porque eu sou o que convÉm “inconveniente” · que por meio um diálogo anuncia um corpo. um...
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PORQUE EU SOU O QUE CONVÉM – “INCONVENIENTE”
Ana Letícia Vieira1
Bruno Rossato2
Vinicius Reis3
RESUMO
O curta-metragem “Inconveniente”4 (2015) é uma provocação que já começa pelo próprio título
e, em sete minutos, nos convida a transitar pela arte, ciência, ficção e o cotidiano. Nesta
encruzilhada de saberes que se misturam, rompem e criam outros modos de existência,
múltiplos sentidos são atrelados a alguns aspectos do vídeo, envolvendo os saberesfazeres
cotidianos que, por sua vez, vão instituindo significações e lógicas atravessadas nas questões
sobre corpo, gênero e sexualidade. Entendemos que estamos imersos em uma cultura que é
contaminada pelo audiovisual, onde narrativas circulam por diferentes espaçostempos
produzindo agenciamentos e operando na criação de subjetividades, desejos e estéticas de
existências. Neste sentido, pensando no audiovisual como um dispositivo para a produção de
diferentes saberes, o objetivo deste trabalho é anunciar um corpo, uma vida e uma estética trans5
que não quer ser apagada e nem silenciada e que para isso precisa gritar, berrar… Um corpo
inconveniente que circula em diferentes lugares potencializando e afirmando a vida. Se
produzindo, afetando e sendo afetado pelo mundo. Um corpo que insiste em não se enquadrar
e que transita no seio das verdades instituídas.
Palavras-chave: Transsexualidade6; Cotidiano; Audiovisual; Gênero; Certeau
1 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (ProPE/UERJ). Email: pesquisa.analeticia@gmail.com 2 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (ProPE/UERJ). Email: rossatbruno@yahoo.com.br 3 Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (ProPE/UERJ). Email: viniciusreiswork@gmail.com 4 Visite nossa página: https://www.facebook.com/inconveniente2015/ 5 Neste trabalho, optamos pela expressão trans para nos referir às pessoas nomeadas/enquadradas como
“transexuais”, “travestis”, “transgêneros”, “transhomens”, “transmulheres” etc, bem como àquelas que, de alguma
maneira, não estão conforme a um metro-padrão e produzem seus corpos nas fronteiras, transbordando as normas
de sexo-gênero. 6 A grafia da palavra está com dois “s” propositalmente para mostrar que estamos entendendo a sexualidade, neste
caso, de forma expandida ao invés de nomear ou dividir por categorias identitárias (travestis, transexuais,
transgêneros etc). Sabemos que a luta identitária é legítima e funciona em alguns aspectos no âmbito das políticas
públicas, entretanto gostaríamos de produzir um exercício de um pensar “outro” que nos aponte a possibilidade de
podemos usar das categorias identitárias em determinados momentos a nosso favor, entretanto não podemos nos
aprisionar a elas pois não dão conta da totalidade, da expansão e da diferenciação constante da vida.
“Inconveniente” foi produzido como trabalho final de uma disciplina no âmbito da Pós-
graduação em Educação da UERJ (ProPEd) que abordou a metodologia das pesquisas
nos/dos/com os cotidianos que é influenciada e embasada fortemente pelo pensamento de
Michel de Certeau. É um curta de aproximadamente 7 minutos que mistura elementos literários
e artísticos. A produção se deu a partir de uma poesia (escrita com inspiração no texto de Fauzi
Arap com interpretação de Maria Bethânia e fundamentada nas ideias de Michel de Certeau)
que por meio um diálogo anuncia um corpo. Um corpo, uma vida e uma estética trans que não
quer ser apagada e nem silenciada e que para isso precisa gritar, berrar… Um corpo
inconveniente que circula na cidade, no trem, no metrô, no museu, na escola potencializando e
afirmando a vida. Se produzindo, afetando e sendo afetado pelo mundo. Um corpo que insiste
em não se enquadrar e que transita inconveniente no seio das verdades instituídas.
“O corpo é o suporte primeiro da mensagem social proferida. É um quadro-negro onde
se escrevem e se fazem legíveis o respeito aos códigos ou o desvio com relação ao
sistema dos comportamentos” (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2013).
O curta Inconveniente é uma videoarte que mistura ciência, poesia, sons, música e artes
visuais. Como o próprio título sugere, o curta é uma provocação e se baseia no conceito de
“conveniência” que, segundo Certeau (2013), “mantém relações muito estreias com os
processos de educação implícitos a todo grupo social” (pág.49). Entendendo a conveniência
como norma, então “ela reprime o que ‘não convém’, o que ‘não se faz’. A inconveniência neste
caso é o que não está dentro da norma, portanto sujeito a ter sua reputação pessoal destruída.
