regularização fundiária, implantando medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais e b) de um Grupo Gestor para implementação do Programa. O Programa e o Grupo Gestor foram criados por meio do decreto nº 41.774 de 13 de maio de 1997..
4
Há, no Vale do Ribeira, mais de vinte comunidades pleiteantes da
condição de remanescente de quilombo, algumas já pré-diagnosticadas como tal e
cinco – Maria Rosa, Pilões, São Pedro, Ivaporunduva e Pedro Cubas – já
formalmente reconhecidas pelo Estado de São Paulo e pela União. Agrupamentos
camponeses tradicionais, tais comunidades compartilham origem similar, ou seja,
são compostas de descendentes de escravos e ex-escravos, fugidos ou libertos,
que, pelas mais diversas razões, fixaram-se nas terras próximas ao rio Ribeira de
Iguape e adentraram o ‘sertão’ abrindo suas capuavas. Praticando um tipo de
agricultora tradicional que, embora exija grandes extensões de terras livres,
imprime um pequeno grau de agressão ao ecossistema, estas comunidades
auxiliaram a manter preservada uma das maiores áreas de Mata Atlântica original
do país.
Ë mister apontar a importância do Laudo Antropológico sobre as
comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pilões, Maria Rosa, Pedro Cubas,
André Lopes Nhunguara e Sapatu, realizado em 1998 pela equipe de
antropólogos do Ministério Público Federal – Adolfo Neves de Oliveira Júnior,
Deborah Stucchi, Míriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro, como
fonte secundária predominante na confecção deste Relatório Técnico-Científico.
Lembramos que todos os trechos extraídos do referido laudo para
transcrição ou apenas como base de dados mais genérica na feitura deste
trabalho apresentam-se seguidos da abreviatura LA-MPF, bem como da
respectiva referência de página.
Cabe aqui mencionar, também, contribuições importantes para a
efetivação deste trabalho, vindas de membros da equipe de reconhecimento
étnico e territorial de quilombos do ITESP: os estagiários Eliane Martins Lima e
Carlos Eduardo Dias Machado, que auxiliaram na coleta dos dados primários, a
valiosa colaboração da cartógrafa Maria Ignez Maricondi, além do apoio das
colegas antropólogas Alessandra Schmitt e Maria Celina Pereira de Carvalho.
Finalmente, é preciso ressaltar que esta reconstituição interpretativa do
modo de vida da comunidade, contemplando suas estratégias de reprodução
econômica, social e cultural, visa, sobretudo, demonstrar a singularidade da
ocupação humana empreendida no espaço físico em questão - não obstante suas
5
características genéricas de uma população rural tradicional - por tratar-se de um
grupo cujas raízes remontam ao ocaso de uma determinada relação social
historicamente datada, qual seja, a escravidão e, desta feita, constitui-se em
segmento social específico, dotado de uma identidade política portadora de
direitos assegurados constitucionalmente.
Nas palavras de ALMEIDA (1997:125), tal disposição do Estado em
institucionalizar a categoria de populações remanescentes de comunidades de
quilombos “evidencia a tentativa de reconhecimento formal de uma transformação
social considerada como incompleta. A institucionalização incide sobre resíduos e
sobrevivências, revelando as distorções sociais de um processo de abolição da
escravatura limitado, parcial”.
Por conseguinte, tendo em vista que este trabalho atende às
necessidades pontuadas no Decreto Estadual 41.839/98, que regulamenta o artigo
3º da lei n.º 9.757/97, está ele inserido neste contexto de uma política afirmativa
do Estado em relação às comunidades negras rurais que, lograda sua libertação
formal dos senhores brancos e do jugo escravista, ainda anseiam por uma
libertação efetiva que as incorpore en fait ao universo de bem-estar material que
lhes é devido, bem como configure uma nova auto-identificação positiva e plena
de orgulho e cidadania.
6
2. A ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE QUILOMBO: O
PRIMADO DA IDENTIDADE E DO TERRITÓRIO NAS
DEFINIÇÕES TEÓRICAS
O reconhecimento, por parte do Estado, da existência de comunidades
negras rurais como uma categoria social carente de demarcação e regularização
das terras que ocupam longevamente e às quais se convencionou denominar
comunidades remanescentes de quilombos, traz à tona a necessidade de
redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de
situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar o binômio fuga-
resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar os
quilombos.
Em 1740, reportando-se ao rei de Portugal, o Conselho Ultramarino valeu-
se da seguinte definição de quilombo: “toda habitação de negros fugidos, que
passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nem se achem pilões nele”. Esta caracterização descritiva
perpetuou-se como definição clássica do conceito em questão e influenciou uma
geração de estudiosos da temática quilombola até meados dos anos 70, como
Artur Ramos (1953), Edson Carneiro (1957) e Clóvis Moura (1959). O traço
marcadamente comum entre esses autores é atribuir aos quilombos um tempo
histórico passado, cristalizando sua existência no período em que vigorou a
escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão
da negação do sistema escravista, aparecendo como espaços de resistência e de
isolamento da população negra.
Embora o trabalho destes autores seja importante e legítimo, ele não
abarca, porém, a diversidade das relações entre escravos e sociedade
escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros
apropriaram-se da terra. Flávio dos Santos Gomes (1995:36), explicita tal
diversidade ao forjar o conceito de “campo negro”: “uma complexa rede social
permeada por aspectos multifacetados que envolveu , em determinadas regiões
7
do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com interesses
diversos” .
No entanto, foi a produção científica ainda atada a exegeses restritivas e
pouco plásticas que subsidiou a luta política em torno das reivindicações da
população rural negra que, sofrendo expropriações incessantes, se colocava como
um segmento específico no palco dos movimentos sociais. Desta forma, a
denominação quilombo se impôs no contexto da elaboração da constituição de
19882.
Esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais negras refletia,
na verdade, a “invisibilidade” produzida pela história oficial, cuja ideologia,
propositadamente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira
(GUSMÃO, 1996) e, especialmente, os efeitos da inexistência de uma política
governamental que regularizasse as posses de terras de grupos e/ou famílias
negras após a abolição, extremamente comuns à época, conforme comprovam os
estudos de CARDOSO (1987).
Ao fazer a crítica do conceito de quilombo estabelecido pelo Conselho
Ultramarino, ALMEIDA (1999:14-15) mostra que aquela definição constitui-se
basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos;
3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma
“natureza selvagem” que da chamada civilização; 4) moradia habitual, referida no
termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na
imagem do pilão de arroz. Para ele, com os instrumentos da observação
etnográfica “se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a
situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção
autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos
como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação possa ser
2 Sobre o fortalecimento da organização política dos grupos negros e a incorporação da questão quilombola ao seu rol de reivindicações, v. Flávio dos Santos Gomes (1996:105).
8
estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como
se detecta hoje em algumas situações de aforamento” .
O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da
definição, como o caso do quilombo Frechal, no Maranhão, localizado a cem
metros da casa grande, ou casos onde o quilombo esteve na própria senzala,
representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam
ocorrer – e de fato ocorriam –, sobretudo em épocas de decadência de ciclos
econômicos, fossem agrícolas ou de mineração. Diversos trabalhos mais recentes
a respeito de comunidades negras com origem mais diretamente relacionada à
escravidão têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de
representar um aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do
Império e da República.
Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de
atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso
ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o
acesso dos ex-cativos a ela no momento posterior à Abolição. Ao contrário, a
exclusão do segmento populacional negro em relação à propriedade da terra foi
peremptoriamente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo
ao longo do tempo. Ainda durante a escravidão, a Lei de Terras de 1850, veio
substituir o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros
cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito
legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção do “direito costumeiro”3,
que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os
grupos camponeses negros.
Como já foi assinalado por outros autores4, os grupos que hoje são
considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a
partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com
ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças,
doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao
Estado, simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior 3 Conceito explicitado por Margarida Maria Moura (1988).4 Ver especialmente Alfredo Wagner Almeida (1987/1988) e Neusa Gusmão (1996).
9
das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência
do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e
histórias destes grupos, uma denominação também possível para estes
agrupamentos identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras
de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores5, que
enfatizam a sua condição de coletividades camponesa, definida pelo
compartilhamento de um território e de uma identidade.
A promulgação da constituição e a necessidade de regulamentação do
Artigo 68 provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico6 que levaram à
revisão dos conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a
escravidão, instaurando a relativização e adequação dos critérios para se
conceituar quilombo, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente,
reivindicam a titulação de suas terras, pudesse ser contemplada por esta
categoria, uma vez demonstrada, por meio de estudos científicos, a existência de
uma identidade social e étnica por eles compartilhada, bem como a antigüidade
da ocupação de suas terras e, ainda, suas “práticas de resistência na manutenção
e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar” 7.
Desta forma, o conceito de quilombo que norteia o trabalho desenvolvido
pela Fundação ITESP é aquele que foi produzido pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) e ratificado pelo Grupo de Trabalho (vide nota de rodapé 1):
“toda a comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos vivendo da
cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o
passado”.
Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui
disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma
5 Ver Almeida (op.cit.), Gusmão (op.cit.), Andrade, (1988) e Acevedo Marin (1995).6 Especialmente no III Encontro Nacional sobre Sítios Históricos e Monumentos Negros (Goiânia: 1992); na Reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, da Associação Brasileira de Antropologia (Rio de Janeiro, outubro de 1994), e na reunião técnica “Reconhecimento de Terras Quilombolas Incidentes em Domínios Particulares e Áreas de Proteção Ambiental” (São Paulo, abril de 1997).7 Cfe. João Pacheco de Oliveira e Eliane Cantarino O’Dwyer. ABA, 1994.
10
ampla e enfatiza os elementos identidade e território. Com efeito, o termo em
questão indica: “a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões
e contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material
que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um
lugar específico”8.
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de
expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em
relação aos outros grupos com os quais se confrontam e se relacionam.
Estes dois conceitos são fundamentais e estão sempre inter-relacionados
no caso das comunidades negras rurais, pois “a presença e o interesse de
brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela, no dizer de
Bandeira, aspectos encobertos das relações raciais” (GUSMÃO, op.cit.:14). Estes
aspectos encobertos aos quais a autora se refere são a submissão e a
dependência dos grupos negros em relação à sociedade inclusiva, na qual foram
um dia escravos.
A identidade étnica é um processo de identificação de grupos em
situações de oposição a outros grupos. Frente a esta constatação, OLIVEIRA
(1976) elaborou a noção de identidade contrastiva para embasar as análises que
têm como centro interpretativo a identidade étnica de um grupo social. As
situações de oposição levam os grupos a elaborar os seus critérios de
pertencimento e de exclusão. Quando o confronto se estabelece entre um grupo
minoritário e os brancos, temos uma situação de submissão e dominação, de
hierarquia de status, a qual o autor denominou “fricção interétnica”. São
justamente estas relações interétnicas que se estabelece no convívio/confronto
das comunidades negras com a sociedade abrangente.
Ademais, esta submissão é sustentada por representações sociais que
justificam a inferioridade estrutural do grupo minoritário, as quais podemos
identificar como sendo racistas. É um racismo recalcado, escondido atrás de “um
8 Garcia, José Milton (PPI/SP), publicado em Quilombos em São Paulo: tradições, direitos e lutas, org. Tânia Andrade (1997:47).
