perry rhodan - 1º ciclo - a terceira potencia - volume i - p-01 - 05
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1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA
VOLUME 1
P-1-5
2
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Crepúsculo dos Deuses
Volume 4
Alarma Galáctico
Volume 5
A Abóbada Energética
Volume 3
A Terceira Potência
Volume 2
Missão Stardust
Volume 1
3
Missão Stardust
A Terceira Potência
A Abóbada Energética
O Crepúsculo dos Deuses
Alarma Galáctico
1º Ciclo – A Terceira Potência
Volume 01
Episódios: 01 - 05 de 49
4
Nº 01
De
K. H. Scheer
Digitalização
Vitório
Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
O major Perry Rhodan, comandante da espaçonave Stardust, descobriu muito
mais do que se supunha pudesse existir na Lua — ele veio a ser o primeiro homem
a entrar em contato com outra raça.
Os extraterrestres, provenientes de uma estrela distante e possuidores de um nível
tão elevado de conhecimentos científicos e filosóficos que, perto deles, a
Humanidade ainda estava centenas de milhares de anos atrasada.
Mas estes alienígenas, enormemente poderosos, recusavam-se a cooperar com os
terrestres a menos que Perry Rhodan saísse vencedor do teste mais difícil a que
um ser humano jamais se submetera...
5
Aconselhamos o leitor a começar o livro
pela segunda parte, onde iniciam propriamente
as aventuras espaciais de Perry Rhodan. Na
primeira parte só há uma viagem detalhada à
Lua, inteiramente fictícia.
PRIMEIRA PARTE
A Partida
I
No prédio principal da Central de Nevada Fields,
que abrigava o centro nervoso eletrônico da base espacial,
reinava a atividade febril e aparentemente inútil que
caracteriza os preparativos finais da partida de uma
espaçonave. A única finalidade de todas as operações, dos
avisos transmitidos pelos alto-falantes e dos cálculos
detalhados era controlar mais uma vez os resultados que
de há muito tinham sido apurados.
Os engenheiros que formavam a equipe responsável
pela parte eletrônica da nave verificaram os inúmeros
circuitos do computador astro-eletrônico, cuja finalidade
consistia em proceder a eventuais correções de curso.
Realizaram, também, uma revisão no dispositivo
automático B, um robô especial
incumbido do controle da
decolagem e da separação dos
estágios e, ainda, do comando
remoto.
O computador eletrônico C,
que era o robô coordenador dos ecos
de radar recebidos, e ainda a estação
de comando das câmaras especiais
teleguiadas do dispositivo de
infralocalização, apresentava, como
já se esperava, funcionamento
perfeito. Os últimos cálculos de
verificação, realizados através de
computadores eletrônicos, estavam
exatos até a décima casa decimal.
O engenheiro-chefe,
responsável pela manutenção,
comunicou que os dois dispositivos
automáticos principais —
dispositivos eletrônicos da
decolagem e do controle remoto —
estavam em perfeitas condições de
funcionamento.
Fez-se tudo aquilo que já tinha
sido feito em várias decolagens
anteriores, numa rotina altamente
especializada. Só uma pequena nuança de nervosismo
poderia ter revelado a um observador experimentado que
desta vez não se tratava do lançamento de uma
espaçonave qualquer.
Os soldados, fortemente armados, que se
encontravam na entrada norte do prédio principal,
prestaram continência com um gesto displicente. O
general Lesley Pounder, comandante da Base Aérea de
Nevada Fields e chefe do Departamento de Pesquisas
Espaciais, não fazia muita questão de que em
oportunidades como esta a etiqueta militar fosse
estritamente observada. Ficava satisfeito em saber que os
homens estavam bem atentos nos seus postos.
Como havia sido planejado, o general Pounder
entrou na sala principal do comando à meia-noite e quinze
em ponto. Estava acompanhado do chefe do Estado
Maior, o coronel Maurice e do diretor científico do
projeto, o professor F. Lehmann, que se tornara famoso
principalmente como diretor da Academia de Tecnologia
Espacial da Califórnia.
A chegada dos personagens principais não causou a
menor interrupção nas atividades que se desenvolviam no
interior da sala. O general tinha chegado; era só isso.
Lesley Pounder, um homem quadrado no aspecto e
no caráter, famoso entre os colaboradores, e difamado em
Washington pela intransigência com que insistia no
cumprimento das suas exigências, aproximou-se da
enorme tela de controle.
As imagens, que na sala de imprensa apareciam
pouco nítidas, deslizavam, aqui, em tamanho natural na
tela ligeiramente abaulada.
Pounder apoiou as mãos no encosto da poltrona
giratória e permaneceu imóvel por alguns instantes. O
professor Lehmann segurou os óculos sem aro com um
gesto nervoso. Alguma coisa parecia arder dentro dele.
Em sua opinião, havia coisas muito mais importantes para
fazer do que voltar a inspecionar, em
companhia do comandante das
operações, coisas de importância
secundária que já tinham sido
controladas. Lançou um olhar de
súplica ao chefe do Estado-Maior. O
coronel Maurice ergueu os ombros de
modo quase imperceptível. Tinham
que aguardar. Ao que parecia,
Pounder ainda tinha algumas
perguntas a fazer, embora estivesse
mais bem informado que muitos dos
membros da sua equipe de cientistas.
— Isto é belo! De uma beleza
empolgante! — disse Pounder em
voz baixa, enquanto olhava para a
tela. — Alguma coisa dentro de mim
vive perguntando se não estamos
indo longe demais. Os peritos do
Departamento de Navegação Espacial
continuam a achar que é rematado
loucura arriscar o lançamento da
Terra. Não é apenas a resistência do
ar que temos de vencer. Além disso,
devemos atingir a velocidade que
resultaria, automaticamente, de um
lançamento a partir da plataforma
espacial. São exatamente 7,08 quilômetros por segundo,
ou seja, 25.400 quilômetros por hora.
— É a velocidade em que a estação espacial
tripulada percorre sua órbita, general — apressou-se o
professor Lehmann a murmurar. — No nosso caso, essa
velocidade não representa um fator decisivo. Peço licença
para voltar a insistir nas enormes dificuldades que
Personagens Principais deste episódio:
Major Perry Rhodan — Comandante da nave
Stardust.
Capitão Reginald Bell — Engenheiro
eletrônico da Stardust.
Capitão Clark G. Fletcher — Astrônomo da
Stardust.
Tenente-médico Eric Manoli — Médico de
bordo da Stardust.
General Lesley Pounder — Chefe da Força
Espacial dos Estados Unidos.
Dr. Fleet — Médico-chefe da Força Espacial
dos Estados Unidos.
Allan D. Mercant — Chefe do Conselho
Internacional de defesa.
Crest — Cientista-chefe da expedição
organizada por uma raça desconhecida.
Thora — Comandante da nave dos arcônidas.
Professor Lehmann — Diretor da Academia
de Tecnologia Espacial da Califórnia e pai
espiritual da Stardust.
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surgiriam na montagem da nave, com peças pré-
fabricadas, realizada no espaço, fora da ação da
gravidade. Já tivemos experiências bem amargas nesse
setor. É bem mais fácil construir a nave na Terra do que a
1.730 quilômetros de altitude. E, em termos econômicos,
isto representa uma diferença, a menos, de trezentos e
cinquenta milhões de dólares por unidade.
— Esse argumento causou uma impressão
formidável em Washington — ironizou o general. —
Bem, a esta altura, não se pode alterar mais nada.
Façamos votos para que os resultados brilhantes dos voos
experimentais justifiquem o risco que, hoje, estamos
assumindo. A bordo desta nave estarão quatro dos meus
melhores homens, professor. Se alguma coisa não der
certo, o senhor terá que se explicar comigo.
Lehmann empalideceu sob o olhar gélido do general.
Mas o coronel Maurice, um estrategista hábil em manter
perfeito o equilíbrio entre os interesses conflitantes da
pesquisa científica e os do poderio militar, interveio com
o tato que lhe era peculiar, levando a conversa para outro
campo.
— General; peço licença para lembrar-lhe o pessoal
da imprensa. Os repórteres já devem estar ardendo de
curiosidade. Ainda não liberei informações mais
detalhadas.
— Não poderíamos evitar isso, coronel? —
resmungou Pounder. — No momento tenho coisas mais
importantes para fazer.
— Acho conveniente atendê-los — respondeu o
coronel de forma bem sugestiva.
O Dr. Fleet, perito em astrofísica, pigarreou. Era
também o responsável pelas questões de medicina
espacial, cabendo-lhe, ainda, cuidar da boa saúde dos
cosmonautas.
De repente, Pounder sorriu.
— Muito bem. Falarei com eles. Mas só pelo
circuito fechado de televisão.
Maurice sobressaltou-se. Os técnicos que os
rodeavam riram disfarçadamente. Era outra das atitudes
típicas do velho.
— Pelo amor de Deus, general. Essa gente conta
com a sua presença pessoal. Foi o que eu lhes prometi.
— Pois, então, retire a promessa — sugeriu Pounder
sem se mostrar impressionado.
— Mas vão dizer o diabo de nós nos editoriais —
disse o chefe do Estado-Maior em tom suplicante.
— Neste caso, mandarei prender estes rapazes até
que se tenham acalmado. Veremos. Ligue-me com eles.
Nas paredes nuas do abrigo de observação, os alto-
falantes pareciam retornar à vida. A cabeça de Pounder
apareceu numa tela. Com o seu mais cativante sorriso,
desejou a todos uma manhã bem agradável. Logo após, o
rosto do general tornou-se sério, não fazendo caso das
feições contrariadas dos repórteres.
De forma lacônica e em tom indiferente, como se
estivesse explicando algo bem irrelevante, anunciou:
— Cavalheiros, a imagem que apareceu há alguns
minutos nas telas existentes no interior do abrigo em que
se encontram corresponde a um foguete de três estágios.
Nos elementos que compõem o mesmo, foram
introduzidas modificações importantes. A decolagem terá
lugar dentro de três horas aproximadamente. Estão sendo
realizados os preparativos finais. No momento, os quatro
tripulantes ainda dormem um sono profundo que lhes
descansará os nervos. Só serão despertados cerca duas
horas antes da decolagem.
Os repórteres ainda se mostravam indiferentes. Já
havia tempo que as viagens espaciais tripuladas tinham
deixado de ser novidade. Os olhos de Pounder
estreitaram-se ligeiramente. Estava antegozando os
trunfos que surpreenderiam os homens da imprensa.
— Em virtude de experiências passadas, o Comando
de Exploração do Espaço decidiu não montar a nave
espacial na estação orbital. Ninguém ignora as
dificuldades e os fracassos das tentativas anteriores. Por
isso, a primeira espaçonave que deverá pousar na Lua,
partirá diretamente da Terra. A nave foi batizada com o
nome de Stardust. O comandante da primeira missão
lunar é o major Perry Rhodan, com trinta e cinco anos de
idade, piloto de provas da Força Espacial, cosmonauta e
físico nuclear, especializado em motores de radiação
atômica. Acho que Rhodan é uma pessoa bastante
conhecida, como sabem, foi o primeiro homem da Força
Espacial que contornou a Lua.
Pounder fez outra pausa. Com grande satisfação
registrou o barulhento e exaltado vozerio que seguiu suas
palavras. Alguém, aos berros, pediu silêncio. A calma
voltou a reinar no recinto.
— Muito obrigado — disse o general. — Os
senhores estavam um pouco agitados. Peço-lhes que não
formulem perguntas. O oficial encarregado das
informações tratará disso logo após o lançamento. Meu
tempo é muito curto de modo que devemos aproveitá-lo o
máximo possível. A Stardust será tripulada por uma
equipe de quatro homens rigorosamente selecionados.
Além do major Rhodan, participam da expedição o
capitão Reginald Bell, o capitão Clark G. Fletcher e o
tenente-médico Eric Manoli. Um grupo de pessoas
altamente especializadas tanto no terreno militar quanto
no científico. Cada um deles é possuidor de pelo menos
duas especializações distintas. Uma tripulação cujos
membros se completam com uma perfeição que poucas
vezes é alcançada. Os senhores receberão, depois,
fotografias e dados adicionais sobre eles.
Ao que parecia, o general Pounder não estava
disposto a brindar o auditório, que se mantinha cativo às
suas palavras, com um discurso mais prolongado. Então,
silenciando as vozes que começavam a se levantar, ao
mesmo tempo em que olhava para o relógio, exclamou:
— Por obséquio, cavalheiros, as perguntas que estão
formulando são em vão. Tudo o que lhes posso fornecer
são dados genéricos. A Stardust está preparada para uma
permanência de quatro semanas na Lua. O programa de
exploração a ser cumprido pelos tripulantes está
perfeitamente determinado. Depois da alunissagem bem
sucedida de naves não tripuladas, resolvemos assumir o
risco de enviar uma expedição de quatro homens à Lua e,
queira Deus, não cometeremos qualquer equívoco. Como
os senhores sabem, a partida da Terra consome uma
quantidade enorme de energia, ainda mais que o último
estágio da nave terá que descer na Lua e voltar com os
seus próprios recursos, o que não seria possível com os
engenhos convencionais de propulsão, ainda mais numa
nave de apenas três estágios de dimensões relativamente
reduzidas.
— Queremos dados técnicos! — gritou alguém,
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exaltado.
— Serão fornecidos — resmungou o general em
resposta. — O comprimento total da nave é de 91,6
metros. O primeiro estágio tem 36,5 metros; o segundo,
24,7 e o terceiro, que constitui o módulo que descerá na
Lua, 30,4. O peso máximo de decolagem, com os tanques
de combustível completos e a carga útil, são de 6.850
toneladas, sendo a carga útil de 64,2 toneladas. Assim
mesmo, o módulo lunar não parece muito maior que a
maioria das naves de transporte. Isto acontece porque só o
primeiro estágio é dotado de propelentes químicos. O
segundo e o terceiro estágios conterão os primeiros
mecanismos de propulsão nuclear.
Esta declaração foi à segunda bomba de Pounder.
Ele a soltara de surpresa. Impassível, prosseguiu:
— O primeiro estágio usará como combustível, a
melhor composição química de que dispomos para esse
fim: o N-trietil-borazan, cujo elemento combustível é o
hidrogênio-boro. O oxigênio é fornecido pelo tradicional
ácido nítrico, que desencadeia a reação de autoignição
quando misturado na proporção de 1 para 4,9. A potência
de empuxo é superior em 180% à da velha hidrazina, em
idênticas condições estequiométricas. Os reatores do
primeiro estágio são desligados a uma velocidade final de
10.115 quilômetros por hora e a uma altitude de 88
quilômetros. Nesse ponto, esse estágio se desprende. O
segundo estágio já está equipado com os novos
propulsores nucleares, cujo reator funciona a uma
temperatura de 3.920 graus centígrados utilizando ligas
especiais obtidas por condensação molecular. Os novos
micros reatores foram instalados em condições bastante
favoráveis. Funcionam à base de plutônio. A energia
puramente térmica por eles gerada é transmitida para as
câmaras de compensação térmica ou de expansão, através
de um elemento ativo intermediário. Como elemento de
transmissão das radiações, utilizamos o para hidrogênio
líquido em estado de pureza quase absoluta, que é
aquecido e eliminado pelos propulsores. Depois que
conseguimos eliminar as perdas através da evaporação, o
hidrogênio líquido passou a ser excelente elemento
transmissor de radiação. Tivemos que solucionar
problemas bastante difíceis, especialmente aqueles
ligados ao ponto de ebulição extremamente baixo do
hidrogênio líquido, que começa a ferver a uma
temperatura de 252,78 graus centígrados abaixo de zero.
O mecanismo de propulsão nuclear funciona a uma
velocidade de escapamento de 10.102 metros por
segundo, velocidade que, em hipótese alguma, poderia ser
atingida através de uma reação química. Posteriormente,
lhes serão fornecidos outros dados a respeito.
“A Stardust será lançada às três horas e dois
minutos. Vai descer junto à cratera Newcomb, perto do
pólo sul lunar. Estamos interessados em descobertas
relativas à face oculta da Lua, mas, devido às limitações
da comunicação pelo rádio, deveremos manter um homem
na face visível. Como é do conhecimento de todos; as
ondas de rádio se propagam em linha reta. Os tripulantes
farão, também, extensos passeios no solo lunar com um
novo tipo de veículo exploratório. Por ora, isso é tudo,
senhores. Transmiti-lhes todas as informações essenciais.
Outros pormenores detalhados, inclusive técnicos lhes
serão fornecidos pelo oficial encarregado pelo setor.”
À uma hora em ponto, o Dr. Fleet encontrava-se
diante dos quatro homens adormecidos. Estavam
descansando, havia quatorze horas, sob o efeito da
psiconarcotina.
O Dr. Fleet hesitou por alguns segundos antes da
aplicação do elemento neutralizador dos efeitos narcóticos
do soporífero. Teve um indefinível sentimento de
compaixão. Com o despertar, retornariam os
pensamentos, o espírito voltaria à lucidez e tudo aquilo,
que com tanto esforço se procurou afastar dos quatro
homens, voltaria a assaltá-los.
Um tripulante nervoso, sonolento, física e
psiquicamente esgotado era um parceiro pouco adequado
às máquinas de calcular insensíveis e aos mecanismos
solicitados até o limite extremo da sua capacidade. Era
indispensável que o espírito humano se mantivesse lúcido,
pois só a ele caberia, em última instância, a decisão.
Evidentemente, ainda seriam realizados outros
exames médicos de rotina, que demandariam cerca de
uma hora. Outra hora seria despendida pelos engenheiros
encarregados do equipamento. Os homens subiriam a
bordo da nave dez minutos antes da partida. E ficariam
deitadas em suas macias camas metálicas, abstendo-se de
qualquer esforço mental.
Com a partida da espaçonave, o período de repouso
chegaria ao fim. Dali em diante, teria início uma luta
encarniçada que forçaria o corpo e a mente até o extremo
da resistência. Os homens enfrentariam um verdadeiro
martírio no ventre de um monstro furioso feito de aço-
molibdênio e fibras sintéticas.
As quatro camas baixas, com seus colchões de
espuma que respiravam ativamente através de poros,
estavam cercadas de uma luminosidade suave e
acariciante. Parecia ser o máximo de conforto dispensado
a homens que dali a pouco teriam que suportar tremendas
provações.
O major Perry Rhodan, ás da Força Espacial, abriu
os olhos. Praticamente sem a menor transição, passou do
sono para um estado de perfeita lucidez.
— Cuidou de mim em primeiro lugar? — perguntou.
Parecia antes uma constatação que uma indagação. Com
grande satisfação o Dr. Fleet registrou a reação lúcida do
comandante. Não havia dúvida, Rhodan estava de volta.
— Exatamente como tínhamos planejado —
confirmou com voz abafada.
Rhodan ergueu-se num gesto comedido, respirando
profundamente. Alguém afastou a coberta fina dotada de
ventilação ativa. Ele trajava uma vestimenta ampla, cujo
formato lembrava uma camisa que não exercia qualquer
pressão sobre o corpo. Enquanto levantava, proferiu, em
voz baixa, uma maldição que fez aflorar um sorriso aos
lábios dos homens que o rodeavam. O gesto parecia
provocar uma sensação de alívio nessa situação um tanto
irreal.
— Doutor, se eu tivesse pernas tão lindas como as
suas teria, pelo menos, um motivo para me conformar —
observou Rhodan com um humor seco. Nos seus olhos
havia uma luminosidade faiscante. Em compensação, o
rosto estreito e magro permaneceu impassível.
Um ronco cavernoso fê-lo voltar à cabeça. Bastante
interessado, observou o procedimento que faria despertar
seu companheiro dileto, o capitão Clark G. Fletcher que,
como ele, já tinha contornado a Lua. Rhodan ainda não
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sabia como aquele gigante bochechudo de pele delicada
como um bebê e mãos maltratadas como uma faxineira
poderia ser acomodada no espaço exíguo de uma nave
espacial. Com o ronco que faria um mamute ao se
levantar, Fletcher, especialista em astronomia e
matemática e futuro doutor em física, levantou-se.
— Meu filho já chegou? — ressoou sua voz.
Ao que parecia, a partida iminente só lhe despertava
um interesse secundário.
— Então, doutor, cuidou bem de minha esposa?
O Dr. Fleet soltou um suspiro abafado.
— Escute aqui, meu jovem, se o amigo acha que sua
esposa é um milagre anatômico, suponho que está um
pouco enganado. Ainda faltam três meses. Acalme-se, a
natureza não tem pressa.
— Muito bem! — disse o gigante. — Vou sentar e
esperar.
O terceiro membro da tripulação deu mostras do
despertar por meio de um riso baixo e agradável. O
tenente-médico Eric Manoli, também geólogo, era o
homem mais calmo e retraído da tripulação. E,
provavelmente, o dotado de melhor autodomínio.
Cumprimentou os presentes com um gesto e lançou um
rápido olhar ao relógio. Evidentemente, o Doutor Manoli
observava estritamente a lei não escrita dos cosmonautas
que, em termos claros e objetivos, dizia: “Nunca fale na
partida da nave, a não ser que seja absolutamente
necessário; você dormiu para revigorar o corpo e o
espírito; não reduza os efeitos favoráveis do sono com a
ideia de que é necessário encarar imediatamente toda a
seriedade da situação.” Era uma fórmula simples,
consagrada pela experiência.
— Tudo bem, Eric? — indagou Rhodan.
— Tudo bem — confirmou. E, voltando-se para
Fletcher, continuou: — O que há com Bell? Parece que
ele dorme o sono das montanhas?
O capitão Fletcher virou-se na cama. Sua mão direita
deu um estalo no ombro rechonchudo daquele baixote que
revelava uma tendência evidente para a obesidade.
Quem conhecesse bem o capitão Reginald Bell iria
compará-lo a uma elástica bola de borracha. A gordura
que apresentava era um meio excelente para iludir os
incautos. A verdade é que, na centrífuga gigante, ele
suportou melhor a força exigida de 18 G — ou seja,
dezoito vezes a aceleração da gravidade — que o Dr.
Manoli, pequeno e ossudo.
— Não amole! — veio o resmungo que parecia sair
de dentro do travesseiro de espuma. Um rosto largo, todo
coberto de sardas saiu de dentro da massa de lençóis. Os
olhos azuis, que pareciam descorados piscaram para
Fletcher: — Estou acordado há uma hora — afirmou Bell,
com a voz indolente. — A dose de soporífero foi muito
fraca para um homem do meu tamanho.
— É claro que foi — concordou Rhodan com toda
seriedade. — Admiro a sua paciência. Você deve ter
respirado bem baixinho para não incomodar os outros.
— Por isso, você vai ser condecorado — disse
Fletcher descendo de sua cama. — Mas, primeiro, são os
pais em perspectiva e os sofredores. Aliás, gostaria de
saber o que ainda falta examinar no nosso organismo.
Subitamente, Fletcher ficou em silêncio, olhando,
embaraçado, para o comandante. Por pouco, ele teria
violado a lei. Rhodan fez que não escutara. E, bocejando,
disse com analisada indiferença:
— Comecemos por ele, doutor, já que ele vai ser pai
logo. É de se supor que nossa circulação esteja em ordem.
Ainda assim, convém deixar as injeções neutralizadoras à
mão.
Perry Rhodan começou a analisar suas próprias
reações. Sentiu uma angústia martirizante no canto mais
recôndito do subconsciente. A tagarelice dos homens nada
mais era senão um ardil psicológico através do qual
pretendiam se acalmar.
Eles sabiam que não deviam falar na partida
iminente. Faziam de conta que aquilo era perfeitamente
normal, uma viagem como todas as anteriores. Mas
Rhodan sabia, e eles também, que cedo as coisas seriam
bem mais sérias do que eles pensavam.
No que dizia respeito à força da inércia, a situação
do homem que era impulsionado por um foguete de
propulsão nuclear era muito diferente daquela que se
experimentava quando do lançamento de uma nave
comum. As pressões eram muito maiores e, maiores
ainda, as que nasciam nas incontroláveis profundezas do
espírito humano. Sentia-se medo. Era natural e ninguém
jamais negou isso. Apenas, esses homens foram treinados,
também, para controlar o medo e não se deixar dominar
por ele, acontecesse o que acontecesse.
Rhodan observou, disfarçadamente, os homens de
sua tripulação. Todos pareciam estar bem. Talvez Fletcher
estivesse um pouco inquieto. Pensava demais no filho que
estava por nascer. Se fosse por ele, desta vez Fletcher
teria ficado em casa. Todavia, não era aconselhável
desfalcar um grupo, cujos membros já se haviam
adaptado tão perfeitamente uns aos outros. Um novo
elemento admitido em cima da hora não se ajustaria bem
ao conjunto. Por isso, Rhodan conformou-se com o fato
consumado. De resto, não encontrou qualquer outro fator
negativo.
9
II
Os assentos-leitos eram obras-primas de engenharia.
Dotados de controle hidropneumáticos e controladores de
nível que adaptavam o equilíbrio à mais leve mudança de
peso, eram o máximo que se podia conceber em termos de
conforto.
Desde as primeiras naves espaciais que se fazia
questão, absoluta, de que os tripulantes se acomodassem
sobre leitos especiais, enquanto estivessem usando os
pesados trajes espaciais. As normas de segurança
obrigavam os tripulantes a usar, inclusive, os capacetes
pressurizados durante o lançamento.
É evidente que pequenas lesões ocorriam por vezes,
como resultado das tremendas pressões causadas pela
aceleração. O caso mais trágico e lamentável ocorreu
quando da construção da primeira estação espacial. Um
capacete mal ajustado provocou fratura da base do crânio
de um dos tripulantes quando a aceleração chegou a
Perry Rhodan nunca usara o traje espacial durante a
partida e este privilégio especial ele estendera aos demais
membros de sua tripulação. Os técnicos, porém, achavam
que isso era um risco desnecessário. A mais leve ruptura
da parede externa da nave provocaria uma descompressão
explosiva, isto é, uma violenta perda de pressão. E todos
sabiam com que facilidade o sangue humano tendia, numa
situação dessas, a entrar em ebulição.
Acontece que Rhodan sempre tivera uma boa
estrela. As naves que ele tripulara nunca haviam sido
atingidas por meteoros e nem sofreram qualquer dano em
virtude das tremendas forças desencadeadas por ocasião
da decolagem.
Os quatro homens estavam estendidos nos leitos,
trajando seus uniformes azuis. Os pesados e
desconfortáveis trajes espaciais estavam pendurados em
suportes, colocados ao alcance da mão. Com isso, Rhodan
livraria seus companheiros de uma provocação
martirizante, evitando, também, pequenas contusões e
escoriações que poderiam vir a ser dolorosas e, o que é
pior, um problema a mais.
A última verificação geral havia sido concluída.
Bem abaixo deles, a mais de oitenta metros, os técnicos
iam se afastando. Acabavam de verificar a regulagem dos
estabilizadores do primeiro estágio.
O capitão Bell, especialista em eletrônica e em
motores de propulsão nuclear, precisara de mais algum
tempo para a verificação dos instrumentos que lhe
estavam afetos, enquanto que Rhodan já terminara de
checar o mecanismo de autoignição e o sistema de direção
por controle remoto.
Fletcher e o Dr. Manoli, que no momento nada
tinham a fazer, estavam deitados atrás dos dois assentos
principais. A cabine era muito apertada. Estava rodeada
de inúmeros feixes de cabos, tubulações plásticas e
painéis de instrumentos. Logo abaixo da sala de comando.
Havia uma minúscula sala para repouso com uma
minicozinha e instalação sanitária. Não era possível mais
espaço do que o que haviam conseguido. Estes dois
compartimentos ficavam logo abaixo do nariz do foguete.
Abaixo da cabine de comando e da de repouso,
vinha o depósito de carga útil, no qual se guardava as
provisões. O espaço abaixo do piso do depósito era região
proibida para os tripulantes. Lá, ficavam os tanques
isolados que continham hidrogênio líquido. Logo abaixo,
estavam as instalações de bombeamento e os geradores de
força. A espessa parede construída com uma liga especial
indicava o fim da zona de segurança. Atrás dela abrigava-
se o reator de plutônio, trabalhando num ritmo
vertiginoso, e as monstruosas câmaras de combustão com
seus condutos térmicos e válvulas de pressão.
A Stardust possuía um único reator principal e
quatro reatores menores que pertenciam ao mecanismo de
direção. A capacidade de empuxo do mecanismo de
propulsão chegava a 1.120 toneladas a uma velocidade de
radiação de 10.102 metros por segundo.
O ponteiro de minutos do relógio saltou para o
mecanismo seguinte. Eram três horas e um minuto.
Faltavam, pois, sessenta segundos para o lançamento.
Rhodan voltou a cabeça. O movimento tornou-se um
pouco difícil uma vez que ele estava literalmente
afundado na camada de espuma de borracha que revestia
os assentos-leitos.
— Tudo bem com vocês? — perguntou.
A resposta resumiu-se a um sorriso. Todos ouviam a
voz monótona do encarregado pela contagem regressiva.
O último minuto havia chegado. E, embora todos eles já
tivessem inúmeras vezes ironizados aquele paulificante
desfilar de números, desta vez até isso tinha mudado. A
lembrança do reator atômico logo abaixo deles era como
um pesadelo.
— ...dezoito, dezessete, dezesseis, quinze...
Rhodan aproximou o microfone dos lábios.
— Mensagem final da Stardust à Central —
irrompeu sua voz pelos alto-falantes. Era ouvida em toda
parte, inclusive no abrigo isolado para a imprensa. —
Tudo bem a bordo. Voltaremos a chamar após a ejeção do
primeiro estágio. Câmbio final.
— ...três, dois, um, zero, sequencia de ignição
iniciada.
Era a mesma coisa de sempre. Eles sabiam que,
apesar de todo o cuidado concernente ao isolamento
acústico, o corpo do foguete constituía-se em um
excelente corpo de ressonância. E nem mesmo a divisão
por estágios podia alterar isso.
Ouviram o borbulhar e o chiado das turbobombas
instaladas embaixo, no interior do primeiro estágio.
Depois, teve início o ribombar, ainda hesitante, da pré-
ignição, seguido imediatamente pelo barulho infernal das
substâncias químicas que reagiam entre si. O N-trietil-
borazan, que servia de combustível, misturou-se com o
ácido nítrico que desprendia o oxigênio. O processo
químico teve início, com monstruosa potência nas 42
câmaras de combustão do primeiro estágio.
As línguas de fogo que reluziam numa
incandescência branca, romperam a escuridão da noite. O
uivo da onda de compressão desencadeado pelo processo
de ignição tomou conta do espaço até se perder no
trovejar ensurdecedor do gigantesco mecanismo de
propulsão.
A Stardust ergueu-se lentamente. À ascensão
tranquila, seguiu-se uma série de movimentos laterais
inquietantes no terço superior da nave. Era o instante mais
crítico do lançamento. Travava-se, naquele segundo, a
luta entre os dispositivos de estabilização e o mecanismo
de propulsão que parecia querer desequilibrar o
gigantesco foguete que mal iniciara sua arrancada rumo
10
ao espaço. Mas os dados fornecidos pelo computador de
bordo indicavam que a perigosa inclinação já havia sido
corrigida.
As exclamações de entusiasmo dos repórteres
submergiram no barulho ensurdecedor. Parecia o fim do
mundo. Era um barulho enorme e indescritível que só
poderia ser superado pelo produzido pela explosão de um
artefato nuclear. Nem mesmo no interior dos abrigos era
possível compreender as palavras proferidas. Quem não
usasse isoladores no ouvido, via-se condenado
temporariamente a uma surdez absoluta. Os lábios se
moviam e as mãos transmitiam sinais breves, mas, não se
ouvia uma única palavra. E os gestos pareciam revelar um
esforço intenso e uma grande tensão nervosa.
Afinal, a nave começou a ganhar velocidade e
iniciou sua trajetória, como se estivesse ávida para entrar
no seu elemento. O ruído parecia aumentar aos poucos. A
torrente ígnea que escapava das câmaras de combustão
chicoteava a plataforma com tremenda fúria que o céu
tornou-se de um rubro sanguíneo. Instantes depois, em
perfeito equilíbrio, o gigante subia verticalmente até que a
esteira luminosa que o seguia fosse vista como um débil
ponto de luz que aos poucos desaparecia no céu estrelado.
Ouviu-se um estalo vindo dos alto-falantes e o rosto
do general Pounder surgiu na tela.
— A nave espacial Stardust foi lançada exatamente
às três horas e dois minutos, conforme as previsões —
comunicou com voz calma. — Não houve qualquer
ocorrência extraordinária, tudo correu bem. Os senhores
poderão ouvir os comunicados radiofônicos dos pilotos.
Falta pouco para a separação do primeiro estágio. A
aceleração máxima final é de 9,3G. Dentro de três
minutos aproximadamente a nave Stardust deverá
penetrar no campo alcançado pela estação orbital. Dali em
diante os senhores voltarão a vê-la nitidamente, podendo
acompanhar a separação do segundo estágio. Quero
salientar mais uma vez que só deverão deixar o campo de
Nevada Fields depois que a Stardust tiver pousado na
Lua. Estamos guardando uma surpresa. É só.
O general Pounder concluiu com um sorriso.
Vinda do sistema de alto-falantes ressoou outra voz,
esta, de um dos técnicos.
— Cinco segundos para a separação do número um.
Funcionamento perfeito, nenhum desvio de rumo... dois...
um... contato!
O dispositivo eletrônico realizou a operação com
incrível precisão. Não houve movimento de mãos ou de
um dedo sequer. Apenas olhos febris que espreitavam
nervosos na sala de comando e, contrastando com esta
ansiedade, a estoica paciência dos repórteres.
Nos alto-falantes, soou o sinal acústico que indicava
o final da operação. E, de repente, surgiram dois corpos
distintos na tela do radar. Neste instante, o sistema de
aterrissagem por controle remoto assumiu o comando do
primeiro estágio, trazendo-o de volta ao chão.
A tripulação dispunha de um intervalo de oito
segundos. O computador de bordo já preparava a ignição
do segundo estágio.
A voz de Rhodan soou tranquila.
— Rhodan falando. Nenhum desvio de curso.
Indicações normais, vibrações dentro dos limites normais.
Tripulação pronta para ignição do segundo estágio.
Câmbio final.
Era tudo o que tinha a dizer e o bastante para os
cientistas e supervisores da estação situada na Terra.
Prosseguindo sem qualquer força propulsora, a Stardust
precipitava-se em direção ao vazio do espaço. Rhodan
lançou um rápido olhar ao redor de si. Tudo parecia em
ordem para o capitão Bell; Fletcher e Manoli também
tinham suportado muito bem a força de 9,3G.
Agora era a vez do mecanismo de propulsão atômica
do segundo estágio. Rhodan sentiu a palma das mãos
úmidas, mas seus sentidos experimentados não
registraram qualquer ruído anormal. Reinava o mais
absoluto silêncio.
Subitamente veio um arranque violento
acompanhado de um uivo estridente que parecia invadir
todas as moléculas do material de que era feito a nave.
Mais uma vez, o corpo do foguete funcionou como
câmara de ressonância.
Depois de alguns instantes, a aceleração subiu para 8
G. Com isso, teve início a tremenda sobrecarga imposta
ao organismo dos tripulantes mal refeitos do primeiro
esforço.
Rhodan sentiu o efeito do poderoso medicamento
destinado a regular a circulação. Por enquanto o
organismo estava suportando a provação, apenas a
respiração transformara-se em verdadeiro martírio.
Incapaz de mover um dedo fitou, com os olhos
embaçados, os painéis de controle situados em sua frente.
Os sete segundos decorridos até o momento em que a
tremenda pressão fosse reduzida ao valor normal de 1 G
pareceram uma eternidade. Tratava-se de uma pausa para
recuperação, fixada com base em cálculos exatos, nos
quais se considerava a enorme potência do sistema de
propulsão.
Com a voz rouca, Rhodan gritou um tudo bem! E a
resposta que se seguiu foi, para ele, ininteligível. Após
isso, veio o segundo intervalo de aceleração do estágio
número dois. Ainda não estava esgotada a reserva de
combustível.
Três segundos depois da segunda ignição foi
ultrapassada a velocidade de deslocamento da Terra. Os
indicadores dos velocímetros indicavam 11,5 quilômetros
por segundo.
Os reatores do segundo estágio se extinguiram a
uma velocidade de 20 quilômetros por segundo.
Novamente a separação se realizou de modo súbito, sem a
menor transição de tal modo que a ausência de gravidade
que se seguiu produziu o efeito de uma tremenda
martelada. Os tripulantes sentiram-se impelidos para
cima. Uma força selvagem parecia comprimir seus corpos
contra os cintos que os prendiam nos leitos.
Por alguns instantes, Rhodan perdeu a consciência.
Quando voltou a abrir os olhos, viu, através da
vermelhidão que parecia envolvê-lo, que já se
encontravam no espaço exterior.
A correção de rumo já tinha sido levada a efeito.
Bem atrás deles, o segundo estágio, que já podia ser visto
nas telas, estava sendo conduzido para o curso de retorno
pelo controle de Terra. A essa altura, a Stardust já
ultrapassara a órbita da estação espacial. Prosseguindo em
velocidade constante, encontrava-se a 3.250 quilômetros
acima da superfície da Terra.
Agora dispunham de alguns minutos de descanso.
Teoricamente a velocidade da nave, no momento, devia
11
ser suficiente para liberá-la em definitivo da ação da
gravidade terrestre. Ainda segundo a teoria, estaria em
condição de atingir qualquer ponto do universo
independentemente de qualquer propulsão.
Todavia, um enorme abismo separa a teoria da
prática. A gravidade da Terra tinha sido superada, mas a
Terra ainda se fazia sentir, influenciando o voo da
espaçonave. Além disso, o simples prosseguimento da
viagem não bastava. Ainda tinham que ser realizadas
inúmeras manobras, para as quais a essa altura não se
dispunha de dados precisos. Os desvios de rota, por
ínfimos que fossem, tinham sido calculados e corrigidos.
E também era necessário corrigir diferenças ainda
menores nos valores-limites teóricos da velocidade, que,
ultimamente, tinham causado dificuldades por ocasião das
manobras de aproximação.
O leito de Rhodan dobrou-se, formando uma macia
poltrona. O painel de instrumentos acompanhou o
movimento, ficando, agora, em frente a ele, e não acima.
Foi uma sensação de alívio.
Reginald Bell recuperou-se com expressões menos
sociáveis. O capitão Fletcher fez ouvir uma tosse áspera e
seca. Nos cantos da sua boca havia sangue coagulado.
— Foi duro, muito mais duro que das outras vezes
— disse Rhodan com voz grave. — Nos últimos
segundos, levaram-nos a 15,4 G. Com isso, atravessamos
o perigoso cinturão de radiação. O que houve com você,
Fletcher?
Fletcher estava pálido. Seu rosto bochechudo
perdera as cores sadias. Apenas o brilho do seu cabelo
continuava inalterado. E, torcendo os lábios num gesto
triste, gemeu:
— É o diabo. Seria bom que eu descesse antes de
fazer mais tolices. Com 7 G ainda estava com a ponta da
língua entre os dentes. Foi uma estupidez. A primeira
coisa que se ensina a qualquer aluno da academia é que
deve abster-se de gestos dessa espécie. Logo eu...
Ao concluir, encolheu os ombros. Seu rosto
contorcia-se de dor. Rhodan lançou-lhe um olhar
perscrutador. E disfarçou a expressão indagadora com um
sorriso frio.
As solas magnéticas das botas de Bell estavam na
chapa metálica do piso. Cambaleando, lutava para
equilibrar-se. Enquanto o sistema de propulsão da
Stardust estivesse parado, não tinham peso. Sem dizer
uma palavra, venceu os poucos passos que o separavam
de Manoli, erguendo e voltando a colocar no piso as solas
magnéticas com movimentos pesados. Depois de segurar
ligeiramente o pulso de Manoli, fez um sinal de alívio.
— Está bem — disse laconicamente. — Logo estará
de volta. O pulso trabalha que nem um mecanismo de
relógio. Mostre a língua, Fletcher. Vamos logo! Abra a
boca!
Um filete de sangue escorreu-lhe por entre os lábios.
Era problema para o Dr. Manoli.
O comandante girou para a direita o regulador de
volume e os sons confusos do rádio tornaram-se audíveis.
Enquanto isso, o Dr. Manoli se recuperava. Rhodan ouviu
o leve chiado do mecanismo hidropneumático. O leito de
Manoli transformou-se em poltrona e alguns instantes
depois, ele estava de pé ao lado de Fletcher.
— Que sorte! — disse o médico. — Não chegou a
cortar a língua, foi apenas um ferimento quase superficial.
Preciso de uns dez minutos. É possível?
— É. Pode começar doutor Bell, registre na fita
magnética os últimos valores do computador central.
Quero um cálculo de controle. Vamos adiar as etapas
seguintes por doze minutos. Avise-me logo que terminar.
Poderemos compensar a perda de tempo com quatro
segundos de potência total.
Alguns instantes depois, o rosto de Rhodan apareceu
na tela da estação da Terra. Pounder, que estava de pé
diante do microfone, nervoso e inquieto, respirou
suavizado.
— Stardust para Nevada Fields — soou a voz forte e
clara na sala da Central de Comando. — O capitão
Fletcher sofreu um ferimento leve. Mordeu a língua.
Manoli está estancando o sangue. O ferimento poderá ser
tratado com extrato de plasma. Preciso de um adiamento
de doze minutos. Câmbio.
Pounder ergueu-se. Seu olhar lançado em direção ao
professor Lehmann disse tudo. O cientista confirmou com
ligeiro aceno de cabeça. Era perfeitamente possível.
Havia uma margem de segurança prevenindo contra
incidentes inesperados como esse.
O computador começou a trabalhar. Alguns
segundos depois, os valores corrigidos estavam
disponíveis. Foram transmitidos automaticamente para a
Stardust por meio de uma antena direcional especial. O
painel iluminou-se diante do capitão Bell. As calculadoras
automáticas da nave, pequenas, mas eficientes, acusaram
o recebimento. Para todos os efeitos, num instante foram
inutilizados os resultados de uma série enorme de
cálculos. Novas cifras cruzaram o espaço e, em poucos
segundos, um plano de voo foi inutilizado e convertido
em valores inteiramente novos.
Os dedos de Bell martelaram o teclado para registrar
os dados recebidos. Rhodan transmitiu as informações de
rotina relativas a radiações, resultados das mediações,
temperatura, pressão da cabine e estado de saúde dos
tripulantes.
Manoli não gastou mais que onze minutos para
colocar Fletcher em condições. Os pequenos pontos
estavam praticamente invisíveis.
Fletcher olhou encabulado, para os companheiros.
— Da próxima vez, use o dedo, neném — disse
Rhodan. — Ele aguenta mais que a língua.
Os encostos das poltronas voltaram a inclinar-se
para trás. Logo após teve início a música assombrosa
daquele mecanismo, cujo funcionamento ainda encarava
com receio e expectativa.
Era o mecanismo de propulsão nuclear que, no
segundo estágio, revelara um funcionamento excelente
em idênticas condições.
Voltou-se a ouvir o ronco selvagem e sentiu-se o
solavanco pesado. A aceleração, porém, só subiu para
2,1G. Isso não causou qualquer dificuldade para Rhodan e
sua tripulação.
Seguida por um raio chamejante de hidrogênio
aquecido a uma temperatura elevadíssima, a nave foi
impulsionada numa velocidade vertiginosa para as
profundezas do espaço.
Uma vez superados totalmente os problemas da
decolagem, surgiram às dificuldades mais sérias de uma
viagem espacial.
Rhodan ouviu o barulho retumbante, agora
12
uniforme, emitido pelo mecanismo de propulsão atômica.
A chama branco-azulada, suspensa no espaço vazio,
seguia de perto a nave. Resultava da combustão do
hidrogênio líquido, submetido a um processo de expansão
forçada na câmara aquecida pela energia atômica.
O abastecimento do reator seria suficiente para mais
de um ano. Todavia, era necessário ter cautela com o
elemento irradiante. A reserva dele era limitada. Uma vez
esgotados os tanques, não havia mais nenhum elemento
que pudesse ser expelido da câmara de combustão. Dessa
forma, até mesmo o mais eficiente dos reatores se tornaria
inútil.
Respirando pesadamente no seu leito, enquanto
transmitia a intervalos regulares seus breves comunicados
para os receptores da estação espacial, Rhodan pensava
nesse mecanismo propulsor, maravilhoso, mas ainda
primitivo.
Por enquanto, o empuxo só podia ser obtido
indiretamente através do elemento intermediário formador
do jato de propulsão. Será que um dia o homem
conseguiria construir um mecanismo propulsor atômico
puro? Seria um motor superpotente, cujo limite de
velocidade ficaria situado perto da velocidade da luz.
Com grande esforço, Rhodan torceu os lábios. Sentia
vontade de rir. Ao que parecia, Reginald Bell entretinha
pensamentos semelhantes. Subitamente, gemeu:
— Juro que para os heróis de romance tudo é mais
simples. Eles não têm o problema da compressão
provocada pelo impulso da nave, e nunca mordem a
própria língua. Como vai, Fletcher? Será que você
aguenta? Vai demorar mais alguns minutos. Daqui a cinco
segundos subimos para 8,4G. Tudo bem?
— Tudo bem — fungou o gigante pelo
intercomunicador. Nos fones de ouvido percebia-se a sua
respiração ruidosa. — Tudo bem. Santo Deus, estamos a
caminho. Um dia contarei a meu filho. Seus olhos serão
redondos e brilhantes que nem bolinhas de mármore
polido.
Fletcher ficou calado. Sentia um cansaço profundo.
Só mesmo uma pessoa de organismo resistente, bem
treinada, conseguiria falar claramente a um nível de
compressão ligeiramente superior a 2 G. E, embora todos
os tripulantes fossem capazes disso, o Dr. Manoli abriu
mão da oportunidade. Em compensação, deu mostras dos
seus sentimentos através da sombra de um sorriso suave.
Estavam a caminho. A decolagem ficara para trás. O
que estava por vir dependeria da capacidade de raciocínio
e de reações extremamente rápidas. As forças de
compressão, horríveis, mas inevitáveis, estavam
praticamente superadas. Haviam deixado para trás a
Terra, aquela gigantesca bola verde-azulada que se
afastava lentamente. Podiam sentir-se superiores à vida,
ligada a Terra; no momento essa sensação ainda os
dominava.
Só a mente cristalina de Rhodan não acompanhou
esse sentimento. Ninguém percebeu o brilho desconfiado
dos seus olhos. Ainda não tinham chegado. Ainda não
tinham pousado na Lua. E ainda não estavam preparados
para a volta à Terra. Desta vez, o programa não previa
apenas um contorno relativamente seguro da Lua, mas um
pouso extremamente difícil no satélite da Terra.
III
Até Perry Rhodan mostrou-se cauteloso. Logo após
os pesados intervalos de compressão resultante da
manobra de desaceleração mandou que os membros da
tripulação colocassem os trajes espaciais. A essa altura, a
Stardust já entrara em órbita lunar preestabelecida a uma
velocidade de cerca de 3,5 quilômetros por segundo, que
poderia ser facilmente neutralizada.
Os homens obedeceram em silêncio. Enquanto o
controle remoto exercido pelo computador da estação
espacial impelia a espaçonave para órbitas cada vez mais
reduzidas em torno da Lua, os quatro colocaram a
vestimenta que, apesar de leve, apresentava um aspecto
monstruoso. Eram trajes de proteção supermodernos.
Hermeticamente fechados, resistiam perfeitamente a
pressões imensas. Dispunha de suprimento próprio de
energia, controle de temperatura, abastecimento de
oxigênio e capacetes circulares feitos de plástico
transparente, cuja resistência igualava a do aço.
Rhodan chegara a ordenar que os capacetes
transparentes fossem fechados. Só as válvulas situadas do
lado esquerdo e direito do círculo de engate permaneciam
abertas, para que os homens pudessem continuar a
respirar o ar da cabine. O dispositivo automático
embutido fecharia essas válvulas tão logo a pressão
exterior baixasse além do normal. Com isso, Rhodan
fizera tudo que estava ao seu alcance para reduzir ao
mínimo as possibilidades de um acidente.
A Stardust prosseguia seu caminho com a popa para
a frente de modo que os reatores de propulsão pudessem
funcionar em sentido contrário ao seu deslocamento. A
trajetória estendia-se de um polo a outro. Dessa forma, a
nave ficava fora do alcance do controle remoto toda vez
que mergulhava atrás da Lua, penetrando na área
inatingível para os sinais de rádio emitidos pela estação
espacial. Nessas oportunidades, a direção ficava a cargo
do dispositivo automático de bordo. Depois de percorridas
cinco órbitas elípticas completas, a desaceleração seria
suficiente para permitir o pouso na superfície lunar.
A quinta órbita fora iniciada. O Sol se erguera do
lado visível do satélite, dando início a um dos longos dias
lunares. Sessenta por cento do hemisfério visível já
estavam mergulhados na escuridão.
Somente os aparelhos de radar proporcionavam um
quadro nítido da superfície lunar. Esta, pouco se
diferençava da superfície visível, fato já perfeitamente
conhecido. Nesse ponto, a Lua já não se constituía um
mistério.
Depois de algum tempo, voltaram a emergir da
sombra lunar. A altitude em que se encontravam não
ultrapassava noventa quilômetros e a velocidade fora
reduzida para 2,3 quilômetros por segundo.
O piloto automático emitiu um silvo agudo. A nave
estava sendo atingida novamente pelos poderosos raios
direcionais da estação espacial. O computador central da
Stardust recebeu novas instruções e o capitão Bell
estabeleceu contato para a interpretação.
Na tela, a nave era representada por um ponto verde.
Deslizava exatamente pela linha previamente traçada, que
correspondia à trajetória de aproximação. O final da linha
situava-se junto ao polo sul lunar, perto da cratera
Newcomb. A área de alunissagem estava representada por
13
um círculo vermelho. Era um terreno relativamente plano,
rochoso, que devia proporcionar apoio firme à nave.
Os tripulantes podiam ouvir claramente a voz do
chefe do programa com a mesma clareza com que ouviam
o piloto automático registrar os impulsos direcionais.
Havia pausas de alguns segundos entre um comunicado e
outro devido a grande distância que separava a nave da
Central de Controle.
A Stardust chegou à margem ocidental do Mare
Nubium em velocidade ainda elevada. Imediatamente à
frente, estava a cratera Walter. Estavam perto da área de
pouso.
— Controle de terra. General Pounder falando —
ouviu-se a voz pelo alto-falante em meio a algumas
interferências. — A nave atingirá o ponto de inversão do
curso dentro de 72 segundos. Na emissão do impulso será
considerada a distância a ser vencida pelas ondas de rádio.
Por ora desligaremos para evitar perturbações. A imagem
da nave na tela de radar está bem nítida. Recepção boa,
quase sem interferências. Piloto automático em
funcionamento.
Vamos colocá-los no solo lunar são e salvos.
Comecem a estender os suportes de alunissagem. Peço
comunicar a execução desta instrução. Entraremos em
contato após o pouso. Boa sorte. Câmbio final.
Rhodan empurrou uma pequena alavanca. Os quatro
suportes telescópicos da nave estenderam-se, separando-
se do corpo da nave num ângulo de quase quarenta e
cinco graus. O mecanismo hidráulico afastava, cada vez
mais, as longas pernas e nas extremidades inferiores
destas, desdobraram-se placas, cuja superfície de contato
era de quatro metros quadrados.
Pouco depois, a Stardust atingiu o ponto de pouso,
seguindo, ainda, a linha de deslocamento traçada no
mapa. Alguns desvios ligeiros tinham sido prontamente
corrigidos.
— Tudo pronto. Aguardamos contato — disse Bell
com voz arrastada. Era o momento decisivo, do qual
dependia o sucesso do pouso.
Subitamente, sem qualquer outro preparativo, ouviu-
se o ruído estridente do piloto automático. O impulso
havia chegado com exatidão infinitesimal.
O mecanismo de propulsão do foguete emitiu um
ruído ensurdecedor. Era um empuxo de desaceleração
breve, mas extremamente violento, que, com seus 12 G,
eliminou cerca de cinquenta por cento da velocidade da
nave.
Passado o choque e iniciada a pausa para correção
de descida, os homens respiraram fundo, mais refeitos do
novo golpe. No próximo empuxo de frenagem teria que
ser realizada a correção de curso de sessenta graus e, logo
depois, o posicionamento vertical dos reatores de popa em
relação à superfície lunar. Nessa oportunidade, a nave
teria que se encontrar exatamente acima da área de pouso.
Devia descer sobre o jato por ela expelido com valor de
empuxo perfeitamente dosado. A velocidade final da
queda não poderia ultrapassar quatro metros por segundo.
Os dados passavam como relâmpagos pelo cérebro
de Rhodan. Tudo parecera extremamente simples e fácil.
Agora, deitado no interior daquele mecanismo sensível e
frágil, pôde visualizar as imensas dificuldades que ainda
estavam por vir.
A Stardust começou a cair numa trajetória
parabólica que formava um ângulo bem aberto com a
superfície lunar. A gravidade da Lua fazia-se sentir mais
intensamente. Estava na hora de modificar o curso. Os
reatores da câmara de combustão não podiam permanecer
em posição horizontal; tinham que ser dirigidos para
baixo. A nave caía de lado, como uma tábua, e por si só
não poderia efetuar a correção necessária, colocando o
mecanismo de propulsão na posição exata.
— Menos três segundos... dois... um... contato —
exclamou a voz cansada de Bell.
14
SEGUNDA PARTE
A Interferência
I
O contato veio. Os ruídos que o seguiram
irromperam pelos amplificadores como uma torrente de
água. Os silvos extremamente agudos pareciam arrebentar
os ouvidos dos tripulantes sobressaltados. Por uma fração
de segundo, Bell olhou para frente sem nada
compreender. Depois, seu rosto largo contorceu-se numa
careta de pânico.
Rhodan enrijeceu os músculos e permaneceu
absolutamente imóvel. Uma vez superado o tremendo
golpe, ele reagiu com a rapidez do raio. Com um estalo,
sua mão direita ligou a chave reservada para situações de
acidente. As fitas magnetizadas prenderam os homens aos
assentos que se dobraram para trás.
Todos os membros da tripulação ouviram o
estridente sinal de alarme emitido pelo dispositivo
automático. O computador da nave informava de forte
interferência. As lâmpadas que se acendiam
demonstravam que o impulso de inversão de curso,
emitido pela estação de controle da Terra, não havia
chegado à nave. E o computador acusara de imediato, os
graves riscos que a missão corria.
As luzes dos diagramas se acenderam
automaticamente e sem a menor incorreção.
— Desvio — gritou Bell fora de si. — Não chegou
nenhum impulso de ignição. Estamos caindo para além do
ponto de alunissagem. As interferências estão impedindo
a recepção dos impulsos de controle central. São
transmitidos exatamente na nossa frequência! De onde
virão?
Rhodan não perdeu tempo para pensar. A superfície
lunar, iluminada pelo sol nascente, aproximava-se em
velocidade vertiginosa. Rapidamente, ele desligou a chave
geral, interrompendo todos os contatos com a Terra. O
uivo demoníaco dos instrumentos terminou. Cessou
repentinamente, como se nunca tivesse existido. Uma
campainha começou a emitir um som estridente. Uma voz
gravada em fita do dispositivo central de direção faz-se
ouvir:
— Computador eletrônico central assume
procedimentos automáticos para pouso. Cálculos sendo
executados. Completos. Iniciaremos a alunissagem.
Impulso de emergência QQRXQ sendo conduzidos com
intensidade máxima para canal 16. Iniciando alunissagem.
Era o que algum técnico tinha gravado na fita antes
do lançamento. Contudo, a intenção que todos tinham de
pousar, diferia completamente da situação que estava
ocorrendo.
Em um gesto desesperado, tratavam de fazer a nave
descer de qualquer maneira. Naquela altura, já não era
mais possível arremeter e iniciar o caminho de retorno. A
superfície lunar estava muito próxima e a velocidade da
queda voltaria a subir para mais dois quilômetros por
segundo. Nessas condições, a indispensável mudança de
direção teria consumido tempo demais. Tratava-se de um
pouso de emergência que teria que ser realizado fosse
quais fossem as circunstâncias. Pouco importava que
abaixo da popa flamejante se estendesse uma planície ou
se erguesse a encosta de uma cratera de rochas agudas e
paredões íngremes.
O mecanismo de propulsão entrou em
funcionamento. Os dispositivos fizeram a nave girar com
tamanha rapidez que ela assumiu imediatamente a posição
vertical. A proa pontuda apontava para o céu
absolutamente escuro que na Lua, desprovido de
atmosfera, se identificava com o espaço sideral. Alguém
gritou alguma coisa. Ninguém sabia quem.
Rhodan não deu ordens à tripulação. Não faria
nenhum sentido. Numa situação como aquela; nenhum
homem poderia fazer qualquer coisa, nem mesmo ele, que
reagira imediatamente. Os cálculos e as manobras
necessárias só podiam ser feitos pelos computadores. O
cérebro humano não funcionaria com tamanha
velocidade, mais ainda numa situação angustiante como
aquela.
A encosta recortada de uma cratera surgiu na tela
que estava acoplada ao dispositivo que captava as
imagens do exterior da nave. As paredes da cratera
estavam iluminadas pelo jato incandescente expelido pela
câmara de combustão.
Bell gritou alguma coisa. E era de admirar que com
16 G de pressão ainda conseguisse emitir algum som.
Ouviram-se, então, fortes ruídos abafados. Um novo
solavanco afundou-os nas camas pneumáticas. A estrutura
da nave rangeu como se fosse partir ao meio e algumas
conexões e instrumentos se quebraram. Logo, seguiram-se
vibrações e sacudidelas intensas. Mas, antes que as
oscilações da nave cessassem, fez-se um silêncio tão
profundo e repentino que os sentidos puseram-se em
alerta. O barulho feito pelos suportes de alunissagem
também havia cessado e o indicador pendular indicava
que a nave estava em posição vertical. Uma lâmpada
verde, acima de Rhodan, brilhava sem cintilações,
emitindo uma luz tranquila e constante. Em meio ao
silêncio, ouviu-se uma estridente e histérica gargalhada.
— Capitão Fletcher!
Rhodan não falou alto, mas sua voz tinha algo de
cortante. Os sons agudos cessaram. Quando Fletcher se
calou, as linhas duras do rosto de Rhodan se
descontraíram. Nos olhos do comandante surgiu uma
expressão calma.
— Está bem, Fletcher, esqueça!
A lâmpada verde brilhava e por meio dela o
computador central transmitia um sinal silencioso. A nave
estava de pé e, aparentemente, sem maiores avarias.
Bell exibia um sorriso de espanto. Parecia recusar-se
a crer no que acontecia. O Dr. Manoli ficou, como
sempre, calado. Os olhos negros davam vida ao rosto
pálido. Pareciam indagar.
Rhodan causaria, ainda, um choque aos tripulantes.
Naturalmente, eles esperavam alguma observação sobre o
pouso de emergência bem sucedido. Seria um
procedimento óbvio. Qualquer homem normal teria
reagido dessa forma, nem que fosse apenas por meio de
um breve suspiro de alívio. Era de se esperar que surgisse
alguma atitude relacionada com a angústia terrível dos
últimos instantes. Mas Rhodan reagiu de outra forma:
— Fletcher, você vai fazer o favor de verificar
imediatamente a localização da emissora desconhecida
que provocou a interferência. Os dados estão gravados
15
nas fitas magnéticas do computador central. Quero ver se
você é bom mesmo em matemática!
E nada mais disse.
II
O nome do homenzinho vivaz que exibia um rosto
jovial sob a calva enorme era Allan D. Mercant. Era
sempre fácil reconhecê-lo graças à faixa de cabelos que
lhe circundava a cabeça e cujo tom castanho-dourado era
interrompido por algumas mechas grisalhas nas têmporas.
Allan D. Mercant era uma criatura pacata; uma
dessas almas piedosas que retiram minhocas e insetos das
alamedas de um jardim para evitar que sejam pisados.
Mas essa fragilidade aparente era apenas no que dizia
respeito à sua vida íntima. No que concernia ao aspecto
funcional, ele era o homem-forte, a eminência parda do
Conselho Internacional de Defesa, que trabalhava em
estreita colaboração com os organismos de defesa e
serviços secretos do Ocidente. A OTAN supervisionara a
criação do Conselho Internacional de Defesa dando-lhe a
denominação oficial de Agência de Informação e
Segurança. Assim, Mercant estava subordinado
diretamente ao alto-comando da OTAN.
Quando ele entrou no salão de conferências em
companhia de um homem de meia-idade, o ruído abafado
das conversas parou.
O general Pounder, chefe da Força Espacial, fez as
apresentações. Tratava-se de uma reunião secreta que
estava sendo realizada no prédio da Administração
Nacional de Aeronáutica e Espaço — NASA — em
Washington.
Allan D. Mercant não tomou o tempo dos presentes
com rodeios. O rosto juvenil e moreno, encimado pela
testa larga, era amável e muito simpático. Apontou para
uma pilha de jornais que se via numa das extremidades da
mesa.
— Cavalheiros, acho que não há mais necessidade
de conversarmos a respeito da causa destas notícias.
Compreendo general, que lhe tenha sido impossível
manter os repórteres indefinidamente em Nevada Fields.
De qualquer maneira, recebemos um número considerável
de críticas, algumas em termos bastante enérgicos, mas
creio que o coronel Kaats tenha conseguido contornar as
mesmas, solucionando-as a contento.
O homem de meia-idade que estava ao seu lado
confirmou com um aceno de cabeça. O coronel Kaats era
da Polícia Federal e exercia as funções de chefe da
Divisão Especial de Defesa Interna.
— Algumas notícias veiculadas pelos jornais e pela
televisão são bastante inquietantes. Segundo estas fontes,
a Stardust não desapareceu, apenas, mas caiu sobre a
superfície da Lua. Às vezes, as notícias são tão ricas em
pormenores que não podemos deixar de nos perguntar até
onde elas são verdadeiras. As fontes destas informações
nos parecem o ponto de maior importância. Faço estas
considerações apenas para situá-los com maior perfeição
dentro de todo o problema. E posso adiantar que já
começamos a investigar com o maior cuidado.
Mercant olhou pensativo seu relógio, antes de
prosseguir.
— O fato é que a nave Stardust está desaparecida há
mais de vinte e quatro horas. Por enquanto, preferimos
considerar a ideia de simples desaparecimento, o que nos
deixa, ainda, com uma pontinha de esperanças. O ponto
que me interessa é a opinião dos senhores sobre os
editoriais de alguns dos jornais de maior circulação, nos
quais se afirma, clara e expressamente, que teria sido
recebida uma mensagem de socorro procedente da nave
espacial. Teria sido o sinal QQRXQ que, no código da
Força Espacial, designa um ataque, uma perturbação
proposital do controle remoto e a iminência de uma
queda. Caso isto tenha ocorrido, peço que me sejam
fornecidos dados completos.
Allan D. Mercant cumprimentou os presentes com
um gesto amável e sentou-se.
Com um movimento cansado, o rosto marcado por
rugas de preocupação, o general Pounder levantou-se. Sua
voz parecia fraca e era indisfarçável um tom de
desapontamento.
— O senhor tem razão. O sinal QQRXQ designa
esses conceitos. Não sabemos, ainda, como certos
repórteres conseguiram o código. Pedi providências ao
nosso setor de segurança, mas, até agora, não tivemos
qualquer resposta. A recepção do sinal, porém, não tem
nada de misterioso. Algumas das maiores estações de
rastreamento estavam com suas antenas apontadas para o
polo sul lunar e tínhamos pedido, também, o auxílio dos
maiores observatórios do mundo. É bastante viável que
algo tenha transpirado o que, evidentemente, não explica
o conhecimento do código por parte de alguns dos
jornalistas presentes à base. É tudo o que tenho para
informar.
— Esqueçamos, por enquanto, estes fatos.
Gostaríamos de saber o que aconteceu, realmente, com a
nave. Admite a possibilidade de uma interferência
consciente e proposital nas mensagens do controle
central? Pelo que eu soube, por intermédio de peritos no
assunto, isso só seria possível por meio de um emissor
colocado na Lua.
Pounder inclinou a cabeça. Nos seus olhos cintilou
um reflexo de raiva impotente.
— Por mais absurdo que possa parecer, é isso
mesmo. Não há qualquer outra possibilidade. Fizemos,
nas últimas vinte e quatro horas, uma verificação
detalhada e completa de toda a nossa aparelhagem. E
excluímos completamente a eventualidade de uma falha
em nossos equipamentos. Segundo, também, uma análise
acurada dos fatos, chegamos a duas conclusões.
Pounder tirou um lenço e enxugou o suor da testa.
Respirando pesadamente, prosseguiu:
— O major Rhodan pode ter dado um sinal
codificado errôneo, ou então os receptores da nave foram
danificados com a forte interferência. No que diz respeito
ao major Rhodan, achamos impossível que um homem
com as qualificações do major possa ter cometido um erro
tão absurdo. O senhor sabe que ele é considerado o mais
experimentado piloto de provas e cosmonauta de nosso
país. Além disso, os cálculos efetuados provam que no
momento decisivo, o foguete escapou ao controle de terra.
Considerando o ângulo da queda, a gravidade lunar e o
peso da nave, esta deve ter tocado o solo a cerca de
sessenta ou setenta quilômetros da região polar. É
bastante provável que tenha realizado um pouso de
emergência sem maiores danos. Embora não possamos
16
deixar de admitir a possibilidade de ter havido perda total.
Quem sabe?
Os olhos de Mercant, antes límpidos, tornaram-se
sombrios. O coronel Kaats pigarreou discretamente. Os
dados conferiam com aqueles coletados pelo serviço de
defesa.
— Admitamos, general apenas admita; que o
equipamento de bordo tenha sido avariado por força de
uma interferência muito forte. Qual a conclusão que
devemos tirar disso? — disse Mercant, falando devagar.
Pounder pareceu perturbar-se com a pergunta. Seu
rosto pálido tornou-se quase rubro.
— Pelas informações recebidas, senhor, um foguete
da Federação Asiática teria subido ao espaço juntamente
com a Stardust.
Se esta nave atingiu a Lua antes da nossa, e se
pousou no mesmo local previsto para a alunissagem desta
última, pode ter realizado uma interferência bem sucedida
na mesma frequência por nós, utilizada.
— O senhor acha que uma operação como esta
pressupõe conhecimentos muito detalhados por parte
dessa gente? — perguntou Kaats incrédulo.
— É claro que sim! — exclamou Pounder irritado.
— Acho que cabe ao serviço secreto esclarecer este
ponto. Sou especialista em naves espaciais, coronel,
todavia quero ressaltar que uma interferência como a que
foi feita nas nossas emissões só pode ter sido realizada
por um transmissor colocado na Lua, se é que a nave
recebeu um ataque deste tipo. E há bastante razão para se
crer nesta possibilidade. Nós operamos o transmissor mais
potente do mundo. Se alguém tentasse uma interferência
partindo da Terra, ainda assim nossos sinais teriam
chegado à Stardust. Só mesmo um transmissor colocado
na superfície lunar poderia conseguir interferir com
sucesso nas nossas transmissões.
Pounder sentou-se com um movimento brusco.
Parecia esgotado.
Mercant fitou-o sem proferir uma palavra. Estava
com a testa franzida.
— A Defesa Internacional cuidará do caso —
decidiu. — Não demoraremos, a saber, se o comandante
da Stardust cometeu algum engano lamentável ou se
houve interferência de interesses estranhos. Não seria
viável admitir a idéia de, por exemplo, uma falha no
equipamento de bordo da nave?
O professor Lehmann ergueu a cabeça estreita.
Parecia procurar as palavras mais adequadas. Depois,
disse, indignado:
— A Stardust não apresentou qualquer defeito. Seu
mecanismo funcionou perfeitamente. No momento não
posso apresentar os dados que disponho para comprovar o
que digo. Só esperamos que a tripulação entre em contato
conosco. Se os homens chegaram ao solo lunar, sãos e
salvos, Rhodan encontrará um meio. Os receptores da
nossa estação espacial estão ligados. Caso Rhodan
consiga chegar à face visível, poderá transmitir sinais de
rádio. Até então, só nos resta esperar. Não há alternativa.
— Dentro de quanto tempo estará pronta para
lançamento a nave gêmea da Stardust? — perguntou o
chefe do serviço secreto.
— A demora será de cerca de dois meses, no
mínimo — respondeu Pounder. — Até lá, meus homens
morrerão asfixiados, se é que ainda estão vivos. Seu
suprimento de oxigênio é suficiente para cinco semanas
no máximo e, se economizarem de modo extremo, seis
semanas. Mais do que isso é impossível. Se for
necessário, podemos fazer pousar uma sonda não
tripulada perto do polo sul lunar. Mas é muito duvidoso
que esta operação de abastecimento seja bem sucedida.
Afinal, nossos homens teriam que encontrar a sonda.
Estamos numa situação desesperadora.
Allan D. Mercant deu a sessão por encerrada com
uma rapidez extraordinária. No momento, nada mais
havia para dizer. A nave Stardust continuava
desaparecida. Uma série enorme de problemas
amontoava-se diante dos presentes.
Antes de sair da sala, o chefe do serviço secreto
disse, com um sorriso misterioso:
— Lamento informar-lhes, cavalheiros, mas a nave
asiática a que se referiram, explodiu no ar após o
lançamento.
Pounder ergueu-se de um salto. Incapaz de abrir a
boca fitou Mercant.
O homenzinho passou a mão pelos olhos.
— Sinto muito, mas os senhores terão que procurar
outra causa. Não houve qualquer outra nave que subisse
ao espaço ao mesmo tempo em que a Stardust. De onde
teria vindo então, o transmissor colocado na Lua? Há
coisas que não me parecem bem claras. Apesar de tudo,
os senhores receberão, logo, notícias minhas.
E, em voz baixa, acrescentou:
— O fato é que nós também acreditamos que não
houve falha por parte do comandante da nave. Caso lhes
seja possível provar que todo o equipamento de bordo
funcionou com perfeição, estaremos então às voltas com
um problema que se me afigura extremamente difícil.
Peço que todos os dados disponíveis sejam fornecidos o
quanto antes à equipe de cientistas da Defesa
Internacional. O senhor há de compreender que teremos
que chegar a um resultado convincente.
— Rhodan não falhou — afirmou Pounder. — E
poderemos provar que todo o mecanismo de controle da
nave funcionou com perfeição. A mudança repentina do
ângulo de queda é uma prova. Ela foi constatada no
último instante. Poderemos apresentar-lhes todas as
provas possíveis...
Allan D. Mercant cumprimentou-os com um gesto e
saiu. Subiu ao terraço do prédio e entrou pensativo, no seu
helicóptero. Um céu límpido cobria a cidade naquele dia
ameno de junho.
— Vamos enfrentar tempos difíceis, Kaats —
murmurou. — Tenho fama de possuir um sexto sentido e
ele já se manifestou há alguns minutos.
Kaats estreitou os olhos. Era verdade, Mercant
possuía uma estranha intuição. Farejava o perigo e as
dificuldades com a mesma eficácia de um cão de caça.
Segundo os boatos, ele era dotado de um cérebro
superdotado, além de todos os limites da capacidade
mental conhecida. Esta e outras qualidades levaram-no,
em pouco tempo, à chefia da Defesa Internacional.
17
III
Os membros da tripulação tiveram que esperar vinte
e quatro horas até que a radioatividade do solo lunar se
reduzisse por ação das substâncias pulverizadas no local.
Perry Rhodan saiu da nave em primeiro lugar,
quando o contador só registrava poucas incidências com
um valor ligeiramente inferior a 35 miliroentgens. Todos
permaneceram em silêncio. Não houve qualquer
manifestação de júbilo.
Apertaram-se as mãos e fitaram-se nos olhos sem
dizer uma palavra. Tinham certeza de serem os primeiros
homens a pisarem no solo lunar.
Um dos suportes de pouso fora danificado no
choque violento contra o chão. De resto, a Stardust não
sofrerá qualquer avaria séria. Em virtude da radiação, que
ainda era intensa, não era possível verificar o mecanismo
propulsor. Todavia, um teste rápido mostrara que ele
estava em perfeitas condições.
O grande gerador de força também funcionava com
perfeição absoluta e, o estado dos dispositivos de
renovação do ar e controle da temperatura, não podia ser
melhor.
Havia pequenas avarias que poderiam ser reparadas,
mas o que inspirava maior preocupação era a deformação
do suporte de pouso. Segundo as estimativas do capitão
Bell; seriam necessários pelo menos seis dias para pô-lo
em ordem. O aço-molibdênio era um material difícil de
ser trabalhado.
Cerca de trinta e seis horas após o pouso forçado,
retirou do compartimento de carga a tenda pneumática —
uma enorme esfera de fibra sintética.
O conteúdo de um pequeno tubo de ar comprimido
foi suficiente para inflar a tenda dando ao material a
consistência do aço. A ausência de pressão externa tinha,
também, as suas vantagens.
O longo recinto estava firmemente ancorado no solo
rochoso. A face externa bem polida refletia a luz do Sol
num brilho intenso. Os membros da tripulação estavam
instalando o mecanismo regulador da temperatura e o
conduto do ar. Por enquanto, só havia ar no espaço entre
as duas paredes da tenda. A construção tinha sido testada
na Terra sob as condições, que simulavam as existentes na
Lua. Só mesmo um meteoro poderia representar perigo.
A determinação exata da sua posição revelara-se
bem simples. As numerosas viagens ao redor da Lua
haviam permitido a confecção de mapas excelentes, de
modo que puderam determinar sem a menor sombra de
dúvida o local em que se encontravam.