Nesta perspectiva, inconveniente, é aquele corpo que está em “dissonância no jogo de
comportamentos” (pág. 49).
Partindo deste princípio, tomamos como base um texto de Fauzi Arap eternizado na voz
de Maria Bethânia que vociferava: “Eu vou lhe contar que você não me conhece”. No caso do
curta, o texto reinventado nos revela uma personagem que diz: “Quero falar sobre um corpo”.
Mas que corpo?
O corpo que se anuncia, gritando, berrando...
O trem se aproxima. O barulho vem dos trilhos. Um violino afinado. Os trilhos
arranham. O trem está próximo da plataforma. Em meio a flores e um castelo um corpo se
enuncia. A personagem surge na tela, desfocada. Uma princesa? O trem está partindo e junto
com ele nossa princesa deixa as telas para se tornar uma pessoa comum, praticante, ordinária...
(CERTEAU, 1994)
Em primeiro plano. O trem corre cada vez mais rápido. Com ele vão-se os estereótipos.
Nossa personagem está engasgada. Ela quer falar, quer ser ouvida, mas em meio a multidão ela
se torna invisível. Ela precisa gritar, berrar... Todos parecem surdos e ninguém a ouve. Ela
denuncia e nos provoca a olhar/sentir/perceber os corpos trans que habitam o mundo, porém
são a todo tempo silenciados e impedidos de circular. Não possuem direito de ir e vir. São a
todo tempo apontados, discriminados, violentados porque não estão conforme as normas e as
expectativas com relação a sexo-gênero (BUTLER, 2003; PRECIADO, 2014; BENTO, 2004,
2008).
Quero falar sobre um corpo
Mas preciso gritar, berrar...
Porque você está surdo e não me escuta.
Me deram um nome
Imposição!
Verdade?
Realidade?
Identidade?
Besteira...
Na plataforma trens circulam a todo o momento. Nossa personagem está pensando em
meio a sons e pessoas a imposição de um nome que lhe foi dado arbitrariamente. Não só um
nome civil, mas uma nomeação, uma categoria, uma identidade. Entretanto, ela nos aponta que
isso não passa de uma “besteira”. É uma produção, uma construção que almeja nos colocar,
todos, em caixinhas específicas e nos enquadrar em determinado gênero, sexualidade e prática
sexual. O que nossa personagem denuncia é que nem todos estão de acordo com um
sistema/norma que associa compulsoriamente gênero, sexualidade e desejo. Associa o “sexo”
(macho ou fêmea) a determinado gênero (masculino ou feminino) e atrela, por sua vez, a um
desejo, a heterossexualidade (BUTLER, 2003). Há aqueles que rompem e evidenciam que este
processo não é natural, mas sim naturalizado.
Entre eu e você há um abismo
Abismo do Ser
Porque você, é.
Eu sou quando quero.
Você é um rosto, uma parte, um número na multidão.
Eu estou...
Estou contaminando, invadindo, misturando.
Na multidão, sou aparência, em perspectiva.
Nossa personagem já saiu do metrô e agora caminha na cidade. Ela se mistura em meio
a sons, texturas, gestos e corpos que transitam no centro do Rio de Janeiro. Sua memória e seus
pensamentos estão borbulhando. Ela insiste na negação e na rejeição de um discurso identitário.
Ela não quer “Ser”, não quer se enquadrar para sempre. Ela quer “Ser” quando quiser “Ser”.
Ela quer ser afetada, contaminada, invadida pela vida e a partir dela se autoproduzir, diferir...
Em meio à multidão ela se torna aparência em perspectiva. Quem ela é depende de quem
vê. Ela é somente aparência. Ela é superficialidade, artificialidade. Seu gênero é produzido em
ato, em prática (BUTLER, 2003). Sua pele é o que há de mais profundo. Com isso, ela nos
aponta que os discursos não produzem “verdades” fixas e imutáveis mesmo quando pretendem.
Que tudo depende do direcionamento e da perspectiva adotada. Que normas e padrões não
atingem a todos do mesmo jeito e ao mesmo tempo. Que determinadas normas podem ou não
serem seguidas. Que é possível o uso, a seu favor, de determinados padrões, de maneira
conveniente, para burlar sistemas e discursos estrategicamente pensados e produzidos
(CERTEAU, 1994).
Você é seu nome.
Você diz que eu não sou ninguém.
Ninguém?
Mas, ao contrário, você me dá o poder.
Poder de inventar, criar, escolher... meu nome.
