quem tem a fe

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QUEM TEM A FÉ TEM A CURA

Pequeno trecho

teatral em cordel

MARCOS JARDIM

CENA I

[Banca na feira, com ervas, garrarfadas e lambedores à

mostra.

Um bule com xícaras.

Roselena é a vendedora.

O NARRADOR entra em cena fazendo seus comentários como

se tivesse em outro plano dimensional.

Em alguns momentos a cena é congelada para o narrador

comentar.]

[NARRADOR]:

Boa noite a quem não viDeixe eu me aprochegarSou um contador de “causos”Tô aqui pra apresentarUm magote de matutoQuerendo se amostrar

[NARRADOR]:

Essa aqui é RoselenaMulher boa (e perigosa!!!)Resolve toda ingresiaDe forma misteriosaMistura o mundo profanoCom crença religiosa.

[NARRADOR][O Narrador fala o texto abaixo mexendo nos produtos da banca]

Aqui nessa sua bancaDe tudo tem um bocadoLambedor e garrafadaErvas e fumo torradoE aqui nessa chaleiraUm resto de chá coado!

(tira a tampa e cheira, repugnando)]

(Roselena)

Tenho ervas pra venderQuero ver quem vai comprarAqui se encontra os segredosDa ciência milenar.Trato de toda doençaQuem tem fé e quem tem crençaVenha pr’aqui se curar.

(Roselena)

Menino com dor de bucho“Mão-fechada” é de primeiraAssento de pau de ameixaPara mulher parideiraAqui não passo trambiqueChá de boldo é arreliquePra quem tá com caganeira.

(Roselena)

Tem também o capim-santoQue serve pra relaxar.Quem sofre de pressão altaMelhora só em cheirar.Mas cuidado, meu rapazVocê tomando demaisÉ arriscado “brochar”.

[Mona entra em cena demonstrando falsidade e com traquejos

exagerados. Entra em cena se coçando]

[NARRADOR]

Repare quem ta chegando!!!Né a filha de “coisinha”!?!Pense numa arrochada??!!Ela se acha a rainhaEla pensa que é a tal ...Num passa de uma “galinha”.]

(Mona)

Ei! Meu bem, Minha querida!Minha santa curandeiraVigie se aí num temAlguma erva que cheira!Já tô ficando encarnadaJá tô toda entabuadaCom o diabo dessa coceira.

[Roselena, depois de olhar de perto, afasta-se bruscamente. Diz isso

jogando o ungüento tomando certa distância, com certo temor]

(Roselena)

Mas mulher! Num leve a malO que eu vou dizer agora!Isso aí que você temÉ a tal da cataporaIsso pega até no vento!Vou lhe passar esse unguentoE é bom você ir embora.

(Mona)[ainda de forma exagerada, “se achando”]

Mulher, vire essa bocaNum me diga isso, nannh!Eu já tô com tudo prontoDoida que chegue amanhã...Mesmo estando aleijadaEu num perco a vaquejadaJá fretei até a van!

[NARRADOR]

Roselena deve estar pensando:Essa agora é muito boa!!!Lá vem essa peniqueiraPensando que é patroa.Essa aí num tem no cuO que o priquito roa”*1]

*1 variação de um ditado popular.: “não tem no cu o que um priquito merende”

(pessoa paupérrima) Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);

(Roselena)

Afff Maria, minha fia!Não seja exagerada!Apois essa cataporaVai lhe tirar da estrada.E adepois, eu num sabiaVocê é dessas noviaQue corre nas vaquejada?

(Mona)

Nannh.. mulher me poupe.Você não sabe é de nada.Eu corro atrás dos vaqueirosEu vou é para a balada.Me tire esse catimbóPois pobre no caritóÉ mesmo o fim da picada.

(Roselena)

Bem! Senhora ... senhorita...Espere aí mais um pouco.Para curar cataporaE acabar seu sufocoEu tenho aqui já prontinhoBem coado e bem quentinhoO chá de fulô de toco.

(Roselena)

Essa bebida é famosaEu vendo é muito pra foraTem doutor que recomendaAté pras ricas senhoras!!Eles chamam de PODELASó sei que quem bebe delaAcaba com a catapora.

[Roselena oferece uma xícara do tal chá que Mona o bebe fazendo

careta e engulhando]

(Mona)

Mas esse chá tem um gostoQue amarga bem na goelaSó tando muito doentePra tomar essa mazela!Só fede a bosta de gatoSó cheira a merda de rato ...