A Stardust havia pousado a cerca de 82 quilômetros
além do polo sul lunar, já na face oculta do satélite. O Sol
aparecia com o formato de uma foice. Mal e mal surgia
acima do horizonte lunar que se encontrava bem próximo.
As crateras que rodeavam o local de pouso eram
conhecidas e estavam registradas no mapa. O mesmo
acontecia com o pequeno planalto que se erguia entre
duas encostas. Só mesmo por um acaso a nave tocara o
solo justamente neste ponto. Caso tivesse descido entre as
rochas pontiagudas da cadeia circular de montanhas, teria
sido quase que infalivelmente, o fim.
A Terra não era visível. Ficava muito além do
horizonte visual. Isso impossibilitava o envio de
mensagens de rádio. A única manifestação de Rhodan
face às dificuldades com que se defrontavam foi uma
contorção juvenil nos lábios. Nenhum dos tripulantes da
nave revelava sinais de desespero ou desânimo. Apenas
Fletcher estava mais quieto do que o costume.
Rhodan observou este fato sem fazer comentários.
Fletcher pensava com demasiada frequência no lar, na
esposa e no filho que estava para nascer. Mesmo que isso
não constituísse motivo de uma preocupação maior,
justificava certo grau de inquietação. Rhodan decidiu
dedicar atenção especial ao gigante.
Com um lento movimento de cabeça, o major olhou
em redor. O gesto foi lento e cuidadoso. Ele estava de pé
sobre um dos numerosos cumes da cadeia de montanhas.
Do lado interno, a encosta descaía, abruptamente, para o
fundo da cratera. Algumas crateras menores eram
testemunhas da queda de meteoros, contra os quais o
satélite, desprovido de atmosfera, estava exposto sem a
menor proteção.
Cerca de 400 metros abaixo, o nariz pontudo da
Stardust apontava para o espaço. No horizonte, o Sol
emitia uma luz ofuscante e implacável. As rochas da
encosta exposta aos raios diretos já começavam a
absorver calor. Porém, perto da zona de penumbra, a
temperatura ainda era suportável.
Rhodan não estava preocupado com estas coisas. Ele
estava bem consciente dos problemas e perigos e tinha um
excelente preparo psicológico para enfrentá-los. Além do
mais, ele sabia que o avanço da tecnologia capacitava-os a
realizar tarefas que, há vinte ou trinta anos, seriam
consideradas impossíveis.
Seu traje espacial, por exemplo, era uma verdadeira
maravilha em termos de mecânica de precisão. Sua
construção ocupara centenas de homens. Cada peça tinha
que se ajustar às outras com perfeição milimétrica. O
traje, por si só, já era uma demonstração da elevada
capacidade técnica desenvolvida pela espécie humana.
Rhodan contemplou a paisagem imensa e
desoladora. A região era menos montanhosa e acidentada
que outras áreas da Lua. Assim mesmo, também aqui não
havia o menor vestígio de vida. O contraste tremendo
entre a luz violentamente ofuscante do Sol e a escuridão
mais profunda dava um aspecto de pesadelo aos traços da
paisagem. Não havia sombra, no verdadeiro sentido da
palavra; não existia nenhuma transição confortável entre a
luz do Sol e um suave crepúsculo.
As regiões não atingidas pelos raios solares
mergulhavam na escuridão absoluta. Também nesse ponto
se fazia sentir o envoltório absorvedor da atmosfera. As
temperaturas chegavam a extremos bastante acentuados.
Tudo isso produzia, no espírito humano, um efeito
estranho.
Longe, ficavam os contornos bem conhecidos da
região polar, tornados invisíveis pela proximidade do
horizonte. Perry Rhodan tivera motivos de sobra para
escalar a cadeia de montanhas. Não se percebia qualquer
objeto que destoasse da paisagem. Era verdade que a
Stardust e a tenda reluzente formavam corpos estranhos.
Mas eram seus velhos conhecidos. A essa altura,
inclusive, já faziam parte da paisagem.
Um sorriso quase imperceptível aflorou-lhe aos
lábios. Num ceticismo que condizia bem com o
autodomínio que o caracterizava, perguntou-se com que
direito fazia essa constatação. Chegou à conclusão de que
18
a mesma devia resultar de certa arrogância resultante de
sua concepção humana. O homem costumava conservar e
considerar como objeto de sua propriedade tudo aquilo
que havia conquistado com trabalho e sacrifício. Por isso,
a nave Stardust fazia parte da paisagem.
Ao surpreender-se com essas reflexões, Rhodan deu
uma risada. Imediatamente, o pequeno amplificador
embutido no seu capacete começou a estalar. Ouviu-se
uma voz ligeiramente preocupada.
— O que houve Perry? — disse a voz. — Alguma
dificuldade? Aconteceu alguma coisa?
Rhodan sorriu para si mesmo. Seus olhos se
estreitaram como se estivesse absorto com algum
pensamento.
— Perry! Responda! O que houve? — gritou Bell
com mais força. Ele tinha certeza que ouvira a risada de
Rhodan pelo seu amplificador.
— Tomei a liberdade de rir — disse Rhodan. — O
amigo se opõe?
Ouviu-se uma praga.
— Este sujeito está em cima de uma cratera lunar, só
e abandonado e acha motivos para ficar rindo — disse
Bell indignado. — Você ouviu Fletcher? O sujeito está lá
em cima e ainda ri!
— Já é alguma coisa — disse a voz mal-humorada
no alto-falante. — Estou me esforçando há meia hora para
cocar as costas e não consigo. É bem onde estão os tubos
de oxigênio.
Bell tornou a chamar Rhodan. A voz daquele parecia
uma explosão. O major teve que reduzir o volume.
— Perry, como está o ar aí em cima? — soou sua
voz.
— Teremos uma trovoada — respondeu Rhodan em
tom seco.
Bell ficou calado. O humor de Rhodan era
invencível.
— Digo isso, porque na Lua o ar é muito carregado
— acrescentou com voz suave.
— Compreendi comandante. Mas qual a vantagem
em saber disso?
— É exatamente o que penso! Mas eu estava me
esforçando para tornar a informação o mais exata
possível. De agora em diante, não dependeremos mais do
som, mas da visão. Certo? Então, meu caro, a que
distância eu estou daí?
— Cerca de 850 metros — soou a voz divertida do
Dr. Manoli. — Para ser mais preciso 852 metros. Estou
junto ao radar e ele me deu sua posição exata. Eficiente,
não é?
— Muito mais que isso! — disse Rhodan, rindo. —
Bell; tenho uma tarefa para você. Pegue a pistola
automática, regule a luneta para um aumento de dez vezes
e a alça de mira para 850 metros. Depois, descarregue
metade de um pente de balas naquele bloco de pedra que
se parece com a cabeça de um gigante. Fica cerca de 50
metros a minha esquerda. Está vendo?
— Estou — confirmou Bell. — Posso saber apenas
para que é a brincadeira.
— Não estou brincando. Quero saber os efeitos de
um projétil-foguete em miniatura. Estou interessado,
principalmente, na força de impacto e na energia da
explosão. Comece. Preste atenção para sentir a natureza
do recuo sob as condições de gravidade daqui.
— Não vai haver recuo — disse Bell. — Cada
projétil tem sua própria carga propulsora e funciona nos
moldes de um foguete. Não há cápsulas. O projétil e a
espoleta saem ao mesmo tempo. A velocidade de saída é
de 2.480 quilômetros por segundo. A pontaria é exata e
segura e, positivamente, não há força de recuo. Caso o
senhor não saiba, colhi informações bem detalhadas a
esse respeito.
— Bom menino! — disse Rhodan com ironia. —
Agora, atire, mas, por favor, não me confunda com as
rochas.
Bell soltou uma risada trovejante. Fletcher observou-
o em silêncio, enquanto ele levantava a arma pesada e
enorme, com a coronha muito curta e o cano de grande
diâmetro. Segundo determinações de segurança, os
tripulantes só deviam sair da nave com a arma na mão.
O capitão Bell estava parado diante da tenda
pressurizada, cuja montagem ainda não havia sido
concluída. Mais adiante, a menos de trinta metros, o
foguete erguia-se no céu lunar.
Bell ajustou a luneta do visor para um aumento de
dez vezes, e a distância para 850 metros.
A luz vermelha da ignição elétrica começou a brilhar
e o primeiro projétil deslizou para dentro da câmara de
ignição. O calibre dos projéteis era reduzido. Não passava
de seis milímetros e tinham o comprimento de um dedo.
Sua potência explosiva, no entanto, era enorme.
Bell hesitou por uns momentos. O alvo ficava muito
longe, embora o visor o trouxesse para muito perto.
— Vamos — soou uma voz enérgica. — O que está
esperando? Faça de contas que foi esse bloco de pedra
que perturbou o nosso sistema de controle remoto. Então?
Bell soltou uma praga. Finalmente compreendia
aonde Rhodan pretendia chegar. A experiência adquiriu
um novo sentido. A ideia de uma brincadeira inútil
desvaneceu-se.
— Se você concordar eu ajustarei a arma para dez
tiros, fogo espaçado — disse com um tom seco na voz. —
Preciso ver até onde consigo chegar com esta arma.
— Certo! Pode começar.
Bell encostou a coronha da arma no ombro.
O bloco de pedra surgiu no visor bastante
aumentado. Ele lembrou-se que a distância a ser vencida
não representava nada para esses projéteis, cuja
velocidade era tremenda. Não havia necessidade de
levantar o cano da arma acima do alvo. Com a reduzida
força de gravidade do satélite da Terra e a ausência de
atrito do ar, o projétil descreveria uma trajetória quase
retilínea. O visor tinha sido ajustado para tais condições,
de maneira que o atirador pudesse visar alvos colocados a
quilômetros de distância. E as probabilidades de acertar o
alvo eram muito grandes.
Quando Bell acionou o contato de ignição, Fletcher
conteve a respiração. Mas não houve o mais leve ruído.
Na terra, ouvir-se-ia o assobio estridente e a chicotada
produzida pela saída do projétil. Aqui, o disparo foi
cercado de um silêncio fantasmagórico.
O único sinal visível foi à saída de chamas
luminosas pela abertura para escapamento de gases,
existente no cano da arma.
Bell estava estupefato.
— Percebeu alguma coisa? — perguntou. — Que
diabo! Terei que me acostumar a esta maneira de disparar
19
uma arma. Não senti o mais leve recuo.
— É, mas as lascas de pedra foram atiradas até o
lugar onde me encontro — ouviu-se uma voz rápida. —
Acho que antes de você diminuir a pressão no gatilho o
projétil já tinha atingido o alvo. A rapidez é incrível. O
bloco de pedra apresenta um furo de uns 30 centímetros
de diâmetro e mais ou menos o mesmo de profundidade.
E olhe que é granito. Tente uma rajada mais longa. A
arma é de uma precisão fantástica.
Bell puxou o gatilho. As chamas luminosas dos
projéteis lhe fustigavam os olhos. Do ponto onde estava
Rhodan viu a trajetória luminosa dos projéteis,
representada pela queima do combustível sólido que os
impelia. Quando penetraram na escuridão que se formara
na encosta, surgiu um traço incandescente e antes que
Bell compreendesse o que se passava, o carregador da
arma estava vazio.
Do bloco de granito restavam apenas lascas que,
atiradas para o ar, voltavam ao solo com enervante
lentidão.
Rhodan acompanhara atentamente a série numerosa
de explosões. Realizaram-se em silêncio e sem a menor
vibração. Revelavam-se, apenas, através da chuva de
pedras e dos relâmpagos chamejantes.
— Pode parar Bell — disse com voz abafada. —
Temos que reconhecer que a seção de armamento nos deu
um brinquedo mais que eficiente. Por quanto tempo você
apertou o gatilho?
— Uns dois minutos — respondeu Bell. E o
carregador está vazio! Disparei noventa tiros em um
instante!
— Está certo. A cadência de tiros é de cerca de
cinquenta por minuto. Muito bem! A experiência
terminou. Vou descer. Eric, a comida está pronta?
— Está. Pelo menos, fiz o que pude. Rhodan
começou a descer. Era fácil vencer as fendas e outros
obstáculos do solo. A leveza proporcionada pela ausência
de gravidade facilitava muitas coisas.
Após alguns minutos, estava diante da tenda
pressurizada. A montagem da conexão de ar estava
concluída e a aparelhagem reguladora da temperatura
tinha sido ligada às instalações da nave.
— O enchimento consumiu alguns litros de oxigênio
líquido — explicou Fletcher. — Será que vale a pena
desperdiçar um gás tão precioso? Quem sabe se não
precisaremos dele, um dia, para abastecer o interior da
Stardust? Nossa reserva é limitada.
Rhodan postou-se diante dele, ereto. Ainda assim,
Fletcher o ultrapassava em altura por alguns centímetros.
— Ora, Fletcher, você está se preocupando por nada.
O reparo de suporte de pouso exige habilidade e liberdade
de movimentos. Não quero ter os movimentos
embaraçados por um traje espacial quando tivermos que
trabalhar com o aço-molibdênio. E também não quero
ficar parado neste vazio
Fletcher piscou os olhos em direção ao céu estrelado
que se apresentava de uma limpidez incrível.
— Foi só uma ideia — murmurou. Nos seus lábios
surgiu, por instantes, um sorriso de desânimo.
— Você estava pensando em sua volta à Terra, não
é? Quem sabe, no bebê? — perguntou Rhodan,
calmamente.
Fletcher ficou calado. Seu rosto transformou-se.
— Não há problema. Compreendemos
perfeitamente. Mas convém que você não pense demais
nisso. Nosso plano foi estabelecido e nós tivemos bastante
tempo para discuti-lo em detalhes. Só partiremos para
uma viagem de exploração quando a Stardust estiver
completamente reparada. Não podemos arriscar uma
partida imediata seguida de uma alunissagem além do
polo, pois o suporte danificado não aguentaria o choque.
É lógico que poderemos subir alguns quilômetros e entrar
em contato visual direto com a Terra através de uma
manobra adequada. Mas, como já disse, teríamos que
pousar novamente. Com isso, a nave seria danificada de
tal maneira que não conseguiríamos repará-la com os
recursos de que dispomos. Se chegássemos a uma
situação dessas, eu também duvidaria da conveniência de
desperdiçar oxigênio com a tenda pressurizada. Mas,
agora, estamos em condições de fazê-lo, não é?
Um sorriso indiferente surgiu no rosto de Rhodan.
Enquanto que Fletcher continuava a olhar para o espaço.
— É claro que sim — respondeu. — Acontece que
me ocorreu mais uma pergunta. Não seria conveniente
iniciar imediatamente a viagem de retorno? Conseguimos
realizar um pouso de emergência, certo? Então, por que
devemos nos preocupar com o conserto do suporte? O
pouso na Terra é realizado por meio de asas de
sustentação e tocaremos o solo com os trens de pouso.
Não importa que o suporte esteja danificado, ainda assim,
desceríamos normalmente.
Baixou a cabeça e seus olhos cintilaram.
Rhodan não perdeu a paciência nem a capacidade de
raciocinar. Apenas o tom de sua voz tornou-se mais
enérgico.
— Fletcher, é óbvio que o que você propõe é viável.
Acontece que isso seria uma falta total de iniciativa e
responsabilidade de nossa parte. Temos uma missão a
cumprir e não será um suporte de alunissagem com
defeito que nos fará sair daqui antes da hora. E, além do
mais, tenho a vaga impressão que não conseguiremos
alcançar o espaço sem problemas. Há algo para ser
esclarecido aqui antes de partirmos.
Fletcher dominou-se imediatamente. Num gesto
silencioso, seus olhos azuis pediam perdão. Bell começou
a rir. O incidente estava encerrado.
— Está bem! Esqueça minhas palavras — disse
Fletcher, pigarreando. — Foi um ligeiro instante de
fragilidade humana. Vamos comer e depois saberemos
onde procurar o transmissor de onde partiu a
interferência. Já apurei os dados fundamentais, depois vou
pedir ajuda ao computador.
— Estou bastante curioso — disse Rhodan. — Bem!
Veremos o que o nosso médico conseguiu fazer.
Pelos amplificadores dos capacetes, ouviram um
suspiro de indignação. O Dr. Manoli explicou, então,
longamente, como e por que a arte de cozinhar, tão
enaltecida, se resumia a uma simples identidade com os
processos químicos mais conhecidos. O discurso soou
bem, mas havia, nele, algo que não estava muito certo.
Rhodan parou junto à área de pouso situada logo
abaixo do mecanismo propulsor da nave, onde o solo
ainda desprendia um pouco de radioatividade. Diante dele
estava a cesta transportadora pendurada no braço do
guindaste que saía da comporta principal do
compartimento de carga. Este ficava logo abaixo da
20
cabine dos tripulantes. Rhodan preferira não utilizar os
degraus dobráveis presos à parte externa da nave.
Passando por baixo dos suportes de alunissagem,
chegavam perto demais do mecanismo propulsor que
ainda emitia radioatividade em excesso.
— Um de nós terá que desistir, por hora, das delícias
que tão avidamente esperamos — anunciou Rhodan com
um sorriso. Seus olhos se voltaram para os companheiros.
— Bell, quer fazer o favor de ficar de guarda aqui
fora? Dentro de meia hora eu o substituirei. Há um ótimo
lugar ali em cima do morro. Fique de olhos bem abertos.
Manteremos contato pelo rádio.
Reginald Bell não disse uma só palavra. A voz
profunda de Rhodan bastou-lhe para fazê-lo compreender.
Por mais calma que fosse a aparência do comandante, a
inquietação o consumia por dentro. Antes de se afastar,
com a arma carregada, voltou-se para Rhodan.
— Perry, só uma pergunta. Você está lembrado da
informação segundo a qual uma nave tripulada da
Federação Asiática teria sido lançada antes de nós?
— Vejo que você compreendeu meu temor, Bell —
confirmou Rhodan. Seu rosto tornou-se sério e sombrio.
— Pode ser que haja alguém interessado em certificar-se
pessoalmente da nossa queda. Em minha opinião, o
transmissor deve estar localizado perto da região polar.
Portanto, preste bastante atenção! Nosso radiogoniômetro
está testando todas as frequências possíveis. Logo que
ouçamos algum ruído estranho, teremos modificações por
aqui.
No interior da cabine, o Dr. Manoli começou a ter
calafrios e em poucos instantes estava indisposto. Ele era
um homem que estava sempre pronto a enfrentar qualquer
perigo ou qualquer sofrimento desde que fosse por amor à
ciência e à pesquisa. No entanto, quando surgiam
complicações inesperadas e que cheiravam a violência, as
coisas mudavam de figura. Manoli não era homem de
enfrentá-las com calma. Martirizado por pensamentos
sombrios, ouviu o ruído do motor do guindaste. Rhodan e
Fletcher subiram no cesto, enquanto que, na tela, a figura
de Bell tornava-se cada vez menor até desaparecer na
região escura de uma sombra projetada por uma saliência
do solo.
Alguns instantes após, ouviu-se o assobio da
comporta de despressurização e, quando eles entraram,
Manoli exibiu um sorriso forçado.
— Alô! — disse com voz débil. — Não ouvi nada
no radiogoniômetro. Só a conversa de vocês.
Rhodan saiu do traje espacial. O rosto de Fletcher
estava banhado de suor.
— Puxa — disse este, suspirando. — Até parece que
estou chegando ao paraíso.
— Acho que, na Terra, já nos consideram
desaparecidos — observou Manoli em voz baixa.
O sorriso de Fletcher desvaneceu-se.
— É. Deve ser — confirmou Rhodan em tom
indiferente, olhando-os com firmeza.
— Mas não será por muito tempo, dou-lhes minha
palavra. Assim que terminarmos de comer iniciaremos os
reparos no suporte de alunissagem.
Manoli estava pensando na esposa. Fletcher, no
bebê. Nenhuma palavra foi trocada, mas todos sabiam. Só
mesmo mãos fortes e vontade férrea poderiam dominar
esse tipo de situação. E Rhodan as tinha de sobra.
IV
Estavam sós em um mundo estranho e cheio de
mistérios; sem ar, sem água, sem vida...
A fina liga especial que revestia o veículo blindado,
de forma achatada, podia resistir a tiros de um canhão de
calibre médio; assim mesmo, não conferia aos seus
ocupantes total sensação de segurança, pois além das
chapas de aço começava o vazio — o Vácuo absoluto
com seus perigos conhecidos e desconhecidos. Não era
tanto o risco de vida que martirizava estes homens. Era o
ambiente desolador, tão estranho; era o semicírculo
incandescente do Sol que emitia um brilho ofuscante; as
crateras que surgiam em meio a planícies vastas, rasgadas,
por fendas no solo; eram as cordilheiras recortadas de
forma bizarra, que nunca foram corroídas pelas
intempéries.
Diante de todo aquele panorama, o mais árido dos
desertos da Terra transmitia uma mensagem de vida e
felicidade.
Estes fatos constituíam uma carga psicológica de
primeira grandeza. Eram os riscos para a mente que
tinham que ser combatidos em primeiro lugar. E vencidos
de qualquer maneira. Quem não aceitasse e superasse
estes fatos com uma impassibilidade total, sucumbiria sob
o peso dos mesmos. Não havia qualquer medicamento
contra as influências corrosivas que o ambiente cósmico
exerce sobre o espírito dos homens.
Rhodan levou tudo isso em consideração quando
resolveu partir no veículo lunar e deixar Fletcher e o Dr.
Manoli a bordo da nave. Não só porque dois tripulantes
deviam ficar a bordo da Stardust como também, porque os
nervos de ambos não suportariam aos efeitos da
expedição.
Fletcher recebeu ordens terminantes, por escrito,
para decolar de volta para a Terra assim que julgasse
conveniente, colocando-se sob a ação do controle da
estação orbital caso ele — Rhodan — não voltasse dentro
de dezoito dias do calendário da Terra.
Fletcher confirmou com um movimento de cabeça.
Ele estava perfeitamente habilitado para conduzir a nave
ao espaço levando-a aonde fosse necessário.
Apenas cinco dias foram gastos para o reparo do
suporte de alunissagem e um dia para a montagem e o
preparo do veículo lunar.
Depois de terem dormido por um período
prolongado, sob os efeitos da psiconarcotina, Rhodan e
Bell partiram no veículo lunar. Ele fora testado sob as
condições mais adversas e não poderia falhar.
Era um meio de transporte apto a enfrentar qualquer
terreno. Não levava armamento e dispunha de uma cabine
ampla para quatro pessoas. Sua cúpula, de uma liga
transparente, podia ser escurecida à vontade. No pequeno
espaço de carga situado atrás da cabine pressurizada só
havia equipamentos e peças sobressalentes. Rhodan não
estava disposto a executar qualquer uma das numerosas
missões de pesquisa constantes do programa.
O que importava era salvar a vida. Antes de tudo,
era necessário notificar a estação orbital. E o transmissor
do veículo era bastante forte para emitir sinais que
chegariam à estação.
Havia vinte e quatro horas que estavam a caminho.
Tinham dormido por cinco horas e, no momento, Rhodan
21
fazia com que os motores elétricos arrastassem o veículo
por cima de uma elevação.
O semicírculo solar começava a aumentar. Dentro
em pouco atingiriam o polo sul lunar e estariam, então,
em linha direta com a Terra.
Ainda estavam usando os trajes espaciais, mas sem
os capacetes. A cúpula pressurizada do veículo oferecia a
mesma segurança da cabine principal da Stardust. Seria
necessária uma força descomunal para destruir o material
sintético.
Bell estava olhando para frente. Os cumes elevados
que se descortinavam diante dele não o agradavam.
Voltou a estudar o mapa.
— Não há dúvida, é a cordilheira de Leibnitz —
disse com voz abafada. — Quer dar uma paradinha?
Rhodan desligou o comando elétrico. O zumbido
dos motores cessou.
Rhodan enxugou o suor da testa. Sem dizer uma
palavra, começou a limpar o vidro dos óculos escuros. A
radiação ultravioleta o estava incomodando. Também
lançou um olhar em direção às montanhas.
— Só faltam uns oito quilômetros. Aqui a gente se
engana tremendamente com as distâncias. Temos diante
de nós a cratera Husemann, que não pode ser vista da
Terra. Se seguirmos mais uns quinze quilômetros
chegaremos do outro lado do polo. Mas não podemos
manter o rumo atual. Temos de nos desviar para o leste,
senão passaremos pelas ramificações da cordilheira de
Leibnitz. E isso não seria nenhum prazer.
O indicador de Bell tocou o mapa. Seu rosto parecia
cansado e inchado sob a barba que já tinha vários dias. A
viagem estava se transformando num martírio. Rhodan
correra que nem um louco. Se fosse possível seguir em
linha reta eles já teria atingido a região polar há muito
tempo. Acontece que tinham que contornar os inúmeros
obstáculos. A linha traçada no mapa, que registrava o
deslocamento do veículo, se apresentava bastante sinuosa.
Rhodan tossiu. Sem dizer uma palavra estendeu a
garrafa de água em direção a Bell.
— Vamos dobrar para leste. Leibnitz não é
brincadeira. Não tenho vontade de cair naqueles
precipícios. Aquilo ali é uma das ramificações orientais
da cordilheira. O maciço principal fica mais ao oeste.
Passaremos sem maiores dificuldades.
Bell sorveu o líquido em goles compridos. Na cabine
fez-se um silêncio profundo.
Rhodan protegeu o teto com outra série de folhas de
plástico polido. O sol era por demais forte. Não podiam
absorver muito calor. Seria um problema livrar-se do
mesmo. Finalmente Bell disse em tom sombrio:
— Vai acontecer alguma coisa. Estou sentindo
cócegas na nuca. Não pode deixar de acontecer alguma
coisa. Olhe isto aqui!
Seu dedo voltou a tocar o mapa. O rumo que
estavam tomando conduzia diretamente para um círculo
que Fletcher, o matemático, havia traçado no mapa.
— Já sei — disse Rhodan, esticando as palavras. Um
sorriso que parecia uma máscara passou-lhe pelos lábios.
Bell fitou-o. Tinha os lábios secos e rachados.
— Devíamos contornar esta área bem de longe,
procurando em primeiro lugar estabelecer comunicação
radiofônica com a Terra. Depois poderemos ver o resto. O
que acha?
Por um instante, Rhodan olhou fixamente para
frente. Depois disso Reginald Bell viu um rosto de linhas
bem marcadas. Os olhos de Rhodan cintilavam.
— Os problemas existem para serem resolvidos.
Não adianta adiar a decisão com desculpas esfarrapadas.
Quer queiramos, quer não, teremos de enfrentar aquilo.
Prefiro uma ação rápida. Portanto, seguiremos pelo
caminho mais curto. A parte que agir com maior rapidez
levará uma vantagem considerável. Os outros também
estão sofrendo os efeitos negativos do ambiente,
provavelmente mais que nós.
— Sim, somos heróis — resmungou Bell. — Está
certo, daqui por diante cuidarei da sonda infravermelha.
Se surgir qualquer sinal você terá de correr que nem o
diabo.
Sua mão pousou automaticamente na arma. Traziam
na nave as armas automáticas de grande calibre, que
funcionavam como metralhadoras.
Rhodan moveu a chave. O veículo blindado
arrancou sob o uivo dos motores elétricos. Depois de
terem contornado o morro em que ficava a cratera,
chegaram a uma grande planície pedregosa. A poeira
levantou-se atrás das esteiras velozes. As partículas
ficavam suspensas numa estranha imobilidade, até que
descessem com uma lentidão fantástica. Não podia haver
nada que revelasse melhor a ausência do vento.
Após outras seis horas de viagem viram todo o Sol.
A progressão foi rápida por causa da curvatura reduzida
da Lua. Depois de terem passado pela área crítica sem
maiores incidentes, atingiram o limite do campo de visão
direta. Logo acima, a Terra surgiu em forma de
semicírculo. Era perfeitamente visível e, embora estivesse
bem baixa, acima do horizonte setentrional, devia haver
possibilidade de estabelecer contato pelo rádio.
Rhodan lançou um olhar rápido para os lados. Nas
últimas horas tinham-se mantido bastante calados.
Bell sorriu, depois assobiou em tom agudo uma
melodia desafinada. Rhodan fez com que o veículo
subisse uma encosta íngreme. As esteiras revolviam o
solo e o ruído dos motores tornou-se mais intenso.
Chegados à parte de cima, pararam num pequeno platô de
rocha. À sua direita um paredão sombrio erguia-se em
direção ao espaço.
Bem diante deles, porém, estava suspensa no espaço
a esfera brilhante que era a Terra. Conseguiram. Quase
não falaram. O esgotamento extremo estava gravado nos
seus rostos. Executaram as operações necessárias
depressa, talvez mesmo precipitadamente. Ambos tinham
a sensação de que não havia tempo a perder: estava na
hora de agir.
Rhodan fez sair a antena direcional parabólica, e
Bell fez funcionar o reator, ligando-o ao transmissor. As
válvulas foram se aquecendo, enquanto Rhodan ajustava a
antena com a maior exatidão. A Terra estava ao alcance
do equipamento automático de radiofonia.
Com um gesto lento e hesitante Rhodan girou a
poltrona. Diante dele dançavam os ponteiros dos
instrumentos de controle. O aparelho estava em perfeita
ordem. Colocou o microfone mais perto da boca. Com um
movimento um tanto complicado controlou a sintonização
automática.
— Está pronto? — perguntou Bell com a voz áspera.
Estava de pé na cabine, meio abaixado. Segurava na mão
22
o pesado dispositivo automático de controle.
Rhodan confirmou com um movimento de cabeça e
ligou o aparelho. Nos alto-falantes do receptor ouviram-se
os ruídos normais. Não se identificavam com os estouros
e os guinchos infernais resultantes de uma interferência
deliberada.
Um sorriso suave aflorou aos lábios de Rhodan.
Depois ligou o transmissor. Em tom circunspecto falou:
— Major Perry Rhodan, comandante da Expedição
Stardust chamando controle de terra de Nevada Fields.
Favor acusar recebimento. Major Perry Rhodan,
comandante da Expe...
Aconteceu subitamente, como um raio que caísse de
um céu azul. Um brilho esverdeado surgiu e foi-se
tornando cada vez mais forte, transformando-se numa
luminosidade intensa, que envolveu os rostos dos dois
homens em uma luz fantasmagórica.
A poucos metros acima deles, a antena ardeu em
chamas verdes e fosforescentes, cuja luminosidade era
tamanha que fez Rhodan soltar um gemido, cobrindo os
olhos torturados com as mãos.
Tudo foi muito rápido e silencioso. Uma abóbada de
chamas saltitantes ergueu-se acima do veículo lunar. A
luminosidade do Sol tornou-se turva e os contornos da
paisagem lunar se desfizeram.
Antes que Bell tivesse tempo de soltar um grito
apavorado de advertência, o equipamento de rádio
começou a estourar. Um raio saltou do envoltório de
plástico. Vapores corrosivos desprenderam-se do
aparelho. Os isoladores fundidos ficaram envoltos em
pequenas chamas.
O pontapé de Rhodan foi desferido no último
instante, rompendo a ligação com o gerador nuclear. Bell
mal percebeu que a mão de Rhodan bateu com um estalo
no seu capacete. Quando o oxigênio fresco penetrou nos
seus pulmões, voltou a raciocinar com clareza. Seus gritos
cessaram.
Perry Rhodan, imóvel, estava encolhido na sua
poltrona. Parecia nem ter notado os últimos
acontecimentos. A luminosidade misteriosa desaparecera
com a mesma rapidez com que havia surgido. Não se via
mais nada, nem mesmo o brilho mais débil.
Só mesmo a antena totalmente fundida e o aparelho
de rádio consumido pelas chamas davam mostras de um
acontecimento que ficava além do seu entendimento. Bell
moveu-se pela cabine rapidamente. Com os olhos
selvagens procurava um inimigo. Segurava a arma em
atitude ameaçadora, mas não via qualquer figura humana.
O chiado agudo do extintor de espuma seca fez com
que se sobressaltasse de novo. Rhodan dirigiu o jato sobre
o aparelho de rádio destruído. Sua atitude era tão
indiferente que Bell começou a praguejar. Ele o fez de
forma intensa, com bastante barulho. Todavia, os lábios
mal se moviam no rosto inchado, tomado de uma palidez
cadavérica.
O fogo foi extinto. O equipamento de
condicionamento de ar sugou os vapores. O oxigênio fluiu
para o interior da cabine. O incidente consumira vários
litros do ar respirável.
Rhodan abriu o capacete. Com o rosto indiferente,
olhou cuidadosamente para cima. Depois falou:
— Pronto. Está tudo terminado. Só esperavam por
isto.
— Santo Deus, o que foi isso? — cochichou Bell.
Exausto, deixou-se cair na sua poltrona. — O que foi
isso?
— Foi uma maneira muito engraçada de interferir
numa transmissão de rádio. Pelo amor de Deus, não me
pergunte como fizeram! Neste ponto sou tão ignorante
como um recém-nascido. Não tenho a menor ideia. O que
posso dizer é que essa luminosidade apareceu como um
raio com a primeira frase que soltei para o microfone. Daí
se conclui que estavam à espreita com um
radiogoniômetro inteiramente automático. O aparelho
funcionou imediatamente. É só o que posso dizer.
Bell levou à boca seu comprimido de concentrado.
Seus olhos estreitaram-se. O engenheiro competente
despertou dentro dele. Entrou em funcionamento a parte
do seu cérebro no qual estava armazenada a massa
enorme de conhecimentos relativos à eletrônica moderna.
— Será que você está passando bem? — indagou. —
Sempre o considerei um aluno exemplar da Academia
Espacial e pensei que tivesse capacidade de raciocinar.
— E agora já não pensa assim? — perguntou
Rhodan, com um traço de amargura no rosto.
— No momento não. Você acaba de falar como o
célebre Super-Homem daqueles fascículos de cinquenta
centavos. O que quer dizer com a expressão
radiogoniômetro automático? Será que você sabe o que
acaba de dizer? Trabalhamos com um raio direcional bem
ajustado. Como é que uma emissão destas poderia ter sido
localizada com tamanha rapidez? A antena apontava para
o espaço vazio. Mas não é só isso. Será que você também
tem uma explicação para a luminosidade verde? Pode
imaginar que tipo de energia essa gente utilizou?
— Convém não perguntar, pois a resposta teria de
soar como a fala de um louco.
— Fomos cobertos por um anteparo abobadado —
prosseguiu Bell obstinadamente. — Vi perfeitamente.
Dali desceu um raio de luz verde, e nossa antena já era.
Perry, eu lhe asseguro que uma coisa dessas não existe.
Poderia compreender tudo, mas tudo mesmo. Até
admitiria uma descarga dirigida de relâmpagos. Mas neste
ponto minha inteligência deixa de funcionar.
Rhodan continuou na sua posição rígida. Seus olhos
ardiam.
— Quer dizer que tudo não passou de um sonho, não
é? Se eu fosse você teria dito que minha inteligência
chegou ao limite extremo da compreensão. Alguém ouviu
minha mensagem no mesmo instante em que ela foi
iniciada, e agiu imediatamente. Não estou muito
interessado em saber como fez isso, já que com os
conhecimentos científicos de que disponho não tenho
capacidade de interpretar o acontecimento. O que me
interessa mais é o fato de que esse alguém quer nos
reduzir à condição de prisioneiros da Lua. Darei minha
cabeça à forca se conseguirmos subir um quilômetro com
a Stardust. Não pergunte por que, mas sinto que é assim.
Não, não sinto: sei! Sendo assim, que nos resta fazer?
Reginald Bell empalideceu ainda mais. Todo lívido,
fitou o comandante, cujos olhos claros se tinham tornado
sombrios.
— Você é a pessoa mais insensível que já vi! —
gaguejou. — Será que não tem mais nada a dizer?
— Não. Acontece que meu espírito só toma
conhecimento das situações em que podemos fazer
23
alguma coisa. Os problemas insolúveis são imediatamente
postos de lado. Não devíamos falar a respeito deles.
Bell pigarreou. A cor retornou à sua face.
— OK. Vamos esconder a cabeça na areia, que nem
um avestruz. — Deu um sorriso triste. Seus olhos
percorreram a paisagem. Estava desolada e vazia como
antes.
— O fato é que já não compreendo mais nada. Se
não parecesse coisa de louco, falaria num campo
energético. Mas como poderia o mesmo ser montado no
espaço praticamente vazio? Não vejo nenhum polo
energético, absolutamente nada. Quem está tentando nos
eliminar? E como está fazendo tudo isso?
— Quem sabe se o foguete da Federação Asiática
não pousou algumas horas antes de nós? Terão a bordo
algum equipamento completamente novo. Basta que se
veja a luminosidade verde.
Rhodan olhou atentamente para seu amigo.
Bell sorriu. Suas mãos pesadas balançavam entre as
pernas como se fossem enfeites incômodos.
— Deixemos de falar bobagens, meu velho. Não me
diga que você acredita no que está dizendo. No ponto em
que estamos nada mais importa para mim. Estou disposto
a engolir um prego enferrujado caso os chineses tenham
inventado isso. Foi uma coisa assombrosa. Está bem, está
bem, estou perfeitamente calmo. Então, o que vamos
fazer?
Rhodan deu um sorriso muito cordial. Bell já sabia
que aquela contorção dos lábios do companheiro
representava um sinal de alarme de primeiro grau.
Conhecia muito bem esse homem alto de rosto magro,
— Vamos até lá ver o que há e, se possível,
encostaremos o dedo no gatilho um décimo de segundo
antes do inimigo. Não vejo outra possibilidade. Se
ficarmos parados, morreremos asfixiados dentro de
algumas semanas. Se decolarmos, a nave será abatida com
toda certeza.
— Vamos negociar? — perguntou Bell num tom de
insegurança.
— Bem que gostaria disso. A questão é: poderemos
negociar com essa gente? Os fatos indicam o contrário.
Por que será que não nos deixaram expedir a mensagem?
Isso não poderia fazer mal a ninguém. A esta altura toda a
Humanidade já deve saber que a Stardust pousou na Lua.
Portanto, não faz nenhum sentido interromper as nossas
comunicações de forma tão drástica. Isso até parece obra
de algum maluco. Não há nenhuma lógica, nenhum
motivo. Se tentassem nos matar ainda haveria certa lógica
nesse procedimento. Mas parece que não estão pensando
nisso. Por que será?
Bell voltou a soltar seus assobios estridentes.
— Em última análise é precisamente isso que fazem:
estão nos matando — disse. — É verdade que o estão
fazendo aos poucos. Quando as nossas reservas de
oxigênio estiverem esgotadas...
Bell ficou calado. Sua testa enrugou-se. Depois,
disse laconicamente:
— Está certo, comandante. Vou registrar o novo
curso no mapa. Vamos à boca do mistério. Dentro de oito
horas estaremos lá.
Virou-se na sua poltrona. Depois veio a observação
de Rhodan.
— Antes de qualquer coisa, vamos dormir um
pouco, pelo menos, umas oito horas. Depois vamos fazer
a barba. Não quero dar a impressão de um selvagem.
Bell ficou perplexo. Olhou pelo material da cúpula
blindada.
— Fazer a barba? — gemeu. — Será que ouvi bem?
— Os asiáticos não têm tanta barba como nós. Por
isso nosso aspecto poderia ser chocante para eles —
explicou Rhodan com um sorriso estranho.
Reginald Bell sentiu um calafrio. Quais seriam as
ideias do comandante?
V
A uns 30 quilômetros do polo o aparelho de busca
infravermelho reagiu. Devia haver um corpo que
irradiasse bastante calor nas proximidades. O ponto
assinalado ficava exatamente na área que o capitão
Fletcher indicara como sendo a localização provável do
emissor que havia provocado a interferência quando
desciam na Lua.
Saíram do veículo blindado e foram seguindo a pé
junto às rochas escarpadas. A montanha erguia-se a uma
altura de cerca de 500 metros. Abrigava uma cratera que
não era visível da Terra.
Depois de mais meia hora de escalada tinham
vencido o último obstáculo que impedia sua visão. Ainda
estavam ao pé da montanha, mais ao norte.
Os sinais do aparelho portátil de localização
tornaram-se cada vez mais nítidos. Deviam encontrar-se
nas proximidades do outro foguete. Subitamente Reginald
Bell teve um colapso.
Caiu de joelhos, com as mãos apoiadas no chão. Seu
riso louco era captado pelo microfone e transmitido pelo
emissor embutido no capacete.
Perry Rhodan não disse uma palavra. Num gesto
instintivo procurou cobertura. Agora estava empenhando
24
toda sua energia para dominar-se. Era o golpe de
misericórdia nos nervos desgastados dos dois homens.
— Não, não; isso não, isso não! — ouviu-se Bell
gemer no aparelho de radiofonia. Repetia constantemente
as mesmas palavras.
Rhodan recompôs-se de um golpe. Suas mãos
descontraíram-se. Com uma brutalidade desnecessária
arrastou o amigo para trás de uma rocha. Bell despertou
do aturdimento que lhe perturbara os sentidos. Estava
todo trêmulo, olhando para Rhodan. O suor que lhe cobria
o rosto embaçou a lâmina transparente do capacete.
Rhodan ligou o pequeno ventilador. Bem que Bell estava
precisando.
— Calma! Controle-se! Pelo amor de Deus, acalme-
se! Não fale! Se fizerem surgir à luz verde nas nossas
antenas estaremos liquidados. Fique calmo.
Mesmo Rhodan recorreu às palavras estereotipadas.
Repetidas muitas vezes, tornar-se-iam monótonas, mas
produziam efeito até mesmo pelo tom em que eram
proferidas. Estava preparado para aquilo. Assim mesmo, o
súbito conhecimento da situação o fez desmoronar. Não
estava mais a sós. Nunca tinham estado...
A compreensão desse fato revolveu seu interior e fez
com que perdesse a serenidade habitual. Tinha a sensação
de estar postado diante de uma muralha de altura infinita.
Perry Rhodan precisou apenas de um instante para
que as feições do seu rosto se recompusessem. As batidas
furiosas do seu coração foram diminuindo. Mas não
diminuiu a pressão com que segurava o braço de Bell.
Imaginava que o amigo precisaria de mais tempo que ele.
Tinha sido o choque mais violento que o capitão Reginald
Bell já experimentara.
Cautelosamente Rhodan levantou o capacete circular
por cima da rocha. Seus olhos fixaram-se avidamente no
quadro titânico. Todas as dúvidas se desvaneceram.
Não, não era nenhum sonho. Tinha diante de si um
fato positivamente verdadeiro.
Ficou calado, até que Bell se manifestasse
espontaneamente. Não pensava mais em proibir a
utilização do transmissor portátil. Sabia que seria inútil.
— Você sabia, não é? Já sabia há algumas horas —
cochichou Bell. — Foi por isso que tive que fazer a barba.
Como foi que você soube Perry?
— Não se exalte meu caro, não adianta — disse
Rhodan. — Aquela nave espacial que você está vendo ali
não foi construída na Ásia. O fato é que não veio da
Terra. Desconfiei disso quando surgiu a luz verde.
Nenhum homem seria capaz de criar um campo
energético desses, nem conseguiria interromper nossa
transmissão dessa forma. Procure dominar-se. Temos que
enfrentar isso. Não temos alternativa.
Bell ergueu-se. Seus olhos adquiriram vida. Depois,
olhou para frente.
— Fizeram um pouso forçado — disse após algum
tempo. — Rasparam a parede da cratera com uma força
tão grande que nem é bom pensar. Quem são eles? Como
serão? De onde veem? E o que será que querem aqui? —
concluiu Bell com um sorriso sombrio.
A pergunta fez com que Rhodan despertasse de vez.
Recuperou a capacidade de refletir e seus lábios
contorceram-se.
— Vamos descobrir — disse, com ênfase. — Agora
começa a surgir à lógica de um ato que parecia irracional.
É claro que tinham que interromper a nossa transmissão.
Ao que parece, não fazem questão de que, na Terra,
saibam da presença deles. Talvez pensem que, antes de
pousarmos, vimos essa nave gigantesca. Desta forma,
tudo se torna compreensível.
E, realmente, tudo era bem compreensível.
Subitamente, Rhodan viu aquele objeto com outros olhos.
Seu cérebro emitiu sinais de perigo, fruto de muito tempo
de convivência com situações que demandavam uma
avaliação rápida do momento.
Passou a olhar a nave com o senso objetivo de um
cientista. Não se via nenhuma reentrância, nenhuma
abertura visível. Apenas uma linha circular e abaulada
desenhava-se na linha equatorial.
A nave estava imóvel diante da parede rompida da
cratera. E, embora não apresentasse o menor arranhão, era
evidente que tinha havido um choque.
O veículo descansava sobre pés curtos que pareciam
colunas. Estavam dispostos em círculo e, aparentemente,
tinham sido estendidos ou desdobrados da parte inferior
da esfera. Era só o que se oferecia à visão.
O sol batia em cheio na espaçonave estranha,
fazendo-a brilhar com uma luminosidade vermelho
pálida. Para ver a parte superior, tinham que inclinar a
cabeça bem para trás. Mas, ao saírem de trás da rocha que
lhes impedia a visão, encontraram-se bem perto da nave.
Bell também recuperara o autocontrole. A prova era
sua voz áspera e calma.
— É a forma esférica pura, a concepção ideal de
uma nave espacial de grandes proporções, desde que se
disponha de um mecanismo propulsor adequado. O
diâmetro é de cerca de quinhentos metros! Ou melhor,
pelo menos quinhentos metros. É mais alta que a
cordilheira. Como se consegue fazer com que uma massa
como essa suba para o espaço? Aos poucos fico tendo
uma ideia bastante vaga das máquinas que devem ter sido
montadas no interior dessa nave.
Falando mais baixo, acrescentou.
— E nós que nos orgulhamos tanto de nosso êxito!
Atingimos a Lua com uma coisinha de nada. Um Pequeno
Polegar que mal e mal conseguiu completar o salto. O que
temos diante de nós deve estar além do nosso sistema
solar. Será que você faz ideia do que nós, seres humanos,
umas criaturazinhas tão presunçosas, representamos
diante daqueles seres ali?
— Se você disser macacos, vou explodir! — disse
Rhodan.
— Era a expressão que eu tinha na ponta da língua
— respondeu Bell com um sorriso. — Você é um homem
muito orgulhoso, não é?
— Orgulho-me de ser homem. Sinto orgulho pela
espécie humana, por suas qualidades, sua rápida evolução,
seu futuro brilhante. Já conquistamos a Lua e, um dia,
conquistaremos as estrelas.
Depois, olhando a gigantesca nave alienígena,
continuou:
— Essa nave espacial tão estranha, não prova que
seus ocupantes sejam mais inteligentes que nós. Talvez
estejam, até, usufruindo a herança deixada por dezenas de
milhares de gerações laboriosas, isto é, alguma coisa que,
simplesmente, caiu-lhes nas mãos. A ignorância não deve
ser confundida com a estupidez. Deve-se levar em
consideração o fato de o ignorante ter tido ou não
25
oportunidade para aprender e, se teve, ainda assim, tudo
depende do saber daqueles que se encarregaram de o
ensinar. Ninguém pode assimilar mais do que aquilo que
lhe foi transmitido por alguém. A espécie humana é uma
raça ainda jovem. Nossos cérebros parecem esponjas.
Tenho certeza absoluta de que ainda podem absorver
muita coisa. Portanto, não vá me dizer que, a essa altura,
você está se sentindo quase um macaco.
Rhodan zangara-se de verdade. Parecia até ter
esquecido o objeto que se erguia diante de seus olhos.
Bell riu, depois segurou cuidadosamente a arma
automática.
— Deixe isso — preveniu Rhodan. — Não
poderemos resolver os nossos problemas dessa forma.
Temos de admitir, de qualquer maneira, que não somos os
únicos seres inteligentes no Universo. O que não chega a
se constituir uma surpresa. Não toque na arma; a situação
é diferente da que prevíamos.
— Eu me sentiria melhor se aquilo fosse apenas uma
nave da Federação Asiática — cochichou Bell e, em tom
provocador, acrescentou: — O que é que vamos fazer
agora? Ainda bem que é você quem está no comando.
Estou ardente de curiosidade!
— E eu estou curioso há muito tempo — observou
Rhodan. — Parece impossível! Pelo menos tudo indica
que esses camaradas não têm intenção de nos matar. E há
outra coisa...
Voltou a olhar para o paredão de rochas esfaceladas.
— Um comandante sensato não faria um pouso
desses, não é? Eu, pelo menos, não faria. É de se supor
que alguém que arrasa metade de uma montanha de pedra
ao pousar, não o tenha feito de propósito. Ao que parece
estes desconhecidos sofreram alguma pane. Você não
acha que isso os torna mais humano?
Rhodan sorriu com suas próprias palavras.
— Alguma coisa não deve estar em ordem naquela
nave. E já que tenho fama de saber perder, vamos olhar
mais de perto.
Rhodan pôs-se de pé. Um sorriso irônico aflorou aos
seus lábios.
— Você está doido?! Abaixe-se! — gritou Bell —
Isso é uma loucura.
— Loucura? Veja a nossa situação! De qualquer
maneira, não conseguiremos sair daqui. Quando o general
Pounder enviar outra nave já estaremos, os dois mortos.
Além disso, a nova tripulação terá a mesma sorte que nós.
A esta altura já não adianta refletir. Será que uma cabeça
dura como a sua consegue assimilar esta verdade?
Como se este ponto de vista não bastasse, Rhodan
estava sendo devorado pela curiosidade: um instinto
primitivo e irreprimível do homem. O desassossego
constante provocado pelo que se escondia atrás de tudo
aquilo.
Subitamente, os olhos de Rhodan se estreitaram.
Alguém soltara uma risada. Fora apenas um ruído breve,
quase imperceptível. Mas não havia dúvidas de que
alguém rira.
Bell ergueu-se de um salto, com o dedo no gatilho.
Seu rosto estava pálido.
— Você ouviu — disse. — Alguém está sintonizado
na nossa frequência. Que diabo?
— O que você estava pensando? — soou a voz
indiferente de Rhodan. — Por que você acha que encenei
um pequeno drama com diálogos tão longos? É claro que
alguém está nos escutando. O fato de não terem destruído
os transmissores dos nossos capacetes constitui prova da
sua inteligência. Sabem perfeitamente que, com eles, não
emitiremos nada para a Terra. É uma lógica simples e
contundente. Vamos.
Bell permaneceu imóvel, com a arma na mão.
Parecia que sua curiosidade havia desaparecido
completamente. Com a voz arrastada e num tom frio,
disse:
— Se você quiser ir, vá. Quanto a mim, não sinto a
menor vontade de me lançar nos tentáculos de polvos
inteligentes ou outros tipos de monstros com um sorriso
cordato nos lábios. Prefiro ficar aqui.
O rosto de Rhodan tornou-se sério.
— Você anda lendo muitos romances de ficção
científica, meu caro. Um ser como o polvo jamais
conseguirá construir uma nave espacial, ainda que, contra
toda a expectativa, adquira inteligência. Não confunda a
fantasia com o saber estabelecido.
Encontramo-nos diante de um fato real. Lá, na Terra,
cientistas de renome que não escondem a certeza da
existência de vida inteligente no Universo, mas não
pintam quadros de horror. Portanto, não diga bobagens e
venha! Será que tenho que voltar insistir em que não
temos alternativa?
— Talvez tenhamos — murmurou Bell perturbado.
— A ideia de entrar nessa nave como carneiro indefeso
não me agrada nem um pouco. É uma violência contra o
meu instinto de conservação. Entende?
— Claro! Nunca deixo de compreender um
argumento razoável. É o instinto que faz o homem temer
o desconhecido, talvez seja esta a coisa mais razoável que
o Criador deu aos homens. É bom que seja assim.
Acontece que certas horas, teremos que dominar o
furacão dos sentimentos. Você virá comigo se quiser. Não
darei ordem nesse sentido.
Rhodan voltou-se. Andando rapidamente, saiu do
refúgio proporcionado pela rocha. Seu pensamento e seus
sentimentos passaram a ser dominados pela lógica pura.
Sabia que não havia outro remédio.
Sua arma automática balançava-lhe ao ombro. Os
braços pendiam ao longo do corpo. Rhodan não estava
disposto a transformar o primeiro encontro entre um
homem e uma forma estranha de inteligência em um
combate armado. Teria sido uma péssima saudação.
Indigna de um homem como ele.
Sentiu certo vazio dentro de si. À medida que se
aproximava do gigantesco objeto, crescia nele o
sentimento aflitivo provocado pela antevisão do encontro.
Os desconhecidos tinham tomado à iniciativa.
Não havia dúvidas. Agiram, porém, por via indireta.
Rhodan concluiu que a interferência nas transmissões de
rádio representara antes uma medida de precaução, não o
desejo deliberado de destruir. A ideia tranquilizou-o.
Passou a confiar no espírito que havia de reinar ali, ao
qual faria algumas concessões.
Enganara-se bastante na distância em que se
encontrava da nave. Esta era muito maior do que supunha.
As paredes da mesma erguiam-se cada vez mais
imponentes. Pareciam ameaçadoras e enganadoras.
Depois de ter percorrido algumas centenas de metros sob
a luz ofuscante do Sol, já não podia abranger toda a nave
26
com o olhar. Seu diâmetro devia ser superior a quinhentos
metros.
Os pés de pouso eram colunas enormes com grossas
placas de apoio nas extremidades. Quando percebeu a
semelhança com a concepção da Stardust sorriu
ligeiramente. O pensamento daqueles seres devia
funcionar de forma análoga a dos homens, pelo menos
sob o aspecto técnico-científico.
Ouviu, então, a respiração acelerada de Bell no
amplificador. Logo após viu aparecer a sombra do
companheiro.
Bell acompanhou-o em
silêncio. Não disse uma só
palavra. Rhodan cumprimentou-
o com a cabeça. O gesto parecia
bizarro por causa do capacete
pressurizado.
Bell retribuiu com um
sorriso. Embora conseguisse
dominar-se, não apagara dos
olhos um brilho estranho.
Seus passos tornaram-se
cada vez mais lentos. Por cima
deles, erguia-se a imensa forma
abaulada. O sol só cobria parte
do solo que ficava por baixo da
enorme esfera. Rhodan parou no
ponto onde começava a
escuridão total. Olhou para
cima.
Viu as aberturas largas da
parte inferior da saliência que já
observara na linha equatorial.
Esta havia se transformado em
um anel gigantesco com mais de
setenta metros de largura.
— Se resolvessem decolar
agora seríamos reduzidos a
átomos — disse calmamente.
Depois, apontou para cima.
— Aquilo ali deve ser a
abertura dos reatores, se é que a nave é impulsionada por
esses engenhos. É provável que o solo, que se apresenta
vitrificado em torno da nave, tenha sido levado à
incandescência. Calculo que nas condições da Terra, o
peso de decolagem de uma nave como essa seria de dois
milhões de toneladas. Como será que isso se desloca?
— Sugiro um foguete de São João — disse Bell em
tom sarcástico. Uma raiva surda apoderou-se dele. Ao que
parecia, ninguém lhes dava atenção. Dentro dele,
começou a se fazer ouvir uma voz que o chamava de
macaco. Bell não conseguia evitar. Não possuía a enorme
dose de autoconfiança do companheiro. Refugiava-se
num humor um tanto sem graça. Recorria,
invariavelmente, a esse subterfúgio quando o pensamento
lógico não mais bastava.
Rhodan conservou seu autodomínio. Imaginava que
alguma discussão devia estar sendo travada no interior da
nave. Provavelmente, também para aqueles
desconhecidos, a situação era embaraçadora. Sabiam, é
evidente, que poderiam livrar-se dos dois homens com
facilidade, provavelmente bastaria apertar um botão.
Rhodan considerou o fato como um ponto positivo.
Esses seres não lhes fariam mal, a não ser que fossem
guiados por uma ética totalmente inconcebível e não
conhecessem qualquer tipo de tolerância. De outra forma,
só lhes caberia continuar em silêncio ou transmitir algum
sinal de vida. Por isso, o major Rhodan armou-se de
paciência.
A reação de Bell foi diferente. Depois de alguns
instantes, disse em voz baixa e tom irônico:
— Embaixo da sua nave encontram-se dois monstros
horríveis que sentem fome e sede. Bom dia. Meu nome é
Reginald Bell. Os senhores tiveram a gentileza de nos
obrigar a um pouso de
emergência. Estamos aqui
para apresentar a conta.
Bell calou-se. Se a
situação fosse outra, Rhodan
teria caído na gargalhada. A
essa altura, porém, tinha a
garganta seca. Ao que
parecia, as palavras de Bell
não eram despropositadas,
embora, é lógico, não
passassem de brincadeira.
Não disseram mais
nada. Rhodan também se
sentiu tentado a pegar a arma.
Bell já agarrara o fuzil
automático. Rhodan estava se
controlando. Seu olhar de
censura provocou um gesto
desdenhoso por parte de Bell.
Uma luz ofuscante
surgiu tão inesperadamente
como a luminosidade verde
de algumas horas atrás.
Rhodan encolheu-se. A arma
automática desceu até a
altura do cotovelo contra sua
vontade, como se tivesse sido
atraída por alguma força
mágica. Praguejou,
estremecendo por dentro, e voltou a colocar a arma sobre
o ombro.
— Ponha isso de lado — gritou para Bell.
Uma abertura ampla surgira na esfera. Era de lá que
vinha a luz. Tudo se passara num silêncio absoluto, como
sempre acontece na Lua. Nunca antes Rhodan sentira falta
de um condutor de som como o ar.
Alguma coisa foi saindo da abertura. Quando a
extremidade tocou o solo, o objeto se abriu numa faixa
larga e totalmente lisa. Não aconteceu mais nada.
Rhodan foi andando devagar em direção àquela
superfície fracamente iluminada. Parou antes de lá chegar.
— É um convite — disse com voz abafada. — e
olhe que não há degraus. A porta fica apelo menos trinta
metros de altura. Bem que poderíamos colocar isso na
Stardust.
— Deve ser um teste de inteligência, não é? — disse
Bell, nervosamente, olhando para cima.
Rhodan foi até a rampa inclinada, que subia em
ângulo de quarenta e cinco graus mínimo. Quando
percebeu que estava sendo erguido, estendeu os braços
num gesto instintivo. Queria evitar uma queda e acabou
27
percebendo que não poderia cair. Suas botas não tocavam
a rampa. Ficavam suspensos alguns centímetros acima do
material fluorescente. Deslizou para cima como se
estivesse numa escada rolante.
Bell, atrás, soltou uma praga. Não conseguia tirar as
mãos de um apoio imaginário. De quatro, foi seguindo
Rhodan.
Foram colocados suavemente numa grande sala de
onde vinha à luz brilhante. Depois que as portas se
fecharam, tudo continuou em silêncio. Estavam a bordo
da estranha nave.
— Não haverá quem acredite nisso! — cochichou
Bell. — Ninguém! Resta saber se, algum dia, voltaremos
a falar com algum ser humano. Que pretende fazer?
— Negociar. Usar a inteligência. Que mais
poderíamos fazer? As situações deixam de parecer irreais
quando aceitamos as coisas como óbvias. Tudo depende
dos instintos. Tente desligá-los.
Ouviram um som agudo provocado pelo ar que
penetrava no compartimento. Outros sons também se
tornaram perceptíveis. Ainda era duvidoso, porém, se essa
mistura de gases seria respirável para um ser humano.
Rhodan percebeu que estavam sendo submetidos a um
teste. Se abrisse o capacete, arriscando as consequências,
esse ato irrefletido seria interpretado contra ele. Não sabia
que tipo de gás tinha sido introduzido ali, por isso ficou
imóvel até que se abrisse a porta interna.
Quando esta se abriu, viram um corredor amplo e
abobadado, que terminava em um poço fluorescente.
Prosseguiram. Não havia nada mais a discutir. A
nave parecia deserta. A situação fantasticamente estranha.
Bell sabia que seus nervos não aguentariam mais que
cinco minutos. Depois disso, perderia todo o
autodomínio. Tinha vontade de gritar e sair correndo dali.
De repente, ouviram uma voz clara, falando um
inglês perfeito.
— Podem abrir os trajes de proteção. O ar é
respirável para os senhores.
Rhodan soltou uma exclamação de espanto e
surpresa. Depois, abriu o capacete.
VI
Seu nome era Crest. Sua raça não fazia distinção de
nome e sobrenome. Era muito alto e magro, quase trinta
centímetros mais alto que Rhodan. Tinha, também, dois
braços e duas pernas, um tronco estreito e o rosto
intelectualizado de um homem muito velho, cuja pele
tivesse conservado a juventude e um vigor extraordinário.
A testa alta encimava dois olhos que revelavam uma
expressividade penetrante. Pela cor da pele poderia
pertencer a alguma tribo do Pacífico sul que tem tez
aveludada. Todavia essa impressão era afastada pela
vermelhidão albina dos olhos e pelos cabelos
esbranquiçados que cobriam sua cabeça. Alguma coisa
estranha e irreal parecia irradiar de sua pessoa, embora no
seu aspecto exterior guardasse grande semelhança com os
homens. As diferenças reais deviam estar nos aspectos
que não se percebiam imediatamente. Rhodan via-se
diante de um organismo, cuja construção era
completamente diferente da sua, mas que também
respirava oxigênio.
Na grande sala reinava um calor abafado. A luz,
muito forte, era azulada. Provavelmente, a parte extrema
das suas radiações já se situava no campo ultravioleta do
espectro. Deviam vir de algum planeta em que brilhava
um sol muito luminoso, muito quente e cujos raios
seriam, provavelmente, azulados. O tipo de iluminação e
o calor reinante na sala pareciam indicar isso. Era tudo o
que Rhodan conseguia perceber.
Não. Havia algo mais. Alguma coisa que notara no
começo.
Crest parecia fraco e esgotado. Seus movimentos
eram um tanto desajeitados. Tinha o aspecto de um
homem gravemente enfermo. Rhodan já notara que a
montanha tinha sido desbastada na parte interior. Teria
este fato alguma relação com a fraqueza daquela
inteligência superior?
Havia mais dois seres na sala. Também pertenciam
ao sexo masculino. Os olhos de Rhodan estreitaram-se
por um instante. Jamais observara tamanha letargia. A
falta de interesse e de participação e a sonolência
daquelas criaturas eram tamanhas que qualquer pessoa
notaria por mais superficial que fosse a observação.
Em comparação com eles, Crest, com toda a sua
debilidade, parecia vigoroso e cheio de vida. Os outros
dois seres vivos ali presentes não chegaram, sequer, a
virar a cabeça quando o visitante, que para eles devia ser
bastante estranho, entrou na sala.
Estavam deitados em seus leitos largos e muito
baixos, com os olhos fitos na tela oval ligada a certos
instrumentos, cuja finalidade Rhodan não compreendia.
Sequer percebia o cintilar que crescia e decrescia,
passando por todas as cores do arco-íris. Figuras
geométricas planas desfilavam numa variedade imensa.
Tudo isso era acompanhado de um zumbido agudo e
intermitente. Rhodan teve um pressentimento pouco
agradável. Alguma coisa não estava em ordem naquela
nave que parecia tão perfeita. A sala enorme estava
impregnada de um fluido de sonolência bem perceptível.
Ninguém tomava conhecimento da presença dos dois
homens.
Crest dirigira a palavra a um dos outros seres ali
presentes. Este retribuíra com um sorriso amável e cortês.
28
Deu uma resposta e voltou a olhar a tela.
Bell estava com a boca aberta de estupefação. Tudo
mudou, abruptamente quando a mulher entrou na sala.
Irradiava tamanha frieza e arrogância que Rhodan
estremeceu. Ela lançou um olhar insensível aos dois
homens e passou a ignorá-los.
Era da altura de Rhodan e tinha os olhos
avermelhados característicos de sua raça. Se estivesse na
Terra seria considerada uma beleza de primeira linha.
Mas Rhodan logo abandonou essa ideia, e preferiu tomar
em consideração a advertência que lhe vinha no íntimo.
Aquela mulher de rosto estreito e hostil era perigosa,
porque não parecia disposta a usar sua inteligência. Para
ela, os dois homens não passavam de répteis pré-
históricos que tinham os cérebros embotados.
Esta impressão assaltou Rhodan com uma pontada
dolorosa. Jamais alguém manifestara por ele tamanho
desprezo mesclado com indiferença. Nunca fora deixado
de lado com tamanha manifestação de repugnância.
Rhodan tornou-se lívido, cerrou os punhos. A mulher
usava uma roupa justa, com alguns símbolos que emitiam
uma fosforescência vermelha pregados na altura dos
seios. Só após algum tempo Rhodan notou que se
tratavam de distintivos hierárquicos. Crest, cujos
sentimentos pareciam ser bem semelhantes aos dos
homens, apresentou-a como Thora, a comandante da
nave. O homem débil, cujo rosto parecia exibir uma
juventude fascinante, tinha as maneiras refinadas de um
aristocrata.
Rhodan penetrara num ambiente em que reinava os
contrastes mais estranhos. Via uma apatia invencível ao
lado de uma cortesia extrema e, junto a ambas, uma frieza
hostil. Nunca passara por momentos tão esquisitos. Bell
comparou a situação a uma dança sobre um barril de
pólvora. Animou-se com a ideia de que não tinham
exigido a entrega das armas. Também isso era muito
estranho.
Crest examinou-os e estudou-os longamente. Ele o
fez sem disfarces, com uma franqueza tão grande que sua
atitude não poderia ofender os dois homens.
Rhodan ainda não proferira uma única palavra. Em
posição ereta, ficou parado no centro da sala quase vazia.
Crest voltou a deitar-se com um sorriso embaraçado.
Sua respiração era pesada. Rhodan voltou a perceber
sinais de preocupação nos olhos da mulher.
Ela dirigiu-se em tom bastante áspero aos dois
outros seres que se encontravam na sala. Um deles
ergueu-se ligeiramente do seu leito. Depois sorriu e
tornou a deitar-se.
Rhodan sabia que estava na hora de fazer alguma
coisa. Bell não suportaria a tensão por mais tempo. Seu
rosto pálido e os lábios contorcidos num sorriso forçado
diziam tudo.
Os olhos sombreados de Crest iluminaram-se.
Parecia sentir que o homem já estava saturado daquela
situação. Poucas vezes Rhodan chegara a observar uma
expressão de tamanha curiosidade nos olhos de qualquer
ser. Crest parecia estar ansioso por uma palavra salvadora.
Qual seria a sua posição a bordo da nave? Qual seria
o poder exercido pela mulher?
Rhodan avançou mais alguns passos. O capacete
balançava preso às dobradiças. A mulher virou-se
bruscamente. O movimento instantâneo com que colocou
a mão no cinto parecia uma advertência. Rhodan
enfrentou seu olhar. Enquanto os olhos da mulher
pareciam irradiar hostilidade, os de Rhodan assumiram
subitamente uma expressão de frieza que a deixou mais
admirada que contrariada. O sorriso rígido de Bell se
descontraiu. Seus olhos se iluminaram. Conhecia Rhodan.
Acabara de mudar de atitude, Agora só poderia seguir-se
uma luta decisiva ou então a reunião tomaria um caminho
razoável.
Rhodan passou pela mulher, que recuou como se
tivesse tocado num inseto venenoso.
Crest acompanhou tudo com bastante interesse.
Quando Rhodan chegou perto dele, fechou os olhos. Bell
nunca ouvira o comandante falar com voz tão suave.
— Sei que o senhor me compreende. No momento
não importa como isso é possível. Também nossa situação
atual não interessa. Meu nome é Perry Rhodan. Sou major
da Força Espacial dos Estados Unidos e comandante da
nave espacial Stardust, vinda da Terra. O senhor obrigou-
nos a realizar um pouso de emergência, mas prefiro, por
ora, não falar a esse respeito.
— Se der mais um passo, o senhor morrerá! — soou
uma voz quase sufocada pela raiva contida.
Rhodan virou-se devagar, exibindo seu sorriso
característico. Aparentemente, a mulher havia ligado
algum aparelho. Estava envolta por uma luminosidade
cintilante. Seu olhar revelava um misto de espanto e
indignação desmedida. Aos poucos Rhodan compreendia
o que se passava. Ela estava de tal forma imbuída de um
sentimento de superioridade e presunção que achava que
Rhodan estava cometendo um sacrilégio pelo simples fato
de aproximar-se do leito de Crest. Rhodan modificou sua
opinião sobre o motivo daquele desprezo. Ela se
considerava um ser dotado de inteligência superior, ao
passo que Rhodan não era mais que um homem da idade
da pedra. Era isso. Ele compreendera a situação.
Ao que parecia, Crest tinha percebido o que estava
acontecendo com Rhodan.
— Sinto muito — disse com voz débil. — Não
estava em condições de evitar as dificuldades. Não
esperávamos a sua chegada. Pelas informações que
tínhamos recebido, o terceiro planeta deste sistema solar
seria um mundo primitivo habitado por criaturas
subdesenvolvidas. Tudo indica que depois da nossa última
viagem de exploração a situação se modificou. Aconteceu
que não viemos para cá na intenção de estabelecer contato
com os senhores.
— Vá embora — interveio Thora. Tinha o rosto
rubro de raiva. — O seu procedimento é ilegal. A lei me
proíbe de manter contato com seres que ainda não tenham
chegado ao grau C na escala de desenvolvimento. Vá
embora!
Um mundo de esperanças desmoronou na mente de
Rhodan. Eram simples criaturas. Uma raiva impotente
apoderou-se dele.
— Se é assim, por que permitiu que subíssemos a
bordo? — perguntou em tom sombrio.
— É isso mesmo — exclamou Bell. — O que
significa tudo isso?
— A entrada dos senhores foi facultada por
iniciativa minha — disse Crest. — Não lhes será fácil
compreender isso. Os senhores pertencem a uma raça
jovem. Minha enfermidade fez com que me fosse possível
29
contornar a lei. Existe um dispositivo especial para esta
hipótese. Podemos estabelecer contato com seres
subdesenvolvidos logo que nossa existência...
— Compreendo — interrompeu Rhodan. —
Compreendo perfeitamente. O senhor está precisando de
auxílio?
Thora soltou um grito agudo de desprezo. Apesar
disso, parecia preocupada de novo.
— O senhor é muito jovem e ativo — disse Crest em
voz baixa. — Todos os seres da sua raça são assim?
Rhodan esboçou um sorriso. Tinha certeza absoluta
de que era assim.
— Não há nenhum médico a bordo? Por que
ninguém faz nada pelo senhor?
— A doença dele é incurável — disse Thora
laconicamente. — E agora vá. O senhor já me humilhou
bastante. Crest falou com o senhor. Minha paciência está
no fim. Sou eu quem comanda esta nave.
Bell estava começando a ficar espantado. Imaginava
que o primeiro encontro com seres inteligentes decorresse
de forma diferente. Parecia tudo tão irreal e teatral.
A guisa de resposta, Rhodan tirou o capacete. Seus
olhos ardiam. Ignorou aquela mulher. Crest mostrou-se
ainda mais interessado. Seu olhar tornou-se cortante.
— O senhor se recusa a obedecer? — cochichou fora
de si. — Sabe com quem está lidando?
Rhodan falou com uma grosseria flagrante:
— Sim, sei perfeitamente. Acontece que possuo um
cérebro que funciona muito bem, embora a comandante
dos senhores procure negar este fato. Por isso, também sei
que me encontro numa nave espacial ocupada por
dorminhocos. Quando me lembro do estágio de
desenvolvimento científico alcançado pelos senhores,
acho muito estranho que ninguém trate da sua doença. Ao
que parece, ninguém se interessa por ela. Tudo indica que
o senhor e a comandante são os únicos ocupantes desta
nave que ainda sabem raciocinar com clareza. Além disso,
tenho a impressão de me encontrar diante dos
descendentes irremediavelmente degenerados de uma raça
que já foi muito desenvolvida. Lamento ter que dizer uma
coisa destas, mas volte a cabeça e examine friamente
aqueles dois homens. Se estivessem na Terra, já teriam
sido internados num hospício.
Rhodan virou-se. Empunhava ameaçadoramente a
arma com a espoleta já em ignição.
Thora empalidecera. Repentinamente, duas figuras
metálicas que soltavam um zumbido estranho ergueram-
se atrás dela.
Rhodan conhecia apenas os robôs terrestres e os
computadores eletrônicos. Mas aquilo eram máquinas de
aspecto humanas, altamente aperfeiçoadas, que
dispunham de braços com armas e ferramentas,
concebidos de forma genial. Surgiram de repente.
Cabeças redondas sem olhos erguiam-se ameaçadoras.
Além disso, os canos saídos de vários aparelhos
desconhecidos ocupavam suas posições, presos a suportes
compostos de várias articulações.
— Pare com isso — soou a voz de Rhodan. — As
coisas desagradáveis devem ser ditas vez por outra. A
senhora sabe perfeitamente que falei a verdade. Se o fato
de a mesma tiver sido proferido por um selvagem a
incomoda, a senhora não deveria ter permitido que
entrássemos na nave.
Estava com o dedo no gatilho. Reginald Bell
procurava abrigo atrás de um dos leitos.
A mulher parecia fora de si. Com o rosto pálido
olhou para o cano da arma de Rhodan.
— O senhor se atreve!... — gemeu. Suas mãos se
contorceram. — Atreve-se a proferir palavras dessa
espécie na nave exploradora do Grande Império. Se não
saírem imediatamente mandarei destruí-los.
— OK. Aceito — disse Rhodan. — Nesse caso há
de permitir que decole com a minha nave. Afinal, isto
aqui é o satélite da Terra. Não estamos em condições de
viver aqui.