Poder ser quando quiser ser.
Porque eu sou o que convém.
Conveniente
Inconveniente.
Ela retoca a maquiagem. Em frente ao espelho mostra o seu poder. Poder que lhe é dado
pelo próprio discurso que tenta lhe enquadrar, impor uma fôrma. Discurso que também tenta
excluir quem não se adequa. O mesmo discurso que se alimenta de uma estratégia possibilita a
produção de táticas (CERTEAU, 1994). Poder de criar, inventar, escolher e ser quando quiser
ser. Transitar nas esferas e nos discursos hegemônicos de poder e promover uma ruptura que
acontece no seio, dentro, no cotidiano. De dentro para fora (BHABHA, 1998). Poder ser
conveniente/ inconveniente denunciando que as fixações podem ser temporárias e também a
precariedade dos discursos que tentam impor lógicas e padrões binários hegemônicos
(BUTLER, 2003).
Após se produzir, nossa personagem, sente vontade de urinar. Aproxima-se da privada,
abre as pernas e “mija” em pé mesmo, porque ela pode!
As rosas se desfazem numa explosão de vida
Diva. Princesa. Boneca.
Fera. Bicho. Demônio.
Sou anjo. Homem. Mulher.
Sou minha mãe e minha filha.
Sou processo
Multiplicação…
Não sou produto, nem resultado.
Neste ponto da narrativa, acontece uma grande virada. Até aqui, o curta adotava um
modelo de narrativa mais lento, mais linear. Uma vez que nossa personagem “brinca” com a
inconveniência, com as formas de ser e estar no mundo, uma explosão de vida acontece na tela,
seja pelas imagens ou através dos sons.
É importante, aqui, ressaltar a importância do som no cinema e o destaque que ele teve
neste filme. Segundo Garcia e Oliveira (2015) em uma publicação sobre o pensamento de Nilda
Alves, os praticantes nos espaçostempos cotidianos, para as pesquisas nos/dos/com os
cotidianos, ganham o estatuto de personagens conceitos. Compartilhamos da ideia de que até
mesmo um som é um personagem conceito, ou seja, em nossas pesquisas, um som pode ser
entendido como um outro que é preciso estar ali e permanecer para que se possa desenvolver o
pensamento e criar conhecimento. Portanto, ruídos são interrompidos, deslocados e até mesmo
o silêncio dialoga com a narrativa que se apresenta, completando-a.
Voltemos, pois, ao momento do que chamamos de explosão de vida. Nossa personagem,
até então mostrada em cenas cotidianas, misturada em meio à multidão, fica em evidência,
sensualizada, com uma roupa íntima provocante. O discurso ganha ritmo, transforma-se num
funk carioca; as imagens, fotografias da personagem em trajes e poses sensuais, inundam a tela.
Conveniente e inconveniente o corpo da personagem produz a sua beleza e afirma-se, em
palavras e gestos.
O funk, pano de fundo destas imagens, também provoca. O funk é tão inconveniente
quanto nossa personagem e incorpora um som de violino, instrumento geralmente associado à
música erudita, e reafirma que aquele corpo “não é produto, nem resultado”, mas sim “processo
e multiplicação”.
A tela se quebra. Estilhaços cortantes voam e caem misturando-se a pétalas de rosas.
Para Certeau (2013), a conveniência é o gerenciamento simbólico da nossa face pública quando
estamos em local público (na rua, no bairro). Entre pétalas de rosas e estilhaços de vidro na
imagem, apontamos que nossa personagem faz uso da “conveniência” quando ela julga
necessário para se tornar inteligível (BUTLER, 2003) e transitar nas verdades instituídas, mas
que sua “inconveniência” evidencia uma tentativa repetitiva de padronização dos corpos e dos
comportamentos. Denuncia o quanto determinados discursos são entendidos como naturais
quando na verdade foram produzidos e naturalizados culturalmente.
O corpo que denuncia
Uso meu corpo.
Modifico. Transformo.
Não estou conforme.
Ao toque. Me toco. E sinto…
Tesão. Prazer. Loucura.
Caminhar pela cidade, misturar-se na multidão. Envolver-se nesse cotidiano que é
plural, que é uma teia onde a vida se produz dia após dia.
Ela usa seu corpo inconveniente, mergulha nas relações com esse espaço. Podemos
vislumbrar como o cotidiano traz algo com deslizes de impulsos não ambicionados, em
contraposição a um rigorismo normativo e suas respectivas condutas esperadas.