11
sistema de valores que [...] tanto inibe manifestações negativas na avaliação ‘do
outro’ racial como estimula a apologia da igualdade e da harmonia racial entre
nós” (BORGES PEREIRA, 1996:76). A ocultação do racismo na sociedade
brasileira foi estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto
Freyre é um grande expoente, na década de 30, e que só começou a ser
contestado na década de 50 por Florestan Fernandes e Oracy Nogueira.
Em tal situação de desigualdade, os grupos minoritários reforçam suas
particularidades culturais e suas relações coletivas como forma de ajustar-se às
pressões sofridas, e é neste contexto social que constróem sua relação com a
terra, tornando-a um território impregnado de significações relacionadas à
resistência cultural. Não é qualquer terra, mas a terra na qual mantiveram alguma
autonomia cultural, social e, consequentemente, a auto-estima. Siglia Zambrotti
DÓRIA (1985) salienta que a identidade de grupos rurais negros se constrói
sempre numa correlação profunda com o seu território e é precisamente esta
relação que cria e informa o seu direito à terra.
A maior parte destes grupos que hoje vem reivindicar seu direito
constitucional o faz como um último recurso na longa batalha para manterem-se
em suas terras, as quais são alvo de interesse de membros da sociedade
envolvente, em geral grandes proprietários e grileiros, cuja característica essencial
é tratar a terra apenas como mercadoria. José de Souza MARTINS (1991:43-60)
explicita as características dessa relação dos homens com a terra, mediada pelo
capital, em que esta passa a ser “terra de negócio” em oposição à “terra de
trabalho”. Em conseqüência da cobiça que esta lógica de mercado despertou, os
camponeses foram pressionados com expedientes espúrios, tais como o auxílio
do aparato judicial e violência física direta, que agiram no sentido de negar-lhes o
direito de obter o registro legal de suas posses, invariavelmente muito mais
antigas do que o tempo mínimo requerido pela legislação para a sua
transformação em propriedades.
Portanto, não se deve imaginar que estes grupos camponeses negros
tenham resistido em suas terras até os dias de hoje porque ficaram isolados, à
margem da sociedade. Pelo contrário, sempre se relacionaram intensa e
12
assimetricamente com a sociedade brasileira, resistindo a várias formas de
violência para permanecer em seus territórios ou, ao menos, em parte deles9.
Finalmente, devemos salientar que é devido às considerações teóricas e
às constatações históricas aqui apresentadas que estudiosos das comunidades
negras rurais - e, particularmente, da legislação pertinente à questão quilombola –
têm buscado rediscutir e recaracterizar o conceito de quilombo. Tal intento, ainda
em curso, tende a aprimorar-se quanto mais os organismos responsáveis pela
identificação, reconhecimento e auxílio às comunidades quilombolas ampliem e
otimizem suas atividades, gerando mais dados que contribuam para o desvendar
científico das lacunas referentes aos grupos quilombolas que marcam a
historiografia nacional.
9 Muitas das comunidades rurais negras já pré-identificadas no Estado de São Paulo mantém uma pequena parcela de seus territórios, estando o restante ocupado por fazendeiros ou posseiros, alguns destes últimos com o consentimento dos próprios grupos quilombola; os primeiros, entretanto, invariavelmente chegaram às terras em questão valendo-se da ingenuidade das comunidades ou mesmo da coerção física para apoderar-se dos territórios negros.
13
3. O VALE DO RIBEIRA: OCUPAÇÃO HISTÓRICA E
FORMAÇÃO DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS
Apesar da considerável bibliografia existente a respeito do Vale do Ribeira,
elegemos o Laudo Antropológico realizado pelo Ministério Público Federal10 (LA-
MPF) sobre as comunidades de Ivaporunduva, São Pedro, Pilões, Maria Rosa,
Pedro Cubas, André Lopes, Nhunguara e Sapatu, como fonte principal dos dados
necessários às considerações aqui levantadas. Tal escolha se deve ao fato de que
o referido laudo trabalha exemplarmente os estudos que dão conta da ocupação
histórica do Vale do Ribeira e das conjunturas dela decorrentes que suscitaram o
surgimento das comunidades negras rurais, além de tratar especificamente sobre
oito delas, uma das quais é a chave de interesse deste trabalho, qual seja, o
Sapatu.
3.1. Os primórdios da ocupação humana e os ciclos econômicos
Segundo o referido laudo, o início da ocupação no vale do Ribeira de
Iguape remonta ao período pré-colombiano. A partir dos dados fornecidos pelas
pesquisas de cunho arqueológico e documental, concluiu-se que a região do
Ribeira foi, à época, ”uma área de passagem para os ameríndios que desciam, no
inverno, do planalto para o litoral, em busca de pesca, sendo habitada
permanentemente por contingentes pouco numerosos” (LA-MPF:9).
Os grupos indígenas que habitavam a região foram expulsos “de modo
violento e precoce” nesta região, dada a necessidade de proteção do litoral frente
às constantes investidas de estrangeiros – franceses e espanhóis -, ávidos em
pilhar ou mesmo conquistar a costa brasileira (LA-MPF:14). Com efeito, o
povoamento desta área sob os auspícios coloniais empreendeu-se rapidamente: a
ilha de Cananéia, por exemplo, já havia sido elevada à condição de município em
1578.
10 O trabalho de confecção deste laudo, finalizado em 1998, ficou a cargo dos antropólogos Adolfo Neves de Oliveira Júnior, Deborah Stucchi, Míriam de Fátima Chagas e Sheila dos Santos Brasileiro.
14
Cananéia e Iguape, situadas estrategicamente uma em cada extremidade
da Ilha Comprida, “funcionaram desde o século XVI como cabeças de ponte para
a penetração em direção ao interior: ambas ligavam-se por mar com outros
centros da capitania de São Vicente e do país” (LA-MPF:15). A atividade
mineradora era preponderante nestes portos e estendeu-se pelo interior na
medida em que eram descobertas jazidas mais ricas em pontos mais afastados da
costa. Em conseqüência, surgem os primeiros povoamentos a montante do rio
Ribeira: Ivaporunduva, Xiririca, Iporanga, Apiaí e Paranapanema (LA-MPF:16).
Durante dois séculos (XVII-XVIII), a extração do ouro de lavagem conhece
seu período mais profícuo. Embora a “corrida do ouro” no Vale do Ribeira tenha
arrefecido um pouco devido à descoberta das Minas Gerais no século XVII–
muitos proprietários de minas deixaram o Vale do Ribeira em direção à nova
promessa de ouro abundante – houve extração aurífera até as primeiras décadas
do século XIX, devido aos inumeráveis depósitos de ouro de aluvião conhecidos
pela população11. Em fins do século XVIII e meados do XIX, empreende-se a
também a extração de outros minérios na região de Xiririca, Iporanga e Apiaí12.
Com referência à mão-de-obra escrava e sua ligação com a atividade
mineradora, sabemos que “sendo a base da atividade mineradora, a entrada da
mão-de-obra negra em São Paulo já no século XVII, com ênfase a partir da
segunda metade, está ligada às bandeiras de mineração que se expandiram para
o interior do litoral sul. Ao contrário do ocorrido nas outras regiões de São Paulo,
onde a presença de populações negras é associada à cultura do café a partir do
século XIX, o Vale do Ribeira recebeu já no século XVI os primeiros contingentes
negros que foram a mão-de-obra de sustentação para o desenvolvimento da
atividade mineradora. Embora a maior concentração de escravos se desse em
Iguape, porta de entrada pelo Porto dos africanos distribuídos na região, eles
foram levados também às outras localidades situadas Ribeira acima” (LA-
MPF:19). 11 V. Lourdes CARRIL (1995:64).12 A Câmara Municipal de Xiririca, em ofício de 16 de março de 1875, apontava a existência de minas “de varios metaes nos lugares denominados Sapatu, Pedro Cubas, Batatal e Nhunguara”. Entretanto, ressaltava que “nenhuma dellas tem sido explorada ate hoje, sendo certo que as minas de ferro de Sapatu são de grande importância” (Ofícios Diversos Xiririca – Ordem 130, Lata 545, AESP). (Extraído de LA-MPF :18.)
15
O contingente de mão-de-obra empregado na mineração sempre foi
subtilizado na lavoura. Somente a partir do século XVIII, “a lavoura sofreu um
incremento relativamente grande,encontrando condições para a exportação de
eventual excedente de produção”. A atividade agrícola passa, então, a adquirir
maior estabilidade, sendo produzidos o milho, o café, a cana-de-açúcar, a
mandioca, o feijão e o fumo (LA-MPF:20-21). No caso da cana-de-açúcar, a
lavoura era ainda um pouco mais incrementada, devido ao fato de a fabricação de
aguardente ter sido uma atividade bastante praticada na região
O rio Ribeira era utilizado para o transporte de passageiros e mercadorias,
por conta da localização de Xiririca e Iporanga em suas margens. Esta última
transferiu-se para a margem do Ribeira após a decadência da atividade
mineradora e transformou-se em importante entreposto comercial entre Iguape e
os povoados localizados a montante do rio, aos quais só se chegava, antes da
utilização mais intensa da navegação fluvial, por meio de “antigos e precários
caminhos terrestres” (LA-MPF:24).
No início do século XIX, precisamente a partir de 1809, a monocultura de
arroz desponta como atividade econômica de destaque na região de Xiririca e
Iporanga: “Incrementado pela chegada da família real ao Brasil (...), o consumo de
arroz estimulou essa cultura, que passou a ser realizada em maior escala”.
Durante todo o século em questão, o arroz colhido no Vale era, em sua maior
parte, comercializado com outras províncias, tornando-se o principal produto
escoado pelo Porto de Iguape13 (LA-MPF:22).
A cultura do arroz na região modificou a estrutura da mão-de-obra escrava
vigente até então, provocando considerável diminuição do número de escravos
por proprietário. Uma das razões era a dificuldade em manter plantéis de escravos
nas grandes fazendas frente à escassez de gêneros alimentícios que imperava.
Os pequenos produtores mantinham lavouras de víveres essenciais, mas cada
vez mais buscavam empregar a mão-de-obra disponível na cultura do arroz,
13 “A importância que o ‘arroz de Iguape’ assumiu no contexto econômico da Província pode ser avaliada pelo crescimento da participação relativa da população da baixada na população provincial (de 3,0% em 1772 para 3,9% em 1828)... Além disso, dos 119 engenhos hidráulicos de beneficiamento de arroz existentes em São Paulo, 100 estavam na região do Ribeira” (José Roberto Zan apud BRANDÃO, 1997:24).
16
ocasionando uma alta no preço dos alimentos oferecidos em pequena quantidade
no mercado local14 (LA-MPF:22-24).
Entretanto, na segunda metade do século XIX, a rizicultura entra em crise
devido às oscilações de mercado e pelas dificuldades encontradas para manter e
repor os fatores de produção. A mão-de-obra escrava havia encarecido por conta
da abolição do tráfico (1850), e o contingente existente era disputado
acirradamente pela cafeicultura que, então, dominava o planalto paulista. A
lavoura cafeeira foi responsável, também, por abrir mercados para o arroz de
outras regiões e para a entrada do produto norte-americano. Ademais, a Baixada
do Ribeira foi colocada à margem tanto da rede ferroviária instalada na província
quanto do incremento de mão-de-obra gerado pela imigração estrangeira, ambas
medidas visando o beneficiamento apenas da cultura cafeeira.
A situação agravou-se nas primeiras três décadas do século XX,
inviabilizando a continuidade da cultura do arroz e lançando o Vale do Ribeira num
período de estagnação econômica. Ademais, “a existência de extensas áreas de
terras devolutas, já no século XIX começou a atrair o interesse de indivíduos que
passaram a ocupar imensas posses com fins especulativos” (ZAN apud
BRANDÃO, op.cit.:25), fato este que contribuiu para que a economia do Vale do
Ribeira não se desenvolvesse em níveis comparáveis aos das outras regiões do
Estado de São Paulo.