— Sinto muito, mas não posso permitir que
espalhem, a notícia da nossa presença entre os seres que
habitam o terceiro planeta.
— Muito bem! Nesse caso quer que morramos
asfixiados, não é? Não dispomos dos conhecimentos
técnicos acumulados pelos seus antepassados, que os
senhores evidentemente adquiriram por herança. Não
sabemos extrair oxigênio das pedras ou fabricar alimentos
com a poeira. Mal iniciamos a conquista do espaço.
Rhodan nunca teria esperado a reação que se seguiu
às suas palavras. Crest, que parecia uma criatura tão
calma, levantou-se com um grito agudo. Subitamente
parecia ter esquecido sua fraqueza.
— O que está dizendo? Iniciaram o quê?
— Iniciamos a conquista do espaço — repetiu
Rhodan em tom indiferente. — Esta expressão choca o
senhor? Trilharemos nosso caminho, e um dia também
possuiremos naves gigantes como esta. E isso acontecerá
muito mais depressa do que o senhor imagina.
— Espere, por favor — gemeu Crest. Rhodan
ergueu-se espantado. Abaixou a arma. Entre o enfermo e
a comandante Thora travou-se uma discussão tão
acalorada que ele julgou sua presença supérflua.
Lentamente foi para junto de Bell.
— É a situação mais idiota que já vi — cochichou
este apressadamente. — O que está acontecendo agora?
Estão se devorando uns aos outros? Seria bom que
déssemos o fora enquanto é tempo. Não gosto nem um
pouco desses robôs. O que você acha disso tudo?
As perguntas de Bell saíam-lhe da boca
precipitadamente. Tivera que manter-se por muito tempo
em atitude passiva. Rhodan observou atentamente a cena.
Depois disse com a voz sombria:
— Tenho a impressão de que estão discutindo sobre
o nosso destino. Não há dúvida de que esse homem tem
poder e influência. Se não fosse assim a mulher não se
humilharia tanto. É um diabo esta mulher. Ainda não vejo
claro. Como é que eles falam perfeitamente a nossa
língua? E o que significa a expressão O Grande Império?
Até parece que durante milênios a Humanidade foi
crescendo à margem de acontecimentos extraordinários
sem desconfiar de nada. É uma coisa horrível. Ainda
acontece que, provavelmente, esta não é a única raça
inteligente que existe no Universo. Vejo possibilidades
imensas. Continuaremos aqui. Controle-se, meu velho,
pelo amor de Deus! Entramos numa grande jogada, ainda
que tudo isto pareça ridículo. Essa gente lida com
concepções totalmente diferentes das nossas. Para eles são
perfeitamente naturais certas coisas que deixariam os
estadistas da Terra doentes se alguém falasse nelas.
Temos de tratar com eles de igual para igual. Somos os
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representantes da Humanidade, e é meu desejo que essa
Humanidade se torne grande, forte e unida. Você
compreende?
— Compreendo perfeitamente — disse Bell,
esticando as palavras. — Mas também sinto o desejo de
sobreviver.
— Acho que Crest está tomando uma decisão
importante. Veja só! A mulher paece estar encolhendo.
Está cada vez mais nervosa. Sinto que alguma coisa está
acontecendo. Olhe!
A comandante parecia fora de si. Seus olhos
fascinantes adquiriram uma tonalidade vermelho dourada.
Crest disse mais alguma coisa. Falou em tom ríspido e
decidido. Após isso ela assumiu uma posição tão angular
que Rhodan pensou que estivesse prestando alguma
homenagem.
Interceptou seu olhar misterioso. Estava muito
pálida. Parecia que as palavras de Crest haviam
desencadeado nela um sentimento desagradável. Virou-se
subitamente e desapareceu em companhia dos dois
enormes robôs.
Ficaram sozinhos. As duas criaturas apáticas
deitadas nos leitos não contavam; ao menos não contavam
para Perry Rhodan.
Crest caíra sobre o leito; estava exausto. Inclinou-se
sobre o estranho com um sentimento de real preocupação.
Olhando bem de perto; viu que na verdade se encontrava
diante de um homem muito idoso. A lisura da pele era
enganadora.
— Tenho um médico excelente na minha nave —
disse apressadamente. — Temos de examinar o senhor e
dispensar-lhe o tratamento adequado. Tenho a impressão
de que aqui ninguém lhe pode prestar auxílio. Há quanto
tempo já se encontra no satélite da Terra?
Crest recuperou-se um pouco. As feições marcadas
pelo cansaço descontraíram-se.
— Estou aqui há um período de tempo que o senhor
chamaria de quatro meses — disse baixinho. — Foi um
acaso. Tivemos de realizar um pouso de emergência.
Aproveitamos a oportunidade para aprender a língua
principal do seu planeta. O senhor deve achar isso
bastante estranho. Acontece que nossos cérebros são
diferentes dos seus. Nossa memória possui um registro
gráfico. Naturalmente ficamos ouvindo as emissões
radiofônicas dos homens. Ainda bem que não pousamos
no terceiro planeta. Os seus habitantes estão na iminência
de cometer um crime tremendo contra as leis universais.
— Sim, é a guerra atômica — disse Rhodan com a
voz aflita. — A situação é muito tensa. Lamento ter que
admitir isso. Garanto-lhe que os homens não desejam a
guerra.
— Não a desejam, mas provocam-na. Foi por isso
que fomos de opinião que a raça à qual pertencem os
senhores ainda leva uma vida primitiva. Acontece que
mudei de opinião. Os senhores são jovens, ativos e
dotados de uma receptividade extraordinária. Depois de
tê-los observado atentamente, decidi enquadrá-los na
escala de evolução D. Cabe a eu tomar uma decisão desta
espécie. Thora foi instruída para introduzir na memória
positrônica a nova classificação da raça dos senhores. Sou
o chefe científico desta expedição. Acho que é este o
nome que os senhores dariam ao meu cargo. Thora é a
encarregada da navegação. Os senhores compreendem? Já
conhecem distinções desta espécie no poder de comando?
Rhodan disse que sim. Até que os homens as
conheciam muito bem.
— As declarações dos senhores guardam relação
direta com a lei da classificação das raças promulgada
pelo Grande Império. Os senhores desde que já tenham
dado início à conquista do Universo podem ter seu nível
de classificação elevado por decisão de um cientista
autorizado pelo Império. Foi o que fiz. Com isso os
argumentos da Thora acham-se superados. Estamos
autorizados a entrar em contato com os senhores.
Sorriu ligeiramente. Nos seus olhos via-se a
expressão de um triunfo silencioso. Rhodan
compreendera. Reginald Bell soube interpretar
corretamente a posição rígida que assumira. Rhodan
estava certo de ter dado um passo enorme à frente.
— O senhor está precisando de auxílio — repetiu.
— Deixe-me buscar o nosso médico. Temos de fazer
alguma coisa.
— Deixemos isso para depois. Escute-me primeiro.
Aliás, não acredito que o senhor esteja em condições de
ajudar-me. Embora sejamos parecidos no aspecto exterior,
é provável que o funcionamento do meu organismo seja
completamente diferente do seu. A constituição do nosso
organismo também não deve ser a mesma. De qualquer
maneira os senhores estão em conformidade com os
requisitos da lei fundamental do Império. Têm muita
semelhança conosco, possuem espírito e conseguiram, de
certa forma, dar emprego útil à energia do núcleo
atômico, descoberta pelos senhores. Ainda não
cometeram o erro de utilizar essa energia fundamental
para sua autodestruição. Sou um dos principais cientistas
do Grande Império, um dos poucos homens que
conservou a força de vontade e a energia vital. A posição
de Thora os surpreendeu?
Bell lançou um olhar triste para as criaturas imóveis.
Ao que parecia, o programa singular tinha mudado.
Subitamente, ouviu-se um furacão de ruídos. As figuras
geométricas modificavam-se muito pouco.
— O motivo é esse? — perguntou Rhodan em tom
sereno. — A decadência da raça, não é?
— É certo. Pelo calendário dos senhores, minha raça
tem alguns milhões de anos de idade. Antigamente,
éramos iguais aos senhores: possuímos espírito de
conquista, energia e sede de saber. Há vários milhares de
anos, começou a decadência. O Grande Império
esfacelou-se. Certas inteligências exóticas se revoltaram
contra o nosso domínio e o reino dos astros começou a
oscilar. Sempre fomos soberanos bondosos, ao contrário
das outras formas de inteligência. Agora, chegamos ao
fim. O Império entrou em decadência e a luta pelo poder
absoluto está sendo travada. Mais de cinquenta raças
muito evoluídas travam guerras terríveis nas profundezas
da Via Láctea. Os senhores nada sabem a esse respeito. O
Sol fica muito longe do palco dos acontecimentos,
encontra-se num braço secundário da galáxia.
— O que estão fazendo para remediar a situação? —
indagou Bell.
— Nada. Já não fazemos mais nada — disse o velho
resignadamente. — Tornamo-nos fracos e apáticos.
Pertenço à dinastia reinante de Árcon. Thora, também.
Árcon é um mundo que fica a mais de trinta e quatro mil
anos luz daqui. Os senhores contam a distância em anos-
31
luz, não é?
Rhodan estava espantado. Era uma distância por
demais vasta para que a mente humana pudesse avaliar.
— Quer dizer que os senhores conquistaram o
segredo da viagem espacial a velocidade superior à da
luz?
— Claro que já! Isso aconteceu há algumas dezenas
de milhares de anos pelo calendário terrestre.
Conhecemos a Terra há cerca de mil anos. Foi naquela
época que fizemos nossa última visita à região. Depois
disso, teve início a decadência dos arcônidas. As viagens
de exploração foram suspensas, as naves espaciais
permaneceram nas respectivas bases. Todos são de
opinião que não poderemos escapar à ação de uma lei
natural. É verdade que ainda pensamos e planejamos. No
campo puramente espiritual concebemos planos
maravilhosos para a criação de um novo império. Mas não
passamos disso. Faltam-nos energia e força de vontade
para transformar em realidade os nossos pensamentos
fugazes. Negligenciamos assuntos da maior importância.
A decadência acentua-se cada vez mais; a própria dinastia
Reinante foi atingida. Todos procuram a beleza e a
tranquilidade, desistindo de qualquer tipo de realização.
Estamos muito velhos. Nossas energias desgastaram-se.
E... — os olhos de Crest estreitaram-se — até agora não
tínhamos descoberto nenhuma raça que fosse assim como
nós já fomos. Provavelmente os senhores constituem a
exceção maravilhosa. Foi por isso que os elevei na escala
da classificação. É meu direito e meu dever.
Dentro de Rhodan despertou o cientista. Via diante
de si inúmeras indagações e mistérios impenetráveis.
— Pelo que acaba de dizer, os senhores estão aqui
há quatro meses. Por que ainda não decolaram?
Crest confirmou com um gesto comedido. Seu olhar
tornava-se cada vez mais penetrante.
— A pergunta é própria de um ser inteligente,
dotado de uma tremenda energia. Por que ainda estamos
aqui? O pouso de emergência no satélite da Terra foi
motivado por uma falha das máquinas. Ninguém se
preocupa mais com a manutenção das nossas naves
espaciais. A avaria é pequena, mas não temos peças
sobressalentes a bordo. Simplesmente foram esquecidas,
da mesma forma que tudo quanto é importante costuma
ser esquecido. Ninguém se lembrou. Por isso estamos
presos aqui. Ficamos esperando indefinidamente, e não
acontece nada. Minha doença me impede de adotar
pessoalmente as providências necessárias. Temos
necessidade premente de peças sobressalentes. Não
acredito que poderíamos obtê-las no mundo a que
pertencem os senhores.
— Poderemos confeccioná-las — disse Bell. —
Basta mostrar-nos como são feitas, e elas lhes serão
entregues dentro de pouco tempo. O senhor não nos deve
subestimar. Os maiores cérebros da Terra trabalharão a
todo vapor. Arrancaremos as estrelas do céu, desde que o
senhor nos diga como fazê-lo. A indústria da Terra é uma
organização enorme. Conseguiremos qualquer coisa. Isto
mesmo, qualquer coisa.
Estas palavras otimistas reanimaram Crest.
— Acredito no senhor — disse em tom exaltado. —
Os senhores têm de conquistar Thora. As mulheres da
nossa raça são menos degeneradas que os seres do sexo
masculino. É por isso que as mulheres ocupam tantas
posições importantes. Essa situação já existe há séculos.
Antes disso as mulheres só se ocupavam dos afazeres
domésticos. O espírito de Thora ainda é lúcido e
penetrante. Major Rhodan, o senhor é o homem indicado
para ela. Thora tem medo do senhor. O fato me
surpreende.
Rhodan engoliu em seco. Então era isso! Bell sorriu.
A situação complicara-se ainda mais.
— Não se admirem se me exprimo em conformidade
com as concepções dos senhores — disse Crest. — Há
muito tempo está sob a minha responsabilidade, os
contatos com inteligências alheias. Estou acostumado a
adaptar-me rapidamente à mentalidade de qualquer raça.
Dessa forma a presença dos senhores não foi nenhuma
surpresa para mim. É um acontecimento banal. Os
senhores estão profundamente impressionados; chegam a
estar deprimidos. Até aqui ignoravam que não são os
únicos seres inteligentes do Universo. Já tive
conhecimento de muitos casos semelhantes. O primeiro
contato com um ser superior sempre causa um choque.
Mas os senhores já superaram este choque.
— O que está fazendo essa gente? — indagou
Rhodan com a voz abafada. A música estranha mudara de
novo. Transformara-se num tipo de murmúrio persistente.
Crest virou a cabeça num gesto cansado.
— É o conhecido jogo do simulador, que influiu
decisivamente na decadência do espírito e da vontade dos
seres da nossa raça. Bilhões de arcônidas passam os dias
deitados diante das telas de imagem. Trata-se de jogos
fictícios. Cada um deles foi concebido por um
profissional diferente. São muito complicados.
Representam a ilustração visual e acústica dos
pensamentos. Os seres da minha raça não se interessam
por mais nada. A coisa está cada vez pior. A bordo desta
nave só há cinquenta pessoas. Raramente chego a vê-las.
Quando isso acontece estão deitadas diante das telas de
imagens fictícias, perdidas no seu enlevo. Nossa
decadência nada tem que ver com relaxamento dos
costumes. Decorre da debilitação total da vontade. Tudo
nos deixa indiferentes. Nada nos excita. Nada nos
interessa. A obra de qualquer artista novo sempre tem a
precedência. Todo mundo anda tão ocupado que se
apressa em gozar com a maior rapidez as delícias da
criatividade artística.
— Que dizer que deixaram o senhor jogado aqui por
quatro meses? — disse Rhodan, revoltado no seu íntimo.
— Não fizeram qualquer tentativa de encontrar algum
remédio? Para os seres da sua raça isso devia ser fácil.
— Seria fácil se alguém se animasse a agir. Temos a
bordo medicamentos em quantidade suficiente. Acontece
que fui acometido de uma enfermidade ainda
desconhecida entre nós. Haveria necessidade de exames e
pesquisas. Estas, porém, exigiriam tempo, esforço e
trabalho intenso. E isso não é possível. Nesta nave
encontram-se artistas de renome, que constantemente
criam novas obras fictícias. A tripulação de robôs mantém
a ordem na nave. O pouso de emergência dos senhores
também foi obra desses mecanismos automáticos.
Decorreu do funcionamento normal dos dispositivos de
segurança. O cérebro positrônico constatou que não
devíamos manter contato com os senhores. Por isso ligou
as chaves correspondentes. É muito simples.
— Muito simples! — gemeu Rhodan. Sentia-se
32
tomado por uma perturbação terrível. — O senhor
considera simples coisas que para nós soam como contos
de fadas. A propósito, o que significa a palavra
positrônico? Nós dispomos de computadores eletrônicos
cuja, capacidade é enorme. Mas um positron é uma coisa
muito efêmera.
Crest riu. Nos seus olhos surgiu uma expressão que
parecia: ser de piedade paternal. Bell engoliu uma palavra
áspera.
— O senhor acabará compreendendo. Não estamos
mais em condições de decolar. Será que poderei contar
com o seu auxílio?
Subitamente Rhodan voltou a transformar-se no
comandante — e também num homem. Os efeitos da
surpresa imensa haviam passado. Começou a refletir com
a precisão fria de uma máquina.
— Os últimos comunicados dos nossos serviços
secretos revelam que só através dos esforços mais
intensos poderá ser evitada a irrupção de uma guerra entre
o mundo ocidental e as potências da Federação Asiática,
cujas consequências certamente seriam terríveis. Não
posso explicar em pouco tempo o motivo por que será
difícil evitar essa guerra. No fundo esse motivo deve ser
procurado nas diferenças ideológicas. Provavelmente o
senhor não conhece nada disso. Acontece que na Terra
prevalecem estas condições. Desejo formular uma
pergunta clara.
Crest soltou um suspiro profundo.
— Uma pergunta clara! — repetiu. — Desde a
minha juventude não ouço uma formulação dessas. Entre
nós ninguém mais faz perguntas claras. Por obséquio,
diga o que deseja.
— O senhor dispõe de meios para impedir um
conflito arrasador com armas atômicas? Em caso
afirmativo, que meios são esses?
— De que tipo seriam as armas atômicas? —
perguntou Crest bastante interessado.
— São de duas espécies. Numa espécie é usado o
processo de desintegração nuclear, noutra a reação
termonuclear.
— O processo de desintegração pode ser impedido
por meio da absorção completa dos nêutrons liberados.
Conheço o processo primitivo da desintegração nuclear,
que é muito antigo. Na ausência das partículas que os
senhores chamam de nêutrons o mesmo não é possível.
— Perfeitamente. Sabemos disso, mas não temos
meios para conseguir a absorção dos nêutrons. E que tal
as termonucleares, como as bombas de hidrogênio?
— Também se trata de um processo antiquíssimo,
que já não é utilizado entre nós. O dispositivo
antineutrônico não serve para impedir a fusão nuclear.
— É verdade. Acontece que por enquanto entre nós
só se conhece a chamada ignição quente. Todas as
potências da Terra dependem de um dispositivo de
ignição térmica baseado na desintegração nuclear para
desencadear a reação da carga de hidrogênio das grandes
bombas. Na falta da carga nuclear que fornece o impulso
térmico inicial jamais se conseguirá a fusão dos prótons
mais leves.
— Vejo que o senhor é cientista. Muito bem.
Garanto que essas armas falharão totalmente, desde que
ainda funcionem com o processo de ignição primitivo.
Para isso basta um pequeno aparelho.
— Para toda a Terra? — indagou Rhodan surpreso.
— A Terra é um planeta pequeno, e nossa nave
representa um poderio tremendo. Conseguiremos.
Rhodan engoliu desesperadamente em seco. Não
tinha coragem de fitar os olhos arregalados de Bell. O
técnico sentia-se aturdido. Aquele estranho falava de
todas essas maravilhas com a mesma desenvoltura que um
menino da Terra demonstraria ao conversar com
coleguinhas sobre seus brinquedos.
— Nesse caso, valerá a pena levá-lo à Terra para ser
tratado. Mas é necessário que o Dr. Manoli o examine
imediatamente. Ele descobrirá a natureza do seu mal.
Quem sabe se oferecendo alguns dados sobre a estrutura
do seu organismo e sobre o seu metabolismo, o senhor
pode facilitar-lhe o diagnóstico. Em minha opinião, seria
conveniente que ele estivesse a par de tudo.
— Partiremos com o veículo blindado — disse Bell
com a voz inquieta. — Santo Deus! Se não chegarmos a
tempo Fletcher apertará o botão de decolagem. Será o
diabo!
— Não é necessário que vá até lá — disse Crest em
voz baixa. — Fale com Thora. Major Rhodan, o senhor
ainda não sabe do que somos capazes.
VII
O Capitão Fletcher tremia como vara verde.
Apavorado, passou os olhos pela sala circular daquela
nave imensa.
Thora observava-o com uma expressão de ironia nos
olhos. O Dr. Eric Manoli desaparecera logo. Precipitara-
se sobre Crest com o verdadeiro entusiasmo de um
pesquisador. Havia mais alguns homens na sala.
Ofereciam um aspecto desajeitado que inspirava
compaixão, muito embora, segundo as informações de
Crest, se contassem entre os indivíduos mais ativos
daquela raça.
Rhodan, todavia, teve a impressão de que todas as
partículas daqueles seres debilitados ansiavam apenas
pelo próximo programa fictício. Embora envergassem o
uniforme do Grande Império, pareciam pensar
exclusivamente nas telas simuladoras.
Era este o aspecto dos descendentes de uma raça
cósmica outrora poderosa. Seria difícil imaginar que os
antepassados daqueles seres haviam fundado um império
galáctico.
Rhodan não acreditava que uma colonização desse
tipo tivesse sido levada a efeito sem sangue e lágrimas.
Mas tudo isso pertencia ao passado. Encontravam-se
diante dos restos de um grande povo, cujo legado técnico-
científico já não poderia ser aproveitado. A lembrança da
operação de resgate causava vertigens em Rhodan.
Thora estivera sozinha na sala de comando apinhada
de aparelhos, cuja profusão era perturbadora para ele.
Rhodan não contava os numerosos robôs, embora afinal
eles tivessem realizado todo o trabalho.
Fletcher quase enlouquecera quando a Stardust foi
erguida por uma força apavorante. Sentia arrepios ao
lembrar-se de tudo aquilo.
— Foi terrível — disse com a voz abafada. — Nossa
solidão já se tinha tornado quase insuportável. Eric e eu
nos revezávamos no serviço de guarda. Contávamos
33
sempre com o aparecimento repentino de alguma patrulha
asiática. E vivíamos pensando em vocês e na mensagem
radiofônica que pretendiam enviar. De repente
começaram os solavancos. Alguma coisa levantou a nave
como se fosse uma pena. Não vimos nem ouvimos nada.
Tomado de pânico, liguei a chave de partida. Dei a força
de empuxo máxima, sem utilizar o dispositivo
automático. Foi em vão. Subitamente o reator deixou de
funcionar, e lá se foi todo o empuxo. A Stardust foi
arrastada por cima da cratera. Logo depois vimos à nave
gigantesca. A essa altura nos pousaram com tamanha
delicadeza que mal sentimos um ligeiro solavanco. Fiquei
feliz quando vi a cara de Bell. Será que vocês têm mais
alguma surpresa para nós?
Sim, havia mais uma surpresa. Em termos lacônicos,
Thora deu explicação do fenômeno. Tratava-se
simplesmente da criação de um campo energético
destinado à movimentação de objetos dotados de
estabilidade material. Era um procedimento corriqueiro
em Árcon.
Escolhera cautelosamente as palavras, mas não
conseguira disfarçar a ironia. Ainda não se esquecera.
Provavelmente não conseguiria esquecer tão depressa.
Para ela os homens continuavam a serem criaturas
subdesenvolvidas. Só mesmo a situação difícil em que se
encontravam justificava a cooperação com os mesmos.
Era por isso que ela os tinha aceitado, mais nada.
Encontravam-se numa pequena antecâmara, à espera
do Dr. Manoli. Este conseguira material gráfico suficiente
para formar uma idéia sobre a construção do organismo
de um arcônida. De qualquer maneira, Rhodan tinha
certeza de que Manoli teria de enfrentar um problema
médico excepcional. Certamente surgiriam inúmeras
dificuldades. Não se poderia esperar que qualquer médico
terreno conseguisse familiarizar-se com um organismo
totalmente estranho num verdadeiro golpe de
prestidigitação. Tratava-se de um objeto de estudo
completamente distinto. E ainda havia a considerar os
enormes perigos que poderiam resultar de qualquer
espécie de tratamento.
A intervenção do médico representaria um jogo
arriscado, que envolveria a vida daquele ser. Ninguém
poderia prever como o mesmo reagiria aos medicamentos
usados na Terra.
De qualquer maneira poderia confiar no
discernimento de Manoli. Se não houvesse possibilidade
de auxílio imediato teriam de recorrer às maiores
inteligências da Terra. Rhodan estava decidido a fazer
trabalhar toda a indústria farmacêutica do planeta a pleno
vapor, se isso fosse necessário. Essa criatura tinha de ser
salva. Pouco importava como.
O Doutor Manoli desaparecera há dez horas.
Ninguém poderia prestar-lhe ajuda. Nenhuma das outras
pessoas que se encontravam a bordo da nave era médico.
Thora parecia cada vez mais inquieta. Percebia que se
encontrava numa encruzilhada decisiva da sua existência.
Suas ideias sobre as possibilidades de desenvolvimento da
raça humana ainda eram muito confusas.
Rhodan observou-a bastante preocupado. Ela se
esforçava para ocultar a angústia que a roia atrás de uma
ironia causticante e uma generosa condescendência.
Sentia, porém, que aquele homem alto, cujos olhos
cintilavam numa expressão de ironia, percebia o que se
passava no seu interior.
Tudo seria simples para Thora se aquelas
inteligências estranhas não tivessem o mesmo aspecto dos
indivíduos da sua raça. Assim, porém, a situação a
perturbava e deprimia, colocando-a numa posição
embaraçosa. Saberia lidar sem quaisquer dificuldades
com criaturas que não tivessem a aparência humana.
Aqui, porém, o caso mudava de figura. Sentia a vontade
firme de Rhodan, que não queria ceder um palmo sequer.
Fazia questão de ser aceito, de ver reconhecida sua
qualidade de ser inteligente. Arrogava-se o direito de
comparar-se a ela, que era uma arcônida. Esse fato quase
chegou a desencadear nela uma tormenta interior.
Subitamente teve consciência da posição excepcional que
a raça humana ocupava no Universo. Antes disso
ninguém adotara diante dela uma atitude tão franca e
desafiadora. A mesma estava acostumada a ver todo
mundo humilhar-se, reconhecendo sem qualquer restrição
o seu poder imenso. Tudo isso parecia não atingir aquele
homem. Ele a fez ferver de raiva com seu sorriso
impertinente. Depois a tratou como uma criatura tola.
Thora estava muito irritada.
Ficou rígida quando Rhodan voltou a aproximar-se
dela. Seu olhar furioso foi retribuído com um amável
aceno de cabeça. Será que ele não percebia nada, ou não
queria perceber? Tudo indicava que não queria perceber.
Tal atitude a assustou.
— Tenho outra pergunta bem clara — disse Rhodan.
— Ou melhor, meu espírito está ocupado com certo
problema. Diga-me uma coisa. No seu mundo existe
qualquer meio de pagamento, isto é, dinheiro ou qualquer
outro instrumento de troca?
— É claro que o intercâmbio comercial entre mais
de dez mil planetas habitados não poderia prescindir de
meios de pagamento — respondeu Thora em tom irônico.
— Muito bem — disse Rhodan com um sorriso. —
Terei de levar Crest para a Terra. A bordo do nosso
foguete minúsculo não temos os medicamentos de que
precisamos, nem os instrumentos necessários aos exames.
Talvez haja necessidade de uma operação. O que pode
oferecer em pagamento? Títulos de crédito ou dinheiro
dificilmente nos interessariam, pois não saberíamos o que
fazer com isso. O que tem para oferecer, portanto? Que tal
algum material sintético valioso? Alguma substância
artificial ou coisa que o valha?
— Levamos a bordo bens de troca normais para os
mundos em desenvolvimento dos níveis C e D. Trata-se
de máquinas-ferramentas que dispõem de suprimento de
energia próprio, comando integral por robô e garantia de
funcionamento de oitenta anos pelo calendário terrestre.
Existem máquinas para todos os tipos de atividade
econômica. Ainda posso oferecer equipamentos
micromecânicos, tais como aparelhos portáteis para a
procura de elementos químicos, a reforma do solo, a
neutralização da gravidade com vistas ao transporte aéreo
individual e...
— Pare, senão acabo endoidecendo — gemeu
Fletcher. — Isso é uma loucura. A Terra ficará de pernas
para o ar. Os homens se matarão por essas máquinas
milagrosas.
— Isso não é comigo. Para as inteligências
primitivas só tenho objetos inofensivos.
34
— E o que tem para oferecer às tais inteligências
verdadeiras? — indagou Rhodan. — Está bem! Deixemos
disso. Posso imaginar. Faça o favor de providenciar para
que a Stardust seja abastecida. Ponha na nave tudo aquilo
de que Crest vai precisar. E — interrompeu-se — faça o
favor de não esquecer aqueles aparelhos especiais. Acho
que a senhora ainda se lembra da nossa palestra.
Thora observou-o atentamente. Um sentimento de
respeitosa aceitação começou a surgir no seu íntimo.
— Sabe que está arriscando sua vida? Compreendo
os seus motivos. Acho que faz bem. Só penso nas reações
bárbaras dos seres sub... isto é...
— Pode pronunciar a palavra sem susto — disse
Rhodan com um sorriso. — Isso não me atinge mais.
Nesta altura vejo em você alguém indeciso que já não
sabe bem o que diz. Esqueçamos isto. Peço-lhe que
comece imediatamente com o carregamento. Retire tudo
que se encontra no porão de carga da Stardust. Tenha
cuidado para que não sejam colocadas mais de sessenta
toneladas de carga útil. O pouso será difícil. Aliás,
pensando melhor, quem sabe se não quer nos ceder uma
das suas grandes naves auxiliares? Com ela atingiríamos a
Terra dentro de uma hora.
— Dentro de cinco minutos — corrigiu Thora. —
Lamento, mas minha boa vontade não chega a esse ponto.
Só mesmo Crest e alguns dos aparelhos que se encontram
nesta nave poderão tocar o solo da Terra. Não posso
proceder de outra forma. Tenho de ater-me às instruções.
— Crest colocou-nos numa classificação mais
elevada.
— Foi sorte sua. Se não fosse assim nem
poderíamos conferenciar com os senhores. Assim mesmo,
não posso enviar qualquer nave auxiliar à atmosfera
terrestre. O cérebro positrônico não iria cooperar. E não
posso modificar a regulagem do robô gigante. Nossa
missão era outra.
— Qual era? — perguntou Rhodan com uma
sensação desagradável.
— Lamento mais uma vez. De qualquer maneira não
pretendíamos pousar aqui. Nosso destino era outro.
Ficava a alguns anos-luz de distância.
O Dr. Manoli apareceu. Estava pálido e esgotado.
Sua saudação parecia um gesto de recusa.
— Não façam perguntas. Foi mais que cansativo.
Diferem de nós menos do que eu temia. A disposição dos
órgãos é bem compreensível se bem que seja diferente da
nossa. O esqueleto também não é igual ao nosso. Todavia,
possuem sangue idêntico ao humano. Trata-se de um caso
de leucemia. O hemograma prova-o com absoluta certeza.
Vali-me de todas as possibilidades que nosso laboratório
de bordo oferece. Há dois anos conseguimos produzir o
soro antileucêmico. Até então a doença era incurável.
Agora só me resta fazer votos para que Crest reaja ao
nosso soro. Talvez o resultado seja catastrófico. Digo
talvez; não tenho certeza. Biologicamente, os arcônidas se
parecem muito conosco. Tenho plena certeza de que é
leucemia...
Rhodan voltou a sobressaltar-se. Thora, toda
assustada, perguntou quais eram as causas da moléstia.
Subitamente perdera seus ares de superioridade.
— Comece logo! — disse Rhodan em tom áspero.
— Não faça perguntas. Comece com o carregamento da
nossa nave. Está em cima da hora. O diabo que carregue
todos os dorminhocos da sua raça. Pouco me importa que
não goste da expressão. É uma vergonha que inteligências
superiores se entreguem a um divertimento de loucos.
Para um ser humano tal atitude seria inconcebível.
Comece logo! Ou será que não se preocupa com a saúde
de Crest?
Thora refletiu um pouco. Depois respondeu num
tom inexpressivo:
— Há pouco o senhor perguntou o que estávamos
procurando nesta região do espaço. Pois eu lhe direi.
Estamos empenhados em conservar nossos grandes
espíritos. Não conseguimos realizar a manutenção da vida
biológica. Apenas alcançamos alguns êxitos parciais. Fui
incumbida de ir a um planeta descoberto numa expedição
anterior, cujos habitantes conhecem o segredo da
conservação biológica das células. Crest é uma das
personalidades mais importantes da nossa raça. Além
disso, não foi atingido pela decadência geral. Salve-o!
Tome qualquer medida que seja concebível. Dar-lhe-ei
todo o apoio. Ouça bem, major Rhodan: todo o apoio.
Olhe que isso significa alguma coisa! Caso haja qualquer
dificuldade, uma chamada pelo transmissor especial basta.
Seguirei suas recomendações à risca. É bom que saiba que
o poder dos governantes terrenos não passa de um nada
ridículo, que posso varrer para todo o sempre, apenas
ligando uma chave. Com esta nave poderia destruir todo o
sistema solar. Um único dos meus canhões energéticos
bastaria para transformar um continente inteiro num
oceano incandescente de rochas derretidas. Lembre-se
disso e avise-me assim que precisar de qualquer coisa.
Saiu sem dizer mais nada. O rosto do capitão
Fletcher apresentava uma palidez cadavérica.
— Mesmo que nunca tivesse acreditado em nada,
aceitaria isto aqui como verdade pura — disse. — Santo
Deus, onde é que fomos parar? E o que vai sair de tudo
isto? Washington ficará de pernas para o ar.
— Talvez não! — objetou Bell, esticando as
palavras de tal maneira que Fletcher estremeceu.
— Por que diz isso?
— Por nada.
Bell fitou os olhos vidrados no seu comandante.
Quando Fletcher se dirigiu ao Dr. Manoli, Reginald Bell
indagou, esticando ainda mais as palavras:
— O que há com você, meu velho? Alguma coisa
não está em ordem, não é mesmo? Qual foi a conversa
secreta que teve com Thora?
— Quem sabe não lhe fiz uma proposta de
casamento — respondeu Rhodan ironicamente. Seu olhar
era uma advertência. Voltou a ter os olhos de um
conquistador implacável. Ao menos foi essa a impressão
de Bell.
— Alguma objeção?
Não, o Capitão Reginald Bell não fez mais nenhuma
pergunta. Pelo contrário. Ficou muito calado. Os robôs
passaram ao seu lado. A Stardust foi carregada com todo
cuidado com objetos tirados do gigantesco arsenal da
nave esférica. Tratava-se de instrumentos, cujo peso total
era de 60,3 toneladas; esse peso foi calculado segundo as
condições existentes na Terra.
Rhodan entrou na sala em que se encontrava Crest.
Com um sorriso animador disse:
— Estamos de partida. Infelizmente, Thora continua
a recusar-se a colocar uma nave auxiliar à nossa
35
disposição. Não se poderia fazer alguma coisa? Na
Stardust seu organismo estará sujeito a tensões
consideráveis. Ainda não descobrimos nenhum meio para
neutralizar a força da inércia. Por isso a energia resultante
na aceleração será muito elevada.
— Não tenho nenhum meio de influir nesse tipo de
decisões. Todavia, os senhores não sofrerão mais os
efeitos da inércia. Teremos um neutralizador a bordo. Não
sentirão absolutamente nada.
Rhodan voltou a engolir em seco. Compreendeu que
já estava na hora de perder o hábito de ficar admirado. Ao
que parecia os arcônidas conseguiram realizar tudo aquilo
que para a ciência terrena ainda se situava no terreno
longínquo e nebuloso dos problemas insolúveis.
VIII
— Eles conseguiram, eles conseguiram!
Estas palavras foram repetidas sem cessar. O general
Pounder, chefe do Comando de Pesquisa Espacial e
Diretor do campo de Nevada Fields parecia não saber
outras. Não tirava os olhos da grande tela do radar.
Depois de quatorze horas de viagem, a Stardust
mergulhara nas camadas superiores da atmosfera terrestre.
Estava iniciando a terceira órbita elíptica de frenagem.
Ainda no espaço vazio conseguira reduzir sua
velocidade para cinco quilômetros por segundo. A
experiência havia demonstrado que as previsões sobre o
desempenha do novo mecanismo propulsor químico
nuclear não foram exageradas. O estoque de material
irradiante de que ainda dispunha permitiu manobras que
teriam sido completamente impossíveis se a nave
trabalhasse com algum combustível químico.
Pouco antes de chegar às primeiras moléculas de ar
o curso da nave foi alterado Os dispositivos automáticos
não apresentavam qualquer defeito; funcionaram com a
maior precisão. Ao que tudo indicava, não havia a menor
possibilidade da ocorrência de outra pane.
O comunicado em que o major Rhodan explicou as
causas do seu longo silêncio parecia um pouco estranho.
Segundo declarou através da radiofonia, teriam surgido
problemas nos comandos do mecanismo propulsor.
Acrescentou que só depois do pouso poderia fornecer
dados mais detalhados.
Fazia alguns segundos que a Stardust voltara a
penetrar no campo atingido pelos instrumentos de
medição das estações do Alasca e da Groenlândia.
Encontrava-se a uma altitude de apenas 183 quilômetros,
a sua velocidade era pouco superior a 800 quilômetros por
hora.
Pounder virou-se contrariado. O homenzinho dera
notícia da sua presença através de um pigarro.
O chefe do Serviço Secreto da OTAN, Allan D.
Mercant, não se deixara convencer a sair da estação
central de comando. Sabia que estava incomodando, mas
esse fato não incomodava a ele.
Surgira repentinamente há três horas. Seus
acompanhantes tinham se retirado em silêncio. Após isso
os tanques da 5.a Divisão dos Estados Unidos surgiram
inesperadamente. Em nenhuma outra oportunidade a base
de Nevada Fields fora bloqueada de forma tão completa.
Além disso, aterrissaram enormes aviões de
transporte com tropas de elite. A Divisão de Defesa
Interna da Polícia Federal destacara seus melhores
elementos para a missão. Um contingente enorme de
tropas e de armamento pesado aguardava o pouso da
Stardust.
O general Pounder ficara furioso. Allan D. Mercant
exibiu o sorriso amável de sempre.
— Sinto muito, general. Foi o senhor mesmo que fez
rolar a avalanche. Gostaria de saber o que aconteceu
realmente com aquela nave. As informações do
comandante parecem um pouco estranhas, não acha?
— Para isso não seria necessário mobilizar uma
divisão inteira com dez mil homens — berrou o general
Pounder.
O Chefe do Serviço de Defesa só podia lamentar o
ocorrido. Em sua opinião era necessário. Por um instante
Pounder pensara em avisar os quatro pilotos pela
radiofonia. Todavia, isso não foi possível porque,
subitamente, alguns homens à paisana surgiram na sala de
rádio.
Pounder não sabia o que pensar de tudo isso. Os
técnicos e os cientistas estavam nervosos. O chefe militar
do serviço de segurança do campo espacial de Nevada
tinha sido posto fora de combate por algum tempo.
— O que deseja desta vez? — disse Pounder
nervoso. — Não está vendo que a Stardust vai pousar
segundo as previsões?
— Acontece que não vai — observou Mercant. Seu
sorriso jovial desapareceu. — Está havendo um desvio do
curso. Veja. O que significa isso, general?
Pounder virou-se apressadamente. No mesmo
instante soou o comunicado inquietador do comando
remoto. Lâmpadas acenderam-se, o zumbido cessou.
— Contato interrompido — ouviu-se a voz metálica.
— Piloto assume comando manual do foguete.
— Será que Rhodan ficou doido? — berrou Pounder
fora de si. Saltou em direção ao microfone. Não se via
nada na tela de radar. Até isso Rhodan havia desligado.
— Rhodan, é o general Pounder que está falando.
Que é isso? Por que interrompeu o contato com o controle
remoto? Responda Rhodan!
Não houve resposta. O general empalideceu. Sem
saber o que fazer, fitou o chefe do serviço secreto que ia
se aproximando. Allan D. Mercant perdera todo o senso
de humor. Seus olhos azuis faiscavam numa fúria
incontida.
— Está vendo? — disse em tom frio. — Bem que eu
desconfiava. Alguma coisa não está em ordem. Preveni a
Defesa Aeroespacial. Se Rhodan não mudar de rumo
imediatamente mandarei abrir fogo. Convém explicar-lhe
que na altitude em que se encontra será alvo fácil para
nossos artilheiros.
No mesmo instante, o sinal de alarme da Stardust
começou a se fazer ouvir nos receptores. Era um SOS
comum, que nem sequer estavam sendo transmitidos em
código. Os sinais voltaram a se repetir. Os homens
olhavam-se atônitos. Por que Rhodan transmitia o sinal
internacional de perigo? Havia muitas possibilidades de
dar notícia de uma situação real de emergência. Poderia
utilizar a radiofonia. Por que transmitia o SOS, e isso na
frequência internacional?
Allan D. Mercant começou a agir. Mandou que fosse
dado o sinal de alarme continental.
36
Os homens da defesa antibombardeio, que há várias
semanas se encontravam em alerta de primeiro grau,
correram para as posições de combate. Naquele instante, a
Stardust estava sobre a península de Tainir, situada no
norte da Sibéria. Prosseguia em velocidade inalterada.
Depois, modificou, novamente, seu curso e,
irradiando sem cessar o sinal de perigo, Rhodan dirigiu-se
para o sul. Sobrevoou a Sibéria.
O quartel-general do comandante supremo do
Oriente revogou no último instante a ordem de abrir fogo.
Percebera que se tratava da Stardust, uma nave
inofensiva. A mão de um operador afastou-se de uma
chave vermelha. Por pouco, sete mil foguetes de longo
alcance com carga atômica teriam subido ao céu.
Era a situação típica em que a guerra poderia ter sido
desencadeada em virtude de um mal-entendido. O
marechal Petronsky estava olhando as telas das estações
de raios infravermelhos sem dizer uma palavra. Numa
viagem louca, a Stardust prosseguia pelo espaço aéreo
siberiano em direção ao sul. Estava perdendo altitude. Os
computadores calcularam o local provável de pouso. Se a
nave americana prosseguisse no mesmo rumo e
continuasse a descer com a mesma velocidade, tocaria o
solo junto à fronteira entre a Mongólia e a China, no
deserto de Gobi. Embora tivesse sido fácil derrubá-la, o
marechal Petronsky, calculista frio, preferiu não iniciar
nenhum ataque.
As emissoras do quartel-general começaram a
funcionar. As ordens eram enviadas pelo próprio
marechal.
O comandante do 22o Exército da Sibéria recebeu
instruções detalhadas. Alguns minutos depois, os
comandantes de divisão recebiam ordens mais
específicas. Os contingentes da 86a Divisão Motorizada
de Fronteira, sediada na região de Obotuin-Chure e junto
ao lago salgado de Goshun, sairiam dos quartéis. A 4a
Divisão Aerotransportada da Mongólia, que se encontrava
sob o comando do general Chudak, ficou de prontidão.
Em poucos instantes, o marechal Petronsky tomara
todas as providências que estavam ao seu alcance para
capturar a nave lunar americana, desde que ela tocasse o
solo em território mongólico.
Problemas sérios poderiam surgir se a nave pousasse
do outro lado da fronteira, em território da Federação
Asiática. O marechal pediu, imediatamente, uma ligação
com Moscou. E sua exposição foi concluída com estas
considerações:
— ...e é de se supor que os dispositivos eletrônicos
de bordo tenham sofrido uma falha séria. Não há dúvida
de que a Stardust vem sendo dirigida manualmente pelo
piloto da Força Espacial. Tal conclusão resulta da
interpretação dos dados relativos à localização da nave.
Desisti do envio de caças rápidos de longo alcance. Sou
de opinião que se aguarde o pouso da nave antes que
quaisquer medidas sejam tomadas. Peço que me sejam
delegados plenos poderes para agir conforme as
circunstâncias exigirem.
Petronsky obteve os plenos poderes por ele
solicitados. Mas não contava com a habilidade do major
Rhodan.
Logo após ter reingressado na atmosfera terrestre, a
nave passou a funcionar como um planador de linhas
bastante aerodinâmicas. As enormes asas triangulares
sustentavam o seu peso. À medida que o ar se tornava
mais denso, os lemes de direção funcionavam cada vez
melhor. O atrito do ar foi reduzindo a velocidade ainda
bastante elevada. Todavia, esse tipo de operação de pouso
exigia a penetração gradual na atmosfera. A temperatura
externa nas asas e no nariz da nave estava ao redor de 870
graus centígrados.
O transmissor automático continuava emitindo o
sinal SOS na faixa internacional de frequência reservada
para situações de emergência. Rhodan conseguira o seu
objetivo com aquele procedimento: os países
sobrevoados, não abririam fogo contra a nave. Era claro
que todas as potências orientais estavam vivamente
interessadas em examinar detalhadamente a Stardust e,
para isso, era necessário que a nave fosse capturada
intacto. Os destroços calcinados não seriam úteis para
ninguém.
Perry Rhodan pousou a nave na área extensa e
pedregosa situada junto ao lago de Goshun, no norte da
China. O lago era salgado, mas o rio Morin-Gol despejava
nele água doce. O local ficava no centro do inóspito
deserto de Gobi, um pouco ao sul da fronteira com a
Mongólia, exatamente a 102 graus a leste de Greenwich e
38 graus a norte do Equador.
Rhodan fez com que a Stardust aterrissasse como
um avião. Os gigantescos pneus especiais garantiram um
pouso suave. Depois de alguns instantes, o nariz afilado
da nave apontava para o rio Morin-Gol, que se encontrava
bem próximo.
O zumbido penetrante dos dispositivos automáticos
de aterrissagem cessou. Rhodan tirou as mãos do manete
de direção. Uma vez superados os perigos que a manobra
de reingresso trazia consigo, o pouso foi fácil.
Com um movimento rápido, Rhodan se libertara do
leito dobrado em forma de poltrona e pegou a arma que
trazia.
Fletcher, surpreso, fitava o cano da arma automática.
Bell ficou imóvel na sua poltrona, assim como o Dr.
Manoli. Crest, preso à quinta poltrona pelo cinto de
segurança, assistia a tudo com o mais vivo interesse.
Quando a nave começou a mudar de rumo, Fletcher
pôs-se a esbravejar numa fúria e num desespero
incontidos. No entanto, não conseguira libertar-se da
poltrona, pois Rhodan ligara o dispositivo da segurança
que bloqueava os cintos de segurança. Num esforço
desesperado, Fletcher procurou imediatamente alcançar o
depósito de armas que se encontrava atrás dele.
— Não faça isso, Fletcher! — advertiu Rhodan. —
Estamos em casa. Se eu fosse você não me arriscaria a
tanto.
Fletcher fitou-o. Tinha o rosto pálido. Seus lábios
tremiam.
— Será que ouvi bem? Você disse que estamos em
casa? — disse com um tom irônico na voz.
Depois, com uma gargalhada estridente, completou:
— Seu traidor sujo! Você pousou no centro da Ásia.
Certamente planejou isso há muito tempo. Se não fosse
assim não teria dirigido a nave para esta região. Foi você
que fixou o curso. Então é isso! Quer entregar a nave aos
chineses. Há quanto tempo foi concebido esse plano
imundo? Quanto o piloto-chefe da Força Espacial dos
Estados Unidos vai receber pelo trabalho? Eu...
— Cale a boca, Fletcher, e já! — interrompeu-o
37
Rhodan, que empalidecera. Um brilho ameaçador surgira
nos seus olhos.
— Fletcher, você pode ir embora quando quiser;
ninguém o impedirá. Poderá ver seu bebê. Eric terá muita
coisa a contar aos seus filhos. Mas nunca me apontem
como um traidor.
— Por que você aterrissou aqui? — indagou Bell
com a voz calma. Exibia um sorriso gélido. Estreitou os
olhos. O capitão Bell ainda duvidava. Mas a arma que
Rhodan estava segurando representava um fator que não
podia ser desprezado.
— Só quero que vocês me ouçam por um instante —
disse Rhodan em tom enfático. — Nunca pratiquei
qualquer ato sem que tivesse um motivo. Desta vez
também tive razões para agir como agi.
— Ah, é? — gemeu Fletcher num tom de desespero.
Fez um esforço tremendo para libertar-se dos cintos
magnéticos. — Você nos traiu. Obrigou-nos a entrar no
jogo.
— É claro que sim — confirmou Rhodan em tom
indiferente.
Crest sorria. Conhecia as intenções de Rhodan.
— A esta altura vocês já deviam compreender que a
Stardust se transformou num objeto secundário,
verdadeiramente insignificante. Mesmo que caísse nas
mãos dos chineses, esse fato não passaria de uma piada.
Na Lua existe uma nave, cujos ocupantes nesta altura são
as únicas pessoas que hoje em dia ainda podem ser
consideradas importantes. A Stardust desempenha um
papel secundário, embora em Moscou, Pequim e mesmo
em Washington ainda se acredite que é a maior maravilha
do mundo. Os homens mantêm tal opinião simplesmente
porque ignoram a situação real. Se os dirigentes do nosso
país tivessem uma ideia do que vimos na Lua, deixaria
esta nave de lado como refugo. O que importa é tão
somente o ser inteligente que trouxemos até a Terra. Crest
é o único que conta, pois representa uma ciência
infinitamente superior à nossa. Trouxe até a Terra o
conhecimento dos mistérios mais recônditos da natureza.
Os dados armazenados na sua memória fotográfica
permitem que do dia para a noite nossa navegação
espacial dê um salto de cinco mil anos. Vocês devem
reconhecer que já não é a Stardust que importa. O que
importa é Crest, são aquelas inteligências estranhas da
nossa galáxia, e é finalmente a harmonia da Humanidade
a que pertencemos. Para mim todos os habitantes da Terra
são homens, seja qual for à cor da sua pele, a fé que
professam ou a ideologia que preferem. Aqueles que
sempre persistem no erro terão de despertar, os homens de
boa vontade respirarão aliviados. Se entregássemos Crest
a qualquer nação estaríamos cometendo o maior erro da
História.
Fletcher virou a cabeça. Parecia desolado.
— É provável que a esta altura o campo de Nevada
Fields esteja bloqueado pelas forças de segurança. Os
nossos dirigentes não são tolos. Já devem ter chegado à
conclusão de que vimos alguma coisa extraordinária na
Lua. Os governantes orientais, porém, ainda são de
opinião que ocorreu um simples pouso de emergência.
Crest é portador de uma cultura antiquíssima e
conhecedor absoluto de uma ciência altamente evoluída.
Nem penso em atirar uma pessoa dessas nos tentáculos de
um serviço secreto. Sejamos sinceros! Se tivéssemos
aterrissado segundo as previsões, Crest já estaria sendo
mantido em regime de incomunicabilidade. Nem poderia
deixar de ser assim. Seria tratado com toda cortesia,
gentileza e deferência, mas nem por isso deixaria de ser
um prisioneiro. O próprio Crest impôs a condição de
poder agir com absoluta liberdade. Representa o terceiro
poder da Terra. Está doente e precisa de auxílio. Julgo que
é meu dever defendê-lo de quaisquer dificuldades desse
tipo. Sua própria condição de ser estranho e inteligente
confere-lhe direito à liberdade. E é natural que espere um
tratamento decente. Pouco importa o lugar em que
pousássemos. Qualquer das grandes potências da Terra
ficaria ávida para assenhorear-se do seu saber estupendo,
procurando utilizá-lo em seu benefício. Estou convencido
de que a concentração de todo esse saber nas mãos de um
dos blocos de poder não reverteria em benefício para
maior parte dos homens. Sua presença em qualquer dos
países da Terra forçosamente teria conseqüências
catastróficas. A Federação Asiática veria nisso uma
ameaça grave. Ameaçariam, exigindo participação no seu
saber. Um ultimato se seguiria ao outro. O resultado seria
uma série de complicações de âmbito mundial. É o que
desejo evitar. Sou um homem, e quero agir de forma
humana, isto é, com decência. Ninguém vai espremer
Crest como um limão, explicando, com um simples
encolher de ombros, que, infelizmente, isso era
indispensável por este ou aquele motivo. Se ele quiser
presentear a Humanidade com uma parcela do seu saber,
que o faça espontaneamente, sem o menor
constrangimento. Todos nós tiraremos proveito disso. E o
mais importante é que a liberdade de movimento que lhe
asseguramos nos confere a garantia de que nunca haverá
uma guerra nuclear. Acredito que a esta altura vocês já
devem reconhecer que a Stardust perdeu toda
importância. Aterrissei nesta região deserta para que Crest
tenha tempo de montar seus instrumentos antes que
cheguem as tropas que já devem estar a caminho. É só.
Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto.
— Você bem que poderia soltar os meus cintos —
disse Bell calmamente. — Estou disposto a ajudá-lo.
Você sabe que dentro de uma hora no máximo haverá
barulho por aqui.
— Que haja. Neste local um dia se erguerá uma
cidade gigantesca. Aqui serão construídas naves espaciais
de velocidade superior à da luz, e é aqui que será lançada
a semente de uma Humanidade verdadeiramente unida.
Então, o que você decidiu Bell?
O baixote riu. Foi um riso um pouco forçado, mas
provava que aquele homem tinha superado a angústia
interior.
— Conheço os homens — disse lentamente. —
Geralmente não querem fazer o mal, mas gostam de tirar
a sua vantagem. Acho preferível que Crest continue
independente. Também não tenho a dizer mais nada.
— E o Dr. Manoli?
O médico ergueu a cabeça. O sangue retornara à sua
face.
— Seu procedimento não deixa de ter lógica. Não
farei nenhuma objeção, desde que Crest garanta que
utilizará seus conhecimentos em benefício de toda a
humanidade. Se der preferência a determinada potência
estará cometendo um crime.
— Pode ficar tranquilo — disse o estranho em voz
38
baixa. — Nem penso nisso. Apenas peço que em hipótese
alguma me entreguem a qualquer organização estatal. Eu
enfrentaria dificuldades terríveis. Fui eu quem pediu ao
major Rhodan para que aterrissasse aqui.
— Como é que o senhor vai se defender? —
perguntou Fletcher. — Ainda tenho minhas dúvidas a
respeito de tudo isso.
— Ora, Fletcher! Se tivéssemos pousado em Nevada
Fields, já estaríamos presos. O nosso pessoal não teria
alternativa. Um de nós poderia revelar por coação ou
involuntariamente aquilo que vimos. Estamos agindo por
um motivo sério e, segundo penso, decente.
— Acontece que sou oficial da Força Espacial!
— Também já fui. Mas a esta altura sou apenas um
homem que quer uma Humanidade grande, vigorosa e
unida. Você acha que isso é um crime? As nações
isoladas já não têm a menor importância. É só o planeta
Terra que importa. Daqui por diante temos que raciocinar
em termos cósmicos. Será que você ainda não
compreendeu o ridículo imenso que as discórdias terrenas
representam no Grande Império? Ainda não compreendeu
que temos que nos unir sem a menor demora? Uma
inteligência extraterrena só fala no terceiro mundo do
sistema solar. Nunca menciona esta ou aquela nação. No
contexto cósmico, somos apenas habitantes da Terra,
jamais somos considerados americanos, russos, chineses
ou alemães. Encontramo-nos no limiar de uma nova era.
Temos que agir de acordo com isso. Volto a salientar que
em hipótese alguma Crest deve cair nas mãos de
determinado grupo de potências. Ficaremos aqui mesmo.
Bell ergueu-se, devagar. Seu olhar denotava certo
ressentimento.
— Você podia ter contado isso na Lua, meu velho.
Bem que eu sabia que havia algum segredo. Mas estou de
acordo! Podemos começar Crest. É ao senhor que cabe a
iniciativa. Quando surgirem as primeiras tropas só uma
defesa eficiente poderá nos proteger. Não conseguiremos
deter uma única bala com belas palavras acerca da
almejada unidade entre os homens e sobre o papel que o
destino nos reserva como membros de uma comunidade
intergaláctica. Os governantes da Federação Asiática
achariam isso muito engraçado e, assim que acabassem as
gargalhadas, o senhor seria submetido a um severo
interrogatório. Por isso, é melhor começar logo os
preparativos.
— Ficarei a bordo até que cheguem os
medicamentos de que tenho necessidade — disse o Dr.
Manoli.
— Como médico e como homem, é meu dever
prestar auxílio a uma criatura enferma, ainda mais em um
caso como este. Seria um erro tremendo agir
apressadamente e sem o necessário discernimento logo
após o nosso encontro com uma inteligência extraterrena.
Você tem razão, a esta altura, não devemos nos preocupar
mais com a defesa de interesses nacionais.
O capitão Fletcher ficou calado. Parecia petrificado
na sua poltrona. Crest levantou-se com tremendo esforço.
Rhodan guardou a arma.
— Fletcher, nossas intenções são boas. Só queremos
o bem. Meu Deus; não somos criminosos! Será um erro
grave arriscar tudo aquilo que nos é mais caro no interesse
do gênero humano? No meu entender, não. Tenha em
mente o que eu disse: estamos no limiar de uma nova era;
o que importa é agir com inteligência e senso de
responsabilidade. Ninguém agarrará Crest. Dou-lhe minha
palavra!
Rhodan abriu as comportas pesadas da câmara de ar.
A cabine encheu-se do ar terreno. Era quente e seco, tal
quais os pulmões de Crest precisavam.
Após alguns instantes, Rhodan saiu da lave. Ainda
não se viam tropas, mas estas não demorariam a chegar.
Ele bem podia imaginar a atividade febril que tomara
conta dos diversos postos de comando. Por enquanto, não
sabiam por que a Stardust pousara ali. Ninguém tinha
ideia do poder que eles tinham adquirido, mas, logo, os
governantes da Terra saberiam.
Dificuldades tremendas delinearam-se em sua mente
e ele fechou os olhos. Em sua frente, surgiu um quadro
nebuloso, mas no qual distinguia naves espaciais
gigantescas, construídas pelo homem, que partiam para o
espaço e ouvia o ribombar dos seus mecanismos de
propulsão, impelindo-as a uma velocidade superior à da
luz. Viu um governo central de toda a Terra e também
percebia os sinais de paz, de prosperidade e de
reconhecimento da espécie humana ao poder galáctico.
Era apenas uma visão, mas ele sabia que um dia seria a
realidade.
No porão de carga da Stardust, uma máquina
misteriosa começou a zumbir. O terceiro poder estava
iniciando as suas atividades. Perry Rhodan sorriu para o
céu azul. Com movimentos lentos, foi retirando os
distintivos e as platinas do seu uniforme.
O major Perry Rhodan acabara de se desligar da
Força Espacial dos Estados Unidos.
A Stardust voltou à Terra sã e salva. Mas, para Perry Rhodan, os verdadeiros problemas
e os grandes conflitos estavam apenas começando. Isto porque, com a ajuda dos avançados
recursos técnicos dos arcônidas, ele pretende criar algo que deverá realizar a unificação da
Humanidade. Isto acontece no próximo volume intitulado:
A TERCEIRA POTÊNCIA
39
Nº 02
De
Clark Dalton
Digitalização
OKidoki
Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
Perry Rhodan e mais três oficiais da Força Espacial dos Estados Unidos haviam
pousado na Lua a bordo da nave Stardust. Lá encontraram a gigantesca nave espacial
dos arcônidas, que tinha realizado um pouso de emergência. Era tripulada pelos
representantes de uma grande potência galáctica que, apesar de sua superioridade
técnica e científica, estavam em decadência. O cientista-chefe da expedição, um dos
poucos que não fora atingido pela total apatia que dominava os tripulantes, padecia de
uma enfermidade do sangue que só a medicina terrena podia curar.
Perry Rhodan decide ajudar os arcônidas: retorna a Terra em companhia de Crest,
o cientista-chefe e, ao invés de aterrissar em território dos Estados Unidos, prefere a
solidão do deserto de Gobi a fim de evitar que os avançados conhecimentos arcônidas
caiam nas mãos de qualquer potência terrena.
Rhodan tem motivos de sobra para proceder dessa forma. Seus superiores
hierárquicos, contudo, enxergar nele um traidor...
40
1
O silêncio era enganador.
A superfície do lago salgado de Goshun, situado ao
norte da China, apresentava-se lisa como um espelho.
Calmo e sem vida, estendia-se no deserto imenso. Não
soprava a mais leve brisa. O ar quente e seco oprimia os
homens. Parecia tremular sobre as pedras escaldantes e
subia, perdendo-se na imensidão azul do céu sem nuvens.
Bem ao longe, uma cadeia de montanhas destacava-se
contra o horizonte. Era de lá que vinha o rio, cujas águas
alimentavam o lago salgado.
Constava dos mapas da região
com o nome de Morin-Gol.
Era a única coisa viva que
aparecia na paisagem dessa
parte do deserto de Gobi.
Arrastava-se preguiçosamente;
não era muito largo nem
profundo e nunca secava. Sua
presença era o único sinal
visível de vida naquela região
inóspita.
Nenhuma planta crescia
naquele solo pedregoso e
nenhum animal encontraria
alimento em meio àquelas
rochas. Excluindo o deslizar
manso do rio, não parecia haver
o mais tênue sinal de vida pelos
arredores, mas o silêncio
parecia esconder alguma coisa.
Aquele objeto esguio e
prateado que se via perto da
margem do rio destoava da
paisagem agreste e solitária.
Era uma nave de mais de trinta
metros de comprimento. Seu
corpo aerodinâmico e suas asas
em forma de delta ofereciam
um contraste flagrante face à
natureza hostil do lugar.
A nave, batizada com o
nome de Stardust, tinha sido a
primeira a pousar na Lua. Ao
retornar ao nosso planeta, o
comandante decidiu aterrissar
no deserto de Gobi. Este fato,
agora já conhecido por todos,
causou perplexidade e revolta nos governos das grandes
potências. No entanto, só uns poucos desconfiavam que
não se tratasse de um pouso de emergência, mas de uma
manobra deliberada.
Uma escotilha retangular abriu-se em um dos lados
do corpo da nave. Um homem apareceu na abertura e
olhou para a solidão do deserto. Seu olhar passou para
além do rio e perscrutou as montanhas; depois, procurou o
lago e deteve-se no mesmo. O capitão Reginald Bell,
piloto da Força Espacial dos Estados Unidos e engenheiro
da Stardust, aspirou avidamente o ar, embora este pudesse
ser tudo, menos refrescante. Trajava o uniforme azul da
Força Espacial e trazia a boina debaixo do braço direito.
Um tênue sinal de esperança iluminou seus olhos
quase descorados quando se virou e gritou para o interior
da nave:
— Pode-se tomar banho nessa poça d'água?
Alguém emergiu da penumbra do corredor e
colocou-se ao lado de Bell. Usava o mesmo tipo de
uniforme, mas não tinha as platinas e os passadores no
peito. Aparentava uns trinta e cinco anos. Era magro e seu
rosto, com os olhos duros, cinzentos azulados, era
encimado por uma curta cabeleira castanho-escura.
Tratava-se do major Perry Rhodan, comandante da
Stardust e chefe da primeira expedição lunar.
— É claro que pode — disse em resposta à pergunta
de Bell. — Mas a água é
morna; não refresca. Além
disso, contém sal demais para
o meu gosto.
— Sempre gostei de
comida bem temperada —
observou Bell. — Em caso de
necessidade, eu bebia toda a
água desse lago.
— Você teria uma
surpresa. Comparada com
esse líquido, a água do
Atlântico até parece refresco.
Bell olhou o Sol, que
estava quase atingindo o
zênite.
— Seria bom que
houvesse tempo para isso!
Acho que não nos deixarão
em paz por muito tempo. Será
que Crest tem algum meio de
nos proteger?
Crest era o cientista-
chefe de uma expedição
extraterrena que havia
pousado na Lua. Há milênios
sua raça dominava boa parte
da Via Láctea, mas, a essa
altura, já entrara em
decadência. O próprio Crest
sofria de leucemia. Se os
homens não o ajudassem,
estaria irremediavelmente
perdido. Foi esta a razão que
o levou a embarcar na
Stardust para vir a Terra.
Este era o segredo que a
Stardust trazia em seu bojo e
que, até então, não havia sido revelado a ninguém.
— O anteparo protetor deve ser suficiente. Pelo que
Crest diz, não há nada que possa atravessá-lo, nem
mesmo uma bomba atômica. Basta ligar uma chave para
que sejamos cobertos por uma cúpula transparente contra
a qual todo o mundo a que pertencemos atacaria em vão.
— Isso me tranquiliza bastante — Bell acenou a
cabeça num gesto de aprovação. — Os amarelos não
tardam a chegar. Provavelmente pensam que foi erro
nosso e que, há esta hora, estamos esperando que eles
venham nos buscar. Devem estar morrendo de ansiedade
pelos segredos da Stardust.
— Eles ficariam apalermados de tanta curiosidade se
4
Personagens principais deste episódio:
Major Perry Rhodan — Comandante da nave Stardust. Capitão Reginald Bell — Engenheiro eletrônico da Stardust. Capitão Clark G. Fletcher — Astrônomo da Stardust. Tenente-médico Eric Manoli — Médico de bordo da Stardust. General Lesley Pounder — Chefe da Força Espacial dos Estados Unidos. Allan D. Mercant — Chefe do Conselho Internacional de Defesa. Crest — Chefe científico da expedição de uma raça extraterrena. Professor Lehmann — Diretor da Academia de Tecnologia Espacial da Califórnia e pai espiritual da Stardust. Major Perkins — Agente dos países do Ocidente. Vai em direção à sua autodestruição sem de nada desconfiar. Marechal Roon — Comandante-chefe da Federação Asiática. Dr. Frank M. Haggard — Descobridor do soro antileucêmico. Klein, Li Shai-tung e Peter Kosnow — Agentes que
saíram com a missão de matar Rhodan.
41
soubessem que passageiro temos a bordo — disse
Rhodan. — É verdade que só recebi ligeiras indicações do
poderio dos arcônidas. Uma coisa, porém, é certa. Crest
tem condições de dominar o mundo sem qualquer auxílio.
Dentro de algum tempo, certas pessoas vão ficar
desesperadamente furiosas conosco.
Uma sombra fugaz atravessou o rosto largo de Bell.
— Infelizmente, é provável que nossa própria gente
também fique. Será que não poderíamos, ao menos,
explicar-lhes o motivo que nos impediu de descer em
Nevada Fields?
Perry sacudiu a cabeça.
— Você conhece o general Pounder. Acha que ele ia
abrir mão das enormes vantagens que poderia tirar do
nosso hóspede extraterreno? Isso, sem falar no pessoal do
Serviço Secreto e do Conselho Internacional de Defesa.
Quando me lembro de certo Mercant...
Allan D. Mercant era o chefe do Conselho
Internacional de Defesa, subordinado apenas ao comando
supremo da OTAN. Era dirigente do setor especial
designado oficialmente como Agência de Informação e
Segurança. Não existia um único país onde Mercant não
tivesse os seus agentes.
Bell suspirou e voltou a falar.
— Mas compreendo a atitude de Fletcher. É muito
natural que queira voltar à sua terra. É possível que, no
fundo do coração, reconheça o acerto de impedir que
qualquer nação se apodere de Crest. Mas vive pensando
na esposa e na criança que está para nascer. Duvido que a
gente consiga segurá-lo para sempre.
— Ele pode ir embora quando quiser — disse Perry
para surpresa de Bell.
Este engoliu em seco.
— Ir embora? Para onde? — apontou em direção ao
deserto. — Por aí? Quer que ele se perca?
— Não vamos ficar sós por muito tempo. — Perry
olhou para o relógio. — Estou admirado de que ainda não
tenha surgido nenhum avião de reconhecimento.
Acenou com a cabeça para Bell e voltou para o
interior da nave. No compartimento um tanto apertado, o
Dr. Manoli estava sentado junto ao leito em que Crest
repousava. O capitão Fletcher estava perto da escotilha de
vidro. Olhava para o deserto com os lábios cerrados.
— Então? — perguntou Perry que percebera o olhar
de Manoli. — Como vai o nosso doente?
Antes que o médico pudesse responder, Crest falou:
— Obrigado, major. Sinto-me fraco; só isso. O ar do
seu planeta me faz muito bem. Acredita, realmente, que
poderá ajudar-me a ficar bom?
O mal que atacara Crest, a leucemia, consistia na
multiplicação exagerada dos glóbulos brancos do sangue.
O que, pouco a pouco, acabava com os glóbulos
vermelhos. De certa forma, o paciente morre por asfixia,
embora continue a respirar normalmente pelos pulmões.
O problema é que o oxigênio que chega aos pulmões de
nada serve se não estiverem presentes os glóbulos
vermelhos que o transportam aos diversos órgãos. O
primeiro sintoma é o cansaço, o paciente enfraquece a
olhos vistos. A decadência orgânica é seguida pelo
definhamento mental. A morte é inevitável.
Todavia, cerca de dois anos antes, tinha sido
descoberto, por um pesquisador australiano, o remédio
contra a leucemia: o soro antileucêmico.
— É claro que poderemos ajudá-lo, Crest. Mas, para
isso, é necessário que confiemos um no outro. Estou
interessado nas invenções de seu povo, no seu
desenvolvimento técnico e científico e, falando com
franqueza, nos seus armamentos. Em troca disso, ofereço-
lhe a cura e a completa regeneração. É um negócio
simples, como qualquer outro.
— Sua sinceridade é muito reconfortante. Há muitos
milhares de anos nosso povo também era assim. Hoje,
muitos de nós estamos demasiado cansados para sermos
sinceros. Parece-me que poderíamos aprender alguma
coisa com seu povo.
Rhodan pensava nos arcônidas estendidos nos seus
leitos a bordo da nave pousada na Lua e que, para
afugentar o tédio, contemplavam os quadros abstratos e
irreais que apareciam nas telas.
O grau de apatia a que chegaram impedia-os, sequer,
de tentar o reparo da própria nave. O exercício do poder,
por milhares de anos, e os robôs, verdadeiros servos
incansáveis, haviam transformado os arcônidas em um
povo sem qualquer outra motivação que não fosse ficar
deitado e sonhar de olhos abertos.
— Também entre nós a renovação do sangue é
considerada o melhor remédio contra a degeneração e a
decadência genética — disse Rhodan.
Crest ergueu-se na cama. Recostou-se contra a
parede. Era cerca de um palmo mais alto que Rhodan. Seu
aspecto exterior pouco o distinguia dos homens. O que lhe
conferia uma aparência estranha eram os cabelos quase
totalmente brancos, os olhos despigmentados e a testa de
altura descomunal. Detrás dela, porém, havia uma
peculiaridade invisível ao olho humano. Além do cérebro
normal, dispunha de um cérebro suplementar, como não
existe em qualquer ser vivo na Terra. Esse cérebro era um
potente centro de armazenamento de dados e uma espécie
de memória fotográfica. Outra coisa ignorada pelos
homens era a placa protetora do coração e dos pulmões
que, no seu peito, substituía as costelas.
Crest era o último dos descendentes da dinastia
reinante em Árcon, o planeta que servira de berço à sua
civilização e, sendo cientista, interpretou literalmente a
observação de Perry Rhodan.
— É provável que uma renovação do sangue
apresentasse resultados positivos. Acontece que qualquer
cruzamento com um membro de uma raça primitiva, ou
melhor, uma raça que ainda não atingiu determinado grau
de evolução, constituiria uma violação da lei dos
arcônidas.
— Sossegue — disse Rhodan com um sorriso
irônico. — Não pretendo me casar com Thora.
Bell, que acabava de entrar, soltou uma gargalhada
enquanto Manoli, preocupado, tomava o pulso do seu
paciente. Fletcher não demonstrou o menor sinal de que
tivesse ouvido alguma coisa.
Por um instante, Rhodan imaginou-se de volta à
gigantesca nave espacial dos arcônidas. Viu, diante de si,
Thora, a comandante da expedição que saíra à procura do
planeta da vida eterna. Era uma mulher alta, muito bela.
Tinha os cabelos claros, quase brancos, e seus grandes
olhos brilhavam com um tom vermelho dourado.
Seria uma mulher? Talvez fosse ao seu aspecto
exterior. Mas era só isso. Na realidade, não passava de
uma calculista fria, dotada de um raciocínio cristalino e de
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um intelecto altamente desenvolvido. Sua conduta era
marcada por um preconceito extremo contra os seres
inferiores. Foi somente o raciocínio lógico que a levou a
entrar em acordo. Sabia, perfeitamente, que não lhe
restava alternativa, a não ser que quisesse passar o resto
dos seus dias na Lua.
Crest abanou lentamente a cabeça.
— Admiro a sua fantasia. Mas creio que não
convém perder tempo com palavras inúteis. Devemos
pensar no que vamos fazer. Você me prometeu auxílio...
— E terá auxílio — asseverou Rhodan. Depois,
dirigindo-se a Bell, prosseguiu: — Você terá que deixar o
banho para mais tarde. Por enquanto, procure captar as
notícias que andam por aí. Faça o possível para registrar
as transmissões mais importantes. Precisamos saber o que
está acontecendo no mundo.
— Se alguém pretender lançar um ataque contra nós,
não nos avisará com antecedência. Prefiro falar com
Pounder.
— Por enquanto, não. Vamos permanecer calados.
Eles que dêem tratos à bola para descobrir por que não
respondemos às suas mensagens. Terão de ficar maduros
para aquilo que pretendo fazer.
— Maduros! — Bell abriu a porta que dava para a
sala de rádio e radar. — Acho que, daqui a pouso, somos
nós que estaremos maduros!
Perry não se preocupava com Bell. Conhecia-o e
sabia que poderia confiar nele.
— Eric, preocupe-se exclusivamente com Crest.
Fletcher lhe peço que cuide logo da comida. É possível
que, mais tarde, não haja tempo suficiente para isso.
Enquanto isso eu cuido da nossa situação estratégica.
Quais foram às armas que Thora entregou a Crest?
O arcônida continuava sentado na cama, com as
mãos entrelaçadas.