(Roselena): Mas né não, isso é PÓ-DELA.

(Mona)

Pelo visto esse seu cháJá está fazendo efeitoTô sentindo uns arrepiosEstou ficando sem jeito.Ta subindo uma quenturaQue vai aqui da cinturaAté os bicos dos peitos.

[Roselena torna a encher a xícara]

(Mona)

Lhe faço mais um pedidoSe você não se importarPeço pelo amor de DeusQue me ensine a rezarUm credo bem enxeridoPrêu arrumar um maridoE finalmente casar!!!

(Roselena)

Oração não se aprendeNo currículo da escola.Eu pratico minhas rezasTiradas dessa cacholaVou lhe fazer um favorEnsinando um louvorPra lhe tirar dessa “sola”:

[Roselena faz menção para que Mona se ajoelhe, e faz a oração

seguinte tocando-lhe com um ramo na cabeça]

[NARRADOR]:

Roselena adora isso!É a reza de Santa Rita...Ladainha poderosaPara quem nela acreditaFaz a moça velha e feiaPensar que é nova e bonita.

(Roselena inicia) (Mona complementa)São Bartolomeu, casar-me quer eu.São Ludovico, com um moço rico.São Nicolau, que ele não seja mau.São Vicente, que não seja impertinenteSão Sebastião, que nunca me falte o pão.Santa Felicidade, que me faça as vontades.São Benjamim, que tenha paixão por mimSanto André, que não tome rapé.Santo Aniceto, que ande bem quietoSão Miguel, que pendure a lua-de-mel.São Bento, que não seja ciumentoSanta Margarida, que me traga bem vestida.São Feliciano, que não passe desse ano

FIM DA CENA*2 superstição popular. Câmara Cascudo – “Superstição no Brasil” – (5ª ed. 2002);

ladainha das moças, oração oferecida a Santa Rita, recitada e acompanhada de três

Padre-Nossos e Ave-Marias, com Glória Patri, pedindo que lhe favoreça o casamento

almejado.

[Ainda diante da banca de Roselena, entra Prazeres e Zé. Zé é

empurrado por Prazeres que diz sua fala em tom de desaforo]:

[NARRADOR]:

Nesse segundo momentoChega um casal de artistaÉ Maria dos PrazeresE Zé de Mané Calixta.O Zé quando tá meladoPensa que é repentista!

[NARRADOR]:

Ele inventa umas loasMistura com as inventadasVive só da boemiaNão trabalha, não faz nadaSuas mãos nunca empunharamO cabo de uma enxada.

[NARRADOR]:

Vive às custas de PrazeresMulher “zanha” e “vivedeira “Cabocla de olhar “pidão”Tigresa assaz verdadeiraCapaz de pular a cercaPra quem lhe “abrir a porteira!”

(Prazeres)

Vou te ensinar a ser homemPedaço de cabra ruim.Você comigo é na peia,Vou lhe quebrar o fucimVocê vai pro cabaré,Gastar com aquelas muléNum sobra nada pra mim.

[Zé diz sua fala com deboche, sempre querendo cair “pra cima de

Roselena”].

(Zé)“Duvido haver como esteUm ditado mais profundo:Dinheiro e mulher bonita

É quem governa este mundo” *3.

O pior foi que eu caseiQuando estava embriagadoArranjei esse DESENHOAgora estou aprumado.

*3 adágio popular. Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);

[Zé diz sua fala com deboche, sempre querendo cair “pra cima de

Roselena”].

(Zé)

“Duvido haver como esteUm ditado mais profundo:Dinheiro e mulher bonita

É quem governa este mundo” *3.

*3 adágio popular. Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);

“Besteira é salgar a carneDepois dela apodrecer,Ou se pegar com São BentoDepois da cobra morder”*3

O pior foi que eu caseiQuando estava embriagadoArranjei esse DESENHOAgora estou aprumado.

(Roselena)[dirigindo-se a Zé, de forma carinhosa]

Meu senhor, por caridadeVocê tá muito doente.Eu tenho aqui um recursoPra lhe sarar num repenteUm gole desse chá-pretoFaz você ficar do jeitoDe um garanhão valente.

(Prazeres)

Sai pra lá, filha da éguaSua velha trambiqueiraAfaste do meu maridoCachorra catimbozeiraEssas suas garrafadasNunca serviram pra nadaSua falsa curandeira!