Em meados dos anos 60, os precários caminhos terrestres que interligavam
os municípios do Vale do Ribeira passaram a dar lugar a estradas asfaltadas,
favorecendo o desenvolvimento da bananicultura e da teicultura, além da
instalação das indústrias de transformação do palmito15.
14 Em 1865, a Câmara Municipal de Xiririca relatava ao presidente da província de São Paulo o problema do alto preço dos alimentos: “não se acredita que é um municipio verdadeiramente agricultor, se vende um alqueire de farinha de mandioca por 3$200; todos os mais alimentos por altos preços; a Câmara reconhece que a falta de braços e a origem deste estado de couzas por enquanto empregando-se seus municipes em cultivar o arroz não lhes resta tempo para outra cultura, um jornaleiro se não acha mesmo por grande salário” (extraído de LA-MPF:23).15 Estas culturas e os problemas que suscitam quanto à participação das comunidades rurais negras estarão abordados no cap.4 (???)
17
3.2. As comunidades negras rurais: breve relato sobre gênese e
história
Em meio ao processo de ocupação humana no Vale do Ribeira, do qual
temos tratado até então, houve um tipo de ocupação peculiar, qual seja, aquela
perpetrada por escravos, ex-escravos e/ou descendentes de escravos que se
fixaram ao longo do rio Ribeira, empreendendo atividades agrícolas para fins de
subsistência e participando de um pequeno comércio fluvial efetuado
intracomunidades. Como vimos anteriormente, a partir da decadência da
mineração no Vale do Ribeira, a mão-de-obra escrava passou a ser cada vez
menos requerida para as novas atividades econômicas, possibilitando que
homens e mulheres escravizados se estabelecessem na região como
camponeses autônomos. Nos determos brevemente, a partir daqui, a explicitar as
formas tomadas pela ocupação negra, bem como a preocupação que o seu
crescimento causou nos poderes públicos.
A comunidade de Ivaporunduva, a mais antiga da região, surgiu em meados
do século XVII, antes mesmo da fundação do povoado de Xiririca16. Segundo a
reconstrução histórica já realizada (LA-MPF:30), descobrimos que Ivaporunduva
“foi, primeiramente, um núcleo habitado por mineradores e seus escravos onde
foram exploradas lavras de ouro de aluvião durante quase duzentos anos” .
A população negra coexistia com a branca e, aos poucos, deixava de ser
cativa. Com o declínio da atividade mineradora, os brancos começam a abandonar
Ivaporunduva, lá permanecendo os negros que, já livres, “transformavam-se em
pequenos produtores fixando-se em terras apossadas mata adentro, à beira das
águas que terminam nos tributários do Ribeira, nas várzeas, nas capuavas (...)
onde cultivavam arroz e outros produtos (...)” (LA-MPF:33)
Há também os negros que se estabeleceram como legítimos proprietários
na localidade, mediante doação de seus ex-senhores. Nos relatos dos moradores
de Ivaporunduva, bem como no Livro de Tombo da Paróquia de Xiririca,
16 Young (1895:105-106) cita um documento datado de 1865, em que aparecem dois irmãos mineradores como os primeiros ocupantes de Ivaporunduva (extraído de LA-MPF:26).
18
encontram-se registros da doação feita por Joana Maria – uma proprietária de
terras em Ivaporunduva – aos escravos que a serviram (LA-MPF:30).
A Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos17, inaugurada em 1791,
é o marco simbólico da transformação de Ivaporunduva “numa área para onde,
crescentemente, foi atraído um grande contingente de negros que livres, libertos,
fugidos ou não, agruparam-se em torno da capela, nas terras da santa e nas
regiões mais interiorizadas do bairro” (LA-MPF:35).
CARRIL (op.cit.) relata que da construção de capelas empreendida pelos
negros emanava um componente de sociabilidade fundamental para a
organização destes grupos rurais: as irmandades, tais como a dos ‘homens pretos’
de Ivaporunduva. “A história das irmandades – diz CARRIL (op.cit.:81) – está
ligada às associações (confrarias) medievais, cuja finalidade se dirigia à proteção
dos seus membros, à construção de obras religiosas e mesmo profanas. Foram
introduzidas no Brasil por Portugal, onde adquiriram um dimensão racial e social.
(...) No Vale do Ribeira, estas irmandades passaram a se preocupar com a reza
de missas por irmãos vivos e falecidos, além de freqüentemente concederem, no
primeiro domingo de cada mês, sepulturas. A preocupação com as sepulturas era
muito grande, uma vez que muitos escravos morriam e os senhores abandonavam
seus corpos sem enterrá-los. (...) É inegável o fato dessas irmandades
representarem um centro onde os escravos encontravam espaço para que
pudessem reproduzir suas tradições e suas crenças, o que as transformava em
espaço de resistência da cultura africana” .
A autora ressalva, entretanto, que as irmandades também eram uma forma
de os leigos - representantes de um catolicismo rústico, afastado das
centralizações romanas18 - cristianizarem os negros, valendo-se também dos
próprios costumes tradicionais africanos (CARRIL, op.cit.:81-82).
Fixada em Ivaporunduva e arredores e vindo a se espalhar rio acima,
“provavelmente em períodos mais próximos do final do século [XIX]” (LA-MPF:67),
17 A capela em questão, que é tombada pelo Condephaat , havia sido reformada há alguns anos atrás e sua fachada original, modificada. À época das chuvas de 1997, a capela ficou em ruínas e passou por nova reforma que, desta vez, resgatou-lhe sua estrutura arquitetônica original.18 Sobre o catolicismo rústico, v. Duglas Teixeira MONTEIRO, 1974
19
a população negra padeceu sob o preconceito dos poderes locais, passando para
o imaginário da época como um elemento socialmente perigoso19.
“O fluxo de negros chegados de localidades situadas rio abaixo, visto como
uma ameaça à segurança da população local, motivava a tomada de medidas
violentas e repressivas, visando coibir seu trânsito e sua permanência na região,
que viria a somar-se aos negros ali já fixados, Além disso, um medo fundado na
experiência orientava a precação das autoridades: inúmeros levantes negros
tinham início durante os calendários festivos, religiosos e populares, quando os
fazendeiros baixavam e relaxavam a vigilância e os laços de solidariedade étnica
e religiosa eram potencializados” (LA-MPF:71)20.
Uma das formas encontradas pelos poderes políticos para anular a
crescente presença negra “livre’ no Vale do Ribeira foi a política de recrutamento
dos negros para a defesa nacional, principalmente por ocasião da Guerra do
Paraguai. Esta temática será desdobrada no capítulo 5, por estar intrinsecamente
ligada à origem da comunidade do Sapatu.
Não obstante o preconceito e as tentativas políticas de frustrar o
estabelecimento dos negros na região, as comunidades negras rurais, frutos
diretos das contradições inerentes aos ciclos econômicos nacionais e à
própria lógica escravagista, floresceram ao longo dos últimos três séculos,
resistiram às vicissitudes, firmando-se como camponeses dotados de um
19 “A medida em que uma parte da população negra fixada no Vale tornava-se cada vez mais visível aos olhos dos poderes locais, tornava-se também alvo de maiores perseguições” (LA-MPF:68).20 No trecho a seguir, extraído de um ofício expedido em 16 de setembro de 1820 por uma autoridade policial ao governo da província de São Paulo (apud LA-MPF:70), expressa-se tanto a perseguição dos poderes locais em relação aos negros, quanto o medo das festividades religiosas como datas propícias à ‘desordem’; “Daqui nasce que ficando esta freguesia tão central e remota como abandonada ao capricho de todos, não tendo em si o respeito e autoridade do governo militar e de uma vigilante polícia acontece e, presentemente, cada vez mais para aqui se vem acoitar indivíduos que, trazendo consigo a semente da desordem se conduzem particular e publicamente sem honestidade e sem religião. Isso se observa em todo tempo e ainda mais, das festividades da padroeira a 8 de setembro, como acabamos de sofrer no presente ano, com especialidade dos negros que sobem da Vila de Iguape. Alguns desses sujeitos que vêm por tempo considerável ou só por alguns dias a título de negócio ou sem título razoável (...) passando uma vida inútil e ociosa e se entretendo de dia e ainda mais de noite com festas e bebidas, com ajuntamentos todos indecentes e clamorosos, com gritalhadas (...), fraturas de portas e telhados, arrombamentos de casas, com insultos à igreja e ao pároco sem proteção, e diria também com injúrias de peso e gravidade aos moradores que, muitos, por isso deixam de frequentar as mesmas festividades, compreendendo-se nesse número os que fazem crescer o mal e ficam sem a merecida pena” .
20
modo de vida peculiar, e marcaram, indelevelmente, a paisagem no entorno
do Ribeira de Iguape.
4. A ECONOMIA DAS COMUNIDADES NEGRAS RURAIS
Para demonstrarmos as características peculiares do modo de vida das
comunidades rurais negras do Vale do Ribeira no que compete ao conjunto de
suas práticas econômicas, bem como as transformações a que estiveram sujeitas
no decorrer da última metade deste século, recorremos novamente ao Laudo
21
Antropológico do Ministério Público Federal (op.cit), cujos trechos serão aqui
transcritos com o uso de aspas e a referência às páginas das quais foram
extraídos21.
4.1. Modo de vida e território tradicional
De acordo com informações obtidas a partir do Laudo Antropológico
(op.cit.), bem como provenientes de outros textos, sabemos que, a partir da
decadência da atividade mineradora no Vale do Ribeira, grupos negros formados
por escravos libertos, fugidos ou abandonados, “assentaram-se como
camponeses livres em suas terras, dando origem a grande parte dos atuais bairros
rurais ” (LA-MPF:116).
Para apresentar as singularidades da economia camponesa, os autores do
Laudo Antropológico valem-se, principalmente, das proposições do economista
russo Alexander V. Chayanov22 , segundo o qual não se pode compreender as
economias camponesas a partir das mesmas chaves conceituais empregadas no
estudo dos empreendimentos econômicos capitalistas levados a cabo em
economias de mercado (LA-MPF:118-122). “Chayanov mostra como as
economias de subsistência, baseadas no trabalho familiar, regem-se por uma
lógica peculiar, periférica aos processos econômicos (e ao instrumental teórico) da
economia capitalista de mercado. Assentando-se no trabalho da unidade familiar,
a economia dos grupos camponeses orienta-se, essencialmente, para a satisfação
das necessidades do grupo doméstico, unidade básica produtora e consumidora.
Daí seu caráter intrinsecamente qualitativo, centrado no atendimento de
demandas culturalmente determinadas, com produtos dotados de características
específicas para a sua satisfação, não necessariamente intercambiáveis por
outros de características diversas. Tal capacidade de intercâmbio, cuja base – no
que tange às relações com a economia de mercado – é a existência da moeda
21 Embora o Laudo Antropológico do Ministério Público Federal (op.cit.) descreva práticas econômicas baseadas em relatos de moradores de algumas comunidades, nossa experiência em campo demonstrou que as atividades econômicas elencadas pelo referido laudo são comuns a todas as comunidades às quais o laudo se refere e, em especial, à do Sapatu, tema central do presente relatório. 22 CHAYANOV, A. V. The Theory of Peasant Economy. 1966, The American Economic Association Translation Series. Published by richard D. Irwin, Inc., Homewood, Illinois.