— Acho que, por enquanto, o mais importante é o
anteparo energético. Trata-se de um dispositivo
puramente defensivo, mas que apesar disso, não deixará
de impressionar um eventual agressor. Além disso,
dispomos de três armas manuais, os psicoirradiadores.
Sua intensidade é regulável. Com a regulagem máxima,
consegue-se a paralisação psíquica de um homem a dois
quilômetros de distância, mas nunca se pode causar sua
morte. Com uma intensidade menor, a consciência da
pessoa atingida é debilitada de tal forma que será fácil
assumir o comando sobre seu corpo. Como se não
bastasse, podem ser transmitidas ordens pós-hipnóticas
que serão executadas em quaisquer circunstâncias, mesmo
quando a pessoa atingida já se encontra fora do alcance
das psicoirradiações. Tudo isso vem acompanhado de
uma amnésia artificial. A pessoa não se recorda de coisa
alguma.
— Isso já nos serve — disse Rhodan. — Há mais
alguma coisa?
— Só o transmissor que nos permite entrar em
contato com Thora a qualquer momento. Conforme é do
seu conhecimento, as ondas emitidas pelo mesmo
atravessam a Lua. Sem isso, não conseguiríamos nos
comunicar com ela, já que a nave está pousada na face
oculta do satélite.
Rhodan ficou por uns momentos com o ar pensativo.
Crest compreendeu que algo o preocupava.
— Não se preocupe. O anteparo energético e o
irradiador manual bastam. Se surgirem problemas mais
graves, Thora intervirá.
— Que tal o neutralizador de gravidade que o senhor
colocou a bordo para facilitar a decolagem quando viemos
da Lua?
— Ah, sim! Já ia me esquecendo dele, se bem que
ele não possa ser considerado uma arma. Seu alcance é
enorme: mais de dez quilômetros. E funciona tanto na
base da radiação direcional como na da radiação circular.
Pode-se diminuir sensivelmente ou até eliminar a
gravidade da Terra num retângulo de dez quilômetros de
comprimento e a largura que se desejar, ou então num
círculo de vinte quilômetros de diâmetro, que terá por
centro o irradiador, ou seja, no nosso caso, a Stardust.
— Excelente! — exclamou Rhodan. — Acho que
isso basta.
Dirigiu-se à porta.
Fletcher passou os olhos pelo deserto. Depois,
lançou um olhar provocador para Rhodan, mas, quando se
defrontou com os olhos do comandante, que pareciam de
aço, limitou-se a um ligeiro aceno de cabeça.
— Está bem, Perry. Oportunamente falaremos sobre
o resto.
Bell abordou Perry junto à escotilha de saída.
— Está havendo interferência nas transmissões. Não
consigo pegar os Estados Unidos. Todas as frequências
estão ocupadas. Mas há um emissor muito forte que deve
estar bem próximo de nós. O sujeito fala inglês com
sotaque. Diz que não devemos tomar nenhuma
providência porque a operação de resgate já está em
andamento.
— Operação de resgate! — disse Rhodan. — É uma
expressão muito bonita para designar aquilo que os
chineses pretendem fazer. Responda que não queremos
qualquer auxílio.
Bell não respondeu. Olhou para longe. Uma nuvem
de pó levantou-se do outro lado do rio, perto das colinas.
Parecia um lençol sujo estendido por cima do deserto.
Pontinhos minúsculos moviam-se em direção ao lago
salgado. Perry seguiu o olhar do amigo.
— Ah, está na hora! Estão chegando. Veja! Um
helicóptero!
Os rotores que giravam com o zumbido
característico mal se distinguiam no ar que tremulava no
calor. A fuselagem delgada faiscava ao sol ofuscante.
Quando desceu, a menos de cem metros da nave, a areia
foi atirada para o alto.
— Bell, fique aqui. Segure um dos irradiadores e
aguarde um sinal meu. Regule para a intensidade máxima.
Vou falar com eles.
— Mas...
— Não hã nenhum, mas. Esta gente nos quer vivos.
Não há perigo.
Bell desapareceu no interior da nave. Dentro de
cinco segundos estava de volta. Segurava um bastão
prateado com uma lente na ponta. Havia um botãozinho
vermelho deslocável, que podia ser firmado em qualquer
posição.
Perry acenou com a cabeça e desceu a escada. Foi
andando em direção ao helicóptero, do qual haviam saído
dois homens que envergavam o uniforme da Federação
Asiática. Enquanto aguardavam, olhavam-no com
curiosidade.
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O piloto permaneceu na cabina do helicóptero.
Soltou o manete de direção e pegou uma pistola
automática.
No rosto de Rhodan surgiu um sorriso de
compaixão. Essa gente teria uma surpresa enorme.
Os dois oficiais vieram ao seu encontro. Falavam
inglês, quase sem sotaque.
— Ficamos satisfeitos em ver que conseguiu realizar
um pouso tranquilo — disse o oficial mais graduado. —
Sou o marechal Roon, comandante das forças terrestres
do nosso império. Este aqui é o major Butaan.
— Perry Rhodan — apresentou-se Rhodan,
inclinando-se ligeiramente. — O que desejam?
Os dois homens ficaram mudos de espanto.
Olharam-se ligeiramente e depois lançaram um olhar
indagador ao cosmonauta. Estavam convencidos de que o
mesmo precisava de auxílio.
Perry esboçou um sorriso gentil.
— Foi muita gentileza tomar todo este trabalho, mas
as providências destinadas a nos ajudar são inúteis. Para
tranquiliza-los, quero acrescentar que, se estivesse falando
com um oficial do exército americano ou russo, a resposta
seria idêntica.
— Não compreendo — disse Roon, enquanto sua
mão alisava a calça do uniforme, que ficara amassada
com a longa permanência no helicóptero. — O senhor
realizou um pouso de emergência, não é mesmo? Está
precisando de auxílio. Ou será que está em condições de
decolar com seus próprios meios?
— E se estivesse?
— Não poderíamos permitir a decolagem, já que o
senhor aterrissou em território chinês.
Perry sorriu.
— Ah, agora está começando a falar com
sinceridade. O que lhe interessa não é ajudar-nos, mas
agarrar-nos. Muito bem bolado. Acontece que não
pousamos aqui para sermos presos pelo senhor.
Roon ia dar uma resposta violenta, mas foi contido
por um olhar de advertência do major que o
acompanhava. Controlou-se imediatamente. Tudo
indicava que o major exercia uma influência bastante
acentuada sobre o comandante do exército.
— Ninguém está falando em restringir sua liberdade
de locomoção. É evidente que teremos de revistar a nave
para verificar se não tiraram fotografias sobre o território
da Federação Asiática.
— Fizemos mais que isso. Fotografamos toda a
Terra; da Lua. Será que isso é proibido? A nave dos
senhores não tira fotografias?
Os dois oficiais olharam-se rapidamente.
— Nossa nave foi destruída logo após a decolagem.
Foi sabotagem. Não sabia disso?
Perry ficou abalado. Para ele, a conquista do espaço
interessava a toda à humanidade. Sabia que as fronteiras
que separam os povos só seriam demolidas depois de
reconhecida sua insignificância face às fronteiras mais
amplas do espaço. Não reconhecia nenhuma diferença
entre as raças e as nações. Para ele, todos eram homens,
terrenos. Alegrar-se-ia com o êxito de qualquer expedição
à Lua, ainda que a mesma fosse realizada por um inimigo
seu — se tivesse um. Foi, portanto, em virtude de um
impulso espontâneo que se dirigiu ao marechal,
estendendo-lhe a mão.
— Lamento muito. Não sabia. Foi sabotagem?
Roon fez de conta que não estava vendo a mão que
Perry lhe estendia.
— Só pode ter sido. Os nossos cientistas mais
competentes examinaram a nave na decolagem. Não
encontraram o menor defeito. Ao atingir cem quilômetros
de altitude a nave partiu-se em duas e caiu ao solo.
— Existem milhares de circunstâncias que podem
determinar uma falha. Não existe nenhuma prova de que
tenha sido sabotagem.
— Um elemento a soldo do Ocidente entrou
furtivamente na nave e danificou o reator.
— Besteira! — disse Perry em tom áspero. — Não
se deve procurar encobrir os próprios fracassos.
Sentiu-se contrariado pela suspeita insultuosa dos
asiáticos. Roon não era chinês; provavelmente seria
natural da Índia ou de alguma ilha.
— Nenhum de nós teria interesse em impedir sua
viagem à Lua — prosseguiu Perry. — Mas não falemos
mais nisso. O que deseja de nós?
Pela primeira vez o major dirigiu-lhe a palavra.
— Pousou neste local por sua livre vontade? —
indagou.
Era uma pergunta muito direta. Perry decidiu dar
uma resposta igualmente direta.
— Perfeitamente. Se quiséssemos poderíamos ter
pousado no deserto do Saara ou na América.
— Por que pousou justamente aqui?
— Temos nossos motivos. Vejo-me forçado a pedir
que daqui por diante considere o trecho de terra que
circunda esta nave como território submetido à soberania
de uma potência neutra, embora o mesmo se encontre
dentro das fronteiras do seu país. Seu povo não faz
nenhum uso deste deserto; portanto, a nossa decisão não
lhe acarretará qualquer prejuízo econômico. Garantimos-
lhes a não interferência nos assuntos internos do seu país
e respeito às fronteiras do mesmo. Realizaremos
negociações diretas com seu governo. Quanto ao senhor,
marechal Roon, recomendo-lhe que ordene às tropas que
se dirigem para cá, a fim de transformar a nave americana
numa presa valiosa, que façam meia-volta. Estamos
entendidos?
O major Butaan recuou um passo. A sua mão direita
repousava sobre a coronha de uma pesada pistola.
Apertou os lábios. Seus olhos chamejaram.
O marechal Roon conseguiu controlar-se. Com um
sorriso cativante, falou:
— O senhor só pode estar brincando, major Rhodan.
Cabe-nos o direito de revistar qualquer objeto voador que
pouse no território submetido à nossa soberania. Se não
houver motivos para suspeita, será liberado. Acho que sua
observação relativa a uma potência neutra só pode ser
considerada uma piada de mau gosto.
— Interprete minhas palavras como quiser, mas não
diga que não foi prevenido. E agora, passe bem.
Provavelmente, ainda nos encontraremos outras vezes.
— Um momento!
O major Butaan puxou a arma e apontou-a para
Rhodan. Era uma pistola de grosso calibre que lançava
balas explosivas. Um pouco antiquada, mas muito
eficiente, principalmente a pouca distância.
Perry cruzou os braços sobre o peito. Sentia atrás
dele, a menos de oitenta metros, a presença de Bell pronto
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a experimentar o neutralizador. Certamente já o teria feito
se Rhodan não estivesse no campo de ação do aparelho.
— Pois não.
— Major Rhodan, o senhor é um espião. Esta nave
não passa de uma base americana que os senhores fizeram
pousar propositalmente neste local. Certamente
esperavam ser tratados com condescendência porque
iríamos acreditar que se encontrasse em dificuldades.
Acontece que descobrimos o seu jogo e...
— Não prometa aquilo que não pode cumprir —
advertiu-o Rhodan. — Nosso pouso neste local deixou os
americanos tão surpresos quanto os senhores. Também
não têm a menor ideia das nossas intenções. E também
seriam repelidos se procurassem aproximar-se de nós.
Compreenderam? Muito bem! Nesse caso permitam que
volte à minha nave. Repito marechal: retire suas tropas,
pois do contrário não me responsabilizo pelo que vier a
acontecer.
Cumprimentou aos dois oficiais com um aceno de
cabeça, lançou um olhar de advertência ao piloto que
segurava a pistola automática, voltou-se e foi andando
devagar em direção à Stardust. Bell estava no topo da
escada de acesso, indeciso, com o bastão prateado na
mão. Percebia-se o seu alívio quando viu, finalmente, o
comandante se afastar da área de alcance da arma.
— Devíamos fazer uma brincadeira com eles —
gritou para Rhodan. — Esse sujeito de calças cinza deve
ser general. Poderíamos incutir-lhe a ideia de que é
porteiro de circo e mandá-lo-íamos de volta ao emprego.
Seria engraçado.
Rhodan atingiu o primeiro degrau e voltou-se. O
marechal Roon e o major Butaan — e ele apostaria
qualquer coisa como este último pertencia ao serviço de
contraespionagem — continuavam parados no mesmo
lugar, indecisos, na expectativa. Butaan ainda tinha a
arma na mão.
— Não vejo nada de mal numa brincadeira —
respondeu Rhodan, depois de ter chegado ao lugar em que
Bell se encontrava. — Traga o neutralizador, depressa!
— O... ?
Bell não disse mais nada. De um salto desapareceu
no interior da nave. Voltou alguns momentos mais tarde
com uma pequena caixa metálica na mão. Apesar do seu
aspecto simples, ele concentrava uma quantidade enorme
de energia, concentrada num espaço extremamente
reduzido. Crest chamara o aparelho de neutralizador da
gravidade. Quanta coisa não encerrava este nome... O
sonho de muitas gerações de cientistas.
Perry regulou o aparelho. Depois, foi empurrando
devagar a chave do lado direito que ativava o raio
direcional, e diminuía gradativamente a gravidade.
O major Butaan voltou a guardar a arma.
— Não compreendo como o senhor permite que um
bando de espiões nos dê ordens. A meu ver é uma atitude
irresponsável. Terei de informar às autoridades
competentes.
— Fique à vontade — disse Roon com toda calma.
Olhou para a Stardust com os olhos apertados. — Estou
convencido de ter agido corretamente.
Nessa nave há muita coisa de que nem o senhor nem
eu desconfiamos. Para o senhor, tudo não passa de uma
ação disfarçada do pessoal do Ocidente. Mais
precisamente, acha que colocaram uma base neste lugar.
A ideia não é má... pode, até, ser verdadeira. Acontece
que não sabemos. Talvez o tal Rhodan nem seja maluco.
Às vezes chego a pensar que devem ter descoberto algo
extraordinário na Lua; alguma coisa que lhes confere um
poder formidável.
Parou de falar. Havia algo errado. Subitamente,
sentiu-se leve, como se estivesse flutuando; até parecia
que tinha bebido. O pior era que tinha a impressão de ter
perdido, também, o equilíbrio. Sentia-se mais alto, como
se estivesse crescendo por cima de sua própria cabeça.
“Que diabo!”, pensou. “Tomara que o major não
perceba nada.”
Butaan estava tão preocupado consigo mesmo que
não tinha tempo para pensar no marechal. Um movimento
irrefletido fez com que o chão lhe fugisse de sob os pés.
Devagar, como um balão, foi subindo em direção ao céu
azul. Girava como um campeão de saltos ornamentais em
câmara lenta.
Roon não se movera; por isso ainda continuava de
pé sobre as pedras aquecidas do deserto de Gobi. De boca
aberta, não tirava os olhos de Butaan que praguejava e
invocava a ajuda dos antepassados. Mas as maldições não
adiantaram nada, nem os antepassados vieram em seu
auxílio. Continuou subindo.
— Piloto! — berrou o marechal e virou-se
abruptamente.
Não devia ter feito uma coisa dessas. O movimento
giratório não foi amortecido; subindo em espiral, Roon
seguiu o chefe do Serviço de Defesa.
O piloto não se conteve mais. Num movimento
instintivo, segurou-se ao encosto do seu assento até que
alcançasse a saída estreita. Por um instante, o mesmo
contemplou de boca aberta e olhos arregalados seus
superiores que subiam para o céu. Depois, empunhou a
pistola automática.
O primeiro tiro varreu-o para fora da cabine do
helicóptero, que foi deslizando lateralmente poucos
centímetros acima da superfície do solo. Sem perceber,
abaixou o cano da arma e, como fizera fogo contínuo, o
pobre piloto subiu como um foguete para o céu do
deserto. A velocidade foi aumentando a cada tiro, até que
o carregador da arma estivesse vazio. Mas o impulso foi
suficiente para que ele continuasse a subir.
Era um quadro incrível o que se desenrolava em
plena luz do dia. Três homens flutuavam no ar e um
helicóptero, em posição oblíqua, balouçava entre as
rochas como se fosse um navio encalhado batido pelas
águas do oceano.
Perry levantou-se e olhou para o rosto radiante de
Bell.
— Então, o que acha disso?
— É formidável! Um verdadeiro espetáculo
circense. Três bonecos pendurados no ar. Calculo que
estejam com medo. O que faremos agora? Pretende deixá-
los morrer de fome ali no alto?
— Não, claro que não! Diga-me uma coisa: você
sabe pilotar helicópteros, não é?
— Sei, por quê?
— Depois falaremos a esse respeito. Por enquanto,
faça-os aterrissar suavemente. Isso recue a alavanca aos
poucos. Acho que metade da gravitação terrestre basta.
Não, receio que caiam com muita velocidade. Regule para
um quarto. É bom que levem algumas manchas roxas de
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recordação, para que não pensem que tudo não passou de
um sonho. Isso! Muito bem!
O marechal Roon atingiu o solo. Pasmado, olhou
para todos os lados como se estivesse à procura do ser
invisível que o erguera. Butaan aterrissou com mais
violência, a uns dez metros de distância do marechal.
Bateu numa pedra e o rosto contorcido de dor e de
espanto falava por si só. Já o piloto, que foi o que mais
subiu, foi, por conseguinte, o que caiu mais rápido. Por
sorte, o deslocamento horizontal que ele sofreu, levou-o a
mergulhar no rio de cabeça para baixo. Com apenas vinte
e cinco por cento do seu peso normal, flutuou como uma
rolha, o que contribuiu para aumentar ainda mais a sua
perturbação. Já tinha largado a pistola.
— Marechal Roon! Está me ouvindo?
Perry gritou essas palavras o mais alto que pôde. O
marechal ergueu o punho e sacudiu-o num gesto
ameaçador.
— Isso vai lhe custar muito caro. O que foi mesmo?
O senhor eliminou a gravidade?
— O marechal até que é sabido! — exclamou Bell
alegremente, batendo com a mão na coxa. Estava se
divertindo a valer.
— Se não retirar imediatamente as tropas, terá outras
surpresas. — Perry apontou para a Stardust. — Temos em
nosso arsenal, armas com as quais o senhor não chega
nem a sonhar.
Ele sabia que talvez fosse imprudente dizer aquilo,
mas estava interessado, principalmente, em fazer com que
os outros agissem com cautela. Todavia, o efeito foi
exatamente o contrário.
— Quer dizer que trazem armas? — resmungou
Roon, brindando o chefe do Serviço de Defesa, bem mais
jovem que ele, com um olhar que parecia dizer: “veja
quanto vale o seu trabalho e o seu Serviço de
Informações! É uma porcaria! Não fiquei sabendo da
existência de uma arma americana capaz de eliminar
totalmente a gravidade”.
— Então, o que houve? — berrou Bell agitando os
braços. — Será que o passeio aéreo lhes prendeu a
língua?
Roon disse alguma coisa ao piloto, que já atingira,
são e salvo, a margem do rio e se juntara a eles. Perry
tinha colocado a alavanca do neutralizador na posição
zero. As condições de ponderabilidade eram normais.
— Um momento! — advertiu Perry, ao ver que o
piloto ia se dirigindo para o helicóptero. — Esse
helicóptero vai ficar aqui. Pousou sem permissão em
território da potência recém-criada. Está confiscado.
O rosto do marechal ficou rubro de raiva.
— Calma, marechal, o senhor passou da idade de se
aborrecer!
— O que estão pensando? — berrou Roon, fora de
si. — Vou...
Não chegou a dizer o que pretendia fazer. O major
Butaan cochichou-lhe alguma coisa no ouvido.
— Ainda terão notícias minhas — terminou
abruptamente. Depois se voltou, fez sinal ao major e ao
piloto, e foi andando em direção às colinas distantes.
Nesse meio tempo, a nuvem de pó havia se
aproximado assustadoramente. Perry suspirou aliviado.
— Então este foi o nosso primeiro encontro com a
Federação Asiática. O segundo deixa-me menos curioso.
Acho que teremos que pôr em funcionamento o anteparo
energético. Seu alcance chega a dois quilômetros.
Portanto, o rio, parte da margem do lago e o helicóptero
estão situados no interior do círculo de proteção. É este o
território do novo império: o menor da Terra, porém o
mais poderoso.
— O que você pretende fazer com o helicóptero?
— Que pergunta! Você sabe muito bem que um belo
dia terá de sair daqui para arranjar peças sobressalentes e
medicamentos. Será que você pretende atravessar a pé o
deserto de Gobi?
O rosto de Bell corou ligeiramente.
— Eu? Por que justamente eu? Quer que... — Perry
acenou tranquilamente com a cabeça.
— Um de nós tem que ir, não é? Por que não será
você? Afinal, ninguém merece mais confiança que você.
Bell fez um gesto largo com os braços.
— Bem... naturalmente! É claro que tem razão.
Quando partirei?
— Assim que o mundo se tiver acalmado.
Com o neutralizador debaixo do braço, Perry entrou
na nave. Bell seguia-o devagar. Com o olhar de um perito
examinou ligeiramente o helicóptero, pousado em posição
oblíqua. Depois enfiou o neutralizador no bolso e fechou
a escotilha.
Encontraram Fletcher no centro de controle.
— A comida está pronta. O que aconteceu?
Perry explicou em poucas palavras.
— Será que você acredita que isso dará resultado? Já
lhe disse que não entro nessa. Quero ir para casa. Quero
rever minha esposa. Dentro de três meses ela terá um
bebê.
— Até lá, tudo estará liquidado, Fletcher. Seja
razoável! Você me conhece há muito tempo. Nunca faço
nada sem ter um motivo. Vou explicar mais uma vez por
que tivemos de pousar aqui e não em Nevada Fields.
— Você nunca me convencerá!
— A paz que está reinando na Terra é ilusória. O
menor ensejo bastará para que os foguetes atômicos sejam
disparados em todas as direções, espalhando a devastação
pelo globo terrestre. Você acha que esse estado de coisas
deve durar para sempre? Agora estamos em condições de
intervir. O bloco ocidental e a Federação Asiática estão se
defrontando. Desde que a China se tornou a maior
potência atômica, o bloco oriental, dirigido por Moscou,
só desempenha um papel secundário. Somos o fiel da
balança, o único poder que se interpõe entre as duas
superpotências. Contamos com os recursos incríveis dos
arcônidas. O poder dos arcônidas concentrado nas mãos
de uma só nação significaria o fim de toda liberdade,
mesmo que essa nação fosse os Estados Unidos. Já está na
hora de compreender isso!
— Você sabe que é um traidor?
Uma expressão de sofrimento desenhou-se nos
lábios de Perry.
— Muita gente dirá a mesma coisa, porque não me
compreende. Mas não sou um traidor. Acontece apenas
que deixei de ser um americano, para transformar-me
num terreno. Será que você compreende ao menos isso?
— Talvez. Que mais? — Fletcher engolia em seco.
— Apesar de tudo você podia ter pousado em Nevada
Fields.
— Não podia. De qualquer maneira temos de nos
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defender, cá ou lá. E antes lutar contra os asiáticos que
enfrentar nosso próprio povo. Podia ser que me
enternecessem, ou que, conseguissem me convencer. É
uma coisa que aqui nunca acontecerá. Sei muito bem o
que me espera caso ceda àquela gente. Crest encarna um
poder ilimitado, Fletcher. Está ao seu alcance e, portanto,
ao nosso, impedir a irrupção da guerra. Quando as
grandes potências perceberem que se encontram sob o
controle de uma potência mais forte, esquecerão o
conflito que lavra entre elas. Talvez até cheguem a um
entendimento.
— Isso não passa de uma utopia.
— Esperemos. A fábula segundo a qual os discos
voadores pousarão na Terra e nos trarão a paz, deve
encerrar um grão de verdade. Crest só se prontificou a
ajudar-nos sob a condição de nos comprometermos a
restituir-lhe a saúde e respeitar sua liberdade pessoal. E
não estaríamos respeitando essa liberdade se o
entregássemos a qualquer potência da Terra, fosse qual
fosse. Qualquer outra potência teria motivos para sentir-se
ameaçados. Desencadearia a guerra final. Da forma como
as coisas estão, não se atreverão a fazê-lo.
Fletcher fez um movimento cansado com a mão.
— Você me deixará partir assim que eu desejar?
— Bell o levará quando sair para buscar os
medicamentos e as peças sobressalentes. O helicóptero
está esperando lá fora.
Fletcher afastou-se, pensativo.
Girando uma chave, Perry ativou o campo
energético. A Stardust ficou coberta por uma cúpula
invisível de dois quilômetros de altura e igual extensão
para todos os lados. Quem olhasse do alto pensaria que ali
no deserto, junto ao lago, apenas havia uma minúscula
nave inutilizada.
Na verdade, porém, naquele lugar estava o germe de
um novo império, cujas fronteiras, nessa altura, não
chegavam a treze quilômetros de extensão. Mais tarde,
porém, atingiriam milhares de anos-luz.
2
O aspecto exterior do general Lesley Pounder era tão
marcante que dava a qualquer um a ideia de sua
resistência e força. De constituição sólida, seu corpo
revelava uma força de vontade e uma energia
inacreditáveis. Todo mundo sabia que não recuava diante
de nada, nem mesmo de Washington ou do Pentágono.
Era chefe da Força Espacial dos Estados Unidos e seus
homens adoravam-no e temiam-no ao mesmo tempo.
Podiam procurá-lo a qualquer hora se tivessem algum
problema. Raramente dava mostras do seu humor mordaz.
Isso fez com que os maledicentes afirmassem que um dia
o general acabaria devorado pela própria raiva.
Estava no gabinete do quartel-general, sentado atrás
da enorme escrivaninha, cuja superfície estava quase
totalmente tomada pelos mais variados equipamentos de
comunicação. O restante do espaço era ocupado por
pilhas de papéis e pastas. Tinha diante de si um homem de
aparência modesta. Este era o extremo oposto do general.
Um círculo ralo de cabelo castanho circundava sua calva
lustrosa. A impressão pacata era reforçada por algumas
mechas de cabelos brancos nas têmporas. Apesar da coroa
de cabelo e das têmporas grisalhas, esse homem tinha um
aspecto jovem e inofensivo. Seus olhos pareciam
transmitir uma impressão suave de tolerância.
Todavia, Allan D. Mercant era tudo, menos suave e
tolerante quando se tratava do cumprimento do dever. No
desempenho das suas funções de chefe do Conselho
Internacional de Defesa de todo o bloco ocidental, era o
caçador mais obstinado que se poderia imaginar.
— O senhor confia muito no major Rhodan e nos
seus homens — disse em tom brando, apontando para o
mapa do mundo pendurado na parede. — A Stardust
pousou no deserto de Gobi. Ainda é de opinião que foi
por simples acaso?
— A nave expediu o sinal internacional de perigo
antes que seu equipamento silenciasse. O mecanismo
propulsor, certamente, falhou.
— Por que Rhodan não permitiu que o pouso fosse
dirigido pelo controle remoto? Dessa forma a nave teria
atingido a base de Nevada sã e salva. Por que ele mesmo
assumiu o comando? O senhor pode dar alguma
explicação?
O general Pounder sacudiu a cabeça, sem saber o
que dizer.
— Não tenho nenhuma explicação para isso. Mas
não é por esta razão que eu deva estar preso, com meu
estado-maior, aqui na base. Certamente foi sua a ideia de
cercar toda a base de Nevada Fields.
— É apenas uma medida de precaução — disse
Mercant com um sorriso amável, para tranquiliza-lo.
— Quem conta com o pior nunca sai decepcionado.
— Mas quem sempre conta com o pior também cria
problemas desnecessários — advertiu Pounder.
— Ainda que Rhodan tenha pousado no deserto de
Gobi por sua livre e espontânea vontade, ele deve tê-lo
feito com uma ideia bem definida.
— Tenho certeza que é assim! — observou Mercant
em tom irônico.
— A finalidade que tem em vista não deve ser de
forma alguma, dirigida contra nós. Se o senhor acha que
ele pretende entregar a Stardust à Federação Asiática, está
16
47
muito enganado.
— Que outra finalidade poderia ter ele em vista?
— Não sei — admitiu Pounder. — Mas conheço o
major Rhodan muito bem. É digno de toda a confiança.
Trata-se de um elemento que está acima de qualquer
suspeita.
— O homem sempre constitui um fator de incerteza
em qualquer equação, general. Ninguém consegue ver a
alma do próximo. A riqueza e o poder, ou melhor, a
esperança de obter essas coisas, pode perturbar até mesmo
o espírito mais íntegro.
O general Pounder pareceu crescer atrás de sua
escrivaninha.
— Será que o senhor quer insinuar que Rhodan ficou
louco?
— De forma alguma, general. Uma pessoa que
ambiciona o dinheiro e o poder não pode ser considerada
louca. Conforme o caso poderá ser um traidor...
Pounder saltou da cadeira. Inclinou o enorme corpo
sobre a escrivaninha e colocou o punho cerrado por baixo
do nariz do outro.
— Agora, chega! Embora seja Allan D. Mercant,
não admito que insulte os meus homens. Rhodan não é
um traidor. A Stardust realizou um pouso de emergência.
Prove o contrário! Enquanto não conseguir fazê-lo, fique
bem quieto. De resto, Washington já estabeleceu contato
com o governo da Federação Asiática.
— Interessante! — observou Mercant, e afastou o
punho do general com uma elegância tão displicente que
este ficou desarmado. — Posso perguntar qual foi o
resultado?
— Até agora, nada — respondeu Pounder. —
Aguardo informações diretas do meu pessoal em
Washington.
— Pois eu lhe digo qual será o teor dessas
informações: o governo da Federação Asiática lamenta o
incidente e afirma ter tomado todas as providências que
estavam ao seu alcance para salvar os cosmonautas. Os
destroços da Stardust serão liberados, desde que não
tenham sido completamente destruídos. Pouco depois,
receberemos outra nota na qual se dirá que a nave foi
totalmente destruída e que só foram encontrados os
cadáveres irreconhecíveis dos tripulantes. Depois disso, o
assunto será envolvido pelo mais absoluto silêncio;
ninguém falará mais nada a respeito. A realidade, porém,
será completamente outra.
— Se eu fosse dotado de sua fantasia, escreveria
romances — disse Pounder fingindo admiração pelo
interlocutor. — Todavia, ouçamos qual será a realidade...
em sua opinião.
— Os asiáticos desmontarão a Stardust e utilizarão o
resultado da viagem em seu beneficio. Rhodan e os
demais tripulantes, que evidentemente estão sãos e salvos,
receberão a recompensa prometida, depois de terem
revelado tudo o que sabem. Talvez a recompensa seja um
palacete situado no Tibet, talvez seja um tiro na cabeça.
Pounder voltou a sentar-se.
— O senhor não é um homem normal; é uma vítima
da sua profissão — diagnosticou Pounder. — Rhodan
sabia muito bem que entre nós teria uma existência
tranquila e ganharia até dois palacetes, se quisesse. Por
outro lado, também não ocorre nenhum motivo
ideológico. Logo, só resta o pouso de emergência. É a
minha opinião. Rhodan entrará, logo que possa, em
contato conosco. Aguarde.
Mercant passou a mão pela calva.
— Prefiro confiar nas informações dos meus
agentes. O major Perkins não nos deixará na mão.
Perkins — até mesmo Pounder conhecia-o de fama
— era um dos melhores agentes de Mercant.
— Não foi ele quem descobriu o atentado planejado
contra o campo de provas da NATOM, situado na
Austrália, e liquidou os cabeças?
— Foi ele mesmo! Mandei-o a Pequim há poucas
horas a fim de cuidar do assunto.
— E o senhor acredita...
— É claro que viaja com nome falso. Os
documentos são legais e o fato de mantermos boas
relações comerciais com a Federação Asiática facilitará
bastante seu trabalho.
Nesse momento, o ruído do videofone chamou a
atenção de Pounder. Ele girou um botão e a tela iluminou-
se. Um rosto surgiu.
— Ligação de Washington — disse uma voz suave.
— É para os senhores Pounder e Mercant.
— Estão ambos os presentes — disse Pounder com a
voz ofegante. — Tem certeza de que é com os dois que a
pessoa pretende falar?
— Washington faz questão disso. Pediram que só
completasse a ligação quando as pessoas solicitadas
estivessem no aparelho.
— Pode ligar. O senhor Mercant está aqui no meu
gabinete.
— Um instante, cavalheiro. Continue com o
aparelho ligado.
Pounder olhou para Mercant.
— Quais são suas relações com Washington? —
perguntou espantado.
— São muitas — disse Mercant com um sorriso
ingênuo. — Basta citar um exemplo: é lá que se encontra
o meu superior imediato, o Presidente.
Pounder engoliu em seco, conservando os olhos
fixos na tela de imagem como se de lá pudesse vir algo
em seu auxílio.
O rosto da operadora tinha desaparecido. No seu
lugar, surgiu outro: era o chefe do Setor de Informações
da Casa Branca.
— É o general Lesley Pounder?
— Ele mesmo — disse o general. Mercant inclinou-
se ligeiramente para frente para que a câmera receptora
pudesse captar a sua imagem. — Mercant também está
presente.
— Obrigado. Acaba de chegar à resposta do governo
de Pequim. Seu conteúdo é tão estranho que resolvemos
não tomar qualquer medida antes de ouvir sua opinião.
Seu gravador está ligado?
Pounder comprimiu um botão oculto sob a tampa da
escrivaninha.
— Acabo de ligar.
— Muito bem. Ouça. O teor da nossa mensagem a
Pequim foi o seguinte:
De Washington para Pequim. Solicitamos
autorização imediata para enviar uma comissão que
deverá examinar os destroços da nave espacial Stardust
que realizou um pouso forçado. Acreditamos que não
haja qualquer impedimento diplomático já que a nave
18
48
destinava-se a investigação científica. Aguardamos sua
concordância.
A resposta, que acabamos de receber, diz o
seguinte: “Autorização recusada. O governo da
Federação Asiática entende que a instalação de uma base
ocidental no seu território constitui uma violação grave
dos acordos celebrados. Não se trata do pouso forçado
de um pretenso foguete espacial. A tripulação rechaçou
um comando de resgate e, para isso, usou uma nova arma
que subtrai aos homens a ação da gravidade. A base, que
já foi cercada pelas nossas tropas, será destruída, a não
ser que seu governo ordene imediatamente que a mesma
nos seja entregue em boas condições. Concedemos-lhes
um prazo de duas horas”.
— É este o teor das duas mensagens. Que me diz a
respeito, general Pounder?
O chefe da Força Espacial estava exultante.
— Quer dizer que a Stardust conseguiu pousar em
boas condições. Ainda bem! Rhodan e os outros
tripulantes estão vivos. Fomos os primeiros a alcançar a
Lua e conseguimos pousar nela. Formidável!
— Realmente é muito interessante — admitiu o
chefe do Setor de Informações de Washington. — Mas,
no momento, o importante é a sua opinião a respeito da
mensagem dos asiáticos. O que significa isso? Uma arma
que subtrai aos homens a ação da gravidade? A Stardust
levava alguma coisa parecida com isso a bordo?
— Em absoluto! Eliminar a força da gravidade? Já
foram realizadas pesquisas nesse sentido, mas não
produziram qualquer resultado. Os asiáticos estão
blefando. Querem é fazer desaparecer a Stardust, mais
nada.
Mercant interveio.
— Existe alguma prova de que a nave espacial
pousou em boas condições?
— Não dispomos de qualquer prova — respondeu o
chefe do Setor de Informações. — Se dispuséssemos, a
respectiva observação teria chegado a nós por seu
intermédio, senhor Mercant. Comunicamos a Pequim que
infelizmente não conseguimos estabelecer contato com a
Stardust e, por isso mesmo, não podíamos tomar qualquer
providência. Rejeitamos com a maior energia a afirmação
insensata de que a nave seria uma base americana. Ainda
não recebemos a resposta. Aguarde! Pequim está
chamando. Continue com o aparelho ligado. Vou colocá-
los na linha para que possam ouvir, também, a mensagem.
O rosto do chefe do Setor de Informações desapareceu. A
tela ficou vazia. Mas Pounder e Mercant ouviram cada
palavra que era pronunciada naquela sala situada a mais
de três mil quilômetros de distância. Sem querer,
testemunharam o início de uma série de acontecimentos
que conduziriam à extinção da espécie humana, caso não
acontecesse um milagre antes.
— Aqui é Washington. Pode falar Pequim.
— Pequim falando. Os senhores não atenderam às
nossas exigências. A base que montaram no deserto de
Gobi também se recusou a permitir uma investigação. Em
vista disso, a divisão comandada pelo marechal Roon
recebeu ordens de destruir a base. Embora devam estar
bem informados, queremos dar-lhes um ligeiro relato do
que aconteceu.
“Nossos tanques avançaram. A dois quilômetros do
lugar onde se encontra pousada a Stardust esbarraram
num obstáculo invisível. As buscas que mandamos
realizar revelaram que esse obstáculo cerca a nave por
todos os lados, delimitando um território de pouco mais
de doze quilômetros quadrados que, segundo certo
Rhodan, é o território de uma potência neutra recém-
criada. Nossos tanques recuaram e abriram fogo contra a
base. As granadas detonaram muito antes do alvo, como
se o anteparo invisível também continuasse acima da
nave, cobrindo-a como uma cúpula protetora. Nossos
consultores científicos são de opinião que a base está
coberta por uma cúpula energética. Dessa forma, seria
inexpugnável. Queremos avisá-los de que consideramos a
Stardust uma ameaça à paz mundial e extrairemos as
consequências cabíveis dos fatos. Pedimos que a base
seja retirada ou entregue às nossas autoridades dentro do
prazo de vinte e quatro horas. De outra forma,
consideraremos rompidas as relações diplomáticas entre
Pequim e Washington. Aguardaremos o seu
pronunciamento. Não transmitiremos outras mensagens
sobre o assunto. Fim”.
Pounder olhou para Mercant. Sua pele já não tinha a
cor sadia de dez minutos antes. O sorriso suave do chefe
do Conselho Internacional de Defesa também tinha sido
substituído por algumas rugas que demonstravam sua
preocupação.
— Um anteparo energético? — disse, esticando as
palavras. — Nem mesmo nós tivemos conhecimento
disso. Meus respeitos, Pounder. Os seus cientistas
souberam guardar segredo.
— Não diga tolices, Mercant. Também nunca tive
conhecimento da existência de um anteparo energético.
Esses asiáticos estão blefando e é só. Há tempos estão
procurando um pretexto para despachar seus foguetes
atômicos. Agora, encontraram um.
Mercant inclinou o corpo.
— O senhor quer fazer crer que não sabe nada a
respeito do anteparo energético que está cobrindo a
Stardust? E quer afirmar, também, que não tem
conhecimento do aparelho que subtrai às pessoas a ação
da gravidade?
— Eu considero isso tolice! Uma coisa dessas não
existe! Para mim os asiáticos estão blefando, já disse!
— Alô! — A discussão foi interrompida pela voz do
chefe do Setor de Informações de Washington. — Os
senhores ouviram, não é?
— É claro que ouvimos! — confirmou o general
Pounder. — Isso é a mais formidável estupidez que já vi
alguém pronunciar até hoje. Julgo conveniente...
— Essa estupidez pode se transformar numa
estupidez pior: a guerra. Temos que impedir que isso
aconteça... Procure entrar em contato com a Stardust.
Mercant lhe prestará auxilio. E procure descobrir o que
vem a ser este antepara energético. Lehmann deve estar
em condições de dar alguma informação. Aguardo sua
resposta antes do término do ultimato formulado pela
Federação Asiática.
— Combinado — resmungou Pounder, que ainda
não tinha a menor ideia do que devia fazer. — Entrarei
em contato com o senhor antes que o prazo se encerre.
A tela apagou-se. Mercant soltou um suspiro.
— Se não recebermos logo notícias do major
Perkins estaremos em maus lençóis. Sugiro que
chamemos Lehmann. É possível?
20
49
Pounder berrou algumas ordens pelo
intercomunicador. Poucos minutos depois, um homem
alto, de meia-idade, entrou no gabinete. Era o professor
Lehmann, diretor-científico do Programa Lunar. Há muito
ocupava o cargo de diretor da Academia de Tecnologia
Espacial da Califórnia. Era o maior especialista no setor.
Quando sentia uma disposição toda especial para ser
sincero, o general Pounder era levado a confessar que
Lehmann era o pai espiritual da Stardust.
O professor parecia bastante admirado.
Cumprimentou aos dois homens com um aceno de
cabeça.
— Querem falar comigo?
Pounder confirmou com um aceno de cabeça.
— O senhor já conhece Mercant, portanto não há
necessidade de apresentações. Quero evitar todo e
qualquer rodeio. Ouça!
Suas mãos moveram-se sob a tampa da escrivaninha.
Ouviu-se o leve chiado de uma fita em movimento.
— Preste atenção a esta conversa, Lehmann.
Bastante atenção!
À medida que o professor Lehmann era posto a par
dos acontecimentos, Mercant, com ar distante, realizava
mentalmente os movimentos de suas peças de xadrez. Se
Perkins conseguisse entrar em contato com Rhodan —
desde que este ainda se encontrasse no deserto de Gobi e
não tivesse sido transformado em instrumento dos
asiáticos, como Mercant supunha — a trapaça seria
descoberta. Havia várias possibilidades.
Caso a Stardust tivesse pousado intencionalmente no
território da Federação Asiática, Rhodan seria um traidor.
Também era possível que a nave tivesse realizado um
pouso de emergência. Nesse caso, estaria sendo
desmontada pelos asiáticos, cuja afirmativa de terem sido
rechaçados representaria, apenas, um simples
estratagema. Mercant estava convencido de que essa
afirmativa representava, tão somente, o preparativo de um
comunicado posterior, segundo o qual as defesas da
Stardust teriam sido rompidas e a nave destruída.
Ainda havia uma terceira possibilidade. Mas essa era
tão fantástica que quase não podia ser considerada
seriamente. Apesar do seu extraordinário amor aos
animais — alguém já o vira tirar uma minhoca do anzol
de um pescador estarrecido, pousando-a cuidadosamente
no solo — Mercant raciocinava com uma frieza tremenda.
Sua vida consistia em fatos, dados, relatórios e normas.
Todavia...
Não chegou a concluir seus pensamentos. A fita
gravada chegara ao fim. O general esticou o queixo e
olhou para Lehmann
— Então, professor? O que me diz? Acha que o
major Rhodan é um traidor?
— Um traidor? Quem teve essa idéia maluca?
Pounder lançou um olhar significativo em direção a
Mercant.
— Foi só uma pergunta, professor. O que irá
importar é sua opinião a respeito do anteparo energético e
do resto.
— A eliminação da gravidade? Ambas as coisas
representam uma utopia inatingível com os meios de que
dispomos. Os asiáticos inventaram uma fábula bonita que
lhes sirva de pretexto para ficarem com a Stardust. Aposto
que amanhã informarão que a nave não poderá ser
entregue por ter sido destruída.
Mercant aprovou com um aceno de cabeça.
— Muito bem pensado — disse. — Quando eu me
aposentar, vou sugerir ao senhor como meu sucessor.
— Agradeço — retrucou seriamente o professor
Lehmann. — Prefiro acompanhar a viagem a Marte. Não
há dúvida de que a Stardust conseguiu pousar em boas
condições. Se não fosse assim, a manobra de
despistamento seria inútil. Se soubéssemos as causas,
tudo estaria esclarecido; Para um bom serviço secreto isso
não devia ser nenhum problema.
O golpe, desferido como se fosse por acaso, atingiu
o alvo. O rosto de Mercant ficou vermelho. A expressão
branda desapareceu subitamente. Seus olhos adquiriram
uma expressão dura. Levantou-se sem fazer caso dos
gracejos do general.
— O senhor ainda se surpreenderá com a eficiência
do nosso serviço secreto — disse a Lehmann, enquanto se
dirigia para a porta. — General, faça o favor de me avisar
assim que haja noticias de Washington. Até logo,
cavalheiros.
Fechou ruidosamente a porta. O professor Lehmann
lançou um olhar de espanto para Pounder.
— O que será que houve com ele? Por que anda tão
sensível?
— O senhor o atingiu no seu orgulho profissional.
— Pounder sorriu; parecia muito satisfeito. — Bem feito!
Quem manda tratar qualquer pessoa que não seja um dos
seus espiões como um homem de categoria inferior? Bem,
agora que ninguém nos incomoda mais, diga-me, com
toda sinceridade, professor, qual é sua opinião a respeito
de tudo isso?
Lehmann inclinou-se para frente. Pounder
continuou:
— Acho que estamos de acordo em que o major
Rhodan está acima de qualquer suspeita. O que aconteceu
no deserto de Gobi?
O professor Lehmann sorriu. Seu olhar perdia-se
através da janela, contemplando o horizonte. Sem olhar
para o general, comentou:
— Talvez seja conveniente, meu caro Pounder,
reformular a parte geográfica da pergunta. O correto é: o
que aconteceu na Lua?
Pounder arregalou os olhos.
***
Depois de ter desembarcado do Stratoliner em
Pequim, o major Perkins dirigiu-se a um hotel de primeira
categoria. Poucos minutos depois, um dos agentes do seu
país forneceu-lhe o endereço de uma firma que trabalhava
para o governo. Telefonou ao procurador e combinou um
encontro.
Nos documentos do agente, constava o nome Alfons
Hochheimer, e a profissão de engenheiro de minas.
Segundo os dados do passaporte, encontrava-se na
Federação Asiática há mais de dez anos e já trabalhara
várias vezes para empresas estatais de mineração.
Na sala de recepção da empresa, decorada em estilo
ultramoderno, um chinês trajado à europeia recebeu-o
com um sorriso imperscrutável.
— É o senhor Hochheimer, não? Meu nome é Yen-
Fu. Posso lhe ser útil em alguma coisa?
22
50
— Tive conhecimento de que sua firma participa da
exploração de regiões economicamente pouco
interessantes — disse Perkins, enquanto apertava a mão
que o outro lhe estendia. — Já tive oportunidade de
pesquisar trechos extensos do deserto de Gobi, a serviço
de outras empresas. Conheço um lugar em que há
possibilidade de se encontrar urânio, desde que as
pesquisas alcancem uma profundidade suficiente.
O sorriso de Yen-Fu tornou-se ainda mais intenso.
— Urânio no deserto de Gobi? O senhor deve estar
enganado! Já enviamos várias expedições para lá, mas
nenhuma delas teve êxito.
A essa altura, também no rosto de Perkins via-se um
sorriso misterioso.
— Acontece que os participantes das suas
expedições não possuíam os instrumentos de busca de que
disponho senhor Yen-Fu. Já ouviu falar na sonda de
Spielmann?
O chinês sacudiu a cabeça.
— Não. Para ser sincero, nunca ouvi falar. Perkins
não se admirou com a resposta. Acabara de inventar o
nome.
— É lamentável, senhor Yen-Fu, muito lamentável.
Spielmann é um dos cientistas mais conceituados do
mundo ocidental. As grandes descobertas de urânio no
continente americano foram devidas ao seu invento.
Disponho de um dos seus modelos mais recentes.
Apesar do terno sorriso, o rosto do chinês passou a
revelar certa dose de desconfiança.
— Não é americano?
— Não, sou alemão. Mas encontro-me na Federação
Asiática há mais de dez anos. Aqui estão os meus
documentos. Espero que os mesmos o convençam da
sinceridade da minha proposta.
O procurador examinou cuidadosamente aqueles
documentos. Falsificados com perfeição extrema. Não
encontrou nada de anormal, e devolveu-os a Perkins.
— Sabe onde se poderia encontrar urânio no
deserto?
Perkins confirmou com um aceno de cabeça.
— Existe quantidade suficiente para abastecer vinte
usinas por cem anos. É claro que o material também pode
servir para outra coisa — disse com um sorriso
significativo.
— Queira esperar.
Perkins esperou. Mas não o deixaram esperar por
muito tempo. Falou com o diretor da firma. Depois com
um funcionário categorizado do governo. Finalmente
falou com o piloto do avião que devia levá-lo juntamente
com os membros da comissão à região em que se
encontravam as pretensas jazidas de urânio.
— O senhor traz consigo essa sonda? — perguntou
Yen-Fu curioso. — Ela permite a leitura imediata dos
resultados?
Perkins lembrou-se da caixinha metálica bem
concebida. No seu interior havia uma bateria e alguns
fios, e do lado de fora várias escalas e botões. Confirmou
com um aceno de cabeça.
— É claro que sim. Não viria a sua presença sem o
equipamento necessário. Quando partimos?
— Daqui à uma hora, se estiver de acordo. Ainda
estamos aguardando a confirmação definitiva da
repartição competente.
“Tomara que isso acabe bem!”, pensou Perkins. Mas
dificilmente conseguiriam descobrir sua verdadeira
identidade, pois seus documentos eram melhores que os
de qualquer chinês. Todavia...
Perkins tomou um refrigerante no café situado do
outro lado da rua. Deu algumas moedas a um mendigo,
que lhe queixou suas mágoas com voz rouca e estridente,
afirmando que tinha filhos menores para sustentar. O
homem fez várias mesuras e, subitamente, entremeou seus
agradecimentos com algumas palavras bem mais
sugestivas.
— Não conhece mais os amigos, meu velho? Por
que será que Mercant resolveu enviar justamente você? O
representante do governo que viajará no avião é um dos
nossos. Trate-o bem. Oh, pai dos justos, exemplo celestial
de misericórdia humana, receba mil agradecimentos pelo
seu gesto bondoso. Meus filhos pedirão pelo senhor junto
aos antepassados. Que os deuses da fecundação abençoem
o senhor, que dispensou a um indigno como eu a graça de
poder beijar seus pés...
Perkins piscou para o mendigo. Depois se virou com
um gesto de desprezo. Atirou uma moeda sobre a mesa e
saiu do café.
O avião era um pequeno jato particular. Além do
piloto viajavam um representante do governo, um
engenheiro e Perkins. O luxo da pequena cabine indicava
que o aparelho se destinava a finalidades especiais. Era
dotado de deslizadores que permitiam o pouso em terreno
irregular e mesmo na água, pois os flutuadores esguios
impediriam seu afundamento.
As turbinas uivaram, mas o ruído foi se tornando
praticamente imperceptível à medida que o avião ganhava
altitude.
Abaixo deles, Pequim foi desaparecendo. O aparelho
tomou o rumo oeste. As planícies férteis foram ficando
para trás. Surgiram as primeiras montanhas e, depois, o
deserto cinzento e tórrido.
O representante do governo inclinou-se para frente e
bateu no ombro do engenheiro que estava sentado perto
de Perkins.
— Onde fica a região, Lan-Yu?
— A leste de Sutschou, nas proximidades do lago
salgado de Goshun. Mais ou menos no lugar em que teria
descido a nave espacial americana.
— São boatos — disse o engenheiro. Virou-se e
sorriu. — O senhor não acha?
— É claro que são boatos.
Com cerca de hora e meia de voo, já tinham
percorrido cerca de 1.300 quilômetros. Foi quando o
piloto abriu a portinha minúscula que dava para a cabine e
disse:
— A Diretoria de Controle de Voo de Pequim acaba
de dar ordem para regressar imediatamente. É proibido
sobrevoar a área que fica situada entre Ordos, Schan-Si, a
serra de Nan-Schan e Ning-Hsia. O lago de Goshun fica
exatamente no centro dessa área. Não informaram o
motivo da proibição.
Lan-Yu lançou um olhar em direção ao
representante do governo.
— O que significa isso? Pois o senhor obteve
autorização do governo para acompanhar-nos neste voo. E
devia saber que...
— Prossiga e desligue o equipamento de rádio —
24
51
ordenou o representante do governo. — Não siga as
instruções.
— Tenho de deixar o receptor ligado por causa das
comunicações sobre o tempo. Além disso, sou obrigado a
transmitir nossa posição de cinco em cinco minutos.
O representante do governo olhou para Perkins. Este
deu um aceno de cabeça quase imperceptível e colocou a
mão no bolso do casaco.
— Desligue o equipamento — voltou a ordenar o
comissário. — Peço-lhe encarecidamente que daqui por
diante se atenha estritamente às minhas instruções. Se não
o fizer, as consequências correrão por sua conta. Não se
esqueça de que represento o governo. Desça junto ao lago
de Goshun. Quanto tempo ainda levará para chegar lá?
O piloto hesitou por um instante. Depois lançou um
olhar para o painel de instrumentos: — Dez minutos —
respondeu.
— Daqui a oito minutos deveremos iniciar a
manobra para aterrissagem. Até lá nada de mudanças de
rumo. Entendido?
— A responsabilidade será sua — disse o piloto,
enquanto confirmava com um movimento de cabeça, e
desapareceu.
O engenheiro Lan-Yu acompanhara o diálogo sem
dizer uma palavra. O sorriso desaparecera do seu rosto.
Seus olhos oblíquos estreitaram-se ainda mais. Percebeu
que Perkins, ou melhor, Alfons Hochheimer ainda estava
com a mão no bolso.
— Por que não segue as instruções do governo? —
perguntou, falando devagar. — Não vamos criar
problemas? A proibição deve estar relacionada com a
nave espacial pousada na área.
— Não tenho a menor dúvida — disse o
representante do governo. — Mas não se preocupe. Sei
perfeitamente o que estou fazendo.
— Para mim nada importa desde que encontremos o
urânio — disse Lan-Yu. Passou os olhos pela
impressionante caixinha metálica que se encontrava no
assento vago junto a Perkins. O aspecto da mesma era tão
impressionante que convencera o chefe da firma. — Só
faço votos de que realmente o encontremos.
Dali a cinco minutos o piloto voltou a aparecer.
— Temos um avião da Força Aérea à nossa frente.
Está dando ordem para regressarmos.
— Como é que o senhor vai saber disso, se não
mantém qualquer comunicação com eles?
— Tiros de advertência! — disse o piloto em tom
seco. Aparentemente ele não conhecia o medo.
— Ligue o aparelho de rádio. Irei até aí.
O representante do governo lançou um olhar
significativo para Perkins. Depois, foi à carlinga apertada,
fechando a porta atrás de si.
Perkins tirou a pistola automática do bolso e
apontou-a para Lan-Yu.
— Por acaso tem uma arma?
O engenheiro quase chegou a engasgar de susto.
Arregalou tanto os olhos que eles quase ficaram redondos.
Sacudiu a cabeça, enquanto fitava o orifício negro do
cano da arma.
— O que deseja que eu faça? — balbuciou.
— Quero que fique bem quietinho, com a boca
fechada. Se fizer de conta que nem existe, poderá sair são
e salvo desta aventura. Senão...
O silêncio significativo deixou a alternativa em
aberto.
— Mas, o senhor sozinho não vai conseguir...
— Não estou só. E agora não diga mais uma única
palavra. Devemos aterrissar daqui a pouco.
Na verdade, o avião começou a descer. O avião
militar se afastara depois de trocadas algumas mensagens
radiofônicas. Atravessaram a barreira aérea da Federação
Asiática e passaram bem baixo por cima de algumas
formações de tanques que recuavam. Subitamente, avistou
a Stardust bem à frente, junto à desembocadura do Morin-
Gol.
A nave espacial parecia solitária e abandonada.
Não se via qualquer sinal de vida perto dela. Apenas,
bem alto, um pontinho minúsculo destacava-se contra o
céu azul. Descrevia círculos como se fosse uma ave de
rapina que, a qualquer momento, precipitar-se-ia sobre
sua vítima.
Nem Perkins nem o outro agente que se encontrava
em sua companhia sabiam que esse ponto minúsculo era
um bombardeiro da Federação Asiática levando uma
bomba atômica que seria lançada contra a nave.
— Onde vamos aterrissar? — perguntou o piloto. O
representante do governo, que era um dos membros mais
competentes do serviço de espionagem ocidental, apontou
para o lado.
—Ali no deserto, perto da nave espacial. Faça o
avião parar a menos de cem metros da Stardust.
Entendido?
O piloto confirmou com um movimento de cabeça.
Descreveu uma curva bem ampla e preparou-se para
aterrissar. O aparelho foi descendo sobre o deserto. A
altitude não ultrapassava algumas centenas de metros. A
distância que os separava do ponto em que se encontrava
a nave foi diminuindo vertiginosamente. Faltavam poucos
quilômetros...
Nesse meio tempo, a bomba lançada pelo outro
avião foi caindo. O pontinho minúsculo parou de
descrever círculos e foi se afastando em linha reta.
Portanto, havia dois objetos que se aproximavam da
Stardust.
Perkins foi à carlinga, depois de ter amarrado Lan-
Yu na sua poltrona. O avião deslizou pelo solo pedregoso
em velocidade vertiginosa. Quando se encontrava a pouco
mais de dois quilômetros da Stardust, um segundo sol
surgiu repentinamente dois mil metros acima da nave. O
cogumelo atômico chamejante, que se ergueu a
pouquíssima distância e cujos gases incandescentes
deslizaram pela cúpula invisível, cegou seis pares de
olhos.
Ainda chegaram a sentir o choque produzido pelo
embate contra o anteparo energético.
Depois, não houve mais nada...
***
— Ei, Perry! Pounder está no aparelho. O homem
está muito nervoso.
Rhodan acenou a cabeça para Crest, com
quem estivera conversando.
— Com licença, Crest. Pretendo esgotar todas as
possibilidades.
No caso, a expressão “está no aparelho” era a menos
26
52
adequada. A comunicação visual através do satélite era
perfeita. O rosto de Pounder na tela era tão nítido como se
estivesse olhando por uma janela. Os asiáticos não
interferiam mais nas transmissões, o que era sinal de que
não mais sabiam o que fazer.
Bell inclinou-se ligeiramente e fez um gesto em
direção à tela.
— Permita que o apresente: é o general.
Perry empurrou-o para o lado.
— General Pounder; comunico nosso retorno da
expedição lunar. A tripulação está bem. A Stardust não
está em condições de decolar em virtude de defeitos
mecânicos. Missão cumprida. Os resultados das pesquisas
científicas serão encaminhados ao professor Lehmann.
O general respirava com dificuldade.
— Rhodan, o senhor enlouqueceu? Quer fazer o
favor de explicar o motivo que o levou a pousar no
deserto de Gobi? O mecanismo de controle remoto
falhou? Podia ao menos ter tentado descer no oceano.
— O pouso neste local foi proposital.
— O quê? — o rosto de Pounder adquiriu uma
tonalidade vermelha bem viva. — O que está dizendo?
Foi proposital? Major Rhodan, o senhor não vai me dizer
que...
— Não vou dizer coisa alguma. Pelo menos, não o
que o senhor está pensando. Procurarei explicar...
— Não há nada a explicar — berrou Pounder a
plenos pulmões. — O senhor vai destruir imediatamente a
Stardust por meio da carga explosiva e entregar-se às
Forças da Federação Asiática. Entendeu?
Um brilho gélido surgiu nos olhos de Rhodan.
— Entendi general. Mas não cumprirei suas ordens.
— Não vai cumprir a ordem? — Pounder oferecia
um quadro assustador. O vermelho do seu rosto tornou-se
mais intenso. Bell, instintivamente, abaixou-se como se
temesse que a cabeça que aparecia na tela fosse explodir.
— Major Rhodan, lhe ordena que...
— General, permita-me dizê-lo que já não sou mais
major, e, por isso, nego-me a receber ordens do senhor.
Como vê, removi os distintivos do meu uniforme. Se
permitir, começarei a explicar.
O rosto do professor Lehmann tinha surgido perto de
Pounder. Nos seus olhos havia um brilho de curiosidade.
— Rhodan, será que nas crateras da Lua existem
vestígios de atmosfera e até mesmo restos de...
— Silêncio! — berrou Pounder e empurrou o
cientista para o lado. — Fale Rhodan! E procure ser
convincente, pois suas palavras decidirão se dentro de dez
horas teremos guerra ou não. A Federação Asiática está
convencida de que a Stardust não passa de uma base
americana colocada intencionalmente em seu território.
Se não for abandonada até amanhã, as relações
diplomáticas estarão rompidas. Acho desnecessário
salientar quais as consequências que advirão deste fato,
caso ele seja concretizado.
— Então as coisas já chegaram a este ponto? —
murmurou Perry assustado. — Nesse caso, não temos um
segundo a perder. Preste atenção, general. Pousamos na
Lua, conforme previsto, e descobrimos os restos de uma
civilização extraterrena. Não posso dar-lhe detalhes de
tudo o que encontramos, mas algumas indicações serão
suficientes. Para tranquilizar o professor Lehmann, diga-
lhe que a Lua nunca foi habitada, mas, há muito tempo,
posou lá uma nave exploradora tripulada por membros de
uma civilização interestelar. Esta nave ainda está intacta e
em seu bojo existe um arsenal que daria para destruir não
apenas a Terra, mas todo o sistema solar. Raios mortíferos
e anteparos energéticos, neutralizadores da gravidade e
campos anti- neutrônicos capazes de impedir toda e
qualquer explosão atômica são apenas alguns exemplos.
Além disso, existem armas manuais, cujos efeitos o
senhor nem seria capaz de imaginar. General, o senhor há
de compreender que eu não estava disposto a colocar esse
poder tremendo nas mãos de qualquer das nações da
Terra.
De um golpe, Pounder recuperou o sangue-frio.
— Acontece que pousou no território da Federação
Asiática. Há outras pessoas que estão escutando nossa
palestra. Logo, todo mundo saberá o que o senhor
descobriu na Lua. Expedições serão enviadas para lá e
haverá uma corrida frenética que decidirá quem há de
dispor do poder final. O senhor devia ter ficado calado.
— Quero que todo o mundo saiba — disse Rhodan,
sacudindo a cabeça. — Além do mais, ninguém pousará
na Lua, a não ser que eu queira. Não se preocupe general,
pois os asiáticos não conseguirão estas armas. Os russos e
os americanos também não. Só eu disponho delas. E
cuidarei para que ninguém inicie uma guerra que os
destruiria a todos.
— O senhor?
Estas palavras foram proferidas com tamanho
desprezo que Rhodan ficou rubro de raiva. Recuou um
passo e fitou o general com olhos frios.
— Eu, sim! O senhor já devia ter compreendido que
a política falhou. Há séculos os governos tentam evitar a
guerra quente. Uma ameaça segue-se a outra, uma
conferência a outra. A culpa não é apenas do bloco
oriental e da Federação Asiática, mas também do bloco
ocidental. Ninguém quer ceder; todos continuam a se
armar. Os foguetes com cargas atômicas estão
estacionados em todos os pontos do globo. Basta
comprimir um botão para dispará-los, o dispositivo
automático de que são dotados os conduzirá ao alvo.
Todavia, antes que possam atingi-lo, as armas de
retaliação serão acionadas do lado oposto. Os povos de
ambos os lados do mundo praticamente deixarão de
existir no mesmo instante. Há decênios defrontamo-nos
com essa visão macabra. Ninguém conseguiu conjurar o
perigo. Até hoje apenas o equilíbrio de forças tem
impedido a guerra. Mas, ai de nós se um dos lados se
tornar mais forte. Ver-se-ia obrigado a destruir o outro
lado para viver em paz. Nós faríamos isso, da mesma
maneira que os asiáticos. Compreende por que nenhum
dos blocos deve pôr as mãos na Stardust, que tem a bordo
algumas das armas extraterrenas?
Ouviu-se a respiração pesada do general.
— O senhor poderia ter prestado um serviço
inestimável ao seu país se...
— Se tivesse levado as armas para Nevada Fields?
Está enganado, general. A Federação Asiática e o bloco
oriental sentir-se-iam tão ameaçados que se lançariam a
uma guerra de extermínio contra o bloco ocidental. Não
poderiam agir de outra forma. Seria o fim da nossa
civilização. De qualquer maneira, agirei de acordo com
um plano que tracei, quer o senhor aprove, quer não.
— Que plano é esse?
53
— Formarei uma terceira potência, que será neutra,
ficando equidistante dos blocos que se defrontam sobre a
Terra. Estamos em condições de transformar qualquer
foguete atômico que seja disparado em um projétil
inofensivo. Qualquer bomba atômica estalará no ar sem
produzir o menor efeito, como se fosse fogos de artifícios.
Repelirei qualquer ataque dirigido contra a Stardust parta
de onde partir. Vou...
Perry Rhodan parou de falar. Atrás dele, ouviu-se
um ruído. Virou-se. Bell segurava o braço de Fletcher que
entrara na sala de rádio.
— Não caia na conversa dele, general! — gritou
Fletcher. — Ficou doido. Os arcônidas com suas ideias
decadentes fizeram com que enlouquecesse. Opus-me à
aterrissagem neste local. Mas ele me ameaçou com a
pistola. É um amotinado.
Perry fez um sinal a Bell e deixou que Fletcher
terminasse. Finalmente, aproximou-se dele e colocou-lhe
a mão sobre o ombro.
— Escute Fletcher. O general pode ouvir o que
tenho a dizer. Talvez agisse da mesma forma se fosse
você. Acontece que não sou. Você é livre para deixar a
Stardust assim que o deseje. Não prendo ninguém. Mas
quero que, antes de ir embora, confirme perante o general
Pounder que na Lua encontramos armas que nos
permitem controlar o mundo. Não lhe diga mais nada, só
isso.
Fletcher hesitou. Fitou os olhos ameaçadores de
Bell. O técnico tinha na mão o bastão prateado do
irradiador psíquico. Perry lançou-lhe um olhar quase
gentil. Na tela, o rosto de Pounder espreitava a cena.
Confirmou com um aceno de cabeça.
— É verdade, general. Se Rhodan quiser, pode
destruir o mundo.
Abaixou a cabeça, virou-se e saiu da sala. Rhodan,
suspirando aliviado, dirigiu-se ao general.
— General, além do senhor, os homens que tomam
as decisões no bloco oriental e na Federação Asiática
ouvirão as minhas palavras. Quero acrescentar apenas o
seguinte: a extensão territorial da terceira potência é
muito limitada. Não deixe que este fato o engane.
Cumpram os meus desejos. E não se atrevam a levar ao
extremo as suspeitas que nutrem um contra o outro. Acho
que, a esta altura, já devem ter compreendido que a
Stardust não é uma base americana. Por outro lado, não
pousou aqui para cair nas mãos da Federação Asiática. E
o bloco oriental terá de abandonar as esperanças de colher
os despojos do conflito entre os dois outros blocos. Os
senhores poderão se comunicar comigo a qualquer
momento nessa faixa, e também usarei a mesma quando
tiver que entrar em contato com os senhores. Lamento o
ocorrido, general, mas acho que um dia o senhor me
compreenderá. Por ora só posso pedir que me
desculpasse.
Pounder fitou os olhos de Perry Rhodan, depois
acenou com a cabeça.
— Parei o possível, Rhodan. E espero em Deus que
Mercant concorde. O senhor o conhece!
Um sorriso estranho passou pelos lábios de Rhodan.
Ele compreendeu a advertência, mas esta já não o
assustava mais. Mercant passara a ser apenas um homem.
E Perry Rhodan não mais temia os homens.
3
De Washington para Pequim:
Conseguimos estabelecer contato com a Stardust.
Comandante Rhodan afirma estar de posse de armas
incríveis que teriam sido levadas à Lua por uma potência
extraterrena. Já não temos a menor influência sobre os
acontecimentos. Solicitamos seu pronunciamento.
De Pequim para Washington:
Acompanhamos palestra visualizada entre General
Pounder e Rhodan. Explicações inverossímeis — muito
fantásticas. Ultimato fica de pé. Prazo se esgotará daqui a
sete horas.
De Moscou para Washington:
Participamos da opinião do governo da Federação
Asiática. Também consideramos a presença de uma base
americana no deserto de Gobi como uma ameaça à paz
mundial. Mas, no caso de um conflito armado, Moscou se
conservará neutra.
De Moscou para Pequim:
Concordamos com a opinião do governo da
Federação Asiática. Também consideramos a presença de
uma base americana no deserto de Gobi uma ameaça à
paz mundial.
De Washington para Pequim e Moscou:
Voltamos a afirmar que o governo de Washington
não tem conhecimento de uma base americana no deserto
de Gobi. Ordenamos à tripulação da nave Stardust que se
rendesse. Sugerimos um encontro dos dirigentes das
nações interessadas.
A última nota americana não obteve resposta. Às
sete horas tão preciosas começaram a correr. Na Ásia, as
torres das rampas de disparo começaram a girar em
direção ao Oriente e ao Ocidente. Os monstros de aço
emitiram reflexos ameaçadores sob a luz dos refletores.
54
Homens corriam de um lado para outro. Depois, fez-se o
silêncio.
O quadro repetiu-se nas áreas de defesa do bloco
ocidental.
No bloco oriental, as torres das rampas de disparo
foram giradas de tal forma que abrangiam todos os
quadrantes do globo.
Nas três partes do mundo, um homem sentado bem
abaixo do nível do solo, contemplava um conjunto de
painéis de controle e instrumentos eletrônicos.
Comunicava-se com os postos de comando através de
telas de imagem. Sua mão descansava sobre a mesa junto
a um botão vermelho. Um botão que parecia falar-lhe de
uma destruição total e terrível para todo o gênero
humano; uma hecatombe que varreria todos os traços de
uma civilização.
Em dois outros lugares, sobre duas outras mesas,
dois outros homens esperavam; suas mãos perto dos
botões que dariam início ao caos.
***
Crest estava sentado na cama, recostado na parede
forrada de almofadas. Manoli aplicara uma injeção em
Fletcher que estava, agora, mergulhado em um sono
profundo. Bell encontrava-se na central em companhia do
médico, acompanhando as transmissões radiofônicas. De
meia em meia hora informava Rhodan do que acontecia
no mundo.
Aos poucos, Crest compreendeu as consequências
que sua presença na Terra desencadeara entre os homens,
embora estes nem tivessem conhecimento dele. Com um
ar pensativo e preocupado, disse:
— Rhodan, eu não consigo compreender, como seu
povo consegue resistir a esta tensão psicológica. Pelo que
você diz há decênios que seu mundo vive sob esta
atmosfera de suspense. Basta que alguém aperte um botão
para que a destruição seja lançada sobre a Terra. Por que
não houve, ainda, quem se erguesse contra este estado de
coisas? Por que não se formou um governo comum que
reunisse todos os arsenais para usá-los na defesa contra o
possível ataque de um agressor extraterreno?
Rhodan suspirou.
— Não há nenhuma resposta válida à sua pergunta,
Crest. Se houvesse, não viveríamos constantemente entre
a vida e a morte. Talvez nenhuma resposta seja possível
enquanto a humanidade estiver convencida de constituir a
única força deste sistema solar. Só tememos algo que seja
mais poderoso que nós. Os dois blocos mais poderosos da
Terra se equivalem em força e poder. O terceiro bloco
desempenha um papel secundário. Todo mundo sabe que
no caso da irrupção de uma guerra, os segundos serão
decisivos. Mas todo mundo sabe, também, que aquele que
for surpreendido pelo ataque, terá tempo ainda para
disparar os foguetes de retaliação antes que o país
mergulhe nos escombros e nas cinzas. A consequência
inevitável será a morte de ambos os adversários. Só o
conhecimento deste fato tem evitado a catástrofe.
— Começo a compreender o problema. Quando
minha civilização ainda era jovem, defrontou-se com as
mesmas dificuldades. Viveram mais de duzentos anos sob
o medo constante do aniquilamento total. Foi quando uma
população de insetos guerreiros vinda dos confins da Via
Láctea nos descobriu e desfechou um ataque contra nós.
Em menos de meia hora, os governos se uniram e
derrotaram o inimigo comum. Como o perigo
continuasse, a aliança foi mantida. Foi assim que nos
tornamos um povo unido e iniciamos a ascensão.
Perry Rhodan concordou com um aceno de cabeça.
Seus olhos reluziam.
— É a primeira vez que ouço essa história, mas,
apesar disso, ela não constitui novidade para mim. É a
única solução lógica dos problemas que surgem quando
um grupo de seres inteligentes descobre as armas
definitivas. A esta altura já deve compreender por que
tenho que agir da forma como estou agindo. Não é nada
agradável ser apontado como traidor pelos amigos e
superiores hierárquicos. Mas se me deixar levar pelos
sentimentos, o mundo estará perdido. Um dos blocos
poderia se apossar das armas e destruiria o outro.
Todavia, antes que conseguisse fazê-lo, o outro poderia
desencadear a ação suicida. Não Crest, eu vejo
perfeitamente o caminho que devo percorrer. Seu
problema é a resposta às minhas indagações. Você quer
recuperar a saúde. Vou ajudá-lo. Precisa de sobressalentes
eletrônicos. Vou consegui-los. Sua nave poderá decolar
em busca do planeta da vida eterna. É possível que acabe
se esquecendo de nós. Mas aproveitarei a sua curta
presença aqui para trazer a paz à Terra, a paz pela força.
De outra forma não é possível. Só o medo de uma
potência ainda maior fará com que as potências do nosso
planeta recuperem a razão. Acredito que poderei contar
com a sua ajuda.
— Farei o que estiver ao meu alcance. Mas, por
enquanto, não parece que sua atuação esteja tendo êxito.
Falta pouco para expirar o prazo do ultimato. E depois?
— Thora terá de intervir. O antepara energético e o
neutralizador da gravidade não foi suficiente para
convencer os asiáticos, de que se defrontam com
formidáveis inventos extraterrenos. E o meu pessoal do
ocidente acredita que tudo não passa de um blefe.
Portanto, é necessário que aconteça alguma coisa que
deixe patente para todos os interessados o poderio imenso
da terceira potência. Sua nave está estacionada na Lua. O
que pode ser feito de lá para que toda a humanidade fique
ciente do perigo que paira sobre ela? Não seria possível
erguer o rochedo de Gibraltar e fazer com que o mesmo
caia no mar a mil quilômetros de distância? Ou transferir
a Estátua da Liberdade de Nova Iorque para Pequim?
