poesia para quem não tem dicionário

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Page 1: poesia para quem não tem dicionário

poesia para quem não tem dicionário

miguel tiago

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2 poesia para quem não tem dicionário

letras ígneas

a primeira página da minha vida és tu.

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3 poesia para quem não tem dicionário

sem título

se alguma vez escrever um poema

terá o cheiro dos dias de chuva em agosto.

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4 poesia para quem não tem dicionário

verso fractal

ao contrário do universo,

este verso é infinito.

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5 poesia para quem não tem dicionário

amanhã

curta é a viagem quando desejamos a lonjura.

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6 poesia para quem não tem dicionário

pensamento a poesia não mora nos becos dos dicionários e prontuários, onde, última e infelizmente, a temos enfiado. mora-nos no sangue e na alma, onde involuntária e desumanamente, a temos calado.

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7 poesia para quem não tem dicionário

visão do vazio o vazio é um fascínio, uma visão inimaginável de ausência de cor de tempo ou movimento. o vazio enche quem não tem espaço por dentro.

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8 poesia para quem não tem dicionário

eu

o passado é para sempre.

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9 poesia para quem não tem dicionário

sem título a lua persiste tanto nos céus escuros como em sibilar o teu nome que o nunca esqueça, como não esquece a lua os meus sonhos.

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10 poesia para quem não tem dicionário

sem título

tudo o que é efémero é eterno.

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11 poesia para quem não tem dicionário

sem título o poema não é verbo transitivo, nem estado transitório, não é complemento, nem suplemento, é essência e acessório, núcleo e orbital, periferia central. inspiração e expiração, é céu, inferno, purgatório, tua mais sagrada oração, teu canto expiatório de pecados, indiferenças e virtudes. é pedra fria, terra molhada montanha de insuperáveis altitudes vulcão incandescente, amor ardente, lugar comum. comum a toda a gente.

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12 poesia para quem não tem dicionário

escuro tuas palavras acesas como pegadas incandescentes no manto escuro da floresta apontam, entre folhagens, o caminho que sigo na noite densa.

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13 poesia para quem não tem dicionário

silhueta com os dedos no piano, percorro em mim o teu dorso, como se aqui te tivesse. sob as minhas mãos, as teclas a preto e branco, lembram-me o vestido que trazias na única noite em que te vi. e enquanto o piano me toca, reverberando as minhas cordas, espreito a porta com a esperança que se abra e de lá, por entre o escuro e a fresta de luz amarela, surjas tu.

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14 poesia para quem não tem dicionário

cinzento colheram-se-me as asas ora não vôo porque o céu se cobriu e o sol se tapou.

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15 poesia para quem não tem dicionário

tu vieste amanhecer-me e agora sou um campo pleno brilha dourado ondula sereno deita-me as sementes como beijos, quando te deitares a meu lado. percorre-me de mãos dadas com o silêncio, os caminhos do vento que me esculpiu.

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16 poesia para quem não tem dicionário

à terra o que é da terra desprendem-se pétalas sem espasmos uma a uma à terra o que é da terra. como neve, naturalmente sobre o manto branco das sílabas do tempo.

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17 poesia para quem não tem dicionário

mensagem é com a mão pousada na tua pele, percorrendo com meus dedos as tuas costas suaves, os meus lábios sobre os teus, com as tuas palavras esvoaçantes, e os teus sussurros soprados no meu ouvido em murmúrio que me ultrapasso, me acendo, facho de luz nas noites antigas distantes.

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18 poesia para quem não tem dicionário

sem título o mar anseia o teu nome, principalmente quando as ondas o pulverizam pelo ar, em gotas de sal, viajantes, audazes em conquista da terra, como conquistar-te ousaria a minha coragem sumida, no tempo e na lenta espera dolente que faz definhar o mais belo poema.

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19 poesia para quem não tem dicionário

sem título os teus olhos são uma tarde de verão com poucas nuvens.

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20 poesia para quem não tem dicionário

sem título

sussurro.

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21 poesia para quem não tem dicionário

sente

na relva húmida

os pés descalços.

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22 poesia para quem não tem dicionário

engano à beira do aqueronte esperando a imortalidade. nos confins da vida, vi a morte. pedi a caronte que me levasse, de inspiração fingida, para o meu fim. o óbulo foi-lhe entregue na margem mas o sabor a níquel ainda me envenenava a boca. pouco agitadas as águas para um rio infernal. a meio, saltei e mergulhei fundo para a mortalidade.

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23 poesia para quem não tem dicionário

gotas de chuva

se me perguntares, um dia

se te desejo aqui sempre

apenas te poderei dizer, entre a respiração e a lágrima,

que mesmo que a chuva chore

sobre o meu corpo caído

numa rua sem nome, escondida na noite,

e que o frio do inverno

me cubra da pele tremente aos ossos,

cada gota de chuva seria amar-te ainda mais.

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24 poesia para quem não tem dicionário

lagoa do fogo

da água nasce fogo,

quando os deuses dos nossos sonhos,

deixam sobre as ilhas o sublime toque

do vento que esculpe a terra e o mar.