22
enquanto meio de troca universal (ou que tende à universalidade), é bastante
restrita em economias de subsistência, uma vez que apenas parte da esfera
produtiva se volta para o mercado e para a obtenção de dinheiro” (LA-MPF:122-
123).
Do mesmo modo, a organização social camponesa, baseada, como vimos,
nas famílias como centro de produção e consumo, constrói-se em torno de
padrões de relações sociais marcadamente horizontalizados, baseado no auxílio
mútuo e nas redes de solidariedade vicinal23. Embora não haja uma equalização
absoluta das posições sociais, também não há a relação vertical clássica do
capitalismo marcada pela presença, em pólos opostos, de patrões e empregados,
relacionando-se por conta unicamente do trabalho assalariado.
Segundo o Laudo Antropológico, a interface entre as formas de produção
material e da organização social das comunidades rurais determina o conceito de
territorialidade tradicional: “Produção de bens materiais e produção de significados
sociais se entrelaçam, interdependentes e mutuamente determinantes, permitindo
a exploração de recursos naturais e a concomitante produção de vida social
relativamente autônoma frente à economia e às relações sociais características do
Estado-Nação brasileiro” (LA-MPF:124).
Ainda: “A expressão de ambas formas de produção – produção material e
produção de significados culturais – sobre uma porção do espaço geográfico,
constitui o território tradicional, cuja característica de tradicionalidade, em sua face
social, é expressa pelo conjunto distintivo de relações sociais entabuladas por
seus membros (...). Em sua face econômica, esta tradicionalidade se traduz na
impossibilidade de os ocupantes de tais territórios adotarem modernas técnicas de
produção (...) direcionadas ais empreendimentos econômicos de natureza
mercantil, dependentes de inversão de capital e guiando-se pelas regras
econômicas expressas pelas categorias econômicas a que nos referimos
anteriormente, não operacionalizadas nas denominadas economias ‘tradicionais’.
23 Antônio Candido (1978), em sua definição de bairros rurais como agrupamentos dessas unidades familiares, leva em conta a participação nos mutirões – estruturas clássicas de cooperação horizontal do meio rural – como fator preponderante para delimitar quem faz parte ou não dos ditos bairros. Essa discussão sobre bairros rurais está melhor detalhada no item 5.2. deste trabalho.
23
A contrapartida deste processo é uma sociedade cujo fim último é a reprodução
entre seus membros e não a acumulação de bens e de lucro - isto é, a
preservação de modo de vida – o que implica a preservação dos recursos naturais
de seu território, dos quais depende para sobreviver” (LA-MPF:128).
4.2. Práticas econômicas: aspectos tradicionais e mudanças impostas pela
legislação ambiental
Neste item, apresentaremos em pequenos tópicos os principais aspectos
representantes das atividades econômicas concretas dos moradores das
comunidades negras rurais do Vale do Ribeira, tendo como base o Laudo
Antropológico do Ministério Público Federal (op.cit.) e elementos da pesquisa de
campo efetuada na comunidade do Sapatu.
1. Objetivos econômicos - “Baseada na mão-de-obra familiar, a economia
agrícola e extrativa das comunidades negras do Vale do Ribeira assenta-se sobre
a possibilidade de assegurar os produtos básicos para o consumo familiar, ao
tempo em que a atividade extrativa – basicamente de palmito, realizada
clandestinamente na maior parte da região, e de produtos como o sapé e taquara,
utilizados para a cobertura das casas e fabricação de alguns utensílios – além do
trabalho assalariado, complementam a renda familiar, provendo as unidades
familiares com o recursos necessários à aquisição de bens e utensílios diversos,
não produzidos localmente” (LA-MPF:129).
2. Criação de pequeno porte - “Animais de pequeno porte são, também,
criados pelos membros das comunidades negras do Vale, tais como galinhas,
porcos, patos, cabritos e perus. (...) A criação de pequenos animais destina-se,
essencialmente, à complementação da dieta alimentar e, secundariamente, à
constituição de uma reserva para suprir necessidades eventuais da unidade
doméstica, tais como remédios, roupas, sal, querosene, açúcar, óleo e pequenos
deslocamentos” (LA-MPF:130). Neste último caso, em que a pequena criação
significa reserva de valor, procede-se à venda dos animais – geralmente galinhas
e porcos – para adquirir-se dinheiro para despesas externas. No Sapatu,
observou-se que tal prática é desejada e realizada não só nos momentos de
24
emergência. Embora não haja uma rede substancial de comercialização de tais
produtos, os moradores do Sapatu conseguem freqüentemente vender suas
criações para moradores do município de Eldorado ou mesmo vizinhos que não se
dedicam mais intensamente à pequena criação.
3. Banana - A cultura da banana, uma das marcas registradas da prática
agrícola no Vale do Ribeira, apresenta-se nas comunidades negras em geral –
certamente na do Sapatu – como “plantação de quintal”, ou seja, não é produzida
em larga escala para fins de comercialização, mas apenas para o consumo
doméstico e da criação e é, eventualmente, vendida à beira da estrada que liga
Iporanga à Eldorado em improvisados quiosques feitos pelos moradores que
investem um pouco mais em tal cultura. “A banana é comercializada em pequena
escala, face às dificuldades de transporte do produto para os centros
consumidores, tendo em vista a precariedade de acesso dos atravessadores às
comunidades e indisponibilidade de veículos próprios para esse fim” (LA-
MPF:129). Outro percalço enfrentado na produção da banana é fato de que “para
ser transportada sem apodrecer até os centros consumidores – basicamente São
Paulo e Rio de Janeiro – é necessário que ela seja borrifada com um tipo de óleo
que retarda seu amadurecimento. Sem a borrifação, a banana pode perder-se em
até quarenta e oito horas, tempo insuficiente para concluir a etapa da
comercialização. Como os membros das comunidades não dispõem de capital
acumulado para investir nestas sofisticadas técnicas de conservação (...)
freqüentemente sua produção é discriminada pelos comerciantes e consumidores
de modo geral, que encomendam, preferencialmente, seus produtos diretamente
dos grandes plantadores de banana do Vale” (LA-MPF:129-130)
4. Produção agrícola e de derivados: “A produção agrícola dessas
comunidades (...) é relativamente variada, abarcando um amplo leque de culturas
temporárias, como o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, a cana-de-açúcar, a
batata-doce, além de fruteiras, como o abacaxi, o maracujá e a mexerica. São
também cultivadas hortaliças como couve, cebola, alface, alfavaca, cebolinha, etc.
Há ainda, no entorno, uma variedade de produtos vegetais silvestres, utilizados na
alimentação, como coentro e o gengibre” (LA-MPF:129).
25
Em geral, próximo às moradias, encontram-se os pomares e as hortas,
enquanto as roças localizam-se a uma distância maior (V. item seguinte). Entre os
produtos vegetais silvestres, podemos listar ainda o urucum, utilizado, após ser
frito e moído, como tempero pigmentador para molhos e caldos – uma espécie de
‘coloral’ natural.
Há que se registrar uma outra importante atividade das comunidades
negras rurais, qual seja, a transformação artesanal de matéria-prima em produtos
para consumo e comercialização. É o caso, por exemplo, da fabricação de carne
de porco salgada e das farinhas de milho e mandioca (LA.-MPF:137).
5. As roças de coivara – Segundo fontes diversas – CARRIL (op.cit),
BRANDÃO (op.cit.), a pesquisa de campo efetuada no Sapatu e o Laudo do
Ministério Público Federal -, a agricultura era tradicionalmente praticada pelas
comunidades negras rurais em regime de coivara, ou seja, um sistema de rodízio
de culturas e periodizações de tempo sobre o qual apresentaremos detalhes a
seguir:
“A roça era aberta antes do início das chuvas, em local de mata densa,
onde o ‘cabeça’ da família delimitava um trecho (entre 1 ha. E 6 ha., dificilmente
maior) e fazia derrubada da vegetação rasteira com o auxílio da força ativa de seu
grupo doméstico, normalmente os filhos maiores. A vegetação rasteira e de
pequeno porte era então empilhada em locais estratégicos do terreno e deixada
por algum tempo até que secasse.
Todo o processo, aliás, subordinava-se (...) à existência de um período de
seca antes da estação chuvosa ou, como se diz no local, ‘fazer verão’ (tirar antes
das chuvas), para permitir que a vegetação derrubada pudesse secar o suficiente
para ser queimada. Algum tempo depois, procedia-se à derrubada das árvores
maiores, de acordo com o planejamento logístico, para que a derrubada de umas
pudesse auxiliar na queda de outras. Os troncos maiores eram deixados no
terreno, semi-queimados, e o plantio era feito imediatamente depois das
queimadas das pilhas de vegetação derrubadas, agora secas.
O primeiro produto a ser plantado em uma roça recém-aberta era,
normalmente, o arroz – muitas vezes em consórcio com o milho, em carreiras
26
alternadas – colhido cerca de três meses após o plantio. O milho é colhido,
normalmente, após cerca de quatro meses e meio do plantio; após a colheita de
arroz, ou após a do milho, no caso de culturas conjugadas, carpia-se o terreno da
vegetação rasteira e plantava-se imediatamente o feijão. Quando não se havia
plantado o milho anteriormente, o plantio do feijão era conjugado com o do milho.
A colheita de feijão, realizada na época das águas, coincidindo com a safra dos
grandes produtores, não alcançava preços compensadores no mercado, o que
dificultava sobremaneira sua comercialização.
Após a colheita de feijão, replantava-se o milho, sem intervalo. Algumas
vezes as roças de milho eram destinadas à alimentação dos suínos. Após a
secagem do milho, soltava-se os porcos no local que somente eram recolhidos
após a engorda (sic). As roças localizavam-se preferencialmente a certa distância
das habitações, não apenas porque os moradores evitavam a proximidade dos
porcos, mas também porque a exaustão natural do solo – após, em média, três
anos de plantio contínuo – fazia com que as novas roças se distanciassem
progressivamente das moradias. As roças, após esse período, eram colocadas em
descanso e seus donos retornavam a ela periodicamente para a coleta de abacaxi
e da cana-de-açúcar, usualmente, consorciadas com o produto principal.
Nenhuma dessas duas culturas requer grandes cuidados após o plantio, podendo
florescer no meio do mato baixo que começa a se formar na roça após o plantio.
A terra era posta em descanso por períodos que chegavam a doze anos
mas, de forma nenhuma, inferiores a três para permitir a formação de uma
cobertura vegetal denominada, na região, capoeira ou capuava, que reconstitui os
nutrientes do solo, condição essencial para que ele possa ser novamente utilizado.
Exímios conhecedores das matas e da topografia locais, os habitantes dos
bairros negros exibem a capacidade de distinguir, à distância, um trecho de
capuava dentro da vegetação primária da Mata Atlântica, mesmo em casos de
florestas da mesma altura, através da coloração das folhas, grau de
homogeneidade da cobertura e pela presença ou ausência de determinadas
espécies características das matas primária e secundária” (LA-MPF:131-134).
27
6. A extração do palmito – Desde sempre o palmito foi extraído pelas
comunidades rurais. Elemento da economia tradicional, além da parte comestível,
toda a árvore do palmito “era utilizada para fazer caibros e ripas para a estrutura e
cobertura das casas, monjolos, chiqueiros feitos pelos moradores” (LA-MPF:141).
A partir de 1950, iniciou-se a extração comercial do palmito no Vale do
Ribeira, resultando no estabelecimento de indústrias de beneficiamento em
diversos municípios da região. Com o aumento da demanda pelo palmito, as
comunidades rurais passaram a intensificar a extração de palmito para vendê-lo,
in natura, a um atravessador – o palmiteiro - que, por sua vez, repassava o
produto ao comerciante.