Quem sabe se poderiam paralisar todas as comunicações
radiofônicas do mundo?
— Poderíamos fazer tudo isso e, provavelmente,
seria conveniente dar uma demonstração bem visível aos
homens. Pense no assunto e avise-me da sua decisão.
Thora fará aquilo que eu lhe pedir. De minha parte sugiro
a utilização de um raio energético. Escolha uma região
não muito afastada, mas despovoada. Previna os homens.
Avise-os de que dentro de duas horas, isto é, três horas
antes do término do ultimato, queimará as areias do
deserto, produzindo um funil de cinquenta quilômetros de
diâmetro. Previna-os que se não agirem de acordo com os
seus desejos, o raio será dirigido contra zonas habitadas.
Acho que isso bastará para convencê-los.
Um sorriso se esboçou no rosto de Rhodan. A
insensibilidade aparente, porém, ocultava uma
preocupação sincera com o futuro da espécie humana.
55
Sabia que não havia nenhum argumento que pudesse
incutir bom senso na mente dos guardiões das ideologias.
Só um choque seria capaz de tanto. Estava disposto a
aplicar a terapia de choque no mundo.
— Acredito que sim — respondeu. — Acha que
Thora está disposta a nos ajudar?
— É obrigada a ajudar, quer queira, quer não. O seu
orgulho diante de uma raça inferior é tamanho que a faz
esquecer de que também já atravessamos este estágio: os
estágios de evolução de D a A. Talvez tenha sido a época
em que nossa civilização foi mais produtiva. Éramos
jovens e ativos. Amávamos o progresso e a novidade.
Hoje tudo mudou. Somos degenerados e presunçosos.
Vou usar de franqueza, Rhodan. Às vezes, quando penso
na nossa semelhança exterior, chego a ter ideias bem
estranhas. Se combinássemos o espírito de sua raça com o
da nossa, se uníssemos a sua vitalidade ao nosso saber,
poderíamos dominar o Universo...
Os olhos de Perry Rhodan perderam o brilho duro.
Vagaram numa distância ignota, que se media por
eternidades. Sem que percebesse, seus punhos se
cerraram, os dedos voltaram a se distender. A imagem do
futuro desenrolou-se diante do seu espírito como uma
visão instantânea.
Os homens e os arcônidas — uma só raça. A
iniciativa e o espírito de aventura aliados a um saber
vetusto e a uma tecnologia inimaginável. Naves espaciais
que se deslocavam a velocidade superior à da luz,
tripuladas por homens e mulheres ávidos de ação,
penetravam nos recantos mais profundos da Via Láctea,
descobriam novos mundos, fundavam colônias e
impérios. O comércio interestelar proporcionava um bem-
estar indescritível. Surgia um novo império galáctico.
Surgia uma nova raça...
Talvez Crest imaginasse o que se passava na mente
de Rhodan. Um sorriso de sabedoria aflorou-lhe aos
lábios.
— Ainda nos encontramos no começo, Perry
Rhodan. Você representa o gênero humano; eu, os
arcônidas. Você precisa do nosso auxílio; nós, do seu. É
um pacto, podemos chamá-lo assim, nascido da
necessidade comum. Mas acredito que, futuramente,
cheguemos a uma união em prol do interesse mútuo,
fundada na razão. Até é possível que a Terra seja o
planeta da vida que estamos procurando, pois o
rejuvenescimento traz consigo uma vida mais longa.
— Antes de qualquer coisa, devemos preparar o
início, Crest. Depois poderemos falar sobre o resto. O
mundo que pode trazer-lhe a saúde está prestes a soçobrar.
O ódio mesquinho e a desconfiança egoísta, a falta de
respeito pelas opiniões alheias, à obstinação com que são
mantidos certos princípios preestabelecidos, foi isso que
nos conduziu à situação atual. Antigamente o temor a
Deus obrigava os homens a serem honestos e tolerantes.
Hoje, esses resultados só podem ser alcançados através do
medo incutido por ameaças palpáveis. Portanto, peça a
Thora que dirija o raio energético para a África do Norte,
a cerca de cinco graus de longitude leste, na altura do
Trópico de Câncer. O raio deverá atingir a vertente norte
da serra de Ahaggar. Expedirei um aviso para que a região
seja evacuada imediatamente, embora, pelo que sei, esteja
praticamente desabitada.
— A demonstração não deixará de produzir efeito —
prometeu Crest. — Convém salientar, no seu aviso, que se
trata de uma das operações mais inofensivas do nosso
arsenal.
***
A estação receptora da patrulha chefiada pelo
tenente Durbas estava captando notícias alarmantes,
vindas de todas as partes do mundo. Subitamente as
transmissões em todas as faixas foram superadas por uma
emissora desconhecida. O radiotelegrafista procurou, em
vão, controlar o seu aparelho, mas, mesmo com o mínimo
de volume, a voz de Perry Rhodan era ouvida num raio de
duzentos metros.
“Aqui fala Perry Rhodan, representante do Terceiro
Poder da Terra. Uma vez que o mundo se prepara para a
guerra que trará o fim da espécie humana, não quero
deixar de formular uma última advertência. Por meio dela
provarei que a nação ou Estado que disparar o primeiro
foguete atômico será destruído imediatamente. Dentro de
cento e quinze minutos surgirá uma cratera de cinquenta
quilômetros de diâmetro no deserto do Saara, ao norte da
cordilheira de Ahaggar. O fenômeno terá origem num raio
energético expedido da Lua. Pede-se a todas as pessoas
que se encontrem na região indicada que se afastem o
mais possível do centro do alvo. Uma vez realizada a
demonstração, as potências mundiais disporão de três
horas para reconsiderar as suas posições. É tudo.”
O radiotelegrafista cravou os olhos no receptor;
estava atônito. O tenente Durbas, que se levantara e
chegara mais perto, fez a mesma coisa.
— O que foi isso? — perguntou depois de algum
tempo.
— Perry Rhodan, aquele cosmonauta que pousou na
Ásia. Dizem que está colaborando com a Federação
Asiática. Também se fala a respeito de novas armas que
ele teria trazido da Lua.
Os homens da patrulha do deserto reuniram-se.
Estavam indecisos. O veículo estava parado à sombra de
um oásis. O motorista olhava para leste.
— A cordilheira fica logo ali. Será que nos
encontramos a uma distância segura?
O tenente Durbas mostrou-se contrariado.
— Até parece que você está acreditando nessa
bobagem, Hassan! Um raio energético vindo da Lua! Será
que não podiam inventar outra coisa?
O radiotelegrafista sacudiu a cabeça, estava
pensativo.
— Deve haver algo de verdade nisso, tenente. Captei
algumas noticias. Dizem que esse Rhodan cobriu sua nave
com uma cúpula feita exclusivamente de energia. Nem
mesmo uma bomba atômica poderia atingi-la.
— São contos de fada. Não se pode acreditar em
tudo o que diz o nosso pessoal, o que dizer quando se
trata dos amarelos? Fundir uma cratera no deserto! Que
tolice! O que diz o Forte Hussein?
— Estabelecerei contato imediatamente.
O Forte Hussein recomendou que a patrulha seguisse
a advertência.
— Está bem — gemeu. Durbas, lançando um olhar
saudoso para o bosque sombrio. — Vamos recuar para o
oeste. Esse calhambeque faz quarenta quilômetros por
hora. Acho que isso é suficiente.
56
Quinze minutos antes da hora marcada para a
demonstração, estavam abrigados atrás de uma elevação
do solo, lançando olhares impacientes em direção a leste.
Admiraram-se dos numerosos aviões que, subitamente,
começaram a circular bem acima deles. Próximo ao local
em que se encontravam, pousou um helicóptero da
Central de Informações Leste com seus aparelhos de
registro. Bem perto dali, uma pacata câmera de televisão
da Federação Asiática focalizava a região demarcada por
Rhodan. Dos americanos, nada se via. Talvez estivessem
mais ao norte.
Faltavam dez minutos.
Um círculo bem amplo formara-se em torno da área
ameaçada. Os presentes não acreditavam muito naquilo
que talvez fosse acontecer dali a pouco, mas ninguém
queria perder a chance de assistir a um espetáculo como o
que se prometia. Tratava-se, na verdade, de um espetáculo
desencadeado por um poder estranho.
Passaram-se cinco minutos.
Durbas tocou no braço do cabo Abbas.
— Dentro de uma hora ficará escuro. Tomara que
esse Rhodan não demore muito. Aliás, recebemos ordem
para regressar imediatamente ao Forte. Deve estar
acontecendo alguma coisa.
— Será que é a guerra?
— Como vou saber? Pensando bem, desde 1945
encontramo-nos numa espécie de guerra.
O tenente olhou para o relógio.
— Está na hora — murmurou e olhou para o leste.
No mesmo instante, porém, fechou os olhos. As demais
pessoas que se encontravam por ali fizeram a mesma
coisa.
Foram ofuscados por uma extensa cortina de luz que
se precipitou do céu azul e atingiu a areia do deserto a
cerca de trinta quilômetros dos observadores. Continuava
visível mesmo através das pálpebras fechadas. A origem
do raio perdia-se no céu, aonde ia se estreitando
progressivamente. Mais exatamente, localizava-se no
ponto em que se situava a Lua, invisível há essa hora.
Uma onda de calor passou por cima dos homens
assustados. As câmeras de televisão, porém, continuaram
a zumbir, transmitindo o fenômeno diretamente para
todos os quadrantes do mundo. Um raio incandescente
brilhou nas telas de imagens dos centros de informações.
Um dos aviões, que se aproximou demais da zona de
perigo, foi colhido por um imenso turbilhão que o
arrastou para o interior do raio energético. No mesmo
instante, foi transformado numa gigantesca gota de metal
fundido que se evaporou depois de alguns instantes de
queda.
O raio pousou sobre o deserto por apenas um
minuto. Depois, apagou-se.
Parecia que, era noite. O Sol, que ainda há pouco
emitia um brilho tão intenso, agora parecia uma estrela
agonizante, embora estivesse bem acima do horizonte.
Sua luz era pálida e avermelhada. Podia-se contemplá-lo
com os olhos bem abertos.
No lugar em que o raio tinha tocado o solo, já não
havia deserto. Uma cratera abria-se entre a areia e as
rochas. Não se via o fundo. As bordas estavam
incandescentes. Bem embaixo, percebia-se um brilho
avermelhado. Vapores erguiam-se das profundezas do
inferno recém-criado.
Só de avião a cratera podia ser abrangida com o
olhar. Era gigantesca. Formava um círculo perfeito, como
se tivesse sido traçada a compasso.
Durante três horas o mundo conteve a respiração. O
momento em que expirava o prazo do ultimato chegou —
e passou.
Três botões vermelhos deixaram de ser tocados...
***
O tenente Klein chegou a Pequim por um caminho
mais longo que o habitual. De acordo com as ordens que
recebera, entrou em contato com o número dois, que lhe
forneceu novas instruções. A missão a ser cumprida
parecia impossível, mas tinha que ser tentada. Perry
Rhodan representava um perigo para todo o mundo.
Quem conseguisse remover esse perigo conquistaria fama
imorredoura, pouco importava a nação a que pertencesse.
A missão exigia a mobilização de todas as energias da
pessoa encarregada de cumpri-la, além de uma coragem
extraordinária.
No entanto, havia uma circunstância que a fazia
parecer mais fácil. O próprio Mercant fornecera a Klein
uma indicação de suma importância.
— Preste atenção, Klein! Rhodan não poderá ser
eliminado com os meios usuais. Só existe uma
possibilidade: a traição. Não se preocupe com os aspectos
morais, pois Rhodan também nos traiu. Você terá que
romper o anteparo energético. Como fazê-lo é problema
seu. Há outro detalhe: você não está só. Há agentes do
bloco oriental, e também da Federação Asiática que estão
lidando com o mesmo problema. Não é impossível que a
tarefa comum acabe por conduzi-los a certo tipo de
entendimento. Enquanto a Stardust não tiver sido
destruída, os agentes da Federação Asiática e de Moscou
serão seus colegas. Boa sorte!
Klein precisaria de sorte e, até aquele momento, ela
não o deixara em falta. Em Kalgan, a 120 quilômetros a
noroeste de Pequim, onde procurou conseguir um
automóvel através de dinheiro e promessas, teve a sua
atenção despertada por um chinês, que já tinha visto três
vezes no mesmo dia. O rapaz observava-o; não tirava os
olhos dele.
Comprou um carro capaz de trafegar em terreno
difícil e providenciou alguns mantimentos e outras
provisões, uma barraca com os respectivos equipamentos
e tudo o mais de que precisava para uma pequena
expedição. As estradas se encontravam em boas
condições, mas estavam sendo vigiadas.
Mandou pintar no veículo, em letras enormes, umas
palavras que o colocariam a salvo de qualquer suspeita:
Viagem Experimental Realizada sob o Patrocínio do
Exército. Seus documentos diziam que era engenheiro.
Devia verificar se o veiculo se prestava ao transporte de
tropas pelo deserto e pelas montanhas.
Ao sair da cidade, procurou em vão pelo chinês
suspeito. Provavelmente desistira do seu intento. Por que
e quais as suas intenções, Klein não sabia.
“Essa gente tem um interesse todo especial por
estrangeiros”, murmurou enquanto se desviava de um
veiculo que vinha em sentido contrário. “Mas não pareço
tão rico assim. O que é que se poderia roubar de um
engenheiro no campo?”
57
Pelo fim da tarde, passou pela cidade de Kwai-Hwa,
indo pela estrada que seguia junto à Grande Muralha. Não
podia saber que naquele mesmo instante o chefe do
Serviço de Defesa da Federação Asiática, Mao Tsen,
encontrava-se na longínqua Pequim, sentado diante de um
receptor que lhe fornecia a localização exata do pretenso
veículo experimental. O chefe do Serviço Secreto, major
Butaan, estava sentado ao seu lado, sorrindo.
— O tenente Li Shai-tung é um dos meus melhores
agentes — disse Butaan cheio de orgulho, como se aquilo
representasse uma realização exclusivamente sua. —
Logo descobriu esse americano e não o perdeu de vista.
Estou curioso para ver se é correta a sua teoria, segundo a
qual os outros cooperariam conosco se realmente a
Stardust não fosse uma base americana, o que, a esta
altura, parece bastante provável. Se o bloco ocidental
dispusesse de uma arma como o raio vindo da Lua, já
teríamos deixado de existir. Li foi informado de que a
Stardust deve chegar às nossas mãos, intacta?
— Foi devidamente instruído — confirmou Mao
Tsen com um gesto comedido. Estava prestando atenção à
voz fina vinda do alto-falante: — Ah, o americano
resolveu prosseguir viagem. Daqui a pouco deverá chegar
ao Hwang-Ho. É possível, até, que atinja a localidade de
Pau-tou, a não ser que prefira passar a noite num
acampamento ao ar livre.
Klein não sabia que, no quartel-general do Serviço
Secreto da Federação Asiática, sua rota estava sendo
traçada, com toda a precisão, em um mapa. Era como se
ele transmitisse periodicamente sua posição.
Só quando parasse, ele ficaria sabendo que tinha
sido acompanhado.
A lua minguante já se aproximava do horizonte sob
o qual o sol se escondera. À sua esquerda, brilhavam as
águas de um rio que deslizava lentamente. A estrada era
ladeada por moitas de arbustos que se estendiam até a
margem do rio.
Klein encontrou um espaço livre e dirigiu o carro
para lá. Prosseguiu mais alguns metros até chegar a um
lugar que lhe pareceu apropriado. O carro ficou abrigado
entre a vegetação e as rochas, junto ao rio.
O tenente espreguiçou-se e saiu do carro. Fazia
calor, mas, assim mesmo, uma fogueira não seria má. Não
armaria a barraca e um café quentinho lhe faria bem.
Depois, estenderia algumas cobertas na parte do veículo
destinada à carga e dormiria lá.
— Vamos descansar? — perguntou uma voz atrás
dele num inglês horrível. — Calma! Não faça nenhum
movimento precipitado, meu amigo. Estou segurando
uma arma. Vire-se devagar, bem devagar.
Klein acabara de colocar alguns pedaços de lenha
bem seca sobre as chamas que pareciam ávidas por se
alimentarem. A luz produzida pela fogueira permitia-lhe
reconhecer o rosto do seu interlocutor. Naturalmente era
aquele rapaz obstinado, que já lhe despertara a atenção em
Kalgan. Encontrara uma oportunidade para se esconder no
interior do veículo.
Tudo isso não seria tão mau assim se o sujeito não
lhe apontasse uma pesada pistola automática apoiada em
um dos braços. Klein olhou para o orifício ameaçador do
cano daquela arma perigosa, cujos projéteis tinham carga
explosiva suficiente para danificar um carro blindado de
tamanho médio.
— O que deseja? — perguntou Klein. — Para um
vagabundo, seu equipamento é muito moderno. Tome
cuidado, meu velho, pois este veículo é do governo.
— De que governo? — disse Li Shai-tung com um
sorriso misterioso. — Do americano? Vamos, mostre logo
suas cartas. Qual é a sua missão? Talvez possamos chegar
a um acordo.
Klein apontou para o fogo.
— Vamos sentar?
— Está armado?
— Está interessado em um acordo ou prefere falar
comigo de pistola na mão?
Li hesitou.
— Estou em situação de vantagem. Não teria
dúvidas em renunciar à mesma se soubesse que você está
sendo sincero. Quero que responda a uma pergunta
minha. Só depois disso poderei aceitar o seu convite e
confiar em você. Qual é a sua missão? Quem é o seu
chefe? Conheço as respostas através das pessoas que me
enviaram para cá. Se coincidirem com as suas...
Foi descendo do carro, mas continuou com a arma
apontada para Klein. Este refletiu por um instante.
Lembrou-se do que Mercant lhe havia dito e, subitamente
percebeu que ele estava com razão: era necessário que
colaborasse um com o outro.
A evolução dos acontecimentos já começava a
delinear a trilha sonhada por Perry Rhodan. Era ainda
muito tênue, muito insignificante, começava bem por
baixo. Um dia, porém, abrangeria a Terra se os agentes
não conseguissem destruir a Stardust.
— Meu chefe é Allan D. Mercant, chefe do
Conselho Internacional de Defesa do Ocidente. Minha
missão consiste em destruir a nave espacial Stardust. Isso
basta?
Li concordou com um movimento de cabeça depois,
abaixou a arma. Por uns momentos, continuou a segurá-
la, indeciso; acabou atirando-a na parte traseira do
veículo. Foi até a fogueira e apertou a mão de Klein,
sentando-se em seguida.
O tenente engoliu em seco. O gesto representou uma
reação destinada a disfarçar a admiração que nutria pelo
outro. Sentou, também. Ao pé dos dois, o fogo espalhou
um calor agradável. A água começou a ferver na chaleira.
— A sua missão só difere da minha em um ponto —
admitiu o chinês depois de uma pausa prolongada. —
Você recebeu ordens para destruir a Stardust, ao passo que
eu devo evitar isso de qualquer maneira. Acredito, porém,
que, oportunamente, ainda chegaremos a um acordo. No
momento, nossos objetivos são idênticos: impedir que
Perry Rhodan possa impor sua vontade ao mundo. Será
que interpretei corretamente as suas intenções?
Klein confirmou com um gesto de cabeça.
— Nesse caso — continuou Li — poderemos
colaborar um com o outro, até que Rhodan tenha sido
posto fora de combate... Aquilo que virá depois ainda está
muito longe. Vamos fazer um acordo. Queira formular sua
proposta.
O tenente Klein nem chegou a compreender o
grotesco da situação. Dois agentes que trabalhavam para
potências inimigas uniam-se para eliminar o elemento
mais poderoso. Ainda há poucos dias, sua rapidez no
manejo da arma decidiria qual dos dois conseguiria
sobreviver. Já agora tudo estava mudado. O temor
58
infundido pela misteriosa terceira referência transformara
os inimigos em amigos que se mantinham numa atitude
de expectativa.
— Você me garante que não me entregará às
autoridades do seu país, nem mesmo depois que tivermos
atingido nosso objetivo. Em compensação,
oportunamente, quando chegarmos ao local em que se
encontra a Stardust, revelo-lhe como pretendo fazer para
atravessar a cúpula energética. Está de acordo?
Li apertou a mão do americano.
Cinco dias depois, deixaram a rodovia na altura de
Hang-Shou, e avançaram pelo deserto de Gobi, em
direção ao norte. Deixaram para trás as montanhas e o rio.
Dali em diante; só encontraram alguns lagos salgados e
pequenos regatos. A vegetação foi se tornando cada vez
mais escassa. A paisagem refletia as características do
deserto.
A cinquenta quilômetros do destino, foram detidos
por uma unidade blindada do exército asiático. Foi Li
quem salvou a situação. Uma mensagem radiofônica
expedida para Pequim produziu um verdadeiro milagre.
Os dois agentes foram liberados com muitos pedidos de
desculpas. O comandante da unidade, em meio a inúmeras
mesuras, desejou êxito completo ao senhor Klein e seu
amigo chinês.
A situação foi se tornando cada vez mais estranha.
Até parecia nunca ter havido qualquer conflito entre o
Oriente e o Ocidente. O temor do inimigo comum
revelou-se capaz de cimentar uma unidade sólida até
mesmo entre ideologias que se opunham ferozmente.
Ainda por duas vezes tiveram que atravessar o
cordão de isolamento estabelecido pelo exército. Klein
começou a indagar de si para si por que estava dirigindo
aquele caminhão. Podia ter pedido que o levassem num
helicóptero do exército; e era indiferente que o aparelho
pertencesse à Federação Asiática, ou aos países do bloco
ocidental. Mas lembrou-se de que tinha que enganar
Rhodan. Se é que este fosse se deixar enganar com
facilidade...
***
O capitão Reginald Bell desligou o motor. Os dois
reatores zumbiram mais algum tempo. Depois pararam.
— Então? — perguntou Perry. — Tudo em ordem?
— Está! E o tanque está quase cheio. Não será difícil
cobrir os dois mil quilômetros até Hong Kong, desde que
eu possa reabastecer no caminho. A próxima parada será
em Bornéo. Depois, terei que alcançar a Austrália.
Fletcher saltou nervosamente de um pé para o outro.
Nos seus olhos havia um brilho fraco. Já esquecera a
Stardust, que se encontrava a apenas cem metros de
distância. Só via o helicóptero que ia levá-lo de volta à
civilização. Chegado lá, encontraria uma possibilidade de
retornar aos Estados Unidos, onde a esposa o esperava.
Não sabia como tinha chegado ali. Só se lembrava
do seu nome e do da cidade em que sua esposa morava. O
hipnobloco, que Crest aplicara em torno do seu centro de
memória com o auxílio do psicoirradiador, apagara quase
todos os fatos anteriores. Ninguém conseguiria arrancar
nada de Fletcher: era um homem que não tinha mais
passado.
Rhodan o prevenira, mas Fletcher limitara-se a
abanar a cabeça.
— Serei o único responsável pelo que acontecer;
você não terá nada com isso. Quero voltar para junto de
minha esposa. É só. E, agora, leve-me para junto de Crest.
Meia hora depois estava tudo terminado. Bell saltou
para o helicóptero e acenou para Rhodan.
— Confie em mim, meu velho. Deixarei Fletcher em
Hong Kong ou em Darwin. Depois, arranjarei as peças
sobressalentes e o soro antileucêmico. Dentro de uma
semana estarei de volta. Lembranças para Eric e Crest.
— Cuidado para que não o derrubem!
— Este helicóptero é do Exército. Além disso, levo
comigo o neutralizador de gravidade, cujo alcance chega
a dez quilômetros. Isso sem falar no irradiador manual. As
outras invenções também serão úteis. Em troca delas,
conseguiria continentes inteiros. Pense apenas nos
pequenos geradores de energia. São do tamanho de uma
caixa de charutos, mas fornecem, por um século,
ininterruptamente, duzentos watts. Entre, Fletcher.
Enquanto o astrônomo se espremia por entre as
caixas, na parte traseira do helicóptero, Bell se despedia
do amigo.
— Desligue o anteparo energético no momento
exato em que eu atingir altitude suficiente. Alguns
segundos devem bastar. Depois volte a fechar a nossa
quitanda. Daqui a uma semana estarei de volta. Não se
preocupe. Até a volta!
Perry retornou à sala de comando da Stardust.
Quando o helicóptero ganhou altitude e chegou perto do
teto da cúpula energética invisível, ele empurrou uma
chave durante cinco segundos. Bell já estava do lado de
fora.
O helicóptero tomou rumo sul. Deslocava-se a baixa
velocidade. Passou por algumas formações de carros
blindados e, pouco depois, chegou à vertente oriental das
montanhas de Richthofen. Tomando o rumo do sudoeste,
prosseguiu a uma altitude de mil e quinhentos metros.
No fim da tarde, foi atacado sem qualquer aviso por
um avião de caça.
Não sabia como explicar o incidente. Talvez alguém
o tivesse visto decolar. Mas, se fosse assim, não o teriam
deixado em paz por tanto tempo.
O pequeno aparelho surgiu de repente. Vinha em
sentido contrário e ligeiramente para o lado. Estava
girando, utilizando todo o seu poder de fogo. Os projéteis
chamejantes passavam muito à esquerda, antes que o
piloto pudesse corrigir a pontaria, já havia passado pelo
helicóptero. Descreveu uma curva ampla e atacou pelo
flanco.
Bell já conseguira dominar a surpresa. Deixou que o
helicóptero seguisse o mesmo rumo, regulou o irradiador
manual para meia intensidade e, depois, dirigiu-o sobre o
avião que se aproximava a uma velocidade vertiginosa.
“Está na hora de mostrar o que você sabe fazer”,
disse para si mesmo. Com os nervos tensos, acrescentou:
“Suba. Ganhe altitude e suspenda o fogo!”.
No mesmo instante, as línguas de fogo que saíam do
bojo e do bordo de ataque das asas do avião
desapareceram. O caça empreendeu uma subida quase
vertical.
Bell abaixou o irradiador. Lembrou-se, muito tarde,
de que era necessário transmitir outra ordem ao piloto. A
distância era de três, e, logo, quatro quilômetros. Não
59
havia como vencê-la.
O caça continuou sua subida louca. E continuava a
subir quando já fora do alcance visual de Bell. O
combustível se esgotava. O piloto, semiasfixiado,
continuava a cumprir a ordem recebida. Subiu até que
todo o combustível fosse consumido.
Por um segundo, o aparelho pareceu imóvel, depois,
começou a cair. Foi descendo em parafuso até espatifar-se
contra os rochedos de Tsingling Chan.
Bell sentiu-se abalado. Começava a compreender o
poderio imenso que representava esse irradiador de
aspecto tão inofensivo se utilizado de forma conveniente.
Devia ter dado uma ordem diferente ao piloto. Mas como
tomar uma decisão em uma fração de segundo?
Aterrissou num pequeno aeroporto militar perto de
Chun-king. Ainda faltavam mil quilômetros para Hong
Kong.
No início, ninguém lhe deu atenção. Mas, como
ficasse parado e não descesse do aparelho, um jipe
aproximou-se. Dele, saiu um oficial de alta patente e
acercou-se do helicóptero.
— Por que não comunicou a sua chegada à torre do
controle? — indagou. Quando, porém, viu o rosto de Bell,
que jamais poderia ser confundido com o de um chinês,
acrescentou: — Quem é o senhor?
O mínimo que Bell podia fazer era rir. Tinham lhe
dito que, aqui, se sorria constantemente.
— Não entendo uma única palavra do que o senhor
está dizendo — respondeu em inglês. Depois, dirigindo o
irradiador sobre o oficial, prosseguiu: — Sou o marechal
Roon. Preciso de combustível. Providencie. E rápido, por
favor!
O motorista do jipe também fora incluído no
tratamento. O oficial prestou-lhe continência e entrou no
jipe que se afastou em alta velocidade.
Bell sorriu e esperou. Virou-se para Fletcher que
acompanhava tudo sem o menor interesse. Mantinha os
olhos fechados.
— Coitado! — murmurou Bell.
Dali a poucos minutos, chegou um caminhão-tanque
e parou perto do helicóptero. Já ia escurecendo. Ninguém
se preocupou com os dois homens sentados na cabine.
Uma vez cheio o tanque e colocados alguns galões extras
em tanques de reserva situados no compartimento de
carga, o chefe do grupo comunicou o término da
operação.
Bell deu partida no motor e cumprimentou com um
gesto condescendente. Ao subir para o céu vermelho,
ainda chegou a ver os olhos arregalados dos chineses.
Mais tarde, o verdadeiro marechal Roon jamais
conseguiria explicar como o capitão Finlai, que o
conhecia pessoalmente, jurou perante a Corte Marcial tê-
lo visto em pessoa na Base Aérea de Chun-king. Ao que
se sabia, ninguém podia estar em dois lugares ao mesmo
tempo.
Ou será que podia?...
Era estranho.
4
Foi justamente num lugar situado a dez quilômetros
da Stardust que uma firma da Mongólia, autorizada pelo
governo de Pequim, iniciou a montagem das instalações
destinadas à extração de sal das águas do lago de Goshun.
Os tratores abriam sulcos enormes nas margens
arenosas do lago e as dragas removiam a terra. Formaram-
se bacias imensas que se encheram com a água do lago
até que essas atingissem um metro de altura, não mais.
Alcançado esse ponto, fechavam-se as comportas. O sol
evaporaria a água e só restaria o sal. Fileiras imensas de
caminhões estavam prontas para transportar o produto até
a Mongólia, que pertencia à zona de influência de
Moscou.
Klein e Li viram-se obrigados a guardar um período
de descanso para não chamarem a atenção. Por mais
estranhos que lhes parecessem os grupos de trabalhadores
que desenvolviam uma atividade intensa, não havia
motivo para que não estivessem ali. Oficialmente, a luta
contra a Stardust havia sido suspensa. As bombas
atômicas detonadas no lugar eram livres de radiação e,
por isso, não deixavam qualquer efeito nocivo no terreno.
As tropas haviam sido retiradas das áreas adjacentes à
nave espacial.
O engenheiro-chefe da firma, Ilia Rawenkow,
cumprimentou os visitantes inesperados com
extraordinária cordialidade. Falava chinês fluentemente.
— O que os traz a esta região solitária? — indagou,
depois de tê-los convidado para uma xícara de chá. — Já
pensávamos que levaríamos meses sem ver qualquer
outro ser vivo. Permitam que faça a apresentação: este é
Peter Kosnow, procurador da empresa.
Os dois russos causaram boa impressão. Mas havia
alguma coisa nos seus olhos — ou melhor, atrás de seus
olhos — que recomendava cautela.
— Estamos testando um veículo de transporte para o
exército — respondeu Li em tom bastante convincente. —
Acho que esta região se preta bem para isso. O
engenheiro Klein está me acompanhando. Vive na
Federação Asiática há quinze anos.
60
Rawenkow e Kosnow olharam-se rapidamente.
— Que interessante! — um sorriso cortês aflorou
aos lábios de Rawenkow. — Não considera muito
estranho, que tantas vezes europeus e até americanos
venham aos nossos países e cooperem conosco? O fato é
que não há fronteiras quando se trata de interesses
econômicos.
Li estreitou os olhos.
— É verdade que se trata apenas de vantagens
econômicas? — disse, espaçando bem as palavras.
O russo — percebia-se a dez quilômetros que tanto
ele quanto Kosnow não eram mongóis — olhou
involuntariamente na direção em que se encontrava a nave
espacial, oculta por uma elevação.
— O que quer dizer com isso? — disse, para ganhar
tempo.
A expressão no rosto de Li não se alterou. Seguiu o
olhar do russo e disse em tom casual:
— Se não me engano, ali não existe nenhuma região
salineira. Por que será que só agora tiveram a ideia de
iniciar a utilização econômica do lago de Goshun?
— Afinal, onde está querendo chegar? — disse
Rawenkow em tom impaciente. Mal conseguia disfarçar o
nervosismo.
— À união dos antigos adversários — disse Li com
um sorriso e sorveu calmamente o chá de sua xícara. —
Será que você quer me convencer que está aqui por puro
acaso? Logo ali, a menos de dez quilômetros de distância,
encontra-se a Stardust. Ela vale mais que todos os lagos
salgados do mundo. E desde quando existem russos que
trabalham para a firma da Mongólia? Você não me vai
dizer que é russo, não é Rawenkow?
Kosnow fez um movimento imprudente. Seu rosto
não parecia muito inteligente quando viu a pistola de
Klein apontada diretamente para o seu rosto.
— Que é isso? Para que tanta precipitação? —
censurou Li com a voz suave. — Somos bons amigos,
Kosnow, faça o favor de esquecer a pistola que traz no
bolso. Klein guarde a sua. Seria ridículo se não
pudéssemos nos unir em face de um inimigo comum. Não
estou com a razão, Rawenkow?
O russo acenou levemente a cabeça.
— Como conseguiu descobrir nossa missão tão
depressa? Até hoje todo mundo viu em nós apenas os
representantes da firma da Mongólia.
— Talvez porque sejamos colegas — disse Li
amistosamente. — O nome do seu chefe não é Ivan
Martinovitch Kosselow?
Os dois russos ficaram de boca aberta. Confirmaram
com um aceno de cabeça.
— Pois então? — prosseguiu Li. — Quer dizer que
estamos de acordo! Posso fazer a apresentação definitiva?
Este é o tenente Klein, do Conselho Internacional de
Defesa do Ocidente. Eu sou o tenente Li Shai-tung.
Finalmente os representantes das três grandes potências
estão sentados em torno da mesma mesa, embora se trate
de uma mesa tosca e cambaleante no deserto de Gobi.
Falem com franqueza. Existe qualquer motivo que
justifique uma inimizade entre nós?
Rawenkow abanou a cabeça:
— Você tem razão, Li. Acho que devíamos concluir
um armistício. Os nossos objetivos são os mesmos.
Klein mordeu o lábio inferior, pensativo. Depois,
disse:
— O que acontecerá quando tivermos alcançado o
nosso objetivo?
Ninguém soube dar uma resposta.
***
Port Darwin fica na costa ocidental da Terra de
Arnhem. É o porto mais importante da grande baía de
Cambridge, situada no norte da Austrália.
Tanto ideológica quanto economicamente a Austrália
pertencia ao bloco ocidental. Mantinha una representante
permanente em Washington. Mas grandes setores da
população empenhavam-se pela neutralidade do
continente e pela sua autonomia militar.
Apesar disso, Bell sabia que não estava pousando
em solo amigo, quando seu helicóptero desceu sobre o
platô arenoso situado perto da costa. Já ia escurecendo. A
pouca distância, brilhavam as luzes da cidade.
— Fletcher, você vai à cidade comigo? Pode
pernoitar num hotel. Amanhã lhe dou o dinheiro. Depois
disso, você poderá pegar um avião e voltar para casa.
— Ótimo Bell! Você sabe que tenho de voltar para
junto de minha esposa. Deverá ter um bebe dentro de três
meses. Talvez antes.
— Sei, sim — disse Bell com um aceno de cabeça.
Essa história do nenê já o estava irritando. Estava
começando a compreender por que corriam tantas piadas
sobre o tema. Se todos os futuros pais fazem um drama
desses...
— Esqueça as preocupações. Temos que fazer uma
caminhada de meia hora. Tomara que ninguém nos tenha
visto pousar aqui.
Sem qualquer incidente, conseguiu entregar seu
protegido no hotel e, depois de ter dado a volta à cidade
para sondar o terreno, voltou ao helicóptero. Um policial,
tratado com o psicoirradiador, dera-lhe, com a maior
solicitude, todas as informações que desejava.
O Dr. Frank M. Haggard residia na parte leste da
cidade, num edifício anexo aos hospitais por ele
construídos. Era lá que ficava o laboratório no qual, dois
anos antes, realizara uma descoberta sensacional: o soro
antileucêmico.
Seguindo as indicações do policial, Bell foi
acompanhando, a baixa altitude, a rodovia até atingir o
entroncamento com uma estrada lateral. Seguiu esta
última e não tardou a avistar os contornos dos imponentes
prédios que se destacavam contra o mar.
Pousou na clareira de um bosque a pequena
distância dali. Colocou o irradiador no bolso, pegou um
dos geradores permanentes de energia e pôs-se a caminho.
Frank Haggard ainda estava acordado. Lançou um
olhar de espanto para o visitante retardatário, ergueu as
sobrancelhas num gesto de recriminação e convidou-o a
entrar. Ficou curioso ao ver a caixinha que Bell colocou
sobre a mesa com muito cuidado.
— Posso lhe ser útil em alguma coisa? — perguntou
o médico.
Bell examinou-o mais detidamente. Haggard era um
tipo atlético, de cabelos castanho-escuros e olhos azuis.
Devia ter cerca de quarenta e cinco anos. Havia em seu
rosto um traço de bondade, capaz de inspirar confiança
especialmente para quem precisasse de auxílio.
— Na verdade, pode ser-me bastante útil —
61
começou Bell, sem saber como explicar-se. — Meu nome
é Reginald Bell, não sei se já o ouviu antes.
— Reside em Darwin? — indagou o médico,
inclinando-se para frente.
Bell disfarçou o seu desapontamento.
— Não. Venho da Mongólia.
Haggard voltou a recostar-se na cadeira.
— Ah! — fez.
Não disse mais nada. Afinal, a Mongólia distava
cerca de cinco mil quilômetros dali. E esse tipo estranho
entrou-lhe pela casa sem mais aquela às dez horas da
noite dizendo ter vindo da Mongólia. Devia ser algum
louco à solta. Convinha ter cuidado.
— Isso mesmo. Mais exatamente, venho do deserto
de Gobi.
— Era só o que faltava — foram as palavras que
Haggard deixou escapar. Todavia, conteve-se logo e
perguntou, com tom amistoso: — Veio a pé?
— Só os últimos quinhentos metros — admitiu Bell.
Que diabo! Como devia fazer para que o cientista
compreendesse o que desejava dele?
— Preciso do seu soro antileucêmico para curar um
doente. Apenas... bem, o pagamento é que causa alguma
preocupação. É verdade que uma coisa que talvez lhe
interesse...
— Pode falar com franqueza — recomendou
Haggard e lançou um olhar de esguelha para o telefone.
— Mas por que não esperou até amanhã de manhã?
— Infelizmente não foi possível, doutor. Cada
minuto me é precioso. Está interessado numa fonte de
energia bem barata?
— Como?
Bell segurou a caixinha no colo. Desembrulhou-a e
voltou a pô-la sobre a mesa. Ali estava: seu aspecto era
modesto e inocente. Só algumas tomadas revelavam que
dali se podia extrair energia elétrica.
— Este aparelho fornece até duzentos quilowatts.
Não precisa ser recarregado. Dá para cem anos utilizando
ininterruptamente a capacidade máxima. Compreendeu?
Deixe de olhar o telefone! Não sou nenhum maluco! Não
lhe farei nada.
Haggard já não entendia o que se passava. Seu
instinto lhe dizia que estava lidando com um homem
normal. Estavam lhe oferecendo uma maravilha técnica
que contrariava todas as leis da física.
— Quem é o senhor? — perguntou.
Bell suspirou.
— Está bem! Direi a verdade. Embora esta pareça
mais estranha que a mais louca das fábulas. Certamente já
ouviu falar na Stardust, a nave espacial americana que
pousou no deserto de Gobi. Pois bem; eu sou um dos
tripulantes. Rhodan, o comandante, ficou na nave
enquanto eu...
— Perry Rhodan? — Haggard lembrou-se de
algumas notícias de jornal. — Perfeitamente, estou
lembrado. Não houve complicações diplomáticas?
— Complicação diplomática é pouca. Temos
motivos para não revelar ao mundo os resultados da nossa
expedição. Na face oculta da Lua encontramos uma nave
extraterrena com a respectiva tripulação. Está com
algumas avarias e, para decolar, precisa de certas peças
sobressalentes. Os arcônidas, que são os tripulantes da
nave, são um povo tão decadente que já não conseguem
fazer os reparos de que a nave precisa. São muito
inteligentes e tecnologicamente muito desenvolvidos, mas
estão física e psiquicamente arruinados. O diretor-
científico da expedição, chamado Crest, sofre de
leucemia. Se tudo permanecer como está, ainda terá
pouco tempo de vida. É muito importante que seja curado,
pois o futuro do seu povo, e também o da humanidade,
depende disso. Crest representa a chave que abrirá o
acesso ao espaço cósmico, aos planetas de outros sistemas
solares e a um desenvolvimento técnico inconcebível.
Compreendeu o que acabo de dizer?
Haggard confirmou com um aceno de cabeça.
— É claro que compreendi. Ouvi falar de uma
cratera aberta no deserto do Saara. Isso foi obra de Crest?
— Foi. — Bell absteve-se de maiores explicações.
— E pode fazer coisas bem mais impressionantes. Mas
deixemos isso para mais tarde. Antes de tudo, uma
pergunta: está disposto a nos ajudar? Concorda em
entregar o soro? Em troca dar-lhe-ei este gerador. Recebi-
o dos arcônidas.
Haggard pegou um cigarro. Havia um tremor quase
imperceptível em suas mãos.
— Só o soro não adiantaria muito. Crest teria que se
submeter a um tratamento em meu sanatório.
— É impossível doutor. Aqui não estaria em
segurança nem por um segundo. Os agentes de todos os
países estarão atrás dele.
Haggard confirmou com um leve aceno de cabeça.
Depois, olhou para Bell.
— Nesse caso, irei com o senhor.
— O senhor pretende?... Mas... o hospital? As
pesquisas?
— Isso pode esperar. Estou muito mais interessado
nesse tal Crest. É bom que saiba que sempre tive uma
inclinação para coisas incomuns. O senhor acha que eu
deixaria escapar esta oportunidade de examinar o
organismo de uma inteligência extraterrena? Quando
partiremos?
Bell achou que Haggard estava indo muito depressa.
— O mais rápido possível. Mas tenho de resolver
alguns assuntos. Preciso de dinheiro para adquirir as
peças sobressalentes destinadas à nave dos arcônidas. São
componentes eletrônicos. Quem sabe se o senhor poderia
dar-me uma indicação a respeito disso?
— Conheço várias firmas. Por um desses geradores
dar-lhe-ão um armazém cheio de peças.
— Ótimo! Amanhã faremos uma visita às grandes
casas do ramo. Só disponho de um helicóptero que não
pode transportar volumes muito grandes. Talvez conheça
alguém que possua um meio de transporte com maior
capacidade de carga.
Haggard franziu a testa.
— Um dos meus assistentes é proprietário de um
confortável iate. As condições de navegabilidade do barco
são muito boas. Não terá dúvidas em cedê-lo a mim.
Daqui a Hong Kong são três mil quilômetros. Venceremos
esta distância em uma semana.
— Muito bem! Em Hong Kong veremos o que fazer.
Meu psicoirradiador saberá cuidar da situação.
— Quem?
Bell tirou o bastão prateado do bolso.
— É um aparelho formidável, doutor. Ele lhe
permite impor sua vontade a qualquer pessoa até uma
62
distância de dois quilômetros. Como você pode ver de
qualquer maneira, eu o levaria ao deserto de Gobi, mesmo
que não quisesse.
— É inacreditável! — disse Haggard espantado. —
Se isso funcionar não haverá mais qualquer dificuldade.
— Funciona! — tranquilizou-o Bell.
O dia seguinte foi cheio de surpresas e de
preocupações para os diretores de várias fábricas. Se não
fosse a presença de um médico conceituado, o Dr.
Haggard, pensariam que a demonstração realizada por
Bell não era mais que uma engenhosa fraude.
Convencidos da verdade, o cepticismo transformou-
se em vivo entusiasmo. Bell ficou sem os aparelhos e as
fábricas sem algumas caixas de peças eletrônicas.
Como se não bastasse, Bell ainda recebeu uma boa
importância em dinheiro, da qual entregou cinco mil
dólares a Fletcher que já estava com passagem reservada
para Nova Iorque.
Haggard pediu que o iate do seu assistente entrasse
na baía que ficava perto ao hospital.
Tudo correra bem até ali. Três dias mais tarde, o iate
estava com toda a carga arrumada a bordo e preparado
para partir. O helicóptero fora firmemente amarrado ao
convés.
Os dois homens foram a terra pela última vez.
Haggard, para dar algumas instruções ao seu substituto e
Bell, para desentorpecer as pernas.
Subitamente, ouviu-se o uivo de uma sirena.
Holofotes romperam a escuridão, mergulhando a baía
numa forte claridade. Os motores de pesados helicópteros
agitavam o ar plácido do lugar. Tanques surgiam por entre
as moitas que ladeavam a praia e dirigiam seus canhões
para o iate. Soldados apareceram entre o passadiço e o
lugar em que Bell se encontrava. Estavam de armas na
mão e prontos para abrir fogo. Um oficial aproximou-se,
vindo de um dos lados. Parou diante de Bell.
— Seu nome é Reginald Bell?
— Será que isso é crime?
— Limite-se a responder às minhas perguntas. Bell
permaneceu calado.
— Pertence à tripulação da Stardust?
— Já que sabe, por que pergunta?
Num gesto insolente, Bell colocou a mão no bolso.
— Deixe disso! — advertiu o oficial. — Qualquer
resistência será inútil. A área está cercada. O Doutor
Frank Haggard já foi preso. O Capitão Fletcher também
está sob a custódia da polícia.
— Coitado! Terá um filho — murmurou Bell,
penalizado.
— O quê?
— Tanto faz. O senhor não compreenderia.
Bell já conseguira regular a intensidade. Comprimiu
o botão do ativador. Olhou atentamente para o oficial.
“Execute dez flexões de joelho!” pensou,
concentrando bem a mente.
Os soldados, que já tinham se acercado mais,
abaixaram as armas e arregalaram os olhos. Subitamente,
o oficial estendeu os braços e começou a flexionar os
joelhos. Bell contou. Foram exatamente dez flexões.
“E agora, diga a esta gente que dê o fora daqui e
volte para o quartel.”
O oficial virou-se e berrou para os soldados:
— Por que estão parados ai, seus idiotas? Voltem ao
quartel. Vamos logo! Ou eu terei que ensiná-los a andar
depressa.
— O que está acontecendo por aqui?
A voz fria e calma era de um civil que saíra
inesperadamente das moitas. Seus trajes eram tão
discretos que teriam dado na vista até de um elemento
pouco experimentado no assunto como Bell.
— Os homens têm que voltar ao quartel — disse o
oficial com uma inflexão impessoal na voz. — Têm que
voltar!
O civil dirigiu-se para Bell.
— O senhor é o Capitão Reginald Bell?
— Hoje em dia todo mundo quer saber o meu nome.
É interessante! Antigamente, ninguém queria saber como
me chamava. Mas, desde que voltei da Lua a coisa
mudou...
— Ah! Quer dizer que confessa ser Reginald Bell?
— Por que não? O senhor é da polícia?
— Sou do Serviço de Segurança. Venha comigo! —
Bell virou-se ligeiramente.
— É melhor que o senhor me siga — recomendou
com voz suave, enquanto caminhava em direção aos
prédios do hospital. — Quem está comandando a ação
contra mim?
— É o inspetor Miller, apoiado por toda a guarnição.
Disse o civil em outro tom de voz.
— E quem prendeu Haggard?
— Fui eu. Ficará na cadeia até que sua participação
nos acontecimentos tenha sido esclarecida. Deseja falar
com ele?
— Providencie imediatamente para que Haggard
seja liberado — ordenou Bell. — Depois, o senhor
mesmo o levará a bordo do iate e fará com que o inspetor
Miller suspenda toda e qualquer ação. Entendido?
— Levar Haggard a bordo e cessar a ação.
Entendido!
Era possível que as novas instruções não chegassem
logo a todos os pontos. Provavelmente, uma ou outra
unidade ainda executaria as ordens anteriores. Nesse caso,
seria melhor estar a bordo do iate. De qualquer maneira, o
civil levaria seu prisioneiro a bordo, a não ser que
impedido pelo uso da força.
Bell colocou o neutralizador de gravidade sobre uma
mesa na cabine situada no convés superior, que
possibilitava visão ampla para o lado da terra. Já que o
alcance do aparelho atingia dez quilômetros, a cidade
também seria atingida.
Esperou até que o civil entregasse Haggard, que
estava pasmado. Depois, ligou o neutralizador. O ponto
central, isto é, o iate, conservou seu peso natural. Também
a superfície do mar, sobre a qual não soprava a mais leve
brisa ficou como se fosse uma placa de vidro. Apenas os
peixes que saltavam para o ar ofereciam um espetáculo
estranho. O peixe e o repuxo d'água iam subindo
lentamente, até que se perdessem na escuridão.
Bell voltou-se para Haggard.
— É uma pena que não possamos ver o que está
acontecendo na cidade. Todos os objetos que se
encontrem num raio de dez quilômetros perderam o peso
normal. Imagine as forças policiais suspensas no ar.
— Mas, os meus doentes... — disse Haggard
preocupado.
— O setor em que fica o seu hospital foi excluído —
63
tranquilizou-o Bell. — Mas já é hora de darmos o fora
daqui. Deixarei o neutralizador ligado. Sua ação também
se estende para cima. Ninguém conseguirá chegar a
menos de dez quilômetros de nós.
Envolto numa bolha protetora de completa
imponderabilidade, o iate, batizado com o nome de
Zéfiro, deixou o porto natural e foi navegando mar afora.
Se Bell pudesse ver o que resultou com o uso do
neutralizador, talvez não ficasse tão alegre. O caos tomou
conta da cidade de Darwin. O chão fugiu de debaixo dos
homens e dos veículos que foram subindo lentamente,
frente à baixa ação da gravidade. Se tivessem sorte,
alcançariam logo o teto da zona antigravitacional que foi
baixando gradativamente. Nesse caso, o impulso
contrário, fazia-os tornar suavemente a terra. Mas houve
alguns que não tiveram tanta sorte. E as quedas se
sucederam, com maior ou menor número de ferimentos
ou fraturas.
Naquela mesma noite, a notícia de tão incrível
ocorrência deu a volta ao mundo. E o alarme geral voltou.
Unidades das esquadras das três grandes potências
mudaram de rumo. Tomaram a direção da Célebes, onde
se supunha se encontrava o iate que levava a bordo um
dos tripulantes da nave espacial.
No dia seguinte, dois porta-aviões e sete destróieres
da Federação Asiática deixaram seu elemento natural.
Privados do seu peso normal subiram a quase três mil
metros antes de voltarem lentamente ao mar. Diante disso,
resolveram desistir da perseguição. E os mísseis,
disparados de uma distância segura, também não tiveram
êxito. Nenhum deles atingiu o alvo. Detonaram a grande
altitude ou sob a superfície do oceano sem causar
qualquer dano. Bell conseguiu dirigir o curso dos mísseis
modificando as condições gravitacionais. Porém, ele sabia
que as grandes dificuldades estavam, ainda, por vir. Uma
vez que estavam sendo perseguidos por todo mundo,
dificilmente conseguiriam entrar no porto de Hong Kong
sem serem notados. Só com muita sorte voltaria a ver a
Stardust.
***
Fletcher olhava fixamente para a luz ofuscante da
lâmpada. Não compreendia o que estava acontecendo;
tinha os olhos arregalados.
— Basta falar — disse uma voz áspera vinda detrás
da lâmpada. Não viu o rosto da pessoa que lhe falava.
Estava imerso na escuridão. — Por que pretende voltar
aos Estados Unidos?
— É por causa de minha esposa; ela está esperando
um filho.
— Foi o que o senhor já disse. Mas deve ter outros
motivos. Ninguém arrisca a vida por causa de um bebê.
— Como pode afirmar isso? É casado?
O homem invisível pigarreou.
— Por que não ficou com Perry Rhodan?
— Não sei de quem está falando. Não conheço
nenhum Rhodan. E não sei nada a respeito de uma nave
espacial. Pare de me torturar com suas perguntas
incompreensíveis!
— O que Rhodan pretende fazer com a Stardust?
— Não sei.
— O que encontraram na Lua?
Fletcher procurou mover os braços. Não conseguiu;
estavam presos ao encosto da cadeira por fitas de aço. O
suor gotejava-lhe da testa. Sentia sede. Fechou os olhos,
mas a luz ofuscante atravessou-lhe as pálpebras.
— Não sei.
— Ouça capitão Fletcher. Não desistiremos. Se não
disser logo a verdade, teremos que usar métodos mais
desagradáveis.
— Não posso dizer o que não sei.
Ouviram-se vozes baixas vindas de um canto da
sala. Depois disso a lâmpada foi apagada. A iluminação
normal, vinda do teto, parecia triste e escura. Mãos brutais
arrancaram Fletcher da cadeira, depois de soltarem as
fitas de aço. Apático, deixou que o levassem. Não via as
portas por onde passava nem as paredes do corredor ou os
rostos dos seus algozes. Só pensava no avião que, no dia
anterior, devia tê-lo levado para os Estados Unidos. Nem
mesmo a sala de operações com sua iluminação profusa
conseguiu remover a rigidez que tomara conta do seu ser.
Deitaram-no sobre uma mesa. Homens de avental
branco amarraram-no. Suportou tudo com a maior
indiferença. Suas articulações foram envolvidas por
placas de cobre. Cabos condutores de energia, com seus
frios contatos, cingiram-lhe as têmporas. Depois disso,
uma máquina enorme e estranha começou a funcionar.
Os primeiros reflexos coloridos surgiram numa tela.
Alguns homens à paisana estavam sentados diante da
mesma. Seus rostos exprimiam a tensão de que se
achavam possuídos.
— Acha que isso nos ajudará a descobrir alguma
coisa?
— O projetor mental é infalível, inspetor.
Infelizmente, sua utilização pode acarretar certo perigo
para o acusado. Mas se falar, ou melhor, pensar, nada de
prejudicial poderá acontecer.
— Seus pensamentos são projetados na tela?
— Isso mesmo. Trata-se de um aperfeiçoamento do
detector de mentiras que costumava ser empregado até
aqui, mas tem pouca semelhança com o mesmo. Se o
homem que se encontra sob a ação deste aparelho não
quiser responder a uma pergunta que lhe fizermos, ao
menos pensará na mesma. Na tela de imagem aparecerá
um quadro que corresponde ao que ele concebe na sua
imaginação.
— Acho que já estou compreendendo. Vamos
começar.
Fletcher estava com os olhos fechados. Ficou quieto,
como se quisesse dormir. Seu peito subia e descia ao
ritmo normal da respiração.
Um dos homens inclinou-se sobre ele.
— Está me ouvindo, Fletcher. Pode deixar de
responder, se preferir. De qualquer maneira, formularei
algumas perguntas. Só fale se desejar. O que pretende
fazer nos Estados Unidos?
Os homens olharam para a tela de imagem. Pela
primeira vez, um quadro nítido começou a se delinear.
Surgiu o rosto de uma mulher jovem e bela, que sorria e
acenava. Fletcher parecia gemer. O quadro modificou-se.
Camas, enfermeiras, médicos. Depois, a mulher voltou a
aparecer. Estava deitada numa cama. Perto dela via-se
uma criança.
— É verdade! — murmurou o inspetor. — Só pensa
no bebê. É uma ideia fixa. Continue a perguntar, chefe.
O homem designado como chefe acenou com a
64
cabeça.
— Fletcher, o que aconteceu na Lua? Precisamos
saber o que aconteceu na Lua!
O quadro com a criança desfez-se imediatamente.
Figuras em cores vivas percorriam a tela, formavam
quadros abstratos e desfaziam-se em manchas
irreconhecíveis. Depois se formou uma espiral que
começou a girar rápido, cada vez mais rápido, até
transformar-se num disco rodopiante.
— O que sabe a respeito da Stardust?
O disco girou mais depressa. Raios passavam sobre
a tela. Fletcher gemeu. Sua respiração era cada vez mais
apressada. O suor corria-lhe da testa.
Um dos homens de avental branco adiantou-se e
colocou a mão sobre o braço do chefe.
— Devemos fazer uma pausa — recomendou. — O
prisioneiro está exausto. O coração não aguenta mais.
— Mal começamos — interveio o inspetor. — Só
mais algumas perguntas.
— O senhor está vendo que o homem não sabe nada.
As imagens da tela indicam um estado de amnésia total.
Está bem! Dar-lhes-ei mais duas tentativas, mas sob sua
responsabilidade.
O círculo rodopiante na tela de imagem tinha
desaparecido. A mulher jovem voltou a aparecer.
Atravessava um jardim florido, levando uma menina pela
mão.
— Fletcher, quais são as intenções de Perry Rhodan?
A mulher com a menina desapareceu imediatamente.
O circulo voltou a rodopiar. Reflexos coloridos surgiam e
desapareciam.
— É inútil! — disse o médico. — O homem não
sabe nada.
— Tem de saber! — berrou o inspetor fora de si. —
Pois não perdeu a razão.
— Talvez tenha perdido a memória.
— Precisamos descobrir o que aconteceu. Não existe
nenhum meio de restituir-lhe a memória?
— Com o tempo talvez pudéssemos conseguir. Teria
de ficar em sossego absoluto durante vários meses; se
possível devia ser posto em liberdade.
— É impossível! Ele representaria um perigo para o
mundo. Lembre-se do tal de Bell, que ontem diminuiu
expressivamente a ação da gravidade na cidade. Nada
disso! Fletcher não pode ficar fora da nossa vigilância um
instante sequer.
O médico suspirou.
— Muito bem. Formule a última pergunta.
O chefe acenou com a cabeça. Sua atitude diferia
sensivelmente da conduta imoderada do inspetor.
Encostou a boca ao ouvido de Fletcher e perguntou:
— Quem é Crest?
Haggard revelara esse nome durante sua prisão, que
só irão durar alguns minutos. O inspetor ouvira-o, mas
não sabia o que significava.
— Está ouvindo Fletcher? Quem é Crest? Fletcher
esforçou-se para romper as faixas que o prendiam. De
olhos arregalados fitou o homem que o interrogava. No
seu rosto via-se o medo, mas, também alguma coisa
parecida com uma recordação que despontava do
subconsciente. Seus punhos cerraram-se. Os lábios
murmuraram palavras inaudíveis.
Na tela de imagem fez-se o caos.
A roda colorida girava cada vez mais depressa, até
que suas cores se fundissem num cinza uniforme. Depois
estourou. As lascas coloridas deslocaram-se para os lados
e deslizaram para fora da tela. Depois esta se tornou
negra. E assim continuou.
Um dos médicos inclinou-se e examinou os olhos
enrijecidos de Fletcher. Segurou-lhe o pulso. Depois se
ergueu e falou com a voz muito séria.
— Está morto!
O inspetor empalideceu.
— Morto? Mas como? Seu coração estava perfeito.
O médico encolheu os ombros.
— Pode ser que o coração estivesse perfeito.
Acontece que morreu de um derrame cerebral.
Nenhum dos presentes disse mais nada.
Fletcher estava estendido na mesa, imóvel. Não mais
teria a alegria de assistir ao nascimento do seu filho. E
não saberia que seria uma menina.
***
O tenente Klein parou diante da barreira invisível.
Suas mãos sentiram o obstáculo, mas seus olhos não
o viram. Dois mil metros além dele; estava a Stardust,
símbolo do orgulho e da esperança frustrada do mundo
ocidental. Já agora se transformara no pavor de toda a
humanidade.
Uma figura solitária veio ao seu encontro. Era o
major Rhodan, que já conhecia de numerosos filmes.
Parou a menos de dois metros. Tinha lápis e papel na
mão.
— O que deseja? Quem é o senhor? — estava
escrito no papel.
Klein nem se lembrara disso. Se o anteparo
energético detinha uma explosão atômica, evidentemente
não deixaria passar as ondas sonoras. Revirou os bolsos;
acabou encontrando lápis e papel. Pelo menos havia
possibilidade de comunicar-se.
— Sou o tenente Klein. Vim por ordem de Mercant e
Pounder, para negociar com o senhor.
Perry Rhodan sorriu e escreveu:
— Tire a roupa. Depois disso suspenderei o anteparo
por alguns segundos.
— Tirar a roupa?
— Sim. Para que não possa trazer nenhuma arma.
Klein olhou instintivamente para os lados, mas não
viu ninguém. É verdade que Li e Kosnow, escondidos
atrás das moitas, de outro lado do rio, arregalariam os
olhos. Mas isso pouco lhe importava. O importante era
atravessar o anteparo, façanha que até então ninguém
conseguira realizar. Tirou a roupa e empilhou-a
cuidadosamente.
Perry acenou com a cabeça. Levantou o braço direito
e fez um sinal em direção à nave. Subitamente, Klein
ouviu sua voz.
— Venha depressa. Chegue perto de mim. Sentiu
que o ar quente e o frio se misturaram quando a cúpula
energética foi levantada. Logo chegou perto de Perry.
No mesmo instante o vento cessou por completo. A
cúpula invisível voltara a cobrir a nave. Estava isolada do
resto do mundo.
— Quer dizer que Pounder o mandou? — disse
Perry, enquanto lhe apertava a mão. — Já imaginava que
65
um dia o velho me mandaria um mensageiro. Como
conseguiu atravessar o território inimigo?
— Não foi difícil — confessou Klein. — A
vigilância diminuiu muito.
— Será? — disse Perry em tom de dúvida. —
Venha, empresto-lhe uma calça.
Foram andando devagar em direção à Stardust.
Klein sentia uma simpatia inexplicável pelo homem
que se encontrava ao seu lado. Recebera ordem de matá-
lo de qualquer maneira, se não quisesse submeter-se às
ordens de Mercant. No momento, nem se podia pensar
nisso. Dificilmente conseguiria mata-lo com as mãos
desarmadas. E como faria para destruir a Stardust? Sabia
da carga explosiva existente a bordo da mesma. Mas
ainda havia três homens além de Rhodan. Não seria fácil,
mesmo que quisesse.
Será que queria?
Sentaram numa pedra lisa que ficava perto da nave.
— Agora fale com franqueza, tenente Klein. Qual
foi a ordem que recebeu? O que mandam dizer? Foi
realmente Pounder que o mandou?
O agente sacudiu a cabeça.
— Não foi o próprio Pounder. Pertenço ao Conselho
Internacional de Defesa, dirigido por Mercant. Recebi
ordem para convencê-lo a abandonar a Stardust e
acompanhar-me para Nevada Fields. Caso se recuse, devo
matá-lo e destruir a nave.
Perry gritou algumas palavras para Manoli, que
apontou na escotilha. O médico trouxe uma calça de
uniforme. Klein vestiu-a.
— Este é o Dr. Manoli. O tenente Klein, do
Conselho Internacional de Defesa. Fique com Crest, Eric.
Diga-lhe que temos visita.
Esperou até que o médico desaparecesse. Depois
respondeu às palavras de Klein.
— Então suas ordens são estas? Por que me contou?
— Porque confio em você, Rhodan. E porque nestes
últimos dias passei por alguma coisa que me abalou.
— O que foi?
— Daqui a pouco contarei Rhodan. Antes disso
responda a uma pergunta minha.
— As perguntas e as respostas surgem
espontaneamente no curso da nossa palestra. Você
responde, eu respondo, e o quadro vai se traçando por si.
O general Pounder ficou muito decepcionado comigo?
— Ficou. Não compreende os motivos que o fizeram
agir assim. Mas procura compreender, enquanto a opinião
de Mercant é inabalável. Para ele, você é um traidor.
— Para Pounder, não? E para você? Qual é a sua
opinião?
— Você é um traidor aos olhos de Mercant, e talvez
aos olhos da maior parte dos homens do Ocidente. Na
opinião dessas pessoas, eu devia ter entregado ao seu país
as invenções que descobriu na Lua. Isso seria de justiça
até mesmo do ponto de vista econômico, pois você nunca
teria chegado à Lua sem os recursos financeiros
proporcionados pelos Estados Unidos. No entanto, pode
haver motivos que invalidem todas as leis morais. Mas
esses motivos teriam de ser muito sérios.
— Os meus motivos são sérios — disse Perry
decidido. — Minha consciência e meu senso lógico não
me permitem entregar a uma potência terrena os imensos
recursos tecnológicos que descobri na Lua. Qual seria a
consequência disso, tenente Klein? Pense bem antes de
responder.
— Não há muito que pensar. Antes que os Estados
Unidos, acho que é o país de que teríamos de cogitar em
primeiro lugar, tivessem tempo de experimentar as novas
armas, o medo e o pânico fariam com que os outros países
disparassem seus foguetes atômicos. A guerra e o
extermínio total dela decorrente seriam inevitáveis. Já
compreendi onde pretende chegar, major Rhodan. Será
que os outros também compreenderão?
— Terão de compreender! — retrucou Perry em tom
áspero. Seus olhos exprimiam uma decisão inabalável. —
O que está em jogo é muito mais que a manutenção da
paz. Como sabe, encontramos uma tecnologia estranha na
Lua. O que o senhor não sabe é que os criadores dessa
tecnologia, os arcônidas, ainda vivem. Um dos seus
cientistas encontra-se a bordo da Stardust.
Klein precisou de um minuto inteiro para recuperar-
se do espanto.
— Não estão extintos? Ainda vivem? E podem
fabricar maior quantidade dessas armas, se desejarem?
— Não apenas armas, mas também coisas úteis:
fontes de energia inesgotáveis em forma de geradores
portáteis, veículos movidos com as mesmas, navios,
aeronaves de transporte, espaçonaves. Poderia prosseguir
indefinidamente na enumeração. Provavelmente agora já
compreende por que me vi obrigado a pousar aqui, e por
que tenho de repelir toda e qualquer pessoa que queira
chegar aqui. Você é a primeira exceção.
— Por quê?
— Porque vem da parte de Mercant e de Pounder.
Prezo bastante esses homens, e gostaria que
compreendessem os meus motivos. Tenente Klein, você
só estará em condições de explicar os meus motivos aos
outros, se chegar a compreendê-los por si. Não os
explicarei.
Klein sorriu.
— Compreendo. Até compreendo muito bem. E
acredito que sei onde o senhor pretende chegar. Ali junto
ao rio, do outro lado do anteparo energético, dois colegas
estão esperando por mim. Não são americanos ou
europeus ocidentais. Um é agente da Federação Asiática e
outro do bloco oriental. Unimo-nos para solucionar um
problema comum. Há poucos dias a irrupção da guerra
parecia iminente. Hoje os inimigos mortais de ontem
estão colaborando entre si, para combater um poder mais
forte.
Perry acenou com a cabeça e retribuiu o sorriso.
— Muito bem. Continue. Parece que já nos
entendemos.
— Não tenho mais nada a dizer. Absolutamente
nada. Apenas gostaria que você confirmasse que este
acontecimento relativamente insignificante constitui o
início da grande transformação que tem em mente.
— É isso mesmo. Posso representar uma ameaça
séria para o mundo, mas não para a paz duvidosa que
reina no mesmo. O medo de mim e do poder dos
arcônidas unirá os povos do mundo. Uma vez realizada
essa união, nada impedirá a entrega da tecnologia
galáctica a um governo mundial estável. Tenente Klein;
peço-lhe que relate isto a Mercant e ao general Pounder.
Agora gostaria de apresentar-lhe meu hóspede, o arcônida
Crest. Peço-lhe que me acompanhe ao interior da nave.
66
Duas horas depois, quando o tenente Klein voltou a
encontrar-se com os dois colegas que o esperavam à
margem do rio, nada poderia modificar a decisão que
tomara. Era o primeiro homem disposto a lutar pela ideia
de Perry Rhodan, ideia essa que constituiria a base moral
do futuro Império Estelar.
— Então? — perguntou Kosnow e levantou-se.
— O que aconteceu? — indagou Li.
Klein ficou andando entre os dois. À sua esquerda o
russo avançava a passos vigorosos, levantando pequenas
nuvens de pó com as botas. À sua direita, Li, o chinês,
andava a passos saltitantes. Nos seus olhos lia-se a
desconfiança.
— Conte logo, tenente. Conseguiu alguma coisa? —
Klein confirmou com um aceno de cabeça.
— Consegui praticamente tudo. Minha missão
findou-se. E acredito que a de vocês também esteja ao
final. Explicarei por que, Li, acho que somos bons
companheiros, não somos? Compreendemo-nos muito
bem. Kosnow, você acha que seríamos capazes de matar-
nos uns aos outros só por termos ideias diferentes sobre
determinados assuntos? Estão sacudindo a cabeça. Tanto
melhor! Vocês sabem dizer o que aconteceria se essa nave
espacial deixasse de existir juntamente com as invenções
fabulosas trazidas da Lua? Ou se caísse nas mãos de
qualquer das grandes potências?
Nenhum dos dois respondeu.
— Pois eu lhes digo. No mesmo instante
apontaríamos as armas uns para os outros. Voltaríamos a
sermos inimigos ferrenhos. E isso apenas porque a
ameaça maior deixou de existir. Isso que aconteceria
conosco também aconteceria aos governos das grandes
potências. O fim da Stardust seria o fim da paz.
Compreenderam? Enquanto a terceira potência, a potência
dos arcônidas, estiver por aqui, o nosso mundo continuará
a existir. A nós três foi dada a chance de conservar a paz
mundial. Para isso teremos de retornar aos nossos países e
comunicar que é impossível alcançar a Stardust. Dessa
forma continuaremos amigos, e as potências que
representamos também continuarão.
Li esboçou um sorriso imperscrutável.
— Há seis dias já me ocorreu uma ideia semelhante,
mas não tive coragem de exprimi-la. Hoje digo que
concordo com o que você acaba de dizer.
Klein e o chinês lançaram um olhar de expectativa
para o russo. Kosnow ficou parado. Retribuiu o olhar dos
companheiros.
— Acredito que no mar Negro a extração do sal será
mais rendosa que aqui. Mudaremos de acampamento.
Os três riram. Depois apertaram as mãos entre si.
***
A cidade de Hong Kong parecia um acampamento
militar quando o iate Zéfiro entrou no porto.
Bell desligara o neutralizador, mas ficou com ele ao
alcance da mão; queria estar prevenido no caso de um
ataque. Haggard instruíra a.tripulação no sentido “de
atracar”. Os dois homens estavam de pé na proa!
— A situação parece um pouco crítica — murmurou
o médico num tom de ceticismo. — Como poderemos
desembarcar sem que nos peguem? O mundo inteiro já
sabe que estamos aqui.
— E daí? — Bell mostrou-se espantado. Estava
brincando com o psicoirradiador. — Com este aparelho
posso fazer a cidade inteira mergulhar num sono bem
profundo. Poderei transmitir uma ordem a qualquer
habitante da cidade, inclusive aos soldados, e a ordem
será cumprida à risca. Não vejo nenhum motivo para
preocupações. Ainda mais que aqui não é possível utilizar
armas atômicas táticas, que são as únicas que poderiam
representar um perigo para nós.
— Como vai fazer para descarregar o meu
laboratório? Como pretende transportar as peças
sobressalentes até o deserto de Gobi?
— Com o tempo encontramos um meio —
tranquilizou-o Bell. — Faremos com que o administrador
do porto venha até aqui assim que atracarmos. Por que
resolveu trazer seu laboratório gigante? Ainda não tive
tempo de lhe fazer esta pergunta.
— Laboratório gigante? Trata-se de um pequeno
laboratório transportável, dotado do equipamento mais
moderno, como instrumentos óticos, aparelhos de análise
de metabolismo e amostras de medicamentos de toda
espécie. Não se esqueça de que teremos de lidar com um
ser biologicamente diferente, que provavelmente reagirá
de forma diferente de nós. Também existe um aparelho de
raios X, e...
— E eu que pensava que tudo ficaria resolvido com
uma seringa e algumas ampolas de soro — disse Bell com
um suspiro.
— É engano, meu caro Bell. Mas olhe os tanques
parados ali no cais. Estão, com toda a certeza, esperando
uma oportunidade de afundar o nosso iate.
— Que nada! Se quisessem, já teriam tentado.
Sabem muito bem que, se o fizerem, eu os mando para os
ares, no sentido literal da palavra. Muito bem. Estamos
atracados. E agora vou usar minha varinha mágica.
Dirigiu o irradiador com meia intensidade sobre o
edifício baixo que ficava junto ao cais e pensou
intensamente:
“O administrador do porto deve comparecer
imediatamente ao pier número sete. Administrador do
porto no pier número sete. Urgente. Suba a bordo do iate
Zéfiro.”
Provavelmente Bell estouraria de rir, se visse o que
fez com sua ordem mental. No entanto, não pôde
presenciar o espetáculo. No edifício da administração do
porto trabalhavam cerca de duzentas pessoas. De repente
todas elas se sentiram na obrigação de avisar o
administrador de que devia comparecer imediatamente ao
píer número sete, onde o iate Zéfiro esperava por ele. O
administrador que, seguindo a ordem interior, já se pusera
a caminho, teve de conter todo o funcionalismo, que se
interpunha no caminho, para dar o aviso.
— Já sei, já sei — disse em voz alta, para que todos
ouvissem. Correu para o cais, onde teve de abrir caminho
entre uma multidão de trabalhadores do porto, que o
assediavam para avisá-lo de que devia comparecer
imediatamente ao píer número sete, onde um iate...
Chegou esbaforido ao local em que se encontrava o
iate. No caminho o comandante das forças blindadas
reunira-se a ele em silêncio. Subiram juntos no estreito
passadiço.
Bell deixara ligado o psicoirradiador, colocando-o
num lugar de onde alcançava o píer e o convés. Não podia
67
ser visto, mas produzia seus efeitos.
Haggard não conseguiu disfarçar o nervosismo. Bell,
todavia, recebeu os visitantes sem o menor
constrangimento.