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25 poesia para quem não tem dicionário

curva

a vida, como a terra, também é curva.

por isso é que não podemos ver o futuro.

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26 poesia para quem não tem dicionário

antes que partas

a minha caveira podia estar descoberta

ao vento do deserto,

expondo os versos de um esqueleto

tão pouco poético,

os escaravelhos sagrados podem satisfazer-se

das sílabas que voam aqui tão perto,

e as crisálidas converter-se-ão,

depois de lagartas,

não em mariposas azuis,

mas em anjos de solidão,

antes que partas

à lonjura e à linha infinita da imensidão.

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27 poesia para quem não tem dicionário

tudo o que és

quando o pensamento se esvai como sangue

rubro e vivo, porém, incontido,

e pelos espaços entre os dedos escorre a areia

intemporal dos desertos irrefragáveis da vida,

da vida pura, da vida suja, da vida morta,

quando entre as nuvens vês a escuridão de um céu

sem lua, negro de horas cujo sol não abençoou,

quando a alma se te foge dos arrumos onde a

guardaste,

cuidada, bem aprisionada, acondicionada nas estantes

desse armário infinito, de madeira roída pelos bichos

da memória que te corróem o cérebro exausto,

quando tudo te passa à frente à velocidade do

metropolitano

do futuro e na tua cara correm os ventos quentes do

abismo,

viras as costas à mortalidade, porque tudo já passou

sem permissão,

porque tudo o que fizeste nunca mereceu perdão,

porque tudo o que és se condensa no espaço fechado

de uma mão.

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lucifer

quando as veias pulsam chamas

e fazemos de nós instrumento do mundo

então as forças são divinas,

que deus és tu e eu e o resto.

e somos também os demónios

que portam a luz

e o fogo purificador

dos silêncios e cumplicidades

dos nossos confessionários.

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a rapariga e a raposa

haverá no mundo poucas coisas que nos façam

estremecer ante a maravilha.

porventura é até difícil dizer-lhes os nomes. bem sei

que nos filmes, os nomes que não se dizem são os do

mal puro, mas não é menos verdade que não se diz em

vão o nome de deus.

num dia de primavera, em que o céu aberto abraçava

aquela humidade que fica no cume das montanhas pela

manhã e o sol teimava em se vir insinuando sobre a

escuridão do inverno húmido, a poesia caminhou no

nosso mundo e, como na mais bela pintura, sobre o

verde da Serra, longos cabelos negros ondularam no

suave vento que descia a encosta a norte. o cheiro a

rosmaninho e os pontos vermelhos do medronho

afirmam-se no fundo verdejante que nasce no suão

mediterrânico.

quando ela se sentou numa pedra pediu à Arrábida que

lhe contasse os segredos, que partilhasse as riquezas,

como se quisesse ligar-se a cada pedra, cada gruta ou

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estalactite, cada pequena árvore ou grande carvalho.

conta-me os teus segredos, pediu-lhe. e a Arrábida

contou-lhos, num murmúrio secreto.

um murmúrio que era afinal cada uma das batidas do

seu coração.

com as mãos sobre a pedra, e o cabelo desvendando

um sorriso puro, sentiu mais profundo cada pulsar do

ar, da terra, do mar.

uma raposa, sentou-se, algo hesitante, mesmo a seu

lado. conta-me os teus segredos, disse-lhe. e a rapariga

contou.

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sem título

sob a linha ténue da luz que passa da janela para

dentro,

ainda vejo o teu corpo afastar-se, sem sons,

como uma sombra longínqua.

o cigarro apagado incensa ainda o quarto

e a cama onde, como seda, me cobriste com teu corpo,

está quente, como as manhãs de primavera.

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Lisboa

um barco no tejo,

um abraço,

um beijo,

ao longe uma ponte sobre os telhados

inúmeros, antigos, confusos.

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33 poesia para quem não tem dicionário

navegação

será o vento a trazer-me o teu nome

nos dias de esquecimento.

será o teu nome a lembrar-me de quem sou

nas noites sem estrelas.

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34 poesia para quem não tem dicionário

sem título

as pontas dos meus dedos suaves

sobre a pele das tuas ancas

e o meu sussurro atrás do teu corpo nu,

sopra-te no ouvido a palavra absolutamente

necessária.

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35 poesia para quem não tem dicionário

sem título

todo o passado é o que nos enche, mesmo o que nos

deixa vazios.

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36 poesia para quem não tem dicionário

humanidade

caído aos pés de deus,

o homem renegou ao demónio.

extenuado, vencido,

prostrou-se ao poder magnânimo

do relâmpago e do trovão.

e a humanidade, assim vencida, abandonou-o.

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sem título

as nossas mãos, na verdade, são asas.

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38 poesia para quem não tem dicionário

o tempo no poema

em cada letra do verso, está uma flor que que não

definha.

em cada sílaba, um beijo que não desvanece.

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39 poesia para quem não tem dicionário

sem título nas artérias, sangue, como nos versos. e o sangue não rima, como não rimam os versos.