Desta atividades, resultam dois problemas principais: 1) as comunidades,
frente à demanda crescente pelo palmito, aumentam o extrativismo e abandonam
gradualmente as atividades agrícolas, tornando-se mais dependentes do mercado
para adquirir produtos que antes eram produzidos por elas mesmas e 2) a
extração do palmito passa a adquirir caráter predatório, impondo um alto custo
ambiental à floresta. “A extração da parte comestível do palmito implica na
derrubada da palmeira toda, aproveitando-se apenas a ponta da árvore e
desprezando-se todo o resto. Isso faz com que o custo ambiental da atividade seja
desproporcional ao volume da produção, considerando-se o tempo de maturação
relativamente alto da espécie, em torno de seis anos. Além disso, as trilhas
abertas na mata para facilitar o acesso a novas palmeiras e o armazenamento do
produto também provocam impacto sobre a floresta. A semente do palmito juçara
é alimento para certas espécies silvestres, cujo processo excretor promove a
aspersão das sementes, o que permite o replantio da palmeira; em áreas
altamente impactadas, onde a retirada do palmito não é manejada
adequadamente, essa cadeia é interrompida” (LA-MPF:141).
Atualmente, as comunidades extraem e beneficiam o palmito, repassando-o
ao atravessador, que fica com o maior lucro. Como as comunidades utilizam
técnicas rudimentares de beneficiamento, o palmito por elas produzido e vendido
pronto para o consumo padece de um nível sanitário bastante deficiente (LA-
MPF:142-143). No próximo item, examinaremos também por que a extração de
palmito, ilegal, continua sendo realizada pelas comunidades.
28
7. O impacto da legislação ambiental – Os importantes resquícios de
Mata Atlântica primária e em formação secundária presentes na região estudada –
estima-se que dos 13.000 Km2 restantes desta vegetação no Estado de São
Paulo, 8.350 Km2 estejam no Vale do Ribeira – fizeram com que o governo
interviesse nessa área desde o final da década de 50, com o propósito
preservacionista. Com efeito, as legislações ambientais que incidem sobre o Vale
surtiram interditos legais que impedem o uso de 75% das terras que o compõem24.
Segundo dados de 1996 (e posteriormente atualizados), há 12 Unidades de
Conservação no Vale do Ribeira, compreendendo em torno de 979.949,48 ha.
de terra25. Estas Unidades de Conservação, consubstanciadas em parques ou
APA’s (Áreas de Proteção Ambiental), agem no sentido de preservar a flora e a
fauna do Vale do Ribeira, mas empreendem, por outro lado, um efeito nocivo
sobre as comunidades camponesas. A proibição das roças no sistema de coivara
sujeita o camponês do Vale a sequer poder reproduzir sua dieta alimentar como
antigamente. Frente à impossibilidade de abrir novas roças, as capuavas são
novamente reaproveitadas com maior rapidez, não se respeitando o tempo
tradicional de pousio, o que enfraquece o solo. Como a fiscalização incide
diretamente sobre o território das comunidades rurais, estas vêem-se obrigadas a
abrir suas roças cada vez mais no interior da mata, na tentativa de fugir das
pesadas multas e, ao mesmo tempo, conseguir produzir gêneros agrícolas
essenciais para a sua alimentação e para o trato das pequenas criações. Também
a extração do palmito, ilegal, passa a ser feita na clandestinidade, inclusive como
24 Estes dados são retirados de CARRIL (op.cit.:116).25 Dados extraídos de ”Atlas das Unidades de Conservação Ambiental do Estado de São Paulo (Parte I, Litoral), Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, 1996. Vale ressaltar que as doze Unidades de Conservação aqui consideradas são os parques da Ilha do Cardoso, o Intervales, o Jacupiranga, o Pariquera Abaixo e o Petar, as APA’s de Cananéia, Iguape e Peruíbe, Ilha Comprida e Serra do Mar, além da Área sob Proteção Especial (ASPE) da Juréia e a Zona de Vida Silvestre (ZVS) de Ilha Comprida. O total de terras em hectares que elas ocupavam até o final de 1999 era de 986.902; nesta época, entretanto, o governador do Estado de São Paulo, Mário Covas, modificou por decreto os limites do Parque Intervales, a fim de retirar de seu interior porções dos territórios pertencentes a comunidades quilombolas já reconhecidas como tal (Maria Rosa, Pilões, São Pedro, Pedro Cubas e Ivaporunduva). Por conta disso, o Intervales teve em torno de 6.961, 52 ha. subtraídos de sua área original.
29
forma de garantir o sustento dos membros das comunidades, impedidos de
realizar o trabalho agrícola26.
Na comunidade do Sapatu, os moradores continuam plantando em
pequenas áreas próximas às suas casas, às margens da estrada. O milho e o
arroz são as culturas predominantes. O território reivindicado pela comunidade
está totalmente inserido na APA da Serra do Mar e parte sobrepõe-se ao Parque
Estadual Jacupiranga.
26 Todavia, a legislação ambiental, severamente aplicada às comunidades rurais, parece ter sido usada com maior plasticidade quando se refere a empreendimentos econômicos de maior vulto. Como salienta CARRIL (op.cit.:120): “(...) as várias legislações que dispuseram sobre as reservas florestais no Vale do Ribeira têm sido bastante flexíveis no tocante aos projetos de caráter econômico. (...) Criou-se em 1958, por exemplo, o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR, mas, até hoje, não existem limites demarcados e essa questão nunca foi objeto de atenção dos governos estaduais subsequentes. O decreto 41.626 de 30/01/63, colocou o PETAR sob a responsabilidade do Serviço Florestal (...) e da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário (PPI). Porém, a partir de pressões, certos interesses econômicos começaram a prevalecer e o decreto de 29/12/69 excluiu 600,17 ha. da área original, ao norte do parque, essa área é ocupada atualmente, por uma empresa de calcário, a Mineradora Espírito Santo”.
30
5. A COMUNIDADE DO SAPATU: ORIGEM E TERRITÓRIO
A comunidade do Sapatu está disposta ao longo das duas margens do rio
Ribeira de Iguape, por aproximadamente 5 Km. Dividindo-a ao meio está, também,
a estrada SP-165, localizada ao longo da margem direita do rio Ribeira, ligando os
municípios de Eldorado e Iporanga.
A seguir, tentaremos reconstruir os primórdios da ocupação das localidades
que compõem a comunidade, bem como o processo que a destituiu do domínio de
seu território original.
5.1. A origem da ocupação: necessidades de expansão agrícola e a fuga do
recrutamento forçado
A formação do bairro do Sapatu está vinculada à busca de novas terras por
parte de famílias estabelecidas em outras comunidades negras, como aponta o
Laudo Antropológico do Ministério Público Federal (op.cit.). “Pode-se explicar a
formação ou, pelo menos, o adensamento populacional negro em bairros como
São Pedro, Sapatu e Galvão (...), com base na lógica da expansão territorial em
busca de terras férteis para o plantio. À medida em que a região do Vale do
Ribeira consolidava-se como centro produtor e exportador de cereais, após o
declínio da mineração, os negros, transformados em pequenos produtores rurais,
desbravaram novos lugares tomados através do trabalho, promovendo um
repovoamento da região. (...) Os relatos orais demostram que a memória retém
aspectos de parte do processo de fixação, que pode ser localizado no tempo, a
partir da década de 30 do século passado, em que a mobilidade desses grupos foi
um fator importante no movimento de expansão da população negra em busca de
áreas de cultivo” (LA-MPF:50)
Com efeito, podemos observar que, ao fixarem-se pelas terras do Vale, os
camponeses negros foram tecendo relações entre os vários núcleos de
povoamento a que deram origem, como denota este exemplo: “Do mesmo modo
que as alianças de casamento relacionam São Pedro a André Lopes e Nhunguara,
31
ligam o mesmo bairro a Sapatu. Um outro filho de João Vieira (André Lopes) e
Ana Faustina Furquim (São Pedro), chamado Zeferino Furquim, ter-se-ia fixado
antes do final do século XIX, em Sapatu, tendo unido-se a duas mulheres, Paula e
Maria” (LA-MPF:55). Zeferino Furquim era um dos muitos filhos de Bernardo
Furquim, uma espécie de patriarca negro das comunidades de São Pedro e
Galvão, cujos descendentes estão espalhados por quase todas as comunidades
negras do Vale.
Júlio Furquim, filho de Zeferino teria, ainda segundo o Laudo
Antropolológico (op.cit.:61-62), ao mudar-se de São Pedro para o Sapatu, mais
precisamente para Indaiatuba, adquirido terras de José Júlio da Silva, um negro
que estabelceu-se na Barra de São Pedro como comerciante e era proprietário de
vastas terras no Vale, oficialmente ganhas em recompensa aos serviços que
prestou por ocasião da Guerra do Paraguai27
Aliás, a Guerra do Paraguai é episódio determinante na expansão do
território ocupado pelas comunidades rurais negras. Fugindo do recrutamento
forçado, os negros, cativos ou libertos, adentravam a mata e tentavam ocultar-se
dos poderes públicos, amedrontados com a possibilidade de ter que guerrear no
Paraguai. Mesmo alguns dos que eram recrutados, desertavam no meio do
caminho e retornavam ao Vale, necessitando mais ainda de esconderijo seguro.
Vejamos o que o Laudo Antropológico relata a esse respeito:
“A truculência dos procedimentos de recrutamento aumenta
sensivelmente na segunda metade do século XIX quando o
Brasil integra as forças que, juntamente com o Uruguai e a
Argentina, iriam destruir o Paraguai numa guerra que duraria de
1865 a 1870. O exército brasileiro que combateu no Paraguai
era formado por “voluntários da pátria” e recrutados à força em
todas as regiões, ocupando posições distintas na escala social;
27 As informações retidas na memória da comunidade a respeito de Zeferino e Júlio Furquim não foram suficientes para desfazer a contradição aqui presente: se Zeferino já morava em Sapatu, porque seu filho se mudou de São Pedro para lá? Provavelmente, esta informação está incorreta e Júlio Furquim apenas comprou terras de José Júlio da Silva para ampliar o território que sua família já ocupava no Sapatu.
32
a ele somava-se a existência de um grande de combatentes ex-
escravos, libertos para as agruras da luta.
Apesar do entusiasmo com que foi aberta a sessão
extraordinária da Câmara Municipal de Xiririca em 7 de
setembro de 1865, conclamando os súditos a pegar em armas
para a defesa da “Patria em sua afflição”, as adesões foram, no
mínimo, decepcionantes. O presidente da Câmara ofereceu
uma parte sua fortuna como contribuição, impedido de alistar-
se declarando-se “ cortado pelas molestias e annos”. Os
demais participantes também ofereceram-se para treinar,
instruir e fardar os voluntários e recrutas, mas não nenhum
deles alistar-se-ia, sugerindo-se ampla divulgação sobre as
premiações em terras aos combatentes voluntários que
retornassem(...)” (LA-MPF:74-75).
“Um ano depois a Câmara Municipal de Xiririca informava ao
Presidente da Província que, até 18 de dezembro de 1866,
haviam sido recrutadas 54 pessoas. A epidemia de cólera havia
ceifado perto de 300 vidas em todo o município, o que tornava
mais árdua a tarefa de atender as ordens provinciais sobre o
recrutamento para a Guerra. Nesse sentido, resulta claro que
as populações negras representavam um alvo importante para
engrossar as fileiras do exército (...) (LA-MPF:75-76)”.