(Prazeres)

Eu já sei como curarA cana desse cabocoJá estou acostumadaDele se fazer de louco.É só descer o chicoteBem no centro do cangoteAté cair o reboco.

(Roselena)

Minha senhora, me escuteQue eu sou do lado da pazCurandeira eu não sou nãoE rezar nunca é demais.Pra curar essa cachaçaDou-lhe a receita de graça:Lave os pés dele com gás!

(Prazeres)[dando rabiçaca]

Vamos embora, infelizCachorro de fim de feiraNão sei o que foi que fizPra cair nessa besteiraPra ter casado contigo Só mesmo sendo um castigoOu praga de feiticeira.

(Zé)[“variando”]

“O homem que bebe e jogaMulher que erra uma vezCachorro que pega bode,Num tem jeito pra esses três!”*4

*4 adágio popular. Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro” – (2ª ed. 1991);

(Zé)[saindo de cena]

“Vida longa não alcançoNa orgia ou no prazer.Mas, enquanto eu não morrerBebo, fumo, jogo e danço!Brinco, farreio, não canso,Me censure quem quiser.Enquanto vida eu tiverCumprindo essa sina venhoE, além dos vícios que tenho,Sou perdido por mulher”*5 .

FIM DA CENA

*5: do poeta norteriograndense Moisés Sésiom.

CENA II

[Na casa de Roselena, após chegar da feira. O NARRADOR fica o tempo da fala de Roselena lhe “apiruando” prestando atenção aos detalhes da fala e fazendo gestos de quem está admirado]

(Roselena)

Até que enfim cheguei!Que bom é voltar pro lar.Louvado seja meu DeusAgora vou descansar.Tô me sentindo enfadadaTô assim meio enjoadaParece que vou gripar!!

(Roselena)

Cruz-credo, cruz-credoValei-me Nossa SenhoraSerá que eu vou pegarEssa tal gripe “da hora”?Pra essa gripe suínaNão sei nem se tem vacina!O que é que faço agora?

(Roselena)

Tomar chá de fedegosoTalvez não dê resultado!Mel de abelha com limãoNão me atrevo, é arriscado.E se um ofício eu rezar E a doença avançarPrum caso mais complicado???

[NARRADOR]:

Mas ta!!!É de se admirarA rezadeira famosaNão consegue se curar!Faz pros outros chá de bostaMas duvido ela tomar!!

[NARRADOR]:

Espie quem ta chegando!?!Não é o seu Gozalino?É o homem mais amarradoDesse solo nordestino.Esse aí tem mão-de-vaca.Ô molestado “mofino”!

[Gozalino chega batendo palma, trazendo consigo a foto de uma vaca recordada de uma embalagem de ração animal]

(Gozalino) Ô de casa, ô de casaPergunto se nela está.

(Roselena) Se for de paz se aprochegueSe não for pode acuar.

(Gozalino) Bendito seja Jesus!

(Roselena) Louvada a Santa Cruz!Faça o favor, pode entrar.

(Gozalino)

Me acuda RoselenaTô precisando de ocê.A minha vaca leiteiraAchou de adoecer.Já que não posso com elaTrago esse retrato delaPro mode você benzer.

(Roselena)disfarçando alguns espirros

Viche, que coisa medonhaBotaram foi um olhadoOlho gordo é um perigoE esse foi bem botado.Isso é coisa de invejosoE foi de um preguiçosoQue mora bem ao seu lado.

[Roselena pega um ramo e começa a “rezar” sobre a foto]

(Roselena)Limpando o nariz com a gola do vestido e rezando

“Deus vai, Deus vemDiga vaca o quê que dóiDói vazi, dói perna e páDói boca, pestana e zóiO ubre, o leite,o mugidoA venta e os uvidoO capim que o bucho mói”.

(Roselena)Limpando o nariz com a gola do vestido e rezando

“Ô vaca preta, mimosa,Ô vaca branca malhada,Ô vaca môcha doenteÔ vaca môcha amojadaTrês cruz, três cruz, trêsTrês cruz e mais uma vezÔ vaca murcha curada!”

(Gozalino)

Muito obrigado, SenhoraDeus lhe pague essa oraçãoSe eu não lhe trouxer um queijoTrago o leite pro pirãoE se eu não lhe trouxer nadaLá na próxima invernadaLhe chamo pra apartação.

[Gozalino diz os últimos versos espirrando, e sai de cena tossindo, e assoando o nariz]

(Roselena)

Atchimm

FIM

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