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sem título

soltam-se-me dos dedos

as sílabas

como lágrimas dos olhos

de quem chora.

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silêncio o silêncio mancha-te de sangue as mãos.

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mar emergente

o mar é a gente

quando se levanta.

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vermelho

ígneos nossos punhos, nossas almas.

flamejantes nossos hinos, nossas lágrimas.

vermelhos nosso sangue, lutas e vitórias.

fortes nossos braços na conquista,

a almas, punhos,

lágrimas, hinos,

lutas e sangue,

do triunfo e da nossa glória.

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sem título

ser poeta não é ser maior do que os homens.

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sem título a liberdade é um bem finito e não elástico.

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resistir

vibrem os meus átomos

com o cair da noite escura,

gritem as horas pelas quais passo,

sem lhes tocar,

fraquejem as traves do universo,

com o olhar de rapina do negro infinito,

que em cada partícula de ser, resisto.

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47 poesia para quem não tem dicionário

aurora no dorso o sol a pique, mãos rasgando o chão para comer. para viver, não pode levantar-se o homem que nasceu para andar erguido. foi vergado por quem nasceu de espírito já partido, sem coluna, verme protegido. do chão emerge a vida de ambos, a de um pelo trabalho de suas mãos, a do outro pela fome de cada mão. não percebe quem com seus braços sulca a terra que assim sulca a história e escreve as linhas do futuro. o sol um dia trará também essa aurora de fogo (de libertação) e comerá apenas quem quiser amassar o pão.

esgota-se o tempo

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48 poesia para quem não tem dicionário

já não há tempo para que a poesia se dê ao luxo

de passear nos bosques encantados e nos egos

poluídos

dos intelectuais de escrivaninha.

já não há tempo para que os versos se ostentem,

bem rimados, construídos, bem ritmados, bonitos,

nos corações vazios da burguesia.

é urgente que as palavras ganhem o peso das pedras,

se revoltem com os que vivem sem poesia e sem pão.

não há tempo para brincar aos poetas, ao depressivo

snob en vogue.

só nos resta tempo para que se não nos acabe o

tempo,

para que gritemos ainda que não abdicámos do futuro,

com propriedade, ou mesmo sem.

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comunista se te roubam é economia, se te enganam é democracia, se te iludem é eloquência, se te revoltas és alarmista, se te organizas és terrorista. se te matam, é a prevenção, se te bombardeiam, são os direitos humanos, se te calam, shiu, não podem ouvir falar de revolução. se lutas, és extremista. se resistes, és radicalista. desses que nos roubam, nos enganam, iludem, matam, bombardeiam, calam, as ofensas soam a elogio, e quando levantares o rosto saberás que tudo quanto te chamam faz de ti afinal de contas um comunista.

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50 poesia para quem não tem dicionário

labirinto

quando estamos juntos,

todos os caminhos estão certos.

que unidos saberemos

onde virar a cada bifurcação.

unidos venceremos

o labirinto e a confusão.

e antes escolher o trilho errado convosco a meu lado,

que escolher sozinho o caminho acertado.

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Abril

Seremos maio até que abril vença.

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52 poesia para quem não tem dicionário

sem título são desprovidos de adorno os versos da minha vida, e muitas vezes de sentido. mas nuas são tão mais belas as palavras.

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sem título

depois de incandescentes

as letras e os versos são como os homens,

não cristalizam.

pulsam e respiram.

sanguíneas e vivas.

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54 poesia para quem não tem dicionário

sem título inspiro um sopro dos lábios percorre-me como uma brisa e lembra-me os sussuros e os murmúrios dos primeiros dias. de pureza. expiro um beijo fugido escapa-se-me dos lábios e lembra-me a partida fria e a neblina escura do fim. da pureza.

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55 poesia para quem não tem dicionário

o mito segundo narciso

quando ela morreu, o mundo, infelizmente, não cessou. e os dias passavam agora penosos, eras a cada lua. na floresta onde caçavam, vagueava inconscientemente, entorpecido. havia um vazio nos seus olhos que só viam saída nas lágrimas cheias que pendiam, permanentes. quando ela morreu, o mundo, infelizmente, continuou. e ele, perdia a continuidade do seu ser, um pedaço de alma, como um pedaço da vida. narciso arrastava os pés por entre as árvores. eco seguia-o sentindo a dor. nas sombras oblíquas da floresta, por onde haviam passeado as musas nas horas matinais que se iam e por onde hades passearia nos instantes que se seguiam em busca de perséfone para se saciar, jazia um lago que reflectia o céu por entre folhagens. quando caiu, debruçou-se, infinitamente triste sobre as águas espelhadas e serenas. ali, mesmo ali, jazia a imagem gémea dela. não mais desviou seus olhos da água que chorava com ele. eco, bela, olhou seu corpo moribundo e chorou. no lugar onde narciso adorou a sua irmã, deixou uma flor que ali cresceu.

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56 poesia para quem não tem dicionário

noite a noite é a derradeira poesia dos deuses.