“Principalmente os homens solteiros, sem família e desprovido
de terras, os negros, mulatos e pardos, ainda que livres e
libertos, estariam entre a massa de recrutáveis para o exército.
Esse contingente comporia as fileiras do exército,
representando este um espaço social subalterno, formado em
sua imensa maioria por homens livres não proprietários,
recrutados mais por castigo ou desemprego do que por
qualquer vocação. A caserna seria o refúgio dos considerados
desocupados, desqualificados e malfeitores, sobretudo, os
negros.
33
Enquanto o subdelegado de Iporanga publicava um edital
livrando “todo indivíduo de ser recrutado ao campo de guerra.
Si plantasse uma certa quantidade de semente de algodão.
Naquella época nosso caboclo respeitava a lei; para, porém,
fugir de suas obrigações militares, escondia-se –
frequentemente no matto. Essa ‘ukase’ veio, porém, a gosto de
muita gente: sahiram de seus esconderijos para plantar a
famosa planta fibrática” (Krug; 1939: 565), em Xiririca, as
perseguições foram sistemáticas e duras. As intensas
cobranças provinciais aos administradores xiriricanos pelo
aumento do número de recrutados provocaram reclamações
contra as autoridades de Iporanga que não estariam sendo
diligentes, embora naquela localidade maça de recrutáveis
fosse considerada maior, em 1866 (Ofícios Diversos – Ordem
130 – Lata 545).
O povoamento de várias localidades habitadas
fundamentalmente por populações negras no Vale do Ribeira,
como Nhunguara e André Lopes e Sapatu, também deve ser
analisado à luz das fugas dos recrutamentos para a
composição dos batalhões de combate para a Guerra do
Paraguai. Uma profusão de relatos sobre a escolha de zonas
de refúgio que acolheram inúmeras fugas está presente nas
narrativas dos informantes residentes em vários bairros da
região (...)” (LA-MPF:76-77).
“O episódio da Guerra do Paraguai é marcante para a história
da formação das comunidades estudadas, tanto que durante os
levantamentos genealógicos, constatou-se a ocorrência
significativa de famílias inteiras que se auto-denominam
Paraguaia, utilizando o termo na condição de assinatura ou
sobrenome. Conforme ressaltou João Paula de França,
“Paraguaia ficou sendo o nome não porque as pessoas vieram
do Paraguai, mas é porque foram lutar na guerra ou se
34
esconderam por medo da guerra; mudaram o apelido e ficou
paraguaia”. Ocupando a condição de nome de família, a
menção transforma-se numa referência de caráter social que
agrega, a despeito dos padrões consaguíneos de nomeação,
grupos diferentes em torno de uma mesma ocorrência histórica
e social. Essa ocorrência fala dos processos de ocupação da
terra, mobilidade e aliança entre os diversos grupos negros
presentes no Vale do Ribeira durante o século XIX.
Estabeleceu-se como uma marca social a partir de processos
de fuga bem situados no tempo, revelando que os negros
ocupavam uma posição, de certa maneira frágil ou tensa, na
estrutura social, ainda que fossem reconhecidos pelos setores
da igreja local como livres ou libertos. Sobre essa população
recairia o ônus da participação em uma guerra cujos motivos
lhes eram irrelevantes; sendo ela composta por negros, pardos
ou mulatos” (LA-MPF:79-80).
O Sr. Aquilino Furquim, morador do Sapatu de 69 anos, lembra-se de que
uma das primeiras moradoras do bairro chamava-se Laurinda “dos paraguaia”.
Esta mesma moradora é citada por uma informante da comunidade de André
Lopes:
“Veio tembém para cá o pessoal da Dona Carmelinda, uma boa parte tinha
relação com o pessoal de Nhunguara, seu José Zeferino, seu Venâncio, que
morava na Capuava. Ele fazia relação com gente daqui, tanto fazia ir no André
Lopes como aqui, era a mesma coisa. A mulher do seu Venâncio chamava Júlia,
que era lá do Sapatu; ele não era tanto família daqui. Lá no Sapatu tem o Celso
e a Laurinda, eles também são dos Paraguaia”. (apud LA-MPF:79 – grifo meu).
Secundarizando agora os motivos que instigaram a mobilidade espacial das
comunidades negras, é preciso reter o fato de que, originárias de grupos de ex-
escravos, ociosos após a decadência da mineração e transformados em pequenos
produtores rurais, estas comunidades possuem histórias particulares que se
entrecruzam em uma história geral – mormente as que estão em maior
proximidade umas das outras – e, ao pensarmos sobre sua formação, é mister
35
não procurar um mito de origem ou um herói fundador. Explique-se: está claro que
as comunidades foram estabelecendo-se em territórios mais ou menos fixos – é
preciso recordar que o próprio modo como estas comunidades praticam a
agricultura requer uma mobilidade muito grande – e firmaram relações de aliança
entre elas, sobretudo por meio dos casamentos intergrupais. Não por acaso,
muitos dos sobrenomes associados ao bairro de Ivaporunduva (V. LA-MPF:36)
remetem aos troncos familiares encontrados no Sapatu, como Machado, Pereira,
Santos, Costa, Furquim e Pedroso28. Isso posto, entendemos que cada
comunidade possui, de fato, seus principais e tradicionais núcleos familiares mas
que, a existência de parentelas extensas espalhadas pelas várias comunidades
reforça a idéia de que, no Vale do Ribeira, os diversos grupos negros que lá
fixaram-se são descendentes de escravos, ainda que não precisemos quais eram
ou de quais plantéis faziam parte, pois a história socio-econômica do Vale do
Ribeira incumbe-se, por si mesma, de estabelecer estas conexões gerais,
enquanto que o parentesco e as relações de trabalho encarregam-se de mostrar
que as comunidades forjaram-se, num registro sincrônico, umas às outras,
baseadas em suas necessidades de expansão territorial e alicerçadas na
cooperação mútua29.
As histórias sobre os tempos da escravidão no Sapatu remetem,
principalmente, aos vestígios materiais deste período existentes no território da
comunidade. Grandes valas construídas por escravos para a fabricação de
aguardente e açúcar ainda podem ser identificadas no Sapatu. D Pedrina
Machado, moradora do Sapatu de 71 anos, conta que além das valas, existia um
açude feito por escravos, rodeado por imensas pedras que “eles levava nas
costas...perto tinha um barrancão e uma turma de escravo morreu ali há 200
anos... tem pessoal que até escuta barulho e grito quando passa de noite por lá”.
5.2. Sítios e bairros
28 Vale lembrar que estes sobrenomes, de origem portuguesa, certamente forma repassados aos escravos pelos seus senhores, como era de praxe no período escravista.29 A sociabilidade que se estabelece no meio rural por conta do parentesco e das relações de trabalho comunitárias estarão especificadas no próximo item.
36
A comunidade do Sapatu é tratada como um único bairro rural pelos
poderes públicos municipais. Todavia, em sua origem, o todo social e territorial
que compõe o Sapatu estava subdividido. De acordo com o relato dos moradores,
podemos identificar no mínimo três localidades contíguas, mas claramente
distintas: Cordas, Sapatu e Indaiatuba. Uma quarta localidade, denominada Baixio
Preto, é também citada por alguns moradores como integrante atual do Sapatu
oficial. Uma quarta localidade, denominada Baixio Preto, é também citada por
alguns moradores como integrante atual do Sapatu oficial. Todavia, ele não pode
ser considerado um sítio independente, visto que nada mais era que uma faixa de
terra bastante próxima à margem esquerda do Rio Ribeira, no interior do sítio
Indaiatuba. Como a maioria dos ex-moradores do Baixio Preto já faleceu ou
mudou-se para outras localidades, ele não é citado tão freqüentemente nos
depoimentos colhidos.
Todas essas localidades agrupadas no bairro Sapatu são reconhecidas
como sítios que compunham “uma coisa só”, ou seja, um sentido mais amplo de
pertencimento a uma comunidade já existia antes da unificação oficial do bairro.
No Laudo Antropológico do Ministério Público Federal (op.cit.), encontramos
referências sobre a discussão que as duas terminologias – sítios e bairros – geram
no entendimento dos limites territoriais e políticos das comunidades negras.
“A categoria bairro possui uma razão administrativa (...). O termo é utilizado
pela Administração Pública para designar unidades geo-políticas (sic) (...) válidas
para fins de relacionamento com unidades políticas mais inclusivas, em especial a
municipalidade, que destina verbas e serviços (educação, saúde, etc.) aos bairros
(...). É sua relação com as unidades políticas da sociedade englobante, portanto,
que define o uso de ‘bairro’ como unidade inclusiva de diversos sítios habitados
concretamente” (LA-MPF:154-155)
Os sítios, por sua vez, são comumente reconhecidos como o espaço físico
habitado por uma família no interior do bairro. Todavia, é preciso levar em
consideração 1) que as famílias habitantes do sítio não são apenas as unidades
nucleares, visto que, geralmente, um espaço reconhecido como sítio agrega uma
parentela extensa, cujo número de famílias nucleares pode variar bastante e 2)
37
que as relações de parentesco, elas próprias, bem como as relações sociais
empreendidas entre os moradores dos diversos sítios vizinhos, são os reais
definidores dos limites do bairro. Como aponta Antonio Candido (1987:67): “Pode-
se falar de autarquia, portanto, com referência ao bairro; não às relações de
família no sentido estrito. E um dos elementos de sua caracterização era o
trabalho coletivo. Um bairro poderia, deste ângulo, definir-se como o agrupamento
territorial, mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos
moradores em trabalhos de ajuda mútua. É membro do bairro quem convoca e é
convocada para tais atividades. A obrigação bilateral é aí elemento integrante da
sociabilidade do grupo, que desta forma adquire consciência de unidade e
funcionamento”.
Desta forma, é possível vislumbrar no bairro Sapatu uma identidade comum
reconhecida pelos moradores das localidades distintas, firmada pelas redes de
parentesco e pela memória compartilhada da ocupação de territórios contíguos30.
Assim, é correto afirmar que ao se auto-referir como, por exemplo, morador do
sítio Indaiatuba, um nosso informante está, ao mesmo tempo, incluindo-se no
bairro Sapatu.
5.3. As mudanças na ocupação do espaço: a invasão do território
quilombola
O processo de invasão do território da comunidade, empreendido por
pessoas de fora, teve início há cerca de 50 anos. Sebastião Domingues, “nascido
no bairro, mas criado fora”31, compra posses na área do Baixio Preto, na margem
esquerda do rio Ribeira. Segundo o Sr. Elídio dos Santos, morador do Baixio à
época - Sebastião Domingues apossou-se de áreas livres de moradia – o que não
excluía o fato de serem terras utilizadas para plantações – e, então, passou a
30 O termo memória é aqui utilizado porque, como veremos no próximo item (5.3), houve significativas mudanças na disposição dos moradores no território do bairro Sapatu. 31 Segundo D. Pedrina Olíbia de França Machado, cuja família extensa residia toda no sítio Indaiatuba, Sebastião Domingues era neto de João Simão de França, primo-irmão de sua mãe, Catarina Olívia de França. O irmão de D. Pedrina, Sr. Pedro Pereira, relata que não havia nenhuma relação social empreendida anteriormente entre Sebastião Domingues e seus aparentados no Sapatu e que só sabiam dele “pelas notícias das confusões que ele aprontava por aí afora”.
38
pressionar seus vizinhos para que lhes vendessem suas posses. O Sr. Elídio
relata que, estando a trabalho em Registro, não pode interferir quando sua mãe
decidiu vender a área ocupada pela família por “ninharia, dinheirinho de troco”.