— Fico muito satisfeito com a sua visita — disse em
tom convicto. — E agradeço pela parada formidável que
fizeram realizar em minha ordem. Não havia necessidade
disso. Senhor administrador, dentro de duas horas preciso
de vinte trabalhadores para descarregar o iate. Quer tomar
as providências necessárias? Obrigado. Pode retirar-se.
O administrador fez uma ligeira mesura e retirou-se.
O oficial das forças blindadas ficou parado. Parecia estar
esperando alguma coisa.
— Quem está comandando as tropas mobilizadas em
Hong Kong? — perguntou Bell.
— O marechal Roon.
— Roon? Não é aquele oficial que subiu ao ar com
tanta pompa quando Perry ligou o neutralizador? É claro
que é ele! Este helicóptero é dele. Podia aproveitar a
oportunidade para vir buscá-lo.
— Perfeitamente. Avisarei imediatamente o
marechal Roon.
Dez minutos depois um grupo de oficiais de patente
elevada passou pelo píer estreito, vindo do cais. Viam-se
luzir as faixas douradas. Devia ser o marechal Roon.
O psicoirradiador estava escondido por baixo de
uma amarra enrolada. Sua ação atingia todo o grupo, mas
ninguém perceberia seus efeitos enquanto alguém não
dirigisse a palavra a Bell.
Depois de confabular ligeiramente, Roon subiu a
bordo acompanhado de dois oficiais. Já se esquecera do
que o tinha trazido até aqui. Só se guiava pela ordem de
que sua mente tinha tomado consciência.
Bell projetou o peito para frente, o que conferiu
linhas mais arredondadas ao corpo. Os cabelos cortados
rente estavam de pé. Colocou a mão na boina.
— É o marechal Roon? Fico satisfeito em ver que
compareceu tão depressa. Senhores oficiais, dou-lhes as
boas-vindas a bordo do Zéfiro. Marechal permite que lhe
pergunte se apreciou aquela viagem aérea? Deve estar
lembrado. A Stardust, o deserto de Gobi. Certo major
Butaan também se encontrava presente.
— É claro que me lembro. Foi um fenômeno
estranho. Uma invenção dos demônios brancos. Além
disso, roubaram meu helicóptero. Se não me engano o
senhor é o capitão Reginald Bell. Devo intimá-lo para que
se renda.
— Mas, marechal, logo nós que somos tão amigos;
só pode estar brincando. Eu lhe devolvo o helicóptero e
damos o incidente por encerrado. Está de acordo?
— De acordo! — respondeu Roon sem a menor
hesitação.
— Além disso, o senhor vai retirar suas tropas de
Hong Kong, e expedirá uma ordem ao exército. A
Stardust não mais será atacada. O senhor ainda assegurará
livre transito e dispensa toda proteção ao comboio de
transporte dirigido por Reginald Bell. Entendido?
— Entendido.
— Muito bem. Providencie para que dentro de uma
hora estejam aqui três caminhões. Um deles será ocupado
pelo senhor juntamente com dez oficiais de alta patente.
Levem cobertores ou sacos de dormir. Os outros deverão
estar vazios, pois transportarão a carga. Certo?
O marechal Roon prestou continência para Bell.
— As ordens serão executadas. Mais alguma coisa?
— Sim, marechal. Desautorize qualquer ordem que
tenham em vista um ataque contra a Stardust ou seus
tripulantes. Expeça as respectivas instruções aos seus
escalões inferiores.
Roon ficou em posição de sentido. Deu meia-volta e
saiu do iate. Chegando ao píer, os outros oficiais
começaram a falar-lhe com insistência. Roon, porém,
berrou com eles de tal forma que encolheram a cabeça e
ficaram quietos. Afinal, o marechal era ele; devia saber o
que estava fazendo.
E Roon sabia.
Finalmente, Haggard conseguiu fechar a boca.
— É formidável! — principiou, mas Bell
interrompeu-o.
— O senhor ficará muito mais admirado quando
falar com Crest. Eu lhe disse que conseguiríamos.
Ficaram aguardando com toda a calma. Viram os
tanques se reunirem perto do cais e começarem a se
afastar em direção a leste da cidade. As tropas de
infantaria começaram a se retirar, também. Apenas o
pessoal da polícia hesitou e, por isso, Bell não teve
contemplação. Pegou o psicoirradiador e ordenou:
— Atenção todos os membros da polícia, inclusive
serviço secreto, deitem-se todos!
Ficou espantado ao ver quantas pessoas se deitaram.
Até mesmo respeitáveis senhores de idade que pareciam
passear para espantar o tédio atiraram-se
desassombradamente na lama da rua. Trabalhadores
aparentemente inofensivos e vários pescadores fizeram a
mesma coisa. Evidentemente também foram
acompanhados por policiais uniformizados.
— Arrastar-se! — ordenou Bell numa alegria
incontida. Jurou que nunca mais largaria o
psicoirradiador. — Arrastar-se até o alojamento.
Bandos ruidosos de crianças acompanhavam os
temíveis policiais que se arrastavam colados ao chão.
Ninguém sabia explicar o fato, mas todos achavam que
era perfeitamente natural. É que todos tinham
compreendido a ordem, embora não soubessem de onde
tinha vindo. Mas quem não pertencesse à polícia não era
atingido por ela.
A zona portuária ficou literalmente deserta.
Depois de algum tempo, chegaram cerca de vinte
trabalhadores e os três caminhões. Dois oficiais estavam
sentados na carroçaria do último deles, numa atitude de
expectativa.
— Fiquem quietos aguardando novas ordens. Os
senhores formarão a escolta do comboio. Rechaçarão
qualquer ataque com suas pistolas. É só.
O transbordo da carga não levou muito tempo. Dali
à uma hora estava tudo pronto. O iate suspendeu âncoras
e foi deslizando mar afora. Bell desejou-lhe um feliz
regresso.
Ele mesmo tomou o lugar na cabine do primeiro
caminhão. Haggard foi no segundo, que transportava seu
precioso laboratório. O comboio pôs-se em movimento e
saiu sacolejando pela rua esburacada. Só na periferia da
cidade as condições da pista de rolamento começaram a
melhorar; aumentaram a velocidade. Não se via nenhum
soldado, nenhum policial.
Em Cantão, atingiram a larga e bem asfaltada
68
rodovia que, numa extensão de dois mil quilômetros,
ligava aquela cidade a Lan-Shou. Dali em diante; teriam
que rumar para o norte, passando pelo vale do Hwang-Ho
e pela cordilheira de Alaschan. Chegando à altura do
meridiano 38, penetrariam no deserto, seguindo em
direção ao oeste. Se tudo corresse bem, a viagem
demoraria cerca de três dias.
5
De Pequim para Washington:
Diversas ocorrências parecem provar que,
contrariamente à opinião mais recente, segundo a qual as
informações do major Rhodan poderiam ser verdadeiras, a
Stardust na verdade é uma base ocidental. Segundo os
nossos cientistas, é perfeitamente possível que a
eliminação gradativa da gravidade seja uma invenção
terrena. Por isso voltamos a exigir que a base situada no
deserto de Gobi seja evacuada imediatamente.
De Washington para Pequim:
Qual é a explicação que seus cientistas fornecem
para o novo vulcão no Saara, que ainda continua ativo?
Asseveramos que nada temos a ver com a Stardust.
Estamos tão interessados na eliminação dessa ameaça
quanto os senhores.
De Pequim para Washington:
A cratera pode ser o resultado de uma ação bem
planejada que nada tem a ver com o raio energético.
Nossa opinião de que a Stardust é uma base americana foi
reforçada pelo fato de que nossos agentes se viram
impedidos pelos seus de se aproximarem da nave
espacial. Por outro lado, seus agentes têm livre acesso à
Stardust. Reiteramos nossa advertência.
De Washington para Pequim:
Não temos conhecimento de que qualquer dos
nossos agentes tenha entrado em contato com o major
Rhodan. Deve haver algum engano. O incidente será
esclarecido.
De Moscou para Washington:
Exigimos retirada imediata de sua base no deserto de
Gobi.
De Moscou para Pequim:
Exigimos remoção imediata base americana do
território de seu país.
O ataque verificou-se três dias após a partida de
Hong Kong. O comboio tinha passado pela cordilheira de
Alaschan e estava se deslocando em direção ao oeste. A
antiga estrada de caravanas estava em péssimo estado;
não permitia sequer uma velocidade de dez quilômetros
horários. Era necessário; contornar buracos enormes.
Sulcos profundos abertos pelas rodas dos veículos ou
pelas águas das chuvas obrigavam a manobras
extremamente difíceis.
Felizmente, naquele momento, estavam
atravessando uma depressão do terreno. Se não fosse
assim, a primeira rajada teria atingido o alvo. Nessas
condições, porém, as pesadas granadas passaram zunindo
por cima de suas cabeças e foram detonar na vertente
norte da cadeia de Richthofen.
Bell mandou que o comboio parasse imediatamente.
Fez com que os veículos encostassem do lado direito da
estrada, onde o precipício íngreme os protegia contra o
impacto direto das granadas disparadas do norte. Pegou o
neutralizador de gravidade e foi subindo. Chegado ao
topo da colina, descansou a caixinha e olhou em direção
ao deserto.
“Diabo! Esses camaradas já deviam ter aprendido”,
pensou Bell. As tropas encontravam-se mais de dez
quilômetros de distância. Haviam montado uma
verdadeira posição de combate. Bell pediu a um dos
oficiais que lhe desse um binóculo.
Havia, pelo menos, oito canhões de grosso calibre.
Mais à direita, uma bateria de peças leves. Em meio a
isso, tinham sido montados ninhos de metralhadoras.
O neutralizador de gravidade não alcançaria o
adversário.
Outra rajada passou por cima de sua cabeça, numa
altura menor. Os impactos estavam mais próximos.
— Haggard! No caminhão da frente há um
transmissor. Pegue um dos oficiais e procure entrar em
conta to com a Stardust. Faixa de 37,3 metros. Avise-me
assim que responderem. Mas ande depressa, senão essa
gente acaba acertando a pontaria. Não posso fazer nada
para impedi-lo.
Entre os oficiais, Haggard encontrou um telegrafista.
Assim mesmo, dez intermináveis minutos passaram-se até
que chegasse a resposta da Stardust. Bell escorregou
encosta abaixo e pediu a Haggard que subisse. Tinham
que estar prevenidos contra um ataque de surpresa da
infantaria.
— Perry, é você?
— Bell, meu velho! Você ainda está vivo? Onde está
metido? Deu tudo certo?
— Até agora sim. Encontro-me a menos de cem
quilômetros da Stardust. Estou com três caminhões cheios
de peças para Crest. O doutor Haggard, descobridor do
soro antileucêmico, está comigo. Acontece que os
chineses estão desfechando um ataque de artilharia contra
nós.
—- E daí? Até agora você conseguiu se defender.
— É, mas não se esqueça de que os outros também
aprendem. Já sabem que não devem aproximar-se a
69
menos de dez quilômetros. Também deixaram de
empregar mísseis; sabem que posso desviá-los. Todavia,
nem mesmo eu estou livre do impacto casual de uma
granada, por mais que procure desviá-la. Você tem que me
ajudar e depressa.
Fez uma rápida pausa.
— Um instante. Ei, motorista! O mapa.
Dentro de poucos minutos, Perry soube a localização
exata do comboio e das posições da artilharia inimiga.
Prometeu pedir auxílio imediato a Crest. Bell ficou com o
receptor ligado.
Os impactos das granadas foram se aproximando de
forma assustadora.
Alguns projéteis
menores passaram
sibilando bem por cima
dos caminhões. Um
deles chegou a detonar
na colina que limitava
a depressão ao sul.
Embora tivesse sido
por puro acaso, era
conveniente sair dali
antes que o pior
acontecesse.
Perry voltou a
falar.
— Crest pensou
em pedir a Thora que
lançasse o raio
energético, mas a Lua
ainda se encontra
abaixo do horizonte. É
impossível. Daqui
também não podemos
fazer nada. Mas existe
uma possibilidade.
Vendeu todos os
geradores?
— Não, ainda fiquei com dois.
— Então agradeça aos céus, meu velho. Você prefere
utilizar o psicoirradiador ou o neutralizador?
— Mas a distância é muita...
— Não fique nervoso, pois isso faz mal à saúde.
Então, qual dos dois prefere? Aliás, tendo dois
geradores também pode usar ambos. Para encurtar a
conversa: a reserva de energia do psicoirradiador e do
neutralizador é muito reduzida para atingir uma distância
superior à prevista. Se forem ligados ao gerador, seu
alcance decuplicará. É verdade que só por uns poucos
minutos. É necessário intercalar uma pausa, para evitar a
sobrecarga do aparelho. Entendido?
— E como faço a ligação?
— Basta um cabo que ligue o neutralizador ao
gerador. Na parte posterior há uma tampa. Retire-a. Por
baixo dela encontrará uma tomada. Basta enfiar os pinos
do gerador e...
— Está bem, mestre e senhor. Muito obrigado. Que
pena que você não poderá assistir ao que vai acontecer
daqui a pouco.
— Não se preocupe. Assistirei. Para isso, até me
arrisco a desligar o anteparo energético. Acho que você
chegará aqui antes do anoitecer.
Bell já não estava escutando. Agora que sabia o que
fazer, não quis perder um único minuto. Os oficiais e
motoristas receberam ordem para ficar em silêncio.
Haggard segurou o neutralizador com o gerador ligado ao
mesmo. Bell ficou com o psicoirradiador cuja potência
também fora aumentada.
Rhodan, que estava sentado diante da tela em
companhia de Manoli e Crest, certamente se divertiu
muito com o espetáculo que se seguiu. Contemplaram a
cena de cima. A microssonda estava flutuando três mil
metros acima das posições inimigas.
No início, nada aconteceu.
Mas quando os canhões pesados dispararam, os
espectadores viram-se diante de um quadro grotesco.
Diminuída a ação da gravidade, as granadas saíram em
linha reta, até que se perdessem junto às montanhas
distantes. Os canhões, submetidos a uma força de recuo
equivalente, foram deslizando devagar em sentido
oposto, subindo aos poucos. A queda gradual que se
seguiu revelou que Bell devia ter mantido um décimo da
gravitação comum, para que retornassem ao solo são e
salvos, sem correrem o risco de morrer em virtude de
uma queda mais violenta. Crest registrou o fato com um
gesto de aprovação.
Os canhões menores não tiveram melhor sorte.
Mas o melhor ainda estava por vir. Como se
estivessem obedecendo a um comando único, todos os
soldados — os artilheiros, os oficiais, os motoristas e as
guarnições das metralhadoras — viraram-se subitamente
e começaram a correr. Em direção ao norte. Realizavam
saltos enormes, como se fossem pulgas gigantescas. Só
atingiam o solo centenas de metros mais adiante, e logo
voltavam a saltar. Os saltos foram se tornando mais
curtos. Certamente Bell estava desligando o neutralizador
aos poucos. Finalmente os coitados estavam apenas
correndo. Corriam e corriam como se fugissem do
demônio. Provavelmente teriam continuado a correr,
mesmo que Bell não lhes tivesse dado ordem para se
refrescarem com um banho no lago salgado mais próximo
do deserto de Ning-Hsia.
Perry girou um botão do receptor.
A sonda desceu. A imagem de Bell apareceu na tela,
grandemente ampliada. Perto dele via-se um tipo atlético
de cabelos castanho-escuros. Ambos riam tanto que as
lágrimas lhes desciam pela face. Desceram a encosta e
entraram nos seus veículos.
No momento em que deram a partida Bell ainda
estava rindo.
Perry desligou. Olhou para Crest. Nos olhos do
arcônida via-se um sorriso delicado. Acenou lentamente
com a cabeça.
— Admiro você e a sua raça — disse. — Mas talvez
esteja enganado; pode ser que você seja uma exceção. Seu
amigo poderia ter matado os inimigos. Por que não o fez?
— Porque está em situação de superioridade de
armas.
Crest respondeu com novo aceno de cabeça.
— Era o que eu imaginava. E sei que não há
ninguém melhor que vocês para receber o nosso legado.
Você conseguirá Perry. Alcançará o seu objetivo.
— Obrigado — respondeu Perry em tom caloroso.
Quatro horas depois dois caminhões entraram por
baixo do anteparo energético que tinha sido levantado. O
70
terceiro voltou para o leste com três motoristas e dez
oficiais.
Receberam ordens estritas para apresentar-se ao
Comando Geral em Pequim, e informar o mesmo de que a
terceira potência desejava estabelecer relações
diplomáticas com a Federação Asiática.
De Pequim para Washington:
O novo incidente prova que seu governo não
pretende atender às nossas exigências. Por isso decidimos
romper as relações diplomáticas amanhã ao meio-dia,
hora local, a não ser que até então a situação tenha sido
esclarecida. A Federação Asiática dispõe de meios para
repelir qualquer ataque.
De Pequim para Moscou:
Aguardamos um pronunciamento claro sobre sua
posição quanto à presença de uma base americana no
deserto de Gobi. A resposta deverá estar aqui amanhã ás
dez horas da manhã.
De Pequim para a Stardust:
Consideramos ridícula sua proposta de estabelecer
relações diplomáticas com uma nave espacial. Intimamo-
los pela última vez a se renderem através de mensagem
telegráfica. Saiam da nave sem armas e desliguem o
anteparo energético. Caso sua resposta seja negativa, as
relações diplomáticas com os países do bloco ocidental
serão rompidas amanhã ao meio-dia.
De Washington para Pequim:
Voltamos a assegurar que não temos qualquer
explicação para a situação atual. Propomos a realização
de uma conferência dos dirigentes dos países
interessados...
Da Stardust para Pequim:
Reiteramos nossa oferta. Comunicamos ainda que
utilizaremos os meios de que dispomos para evitar
qualquer conflito armado entre as potências.
De Moscou para Pequim:
Acusamos o recebimento da sua nota.
A lua minguante seguia o sol, que já descera atrás da
linha do horizonte. A posição favorável permitia uma
comunicação visual direta com Thora.
Apesar do seu vigoroso autodomínio, Perry não
conseguiu reprimir a sensação estranha que se apossou
dele ao ver aquela mulher, que era de uma beleza
extraordinária. Seu cabelo claro, quase branco,
contrastava de forma agradável com os olhos vermelho-
dourados, que o olharam com uma expressão fria e
realista.
Num tom arrogante que fez com que Perry ficasse
rubro de raiva disse:
— Por que chamou?
— Crest quer falar-lhe — respondeu Perry em tom
gélido.
— Pois então vá buscá-lo.
Perry não respondeu. Lançou-lhe mais um olhar e
retirou-se. Crest ocupou o lugar diante da tela de imagem
com o rosto indiferente. Começou a falar numa língua
desconhecida, altamente melódica. Sua voz era insistente.
Às vezes parecia ordenar outras vezes pedir. Vez por outra
Thora dava uma resposta ou formulava alguma pergunta.
Finalmente disse alguma coisa e acenou com a cabeça.
Depois disso a imagem desapareceu. A tela de imagem
apagou-se.
Crest ficou sentado mais cinco segundos diante do
receptor, imóvel. Depois se levantou e suspirou.
— Por enquanto fará o que mandei. Mas estou
prevendo que mais tarde teremos dificuldades com ela.
Fica aferrada às leis antigas; não compreende a
necessidade de uma modificação. Fará tudo para impedir
uma aproximação entre sua raça e a minha.
— Quem sabe se devo conversar com ela por alguns
minutos, de psicoirradiador na mão — sugeriu Bell em
tom decidido. — Depois disso ficará tão comportada
como os oficiais do exército asiático.
Crest destruiu as esperanças de Bell. — Os seres da
nossa raça dispõem de uma proteção contra os efeitos do
irradiador. Mas um dia terá de reconhecer onde está o
futuro da sua raça. De qualquer maneira está orientada a
respeito da nossa situação. Recomendou-me que
embarcasse numa pequena nave espacial que seria
enviada por ela. Depois disso, dirigiria o raio energético
para todos os cantos da Terra. Consegui convencê-la de
que não alcançaria nada com isso. Deixei claro que minha
cura é o que interessa em primeiro lugar. E não se trata
apenas de minha cura, pois suponho que toda a nossa raça
sofra de leucemia em virtude da degenerescência. Este
motivo, já basta para obrigar-me a continuar aqui.
Amanhã, Thora vigiará a situação a bordo de uma nave
auxiliar. Circulará em torno da Terra a uma órbita
constante, a mil quilômetros de altura. Um campo de
nêutrons constantemente renovado impedirá toda e
qualquer explosão atômica. Serão criados campos
magnéticos que desviarão os foguetes do seu curso,
fazendo-os caírem no mar. Um raio energético de
intensidade reduzida obrigará as aeronaves que se
lançarem a um ataque a pousarem no solo. O
abastecimento de energia será suspenso e as
comunicações radiofônicas serão interrompidas por linhas
de sangria, que subtrairão energia. Não se preocupem
cavalheiros: não haverá guerra, mesmo que os três blocos
a desejem. Amanhã entraremos em negociações com os
governos, e eles se verão obrigado a nos reconhecer.
— E até lá? — perguntou Perry.
— Até lá só nos resta esperar.
Eric Manoli colocou a mão sobre o ombro de Crest.
— Crest, faça o favor de voltar para a cama. O
senhor deve evitar qualquer esforço. Amanhã, quando
tudo estiver normalizado, o doutor Haggard o examinará.
Estou convencido de que conseguirá curá-lo.
Crest esboçou um sorriso de gratidão.
— Se ele não conseguir ninguém mais conseguirá.
Seguiram-no com os olhos. Bell acompanhou-o e
ajudou-o a arrumar as cobertas sobre a cama.
Haggard lançou um olhar indagador para Manoli.
— Já pôde apurar alguma coisa? Teve oportunidade
de examiná-lo e firmar um diagnóstico?
— Vamos a minha cabine. Lá poderei relatar com
mais calma as observações até aqui. Acho que se unirmos
nossos esforços, conseguiremos o seu restabelecimento.
Ele não corre perigo imediato.
Perry ficou só na sala de comando.
Olhou para o céu noturno que se erguia acima da
cúpula transparente da nave. As estrelas cintilavam com
uma claridade raramente observada. A lua minguante
descia para o horizonte. Dentro de uma ou duas horas
desapareceria.
Amanhã, seria o dia da decisão final. Se nada
71
conseguia convencer o mundo do poder dos arcônidas, os
acontecimentos desse dia o fariam. Não há nada mais
difícil que evitar uma guerra decidida por uma
humanidade desesperada.
Ficou sentado, até que a lua desapareceu detrás do
horizonte.
Subitamente, sentiu frio. Teve impressão de que
juntamente com a lua desaparecera um lindo rosto de
mulher, com os cabelos claros e olhos vermelho-
dourados...
6
O mecanismo gigantesco entrou em funcionamento.
Durante anos ficara à espera deste momento.
Milhares de exercícios haviam demonstrado seu
impecável funcionamento, Bastava comprimir um botão,
para desencadear a reação em cadeia que não poderia ser
mais detida.
Pequim: meio-dia...
O presidente da Federação Asiática fez um sinal de
cabeça para o marechal Lao Lin-to, que se encontrava no
comando supremo das Forças Armadas, em substituição
ao marechal Roon, recolhido à prisão.
Lin pegou o telefone pelo qual se comunicava
diretamente com o comando das posições de combate.
— É a constelação das Plêiades? As esquadrilhas
decolam imediatamente. Grau de mobilização número
um. Bases de foguetes ocidentais: ordem de fogo; alcance
sete. Esquadra: zarpar direção leste. Daqui a dez minutos,
tudo deverá estar terminado. Recolher todas as tropas
terrestres aos abrigos antiatômicos. Aguardar contra-
ataque. Fim da transmissão.
Em algum lugar uma mão aproximou-se de um
botão vermelho. Hesitou por uma fração de segundo.
Depois, o polegar comprimiu profundamente o botão.
Um continente estremeceu.
Os torpedos prateados ocultos nas profundezas
subiram para o céu azul, pareciam ir em busca do sol,
depois dirigiram-se para o leste ou para o oeste. Eram
centenas, milhares, dezenas de milhares...
Nos aeroportos militares reinava uma atividade
febril. Uma esquadrilha após a outra se erguia
pesadamente com sua carga mortífera, entrava em
formação e subia para a estratosfera, seguindo o curso
preestabelecido.
A força naval seguiu com menos rapidez. Desferiria
o golpe de misericórdia num mundo destruído. Talvez
também pretendesse escapar ao extermínio que se abateria
implacavelmente sobre os portos.
Tudo ocorreu em conformidade com o plano.
Só houve um ato que foi praticado
independentemente de qualquer ordem, isso numa barraca
montada em algum dos aeroportos militares.
Um agente do ocidente dedilhou febrilmente a tecla
do telégrafo. Em menos de um vigésimo de segundo os
sinais deram a volta ao mundo.
Exatamente um minuto e dezoito segundos depois
que o polegar amarelo comprimiu o botão vermelho, a
mesma operação repetiu-se em Washington; uma máquina
idêntica entrou em funcionamento. Não havia nada que a
distinguisse daquela montada no Extremo Oriente. A
única diferença foi que, aqui, os foguetes foram
disparados para o céu noturno, deixando caudas
luminosas atrás de si e desaparecendo por entre as
estrelas.
Talvez fossem um pouco mais rápidos que os da
Federação Asiática. Nesse caso a morte não chegaria com
uma diferença de setenta e oito segundos. Golpearia
simultaneamente de ambos os lados.
Apenas os projéteis disparados pelos submarinos
atômicos estacionados em todos os mares do mundo
seriam mais rápidos, pois teriam menor distância a
percorrer.
Quanto tempo ainda restaria? Dez minutos, talvez
quinze. Depois chegaria o fim do mundo.
Moscou esperou exatamente dois minutos.
Depois, também aqui alguém comprimiu o botão
vermelho. Os mísseis precipitaram-se para o céu matutino
e entraram no seu rumo. Contava-se por milhares. E em
certo momento a diferença das ações empreendidas nas
outras partes do mundo tornou-se patente.
Os mísseis do bloco oriental foram todos disparados
numa só direção — ou melhor, para um único alvo.
Se alguém prolongasse as linhas das respectivas
trajetórias, chegaria à conclusão de que todas elas
convergiam num ponto. E esse ponto correspondia ao
lugar em que a Stardust se abrigava sob o anteparo
energético, isolada do mundo e da destruição que se
aproximava.
O sol brilhava em Moscou.
Pelas indicações dos aparelhos de radar, instalados
nas fronteiras do gigantesco país, os mísseis da Federação
Asiática estavam passando pelas camadas da atmosfera,
ainda longe do destino. Nenhum deles desceria no
território do bloco oriental.
Os primeiros mísseis do bloco ocidental
demonstravam tendência semelhante.
O marechal Petronsky acenou com a cabeça em
direção ao primeiro ministro, numa expressão de triunfo
72
indissimulado.
— Conseguimos. Daqui a meia hora a Federação
Asiática não existirá mais; o bloco ocidental e a América
também terão deixado de existir. E essa maldita base no
deserto de Gobi terá sido varrida da face da Terra. Só
restará uma única potência: a nossa.
— É a arte da sobrevivência, caro marechal, apenas
a arte da sobrevivência. Ela só está ao alcance de quem se
mantém neutro.
O silêncio da expectativa desceu sobre os dois
homens. Não só sobre eles. Sobre toda a Terra. Parecia
que os últimos minutos que separavam a humanidade do
fim não queriam passar. Arrastaram-se
interminavelmente, transformaram-se numa eternidade. A
humanidade conteve a respiração.
Os primeiros foguetes Polaris penetraram nas
camadas mais profundas da atmosfera. Aproximaram-se
da área em que se situava o alvo. Sua trajetória assumiu a
forma de uma curva balística, tornou-se cada vez mais
íngreme — e então desceram verticalmente, penetraram
profundamente na terra e tudo que deixaram foram
crateras pequenas, verdadeiramente ridículas.
Nenhuma detonação. Nenhuma explosão atômica.
Nenhum cogumelo de gases.
A vaga dos gigantescos mísseis intercontinentais
acabou de cruzar o Pacífico. O poder explosivo de cada
um deles era tão grande que seria capaz de destruir toda
vida num raio de cem quilômetros. Por isso, suas
trajetórias foram se dispersando durante o voo. Chegaram
ao continente americano como se fosse uma linha bastante
tênue de soldados de infantaria. Não detonaram nos
pontos previstos, e seu próprio impulso tangeu-os terra
adentro até que caíssem nas montanhas, nas matas ou nas
estepes. Um único projétil da segunda série caiu em pleno
centro de Los Angeles, porque o mecanismo propulsor
deixou de funcionar antes do tempo. Perfurou um edifício
de oito pavimentos e ficou enterrado nos alicerces.
Com os mísseis americanos ocorreu a mesma coisa.
Não houve um único entre eles que detonasse ou caísse
em território densamente povoado. Conforme se
constatou mais tarde, só causaram pequenos danos
materiais.
Nos oceanos, desenrolou-se um quadro grotesco.
Uma esquadrilha de aviões de bombardeio dos
Estados Unidos avistou a esquadra da Federação Asiática
a mais de duzentos quilômetros de distância, junto ao
litoral da Ásia. Os porta-aviões e os cruzadores pesados,
os destróieres e os contratorpedeiros, até mesmo os
submarinos estavam imóveis na superfície calma do mar.
O coronel aviador Bryan Neldiss deu ordem de
ataque. Não sabia explicar o procedimento do inimigo,
que surgira tão inesperadamente, mas não quis deixar que
uma presa tão gorda lhe escapasse.
Os aparelhos de rádio permaneceram mudos. O
coronel não obteve confirmação da ordem que ele
expedira e sem que ele movesse um dedo, o avião
começou a descer. A esquadrilha seguiu-o e os aparelhos
pousaram n’água, bem perto dos navios inimigos.
Todo mundo apressou-se em deixar os aviões que
afundavam rapidamente. As tripulações foram recolhidas
por barcos infláveis.
O Almirante Sen Toa não expediu a ordem de fogo
que estava prevista, em lugar disso ordenou a operação de
salvamento. Os barcos foram colocados na água e mãos
prestativas tiraram os americanos do oceano que ondulava
suavemente. Dentro de meia hora tudo estava terminado.
A esquadrilha de aviões de bombardeio dos Estados
Unidos foi tragada pelas águas. A esquadra asiática jazia
imóvel, balançando ligeiramente nas ondas. Parecia que
uma mão invisível a segurava.
A 150 quilômetros da costa ocidental dos Estados
Unidos aconteceu à mesma coisa, apenas os papéis foram
invertidos. A única diferença foi que um dos pilotos
morreu afogado por não ter conseguido sair do avião
antes que este afundasse.
Um punho invisível interrompeu a trajetória dos
mísseis russos. Estes descreveram uma curva de 180
graus e retornaram às bases de onde tinham sido
disparados e penetraram verticalmente no solo, quase no
mesmo lugar de onde tinham partido. Nenhum deles
detonou, muito menos atingiu a Stardust.
A guerra atômica terminara antes de ter começado.
Houve até o caso de fazendeiros do oeste dos
Estados Unidos e muitos camponeses na China que nem
sabiam o que estava acontecendo. Quando souberam dos
foguetes caídos no solo — depois de restabelecidas as
comunicações pelo rádio — deram vazão à sua raiva
sobre a tentativa fútil de se mandar foguetes à Lua. Mas,
ao saberem de toda a verdade, silenciaram imediatamente
os protestos.
Alguém havia impedido a guerra. Um homem
revelara-se mais forte que as grandes potências. Desafiou-
as e impôs-lhes a paz pela força. Esse homem era Perry
Rhodan.
Mas não foi por muito tempo que Perry Rhodan
ficou sendo o herói dos homens do povo. Para os que
exerciam o domínio do mundo, a humilhação foi
insuportável. Sentiram-se tomados de pavor quando se
viram derrubados do trono do poder.
Nenhum deles conseguiria romper, sozinho, a
supremacia temível de Perry Rhodan. Mas se reunissem
seus esforços? Quem sabe...
A percepção desse estado de coisas desencadeou
uma atividade diplomática febril.
De Pequim para Washington:
Lamentamos o mal-entendido que quase causou uma
guerra mundial. Sugerimos que nossos dirigentes realizem
um encontro com a maior brevidade. Deixamos a seu
cargo a indicação do local.
De Pequim para Moscou:
Convida-se o primeiro-ministro do bloco oriental a
participar do encontro entre os presidentes da Federação
Asiática e do bloco ocidental, que se realizará daqui a
dois dias.
De Pequim para Washington:
Concordamos em que a conferência se realize no
Cairo.
De Washington para Pequim e Moscou:
O governo do bloco ocidental declarou a tripulação
da Stardust inimigo público número um. Propomos à
Federação Asiática que, uma vez esclarecida à situação
política mundial, prepare uma expedição lunar conjunta.
De Pequim para Washington:
Concordamos.
De Pequim para o Comando Espacial da Federação
Asiática (mensagem estritamente confidencial):
73
Acelerar imediatamente os preparativos para a
decolagem de outra nave espacial. Os trabalhos deverão
ser mantidos em segredo.
Do Cairo para Washington, Pequim e Moscou:
Preparativos concluídos. Aguardamos os presidentes
das grandes potências e sentimo-nos honrados...
Dois dias depois.
— Fomos expulsos da comunhão dos povos —
lamentou-se Bell.
Quem não o conhecesse, pensaria que dali a pouco
irromperia em lágrimas.
— Somos inimigos públicos e criminosos. Por quê?
Só porque impedimos a guerra.
— Você se admira com isso? — Rhodan ergueu as
sobrancelhas. — Ao impedirmos a guerra, provamos que
somos mais fortes que eles. No Cairo, chegaram a um
acordo. As grandes potências da Terra uniram-se para nos
destruir. Não poderia imaginar coisa melhor.
— Não poderia imaginar coisa melhor? O que quer
dizer com isso, meu caro?
— Nenhuma nação deve conquistar o espaço. É o
homem como habitante do nosso planeta que deve fazê-
lo. A união formada contra nós representa o primeiro
passo de uma comunhão de ideias entre todos os povos. O
medo cimenta a unidade dos homens. Com o auxílio dos
arcônidas conseguimos atingir um grande objetivo.
Unimos o mundo.
— E, por isso, nos expulsam?
— É o preço que temos de pagar.
Bell coçou a cabeça.
— Será que Fletcher já chegou em casa?
— Não sei. De qualquer maneira, seu nome não foi
mencionado por ninguém. Só você, Manoli e eu somos
inimigos públicos. Ainda não sabem da existência de
Crest. Há, ainda, uma surpresa guardada para os homens.
Bell apontou para o céu azul.
— Thora desempenhou muito bem o seu papel no
jogo. Não posso deixar de reconhecer isso. Se não fosse
ela, há esta hora estaríamos em maus lençóis.
Rhodan abanou lentamente a cabeça.
— Não estaríamos em situação pior. Apenas
acontece que seríamos os últimos homens do planeta.
Subitamente Crest surgiu na porta da sala do
comando.
— No destino de sua raça vejo o renascimento da
minha — disse pensativo. — Vejo a evolução com toda a
nitidez. É verdade que poderão surgir incidentes; é um
detalhe que não deverão esquecer. Ainda não eliminamos
totalmente o perigo, mas demos o primeiro passo nesse
sentido. Às vezes o medo é a melhor terapia.
— Mas não deve continuar a sê-lo para sempre —
objetou Perry com voz séria. — Há de chegar o dia em
que a união entre os homens não resulte do medo, mas de
um imperativo da consciência, do raciocínio lógico e, até,
da voz do coração. É claro que esse estado não poderá ser
alcançado de hoje para amanhã, mas sei que um dia será
assim. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que...
Crest colocou-lhe a mão sobre o ombro e disse em
tom suave:
— Você já fez Perry. Talvez você seja um ser que eu,
que venho de fora do seu mundo, designaria como
terrano. É isso mesmo! Você, Perry Rhodan, é o primeiro
terrano.
— E eu? O que sou? — perguntou Bell sentido.
O Dr. Manoli, sempre calado, respondeu com uma
observação bastante apropriada:
— Antes de sermos terranos, temos que ser homens.
Bell fez pouco caso e deslocou seu corpanzil em
direção à saída.
— Vou nadar no lago — declarou.
Manoli limitou-se a cochichar-lhe:
— Faz bem. Vá curtir-se ao sal...
Crest sorriu em silêncio.
Perry Rhodan parecia nada ter ouvido. Parado junto
à cúpula transparente olhava para o céu azul. Em algum
ponto, lá no alto, a Lua descrevia sua órbita solitária em
torno da Terra.
FIM
A maior parte dos homens ainda considera Perry Rhodan um traidor, mas algumas
pessoas sensatas já começam a compreender que ele só visa ao bem da humanidade. E esses
homens dirigem-se à Abóbada Energética, que nem mesmo o fogo cerrado mais intenso
consegue romper. No próximo volume da série Perry Rhodan intitulado:
A ABÓBADA ENERGÉTICA
74
Nº 03
De
K. H. Scheer
Traduçaõ
Richard Paul Neto
Digitalização
Vitório
Revisão e new format
W.Q. Moraes
Rhodan, comandante da primeira nave terrena tripulada a pousar na Lua, retornou
ao nosso planeta. Pousou no deserto de Gobi onde, valendo-se da supertécnica da
nave exploradora dos arcônidas, uma raça vinda da região central da Via Láctea,
instalou uma base que vem desafiando os ataques das grandes potências da Terra.
Perry Rhodan conseguiu impedir a terceira guerra mundial, mas ainda não está
satisfeito. Quer promover a união da humanidade.
Mas a humanidade ainda não está madura para os planos de Perry Rhodan. Por
isso a luta prossegue em torno da Abóbada Energética.
75
1
“... ocorre uma alteração na potencialidade prática
de determinada situação quando um fato aparentemente
improvável se torna provável. Não faz mais de uma
semana que me encontrava ao pé de uma muralha fictícia,
cujos alicerces repousavam nos cálculos elaborados em
minha mente”.
“Com base no meu raciocínio lógico, cheguei à
conclusão de que seria totalmente impossível enfrentar,
sozinho, as três superpotências da Terra”.
“Minha equação encerrava muitas incógnitas. A
interpretação matemática de uma
série de dados quase sempre é
correta e infalível, a não ser que
surja, de súbito, uma solução que
transforme um ou mais dos fatores
desconhecidos num dado exato a ser
computado nos nossos cálculos. Foi
exatamente o que aconteceu — ou
melhor, parece ter acontecido. Hoje,
já não penso em abandonar a minha
posição para resignar-me a uma
tentativa de colocar meu saber à
disposição das potências da OTAN.”
O homem esbelto, de rosto
fino, colocou o dedo sobre a tecla de
parada instantânea do gravador.
Imediatamente, os dois carretéis
deixaram de girar.
O major Perry Rhodan, ex-
piloto de provas da Força Espacial
dos Estados Unidos e comandante da
primeira expedição lunar tripulada,
olhou, pensativo, em torno. A cabina
de comando da Stardust era muito
apertada, e não poderia ser diferente,
numa nave espacial daquele
tamanho.
As portinholas de aço das duas
vigias da nave, que permaneceram
fechadas durante a viagem pelo
espaço, estavam abertas. Para além
das grossas lâminas de quartzo
estendia-se a desolação marrom-amarelada do deserto de
Gobi. Só à direita da nave, pousada à maneira de um
avião, via-se um pouco de verde. Era a tênue faixa de
vegetação que ladeava um riacho registrado nos mapas
com o nome de Morin-Gol e que desembocava no grande
lago salgado de Goshun, poucos quilômetros ao norte. Em
certo trecho, sua margem servia de fronteira entre a China
e a Mongólia.
Ao sul da nave, ficava o temido Gobi Central. Até
poucas semanas atrás, não havia praticamente nenhum
sinal de vida humana por ali, fora algumas pequenas
povoações situadas à margem das pouquíssimas fontes; e
as instalações militares da Federação Asiática.
Numa série de pensamentos soturnos, Perry Rhodan
deu-se conta de que, de uma hora para outra, a situação se
havia modificado por completo.
Lançou os olhos semicerrados através da vigia de
quartzo que dava para o leste. Muita coisa havia mudado
para além do leito do rio, no lugar em que ficava o
pequeno povoado de Dashoba. Da noite para o dia, o
aeródromo militar, que antes não passava de um
miserável campo de treinamento, parecia transformado
numa grande base internacional.
O contingente de tropas ali estacionado era enorme.
Tinha-se a impressão de que as formações maciças das
melhores unidades de elite da Ásia se preparavam para
uma invasão.
Rhodan lançou um olhar para a grande barraca
armada perto da Stardust. Ao contemplá-la, á idéia
tranquilizadora da própria segurança tornou-se,
simplesmente, ilusória. Pertencera ao equipamento de
uma unidade de transporte das
Forças Asiáticas, chegada há uma
semana. Os lábios de Rhodan
crisparam-se num ligeiro sorriso.
Tirou o dedo da tecla de parada.
Passou a falar com a voz mais
descontraída.
— Faço esta gravação para o
caso de qualquer imprevisto.
Repito: aqui fala o major Perry
Rhodan, comandante da nave
espacial americana Stardust e
piloto do Comando de Exploração
Lunar do espaço-porto de Nevada.
Faço questão de registrar minhas
experiências com a maior
fidelidade.
“Há oito dias o capitão
Reginald Bell regressou de uma
perigosa missão especial. Mal
acreditei no que meus olhos viram,
mas o fato é que conseguiu o que
parecia impossível: trouxe o
especialista em doenças do sangue
cuja vinda o médico de bordo, Dr.
Eric Manoli, julgava tão
importante. Trata-se do Dr. Frank
M. Haggard, famoso cientista
australiano ao qual o mundo deve o
soro antileucêmico. Se existe um
homem capaz de salvar o ser
estranho vindo das profundezas da
Via Láctea, esse homem é o Dr. Haggard. Face às
instalações médicas existentes na Stardust e à atuação
desse médico surgiram probabilidades de salvar a vida de
Crest. Afinal, dispomos de dois dos vultos mais
destacados na medicina. Já não vejo as coisas tão pretas
como ontem e anteontem. Não há dúvida de que a
irrupção de uma guerra nuclear aniquiladora, que parecia
iminente, foi impedida pelos recursos inconcebíveis de
que dispõem esses personagens estranhos. Para além da
cúpula protetora que nos envolve espalham-se os
destroços dos enormes mísseis nucleares. Não chegaram a
explodir. Thora, a comandante da gigantesca nave
espacial dos arcônidas, interveio a partir da Lua. Uma vez
que as armas nucleares de todas as potências da Terra
funcionam com base em reações de fusão ou fissão
nuclear, bastou prender os nêutrons livres aos núcleos
atômicos. Com isso, os processos de fissão nuclear
baseados nos nêutrons tornaram-se impossíveis. Nossa
4
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Comandante da nave Stardust. É o grande benfeitor da humanidade por ter impedido a terceira guerra mundial, mas é considerado o inimigo público número um.
Reginald Bell — Engenheiro eletrônico da Stardust. É o melhor amigo de Perry.
Dr. Eric Manoli e Dr. Frank M. Haggard — É nas mãos desses homens que repousa a vida de Crest — e a sobrevivência da humanidade.
Crest — Diretor-científico da expedição realizada por uma raça estranha. Só ele pode
conter os impulsos de Thora.
Thora — Comandante de uma nave que dispõe de poderio suficiente para destruir a Terra.
Albrecht Klein, Li Shai-tung e Peter Kosnow — Três agentes secretos que se transformaram em combatentes decididos pelas idéias de Perry.
Allan D. Mercant — Chefe do Conselho Internacional de Defesa.
76
posição não é má; pelo menos não é pior que a que
enfrentamos logo após o pouso no deserto de Gobi.
Acredito ter procedido corretamente diante de minha
consciência e do juízo dos homens, quando me recusei a
colocar o poderio técnico-científico de uma raça dotada
de inteligência muito superior à nossa nas mãos de um
dos grupos de potências terrenas. Não há nada que possa
abalar minha fé em toda a humanidade. Nada perturbará
minha convicção de que o futuro do gênero humano só
pode repousar na união de todos os homens. Ao que
parece, encontramo-nos no limiar de uma era de
provações para toda a Terra. Ainda existe muita
incompreensão, desconfiança, ódio e malquerença. As
grandes figuras de todos os governos, realizarão esforços
exaustivos para empregar os conhecimentos fabulosos dos
arcônidas na execução de seus propósitos”.
“Acontece que tais desejos não correspondem à
causa do progresso da humanidade”.
“Sem a cura de Crest, meu plano grandioso não terá
possibilidades de êxito. Quero conquistá-lo como amigo
meu e de toda humanidade. Por isso só posso fazer votos
de que mais uma vez o Dr. Haggard dê provas do seu
extraordinário saber”
Rhodan desligou o aparelho. Ele o fez de forma um
tanto abrupta e teve motivos para isso. Não pertencia à
classe de homens que, diante de um cerrado bombardeio,
sentem-se inclinados a gravar em uma fita suas idéias e
opiniões mais ou menos bem sucedidas.
Seu rosto, até então tranquilo, ficou tenso. Num
gesto automático segurou a arma. E, ainda
instintivamente, deu um salto para abrigar-se, muito
embora o raciocínio logo lhe dissesse que tal ato era
totalmente ilógico.
Ergueu-se muito contrariado, amaldiçoando sua
insensatez. Não tinha sentido procurar abrigo em uma
situação como aquela. Se a cúpula energética dos
arcônidas não resistisse, a força concentrada de um
exército gigantesco desferiria um golpe arrasador.
Rhodan pôs a arma automática a tiracolo. Saiu da
nave pela grande escotilha do compartimento de carga,
inteiramente vazio, que ficava logo atrás da cabina
destinada à tripulação, e desceu pela rampa de metal. No
mesmo instante, ouviu-se o radiofone. Uma voz forte e
áspera disse em tom seco:
— Alguém houve por bem interromper o meu sono
tão merecido. OK! Você ainda está de pé, ou já o
agarraram?
— Para seu governo, as comunicações pelo rádio
estão proibidas. Irei até aí! — respondeu Rhodan.
Desligou o rádio de pulso. Franzindo a testa, refletiu
sobre o grau de aperfeiçoamento que teria sido alcançado
pelas instalações de escuta da Federação Asiática.
O trovejar longínquo cresceu num rugido
ensurdecedor. Rhodan ergueu os olhos para contemplar a
luminosidade cintilante, quase imperceptível, que se
desenhava no céu. No ponto mais elevado, a cúpula
energética atingia dois mil metros de altura. Ao que
parecia desta vez haviam decidido lançar mão de outros
meios de ataque.
Os lábios de Rhodan se estreitaram. A barba de
vários dias contrastava com a pele morena. Com passos
rápidos atingiu a entrada da grande tenda.
Há tempos o capitão Reginald Bell despira o
uniforme da Força Espacial. Essa vestimenta teria
representado um obstáculo quase intransponível na sua
arrojada excursão fora dos limites da cúpula.
— Fim do mundo — disse com voz gutural. —
Ainda não se decidiram? Ou será que inventaram alguma
coisa capaz de romper a nossa cúpula protetora?
O olhar que Rhodan lançou para as posições do
inimigo, montadas bem ao longe, tinha algo de
ameaçador. Mas logo se descontraiu. Ofereceu um cigarro
ao companheiro.
— As intenções deles são boas — disse sorridente.
— São as melhores possíveis.
As últimas palavras morreram em meio ao estrondo
provocado pela detonação de poderosos projéteis. A
muralha invisível, feita de linhas de força de uma potência
extraordinária, iluminou-se no brilho intensíssimo das
explosões. Rhodan fez uma constatação:
— Desta vez não estão usando a artilharia
convencional. Se não me engano, o comando do Exército
Asiático dispõe de alguns cérebros brilhantes. Já
compreenderam que, num campo antigravitacional, as
armas convencionais são totalmente inúteis. O que faria
qualquer homem inteligente ao perceber que, face à
eliminação da gravidade, já não pode lançar mão dos
potentes canhões, sujeitos ao recuo provocado pelos
disparos? Passa a utilizar projéteis-foguetes, não é?
Reginald Bell fez que sim. Uma forte corrente de ar
iluminou seu cigarro num clarão vivo. A Stardust,
estacionada no centro do campo cinzento protegido pela
cúpula energética, transformara-se no alvo de pelo menos
mil baterias de foguetes. A julgar pelos impactos, deviam
ter colocado em ação pelo menos quatro mil lança-
foguetes automáticos dos mais variados calibres.
O rugido das explosões tornou-se insuportável. Bell
teve de berrar a plenos pulmões para tornar sua voz
audível.
— Esses foguetes não conduzem carga nuclear —
gritou junto ao ouvido de Rhodan. — Thora prometeu que
interviria imediatamente. A cúpula anti-neutrônica cobre
toda a Terra.
Rhodan sabia que Bell estava berrando com toda a
força. Depois de mais alguns segundos, o homem robusto,
de ombros largos, compreendeu que seus esforços eram
inúteis. Cerrou os lábios. Uma contorção nervosa
desenhou-se em seu rosto largo.
As enormes ondas de compressão geradas pelas
explosões que se sucediam em rápida seqüência não
conseguiam atravessar a cúpula energética. Em
compensação, esta parecia transformada num enorme
sino.
Alguma coisa oscilou.
— Fogo cerrado! — constatou Rhodan, lançando um
olhar para o círculo que se fechava em torno da cúpula
energética. Ali se achavam estacionadas as unidades de
elite da Federação Asiática, bem protegidas nos
excelentes abrigos. Ali estavam montados os lança-
foguetes, instalados em abrigos de concreto e abastecidos
pelos depósitos de munições situados em abrigos ainda
mais sólidos.
Não havia por perto nenhum objeto que não
estivesse fixado cuidadosamente no solo. Perry Rhodan
sabia que os soldados usavam cintos especiais, dotados de
fixadores. A Federação Asiática lançara mão de pessoas
6
77
que tinham algum conhecimento de viagens espaciais
tripuladas. Outros receberam treinamento intensivo, que
os habilitou a enfrentar os efeitos da ausência da
gravidade.
Com isso, foi eliminado o fator surpresa. A arma
formidável dos arcônidas, o neutralizador da gravidade,
funcionava com a mesma perfeição de antes, mas perdera
toda a utilidade prática.
Perry Rhodan deu-se conta de que, embora
dispusesse de armas e equipamentos infinitamente
superiores, não devia subestimar o poderio concentrado
de um exército altamente treinado.
O fogo cerrado das baterias de foguetes pesados e
ultrapesados não poderiam deixar de produzir seus
efeitos, mesmo que, apesar de todos os esforços, o
inimigo não conseguisse romper a cúpula energética.
Acontece que, naquelas circunstâncias, a tensão
nervosa resultante das inúmeras detonações, aliada ao
medo causado pela sensação de perigo, bastaria para
romper a resistência psíquica dos poucos homens que ali
se encontravam.
De repente, o Dr. Eric Manoli precipitou-se para
fora da tenda sem dar a menor explicação. Antes que
Rhodan compreendesse o que estava acontecendo, o
médico havia desaparecido através da escotilha da nave.
Só depois de alguns instantes Rhodan percebeu o
motivo da agitação daquele homem franzino. Ele e Bell
começaram, também, a correr. Rhodan lembrou-se de que
seus movimentos poderiam ser detectados através de um
dispositivo de localização ótica. O campo de defesa
energética formado pelos arcônidas tornava impossível a
captação eletrônica da imagem, mas a muralha invisível
podia ser atravessada pelo olhar. Se percebessem que,
logo após o início do bombardeio, os homens se
precipitavam para a nave, isso só poderia concorrer para
piorar a situação.
Rhodan estava apavorado.
“Não devemos deixar qualquer brecha por onde
possamos ser atacados”, pensou. “Pelo amor de Deus!
Não podemos mostrar nenhum ponto fraco.”
Encontrou-se com o Dr. Manoli na grande escotilha
de carga da nave. Trazia sobre a cabeça os enormes
abafadores de som usados como proteção contra o ruído
por ocasião da partida da nave.
Manoli sorriu. Moveu os lábios. Apontou para o
pino do cabo de ligação.
Assim que Rhodan colocou o pesado dispositivo, o
fragor infernal transformou-se num murmúrio distante.
Colocou no pescoço o grampo com o microfone de
laringe e ligou os contatos do equipamento de telefonia
que trazia no peito.
— Já estava na hora — soou a voz calma vinda dos
minúsculos alto-falantes embutidos nos abafadores. —
Estou admirado de não lhes ter ocorrido antes a ideia de
nos submeter a um fogo cerrado. O pessoal da Faculdade
de Psicologia deve estar metido nisso.
Um ligeiro sorriso esboçou-se no rosto do Dr.
Manoli. No entanto, os lábios trêmulos desmentiam a
tranquilidade que procurou aparentar.
— Obrigado. Foi uma ótima ideia — respondeu
Rhodan. — Devia ter-me lembrado disso antes.
— É bom que ele também faça alguma coisa —
ouviu-se a voz de Bell. — Será que também deu para ter
boas ideias?
— Só sei que estou com um medo terrível —
respondeu Rhodan com voz apática. — Estou com medo
desta cúpula energética, cujo funcionamento eu não
conheço e cujo limite de resistência constitui uma
incógnita para mim. Mas, deixemos isso de lado. Eles
testarão nossa resistência com um fogo cerrado de várias
horas. As armas nucleares não funcionarão mais, por isso,
recorrerão aos explosivos químicos. Se estes não
produzirem efeito, atacarão com gases. Caso os mesmos
falhem, convocarão os especialistas em guerra
bacteriológica. O fato é que ainda existem possibilidades
com que nosso amigo Crest nem chega a sonhar. O
homem é dotado de uma tremenda capacidade inventiva
e, com o surgimento da nossa terceira potência, criamos
uma situação tal que a esta altura já mobilizou toda a
ciência humana.
— Obrigamo-los a este tipo de união — observou
Manoli. — As superarmas terrenas tornaram-se
ineficazes. As reações nucleares já não são possíveis, uma
vez que não podem ser desencadeados sem nêutrons
livres, e atualmente os homens não conseguem desligar
estas partículas do núcleo atômico.
De repente, Rhodan lançou um olhar fulminante
sobre Bell. Este empalideceu. Passou a ponta da língua
pelos lábios.
— O que houve? — perguntou com voz gutural.
Desde que voltou a ficar submetido às ordens de
Rhodan, Bell perdera a petulância juvenil. A alegria
enorme que lhe provocavam as estupendas armas
defensivas dos arcônidas desvaneceu-se com a mesma
rapidez com que surgira durante sua expedição à
Austrália.
Rhodan não respondeu. Correu para a tenda, onde
entregou um par de abafadores ao Dr. Haggard, que
parecia muito assustado. Bell compreendeu
imediatamente. Sem dizer uma palavra, desapareceu no
interior da armação de plástico inflado.
Os outros o seguiram devagar. O excelente
isolamento acústico fez com que os ruídos chegassem
ainda mais abafados. Com isso, fora eliminado, também,
o risco de esgotamento nervoso.
Passaram perto do reator em forma de tambor de
óleo, que emitia um zumbido agudo. Desde o pouso da
nave esse aparelho fornecia a energia para a cúpula
protetora. Rhodan parou pensativo. Mais uma vez
procurou atravessar o dispositivo cilíndrico com a
imaginação, de forma a compreender como ele
funcionava. Ele era astronauta e físico nuclear. Podia
gabar-se de ter compreendido todos os detalhes — mesmo
os mais afastados de seu campo de conhecimentos — do
mecanismo propulsor químico-nuclear da Stardust. Mas,
diante dessa tecnologia infinitamente superior, seus
conhecimentos não passavam do zero. Sabia, apenas, que
no setor quente do reator dos arcônidas era liberada uma
energia equivalente à de um pequeno sol. Por certo, ali se
desenvolvia um processo de fusão extremamente
complicado que devia basear-se no ciclo do carbono.
Seria um processo estupendo de ignição catalítica a frio,
que se distanciava do das fissões nucleares da Terra tanto
quanto o machado de pedra das pistolas automáticas.
Pelo que dissera Crest, seria facílimo fornecer
energia para toda a indústria terrena com aquele aparelho
8
78
cuja altura não ultrapassava a de um homem. Rhodan
sentia vertigens quando fazia cálculos baseados nesses
dados. Também desta vez desistiu do intento de
compreender esse aparelho criado por uma raça superior.
Por enquanto, tinha de contentar-se em aceitar a maneira
pela qual funcionava.
Vários cabos da grossura de um braço subiam até a
antena esférica que possibilitava a criação da cúpula
energética de quatro quilômetros de diâmetro e dois de
altura.
Cerca de seis semanas haviam-se passado desde o
encontro da gigantesca nave espacial esférica na
superfície da Lua. Cerca de seis semanas seriam
suficientes para que os cientistas da Terra
compreendessem algumas verdades perigosas. Talvez, a
esta altura, a fábula de Rhodan, segundo a qual haviam
sido descobertos na Lua alguns vestígios abandonados de
uma estranha cultura repousasse sobre pés de barro. Não
estavam lidando com idiotas; não havia a menor dúvida.
Os homens que ocupavam os postos de comando militares
e científicos das três superpotências sabiam raciocinar.
Se, além de tudo, ainda conseguissem se unir, a situação
acabaria por se tornar insustentável.
Perry Rhodan sentiu os olhares perscrutadores dos
três homens. Por trás da cortina que separava a parte dos
fundos via-se a sombra do Dr. Haggard. Ao que parecia,
havia colocado abafadores no ser que estava sob seus
cuidados.
O rosto de Perry tornou-se mais sério. Há alguns
anos andava ligeiramente curvado, o que fazia com que
seu corpo, alto e magro, parecesse um pouco menor. Bell
observou-o, cada vez mais preocupado. Se o comandante
perdesse a tranquilidade, tudo estaria perdido. Ele mesmo,
Reginald Bell, não seria capaz de levar avante de maneira
coerente o plano cuja execução fora iniciada. Era muito
impulsivo.
O Dr. Eric Manoli nem de longe estaria em
condições de prosseguir naquela empresa arriscada. Era,
antes de tudo, médico; e como tal não saberia emitir
ordens que tivessem de ser cumpridas
incondicionalmente.
O capitão Clark G. Fletcher estava desaparecido
havia uma semana. Rhodan tinha certeza de que ele devia
enfrentar grandes dificuldades — se é que ainda estivesse
vivo. Tinha cometido um grande erro ao permitir que
retornasse ao lar. Não poderia dar certo.
Os lábios de Rhodan estreitaram-se. Como não
tivesse ligado o dispositivo de telefonia, Bell absteve-se
de fazer qualquer pergunta. Em vez disso, pôs
inconscientemente a mão no bastão prateado que, segundo
sabia, encerrava forças inacreditáveis.
Era o chamado irradiador psíquico dos arcônidas,
através do qual se podia eliminar a vontade consciente de
qualquer pessoa, obrigando-a através de um processo de
obstrução sugestiva a praticar atos que contrariavam seus
próprios desejos.
Era um instrumento relativamente inofensivo. Não
causava o menor dano psíquico e a mente da pessoa
submetida aos seus efeitos não era afetada. Todavia,
também o irradiador psíquico perdera o fator surpresa. Do
outro lado, já haviam descoberto que o alcance do
aparelho não ultrapassava dois quilômetros.
Com isso, a terceira potência via-se obrigada a
assumir a defensiva.
Rhodan passou junto ao laboratório móvel do Dr.
Haggard, trazido na semana anterior. Ao perceber o olhar
irônico de Rhodan, Bell deu de ombros. Ele sabia que a
essa altura, não conseguiria repetir a façanha de poucos
dias atrás. De qualquer maneira, o Dr. Haggard estava no
acampamento e, o que era mais importante, trouxera
aquilo de que Crest tanto precisava.
Perry Rhodan, que ainda envergava o uniforme da
Força Espacial, pôs a mão no ombro esquerdo, numa
atitude pensativa. Suas divisas não estavam mais ali; ele
mesmo as retirara. O major Perry Rhodan havia deixado
de existir, pois fora avisado por uma mensagem
radiofônica de que havia sido privado de sua patente.
Transformara-se no inimigo público número um.
Com todo cuidado, puxou a cortina. O Dr. Manoli
aproximou-se. Num movimento rápido, estabeleceu a
ligação através do cabo.
— Não fique nervoso! — soou a voz tranquilizadora
do médico nos alto-falantes dos abafadores. — Nosso
paciente está com febre, mas já contávamos com isso.
Sabíamos perfeitamente que um ser de constituição
biológica diferente da nossa não poderia reagir aos nossos
medicamentos da mesma forma como reage um ser
humano normal. Mas o espectro sanguíneo é bastante
animador. A proliferação doentia dos glóbulos brancos
regrediu com a primeira injeção do soro antileucêmico do
Dr. Haggard. Pelo menos, conseguimos deter o avanço da
moléstia. As inchações das glândulas e a hemorragia
cutânea estão regredindo. Apenas não sabemos qual a
causa dos efeitos colaterais. Num ser humano não
surgiriam sintomas desse tipo. A esta altura, porém, já
sabemos muito sobre o organismo de Crest.
“Seu metabolismo é idêntico ao nosso. Tal quais os
seres humanos, respira oxigênio e seus pulmões
transportam esse gás vital ao organismo através do
sangue. Haggard é da mesma opinião. Realizamos exames
minuciosos antes de injetar o soro. Dentro de uma hora
aplicaremos a segunda dose”.
— Apesar dos graves efeitos colaterais?
— Apesar desses efeitos — confirmou Manoli com
um ligeiro movimento de cabeça. Seu rosto assumiu uma
expressão séria. — Não podemos fugir aos riscos.
Haggard é um especialista muito competente, mas não é
um mágico. Os sintomas estão sob controle. Não é de se
esperar que o paciente entre em colapso. A circulação
mantém-se numa estabilidade notável. Seu corpo é dotado
de um órgão que o homem não possui. Poder-se-ia dizer
que se trata de um regulador de pressão muito
aperfeiçoado, situado acima do coração. As medidas
registradas pelo nosso instrumental médico automático
revelam que os princípios de colapso e os espasmos
vasculares são imediatamente compensados. É um
organismo admirável, que ninguém suportaria numa raça
degenerada como esta. De qualquer forma, vemo-nos
diante de superinteligências que não conseguem reunir a
força de vontade que seria necessária para converter suas
potencialidades espirituais infinitamente superiores em
qualquer tipo de atuação prática. É aí que está o problema,
comandante.
— Já não sou comandante.
— Para mim, nunca deixará de ser. Para resumir,
temos motivos para crer que não só conseguiremos pôr
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79
Crest de pé, mas também alcançaremos a cura completa e
o total restabelecimento.
Rhodan lançou mais um olhar sobre aquele rosto
incrivelmente juvenil, coberto de gotículas reluzentes de
suor. Embora não tivesse nascido em nosso planeta, Crest
suava. Pelo que dizia Manoli, era um bom sinal.
Rhodan voltou-se. O fogo cerrado de artilharia
continuava. O solo trepidava sob a força dos impactos.
Parecia que cargas explosivas muito potentes estavam
sendo detonadas junto à face externa da cúpula
energética.
— Não estou gostando disso — cochichou Bell.
Ouvia-se perfeitamente que engolia em seco. — As
intenções deles não são boas. Até parece que todo esse
fogo de artifício não passa de uma manobra para prender
nossa atenção.
— Quem dera que pudéssemos perguntar a Crest se
a cúpula continuará a resistir ao bombardeio — disse
Rhodan. — Eric, será que você poderia despertar Crest
por um instante?
— Nem pense nisso! — recusou-se o médico. — É
impossível! Seria o maior erro que poderíamos cometer.
— Infelizmente você tem razão — confirmou
Rhodan. Um sorriso esboçou-se no seu rosto.
Bell estremeceu. Conhecia a meiguice tristemente
célebre de Rhodan, que acabaria numa irrupção
fulminante.
— Se não conseguirmos restabelecer Crest, o
inferno desabará sobre nossas cabeças — observou o
comandante com uma tranqüilidade surpreendente. —
Sim, senhores: o inferno! Contrariei as ordens que
recebemos, pousando a Stardust aqui no deserto de Gobi.
Recusei-me a entregar Crest. Declarei centenas de vezes
que seus conhecimentos científicos e tecnológicos não
seriam entregues a nenhuma potência da Terra.
Sufocamos uma guerra nuclear no nascedouro e, com
nossas armas defensivas muito superiores, zombamos de
toda a humanidade. E ela nunca esquecerá isso. Os três
grandes blocos das potências da Terra uniram-se contra
nós. Lá na Lua, a exótica comandante de uma gigantesca
nave espacial de combate espera o restabelecimento de
Crest, o cientista que se afastou do seu mundo para
procurar em nossas regiões galácticas algum planeta em
que já tivesse sido desvendado o mistério da conservação
biológica das células. Para Crest, isso significaria a vida
eterna. Seu cérebro genial há de ser conservado para
sempre.
“Thora, a comandante, também se conservou
espiritualmente ativa, como tantas mulheres da sua raça.
Despreza a humanidade por causa de suas condições
primitivas de desenvolvimento. Se não conseguirmos
curar seu irmão de raça, ficaremos expostos da noite para
o dia, sozinhos e indefesos, às divisões de combate de
uma humanidade enfurecida. A terceira potência terá
chegado ao fim. Falei claro?”
Bell respondeu:
— Muito claro amigo! Se Thora der para trás,
passaremos pelos interrogatórios dos Serviços Secretos;
depois disso enfrentaremos uma corte internacional.
Nossas intenções foram boas demais, não foram?
— Em minha opinião, não cometemos nenhum
crime; nem sequer praticamos qualquer erro — afirmou o
médico com a voz tranquila. — Quem age no interesse de
toda a humanidade nunca pode estar errado. E não
estamos fazendo outra coisa. Pelo contrário: com a nossa
demonstração de força, conseguimos aproximar, de um
momento para outro, até mesmo os governos separados
por divergências ideológicas profundas. Será que isso não
vale nada?
— Só conseguimos isso graças ao poder de Thora —
ressalvou Rhodan. — Se Crest morrer, ela se separará de
nós. É verdade que não poderá decolar sem o nosso
auxílio, mas isso não a deixará preocupada. O fatalismo
tomou conta de sua raça. Ela se fechará num enorme
campo energético e recusar-se-á terminantemente a
manter contato com os homens. Temos de fazer alguma
coisa.
— O quê?
A pergunta foi formulada em tom penetrante. O
nervosismo de Bell havia atingido o ponto crítico.
— Devemos convencê-la de que o homem é um ser
dotado de uma enorme criatividade. Dentro de pouco
tempo as potências terrenas disporão de armas nucleares
que poderão ser utilizadas apesar dos campos anti-
neutrônicos.
O Dr. Manoli empalideceu. Acabara de
compreender. Rhodan concluiu com toda a tranquilidade:
— Estávamos realizando pesquisas secretas para
uma fusão nuclear a frio. Se essas pesquisas forem bem
sucedidas, não haverá mais necessidade do detonador
térmico para desencadear a fusão nuclear. Com isso, o
campo anti-neutrônico não passará de uma brincadeira.
Quando esse dia chegar, não quero estar embaixo desta
cúpula energética.
Olhou para o alto. Muito além da cobertura da tenda,
a cúpula resistia aos projéteis, como se estes não
passassem de bombas juninas. A situação poderia mudar,
talvez, muito depressa.
— Ligue-me com Thora — disse Rhodan em tom
pensativo. — Quero falar-lhe com urgência, na qualidade
de representante de uma humanidade que quer formular
umas exigências em seu próprio benefício.
— Exigências? — disse Bell, com um sorriso de
escárnio. — Será que ouvi bem? Ela saltará no meu rosto
de dentro do tubo de imagens. Para ela, não passamos de
macacos com um pouquinho de inteligência. Seu código
continua a proibir qualquer tipo de contato conosco. Este
negócio de Crest não passou de um acordo em que ela
mal e mal se dignou entrar.
Rhodan, com o pé, puxou a banqueta para junto de
si. A mesma já pertencera ao equipamento de uma
unidade asiática de transporte.
— Se ela possuir aquilo que entre nós se costuma
chamar de instinto de conservação acabará cedendo.
Vamos logo! Estabeleça a ligação. Afinal, você é ou não é
nosso técnico de comunicações?
Bell deu de ombros. Murmurando uma praga, tirou o
pino da tomada de seu abafador e desapareceu atrás da
cortina. O estranho videofone dos arcônidas havia sido
instalado junto ao leito de Crest. A grande tenda oferecia
mais espaço que a pequena cabina da Stardust.
— Pretende coagi-la? — perguntou o Dr. Manoli,
preocupado.
— Isso mesmo! — respondeu Rhodan. — Acho que
ela se encontra numa dependência tão forte de Crest como
jamais sonhamos. Notei perfeitamente que ele lhe dava
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ordens. Para mim, a brincadeira já passa da conta. O que
será de nós se a cada pequeno incidente tivermos de
solicitar seu auxílio? Para meu gosto, a Lua fica muito
longe. Quando chegar o momento crítico, perderemos
minutos ou segundos que poderão tornar-se decisivos.
Precisamos de um equipamento muito mais potente,
inclusive de algumas armas ofensivas. Por favor, não
formule mais perguntas. Se acontecer aquilo de que
desconfio no recanto mais profundo do meu cérebro,
Thora despertará de qualquer maneira. Subestima os
homens. Acha que não somos capazes de coisa alguma.
No meu entender, está cometendo um engano fatal.
— Não compreendo — gaguejou Eric Manoli.
— Procure raciocinar — disse Rhodan com um
sorriso irônico. — O que faria você, como médico, se um
paciente se queixasse de fortes dores? Procuraria resolver
tudo com injeções de morfina, ou tentaria descobrir a
causa das dores para aplicar o tratamento adequado?
— É claro que procuraria arrancar o mal pela raiz.
— Pois é isso — disse Rhodan com um sorriso
forçado. — É isso mesmo. Os serviços secretos das
potências terrestres também procurarão as raízes que, no
nosso caso, ficam na Lua. Não me venha dizer que
acredita que ainda está engolindo a nossa história!
Bell fez um sinal com a mão. Do seu rosto
zombeteiro só se podia concluir que a comunicação havia
sido estabelecida.
Rhodan levantou-se sem a menor pressa. Dirigiu-se
à peça que ficava na parte dos fundos da tenda e colocou-
se diante da tela oval do instrumento dos arcônidas.
A nave estranha estava estacionada do outro lado da
Lua. Ninguém conseguiria alcançá-la com as ondas
ultracurtas comuns. Indagado a este respeito, Crest
limitara-se a declarar que esse problema havia sido
resolvido há muito pelos arcônidas, através da
radiotelegrafia de velocidade superior à da luz.
Para um engenheiro terreno, era mais que difícil
aceitar uma explicação desse tipo sem que surgisse uma
série imensa de perguntas. A montanha de problemas que
tal fato fazia surgir prenderia o técnico por toda a sua
vida.
O rosto de Thora reluziu na tela. Era uma imagem
tridimensional colorida de rara expressividade. Thora era
bela, de uma beleza cativante, mas parecia terrivelmente
despersonalizada na sua tranqüila frieza. Rhodan lançou
um olhar fascinado para os cabelos muito claros, que
formavam um contraste marcante com os olhos vermelho-
dourados, uma das características dos arcônidas.
Há pouco, Rhodan estivera disposto a usar palavras
moderadas, procurando explicar o seu procedimento
através da educação que recebera. Mas, subitamente,
resolveu mudar de atitude.
Não proferiu nenhum cumprimento. Em vez disso,
falou com voz áspera:
— Não me venha explicar que ainda não está na
hora do contato diário. Ouça bem e procure lembrar-se de
que já não sou uma simples figura no seu tabuleiro. Se
não é capaz de reparar as pequenas avarias do mecanismo
propulsor de sua supernave espacial para colocá-la em
condições de decolar, também não se julgue capaz de
impressionar um cientista da Terra e um soldado de elite
com suas palhaçadas. Os homens de minha raça têm mais
coragem e determinação na ponta dos dedos do que os
idiotas da sua tripulação carregam nas cabeças ocas. Se
interromper a comunicação, desligo a cúpula energética.
Queria dizer alguma coisa?
Ela o encarou com os olhos arregalados. Ninguém,
nunca, usara uma linguagem dessas para com a
comandante.
Não desligou. Quando Rhodan prosseguiu, os cantos
de sua boca desceram.
— E agora, madame, preste muita atenção ao que
vou dizer! Eu...
Bell estava convencido de que seu ex-comandante
enlouquecera. Assumiu uma pose de quem se julga o
chefe do enorme império espacial, que Crest designara
como o Grande Império. Ao que parecia, estava esquecido
de que, em meio à Via Láctea, o planeta Terra não
representava mais que um grãozinho de areia no deserto
de Gobi; talvez até menos.
Bell tinha certeza de que alguma coisa não daria
certo.
2
Uma sociedade ou uma aliança defensiva nada mais
é que uma autêntica relação de mútua confiança entre os
participantes.
Sempre que, no âmbito de uma união mundial, seja
estabelecido um sistema secreto de defesa específica, tudo
indica que o quartel-general será instalado num lugar de
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acesso fácil e seguro pelos participantes.
No caso do CID — Conselho Internacional de
Defesa — fora escolhida a ilha da Groenlândia, por ser o
local que oferecia posição geográfica mais favorável. A
gigantesca central defensiva da OTAN fora montada
muito abaixo do solo.
Allan D. Mercant, o chefe onipotente do CID, só
prestava contas de seus atos perante o plenário da
Comunidade de Defesa. Aquele homem delicado, de
aspecto despretensioso, de rosto moreno e testa alta, era
uma criatura muito pacífica quando se tratava de animais.