Ao transformar o corpo e transitar pela cidade, misturar-se na multidão, vemos a
personagem rompendo, desnaturalizando ou melhor dando golpes na conformidade do sistema
“sexo-gênero-orientação-sexual” (BUTLER, 2003) socialmente construído e padrozinado, e
que, no contexto de relações de poder, produz outros binarismos tais como masculino e
feminino, heterossexual e homossexual, cisgênero e transgênero, por exemplo.
Este corpo inconveniente continua caminhando pela cidade quando um 'flash' de cenas
se sobrepõe ao percurso na cidade, enaltecendo a memória. Esta memória busca dar golpes nas
imposições e nos mostra um conjugado de possibilidades em meio aos movimentos do
cotidiano. Um corpo inconveniente que ao tocar-se tem sensações, que constitui mundo,
misturando 'prazer e loucura'. Neste mote, esse corpo transita pela cidade em meio a qual se
engendra essa problematização de um corpo que não está conforme, partindo das experiências
individuais e coletivas tecidas no/com o cotidiano. Assim, ao vislumbrarmos o trânsito de um
corpo inconveniente pela cidade, estamos afirmando a ruptura, o escape do padrão.
E provoco você porque transito na sua verdade.
Desloco suas palavras e interdito seus escritos.
O caminho pela cidade segue seu percurso. Gestos e imagens causam tensão ao que está
valorizado como padrão. A personagem faz uma denúncia a essa fôrma rígida, fechada e nos
provoca apontando algumas imagens fálicas coladas em um telefone público (“orelhão”) - um
corpo fixo da cidade que com essas imagens acopladas colocam em xeque os códigos relativos
ao gênero e à sexualidade normatizados. Conforme Preciado (2014) a sociedade contrassexual
demanda que se apaguem as denominações 'masculino' e 'feminino' correspondentes as
categorias biológicas [...] Os códigos da masculinidade e da feminilidade se transformam em
registros abertos à disposição dos corpos falantes no âmbito de contratos consensuais
temporários (2014, pág .35). Balizado em Preciado (2014), uma atitude inconveniente é aquela
que provoca, que questiona verdades, que não entra numa lógica, que busca trazer afirmação.
Meu corpo se movimenta e dança,
dança a sua dança.
Movimenta a sua estratégia
E como uma tática te denuncia
A caminho de casa e com um olhar de quem após um dia de provocações - que
acontecem cotidianamente - movimenta o corpo no balanço do trem. Corpo que não apenas se
movimenta, mas que dança ao compasso de estratégias e táticas, denunciando.
Ao pensar nessa produção constante de um ideário de corpo, realizada por diferentes
instituições e contextos da vida social, vemos como as cenas de inconveniente reforçam a
problematização elencada por Certeau (1994) nos fazendo pensar que na vida ordinária
cotidiana os modos de usar produzem derivas, desvios, apropriações e diferenças em
contraposição à severidade normativa e suas respectivas condutas esperadas bem como
planejamentos estrategicamente calculados por uma autoridade política, econômica, cultural,
militar, religiosa,etc. Deste modo, o corpo inconveniente traz em afirmação esse entrelace
constante entre os conceitos de tática e estratégia pensados por Certeau (1994).
Ao pensarmos no movimento dessa estratégia, Certeau (1994) discorre que essa ação se
manifesta fisicamente por seu clima de operação e os produtos que emergem desse ambiente
(linguagem, leis, literatura, arte, discursos). A estratégia concebe um investimento enorme de
espaço (construções) e de tempo (as histórias e suas tradições), sendo assim, o modo de operar
com as identidades já estão determinados. Contudo, Certeau nos descreve sobre um modelo
tático em que os indivíduos ou grupos que são fragmentados em termos de espaço são capazes
de desempenhar de forma ágil um aglomerado de ações para responder a uma necessidade que
surja. Portanto, a necessidade faz uma tática "surgir" no mundo, uma criação que traz consigo
golpes ao que está instituído. A estratégia tem a ver com um cálculo, um planejamento, uma
determinação, uma produção que atua como uma ordem a partir de um lugar próprio (confere
e é conferida por uma autoridade desse lugar). A tática é o tipo de ação que possibilita a
sobrevivência dos que precisam praticar esse lugar sob essa ordem. Eles só podem agir
aproveitando a ocasião, com o repertório dominante, mas ao agir, marcando um desvio com sua
prática em relação ao que foi imposto, produzem uma ruptura, uma brecha no instituído e nos
discursos que são produzidos como hegemônicos. (CERTEAU, 1994)
Sendo assim, podemos destacar o uso das táticas na inevitabilidade desse corpo
inconveniente junto aos processos de subjetivação. Pensamos como subjetivação a partir da
visão que "o capitalismo produz formas-subjetividade, modelizações subjetivas" (BARROS;
PINTO, 2004, pág. 2). Esses modelos abarcam as percepções e a memória. Envolve a dinâmica
das relações sociais, o campo das práticas. Nesse entendimento, os processos de subjetivação
ao mesmo tempo são produzidos em instâncias coletivas e institucionais. No entanto,
concomitantemente, tal produção ao mesmo tempo, se choca com modos de subjetivação
singulares que, como tal, é recusa, é resistência, construindo sensibilidades outras, modos de
relações outros. Ocasionando assim, outras formas de produção da existência (BARROS;
PINTO, 2004).