Um dos expedientes usados por Sebastião Domingues para pressionar os
posseiros quilombolas a vender suas posses a um preço bastante inferior ao de
mercado constitui-se em praxe comum nos processos de grilagem identificados
por estudiosos da questão agrária. Trata-se de soltar criação sobre as roças dos
pequenos posseiros e sitiantes que, desanimados com o dano empreendido pelos
animais às suas colheitas, acabam por ceder às investidas do grileiro. Em alguns
casos, não chega sequer a haver venda das pequenas posses; os sitiantes
começam a recuar suas roças para longe das fronteiras com o grileiro que, por
sua vez, avança sua cerca sobre as terras do posseiro, configurando o nefasto
‘abraço’32; desta forma, muitos pequenos sitiantes vão, aos poucos, perdendo
suas terras sem receber absolutamente nada em troca.
Sebastião Domingues foi, ao longo dos anos, estendo seus domínios para
todo o sítio Indaiatuba, ocupado principalmente pelas famílias descendentes do
tronco Furquim Pereira, forçando as pessoas que habitavam a margem esquerda
do rio Ribeira a abandonar suas moradias e mudar-se para o outro lado do rio.
Houve vários casos de venda, em geral por um valor considerado injusto por que
vendeu, mas houve também casos de expulsão sem qualquer contrapartida. Ao
falar sobre os vestígios da ocupação quilombola na área hoje dominada por
Sebastião Domingues, o Sr. Pedro Pereira, morador do Sapatu, relata: “O que tem
de principal é a cerca de bambu... é cerca de gado do Sebastião Domingues, mas
a cerca é do Acácio aqui [outro morador que vive próximo à casa do Sr. Pedro].
Há caso aqui de gente que vendeu, foi forçado, mas ele [Acácio], no caso dele, ele
pessoalmente não vendeu, foi expulso”.
Um outro elemento que deve ser levado em conta para o entendimento da
motivação dos moradores a repassar suas posses para Sebastião Domingues
reside na imagem que os moradores do Sapatu têm deste senhor, fundada em
fatos concretos presenciados ou histórias ‘lendárias’ ouvidas no boca-a-boca com
32 Ver Margaria Maria Moura, 1998.
39
terceiros. Nas palavras do Sr. Elídio, Sebastião Domingues era muito ‘enguiçador’,
gostava de chegar ‘às vias de fato’ conquanto as discussões verbais não lhe
agradassem e não hesitava em mostrar armas para os seus vizinhos, com o
propósito de intimida-los. Ademais - e este talvez seja o ponto principal -,
Sebastião Domingues teria matado uma pessoa da comunidade de Pedro Cubas
em uma festa no Bairro do Batatal antes de vir para as terras do Sapatu, história
esta rememorada por todos os moradores entrevistados e que, certamente, foi
responsável por aguçar ainda mais o temor dos posseiros acossados por tal
senhor.
Em um conflito específico, um dos moradores do Sapatu, hoje residente na
comunidade do Nhunguara, chegou a atirar em Sebastião Domingues, porque
este tinha soltado gado em seu bananal e queria fazer uma cerca dentro das suas
terras, apossar-se de um pedaço sem pagar nada33.
Alguns anos após Sebastião Domingues iniciar suas ações no sítio
Indaiatuba, chega à comunidade José Martins, vulgo Zé Capova, declarando estar
a serviço do “verdadeiro proprietário” de boa parte das terras da comunidade, o
“Dr. Nelson” (Nelson Guilherme de Almeida Jr.). Estas terras localizavam-se na
margem esquerda do rio Ribeira, acima do sítio Indaiatuba. Segundo o Sr. Oscar
de Andrade, morador da margem direita do rio, defronte à área em questão, as
terras do outro lado do rio eram ocupadas pelos descendentes de Laurinda
Paraguaia, que as venderam para Zé Capova.
Mas este processo de venda não ocorreu tranqüilamente; os moradores
relatam que Zé Capova possuía uma venda no bairro e, muitas vezes, “comprou”
terras em troca de alimentos. Também há relatos de que Zé Capova teria
ludibriado os moradores dizendo-lhes que era melhor que saíssem da terra porque
senão teriam que pagar ao Dr. Nelson para utilizá-las. Estes eventos teriam
ocorrido antes da construção da estrada que liga Eldorado a Iporanga, datada de
meados da década de 60.
33 O morador que atirou em Sebastião Domingues, hoje residente na comunidade do Nhunguara, chegou a cumprir pena por outro delito; como não feriu seu alvo, parece não ter sido denunciado.
40
O Sr. Pedro Pereira assim descreve as diferentes formas de agir dos
grileiros que retiraram forçosamente os quilombolas de suas terras: “Entre o
Sebastião Domingues e o Zé Capova tinha uma diferença, que o Sebastião
Domingues, ele forçava a mão armada mesmo, comprava assim forçado; o Zé
Capova já era na base da conversa, ele acabava conversando a pessoa, a pessoa
caía na conversa dele”.
Todavia, ainda que o procedimento usado por Zé Capova para expulsar as
famílias de suas áreas pareça ter sido mais brando, há pelo menos um caso,
relatado por vários moradores, em que Zé Capova agiu com violência. Segundo
consta, uma recém-viúva chamada Arminda foi retirada á força de suas terras por
Zé Capova que, em seguida, destruiu a casa em que ela morava. Há também
casos em que Zé Capova prometia às pessoas que receberiam uma quantia após
deixar suas terras, mas, após fazê-lo, estas famílias não receberam nada.
Há que se ressaltar que um dos fatores que acirrou a expulsão das famílias
que moravam na margem esquerda do rio Ribeira foi a disputa travada entre
Sebastião Domingues e Zé Capova pelas terras da comunidade. Enquanto
Sebastião Domingues subia seus domínios rio acima, englobando o Baixio Preto e
o sítio Indaiatuba, Zé Capova avançava rio abaixo, partindo das terras localizadas
entre Cordas e Sapatu, dirigindo-se aos limites de Sebastião Domingues. Essa
mobilidade dos grileiros leva a crer que um e outro intensificaram o processo de
tomada das terras dos quilombolas para garantir suas fronteiras. Todavia, ao
tornarem contíguas as extensões de terras por eles apropriadas, os moradores
relatam que Sebastião Domingues e Zé Capova protagonizaram diversos
entreveros, visto que ambos queriam avançar um sobre as terras do outro.
Muitas das terras que foram tomadas dos quilombolas tanto por Sebastião
Domingues quanto por Zé Capova já estão nas mãos de terceiros. Há áreas
definidas como propriedade particular das quais não se sabe quem é o verdadeiro
proprietário; outras já estão tituladas para pessoas estranhas à comunidade. Este
é um dos motivos pelos quais o território pleiteado pela Associação dos
Remanescentes de Quilombo do Sapatu, que totaliza 3.711,6257 ha., apresenta
uma malha fundiária complexa, marcada pela fragmentação e por uma ocupação
42
6. O SAPATU HOJE: INFRAESTRUTURA, ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E
CONFLITOS INTERNOS
6.1. Relação com o entorno e organização política
O bairro do Sapatu dista aproximadamente 35 Km do município de
Eldorado, do qual faz parte, e é habitado por 82 famílias. Para se locomover até a
cidade, os moradores do Sapatu utilizam-se de uma linha de ônibus que oferece
três horários, além do ônibus de estudantes que oferece mais dois horários. Por
cada viagem, em ambas as possibilidades de transporte, desembolsam em torno
de R$2,50.
A escola da comunidade oferece ensino de 1ª à 4ª séries do ensino
fundamental. Para cursar da 5ª à 8ª séries, os alunos devem locomover-se até a
escola de Itapeúna, distrito de Eldorado, distante 12 Km da comunidade. O ensino
médio (antigo 2º grau) e os cursos técnicos são oferecidos em Eldorado. A
prefeitura encarrega-se do transporte dos alunos para que necessitam deslocar-se
para avançar nos estudos.
Para cuidar da saúde, os moradores precisam recorrer ao posto municipal,
enfrentando toda sorte de limitações de transporte. Felizmente, recorrem ao saber
tradicional que possuem sobre plantas medicinais nativas da floresta e outras
cultivadas para tentar sanar seus problemas.
Os moradores reclamam do descaso com que são tratados pela Prefeitura
no que dia respeito à saúde e à educação e, organizados, tentam batalhar por
melhorias gerais em seu modo de vida.
A organização política das comunidades rurais negras do Vale do Ribeira
começou a ser forjada em meados dos anos oitenta, a partir do trabalho realizado
pela Comissão Pastoral da Terra. A questão central que orientava a necessidade
de organização emanava dos riscos a que estas comunidades estariam
submetidas frente à concretização de diversos projetos de barragens que,
alterando o sistema hídrico da região, poderia vir a causar inundações que
submergiriam as áreas ocupadas por boa parte das comunidades, além de
43
provocar graves danos no ecossistema local. O Movimento de Ameaçados por
Barragens (MOAB) surge no Vale do Ribeira em 1989, articulado com o já
existente Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), organizado em âmbito
nacional. CARRIL (op.cit.:173) detalha os objetivos do MOAB: “No Vale do Ribeira,
o MOAB, nasce como Movimento de Ameaçados por Barragens junto às
comunidades negras e a Comissão Pastoral da Terra – CPT. Sua estratégia está
baseadfa numa antecipação do movimento aos projetos de construção de quatro
hidrelétricas, a de Tijuco Alto (Companhia Brasileira de Alumínio), as de Funil,
Batatal e Itaóca (CESP). O eixo de luta está direcionado ao reconhecimento
jurídico das terras remanescentes de quilombos, juntamente com a CPT, e alguns
dos membros que integram o MOAB vieram da própria Igreja. Entre as várias
ações, o MOAB tem realizado pressões junto aos parlamentares, preparado
palnfletos informativos à população, consultas a técnicos de instituições públicas e
privadas, para apreciação do Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. Essa
estratégia contrapõe-se ao silênico das empresas envolvidas na destruição das
comunidades “afogadas”” 34.
Orientados também por integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e
militantes do Movimento Negro Unificado (MNU), diversas comunidades
solicitaram aos governos estadual e federal, em meados dos anos 90, que se
cumprisse o Art. 68 do ADCT na região do Vale do Ribeira. Em 1997, o ITESP,
órgão estadual responsável por tal tarefa, começa a trabalhar com as
comunidades do Vale, empreendendo os estudos necessários ao reconhecimento
formal das comunidades como remanescentes de quilombos e projetos de
desenvolvimento rural.
Em âmbito propriamente local, as comunidades vêm tentando se articular
politicamente, desde às últimas eleições municipais, para se fazer representar na
34 O processo de viabilização da Usina de Tijuco Alto está sendo contestado pelo Ministério Público Federal. Há um parecer da CETESB (Companhia Estadual de Tratamento de Esgoto e Saneamento Básico) contrário à instalação da hidrelétrica, por conta do alto nível de metais depositados na água do Ribeira de Iguape caso a barragem seja construída. Estudos realizados pelo Instituto Sócio-Ambiental (ISA) em 1999 simularam o impacto da construção das barragens, considerando a malha hídrica e o entorno, e revelam que algumas comunidades quilombolas seriam contundentemente afetadas, tendo seus territórios parcial ou totalmente inundados, como João Surrá (100%) e Praia Grande (60%). (Fonte: Reunião no Ministério Público Federal, realizada em 09/09/1999).