Poderia, mesmo, ser confundido com o diretor de alguma
sociedade protetora dos animais; e a pessoa a quem
declarasse que ocupava essa posição acreditaria piamente
na sua palavra se o visse nas densas florestas do Canadá,
com a câmera fotográfica equipada com teleobjetiva
diante dos olhos que reluziam num brilho entusiástico.
Mercant não apreciava a caça com arma de fogo,
que não se harmonizava com os princípios que adotara.
Justamente por isso, a atividade profissional a que se
dedicava devia causar surpresa. As más-línguas diziam
que, para o chefe do CID, a saúde de um pobre animal era
mais importante que a vida de um dos seus numerosos
agentes. É claro que não havia em tal afirmativa um pingo
de verdade. Por isso, a única resposta de Mercant diante
de observações mordazes como esta consistia num brilho
irônico dos olhos.
Naquele instante, ele estava parado diante de uma
tela gigantesca. O símbolo luminoso que aparecia no
ângulo superior direito indicava que a câmera de TV se
encontrava num ponto distante da Ásia.
Isso era mais que estranho; há cerca de um mês tal
fato teria causado a maior sensação. A essa hora, porém,
nem mesmo a presença de oficiais e agentes secretos do
bloco oriental parecia impressionar os presentes.
Trinta dias antes teria sido totalmente inconcebível
permitir a entrada de um representante da Federação
Asiática, quanto mais do Bloco Oriental, no quartel-
general do Conselho Internacional de Defesa.
Para levar a surpresa ao máximo, Allan D. Mercant
chegara a expedir convites pessoais.
Foi assim que às primeiras horas da manhã daquele
dia, dois bombardeiros Delta, da Federação Asiática e do
Bloco Oriental, pousaram no enorme aeroporto do
quartel-general.
Os visitantes foram recebidos e cumprimentados por
Mercant em pessoa. No entanto, ele tivera o cuidado de
levar os recém-chegados em um trem fechado por uma
das insondáveis galerias de gelo do quartel-general. De tal
forma que eles já não saberiam indicar com precisão o
lugar em que se encontravam. Viram-se num enorme
salão, bem iluminado, onde reinava uma temperatura
agradável. Ninguém diria que, por cima deles, havia uma
camada de gelo e rocha de quase três quilômetros de
espessura.
Era a central de Mercant, o lugar para onde
convergiam os laços que cimentavam a imponente união
defensiva do Ocidente.
Verdadeiras tempestades de som pareciam irromper
dos grandes amplificadores embutidos. O trabalho de
transmissão do pessoal da televisão chinesa era excelente,
talvez, até, um pouco demais.
Teleobjetivas de grande potência captavam toda a
área em que se situava o alvo. Os olhos dos espectadores
eram atormentados ininterruptamente por raios
ofuscantes. O rugido infernal da detonação dos projéteis
misturava-se ao som grave dos pesados mísseis
teleguiados terra-terra, que eram disparados numa
sequencia incrivelmente rápida das carretas rebocadas por
veículos especiais.
O espetáculo já durava quinze minutos e o fim ainda
não estava à vista. Qualquer diálogo entre os presentes
seria impossível. A transmissão do bombardeio prendia
todas as atenções, até que Mercant desligou abruptamente
o receptor.
Os tubos de imagem relampejaram. A imagem
cintilou ligeiramente antes de apagar-se por completo. O
silêncio passou a reinar no salão.
Mercant passou a palma da mão pela calva
reluzente. Parecia exibir tamanha ingenuidade que o
marechal Petronskij não pôde reprimir uma sensação
desagradável. O chefe da Força Aeroespacial do Oriente
lançou um olhar suplicante para o homem esbelto, de
rosto impassível que se encontrava a seu lado.
Ivan Kosselov, chefe do Serviço Secreto do Bloco
Oriental, não movera um músculo da face durante a
apresentação do espetáculo. Por certo, achara conveniente
conservar a máscara habitual. Kosselov e Mercant já
haviam travado muitas lutas silenciosas das quais o
grande público nem chegava a suspeitar.
Havia mais dois homens que chamavam a atenção.
Eram Lao Lin-to, comandante supremo da Força
Aeroespacial da Federação Asiática, e Mao Tsen, um
chinês do Sul, enorme e de ossos salientes que, segundo
se sabia, desempenhava as funções de chefe do Serviço
Secreto da Federação Asiática.
Dessa forma, as personalidades mais importantes e
influentes dos três grandes blocos de potências estavam
reunidas no abrigo central do QG do CID. Era um fato
estranho; na verdade, mais que estranho.
Os homens olharam-se. Os agentes e assessores, que
se conservavam à distância, nos fundos do salão,
mantiveram-se num silêncio sepulcral. Ali, só os grandes
estavam com a palavra.
Mercant convidou os cavalheiros a entrarem na sala
de conferências. Os guardas retiraram-se. O recinto foi
isolado hermeticamente do mundo exterior.
O pigarro de Mercant parecia encerrar uma
revelação, talvez uma advertência. As cabeças voltaram-
se, os dedos começaram a brincar com os lápis e as
canetas, os cérebros vigilantes tornaram-se mais alertas. O
que desejaria Mercant?
Falou no tom de quem sabe dissimular muito bem
quaisquer preocupações que porventura pudessem surgir
entre suas palavras.
— Admiro a capacidade de resistência do exército
vermelho — principiou em tom amável. — Cavalheiros.
Apesar de todos os esforços da Federação Asiática, um
ligeiro exame da tela nós dá a impressão de que realmente
estamos lidando com um poder infinitamente superior. Os
dados assustadores, colhidos no curso dos acontecimentos
das últimas semanas, bastam para provar que nem os
países da OTAN, nem os do Oriente têm qualquer
participação no que está ocorrendo. Faço questão de
salientar este fato. Peço-lhes encarecidamente que
confirmem que daqui por diante, de uma vez por todas, a
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82
nave espacial Stardust deixará de ser considerada uma
base do Ocidente plantada para fins de provocação em
território submetido à soberania da Federação Asiática.
Por pouco, o equívoco não nos arrasta a uma catástrofe
nuclear. Volto a assegurar-lhes que os cientistas do
Ocidente não conhecem qualquer meio ou instrumento
capaz de produzir fenômenos estranhos como os que se
estão verificando. A Stardust pousou no deserto de Gobi
contra a nossa vontade. Qual é a sua opinião, Sr. Mao
Tsen?
O enorme chinês voltou o rosto sombrio. Seus olhos
escuros brilhavam numa expressão irônica.
— Ora, Mercant! — soou a voz grave. — Vim para
terminar de vez este jogo de esconde-esconde. É claro que
os senhores não seriam capazes de desenvolver armas
desse tipo. Lamento que a desconfiança mútua nos tenha
feito perder um tempo precioso. A única coisa que me
interessa é saber como o major Rhodan encontrou essas
coisas. Pelo que me disseram, os fatos estão diretamente
ligados ao primeiro pouso lunar.
— Ao segundo! — soou uma voz fria.
O sorriso de Mercant enrijeceu. O tom da voz do
chefe da defesa do Oriente era inconfundível. Um sorriso
sombrio aflorou aos lábios do marechal Petronskij.
— Com o segundo pouso lunar tripulado — insistiu
Kosselov em tom inexpressivo. — Fui autorizado a
informá-lo a esse respeito. Nossa nave tripulada partiu
três meses antes da Stardust. Como não costumamos
divulgar nossos fracassos, a queda da nave, que para nós
continua sendo um mistério inexplicável, nunca foi dada
ao conhecimento público.
— Poderia fazer o favor de nos fornecer
informações mais detalhadas? — interveio o general
Pounder, chefe da Força Espacial dos Estados Unidos. Em
seguida, voltou o rosto pálido e perturbado em direção a
Mercant: — Por que o Serviço Secreto do Ocidente nunca
chegou, a saber, disso?
— Pois não — disse Kosselov. — Acho que já não
podemos dispensar um intercâmbio sincero. Nossa nave
caiu sobre a superfície lunar. Sofremos uma perda total;
não obtivemos qualquer comunicado, e não temos a mais
leve indicação do que aconteceu. Sabemos general
Pounder, que a Stardust enfrentou problemas
semelhantes, mas há uma diferença: depois do pouso
forçado, a tripulação voltou a entrar em contato com os
senhores. Daí se conclui, com toda a segurança, que,
pouco antes do pouso, a nave foi arrancada da órbita em
virtude de uma falha do equipamento de teledireção. Foi
exatamente o que aconteceu com a nossa nave. Face à
semelhança dos casos, resolvemos solicitar o seu auxílio.
Temos motivo para acreditar que algo de misterioso deve
existir no nosso satélite. A interpretação dos dados
disponíveis leva, ainda, à conclusão de que o major
Rhodan demonstrou mais habilidade que nossos homens.
O fato é que foi mais feliz, pois conseguiu sobreviver ao
pouso forçado. Não temos a menor explicação para o que
aconteceu depois. Há um fato básico que assume a maior
importância: tanto a nave do Oriente como a do Ocidente
enfrentaram situações de grave emergência em virtude de
defeitos no sistema direcional, surgidos sem causa
aparente. É impossível responsabilizar os blocos de
potências rivais pelo que aconteceu. Os fatos são estes.
Mercant confirmou com a cabeça.
— Cavalheiros, já lhes transmiti com todos os
detalhes as notícias e explicações recebidas do major
Perry Rhodan. Nosso ex-piloto espacial comunicou
simplesmente que encontrou na Lua vestígios de uma
estranha civilização dotada de inteligência superior e um
avanço tecnológico fantástico. É de lá que provêm às
armas e equipamentos infinitamente mais potentes que os
nossos. Contrariando ordens que lhe demos, Rhodan
pousou no deserto de Gobi. Daí em diante, vem recusando
qualquer contato conosco, limitando-se a dizer que
representa a chamada terceira potência. No momento, não
estamos interessados na definição desse termo. O que
importa são os fatos, que, em última análise, encontram
seu remate numa cúpula energética impenetrável que
representa o maior mistério de todos os tempos.
Acabamos de ver, com os nossos olhos, que de nada
adianta um bombardeio com armas convencionais.
— Pois nos deem armas mais eficientes! — disse o
chinês em tom amargurado. — Façam alguma coisa para
endireitar as conseqüências catastróficas da traição
cometida pelo piloto dos senhores. A esta altura já
devíamos estar de acordo em um ponto: Perry Rhodan
investe contra todo o mundo. Transformou-se no inimigo
público número um. Se não conseguirmos eliminar aquele
misterioso campo de força e reduzir a tripulação da
Stardust à impotência...
—...nesse caso, poderíamos ser forçados a unir-nos
— interrompeu Mercant, num tom ligeiramente irônico.
Kosselov pigarreou. Lançou um olhar pensativo;
sobre os homens que se encontravam reunidos.
— Somos da opinião que, ao usar os meios de que
dispunha para impedir uma guerra nuclear, Rhodan não
praticou nenhum ato de alta traição. Pelo contrário —
disse o marechal Petronskij. — Os senhores mesmos,
dominados pelo pânico, comprimiram os tais botões.
Acontece que os mísseis nucleares não explodiram.
Portanto, se hoje podemos realizar esta conferência,
devemos isso a Perry Rhodan. É este o lado positivo dos
acontecimentos, e que não deve ser ignorado.
— Ninguém está ignorando este aspecto —
observou Mercant com a voz tranquila. — Todavia, cabe
lembrar que dificilmente teria havido o tão falado aperto
de botões se Rhodan não tivesse pousado no território da
Federação Asiática. Emitimos numerosas notas nas quais
asseguramos que esse pouso não correspondia aos nossos
desejos. Apesar disso, Pequim preferiu acreditar que se
tratava de uma base ocidental para fins de provocação.
Mas, deixemos isso de lado! A esta altura só nos interessa
saber de que forma poderemos chegar a um acordo.
— Alguma coisa deve ser feita — disse Mao Tsen,
enfatizando as palavras. — Estamos decididos a não
tolerar a terceira potência em território da Federação
Asiática. O ato de Rhodan constitui um crime contra a
ordem mundial. Ele se opõe a uma potência soberana do
nosso planeta.
— O senhor devia considerar o ponto de vista de
Rhodan — disse o general Pounder em tom ressentido. —
Acho que nesta conferência devemos usar de toda a
franqueza. E, para falar francamente, permita que lhe diga
que, a meu ver, corresponde plenamente aos objetivos da
paz mundial, que uma força neutra exerça certo controle
sobre nossos atos. Não é necessário ressaltar que, antes,
reinava uma tensão horrível no plano internacional. O
18
83
pouso de
Rhodan no Gobi não foi o fator decisivo que fez
com que os botões que acionam as armas nucleares
fossem comprimidos no Oriente e no Ocidente. Talvez
fosse a fagulha que provocou a explosão, depois de
termos acumulado quantidades enormes de explosivos
numa guerra de poder que já duravam alguns decênios.
O chefe do Serviço Secreto do Bloco Oriental
parecia nervoso.
— General Pounder — disse com a voz apagada. —
Até parece que o senhor continua a ver em Perry Rhodan
a criança mimada do seu programa espacial. Permita que
lhe diga que também nós não podemos concordar com
essa potência que surge de uma hora para outra. Sem falar
na situação jurídica, completamente insustentável, não há
como nos rebaixarmos a tal ponto que nossos governos
fiquem sujeitos às ordens de quem quer que seja! Quem
nos garante que Rhodan não se transformará em um
imperador mundial? Por enquanto, seu reino é pequeno;
está reduzido à imobilidade, já que se acha preso no
interior daquela misteriosa capa protetora. Acho que já é
tempo de engajarmos o potencial industrial, e científico
de todas as potências na luta contra Rhodan. E, antes de
tudo, devemos descobrir quem está por trás dele. Não
acreditamos nas informações do CID.
Um sorriso forçado esboçou-se no rosto de Mercant.
Ele se levantou. Estava pensativo.
— Eu os convidei a comparecerem ao quartel-
general do CID para informá-los sobre os dados mais
recentes colhidos por nossa organização. Todos os fatos
conhecidos foram processados pelo maior e mais potente
dos computadores eletrônicos da Terra. Para não dificultar
a obtenção de um resultado final válido, preferimos não
formular questões sobre os aspectos favoráveis ou
desfavoráveis de uma tecnologia avançada nas mãos de
um homem nascido em nosso planeta. Dessa forma,
continua em aberto a indagação sobre se Rhodan tenciona
desempenhar o papel de guardião pacífico da
humanidade, visando ao desenvolvimento e ao progresso,
ou se pretende usar os instrumentos infinitamente
superiores de que dispõe para entregar-se a uma nova
forma de imperialismo.
— É isso o que ele vai fazer! — disse Kosselov, em
tom exaltado. — Que motivo poderia ter para não
proceder dessa forma?
— Um momento — disse Mercant, com uma
cortesia gélida. — Aprecio a oportunidade desse
encontro, e todo homem inteligente e amante da paz devia
fazer a mesma coisa. Nem por isso, porém, deixo de
condenar a conduta ilegal de um homem que partiu como
major da Força Espacial e retornou ao nosso planeta como
ditador. Pouco importa que Rhodan tenha, ou não, feito
um favor à humanidade torturada por tantos pesadelos. O
certo é que impediu uma guerra nuclear. Nesse ponto, não
posso deixar de concordar com o general Pounder. Todas
as reações nucleares conhecidas tornaram-se
impraticáveis. Estabelecemos uma união forçada que, a
meu ver, forma os laços suaves que conduzirão a uma
coligação entre as grandes potências. Estamos todos
unidos contra um homem. São estes os únicos fatos
relevantes a serem considerados nesta oportunidade.
Gastamos semanas em indagações sobre os
acontecimentos misteriosos que, certamente, se
desenrolaram na Lua. Os dados fornecidos por Rhodan já
são do seu conhecimento. Seus serviços de escuta
captaram as mensagens radiofônicas trocadas entre o
Comando Espacial dos Estados Unidos e o major Rhodan.
Por elas se percebe que o major Rhodan insiste na
afirmativa de ter encontrado na Lua as criações de uma
raça infinitamente superior, e que delas se apoderou em
benefício da humanidade. Recusa-se a entregar os
produtos de sua descoberta a qualquer governo da Terra.
É claro que, sob o ângulo estritamente jurídico, cometeu
os crimes de deserção, alta traição e indisciplina, entre
outros. Mas não devemos confundir causas com efeitos.
Aqui, não podemos aplicar os padrões jurídicos
habituais, ainda mais que Perry Rhodan renunciou à sua
patente e à cidadania americana. Tornou-se, pois, um
apátrida. Diz ser um cidadão do mundo e não se submete
à autoridade dos juizes terrenos.
— É uma posição juridicamente insustentável! —
interrompeu Kosselov, em tom exaltado.
— Sem dúvida — confirmou Mercant. — É mais do
que isso. A situação é totalmente confusa. Mas será
preferível deixarmos o nosso juízo a este respeito para
quando tivermos condições de adotar medidas práticas
contra Rhodan. No momento, tudo não passa de palavras,
e estas são totalmente infrutíferas na situação em que nos
encontramos. Devemos nos ocupar exclusivamente com
fatos.
Mercant sentou. Fez um ligeiro gesto com a mão.
Uma enorme tela iluminou-se. A partida da nave tripulada
Stardust foi apresentada.
As imagens da nave foram surgindo. Finalmente,
viram os preparativos para o pouso na Lua, fotografados
pelos instrumentos de bordo. As fotografias da estação
tripulada Freedom-I foram apagadas. Eram excelentes
filmes e registros em fita obtidos através de ondas
infravermelhas. Ouviu-se a última mensagem radiofônica
de Rhodan. Logo após soou o apito estridente do alarma
eletrônico e o chiado agudo do pedido de socorro
codificado QQRXQ. O equipamento direcional
automático da Stardust deu sinal da cessação do
funcionamento da teledireção de Terra. As últimas
fotografias mostraram a nave se precipitando, em ângulo
reto, sobre a superfície da Lua, numa queda
aparentemente descontrolada. Por fim, desapareceu atrás
da curvatura do polo lunar.
Mercant mandou desligar o aparelho.
— Acabamos de assistir aos preparativos da
decolagem e a queda — disse. — Até aqui, tudo foi claro.
Acreditamos que tenha havido alguma falha ou acidente.
Houve quem falasse em sabotagem. O que sabemos é que,
subitamente, a nave deixou de reagir aos impulsos da
teledireção, embora seus receptores estivessem em
perfeitas condições. O retorno à Terra prova isso. São
estes os resultados finais e incontestáveis a que chegou o
computador eletrônico. Agora, os senhores verão o
relatório de técnicos que analisaram os resultados
fornecidos após a análise dos últimos dados. Dele se
conclui, sem sombra de dúvida, que Perry Rhodan não
está sozinho. Atrás dele existe alguma coisa
desconhecida, apavorante. Os senhores hão de
compreender que, por enquanto, é inútil realizar qualquer
jogo de estratagemas jurídicos. O que importa saber é
quem detém o poder. Se for Rhodan, não teremos
20
84
alternativas senão lembrar, com um sorriso amarelo, o
velho ditado, segundo o qual o mais forte sempre tem
razão. Concordam comigo?
Kosselov já havia chegado à mesma conclusão. Os
representantes da Federação Asiática protestaram em
termos veementes. Mercant só pôde dar de ombros.
— Sr. Mao Tsen, partilhamos irrestritamente da sua
indignação. Acontece que não estamos em condições de
tomar qualquer medida efetiva contra a invasão do seu
território, praticada por Rhodan. Os senhores lançaram
mão de suas divisões de elite e as armas mais avançadas
de que dispõem. Qual foi o resultado? Dispararam
projéteis que valem milhões contra a indestrutível
muralha energética. Rhodan não mexe um dedo. Segundo
os princípios da lógica conclui-se que o homem se sente
invulnerável. Recomendo-lhes que desistam e se
contentem com um bloqueio total da área. Provarei que o
verdadeiro mal está localizado na Lua. Ao que parece,
Rhodan não passa de uma figura subalterna de um grande
jogo.
Com estas palavras, Mercant exprimiu de forma
indireta aquilo que um homem que se encontrava longe
dali havia dito numa clarividência notável. Prosseguiu em
tom firme:
— Para exterminar o mal pela raiz, teremos de
pousar na Lua. Pousar ou atacar, tanto faz. Ouçamos o
relatório sucinto de nosso computador.
Voltando-se para os técnicos, Mercant ordenou:
— Podem ligar.
Ouviu-se um ligeiro estalido nos amplificadores,
depois...
— Pressupõe-se que os dados fundamentais sobre a
decolagem e o pouso da nave sejam conhecidos. O
retorno a Terra foi levado a efeito sob controle eletrônico
remoto. A penetração na atmosfera terrestre transcorreu
normalmente. O acontecimento mais importante que
levou à constatação precisa desses fatos consiste no ato de
rebeldia cometido pelo major Rhodan ao pousar no Gobi
Central, em território asiático. O plano de construção e a
planta de equipamentos da Stardust provam que, antes da
decolagem, seus tripulantes não tinham a menor condição
de utilizar armas e instrumentos mais aperfeiçoados. A
interpretação dos dados disponíveis permite concluir com
absoluta segurança que o comandante da Stardust
encontrou, na Lua, produtos de uma indústria
extraterrena.
— Que sabedoria! — resmungou Mao Tsen, com
ironia. — Até aí já sabíamos. É só?
A voz monótona do aparelho voltou a soar. A tela
mostrou o foguete na área de pouso.
— Com base nas declarações confusas do piloto
Clark G. Fletcher, capitão da Força Espacial, verifica-se
que o major Rhodan forçou os membros da tripulação a
tolerarem o pouso proibido. O capitão Fletcher foi preso
pelos serviços australianos de segurança. O tratamento
leviano a que foi submetido durante o interrogatório
produziu um derrame cerebral. Pelo que se depreende das
gravações em fita e dos relatórios médicos, o sistema de
memória de Fletcher foi inutilizado por um bloqueio
hipnótico parapsicológico. Assim mesmo, conseguiu-se
apurar sem sombra de dúvidas que Fletcher foi obrigado a
obedecer às ordens de seu comandante. Os funcionários
que causaram a morte de Fletcher estão sendo
processados.
— Que habilidade! — ironizou o chinês.
O relatório prosseguiu com uma apresentação
detalhada dos resultados das investigações. Fez uma
reconstituição da conduta dos outros tripulantes, o Dr.
Manoli e o capitão Reginald Bell, baseado nas escassas
informações fornecidas pelos agentes dos serviços
secretos do Ocidente e do Extremo Oriente.
A exposição terminou com estas palavras:
— O desaparecimento misterioso do Dr. Frank
Haggard, especialista em doenças do sangue, deve ser
encarado como um aspecto importante. E a interpretação
dos atos de Rhodan, com base em cerca de onze milhões
de possibilidades, dá a explicação desse fato. Admite-se,
com 99% de probabilidades de acerto, que o major
Rhodan trouxe à Terra um ser vivo não humano, que sofre
de uma doença do sangue. O exame dos preparativos
tomados pelo Dr. Haggard permite a conclusão segura de
que se trata de leucemia. Apuraram-se quais foram os
aparelhos e medicamentos que levou consigo. A
probabilidade de acerto é de 100%.
Desta vez, Mercant esperou, em vão, por qualquer
objeção do chefe do Serviço Secreto da Federação
Asiática. Mao Tsen parecia estarrecido na sua poltrona.
— Incrível! — murmurou Kosselov.
Mercant continuou a observar os presentes. O
general Pounder estava mergulhado em profunda
meditação. O relatório foi concluído com uma observação
lacônica:
— A declaração de Rhodan, de ter encontrado na
Lua a herança abandonada de uma raça não humana, e de
ter conseguido utilizá-la pela forma já conhecida, é
rejeitada com absoluta segurança, por não corresponder à
verdade. O exame cuidadoso dos dados técnicos e
científicos leva à conclusão de que nenhum homem seria
capaz de compreender, em poucos dias, o funcionamento
de armas e aparelhos totalmente desconhecidos. A
utilização da chamada cúpula energética exige
conhecimentos tão estranhos à espécie humana, que deles,
nenhum engenheiro terreno dispõe. Considerados todos os
fatos, calculou-se com uma probabilidade de 100% que só
o conhecimento aproximado da mecânica da cúpula
energética exigiria três ou quatro anos de trabalho de uma
equipe de pesquisas altamente qualificada. Para o domínio
completo do instrumental seriam necessários outros três
ou quatro anos. Conhecemos o quociente intelectual dos
quatro pilotos. Nunca seriam capazes de, num trabalho
conjunto, compreender a aparelhagem e, muito menos,
pô-la a funcionar. Eliminados os dados irrelevantes e
calculadas cuidadosamente sessenta e quatro milhões de
possibilidades, chega-se com segurança absoluta ao fato
de que, contrariamente às declarações de Rhodan, este
encontrou na Lua seres estranhos de inteligência
extraordinária. À falta de dados básicos não é possível
apurar os objetivos específicos de Rhodan. Parece
recomendável atacar com meios adequados a base dos
seres desconhecidos, situada na Lua, ou tentar estabelecer
relações diplomáticas.
Com estas palavras, terminou o relato dos fatos
interpretados pelo maior computador da Terra.
Mercant levou duas horas para dar respostas às
inúmeras perguntas dos presentes. Cálculos detalhados
foram solicitados e fornecidos prontamente pela máquina.
22
85
O computador desenvolveu uma lógica perfeita e
cristalina. Finalmente, Kosselov tocou no ponto crítico.
— Não temos dúvidas de que os dados fornecidos
são corretos. O computador recomenda um ataque com
meios adequados. Os senhores dispõem desses meios?
Não é necessário ressaltar que nossas armas nucleares não
terão qualquer efeito. Não conseguimos nem romper a
cúpula protetora da Stardust! O que me diz Sr. Mercant?
Este lançou um olhar pensativo aos presentes. Não
trazia nos lábios o sorriso habitual.
— Em que condições estão suas naves espaciais,
Kosselov?
— Nossa nave está pronta para decolar a uma
semana. Com uma tripulação de seis homens e carga útil
de 92 toneladas.
O general Pounder fungou. O que acabara de ouvir
era um golpe. Seis homens, mais noventa e duas
toneladas! O Bloco Oriental continuava um passo à
frente.
— O que nos diz marechal Lao Lin-to?
— Podemos decolar a qualquer momento —
respondeu o comandante supremo da Força Aeroespacial
da Federação Asiática. — Tripulação, quatro homens;
carga útil, 58 toneladas. Os defeitos que causaram a
explosão de nossa primeira nave lunar foram removidos.
Mercant pigarreou antes de falar.
— Amanhã, a nave do Ocidente estará em condições
de decolar. É a Stardust-II. A tripulação continua a ser de
quatro homens e a carga útil é de 64 toneladas. Peço-lhes
que providenciem quanto antes um encontro dos técnicos
em naves espaciais. Todas as naves devem partir da Terra
ao mesmo tempo. Se houver diferenças sensíveis no
tempo previsto para o percurso, estas devem ser
compensadas de tal forma que as três naves entrem
simultaneamente na mesma órbita lunar. Será que
conseguirão isso?
— Para quê? — perguntou Kosselov, asperamente.
— Que tolice é essa? Quer atacar com quê? Se lá em cima
existe uma base ocupada por inteligências superiores,
nossos pilotos terão uma surpresa bastante desagradável.
Afinal, quais são suas intenções?
Mercant respondeu em tom delicado.
— Antes de tudo, será necessário tomar
providências para que o comando das naves seja manual.
Temos instruções para que lhes sejam fornecidos dados
exatos sobre os instrumentos de localização que se tornam
necessários. A base desconhecida só pode estar localizada
numa área bem delimitada junto ao pólo sul lunar.
Mais tarde, forneceremos as coordenadas exatas.
Sabemos perfeitamente em que ponto nossa nave realizou
o pouso forçado. Os seres estranhos só podem estar em
local próximo a este ponto, circunstância que é
confirmada pela interpretação dos dados realizada pelo
computador. Obtivemos dados muito mais abundantes do
que se poderia imaginar. Estão dispostos a trabalhar de
mãos dadas com o Ocidente?
Depois de mais duas horas este ponto foi esclarecido
e fixado por escrito num protocolo especial de coalizão.
Só depois disso, Mercant apresentou seu grande trunfo.
— O senhor perguntou como atacaremos. Por favor,
preste atenção!
Desta vez foi um oficial do Ministério da Defesa
quem ligou a tela.
Uma ilha minúscula surgiu. Ao que parecia estava
deserta. O caos teve início com uma esfera de gases
incandescentes. O rugido que saía pelos amplificadores
não parecia desse mundo. As energias primitivas
desencadeadas formavam uma coluna que subiu
vertiginosamente ao céu azul. Vagas enormes, um calor
terrível, uma atmosfera dilacerante.
— Trata-se de nossa experiência mais recente —
declarou Mercant. — É uma bomba de fusão de cem
megatons. Há três meses conseguimos aplicar o princípio
da fusão nuclear a frio, já estabelecido no campo teórico.
Isso significa que a nova bomba não depende de um
dispositivo térmico para desencadear a fissão nuclear. A
bomba catalítica funciona com base em átomos de mésio.
Basta utilizar um dispositivo químico de ignição que
funciona a uma temperatura de apenas 3.865 graus
centígrados para que a reação nuclear tenha início. Não
temos necessidade de nêutrons livres. Dentro de quinze
dias, a nova bomba catalítica estará em condições de ser
transportada e, portanto, utilizada. Um grupo de
transporte americano fará a entrega, de acordo com o
protocolo que acaba de ser firmado. Por enquanto,
preferimos não utilizar a nova bomba contra Perry
Rhodan. Se destruirmos sua base na Lua, ele se renderá.
Mais alguma pergunta?
Muitas perguntas foram feitas. Todas elas
conduziram a um fato incontestável: nunca antes as
grandes potências tinham mostrado suas cartas mais
secretas pela forma como o estavam fazendo naqueles
dias.
Um homem alto e louro, de gestos delicados, cujo
rosto revelava bastante autocontrole, observava
atentamente as reações do chefe do Serviço Secreto, um
personagem quase onipotente. E uma vez terminada a
sessão, breve, mas importante, pediu dispensa das funções
de observador especial e oficial de ligação do Conselho
Internacional de Defesa e solicitou permissão para atuar
na China.
Mercant atendeu ao pedido. Ao retirar-se, o homem
alto teve a impressão de sentir o olhar do chefe pousado
na sua nuca. Costumava-se dizer que o cérebro de
Mercant era dotado de qualidades excepcionais. De
qualquer maneira, atendera ao desejo razoavelmente
fundamentado de seu melhor agente. Mas não deveria ter
sorrido de forma tão estranha.
Lá fora, ouviam-se os rugidos dos pesados
bombardeiros Delta dos visitantes que deslizavam sobre a
pista. O QG do CID voltou à rotina. Allan D. Mercant
estava satisfeito, tanto quanto isso era possível em meio
aos acontecimentos.
No entanto, dizia-se que seu cérebro possuía uma
elevada capacidade parapsicológica. E quase todos os
visitantes que naquele dia compareceram ao QG haviam
menosprezado esse fato. Só um homem estava meditando
a respeito. Para ele, a idéia constituía um foco de
permanente inquietação.
— Deixemos que os dados rolem — murmurou
Mercant.
86
3
Duas horas da madrugada. Num gesto brusco, o
homem magro que ostentava as divisas de tenente-general
baixou a mão.
No mesmo instante, irromperam as fúrias do inferno.
As bocas de cerca de seis mil canhões e lança-foguetes
começou a cuspir fogo.
Em toda a história militar da humanidade jamais
houvera um fogo cerrado como este. Nunca antes, mil e
quinhentas baterias, quase todas compostas dos calibres
mais pesados, concentraram seu fogo sobre um alvo que
não era maior que um jardim.
O cerco continuava com a única diferença que novas
divisões haviam sido mobilizadas nos últimos trinta dias.
Desde alguns dias antes, o território delimitado pela
cúpula energética passara a ser bloqueado por um cordão
quíntuplo de tropas.
Pouco depois da abertura do fogo, seis mil projéteis
de calibres variados golpearam a cúpula protetora. A
pontaria foi concentrada numa área de cinquenta metros
quadrados, situada a vinte metros acima do solo.
Foi ali, e somente ali que detonaram cargas
explosivas. Era a última tentativa de romper a muralha
energética, após uma série de ataques infrutíferos.
O QG ficava numa elevação, a treze quilômetros da
linha divisória do território ocupado por Rhodan.
As posições de artilharia ficavam mais ao norte. As
baterias pesadas foram instaladas a trinta quilômetros do
alvo. Os canhões convencionais voltaram a ser utilizados,
pois ao que tudo indicava o pequeno grupo que ocupava o
território bloqueado fora reduzido à imobilidade.
Já não se notava o menor indício de um estado de
ausência de gravidade. Por isso, o general Tai-tiang
ordenara o novo ataque.
Os oficiais de seu estado-maior olhavam fixamente
para o alvo. Entre eles havia cientistas, inclusive peritos
em armamentos. A força de impacto dos projéteis que
atingiam o alvo ao mesmo tempo chegava a vários
milhões de toneladas. As ondas de pressão que se
sucediam sem cessar teriam sido suficientes para aplainar
uma cadeia de montanhas. Ficaram observando o
espetáculo durante quinze minutos, sem trocar uma única
palavra. A essa distância, a área atingida parecia uma
mancha incandescente de dez centímetros, que constante-
mente expelia raios fulgentes.
A cúpula energética, normalmente invisível, emitia
um brilho esverdeado. Junto ao local dos impactos
assumia uma tonalidade violeta. Nada mais aconteceu. A
cúpula reluzente parecia um símbolo brilhante em meio à
noite impregnada de uma luminosidade vermelha.
— Este bombardeio arrasaria as fortalezas mais
resistentes do mundo — disse Tai-tiang, em tom
ressentido. — De que tipo de máquinas disporá essa
gente? Como será possível resistir a um fogo cerrado
destes com a mesma facilidade de quem se abriga de
bolinhas de gude atiradas contra uma parede de aço? O
que está acontecendo?
O chinês voltou à cabeça num gesto repentino. Seus
olhos pareciam chispar fogo. Tai-tiang sabia
perfeitamente que estava prestes a atirar outro bilhão do
patrimônio do povo contra uma parede misteriosa.
— Os ilustres cientistas envolvem-se num silêncio
desnorteante — resmungou. — Muito bem! Será que seus
colegas do Ocidente têm alguma coisa a dizer?
As equipes de observação de americanos e europeus
haviam chegado quinze dias atrás. A delegação do Bloco
Oriental presenciara o fracasso catastrófico do Exército
Asiático desde o início. Os conselhos e as recomendações
tornavam-se cada vez mais raros. E agora, os colegas do
Ocidente viram-se brindados com olhares irônicos.
Um dos maiores físicos nucleares dos Estados
Unidos procurou fazer-se ouvir por cima do trovejar dos
canhões distantes. Só com grande esforço, aos gritos,
conseguiu ser entendido.
— Cavalheiros, deixamos perfeitamente claro aos
senhores e aos seus governos que nem mesmo nós
dispomos do elixir da sabedoria. Aqui nossos
conhecimentos científicos e a experiência dos nossos
técnicos esbarram numa muralha intransponível.
Recomendo encarecidamente que voltem a consultar as
equipes médicas e psicológicas. Se algo puder ser feito,
isso só é possível através da prostração nervosa dos
inimigos que se encontram cercados.
— Tentaremos no devido tempo — disse o
comandante em tom nervoso. - Acha que foi por nada que
tivemos o trabalho infernal de instalar estas baterias?
Lançamos mão de quase toda a frota de aviões de
transporte da Federação Asiática para garantir o
abastecimento de munições. Não compreendo que os
senhores não estejam em condições de fornecer qualquer
cálculo aceitável. Deve haver uma maneira de destruir
esse complexo. Se para isso precisarmos de mais mil e
quinhentas baterias, é só avisar.
A discussão tornou-se mais acalorada. Há apenas
treze quilômetros dali, um verdadeiro inferno foi
desencadeado num espaço bastante restrito.
— Eu ficaria louco se estivesse ali — disse um civil
de estatura baixa e lábios ressequidos. Seus olhos
procuraram a figura alta em meio à penumbra do abrigo
de observação.
O homem aproximou-se. Apesar da elasticidade dos
seus passos, parecia arrastar os pés. Quando surgiu na luz
débil das lâmpadas semiapagadas, seu rosto exprimia uma
tranquilidade surpreendente.
Sem dizer uma palavra, dirigiu o potente binóculo
para oeste. Logo após, lançou um olhar sobre o relógio.
Perto dele, a luminosidade verde de um isqueiro
rompeu a escuridão. O tenente Peter Kosnow, agente
especial dos Serviços Secretos do Oriente, fumava em
baforadas rápidas e nervosas.
Este se sentia tomado de sentimentos caóticos. Não
era fácil ficar parado em meio àquele ajuntamento de
oficiais de alta patente. Em condições normais, Kosnow
não teria dado a menor importância aos militares. Até
então, os poderes extraordinários de que se achava
investido haviam bastado para manter um relacionamento
satisfatório também com esse tipo de gente. Na maioria
das vezes, tinham de submeter-se às ordens dele, que não
passava de um simples tenente do Serviço Secreto. A
situação não sofrera qualquer modificação, pelo menos
nas aparências. Enquanto não se conseguisse enxergar
atrás da testa daquele homem robusto, ele continuaria a
ser considerado o representante de uma organização
superpoderosa.
Ele mesmo, porém, acreditava que todos notariam a
26
27
87
inquietação de que se achava possuído. Tornou-se
inseguro e insatisfeito consigo mesmo. Lutou para manter
o autocontrole e esforçou-se para não despertar a menor
desconfiança.
Pensou no cigarro que mal começara a fumar. O
brilho apagou-se. Só o rosto estreito do homem que se
encontrava diante dele destacou-se na luminosidade dos
televisores.
No íntimo, Kosnow começava a duvidar de seu novo
amigo. Nem por um segundo chegou a pensar na
possibilidade de que o capitão Albrecht Klein, agente
especial do Conselho Internacional de Defesa pudesse
cometer uma tolice. O que não o impedia de achar que a
audácia do colega constituía uma rematada loucura.
Kosnow reprimiu um pigarro. A discussão travada
em altas vozes entre os oficiais e cientistas veio bem a
propósito, pois fornecia uma verdadeira cortina sonora
que encobria a conversa dos dois homens.
Albrecht Klein, promovido havia apenas três
semanas pelo próprio Allan D. Mercant, ao posto de
capitão do CID, descansou o binóculo num gesto
vagaroso. Lançou um olhar perscrutador para os homens
que gesticulavam nervosamente. Permitiu-se um repuxo
irônico dos cantos da boca.
— São exatamente dez horas e dezoito minutos —
disse em voz baixa. — O que houve meu camarada? Seu
rosto parece ter sido tirado de um museu de cera!
Kosnow soltou um palavrão. Sua voz tinha um tom
gutural. Klein continuou:
— Há seis horas que o grupo de transportes pousou
na Sibéria. Há esta hora, a nave lunar de vocês já deve ter
a bordo a nossa nova bomba. E eu não gosto de nada
disso.
Depois, em silêncio, examinou o seu colega do
Oriente com um olhar atento. Os olhos de Kosnow
estavam fixados na cúpula energética que se desenhava
nitidamente em meio à noite.
— São formidáveis — cochichou ao ouvido de
Klein. — Se tivessem praticado o menor ato que pudesse
ser considerado um atentado aos direitos humanos eu
seria o maior inimigo deles — e também de você. Mas
como as coisas estão não posso; e isso me deixa doente.
Você compreende amigo?
Klein deu uma risada.
— A quem vai dizer isso! Só sei que impediram a
guerra nuclear que estava para ser iniciada. Também sei
que Rhodan não pretende favorecer qualquer das partes.
Tenho um medo terrível de que amanhã ou depois as
coisas mudem. A desconfiança e o medo que reinavam
entre os homens cederam porque um novo inimigo surgiu.
Como se sentem diante de uma ameaça comum, adota um
procedimento comum. E isso vale muito. Ninguém teria
alcançado a tão desejada paz mundial de forma mais bela,
rápida e eficiente. Enquanto Rhodan desempenhar as
funções de terceira potência, nós formaremos uma
unidade coesa. Quanto mais durar, tanto mais
intensamente a idéia do seu poderio inacreditável
penetrará na mente dos homens e mais fortemente
solidificaremos nossa união. Se a situação perdurar por
mais alguns anos ou décadas, teremos uma Terra unida.
Nestas condições, não vejo por que lançar mão de todos
os recursos para eliminar Rhodan. Quando ele estiver
liquidado, a guerra fria irromperá de novo. Sejamos
honestos quanto a isso!
— É uma conclusão clara e absolutamente lógica —
Kosnow esboçou um sorriso triste. — Mas há um senão.
Ninguém sabe que rumo tomará a personalidade de
Rhodan. Ele não passa de um homem, mesmo que
estejamos entusiasmados por ele.
— Sou o único homem que manteve contato pessoal
com ele depois que pousou na Terra. Também sou o único
que viu o tal Crest. A esta altura, nossos ilustres chefes já
chegaram à conclusão de que um ser extraterreno se
encontra em companhia de Rhodan. Isso revela um poder
de observação genial. Acontece que não viram Crest.
Estou convencido de que Rhodan é predestinado a cuidar
de toda a Terra. Decida logo, Peter! Veja o nosso
exemplo. Quando nos encontramos há cerca de dois
meses, pegamos instintivamente nas armas.
— Rotina. E reflexo condicionado — retificou
Kosnow.
— Pode ser. Tanto pior, se tivermos de nos exprimir
por essa forma. A esta altura, acho que não é mais que
nosso dever fazer alguma coisa pelo mundo que vivemos.
Para mim a guerra nuclear frustrada graças à intervenção
de Rhodan representou o golpe final. Que diabo! Até onde
chegamos! Vivíamos todas as horas do dia num medo
constante do amanhã. Não quero que isso se repita. Uma
tentativa malograda basta! Bem, não tenho mais nada a
dizer. Já o informei sobre o resultado da conferência da
Groenlândia. A bomba ainda é um assunto rigorosamente
confidencial. Nenhum dos homens que aqui se encontram
sabe coisa alguma a respeito. Até mesmo o general Tai-
tiang é um homem tão sem importância que não merece
ser informado sobre a nova arma nuclear. Segundo a
vontade dos grandes chefes, o bombardeio da cúpula não
passa de uma manobra planejada e executada de forma a
mantê-lo ocupado e para desviar a atenção que poderia ser
atraída pelo lançamento de naves tripuladas. Depois que a
base na Lua tiver sido destruída, os chineses evacuarão a
área e um bombardeiro ocidental soltará uma única
bomba sobre a região.
O capitão Klein voltou a olhar para o relógio. Seus
trajes escuros mal se destacavam da escuridão que reinava
no fundo do abrigo. Kosnow permaneceu calado. Seus
dentes vigorosos morderam o lábio inferior. Ainda
hesitava.
— Minha missão começará dentro de oito minutos.
Você participará dela. Decida logo! Aqui ainda podemos
falar à vontade.
A figura de Klein submergiu na escuridão. Alguns
segundos depois ele fez continência a alguns oficiais
uniformizados dos Serviços Secretos das três potências
que participavam da operação.
O representante do Serviço de Defesa da Federação
Asiática era o major Butaan; o do Serviço Secreto do
Bloco Oriental, o coronel Kalingin; e o do CID, o coronel
Cretcher.
Haviam elaborado um projeto conjunto cujo valor
prático seria testado por um comando composto de
agentes especiais do Ocidente e do Oriente.
Peter Kosnow também surgiu na luz abafada. Gestos
rápidos, palavras ditas em voz alta.
O general Tai-tiang juntou-se aos homens que
aguardavam. Seu aperto de mão foi cordial, mas seus
olhos negros emitiam um brilho frio. 29
88
— Agirei conforme o combinado. Procurem
executar os planos dos serviços de defesa. Se
conseguirem poderão contar com a nossa gratidão.
Quando pretendem penetrar na área bloqueada?
— As três em ponto, senhor — respondeu o capitão
Klein. — Pedimos-lhe encarecidamente que volte a
transmitir instruções precisas aos comandantes das
respectivas unidades. Não gostaríamos que nossa gente
nos matasse por engano.
O general chinês franziu a testa. Depois sorriu. Ao
que parecia, a expressão “nossa gente” soara um pouco
estranha aos seus ouvidos.
— Não se preocupem. Não haverá nenhum engano
da nossa parte. O helicóptero está esperando.
— Está na hora — insistiu o coronel Cretcher.
— É necessário que nossos homens estabeleçam
contato antes do nascer do sol — interveio o coronel
Kalingin. — Se Rhodan reagir conforme desejamos,
poderão suspender o fogo às oito da manhã.
— Tomara que isso aconteça — murmurou Tai-
tiang. — Soltem o demônio em tempo e tenham cuidado
para não contaminar os nossos soldados. De que se trata?
O coronel Cretcher não satisfez a curiosidade do
chinês.
— Trata-se de uma descoberta dos cientistas
ocidentais — limitou-se a dizer. — O senhor há de
permitir que nos retiremos.
Klein e Kosnow desceram em companhia dos
oficiais. Numa das salas do abrigo fora instalada a central
de comando dos Serviços Secretos. Um médico aplicou as
últimas injeções. Isso foi feito com uma seringa
hipodérmica especialmente esterilizada e guardada, que
injetou o medicamento diretamente na corrente sanguínea.
— Alguma reação? — perguntou o médico. —
Tonturas, perturbações do equilíbrio, sensação de calor?
— Nada, doutor — informou Klein. — Tomara que
isso faça efeito. Não estou disposto a aparecer aos homens
na forma de um monstro inchado.
— O senhor nem teria tempo para isso — observou
um dos radiobacteriologistas. — Sob as condições
químicas aqui reinantes, os germes cultivados estão em
condições de viver e multiplicar-se. A única coisa que têm
a fazer é abrir às escondidas as válvulas das pequenas
garrafas de pressão. Um ligeiro chiado será inevitável.
Tenham cuidado. Não se esqueçam de que, apesar das
vacinas de alta eficácia, não será conveniente que o jato
de plasma entre em contato com o rosto. O líquido está
cheio de micro-organismos dos tipos mais perigosos. Não
posso revelar mais nada.
— Toda a área situada no interior da cúpula
energética será contaminada? — perguntou Kosnow.
— O que mais você quer? — respondeu o coronel
Kalingin, asperamente. — Se conseguirmos introduzir
esta substância radiobiológica na área cercada pelo
anteparo de radiação energética, dentro de poucas horas
toda e qualquer forma de vida estará extinta no interior da
cúpula. Dessa forma, poderíamos levantar acampamento.
Nem mesmo o Dr. Haggard conhece qualquer remédio
contra esses germes.
Ao receber a garrafa de aço, que não tinha mais de
quinze centímetros, o capitão Klein sentiu a garganta
ressequida. Parecia um bujão de oxigênio de um aparelho
para respiração. A única diferença é que, ao contrário
daquele, sua carga era a mistura mais infernal jamais
produzida nos laboratórios secretos dedicados à guerra
bacteriológica.
Ao que parecia, o coronel Cretcher estava
percebendo a repugnância de seu agente.
— Klein, quem lhe confiou esta missão foram os
representantes oficiais de toda a humanidade — disse em
tom apaziguador. — Você parece ter captado uma certa
admiração de Perry Rhodan. Há poucas semanas, este lhe
permitiu que penetrasse na cúpula energética, onde
mantiveram ligeira palestra. Tente entrar de novo. Diga
que conseguiu passar às escondidas e contra a nossa
vontade pelos cordões de tropas que isolam a área, a fim
de conferenciar com Rhodan a pedido de um grupo
revolucionário. Você leva uma vantagem enorme: já o
conhece. Uma vez lá dentro, abra a válvula da garrafa de
pressão sem que ele desconfie. Uma carga é suficiente.
Invente qualquer coisa para fazer com que Rhodan
acredite na sua missão revolucionária. É só.
Klein engoliu em seco. Parecia ter os olhos em fogo
no rosto pálido.
— Sim, senhor — disse com a voz pesada. — Estou
acostumado a fazer serviços desagradáveis, mas este
negócio me parece muito sujo.
— O trabalho dos serviços secretos nunca foi muito
nobre — resmungou Kalingin. — Francamente, capitão
Klein; não entendo os seus escrúpulos. Nosso pessoal não
costuma ser assim.
O coronel Cretcher lançou-lhe um olhar de
advertência. O rosto de Peter Kosnow continuava
impassível.
— Pois é isso! — observou o major Butaan. Não
disse mais nada, mas Klein teve a impressão de que o
asiático seria um inimigo perigoso. O radiobiólogo
americano, cujo rosto estava um pouco pálido, explicou:
— Capitão, apesar das ordens que tenho quanto ao
sigilo, compreendo seus escrúpulos. Asseguro-lhe que
essa arma não é a mais diabólica que temos em nosso
arsenal. Os germes que se encontram nessas garrafas
produzem uma infecção imediata, seguida de uma
inchação dos tecidos do corpo. Mas se o antídoto for
ministrado dentro de oito horas após a contaminação, o
restabelecimento é absolutamente seguro. É claro que
dispomos desse antídoto. Portanto, tudo dependerá de
Perry Rhodan, exclusivamente dele, que poderá seguir as
instruções que transmitiremos pelo rádio e pelos alto-
falantes, abandonando o território bloqueado dentro de
oito horas. Acho que é uma solução humana.
Klein preferiu não responder. Não apenas seria
inútil, como também perigoso. O major da Federação
Asiática observava-o com uma expressão de desconfiança
nos olhos entreabertos. Antes que os dois agentes se
retirassem, Butaan disse, em tom enfático:
— O tenente Li Shai-tung, representante dos
Serviços Secretos da Federação Asiática, está esperando
no helicóptero. Fazemos questão de que ele tenha uma
participação bastante ativa na missão especial. Entendido,
capitão Klein?
O homem louro baixou os olhos para o malaio
franzino.
— Perfeitamente, senhor! — soou a resposta,
proferida em tom frio. — Não vejo nenhum motivo para
que Li Shai-tung não participe.
31
89
Klein lembrou-se das ordens que recebera. Já se
encontrava na Ásia o tempo suficiente para saber que ali
não se costumava respeitar os melindres alheios. Isso
aplicava-se especialmente ao Serviço Secreto da
Federação Asiática.
— Se necessário, deverá sacrificar-se no interesse da
causa comum — foram as instruções. Klein sentiu um
gosto amargo na boca.
Pouco depois, os agentes se retiraram.
Ao saírem do abrigo de grande profundidade, foram
recebidos pelo rugido infernal das peças de artilharia. Ao
norte, as bocas dos canhões expeliam sem cessar os seus
lampejos para o céu. Parecia uma fita rubra feita de
chamas.
Diante do abrigo, o helicóptero estava à espera. O
tenente Li encontrava-se no comando. Já tinha recebido as
últimas injeções. De acordo com o plano, aproximar-se-
iam da cúpula num ponto situado além da área alvejada
pela artilharia e ali procurariam entrar em contato com
Rhodan através do equipamento portátil de radiofonia.
A máquina potente dos serviços de defesa entrara
em funcionamento. Nenhum detalhe fora esquecido.
Ninguém cometera o menor engano.
Havia, porém, uma circunstância da qual ninguém
suspeitava. Nenhum dos oficiais tinha a mais leve ideia a
respeito de como os três se entendiam e não se tinha a
mais leve desconfiança de que eles também estavam
empenhados em preservar a paz para a humanidade.
E assim, um americano de descendência alemã, um
russo e um chinês subiram para o céu entrecortado de
projéteis. Depois de terem contornado a área alvejada e
quando se aproximavam da cúpula energética, Li Shai-
tung perguntou, após um ligeiro pigarro:
— Tudo em ordem por aí? Já estão cientes de que
arriscamos nossas cabeças, não estão?
Kosnow sorriu, mas não respondeu. Em vez disso,
dirigiu-se a Klein num tom estranho:
— Agora, sejamos sinceros, camarada! Que tal seu
chefe todo-poderoso? Por que você ficou preocupado com
o sorriso que ele deu quando você solicitou autorização
para esta missão especial? A ideia da introdução dos
germes na área da cúpula foi sua, não foi?
Klein fez que sim. Empalidecera. Seus olhos claros
exprimiam uma grande inquietação. Falando com a voz
abafada, disse:
— Mercant é um sujeito formidável, mas nunca se
sabe o que ele traz na cabeça. Com ele, até os melhores
psicólogos falham. Não há como interpretar seus atos.
Dizem que é dotado de faculdades espirituais
extraordinárias.
— O que não é estranho num mundo como o nosso.
— Sem dúvida. Mas pela idade de Mercant, os genes
de seus progenitores não podem ter sofrido qualquer
dano. Quando ele nasceu, ninguém ao menos desconfiava
de reatores atômicos ou bombas nucleares. Se o homem é
extraordinário, as causas devem ser outras. Dizem que em
todas as épocas houve casos de mutação espontânea.
— Por que isso o preocupa? Ele não o autorizou a
realizar a missão?
— Autorizou — disse Klein. — Atendeu ao meu
pedido de transferência e até providenciou a arma
biológica. Apenas, ao despedir-me dele, tive a impressão
de ter sido penetrado até as profundezas mais recônditas
dos meus pensamentos. Comportou-se como um adulto
que percebe a travessura do filho, mas faz de conta que
não sabe de nada. É uma sensação desagradável.
Os dois homens ficaram calados. Kosnow apagou o
cigarro. Depois, começou a falar, expondo com precisão
suas ideias.
— Existem duas possibilidades. Se adivinhou suas
intenções, não tem objeção a que você dê uma dica a
Rhodan. Daí se concluiria que está de acordo com as
medidas tomadas por ele. Talvez compreenda que sua
atuação constitui a melhor garantia para a paz mundial.
Seria mesmo de admirar se um homem com suas
qualidades ainda não tivessem chegado a essa conclusão.
Se não adivinhou, você está vendo fantasmas. Mude de
rumo, Li. Dê o sinal luminoso às tropas estacionadas em
terra, senão poderemos receber uma rajada bem no meio
do peito.
Foi esse o começo da missão daqueles três homens
que sabiam, no íntimo, o quanto seus chefes estavam
totalmente enganados.
O capitão Klein segurou a garrafinha de pressão.
Antes que o helicóptero iniciasse as manobras de
aterrissagem, disse em tom grave:
— Vejam só! Fabricamos esta coisa maldita para,
eventualmente, atirá-la na cabeça de vocês. Muito
interessante, não é?
— Não se preocupe — ironizou Kosnow. — Temos
coisas parecidas. Também acredito que já está na hora de
destruirmos brinquedos deste tipo. Mas, oportunamente,
teremos que trocar algumas palavras sobre nossas
concepções ideológicas.
— Ainda bem que isso não interfere no seu desejo
de paz — disse Klein em tom irônico. — Não estava nas
intenções do Criador que uns palhaços coloridos de
ideologia andem se despedaçando apenas por não lhes
convir a opinião dos outros homens, que também são
criaturas de Deus.
— Você fala que nem minha mãe — murmurou
Kosnow. — Está certo. Não falemos mais nisso. Estou
ardendo de curiosidade para ver Perry Rhodan.
90
4
Os homens resolveram resguardar-se com os grossos
abafadores, como se o simples fato de estarem protegidos
das violentas ondas de som fosse a mais eficiente
panaceia contra o poderio dos atacantes.
Com um gemido abafado e medo nos olhos, haviam
colocado os capacetes poucos segundos após um novo
ataque de artilharia. Só mais tarde ligaram os contatos dos
aparelhos de comunicação.
Perry Rhodan já chegara à conclusão de que as
coisas não poderiam continuar como estavam. Os
acontecimentos pareciam evoluir inexoravelmente em
direção a uma catástrofe.
Num acesso de fúria, Reginald Bell tentara
influenciar as tropas que os cercavam através do
psicoirradiador. A tentativa revelara-se inútil, pois até
mesmo os postos avançados haviam cavado seus abrigos
muito além do alcance do instrumento.
O neutralizador gravitacional também falhara. Por
ali não havia nada que pudesse ser atingido e neutralizado
com o pequeno instrumento. Nem mesmo as granadas que
os canhões expeliam sem cessar puderam ser desviadas.
As baterias estavam com a pontaria bem ajustada e
dispunham de tabelas de tiro calculadas com exatidão.
Toda vez que o aparelho antigravitacional começava a
funcionar, os artilheiros ajustavam suas peças. Os
foguetes teleguiados tinham uma precisão extraordinária:
atingiam sempre o mesmo ponto.
Uma hora depois de iniciado o bombardeio, o tremor
do solo tornou-se insuportável. O reator dos arcônidas
começou a emitir uma luminosidade azulada. A cúpula
protetora também mudou de cor.
Rhodan teve a impressão de que os solavancos do
solo prejudicavam o funcionamento do instrumento.
Com os olhos cerrados, observou o incrível fogo que
se desenvolvia a leste. Já desistira de usar o raciocínio
para calcular causas e efeitos. Numa oportunidade destas,
o cérebro humano revelava-se insuficiente. Não saberia
conjeturar sobre o tempo que a cúpula energética poderia
resistir ao formidável bombardeio. Talvez, os fenômenos
luminosos que tanto o preocupavam fossem totalmente
inofensivos; poderiam representar um efeito normal do
aumento de desempenho do reator.
Mas também era possível que o brilho azulado
anunciasse o fim próximo. Uma vez que o impacto dos
projéteis concentrava-se num ponto da cúpula, verificava-
se um enorme deslocamento de forças. Com uma
preocupação crescente, Rhodan perguntou-se se na
construção do aparelho fora prevista uma sobrecarga
dessas. Não havia dúvida de que a reação dos chineses
fora muito inteligente.
Depois de uma hora, a situação na cúpula tornara-se
insuportável. Se os excelentes abafadores não estivessem
a bordo, pelo menos o Dr. Manoli, um homem bastante
instável, já teria enlouquecido. Não fora feito para resistir
a uma provação desse tipo.
Bell e Rhodan aceitavam os acontecimentos com um
sorriso feroz. Sabiam que, se não recebessem auxílio de
fora, não só continuariam isolados, como correriam grave
perigo.
Pelas duas e cinquenta, Rhodan começou a temer o
colapso da cúpula energética. Parado diante do reator
cilíndrico observava os fenômenos luminosos que
arruinariam os nervos de qualquer pessoa. Não pôde ouvir
os ruídos de funcionamento, que por certo haviam
aumentado. O barulho infernal das explosões abafava
tudo.
As débeis lâmpadas fluorescentes da tenda haviam
se quebrado. O duro solo do deserto absorvia as
vibrações, para transmiti-las sob a forma de um
verdadeiro terremoto. A cúpula energética não oferecia
muita proteção contra esse inconveniente.
Para disporem de alguma luz, os tripulantes da
Stardust penduraram lâmpadas a pilha nos suportes da
tenda. Na sala que servia de enfermaria fora instalada uma
iluminação impecável. Ao que parecia, a moléstia de
Crest aproximava-se da fase crítica.
No início do bombardeio, o Dr. Haggard despertara,
num sobressalto, do sono profundo em que estivera
mergulhado. Até então, o Dr. Manoli acompanhava o
paciente.
Ao que parecia, o incrível sistema circulatório de
Crest resistira à segunda injeção. Não havia a menor
dúvida de que os sintomas da leucemia haviam
desaparecido por completo. O espectro sanguíneo não
apresentava a menor anomalia. Assim mesmo, porém,
Crest continuava mergulhado em profunda inconsciência.
Com passos leves, Rhodan saiu de perto do reator.
Parecia recear que a qualquer momento, o aparelho
extraterreno, cuja capacidade de desempenho era mais
que misteriosas, entrasse em colapso. As consequências
seriam catastróficas. Reginald Bell colocara-se,
novamente, diante das telas do radar que haviam sido
retiradas da nave.
Tratava-se dos instrumentos mais aperfeiçoados
jamais produzidos na Terra. Eram feitos à prova de
vibrações e de impactos de considerável força. Resistiram
perfeitamente ao pouso forçado na Lua e, ao que tudo
indicava o bombardeio não lhes estava causando o menor
dano.
A tela do localizador de radar permitia a visão das
posições mais afastadas do inimigo, desde que o aparelho
fosse ajustado para o aumento máximo.
O instrumento de localização infravermelha fornecia
quadros excelentes das posições de artilharia situados na
outra margem do rio. O funcionamento do dispositivo
automático de advertência era perfeito, mas o computador
acoplado a ele não teve a menor chance de calcular as
posições do inimigo.
Não havia ninguém numa área de dez quilômetros
em torno da cúpula energética. Nada se movia e não havia
nada que pudesse ser localizado com os instrumentos de
que dispunham, ou atacado com as armas dos arcônidas.
Rhodan aproximou-se lentamente. Mais uma vez,
fixou os olhos nas telas iluminadas. O rosto largo de Bell
estava quase totalmente encoberto pelos abafadores. Só os
olhos azuis brilhavam por baixo da grossa proteção. Mais
uma vez, os microfones presos ao pescoço eram o único
meio de comunicação.
Com as mãos trêmulas, Rhodan estabeleceu o
contato. A primeira coisa que percebeu foi à respiração
ofegante de Bell.
— Se isso durar mais algumas horas, o reator entrará
em pane — disse em tom indiferente. — Acho que, a esta
altura, você já compreendeu.
91
Bell virou a cabeça.
— E daí?
Os lábios de Rhodan estreitaram-se. Lançou um
olhar significativo para o relógio.
— Um homem sensato, que sabe usar a cabeça, não
devia esperar milagres, nem mesmo dos produtos de uma
técnica muito mais avançada que a nossa. Qualquer peça
mecânica pode falhar e... — no seu rosto havia um ar de
riso e resignação — ...é exatamente isso que nos espera. E
há mais um detalhe...
Bell vasculhou o setor ocidental das formações que
os cercavam. O localizador infravermelho, ultrassensível,
chegou a registrar os cigarros acesos dos soldados
asiáticos. A radiação térmica produzia na tela um amplo
anel de pontos incandescentes que se iluminavam a
espaços variáveis. Era um espetáculo estranho.
Bell interpretou corretamente a risada de Rhodan.
Seu rosto, que não era corado, tornou-se ainda mais
pálido. Os olhos lançavam uma indagação.
— Há mais um detalhe — repetiu Rhodan,
pensativo. — O bombardeio continuará por horas a fio.
Acham que conseguirão romper a cúpula energética; e
têm certeza de uma coisa: nossos nervos não resistirão por
muito tempo. Crest é a única pessoa que conhece o reator
e poderia regulá-lo. Mas está mergulhado numa
inconsciência que, segundo os médicos, não representa
maior perigo para ele; para nós, porém, poderá representar
o fracasso total. Se o reator entregar os pontos, seja aos
poucos, seja numa terrível explosão, estaremos
liquidados. Encontramo-nos na iminência de uma
capitulação. Já se deu conta disso?
Os olhos de Bell estavam presos à tela. Um novo
abalo fez oscilar as lâmpadas. As sombras projetadas
sobre as paredes da tenda transformaram-se em quadros
grotescos. Na sala de enfermagem os dois médicos se
sobressaltaram.
Bell lançou um olhar para lá. A sombra de Crest
desenhava-se nitidamente na parede divisória de plástico.
Continuava imobilizado no leito. Alguns robôs-médicos
dos arcônidas estavam inutilizados. Não foram feitos para
resistir a abalos dessa ordem. Por isso, os exames
periódicos de circulação e atividade cardíaca tiveram que
ser realizados pelos dois médicos. Era um trabalho duro,
de grande responsabilidade, e que se tornava ainda mais
difícil face ao estranho organismo de Crest.
— Já me dei conta, sim — respondeu Bell. — Crest
deve ser despertado. Não vejo alternativas. A não ser —
um sorriso esboçou-se no seu rosto — ...a não ser que
você queira entrar em contato com Thora. Muito embora
o último apelo que você fez a sua inteligência não tenha
produzido o menor resultado. Mas, a esta altura, talvez
compreenda que as coisas estão sérias.
— Essa ideia já me ocorreu — respondeu Rhodan.
Segurou a tomada que estabeleceria a ligação. Seus lábios
encresparam-se num sorriso.
— Mas há um, porém, meu caro. Há poucos minutos
o aparelho de radiofonia dos arcônidas deixou de
funcionar. Estamos isolados. Será que você teria coragem
de mexer nisso?
Bell ficou estarrecido. Seu rosto pálido falava por si.
A missão, que tivera um início tão promissor, estava na
iminência de um lamentável naufrágio.
Mas logo reagiu. Sem revelar qualquer sinal de
medo, disse:
— Isso era de esperar. Estão atirando dez mil
toneladas de explosivos sobre a cúpula. É provável que,
além disso, estejam realizando explosões subterrâneas
junto às bordas da mesma a fim de provocar terremotos
artificiais que nos enlouqueçam. Muito bem! O aparelho
não funciona mais! Quando é que Thora saberá disso?
— Por ocasião do próximo contato diário, previsto
para as oito horas. Se não houver resposta, intervirá.
Bell engoliu em seco. O rosto magro do ex-major
transformara-se numa máscara rígida.
— O que significa isso? — perguntou Bell em tom
apressado.
— O quê? — Rhodan girou o regulador do volume.
A voz potente de Bell soara com uma intensidade
excessiva.
— Bom... Embora Crest nos tenha promovido à
classe D da escala de inteligência dos seres galácticos, ela
ainda se recusa a reconhecer-nos como seres que devem
ser tratados de igual para igual. Se não respondermos ao
contato de rotina, e se as excelentes sondas automáticas
constatarem que a nossa cúpula está sendo bombardeada,
possivelmente concluirá que alguma coisa aconteceu a
nós e a Crest. Nesse caso, deixará de lado todos os
escrúpulos. Será apenas a comandante de uma nave
espacial de combate. E ela já esteve muito perto de dar
uma lição amarga à humanidade. Bem, veremos! Mas,
como é? Você teria coragem de mexer no equipamento de
radiofonia dos arcônidas, ou não?
A mão de Rhodan tocou nos pinos de contato. Seus
olhos cinzentos emitiam um brilho frio. Bell teve a
impressão de que Rhodan estava prestes a tomar uma
decisão importante.
— Prefiro sentar numa chapa de fogão sem qualquer
vestimenta protetora — disse. — Não entendo coisa
alguma dessa geringonça. Não seria capaz de consertar
um contato frouxo. Não consigo sequer abrir as chapas de
revestimento do aparelho. Não há tesoura que as corte. Já
tentei. Não existem parafusos, grampos ou outros
dispositivos de fixação. Parece que foi tudo fundido em
uma única peça. É claro que pode ser aberto, mas eu não
sei como.
— Então, nada feito? — perguntou Rhodan, como se
quisesse ter toda certeza.
Bell sacudiu a cabeça. Rhodan continuou:
— Você há de compreender que jamais serei capaz
de expor a humanidade à fúria da nossa amiga
comandante.
Bell não respondeu. Sabia disso.
— Ótimo! Quer dizer que estamos de acordo.
— Você devia procurar um meio de avisá-la —
exclamou Bell em tom insistente. — Se tivermos que
desistir, devemos providenciar ao menos para que ela tire
Crest daqui.
— É exatamente o que penso — disse Rhodan com
voz pausada. — Se Crest não despertar até às oito horas,
pedirei que a grande estação de telegrafia de Nevada
Fields expeça uma mensagem não codificada. Com os
aparelhos da Stardust não conseguiríamos atingi-la. Se
Mercant tiver alguma inteligência, atenderá
imediatamente a minha solicitação. Compreenderá que
nem ele nem qualquer outro homem têm o menor direito
sobre Crest. Thora está em condições de libertá-lo a
37
92
qualquer momento. Acho que sabemos perfeitamente o
que nos espera depois disso.
— Tente! — cochichou Bell com a voz perturbada.
— Santo Deus, tente! Thora é uma criatura imprevisível.
Rhodan desligou o contato. A voz de Bell cessou
abruptamente. Eram pouco mais de três horas quando
Perry Rhodan afastou cuidadosamente a cortina.
O rosto estreito de Crest, encimado por uma testa
alta, estava banhado em suor. Jazia imóvel no leito.
O Dr. Haggard voltou à cabeça. Rhodan estabeleceu
o contato com um ligeiro movimento da mão.
— Como está à situação, doutor? — soou a voz nos
fones embutidos no capacete acústico de Haggard. —
Peço-lhe que fale com toda a franqueza. Estamos no fim.
O reator começou a mudar de cor e as comunicações
foram interrompidas. Como estão as coisas?
Haggard era daqueles homens que sabem esquecer
que têm nervos. Não demonstrava a menor emoção.
— Os efeitos colaterais eram imprevisíveis — disse
laconicamente. — Crest suportou as injeções muito bem.
O soro fez efeito; está curado da leucemia. A circulação é
absolutamente estável, o coração não apresenta a menor
anomalia. O espectro sanguíneo não oferece motivo para
preocupação. Não sei por que não acorda.
— Tem de acordar! Procure compreender — insistiu
Rhodan. — Até às oito horas tem de atingir um nível de
consciência que lhe permita, ao menos, nos ministrar
algumas instruções. Se não respondermos ao chamado de
Thora, as fúrias do inferno desabarão sobre nós.
— Por que ela não aparece logo numa das suas
legendárias naves auxiliares? — irrompeu o médico num
acesso de fúria. — Para ela devia ser fácil livrar-nos da
situação em que nos encontramos. Acho seu
procedimento muito estranho. Entrega aos nossos
cuidados um homem muito doente para que tentemos
salvá-lo com os recursos que dispomos aqui na Terra, mas
recusa-se a contribuir para sua cura. Para mim, tudo isso
não passa de uma rematada loucura. Se estivesse tão
interessada na saúde de Crest, seria de esperar que fizesse
tudo, tudo mesmo, que está ao seu alcance.
— Doutor, o senhor não compreende a mentalidade
desses seres — objetou Rhodan. Seu rosto assumiu uma
expressão séria. — Thora adota um estranho código de
honra e pureza racial. A educação que recebeu não pode
ser modificada radicalmente de uma hora para outra. Para
ela, somos seres inferiores, com os quais não pode nem
deve manter contato. Se esse contato se tornar necessário,
assumirá a forma de uma lição extremamente dolorosa,
que poderá se transformar num castigo terrível se os
homens se atreverem a lesar a autoconfiança exagerada
que desenvolveu como membro de uma raça superior. Por
favor, procure encarar as coisas numa base puramente
psicológica.
— Em minha opinião, a educação e a presunção
deveriam ser complementadas com um pouco de bom
senso e de lógica — disse Haggard em tom obstinado. —
Quando estou em situação difícil, agarro-me a uma palha.
— Foi o que ela fez ao nos confiar Crest. Impediu
uma guerra nuclear e fez surgir um vulcão em pleno
Saara. Em suma, fez tudo para que Crest dispusesse de
um lugar tranquilo na Terra.
— Quer dizer que ela nada fez pela humanidade?
— Não fez nada especificamente pela humanidade.
Não devemos esperar milagres nem atos de generosidade
desinteressada. Afinal, aquilo que os arcônidas nos
entregam sob a forma de saber e de material há de ser
pago. Thora já agiu contra sua convicção. Confiou em nós
e praticou um ato proibido. É claro que se encontra em
situação difícil. Sua nave espacial não está em condições
de decolar. Os seres degenerados que a tripulam não
podem reparar o defeito que apresenta. As peças
sobressalentes foram esquecidas, o que representa um
desleixo imperdoável. Essa raça chegou ao fim dos seus
dias. Crest, que é a última grande inteligência entre eles,
está gravemente enfermo. Se morrer, ou se qualquer
homem lhe fizer algum mal, Thora verá, nos homens que
habitam este planeta, simples inteligências
subdesenvolvidas. Tomada de uma cólera fria, resultante
principalmente do amor-próprio ferido, começará a
refletir. E refletirá, nos mesmos termos que o senhor usa
quando pensa numa cobaia bonita, cuja vida pouco lhe
importa. Quer dizer, refletirá em termos frios e lógicos,
com certa prevenção contra nós, isto é, em termos injustos
sob o nosso ponto de vista. Não quero assumir o risco de
que isso aconteça, doutor. Lancei-me a esta missão no
intuito de unir a humanidade, para que ela se engrandeça
e fortaleça. Não arriscarei a existência dessa humanidade,
provocando as iras de uma potência infinitamente
superior. Está claro, Dr. Haggard?
Os olhos de Rhodan pareciam feitos de cacos de
gelo. Subitamente, Haggard deu-se conta da força de
persuasão que esse homem sabia irradiar.
Respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. Suas
mãos pesadas seguraram o equipamento de comunicação.
— O que pretende fazer, major?
— Não me chame assim. Fui privado da minha
patente e expulso do corpo de pilotos espaciais. Quero
salvar o que ainda pode ser salvo. Se Crest não despertar
até às oito horas para restabelecer as comunicações com
Thora, capitularei. Ao menos, sei qual é a chave que
desliga o reator dos arcônidas. Já é alguma coisa, não é?
Deu uma risada amarga. Haggard lançou-lhe um
olhar pensativo. Rhodan prosseguiu, enfatizando as
palavras.