Eu quero que você me veja nua!
Existe um relato, uma representação que nos separa, nos distancia.
A minha vontade, o meu desejo é que você me veja nua.
Eu abandono o que você diz, sobre mim…
E meu corpo nu, corpo trans, em movimento…
Mais uma vez te denuncia, te provoca, nos engendra, nos afeta.
Eu me confesso.
Você me descreve.
Eu nos condeno e me entrego por nós.
Assim, me salvo do discurso que você tenta, tenta...
Tenta me impor e não consegue.
Nossa personagem, ao fim do dia, retorna para casa. Entra no apartamento. Acende a
luz. Lava a louça. Coloca um prato de comida no micro-ondas e vai até o banheiro. Olha para
o espelho e prende o cabelo em leves movimentos circulares. Aos poucos ela se despe, não
somente da roupa, mas dos discursos, do que dizem sobre ela. Entra no banho. A água que corre
pelo seu corpo lava, enxagua e limpa as tentativas de imposições, as regras, as convenções que
ali estavam mesmo que temporariamente. Ela nos condena e se entrega por nós num movimento
tácito, onde propositalmente se entrega quando na verdade está dando uma rasteira nos
discursos e práticas que tentam a aprisionar.
Compartilhamos do pensamento do cineasta espanhol, Pedro Almodóvar (2008), que
acredita no desejo das pessoas. O cineasta não se refere ao desejo sexual. Como exemplo,
Almodóvar menciona a fé de suas irmãs. Ele acredita naqueles que creem, pois no ato de
acender uma vela para um santo católico, como fazem suas irmãs, neste gesto, está contido o
desejo. E os desejos possuem uma força incomensurável. O desejo aqui é uma espécie de força
vital, transformadora.
Foucault (2014) nos alerta que para conta-atacar os dispositivos hegemônicos de
sexualidade, neste caso, a heteronormatividade, os pontos de apoio que temos à nossa
disposição são os corpos e os prazeres. Pois é aí que reside a força vital da nossa personagem.
Após o banho, nossa personagem se despede. Fecha a porta do banheiro e interrompe
nosso olhar voyeurístico. Tela preta. Em certo tom de impaciência e querendo reiterar o que já
foi dito dispara seu último comentário:
Ah...
E não venha falar de normalidade, essência ou neutralidade.
Nem arte, nem ciência são puras.
Os relatos são poderosos instrumentos (CERTEAU, 1994). São “histórias” que nos
revelam práticas cotidianas. Por isso, optamos em usar como fio condutor do filme esta espécie
de poesia-relato, narrada em primeira pessoa. Certeau (1994) também afirma que a arte e a
ciência estabelecem uma relação de complementaridade e, sempre que possível, articulação.
Como um último suspiro ou como um desabafo, nossa personagem, se despede dizendo:
“nem arte, nem ciência são puras”. Um manifesto contra qualquer tentativa de normalização,
essencialização, neutralização ou purificação dos corpos e dos comportamentos que neguem ou
não permitam a expansão e diferenciação da vida.
Referências Bibliográficas
BARROS, Maria Elizabeth; PINTO, Sonia de. Construindo formas de co-gestão do
trabalho docente – As comunidades ampliadas de pesquisa como estratégia privilegiada.
XVII Reunião da ANPED. Caxambu: ANPED, 2004. Disponível em:
http://27reuniao.anped.org.br/gt03/t0312.pdf Acesso em: 26 jun 2016.
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual.
Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
BENTO, Berenice. O que é a transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção
primeiros passos; 328)
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1998.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes,
1994.
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Moras,
cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
FOUCAULT, Michael. História da sexualidade: A vontade de saber. São Paulo: Paz &
Terra, 2014.
GARCIA, Alexandra; OLIVEIRA, Inês Barbosa de (Orgs.). Nilda Alves: Praticantepensante
de cotidianos. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
PRECIADO, Beatriz Paul. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade
sexual. São Paulo: n-1, 2014
STRAUSS, Frederic. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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