44
Câmara Municipal de Eldorado. No atual momento, cogita-se até a possibilidade
do lançamento de uma candidatura quilombola à prefeitura, nesta eleição
vindoura. Todavia, embora pareça transparecer uma unidade de oposição entre as
comunidades no que se refere aos poderes locais constituídos, as diversas
comunidades relacionam-se de maneira diversa com estes poderes. O candidato
quilombola a vereador nas últimas eleições perdeu votos dentro das próprias
comunidades, pois muitos de seus membros renderam-se ao clientelismo
tradicional e votaram em antigos candidatos “fazedores de promessas”35.
No Sapatu, a primeira organização específica da comunidade foi fundada à
época do governo de Franco Montoro (1982-1986) e visava receber créditos de
um programa estadual de incentivo à agricultura. Segundo participantes da
diretoria desta Associação dos Produtores Rurais do Sapatu, quando toda a
documentação ficou pronta, a verba governamental havia acabado e a Associação
recebeu apenas três vacas e um bezerro, remanejados de um projeto na cidade
de Iguape. Mesmo sem muito sucesso, esta Associação vigorou por
aproximadamente dez anos. À ela sucedeu a Associação dos Remanescentes de
Quilombo do Sapatu, tema de nossa próximo tópico.
6.2. A condição quilombola e as divergências internas
Em 1997, foi fundada a Associação dos Remanescentes de Quilombo do
Sapatu, que conta atualmente com 56 famílias associadas36. Outras 24 famílias
não se associaram, algumas porque já possuem títulos de suas terras, outras
porque não confiam na Associação, acham que ela não trará nenhum benefício.
A Associação dos Remanescentes de Quilombo do Sapatu tem trabalhado
junto aos técnicos do ITESP com o objetivo de elaborar projetos de
desenvolvimento econômico e melhoria da qualidade de vida da comunidade.
como a demarcação dos espaços permitidos para se fazer roça (mediante
35 Para uma melhor compreensão das articulações políticas das comunidades rurais negras, ver CARRIL (op.cit., especialmente Capítulo 4).36 Vale ressaltar que os membros associam-se individualmente e não por família. Os números aqui elencados foram levantados pelos próprios moradores, considerando como família nuclear associada aquela em que pelos menos um de seus membros é associado.
45
convênio com a Fundação Florestal). Atualmente, a Associação do Sapatu leva
adiante uma criação coletiva de capivaras, com o apoio da Mitra Diocesana de
Registro e tem crescido a importância do trabalho artesanal, praticado por alguns
moradores que, além das suas técnicas tradicionais, valem-se de novos
conhecimentos – vindos de cursos organizados na comunidade por professores e
religiosos - e novos materiais, como a fibra de banana e o plástico.
As famílias não-associadas compartilham com as associadas a mesma
condição de remanescentes de quilombo - de acordo com as conceituações
dispostas no item 2 deste relatório sobre o termo quilombo e das observações
antropológicas sobre o modo de vida compartilhado pelos membros da
comunidade, bem como de sua ascendência comum e dos posteriores laços de
parentesco travado entre as distintas famílias que originaram o grupo social em
questão - mas não se auto-reconhecem como tal. Assim sendo, a identidade
quilombola pode lhes ser externamente atribuída, mas não se inclui no seu
universo mental, no conjunto das representações que constroem sobre si
mesmas. É preciso ressaltar, à guisa de maior entendimento, que a identidade
quilombola deve ser vista como ainda em processo de construção e/ou
cristalização nas comunidades negras do Vale do Ribeira, posto que o orgulho de
ser negro e descendente de escravo implica um rompimento com antigos valores
pessoais de inferioridade e subordinação forjados no contato destes camponeses
negros com a sociedade branca brasileira, fiel seguidora de práticas racistas e
discriminatórias. Os integrantes das comunidades que são associados passam a
participar de reuniões de suas Associações para discutir problemas e projetos
para as comunidades, confraternizam-se em Encontros de Comunidades Negras,
aprendem canções e consignas de caráter político que valorizam sua condição
negra e quilombola, reforçando, assim, o caráter positivo desta nova identidade
resgatada, ao passo que os não-associados não usufruem destas mesmas
oportunidades.
Formado em sua maioria por fiéis da Igreja Batista, estabelecida na
comunidade há mais de 35 anos, o grupo dos não-associados é avesso às
discussões sobre o processo de reconhecimento da comunidade como
remanescente de quilombo, ora conduzido pelo ITESP. Técnicos desta instituição
46
tentaram, sem sucesso, estabelecer um diálogo com este grupo e mesmo a coleta
de dados para este Relatório Técnico-científico foi prejudicada pela indisposição
dos não-associados em colaborar.
Segundo o Sr. Oscar de Andrade, líder da comunidade batista local, há 60
membros desta congregação religiosa na comunidade37. Inquirido sobre a não
participação dos fiéis na Associação, o Sr. Oscar respondeu que “a Igreja não faz
nenhuma campanha contra, libera os membros para que façam o que acharem
melhor”. Ao dar sua opinião pessoal, porém, o Sr. Oscar permite uma leitura de
entrelinhas que demonstra a responsabilidade da organização religiosa na
desmotivação dos fiéis em associar-se: “Eu acho que essa Associação não vai
trazer nada de bom... os nossos irmãos de fé são validos por Deus”.
É interessante notar que a maioria dos membros da comunidade que são
católicos associaram-se, certamente porque foram orientados pelos agentes da
Mitra Diocesana de Registro que atuam nas comunidades quilombolas do Vale do
Ribeira (Ver item anterior). Nos últimos tempos, entretanto, face ao trabalho de
convencimento político perpetrado pelos membros da Associação, aumentou
significativamente o número de associados, seguidores ou não da religião batista.
Basta observar que, em meados de 1997, a comunidade estava praticamente
dividida ao meio pelo critério associado/não-associado: eram 42 famílias
associadas contra 41 não-associadas. Como vimos no começo deste item, a
proporção entre essas duas categorias é bem diferente, prevalecendo a
quantidade crescente de famílias associadas. Os próprios membros da diretoria da
Associção estão bastante otimistas e acreditam que mais moradores do bairro
ainda podem vir a associar-se.
Não-obstante haja uma diferença aparentemente pouco significativa entre o
número de associados e não-associados, cabe registrar a importância desta
oposição, em virtude das sérias conseqüências que esta relação dissensual pode
acarretar no momento da legitimação efetiva do território quilombola, por conta
37 Este número pode estar acrescido de moradores de outras localidades como André Lopes e Nhunguara que ‘congregam-se’ ali na Igreja Batista do Sapatu. Não ficou claro no depoimento do Sr. Oscar se ele se referia a 60 membros da Igreja exclusivamente moradores do Sapatu ou se incluía moradores de comunidades vizinhas.
47
dos requisitos legais dispostos na legislação criada pelo Estado de São Paulo.
Reza a lei estadual n.º 9.757, de 15 de setembro de 1997, em seu Artigo 2º: “O
título de legitimação de posse será expedido, sem ônus de qualquer espécie, a
cada Associação legalmente constituída, que represente a coletividade dos
Remanescentes das Comunidades de Quilombos, com obrigatória inserção da
cláusula de inalienabilidade” . Há no Sapatu, com efeito, uma Associação
legalmente constituída, que representa a maior parte da comunidade, mas não é
unanimemente reconhecida. Se o território reivindicado pelos associados inclui
também as áreas ocupadas, atual e antigamente, pelos não-associados, como ele
será partilhado internamente? Como será fiscalizado o poder de controle da
Associação sobre este território? O que acontecerá com as 17 permissões de uso
e os 08 títulos de domínio incrustados no território quilombola?
Tendo a Diretoria Adjunta de Recursos Fundiários acordado que as
respostas para tais questões não são objeto deste Relatório, cumpre apenas
ressaltar que a divisão interna vigente no bairro do Sapatu necessita ser avaliada
novamente pelo corpo técnico do ITESP, a fim de que os desdobramentos
possivelmente complexos que dela emanam não se tornem obstáculo para que a
comunidade do Sapatu possa reaver suas terras com brevidade.
7. CONCLUSÃO
De acordo com o objetivo deste trabalho, elaboramos um estudo técnico-
científico sobre a comunidade do Sapatu, levantando as suas origens históricas,
as configurações sociais sobre as quais ela está organizada e as condições de
vida que a caracterizam atualmente. Apresentamos, a seguir, as considerações
finais pertinentes:
- Considerando que os trabalhos de pesquisa antropológica – tanto aquele
já realizado em 1998 por uma equipe de profissionais à serviço do Ministério
Público Federal quanto este efetivado pelo ITESP - não deixam dúvidas sobre a
origem quilombola da comunidade do Sapatu, formada por descendentes de ex-
escravos que se estabeleceram no Vale do Ribeira ao longo de quatro séculos;
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- Considerando que o mesmo procedimento antropológico também
comprovou a profunda ligação prático-simbólica da comunidade com o território
que ocupa e apontou a importância de sua manutenção para a implementação de
formas de produção que promovam melhorias na qualidade de vida da
comunidade, tal como enunciado pelo GT: “Isto quer dizer que o território, em todo
seu perímetro, necessário à reprodução física e cultural de cada grupo
étnico/tradicional só poder ser dimensionado à luz da interpretação antropológica
e em face da capacidade suporte do meio ambiente circundante tendo em vista a
necessidade de garantir a melhoria de qualidade de vida de seus habitantes,
através da implementação de projetos econômicos adequados, conservando-se os
recursos naturais para as gerações vindouras” (GT38, p.24);
- Considerando que a Comunidade do Sapatu carece de instrumentos
institucionais, tal como o artigo nº 68 do ADCT para auxiliá-la a proteger o seu
território;
- Considerando a “vontade política e visão social do governo paulista de
atender e interpretar o mandamento constitucional, não só como obrigação estatal
imposta pela lei, mas principalmente como um ideal da democracia, de proteção
aos direitos humanos e respeito às minorias, a ser perseguido permanentemente
(...)” (GT, p. 5);
- Considerando que o GT reconheceu a necessidade de tratar de forma
diferenciada a identificação dos territórios de comunidades quilombolas, visto que
“o cadastro rural previsto pelo INCRA ou mesmo o cadastro de terras do
patrimônio imobiliário estadual usado para a ‘legitimação de posse’ e para
embasar as ações discriminatórias são incapazes de detectar apropriações
comunais extensas que compõem territórios tradicionais” (GT, p.17);
- Considerando que uma das diretrizes do Grupo de Trabalho dispõe
sobre a “necessidade de rever procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos
afeitos à questão do ordenamento fundiário, agrário, territorial e ambiental para
reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais proporcionando o
38 No decorrer desta conclusão, as citações identificadas como GT referem-se ao Relatório do Grupo de Trabalho, anteriormente referido na nota de rodapé número 1.
49
reconhecimento e a proteção, pelo Estado, dos segmentos portadores dessas
referências e de seus direitos” (p.18);
Concluímos:
- que os membros da Comunidade do Sapatu são remanescentes de
comunidade de quilombo, de acordo com as definições que embasam os
critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e
devem, portanto, gozar dos direitos que tal identificação lhes assegura.
MARIA CECÍLIA MANZOLI TURATTI Antropóloga
Grupo de Estudos e ProjetosDiretoria Adjunta de Recursos Fundiários
50
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53
Cortina feita por Sônia Pereira, moradora do Sapatu, com material plástico de embalagem tipo PET.
56
Acima: Vista da Igreja Batista da
Comunidade do Sapatu
Ao lado: D. Pedrina Machado
Pereira, uma das mais antigas
moradoras do bairro.
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