— Doutor, Thora dispõe de um excelente
equipamento de televisão. Se não conseguirmos
estabelecer contato telefônico, procurará ver o que está
acontecendo. Se o bombardeio não tiver cessado,
logicamente há de concluir que estamos em perigo, talvez
mortos. Se isso acontecer, o destino da Terra será
horrível. Por isso, farei tudo para que o bombardeio cesse
antes das oito horas. É a única possibilidade de evitar que
essa mulher impulsiva aja com precipitação. Só num caso
extremo fará com que as naves de salvamento entrem na
atmosfera. Farei o possível para que as coisas corram
conforme desejamos, mas ainda existe o risco de que
Thora cometa algum engano, mesmo que o bombardeio
tenha cessado. Vê-se que é uma solução ditada pelas
circunstâncias. Seria bem melhor se Crest pudesse ser
despertado até às oito horas. Talvez o equipamento de
comunicação só tenha sofrido avarias ligeiras. É provável
que consiga restabelecer as comunicações com Thora. Por
isso peço-lhe que faça tudo que estiver ao seu alcance. A
alternativa representará um ato de desespero.
Naturalmente, os chineses cessarão o bombardeio assim
que receberem a minha mensagem. Mas não sabemos
39
93
como agirá Thora.
Rhodan deu de ombros. Haggard baixou os olhos;
sentia-se perturbado. Não mais suportava o brilho
estranho dos olhos de Rhodan.
— O que quer que eu faça? — perguntou o médico.
— Não quero muita coisa. Já que a circulação de
Crest apresenta tão elevado índice de estabilidade, dê-lhe
uma injeção estimulante. Tem um bom estoque delas.
Desperte-o!
Haggard refletiu.
— Sabe que com isso arriscarei tudo?
— Não arriscará nada além do que já arriscamos.
Uma vez que o paciente suportou o soro antileucêmico,
seu organismo também deve reagir bem aos estimulantes.
Faça reviver seu corpo. Não deve ser tão difícil despertá-
lo desse estranho torpor. Vamos logo!
— Só injetarei uma dose que não causaria o menor
dano a um homem normal — disse Haggard em tom
decidido. — Nem uma gota a mais. Entendido? Nem uma
gota a mais!
— É quanto basta — confirmou Rhodan.
Subitamente seu rosto contorceu-se. Num gesto
instantâneo tirou a pistola do coldre e girou o corpo.
Mantendo a arma em posição de tiro, fitou a lata de
conserva que o atingira nas costas com bastante violência.
Mais adiante Bell, quase irreconhecível na luz débil das
lâmpadas, gesticulava e berrava numa agitação tremenda.
Ao menos era o que se concluía pela maneira de agitar os
braços.
Rhodan saltou por cima do leito de Crest. Com mais
alguns passos colocou-se ao lado de Bell. Ajustou os
pinos de contato do aparelho de comunicação.
Imediatamente, o berreiro furioso do engenheiro se fez
ouvir.
— Até parece que você tem protetores nas costas —
esbravejou Bell. — Foi à terceira lata. Olhe esta operação
de localização. Foi feita pelo infravermelho e pelo radar.
Não resta a menor dúvida. São três objetos pequenos que
se deslocam pouco acima do solo, a uma velocidade de
trinta quilômetros. Devem ser três homens. Olhe, a
imagem está perfeita. São três homens, sim! Estão com
equipamento de voo individual.
A exaltação de Bell transformou-se em espanto.
Boquiaberto, fitou a tela do localizador ultrassensível de
radar, cujas imagens eram refletidas com rara nitidez no
vídeo.
Não havia a menor dúvida: era três homens que
traziam nas costas pequenos aparelhos para voo a curta
distância. Distinguia-se perfeitamente o brilho das
lâminas dos rotores que giravam velozmente. Seguindo
uma rota bem definida e voando pouco acima do solo,
iam-se aproximando da cúpula protetora.
Bell voltou a manifestar-se:
— Será que esses camaradas querem furar a cúpula
com a cabeça?
Rápido, Rhodan colocou-se junto ao reator. Uma
ligeira manipulação de uma das chaves, que Crest lhe
explicara poucas semanas atrás, modificou a estrutura da
cúpula energética, de forma a permitir a passagem de
ondas de rádio ultracurtas. Mesmo antes dessa
modificação, a cúpula não representava qualquer
obstáculo à transmissão das mensagens expedidas por
Rhodan. Esse fato constituía outro mistério inexplicável
para a mente de um engenheiro humano. Não havia como
fazer os outros seres humanos acreditarem nisso. Só
mesmo vendo e passando por aquilo.
Rhodan voltou para junto dos aparelhos de rádio. O
grande receptor da Stardust estava funcionando. O
localizador automático de freqüência procurou descobrir
os comprimentos de onda que tornassem possível a
comunicação.
Uma lâmpada vermelha acendeu-se. Era impossível
ouvir o sinal acústico. O rugir das detonações prosseguia
impetuoso.
Os aparelhos portáteis de radiotelefonia foram
ligados ao potente transmissor. Um cochicho fez-se ouvir
nos fones de ouvido:
— Capitão Albrecht Klein chamando o major Perry
Rhodan. Não atirem! Estou com dois colegas. O senhor já
me conhece. Sou Klein, do Conselho Internacional de
Defesa. Estou fazendo esta transmissão com o mínimo de
potência. Peço-lhe que venha até o limite da cúpula.
Preciso falar com o senhor. Não atire, por favor! Não há
perigo. Estamos esperando.
Rhodan retirou o pino da tomada do equipamento de
telefonia. Bell manteve-o ligado. Antes que Rhodan
começasse a falar, disse:
— É o Klein? Deve ter arranjado uma promoção.
Não é o tal sujeito com quem você já facilitou uma vez,
deixando-o penetrar na cúpula? Viu Crest, não foi? Não
gostei dele.
— Pois eu gostei. Vou pegar um dos carros. Quando
eu der a senha, levantando o braço, você vai abrir a
cúpula por exatamente três segundos numa extensão de
dois metros por três. Prepararei a alteração estrutural.
— Você está louco! Se eles mandarem um foguete
teleguiado apontado exatamente para a abertura,
estaremos perdidos. É bem possível que esse Klein leve
um dispositivo direcional por baixo do rotor. Conheço
esses truques, meu caro. Afinal, já fui oficial de
comunicações. Não vou abrir coisa alguma!
Seu olhar era firme e duro. Mas, depois de fitar por
alguns instantes o rosto de Rhodan, que parecia enrijecido
numa máscara, baixou a cabeça.
— Está certo. Quer dizer que aguardo o seu sinal...
Rhodan retirou-se. Levava a tiracolo a grande pistola
automática com os perigosíssimos projéteis minifoguetes.
O bastão prateado que trazia na mão era ainda mais
perigoso. A pequena distância, o irradiador psíquico tinha
uma potência formidável.
Rhodan não pretendia correr o menor risco.
Quando, lá fora, a turbina a gás do caminhão chinês
começou a uivar, Bell continuava a olhar fixamente para o
lugar em que ainda há poucos instantes se encontrava
Rhodan. Parecia sentir o brilho intenso dos olhos do
comandante.
De início, Bell sentira-se seguro de que conseguiria
impedir que Rhodan realizasse seus intentos. Mas acabara
concordando sem discutir. Pálido e trêmulo aproximou-se
dos instrumentos de controle. Comprimiu fortemente as
pestanas, e subitamente voltou a abri-las.
A imagem continuava. O olhar ardente de Rhodan
parecia gravado em seu cérebro. Reginald Bell era um
homem duro e arrojado, dado aos atos irrefletidos.
Manifestava uma tendência irreprimível para as ações
temerárias. Como piloto espacial parecia não conhecer o
41
94
medo. Mas, desta vez, sentia medo.
Antes de iniciar a vigilância dos aparelhos, soltou
uma praga. O veículo de Rhodan corria pela paisagem
pedregosa do deserto, que só de espaço a espaço era
embelezado por uma vegetação escassa. O rio ficava
demasiado longe.
Rhodan seguia um curso que conduzia diretamente
ao ponto em que os três homens haviam descido. Bell, em
poucas palavras, transmitia as correções que se faziam
necessária. Falava num tom apático; sentia a revolta no
seu íntimo. Por que Rhodan conseguira fazê-lo mudar de
opinião de uma hora para outra? Será que...?
Ainda sentia a pergunta martelar-lhe a mente quando
Rhodan parou o veículo. Eram exatamente três e vinte e
dois da manhã. Estava bem junto à barreira energética.
A mão esguia de Rhodan ergueu o radiador psíquico.
Atrás dele, bem ao longe, a luz feérica das explosões
iluminava o cenário. Havia uma claridade intensa, talvez
excessiva. Apesar disso, mal se reconheciam os vultos dos
três homens envoltos em jaquetas. Estavam bem juntos.
Num movimento súbito, Rhodan ergueu a mão. O sinal
significava abrir.
5
Era um risco enorme, muito maior que o da primeira
decolagem de uma nave espacial tripulada.
Naquele dia sabia-se ao menos que os aparelhos
propulsores de reação químico-nuclear do segundo e
terceiro estágios funcionariam. Um sinal de rádio fora
suficiente para acionar os reatores de plutônio de alta
velocidade.
Agora, porém, tudo estava mudado. Medições
precisas e rigorosamente secretas realizadas nas camadas
superiores da atmosfera terrestre revelaram que a cúpula
antineutrônica dos arcônidas atingia uma altura de cerca
de 120 quilômetros.
Isso significava que o processo usual de fissão
nuclear só poderia ser desencadeado além da zona
abrangida pela cúpula. Por isso os peritos do Comando
Espacial dos Estados Unidos tiveram de enfrentar
dificuldades formidáveis, que foram superadas através da
utilização de todos os recursos disponíveis.
Algumas modificações foram introduzidas no
segundo estágio da nave Stardust-II. O estranho campo
antineutrônico criado pelos arcônidas não afetaria as
reações químicas.
A indagação que surgia era se o desempenho do
segundo estágio seria suficiente para conduzir o terceiro
estágio, ou seja, a nave espacial, propriamente dita, a uma
altura superior a 120 quilômetros.
O segundo estágio, formado por uma versão
aperfeiçoada da série Plutão-D, passara por todos os
testes. Os processos químico-nucleares teriam de ser
dispensados. Além disso, a velocidade no fim do processo
de combustão deveria ser suficiente para arremessar a
nave além da zona crítica.
A velocidade com que fosse atingida a zona livre
constituía um fator secundário, que não precisaria ser
considerado. Não havia a menor dúvida de que o potente
mecanismo propulsor da Stardust-II levaria a nave para
além da atmosfera terrestre.
O depósito de combustível químico tinha quantidade
suficiente para a aceleração, a frenagem, o pouso e a
decolagem lunar.
Mas o que se tinha em vista era, tão somente, uma
órbita em torno da Lua, o que, evidentemente, exigiria
muito menos energia que as manobras adicionais de
pouso e decolagem em nosso satélite natural.
Exatamente dezesseis horas antes do início do fogo
cerrado de artilharia, visando uma pequena área da cúpula
energética, o general Pounder acionou o contato de
ligação dos reatores.
Com um estrondo violento, a Stardust-II disparou
para o céu límpido de Nevada.
O comando da expedição lunar armada era exercido
pelo primeiro-tenente Michael Freyt. Em vez do médico,
subira a bordo um perito em armamentos nucleares, que
tinha a seu encargo o controle da nova arma.
O posto de artilheiro era exercido pelo capitão Rod
Nyssen, que assistira às provas iniciais da nova bomba
nuclear catalítica. Como, além disso, possuísse
experiência em voos espaciais, foi indicado para compor a
tripulação da missão armada.
Alguns minutos após a decolagem bem sucedida, os
homens da central de controle tinham os olhos fitos nas
telas de localização e de televisão. O primeiro estágio da
Stardust-II já havia sido separado. O segundo estágio, que
substituía a parte central da primeira nave lunar,
inutilizada nas atuais circunstâncias, entrou em
funcionamento com a perfeição que era de se esperar.
Ainda mais se considerada a massa bem mais leve que era
impulsionada.
42
95
O general Pounder permanecia imóvel diante do
aparelho de teledireção automática. Parecia estar
assistindo à decolagem da velha Stardust, que agora jazia
no deserto de Gobi.
O ponto flamejante continuava bem visível. Depois
de algum tempo, soou a voz metálica do computador de
controle e teledireção.
— Ignição dentro de oito segundos. Tudo preparado
para a separação.
Todos ouviram o estalido seco da carga explosiva. O
impulso do computador número três seguiu a nave
espacial com a velocidade da luz. Ouviu-se a voz do
tenente Freyt; parecia esgotado. Face à modificação dos
estágios, o obstáculo representado pela atmosfera terrestre
teve de ser vencido com um valor gravitacional
martirizante. Mesmo no segundo estágio a pressão
chegara a 11,6 g.
— Freyt ao controle de terra: tudo bem a bordo —
soou a voz áspera do alto-falante. — Impulso de ignição
recebido. Computador de direção automática dando sinal
de confirmação.
— A ignição... a ignição já foi realizada? — indagou
Pounder com a voz apressada. Tinha os olhos presos às
telas dos aparelhos de controle infravermelho, onde a
coluna de gases incandescentes do mecanismo de
propulsão nuclear teria de ser revelada em primeiro lugar.
— Nada — gemeu o engenheiro-chefe. Virou a
cabeça num movimento brusco. — Ainda não saíram da
zona anti-neutrônica. Por enquanto, nada.
— Ausência de gravidade continua. Motor parado
— soou a voz de Freyt em meio ao silêncio deprimente.
— Solicito cálculos definitivos da altura a ser atingida no
final do processo de ignição e em relação ao ângulo de
subida e à influência da gravidade.
O computador já estava funcionando. Dentro de
alguns instantes os dados estavam prontos e eram
transmitidos sob a forma de impulsos de ondas ultracurtas
ao aparelho de direção automática da nave.
Poucos segundos depois, a rota foi modificada em
47,3 graus. O movimento giratório foi realizado pelos
foguetes de combustível sólido acoplados na nave. Com
isso, a Stardust-II abandonou a trajetória vertical e
ganhou uma aceleração de 821 metros por segundo.
As informações eram recebidas sob a forma de
diagramas que deslizavam sobre as telas. Pounder, que já
assistira a muitas decolagens, sabia que a nave entrara
numa ampla órbita elíptica.
Não havia dúvida de que, com isso, sairia do
estranho campo antineutrônico.
Esperavam com o espírito inquieto. Tudo, tudo
mesmo, dependia da possibilidade de se desencadear o
processo de ignição do mecanismo de propulsão nuclear
da nave. Isso não seria possível sem a presença de
nêutrons livres, que eram imprescindíveis no processo de
fissão nuclear.
Quando o primeiro-tenente Freyt iniciou a quinta
transmissão de rotina, sua voz foi subitamente abafada
por um trovejar ensurdecedor. O processo de ignição do
mecanismo propulsor teve início numa altitude de 211
quilômetros.
No mesmo instante, a Stardust-II apareceu na tela do
localizador infravermelho. O calor irradiado pelos
reatores era tão intenso que mesmo os aparelhos menos
sensíveis registraram o furacão nuclear incandescente.
Dentro de poucos instantes, a estação de teledireção
situada na Terra assumiu o controle da nave, colocando-a
em posição vertical. Com a enorme aceleração resultante
do empuxo dos reatores, seria atingida a velocidade-
limite, que os libertaria da gravidade terrestre. Foi então
que os aparelhos de teledireção das estações espaciais
tripuladas entraram em ação.
Já não havia a menor dúvida: a experiência tão
arriscada, que encerrava um fator desconhecido, fora
coroado de êxito. A primeira nave da esquadrilha espacial
terrestre mergulhara no espaço.
Mensagens radiofônicas codificadas correram em
redor da Terra. Dez segundos depois de ter recebido o
sinal convencionado, o marechal Petronskij comprimiu o
botão do dispositivo de ignição.
Imediatamente, o gigantesco foguete do Bloco
Oriental disparou em direção ao céu siberiano. Também
conduzia quatro tripulantes. Um deles, um perito do
Ocidente e que chegara poucas horas antes numa unidade
de transporte dos Estados Unidos, era o responsável pela
nova bomba, que estava na rampa de lançamento,
instalada com todo o cuidado no agora vazio
compartimento de carga.
Quase no mesmo instante, o marechal Lao Lin-to
deu ordem para a decolagem da nave da Federação
Asiática. Houve problemas com os estabilizadores. Por
pouco a nave não se desgoverna, a cerca de trezentos
metros de altura. As câmaras de combustão giratórias do
primeiro estágio e o estabilizador de emergência, montado
no segundo estágio, porém, conseguiram estabilizá-la e
corrigir sua trajetória.
Assim, as três naves partiram com sucesso rumo ao
espaço.
A bordo da nave da Federação Asiática havia
também um perito em armamentos treinado no Ocidente.
Sua única tarefa consistia em fazer com que a bomba
descrevesse a trajetória determinada pelos cálculos,
depois que seu curso tivesse sido regulado com alguma
aproximação pelo dispositivo direcional adaptado à
mesma. Tratava-se de uma arma mortífera, mobilizada
rapidamente por uma humanidade que alcançara a união
por um modo inesperado.
A operação em nada afetava a segurança da Terra.
Nenhuma das bombas explodiria se a decolagem falhasse.
Mas não houve qualquer falha. As três naves
corriam pelo espaço, depois que a Stardust-II, que partira
em primeiro lugar, havia provado que seria perfeitamente
possível sair da zona antineutrônica.
A diferença de tempo, que nestas circunstâncias se
tornara inevitável, não constituía problema para os
computadores que, com uma rapidez fantástica e uma
precisão inconcebível, calcularam a trajetória que cada
uma das naves teria de percorrer para que as três
ingressassem simultaneamente na órbita prevista, que
cobria cada um dos polos lunares. Tratava-se de um
problema puramente matemático, que não dava margem a
qualquer erro.
A estação espacial tripulada Freedom-I, do
Ocidente, também se encarregou da teledireção do
foguete da Federação Asiática. A nave do Bloco Oriental
foi dirigida pelos satélites do Oriente, muito bem
tripulados e equipados.
44
96
Pela primeira vez na história da navegação espacial,
houve um intercâmbio de observações imediatamente
após a decolagem. Uma vez que as duas estações
espaciais percorriam órbitas terrestres bem diferenciadas,
tornou-se possível manter um controle permanente sobre
as três naves. Não foi necessária qualquer interferência
das grandes estações terrestres. De qualquer maneira, a
teledireção a partir de um ponto situado no espaço era
mais fácil e segura.
Assim, os três veículos espaciais cruzavam o espaço.
Doze astronautas dos três blocos de potências da Terra
haviam recebido instruções bem claras.
Só depois de algumas horas, o general Pounder
afastou-se da tela. A transmissão, controlada pelos
tripulantes da estação espacial, não apresentava a menor
falha. Não havia dúvidas de que as três naves se
encontravam na rota determinada.
A Stardust-II, com o mecanismo de propulsão
desligado, seguia em queda livre, a fim de que as outras
naves que haviam decolado depois dela pudessem
alcançá-la.
— Acorde-me dentro de cinco horas — disse
Pounder, com a voz apática, lançando um olhar triste para
o relógio. — Daqui a cinco horas, Maurice. Veja lá!
Cinco horas não são nem seis nem sete.
O major Maurice, chefe do Estado-Maior, limitou-se
a confirmar com um movimento de cabeça. Seguiu a
figura imponente do superior com uma expressão
preocupada no rosto. De alguns dias para cá, Pounder
andava com o corpo inclinado para frente, como se
carregasse um peso às costas.
Por certo, nunca conseguiria livrar-se da tristeza
causada pelo procedimento inexplicável de seu melhor
piloto. Para o general Pounder, o major Perry Rhodan era
quase como um filho.
Mal ele tinha desaparecido atrás das pesadas portas
do abrigo, Allan D. Mercant entrou. Durante a fase de
decolagem, o chefe do Conselho Internacional de Defesa
preferira não se encontrar com o general Pounder, que
estava exausto.
Mesmo agora, aquele homem pequeno e
aparentemente insignificante trazia um sorriso estranho
nos lábios.
— É um oficial competente, dotado de muito senso
de responsabilidade — constatou com ar pensativo. —
Major Maurice, o senhor sabe que foi com a maior
relutância que o general Pounder deu a ordem final de
ataque?
Maurice baixou os olhos. O olhar do chefe do CID
provocava-lhe uma sensação desagradável. Achou
prudente dar uma resposta esquiva.
— Talvez devamos supor que seja assim, senhor.
Afinal, foi o general Pounder que conseguiu pôr a velha
Stardust a caminho depois de enormes esforços. E agora,
vê-se obrigado a fazer decolar uma réplica só que, desta
vez, para fins destrutivos. Tudo isso me dá uma sensação
bastante esquisita.
As pupilas de Mercant se estreitaram.
— Por quê? Receia alguma falha técnica? Acredita
que nossas bombas não explodirão? Fale com franqueza,
por favor.
Maurice ficou indeciso. Mercant estava muito
estranho.
— Nada disso, senhor. As naves atingirão a Lua e as
bombas explodirão, desde que a chamada terceira
potência seja aquilo que as demonstrações ora realizadas
nos revelaram. Mas o fato de não terem procurado
impedir a decolagem de nossas naves me dá uma
sensação bastante desagradável. Acho que pretendem
atacá-las posteriormente, ou então...
— ...ou então? — interrompeu Mercant.
— ...ou então eles nos consideram uns macacos
inofensivos, que não são capazes de realizar um ataque
desse tipo. Queira desculpar a expressão, senhor.
— Pense o que quiser meu caro — respondeu
Mercant em tom enfático. — O senhor se admiraria se eu
lhe dissesse que também já fui dessa opinião?
Não, o major Maurice não se admirou nem um
pouco. Allan D. Mercant era capaz de conceber ideias
muito antes de qualquer outra pessoa.
O chefe das forças de segurança do Ocidente
desapareceu tão silenciosamente como havia chegado.
Ninguém percebeu a expressão de profunda preocupação
que se desenhava em seu rosto liso. O fato é que também
Allan D. Mercant experimentava uma sensação esquisita;
não havia a menor dúvida.
Enquanto isso, as três naves corriam pelo espaço,
mantendo uma aceleração constante. Pelos cálculos
realizados, o ponto de inflexão deveria ser atingido dentro
de quinze horas aproximadamente. As manobras em
órbita poderiam ser completadas em três horas. Dali em
diante, as coisas ficariam sérias.
Allan D. Mercant resolvera passar o momento
decisivo numa estação espacial. Ali não haveria nada que
perturbasse a visão, pois, estaria bem longe da camada
atmosférica que envolvia a Terra. Dez minutos depois,
Mercant decolou num foguete de transporte comum, do
tipo Plutão-D. dotado de mecanismo de propulsão
química.
6
Fazia poucos minutos que a senha fora recebida.
Reginald Bell realizara as manobras estruturais segundo
as instruções que lhe haviam sido ministradas e três vultos
humanos saíram em disparada.
O capitão Albrecht Klein nunca correra tanto. O
salto com que transpôs a pequena abertura da cúpula
energética parecia de um louco.
A figura de Rhodan, alta e ereta, parecia tão
misteriosa e ameaçadora em meio à luminosidade
ofuscante do horrível temporal de fogo que Peter
Kosnow, num gesto instintivo, pôs a mão na arma.
Mas, no mesmo instante, Kosnow viu-se reduzido à
impotência pelo cintilante bastão de prata. A ordem, que
não poderia ser contrariada por qualquer ato de sua
vontade, ainda lhe ressoava no ouvido.
— Fique parado, não se mova, não realize qualquer
tipo de ação.
Só isso. Perry Rhodan já não era o homem que
pousara na Terra poucas semanas antes. Seu rosto esguio
trazia as marcas da preocupação e do sofrimento. Os
lábios trêmulos constituíam um sinal evidente de que
caminhava em direção a um colapso nervoso.
Klein lançou os olhos em torno; parecia atordoado.
97
Nunca imaginaria o efeito do fogo cerrado de artilharia. A
cúpula energética transformara-se numa câmara de som.
Ele sentia como se sua cabeça fosse explodir devido ao
tremendo barulho.
Li Shai-tung também fora privado de sua vontade. O
irradiador psíquico dos arcônidas conservara toda sua
eficácia.
O único que continuava perfeitamente lúcido era
Albrecht Klein. Em compensação, viu-se diante do cano
de uma arma automática que só conhecera nos últimos
estágios do seu treinamento.
Tratava-se de uma pistola-foguete, cuja eficiência já
se tornara conhecida dos membros do exército e da força
espacial.
Por cautela, Klein resolvera erguer as mãos; o gesto
tinha algo de irreal em meio àquele inferno. Dentro de
poucos segundos, percebeu que seria impossível conduzir
o diálogo com a rapidez e a exatidão que seriam
necessárias. Não conseguia entender as próprias palavras.
Ao voltarem para a tenda, Klein dirigiu o caminhão.
E só quando chegaram lá ele recebeu o capacete que lhe
permitiu transmitir algumas informações através dos
intercomunicadores.
Lá fora soava a música ensurdecedora da artilharia,
que continuava a disparar com uma rapidez
extraordinária. Os ocupantes do abrigo do comandante
Tai-tiang mordiam os lábios e forçavam os olhos numa
tentativa vã de perceber os acontecimentos que se
desenrolavam no interior da cúpula.
Três altos oficiais do Serviço Secreto procuraram
calcular as probabilidades de êxito dos agentes. Bastaria
espalhar o conteúdo de um dos recipientes para que a
queda da terceira potência se tornasse um fato
consumado.
O capitão Klein olhou atentamente em torno. Não
lhe escapou o reator, que emitia uma luminosidade
assustadora, nem sombras dos médicos que deslizavam
atrás da cortina.
Sentiu o olhar de Rhodan, que retribuiu com certo
nervosismo e constrangimento. Depois de engolir em
seco, disse, com voz gutural:
— Muito obrigado, senhor. E, antes de fazer
qualquer pergunta, queira pôr as mãos nos bolsos internos
de nossas jaquetas. Em cada um deles encontrará um
recipiente metálico de pressão com uns vinte centímetros
de comprimento por quatro de diâmetro. As ordens que
recebemos são no sentido de soltar o conteúdo dos
mesmos no interior da cúpula.
Bell virou-se bruscamente. Seu rosto largo
contorceu-se e o dedo brincou no gatilho da pistola-
foguete. Rhodan continuou na posição rígida de antes.
Apenas as expressões de seus olhos estavam modificadas.
Pareciam dissecar minuciosamente o agente secreto.
— Está nos bolsos internos — repetiu Klein. —
Vamos logo! Não temos tempo a perder. Se nossos
superiores desconfiarem de que estamos batendo papo
tranquilamente com vocês, será preferível ficarmos aqui.
Rhodan não formulou qualquer pergunta. Kosnow e
Li não esboçaram a menor reação quando as cargas
perigosas passaram às mãos de Rhodan. Klein
contemplou os cilindros sem dizer uma palavra. Quando a
voz sonora de Rhodan se fez ouvir, estremeceu.
— Certo Klein! O que há nesses recipientes?
— Um agente radiobacteriológico que os inutilizaria
dentro de poucas horas. A ideia foi minha.
Klein admirou a tranquilidade de Rhodan. Até o
cano da arma foi abaixado.
— A ideia foi sua? — perguntou Bell com voz fria.
— E agora quer bancar o herói, não é? Qual é o truque?
Para seu governo, Klein, se dependesse de mim, você não
entraria nessa cúpula.
— Isso é uma questão de ponto de vista —
interrompeu Rhodan asperamente. — Capitão, o senhor
concebeu este plano para entrar em contato conosco sem
despertar suspeitas? Se eu estivesse no seu lugar, bem que
seria capaz de uma ideia dessas!
A admiração de Klein subiu ao infinito. O tom irreal
da situação foi realçado pelas estranhas instalações da
tenda. Klein estava contente por saber que a
impulsividade de Kosnow havia sido neutralizada por
meio de recursos psicológicos.
— Foi isso mesmo, senhor. Recebemos instruções
para iludi-los através de dados fictícios sobre um pretenso
grupo de resistência. Mas, deixemos isso para mais tarde.
E, para que tenha certeza da lealdade dos nossos
propósitos, fique sabendo que poderíamos ter aberto o
recipiente no percurso até aqui. O chiado teria sido
imperceptível em meio ao fogo de artilharia.
O rosto enrijecido de Rhodan descontraiu-se. Por
baixo do grosso capacete acústico viam-se as rugas da
testa. Respondeu em tom calmo.
— Klein, ao menor movimento você estaria morto.
Tenho Um detector radioscópico portátil que revelou a
presença da garrafinha com todos os detalhes. Asseguro-
lhe que não chegaria a tocar na válvula com o dedo
mínimo.
O rosto de Klein contorceu-se num sorriso.
— Então, o senhor sabia? Acontece que nem eu
desconfiava. Creia, nem pensamos em soltar essa mistura
infernal aqui. Viemos apenas para falar-lhe.
— Já passa das quatro. Quando voltarem, perguntar-
lhes-ão o porquê da demora. Não é evidente?
— É, mas posso inventar uma desculpa qualquer.
Direi que lhes contei uma história comprida sobre um
movimento que estaria disposto a ajudá-lo e que
aproveitei para observar os recursos de que vocês
dispõem.
— Afinal, o que deseja? — perguntou Rhodan. Seus
olhos pareciam brasas vivas.
Klein ficou tranquilo. Sentiu a grandeza desse
personagem que desafiava, praticamente só, o poderio
compacto de toda a Terra.
— Considero os seus objetivos muito honrosos —
disse laconicamente. — Já falamos a esse respeito. Não
vejo, pois, nenhuma razão para que a terceira potência
seja eliminada. A guerra nuclear que não chegou a eclodir
foi, para mim, a gota que faltava nas minhas convicções.
A união de todos os povos resultou da sua atuação. Com
isso, o senhor realizou alguma coisa que até então não
passava de um sonho. Da minha parte, já tinha chegado à
conclusão de que só mesmo uma ameaça formidável,
vinda de fora, isto é, do espaço, seria capaz de provocar a
fusão dos povos. Hoje em dia, as frases de cunho
ideológico já não valem mais nada. O senhor, ou melhor,
o perigo que o senhor representa, passou a ser o ponto
central. Os homens já raciocinam, mas deixarão de fazê-lo
98
se o senhor fracassar. Há de compreender que, na
qualidade de oficial do CID, muitas vezes passei por
situações com que um homem comum jamais se
defrontaria. A atuação dos serviços secretos sempre foi
um negócio muito sujo. Nós, isto é Kosnow, Li e eu,
chegamos à conclusão de que o senhor deve continuar a
existir como terceira potência. É esta a nossa posição.
Rhodan não refletiu muito. Ao que parecia, não
havia a menor dúvida quanto aos propósitos de Klein.
Apenas, ele deixava de lado um dado de suma
importância: ao que tudo indicava, a terceira potência que
tanto admirava e desejava, estava prestes a chegar ao fim.
Rhodan lançou os olhos em direção à parte da tenda
em que se encontrava o enfermo. Dentro de poucas horas
chegaria o momento do relatório diário a ser fornecido a
Thora... E Crest continuava naquela rigidez inexplicável.
— O senhor tem de fazer alguma coisa — irrompeu
Klein sem que qualquer coisa lhe fosse dita. — Estou
informado de que há poucas horas decolaram três naves
espaciais. Não sei informar o momento exato da chegada,
mas conheço o destino. A missão dos tripulantes consiste
em atacar sua base na Lua com uma nova arma nuclear.
Faça alguma coisa!
Reginald Bell comprimiu o encosto fino de sua
banqueta. Os lampejos das explosões cintilavam na tela
do radar. Rhodan arregalou os olhos numa expressão de
incredulidade.
— Três naves decolaram? — repetiu em tom
perplexo. — Sabe o que está dizendo? Nenhum reator
nuclear entraria em funcionamento na Terra, eu lhe
garanto.
— Mas funcionará além de 120 quilômetros de
altura — disse Klein, sentando-se numa banqueta, com
um sorriso embaraçado. Sentia suas pernas tremerem.
— Acho que não sabia, não é? Cada um de nós, isto
é, o Ocidente, o Bloco Oriental e a Federação Asiática,
fez decolar uma nave espacial gigante. O primeiro e o
segundo estágios funcionarão exclusivamente à base de
reações químicas. Depois que tiverem transposto a zona
crítica, os propulsores químico-nucleares entrarão em
funcionamento. Major Rhodan, o senhor cometeu um erro
imperdoável. Foi por isso que vim. Deixe de fazer
perguntas sobre os motivos dos meus atos. A única coisa
que importa é a conservação da base lunar.
Bell umedeceu os lábios. Estava muito pálido.
Rhodan também se sentou.
— Conte-me tudo — disse em tom raivoso. — O
que aconteceu? Conte tudo.
Klein não omitiu nenhum detalhe. Mencionou a
conferência da Groenlândia. Rhodan não teve
dificuldades em compreender o funcionamento da bomba
catalítica H. Acontecera exatamente aquilo que temia.
Klein concluiu o seu relato com as informações da
tarefa realizada pelo maior computador da Terra. Quando
se calou, voltou a ouvir o rumor surdo das salvas de
artilharia. O reator brilhava num tom azulado. Seu aspecto
era inquietador. Desesperado, Rhodan perguntou de si
para si que tipo de reação se desenrolaria no seu interior.
Só Crest saberia dar este tipo de informação; se é que esta
informação ainda resolveria alguma coisa. Ele achou mais
provável que o reator não demorasse muito para entrar em
pane.
Antes de falar, dirigiu o irradiador psíquico sobre os
outros visitantes. Li e Kosnow despertaram
imediatamente. Algumas palavras foram suficientes para
pô-los a par da situação.
— Queiram abster-se de perguntas e lamentações —
soou a voz nos fones dos capacetes. — O capitão Klein
orientou-me sobre todos os detalhes. Não vamos perder
tempo.
Apontou para o reator.
— Estão vendo? O brilho que este aparelho está
emitindo não é normal. Receio que sua potência esteja no
fim.
Klein sobressaltou-se. Lançou um olhar de
incredulidade sobre o major Rhodan, cujos lábios
indicavam um sorriso amargo.
— O equipamento de telefonia dos arcônidas já está
fora de ação. Deve ser a trepidação. Crest, que com toda a
razão é tido como doente pelo computador eletrônico,
continua mergulhado num torpor misterioso. Com isso, as
comunicações com a Lua estão interrompidas. Se Crest
não despertar até às oito horas da manhã, capitularei, ou,
ao menos, solicitarei um armistício. Vocês nem imaginam
as desgraças que poderão desabar sobre a espécie humana
se alguma coisa acontecer a esta criatura. Não façam
perguntas. As coisas são por demais complicadas para que
possamos discuti-las agora.
— E as três naves? — gemeu Kosnow. — Será
possível inutilizá-las? O que acontecerá com as
tripulações, se os que estiverem na base lunar partirem
para o ataque?
— Façamos votos para que as coisas se resolvam de
forma bastante humana — disse Rhodan. — A decisão
final caberá à comandante da nave dos arcônidas. Afinal,
ela se verá colocada diante de um grupo de agressores.
— E se as bombas forem lançadas? — exclamou Li,
nervoso. — O que acontecerá? Será que os arcônidas
dispõem de alguma defesa?
Rhodan esforçou-se para não trair o nervosismo que
o dominava. Só desejava uma coisa: ficar a sós o quanto
antes. Aqueles três homens não deveriam saber demais,
quando não fosse por outra coisa, para que não perdessem
a fé que os animava.
— Uma reação nuclear a frio não pode ser impedida
por meio de um campo anti-neutrônico. Até aí, está certo.
No entanto, os seres que estão na Lua encontrarão algum
meio de defender-se das três naves. Não se preocupem
com isso. Klein, antes de retirar-se, eu gostaria de lhe
fazer um pedido.
O capitão Klein levantou-se. Tinha o rosto pálido e
cansado. Desconfiava de que alguma coisa não estava
certa. Bell não conseguiu disfarçar o nervosismo. Rhodan
olhou para o relógio.
— Aguarde meu chamado pelo rádio as oito em
ponto. Farei o possível para reparar o nosso emissor antes
disso. Se não conseguir, só me resta uma alternativa:
desistir. De outra forma, a catástrofe seria inevitável. Faça
tudo o que estiver ao seu alcance para que concordem
com um armistício. Envie delegados; procure ganhar
tempo. De qualquer maneira, faça com que este fogo de
artilharia seja suspenso imediatamente. Acha que
conseguirá?
Os olhos de Rhodan pareciam despedir faíscas. Li
retrucou, pausadamente:
— O senhor não conhece minha gente. O general
99
Tai-tiang não suspenderá a barreira de fogo enquanto o
senhor não desativar a cúpula. Se solicitar um armistício,
não concordará. Desconfiará de que o senhor quer ganhar
tempo para reparar o seu equipamento. No abrigo que lhes
serve de quartel-general, temos psicólogos de primeira
ordem. Não os subestime. Isso só se poderá resolver passo
a passo.
Klein confirmou com um gesto. Rhodan baixou a
cabeça.
— Certo. Aguarde a minha chamada. Se não chegar
até as oito da manhã, é sinal de que conseguimos salvar a
situação. Mas, se receber o meu chamado, aja
imediatamente.
— Este reator ainda pode aguentar alguns meses —
ironizou Klein, embora sem poder ocultar o nervosismo
da voz. — Por que desistir? O fogo de artilharia não pode
durar para sempre. A esta altura, as dificuldades de
reabastecimento já são enormes. Afinal, não é fácil suprir
seis mil peças de artilharia. Agüente mais um pouco...
digamos, vinte e quatro horas!
— Você não avalia a situação corretamente — disse
Rhodan. — Se dependesse de nós, aguardaríamos o
colapso do aparelho, que é bastante provável. Mas existe
outro perigo que não quero provocar. Se a comandante da
nave dos arcônidas chamar em vão, e se verificar que aqui
está sendo levado a efeito um bombardeio, perderá o
controle. E, se isso acontecer, só podemos rezar. E tomara
que Deus tenha piedade dos homens! Compreende por
que não podemos assumir um risco desses?
Compreenderam. As razões que poderiam animar a
comandante dos arcônidas eram imprevisíveis.
Rhodan levou os três homens até o limite da cúpula.
Antes de despedir-se e pedir que lhe devolvessem os
capacetes acústicos, disse em tom cordial:
— Muito obrigado, Klein. Suas intenções foram as
melhores possíveis. Mas, a menos que aconteça um
milagre, terei de decepcioná-lo. Assim que esse fogo seja
suspenso, aja depressa: ligue imediatamente para Nevada
Fields. Peça a Pounder que emita uma mensagem não
codificada. Não assuma o menor risco. Avise Mercant de
que em hipótese alguma deverá tocar em Crest, pois, com
isso, provocaria uma catástrofe. Não se justifica que ele
seja preso sem mais nem menos. Compreendeu? A
manobra estrutural foi repetida. Em apenas três segundos
os homens saíram da cúpula. Mal se encontraram do lado
de fora, Rhodan disparou em direção à tenda.
— Esses rapazes terão problemas — disse Bell. —
Esqueceram seus cilindros bacteriológicos.
— Isso já estava mais ou menos previsto. Dirão que
espalharam o plasma. Se não ficarmos doentes, a culpa
não será deles. Não há nada que a terceira potência não
possa fazer, não é verdade?
O sorriso mordaz e irônico fez com que Bell
rompesse numa série de imprecações. Seu rosto pálido
encarou o comandante.
— Venha comigo — soou a voz indiferente nos
fones.
Ao chegarem ao interior da enfermaria improvisada,
encontraram os médicos conversando. Os homens
pareciam esgotados. A resistência de seus nervos parecia
perto do fim.
— São exatamente oito minutos para as cinco horas
— constatou Rhodan. Lançou os olhos em torno. Crest
jazia imóvel na estreita cama de campanha.
— Klein não soube dizer a hora em que as três naves
decolaram. Mas, como conheço a eficiência dessa gente,
acho que o ataque na Lua será hoje.
— Afinal, qual é a ideia? — exaltou-se Bell. Suas
mãos comprimiram o braço de Rhodan. — Fale logo!
— A presunção doentia de Thora fará com que
subestime o perigo. Acreditará que uma simples cúpula
protetora e um campo antineutrônico serão suficientes
para impedir toda e qualquer reação nuclear. Acho que,
mesmo que conseguisse comunicar-me diretamente com
ela, não conseguiria nada. Daí se conclui que a destruição
da nave dos arcônidas é só uma questão de tempo.
— Você está imaginando coisas — balbuciou Bell.
— Não é possível! Aquela coisa é indestrutível!
— Só se lhe for dispensado o tratamento adequado.
Se em vez daqueles seres apáticos, a nave tivesse a bordo
uma tripulação ativa, eu não me preocuparia. Mas, do
jeito que estão às coisas, até mesmo as providências mais
simples serão omitidas. Vejo a situação muito ruim. Cada
bomba catalítica H libera energia equivalente a cem
megatons de TNT. Não gostaria de estar na esfera
incandescente de gases de uma explosão desse tipo. Se
não tomarmos providências imediatas, um sol terrível
surgirá por cima da nave, Dr. Haggard!
O médico estremeceu. Ergueu a cabeça. Fitou
aqueles olhos penetrantes.
— Dr. Haggard, o senhor tentará despertar Crest
desse sono estranho. Eric, você dará assistência ao seu
colega. Seria absurdo esperarmos mais. Arrisquem tudo.
Haggard esteve a ponto de explodir. Mas, quanto
mais fitava aqueles olhos chamejantes, mais seu ânimo, se
enfraquecia.
— Como queira, major — disse com voz monótona.
Rhodan retirou-se. Eram cinco em ponto. Lá fora o
fogo de artilharia mantinha-se na mesma intensidade.
Muito além da cúpula protetora, os três homens
foram recebidos pelos oficiais das forças armadas. Klein
apresentou o relato.
— Cremos que Rhodan acreditou nas nossas
explicações. Os três recipientes de pressão ficaram no
interior da cúpula. Eu e Kosnow conseguimos abrir as
válvulas. Li viu-se obrigado a desistir no último instante.
Mas duas cargas devem ser suficientes.
Os homens foram colocados num helicóptero que os
levou ao posto de desinfecção. Dali em diante, Klein
começou a padecer todos os tormentos do inferno. Se os
médicos achassem necessário que eles ficassem em
quarentena, então...
Quase no mesmo instante o primeiro-tenente Freyt
transmitiu sua última mensagem para o controle de terra:
— Entramos em órbita conforme previsto. Iniciamos
a desaceleração. O mecanismo propulsor funciona
satisfatoriamente. A tripulação está bem. Rezem por nós.
Fim.
Três peritos em armamentos calcularam o momento
exato em que as bombas deveriam estar prontas para
serem lançadas.
— Cerca de três horas — disse o capitão Nyssen em
voz alta. Nesse instante sofreu o primeiro impacto
formidável da força de desaceleração.
53
100
7
Quietos e apáticos estavam sentados nas banquetas
da enorme tenda. Procuravam dar a impressão de que o
fogo cerrado que rugia lá fora não significava nada.
O sol nascera algumas horas antes. Seu brilho
ardente ao menos apagara a cintilação extenuante das
inúmeras explosões. Mas o trovejar continuava. A cúpula
energética oscilava num ritmo estranho, que a qualquer
momento poderia terminar num verdadeiro colapso.
Desde as cinco da manhã os médicos esforçavam-se
para despertar Crest do profundo sono em que estava
mergulhado. Depois de alguns êxitos aparentes, que se
manifestaram através de uma aceleração do ritmo
respiratório e de um tremor das pálpebras, os sintomas da
esperança desvaneceram-se.
Finalmente, pelas sete horas, o Dr. Haggard recorreu
ao mais perigoso dos psicoestimulantes da época. O
medicamento agia diretamente sobre as funções
conscientes do indivíduo. Além disso, produzia um
aumento bastante acentuado da função circulatória e dos
reflexos nervosos. O psicoestimulante era o último
remédio de que os médicos podiam lançar mão.
Crest reagiu ao estímulo tal qual um homem reagiria
a uma xícara de café. Por isso, Haggard resolveu aplicar
outra injeção.
Eram sete e quarenta e cinco. Antes de pôr
lentamente as mãos no equipamento portátil de telefonia,
Rhodan lançou mais um olhar sobre o enfermo. No
mesmo instante o arcônida levantou-se do leito num
movimento repentino, como se algum impulso estranho o
tivesse chicoteado.
Rhodan deteve-se em meio ao movimento. Um
gemido abafado soou nos fones de ouvido. Era o Dr.
Haggard que, perplexo, acompanhava a inexplicável
reação do paciente. Nunca antes, o fato de Crest ser uma
criatura completamente estranha se impusera à sua
consciência com tamanha nitidez.
Aconteceu exatamente aquilo que Manoli previra. O
sono de Crest podia aprofundar-se até a morte, ou então
ele despertaria para um estado de plena consciência num
reflexo tão rápido que o cérebro humano dificilmente
conseguiria entender de imediato.
Crest havia acordado, não restava a menor dúvida.
Seu primeiro gesto consistiu numa contorção dolorosa do
rosto. Pôs a mão ossuda na cabeça.
Rhodan compreendeu a situação antes dos outros.
Com um ligeiro movimento, colocou na cabeça do
arcônida o capacete acústico com o equipamento de
telefonia que fora deixado bem à mão. A ligação já havia
sido estabelecida.
— Crest, o senhor me ouve? Compreende o que
estou dizendo? — soou a voz nervosa.
Bell mal reconheceu a voz de Rhodan. Muito mais
aguda que de costume, revelava a enorme tensão a que ele
estava submetido.
Rhodan sabia que não havia muito tempo para
explicações demoradas. Desde que Crest tivesse
alcançado alguma lucidez, teriam de agir imediatamente.
— Ouço... ouço, sim — veio a resposta. — Estes
ruídos! O que...
— Deixemos isso para depois — interrompeu
Rhodan. — Daqui a pouco lhes darei todas as
explicações. Acabamos de despertá-lo de um sono
prolongado. O senhor está curado. Conseguimos dominar
a leucemia. Mas, agora, temos de agir sem demora. Há
algumas horas estamos sendo alvo de um bombardeio
ininterrupto. O reator está emitindo uma luz azulada.
Receio um colapso. Além disso, o equipamento de
telefonia entrou em pane por causa da trepidação.
Estamos...
Ninguém poderia imaginar que este relato, vindo
logo após o despertar e que teria sido prejudicial ao
equilíbrio de qualquer ser humano em situação
semelhante, fosse representar a terapia mais eficaz para o
arcônida.
Crest compreendeu em poucos segundos todos os
detalhes de uma situação que, na opinião de Haggard, lhe
deveria ser revelada aos poucos e com muita cautela.
Os médicos estavam estupefatos. Manoli ficou
pronto para a prestação de socorro imediato, até que
percebeu que seus receios eram infundados.
Exausto, sacudiu a cabeça e largou a seringa. Seu
saber havia chegado ao fim. Haggard preferiu manter-se
em atitude de observador. Como cientista que era não
havia nada que lhe causasse espanto.
— Desligue imediatamente! — soou a voz clara de
Crest. — Há o risco do superaquecimento. Desligue!
Rhodan recuperou a calma. Não era por nada que era
chamado de comutador psicológico instantâneo.
Compreendeu o medo que se desenhava nos olhos do
arcônida.
— Se assim for, estamos liquidados, Crest — disse
laconicamente. — São sete horas e cinquenta e cinco
minutos. Dentro de cinco minutos Thora procurará entrar
em contato conosco. O reator terá de aguentar até lá. Se
Thora intervier imediatamente, tudo estará salvo. Só
depende de pormos a funcionar o equipamento de rádio. E
101
só o senhor é capaz de fazer isso.
— Dentro de cinco minutos? — balbuciou Crest.
Seus olhos procuraram o aparelho que se encontrava junto
à cama. — O que houve? É impossível que ocorram
defeitos de funcionamento. Ligou a chave de reparos?
Rhodan mudou de cor. Bell soltou um palavrão.
Crest respirou com dificuldade. A atividade cardíaca
aumentara bastante. Ao que parecia, estava sofrendo de
falta de ar.
— Que chave é esta? — perguntou Rhodan,
torcendo os dedos. — Não faço a menor ideia.
— O microautômato — respondeu Crest. — Elimina
instantaneamente qualquer defeito, que só pode surgir em
circunstâncias excepcionais nos contatos. As baterias e as
células energéticas são indestrutíveis, desde que no
interior do aparelho seja mantido o vácuo absoluto.
Sem dizer uma palavra, Rhodan saltou para a caixa
em forma de cubo. Não havia nenhuma conexão visível
que estabelecesse ligação com alguma fonte de energia.
Só mesmo pela antena de extremidade esférica percebia-
se que se tratava de um emissor.
A tela oval e côncava continuava apagada. Enquanto
Bell, impotente e torturado pela autocensura, olhava para
o arcônida, Rhodan colocou o aparelho ao alcance das
suas mãos. Não perdeu um único segundo.
— Faça a ligação! Rápido! — insistiu sem a menor
tonalidade de calma na voz. — Não desconfiávamos de
que este aparelho tivesse um serviço automático e
autônomo de reparos. Ainda dispomos de três minutos.
Mais uma vez, Crest compreendeu de imediato a
situação. A manobra da chave era extremamente simples.
Rhodan fechou os olhos para não revelar o nervosismo.
Um sinal verde surgiu na tela.
— Os reparos estão em andamento — disse Crest,
com a voz ofegante. — Temos de esperar. Deixe-me ver o
reator. Devíamos desligá-lo.
Com um movimento rápido, Bell afastou a cortina.
Crest arregalou os olhos avermelhados.
— Ele não aguentará mais de uma hora, segundo sua
escala de tempo — disse, tranquilamente. — Há horas
que está trabalhando em regime de sobrecarga, do que
resulta um aumento das reações nucleares. Os conversores
térmicos estão trabalhando com a potência máxima. Por
que está acontecendo uma coisa dessas?
Rhodan começou a dar-lhe uma rápida explicação.
As indicações de Crest eram bastante complicadas.
Esclareceu que sob o fogo concentrado ininterrupto, a
estrutura energética do campo protetor ficou sujeita a uma
oscilação excessiva, uma vez que o modelo simplificado
não dispunha de um conversor que aumentasse a
intensidade dos trechos submetidos a uma carga mais
forte.
Rhodan compreendeu o essencial, mas isso não
resolvia nada. Poucas vezes sentira-se tão desesperado.
O sinal verde apagou-se um minuto antes das oito.
Rhodan fez a ligação com as mãos trêmulas. A tela
começou a cintilar. Ouviram-se ruídos crepitantes.
Repentinamente, som e imagem surgiram com tamanha
nitidez que o Dr. Haggard recordou o súbito despertar do
cientista arcônida. O mecanismo automático de reparos
funcionara perfeitamente. Era provável que o defeito
consistisse apenas de um contato que se soltara com a
trepidação ininterrupta.
Crest e Rhodan contemplaram a imagem
tremeluzente. O aparelho representava uma maravilha no
campo das comunicações.
O comandante poderia contar com tudo, menos com
os fatos que se seguiram. O relato resumido que
concebera tornara-se inútil, pois a voz estridente daquela
mulher nervosa não admitia a menor interrupção.
Thora parecia próxima à prostração total. Seu belo
rosto ardia de cólera.
— Quero saber o que houve!
As palavras, saídas dos alto-falantes invisíveis,
pareciam chicotadas. Num instante, Rhodan compreendeu
que já devia estar falando há algum tempo. Certamente
procurara estabelecer contato antes que a chave de reparos
fosse ligada.
— Ouça Thora, ouça! — gritou. — O reator está
emitindo uma luz azulada. Se não agir imediatamente, o
campo energético entrará em colapso.
— Onde está Crest? — interrompeu aos gritos. —
Minha generosidade chegou ao fim. Dispenso suas
explicações, major Rhodan. Se alguma coisa aconteceu a
Crest, abandoná-lo-ei sem a menor contemplação e
atacarei com todos os meios de que disponho.
Rhodan afastou-se para o lado. Seu rosto pálido
traduzia suas emoções. O sorriso gélido apareceu no rosto
de Bell. Sem trocarem uma palavra prestaram atenção à
conversa entre Crest e Thora, travada numa linguagem,
para eles, totalmente incompreensível.
A comandante parecia mais calma. Porém, antes que
Rhodan pudesse voltar a falar, a comunicação foi
interrompida por ela. Em vão, ele comprimiu o botão
vermelho. Depois, virou-se rubro de cólera.
— As reações de sua gente são muito estranhas! —
disse, em tom mordaz. — Quais são as intenções da
jovem filha da dinastia todo-poderosa dos arcônidas?
Crest esboçou um sorriso quase imperceptível.
Descansava no leito e surpreendeu Rhodan com esta
resposta:
— Acaba de decolar com a maior das naves
auxiliares. Chamou alguns minutos antes da hora
combinada porque os instrumentos haviam detectado o
bombardeio. Está preocupada, major. Pense na situação
de Thora e na nossa. Se não intervier imediatamente com
os aparelhos que se encontram a bordo da nave auxiliar
estaremos perdidos. Acho que o senhor não tem o menor
interesse em provocar uma expedição punitiva contra a
humanidade que representa. Portanto, não assuma o risco
de me fazer cair nas mãos de qualquer potência da Terra.
Dentro de dez minutos, Thora surgirá por cima da cúpula.
— Dez minutos? — repetiu Rhodan, surpreso. —
Conseguem fazer em dez minutos a viagem da Lua até
aqui, inclusive o pouso?
A respiração de Crest estava mais tranqüila, porém,
os médicos permaneciam em alerta.
— É inacreditável! — murmurou o Dr. Haggard. —
Ele resistiu. Se eu soubesse disso, teria injetado o
psicoestimulante logo. Como se sente, Crest?
— É uma pergunta importante, mas a pergunta que
vou formular é muito mais urgente — interveio Perry
Rhodan em tom frio.
Um ligeiro estremecimento passou pelo corpo de
Crest. Olhou atentamente para Rhodan.
— Explicou a Thora que três naves terrestres com
102
um novo tipo de bomba nuclear estão a caminho da Lua?
É claro que não! E nem me deu tempo para informá-la a
respeito. Essa louca furiosa preferiu interromper a
comunicação antes que pudesse preveni-la. Talvez vocês
nem ao menos possam conceber a ideia de que os homens
consigam, através de um ato inteligente, eliminar os feitos
de um campo antineutrônico. Se Thora não agir
imediatamente, daqui a pouco sua nave estará no centro
de uma bola incandescente gerada por três bombas H de
alta potência. Não venha me dizer que as reações
nucleares são impossíveis. Não são. Os homens
desenvolveram a ignição nuclear a frio, com base na
catálise provocada pelos átomos do mésio. As três
bombas não darão a menor importância ao campo
antineutrônico de Thora. Crest, nunca falei tão sério como
agora! Ligue imediatamente para Thora e faça com que
ela adote as medidas defensivas que se fazem necessárias.
Crest mudara de cor.
— Fusão a frio? — disse com voz débil. — As três
naves serão localizadas a tempo de se evitar o ataque. O
robô do nosso cruzador espacial agirá independentemente
da interferência de Thora e defenderá a nave.
Rhodan deu uma risada amarga.
— Muito bem, Crest. Só resta saber se o computador
está bem programado. O cérebro positrônico ainda baseia
seus cálculos em seres vivos primitivos, não é? Na sua
lógica puramente mecânica, abster-se-á de qualquer
medida defensiva, embora estas se tornassem naturais se a
memória positrônica recebesse uma regulagem adequada.
O computador subestimará o perigo porque não é capaz
de um raciocínio pessoal. Nenhum dos cálculos
considerará a existência de superbombas catalíticas cuja
potência total chega a trezentos milhões de toneladas de
TNT. O robô só pode agir erradamente. Foi regulado para
os dados da primeira nave terrena que pousou na Lua. De
acordo com esses dados, o dispositivo positrônico
interromperá a teledireção, montará um campo
antineutrônico comum e, quando muito, levantará uma
cúpula protetora do tipo que já conhecemos. O
computador não poderá fazer mais que isso, porque a
lógica mecânica de que é dotado não lhe permite fazer
mais do que o estritamente necessário. Ninguém vai matar
pardais a tiro de canhão, não é? Para isso, usa-se
espingarda de chumbo fino. Crest ligue imediatamente
para Thora! Deve voltar. As bombas podem ser
arremessadas a qualquer instante. Tenho um
pressentimento. E tenho bons conhecimentos de
cibernética. Ligue agora mesmo!
O arcônida jazia imóvel na cama. Seus olhos
pareciam expressar uma indagação muda. Neles se lia a
descrença e a dúvida. Por mais tolerante que pudesse ser,
dificilmente o representante de uma raça infinitamente
mais desenvolvida compreenderia que as armas
construídas por um povo classificado no grupo de
inteligência D pudessem ser tão eficazes.
— Espere, por favor — cochichou. — Ainda me
sinto um pouco fraco. Além disso, no momento, não
tenho meios para entrar em contato com Thora. O emissor
está regulado exclusivamente para contatos com minha
nave exploradora.
— Pois procure entrar em contato com algum
membro da tripulação! — exclamou Rhodan em
desespero. — Procure compreender, Crest! Os homens
atacarão com todos os meios de que dispõem. Faça
alguma coisa!
— É inútil — objetou o arcônida. Sua boca assumiu
uma expressão amarga. — Devem estar deitados diante
das telas dos simuladores, admirando uma nova obra-
prima. Ninguém perceberá o sinal.
Rhodan respirou com dificuldade. Teve de esforçar-
se para reprimir uma censura mais violenta. A raça dos
arcônidas estava no fim; não havia a menor dúvida. O
comandante preferiu não dizer nada. Há passos lentos,
dirigiu-se para a saída. Seu olhar percorria o céu
matutino. Se as informações de Crest fossem corretas,
dentro de poucos instantes uma coisa monstruosa surgiria
por cima da cúpula. Rhodan imaginava perfeitamente o
que os arcônidas deviam entender por nave auxiliar. Sem
dúvida, ela seria capaz de abrigar mais de vinte das
grandes naves da Terra.
E o rugido infernal começou. Com um gemido,
Rhodan fechou os olhos. Um poder supraterreno começou
a se revelar.
8
Era inútil procurar abrigo. As aberturas estreitas dos
abrigos de concreto tinham sido transformadas em apitos
infernais.
Um furacão teria sido rebaixado a um fenômeno
insignificante. No último instante, Thora desistira da
destruição das diversas divisões que cercavam a cúpula.
Mas, face aos princípios que adotara, não poderia deixar
de dar uma lição dura nos seres inferiores.
Para Crest, o procedimento de Thora era natural.
Rhodan mal conseguiu compreender por que teve de
desencadear uma tempestade tão terrível. Como
representante de uma grande potência galáctica, sentia-se
humilhada pelo quase sucesso do bombardeio ininterrupto
à cúpula energética que erigira. Seus sentimentos eram
idênticos aos da figura antiquada de um oficial das forças
coloniais do planeta Terra que veria, numa revolta
promovida pelos povos subdesenvolvidos da colônia, uma
forma de blasfêmia contra as classes dominantes.
A enorme nave esférica flutuava pouco acima da
cúpula energética. Rhodan não saberia dizer de que forma
foi desencadeado o furacão. Aliás, quando se tratava de
qualquer medida dos arcônidas, nem seria capaz de
esperar que fosse diferente.
As formidáveis ondas de pressão varriam tudo diante
de si. O fogo das inúmeras baterias cessou tão
repentinamente que até parecia nunca ter representado um
perigo mortal para os homens; que se achavam cercados.
Os soldados das divisões de elite das forças asiáticas
conseguiram agarrar-se nos excelentes abrigos até que os
efeitos da falta de gravidade se somaram ao furacão.
Surpreendidos pela ausência de gravidade, não havia
mais como segurar homens e material. Mais de cento e
cinquenta mil soldados foram varridos das trincheiras que
nem folhas secas, e tangidos para a imensidão do deserto.
As grandes peças de artilharia e as pilhas de
munição ofereceram uma área de impacto muito mais
amplo. Foram arrancadas dos embasamentos pelas vagas
uivantes dos ventos em fúria.
103
Nada mais aconteceu. Thora empregara uma arma
que talvez considerasse primitiva. Além disso, seu
procedimento foi relativamente humano. Até Rhodan teve
de reconhecer isso, mesmo contra a vontade.
De qualquer forma, o fogo de artilharia cessou de
um instante para outro. Nada mais havia com que se
pudesse atirar.
Só os grandes abrigos de concreto resistiram à
ventania infernal. Todos os objetos que não estavam bem
cimentados ao solo foram largados suavemente no chão,
além dos limites do campo antigravitacional. Ali, o furor
do furacão também perdeu sua força. E assim, homens e
materiais viram-se reunidos em boa harmonia em meio ao
deserto. Ainda se via a cúpula energética, mas não mais se
viam as posições de artilharia.
Assim que o capitão Klein sentiu o chão firme sob
os pés, e quando o mal-estar que sentia desapareceu, viu a
cúpula energética encolher-se. Um objeto arredondado
desceu lentamente no território cercado e, agora,
desimpedido. De espaço a espaço, a guarnição de um
abrigo abria fogo com armas leves de infantaria. Mas os
projéteis nem chegavam a alcançar a área visada.
Daí em diante. Klein absteve-se de olhar o relógio.
O momento decisivo havia passado. Rhodan já não teria
necessidade de solicitar o armistício.
Klein ajudou o comandante das forças chinesas a
afastar uma mesa despedaçada. Só depois disso, o general
Tai-tiang conseguiu pôr-se de pé.
O apito das aberturas cessara. Lá fora, o sol voltara a
brilhar. Só no interior dos abrigos continuava a reinar o
caos. Homens erguiam-se do solo, praguejando. Outros
estavam muito quietos. Alguns dos cientistas pareciam
curiosos; outros, apavorados. Foi a primeira vez que o
capitão Klein conseguiu ler a gama inteira dos
sentimentos humanos nos rostos pálidos e embrutecidos.
O coronel Donald Cretcher, oficial de ligação das
forças do Ocidente, subiu a passos cambaleantes das
profundezas do abrigo de comando. Estava pálido. A testa
sangrava abundantemente.
Um ligeiro relancear de olhos colocou-o a par do
estado dos presentes. Aquilo que Klein jamais esperaria,
tornou-se realidade com algumas palavras de Cretcher.
Ajudando o general chinês a pôr alguma ordem no abrigo,
o coronel do CID declarou, laconicamente:
— General, nas circunstâncias em que nos
encontramos, acho preferível suspender o fogo, que, de
qualquer maneira, se revelou ineficaz.
— Quê? — balbuciou Tai-tiang. — As baterias...?
— Foram arrancadas dos embasamentos. O pânico
tomou conta de todas as posições. Pouco antes do pouso
dessa nave espacial desconhecida recebi uma mensagem
importante do quartel-general na Groenlândia. Meus
colegas e eu chegamos à conclusão de que é preferível
aguardar os acontecimentos.
O major Butaan, do Serviço de Defesa da Federação
Asiática, foi ainda mais lacônico:
— Suspenda o fogo! Assumo a responsabilidade.
Tai-tiang compreendeu que perdera em definitivo.
Não havia como rebelar-se contra a ordem do major
Butaan.
Cambaleante, o general dirigiu-se à fresta de
observação mais próxima. A cúpula energética voltara a
ser erguida, maior e mais potente que antes.
As mensagens radiofônicas dos comandantes das
diversas unidades começaram a ser recebidas. O círculo
de tropas que cercava a cúpula fora desmantelado. As
unidades estavam em plena dissolução.
Klein enxugou as palmas das mãos nas calças.
Kosnow retribuiu seu olhar. O leve sorriso do oficial das
forças orientais falava por si. Rhodan vencera... Ao
menos, por enquanto.
Thora chegara ostentando o poderio do Grande
Império e a arrogância de uma deusa ofendida.
Perto dela, Rhodan tornara-se insignificante. Suas
palavras perderam toda a força. Seus argumentos não
mereceram a menor atenção. A única resposta que obteve
foi um ligeiro franzir de testa.
O comandante desistiu. Seguiu-a com os olhos até
que desaparecesse no interior da tenda; trazia um sorriso
estranho no rosto.
Bell não compreendia mais nada. Tomado de um
acesso de fúria, contorcia-se nos braços de ferro de um
robô armado que deixara a nave logo após o pouso
juntamente com outras máquinas do mesmo tipo.
A chamada nave auxiliar, que o raciocínio lógico de
qualquer ser humano conceberia como uma coisinha
qualquer a ser utilizada em caso de emergência, revelou-
se um gigante de sessenta metros de diâmetro, dotado de
máquinas e geradores de força de grande potência.
Era uma miniatura da nave exploradora, mas
ultrapassava em tamanho qualquer nave terrestre.
Vistos de longe, os robôs dos arcônidas pareciam
formigas. Saíram em formação compacta pela escotilha
do compartimento existente na parte inferior da nave.
Ao que parecia, tratava-se de construções de
diversos tipos. Só os robôs armados eram dotados de
quatro braços com muitas juntas. Tudo indicava que um
par dos mesmos era destinado à manipulação de armas.
Rhodan sabia perfeitamente que uma única dessas
máquinas poderia enfrentar uma companhia inteira de
soldados da Terra. Era difícil aceitar essa idéia. Para que
se pudesse conscientizar alguém dessa realidade, seria
necessária uma demonstração. O cérebro humano não foi
feito para aceitar como válidas as indicações não
comprovadas de uma supertécnica extraterrena.
Uma ordem proferida em tom áspero fez com que
Bell se calasse. Assim que deixou de resistir à mão de
ferro que o comprimia, o robô relaxou a pressão.
— Ordeno-lhe que se mantenha em atitude tranquila
e humilde. Não saia do lugar — soou a voz metálica do
robô.
Bell cambaleou em direção a Rhodan. Uma
luminosidade surgiu na cúpula superior da nave esférica.
A cúpula energética que começou a se formar reluzia
numa tonalidade violeta. O instinto disse a Rhodan que
não haveria mais problemas.
Além do território bloqueado, reinava um silêncio de
morte. Com um receio crescente, Rhodan se perguntava o
que teria acontecido aos homens das divisões asiáticas.
Ao ouvir as imprecações de Bell, mudou de atitude. Seu
rosto descontraiu-se.
— Não perca o controle — disse com uma
tranquilidade estudada. Apertou os olhos e contemplou a
tenda, onde Thora estava examinando o estado de saúde
de Crest.
61
104
Bell calou-se. O tremor de seus ombros desapareceu
aos poucos.
— Nossa prezada amiga está prestes a cometer o
maior erro de sua vida. Muito bem. Que cometa! Se não
me engano, daqui a dez minutos, no máximo, ela não será
mais que um feixe de nervos. Não mais que uma mulher
ferida. Não diga nenhuma palavra. Deixe tudo por minha
conta. Esperaremos aqui mesmo até que ela venha. Certo?
— Palavra de honra; não entendo nada! — disse
Bell, com a voz áspera.
— Transformar-se-á numa mulher derrotada —
insistiu Rhodan. — E não lhe restará alternativas senão
confiar-nos parte de seu saber infinitamente superior, se
quiser rever o seu planeta natal. Quando a nave
exploradora tiver sido destruída, ver-se-á obrigada a fazer
isso. Não enxerga muito longe. Costuma subestimar o
inimigo e receberá, por isso, uma lição amarga. E essa
lição será mais contundente, mais humilhante, porque lhe
será ministrada por essa mesma humanidade que ela na
sua infinita arrogância, considera uma raça de seres
primitivos e inferiores.
Bell fechou os lábios entreabertos. Começava a
entender o porquê da tranquilidade de Rhodan.
— Já começo a compreender. Você está convencido
de que as três naves conseguirão cumprir o objetivo?
— Acho que sim — murmurou Rhodan. — Fique
quieto. Daqui a pouco ela aparecerá. Crest tem uma visão
muito mais exata da situação e deverá, por certo, colocá-
la a par do problema.
Quando a mulher esbelta saiu correndo da tenda, de
cabelos soltos ao vento, os dois homens estavam sentados
no chão. Respirando pesadamente, tremendo de frio sob o
calor escasso do sol terreno, demasiado fraco para seu
organismo, ela estacou.
Rhodan levantou os olhos, indiferente. Seu olhar
parecia misterioso. A respiração da mulher era ofegante.
Pela primeira vez a inquietação desenhava-se naquele
rosto belo e estranho.
— Olá, como vai? — indagou Rhodan em tom
arrastado. — Muito obrigado pela ajuda. Pode levar Crest.
Está restabelecido. Com boa alimentação e bastante
sossego, a fraqueza passará logo. Pode partir.
Thora ficou estarrecida. Contemplou aquele homem,
sentado diante dela, com um misto de pavor, desespero e
indignação instintiva. Sua voz era estridente. As palavras
pareciam atropelar-se.
— Por que não me informou logo sobre o ataque
planejado? Por quê? Eu...
— Minha cara, seu comportamento foi o de uma
colegial histérica — interrompeu Rhodan. — Suspendeu o
contato comigo assim que conseguimos reparar o defeito
no equipamento. Só lhe aconselho que se dirija quanto
antes a sua nave, se é que ainda tem tempo para isso.
Chegou a localizar três corpos estranhos? Fale logo!
Recebeu aviso de localização?
Thora confirmou. A palidez do seu rosto tornou-se
mais intensa. O tremor das suas mãos fez com que
Rhodan se levantasse.
— Tomou alguma providência?
A pergunta continuou no ar. Em vez de responder,
Thora balbuciou uma súplica.
— Venham! Venham comigo, por favor! Quando
decolaram os foguetes? Que tipos de arma levam a bordo?
Crest falou numa...
— ...bomba mesocatalítica — completou Rhodan.
— Trata-se de uma arma de fusão nuclear que não será
afetada pela cobertura anti-neutrônica. Realizou os ajustes
necessários do equipamento? Poderia tê-lo feito por
prevenção. Qualquer comandante de nave terrena teria
feito.
Thora não perdeu mais tempo. Não deu outras
explicações. Para Rhodan tornou-se evidente que ela não
havia tomado às precauções mais elementares.
Corria e os homens seguiam-na. Rhodan lembrou-se
da história de Davi e Golias. As circunstâncias eram
parecidas. A presunção, aliada ao desleixo, poderiam
perfeitamente ocasionar a destruição da poderosa nave
exploradora. Ainda mais que, segundo revelara a
experiência, a tripulação apática não estaria em condições
de reagir com a necessária rapidez em face ao perigo.
O elevador gravitacional da nave auxiliar levou-os
diretamente à sala de comando. Thora viera só. Em tom
nervoso, explicou que se tratava de um veículo espacial
totalmente automatizado, que poderia ser dirigido por
qualquer ser vivo dotado de raciocínio.
Rhodan sentiu vertigens ao lançar os olhos em torno.
Comparadas aos instrumentos que tinha diante de si, as
complexas instalações da velha Stardust até pareciam
uma canoa ao lado de um porta-aviões nuclear.
Não houve os demorados preparativos para a
decolagem. O salto para o espaço foi tão abrupto, direto e
espontâneo como o ato de um motorista que dá partida em
um carro. Nunca antes o enorme abismo entre o saber dos
arcônidas e o dos homens se tornara tão evidente aos
olhos de Rhodan.
As manobras através das quais Thora dominou a
enorme nave espacial foram rápidas e muito simples. Em
compensação, numerosos robôs entraram em
funcionamento. Rhodan sobressaltou-se com o rugido dos
mecanismos propulsores. As telas iluminaram-se. Numa
reação instintiva, ele se preparou para os efeitos temíveis
da enorme aceleração. Nada aconteceu. A esfera disparou
na vertical, numa velocidade de enlouquecer.
A Terra foi-se encolhendo. Antes que Rhodan
relaxasse os músculos contraídos em ansiosa espera,
grande parte do globo terrestre tornou-se visível. O
Oceano Pacífico surgiu aos seus olhos e, logo depois,
despontou a costa oeste dos Estados Unidos.
Rhodan voltou-se. Bell, perplexo, estava encolhido
numa das poltronas de encosto elevado que, segundo
parecia, nem sequer eram reclináveis. Daí se concluía que
os arcônidas não conheciam os problemas causados pelo
impacto da aceleração. Pelos cálculos de Rhodan, uma
aceleração superior a l.000 g, estava sendo imprimida à
nave. Apesar disso, não se percebia nada.
— Como será que fazem isso, meu Deus? —
perguntou Bell, surpreso. — Como será que conseguem
uma coisa dessas? Vamos dar com os costados na Lua.
Thora...
A última palavra saiu em forma de grito. Rhodan
virou-se precipitadamente. O satélite da Terra surgiu
enorme e bem visível, na tela dianteira. Alguns segundos
depois, só se viam alguns setores da superfície lunar.
O trovejar dos inconcebíveis mecanismos
propulsores cresceu num uivo martirizante. Verdadeiras
torrentes de fogo irromperam, em sentido oposto ao
63
105
deslocamento da nave, das aberturas existentes no anel
abaulado do setor equatorial da esfera.
Não havia necessidade de inverter o mecanismo
propulsor para reduzir a velocidade. Rhodan estava
perplexo. Lutava contra o raciocínio revoltado que,
contrapondo-se a um sentimento nascido no consciente,
tentou provar que uma coisa dessas era impossível e
inconcebível.
As ideias desordenadas sucediam-se. Não havia
meio de ordená-las num raciocínio coerente. Rhodan
estava reduzido à condição de um indivíduo sacudido por
sentimentos desconexos.
Foi despertado pelo grito estridente de Thora.
Levantou a mão num movimento reflexo. Numa tela
lateral viam-se três pontos cintilantes.
— São as naves! — disse Bell. — Encontram-se por
cima do pólo sul lunar. Acho...
***
Estavam em queda livre. Depois que o centro de
teledireção montado nas estações espaciais tripuladas
preparara a entrada das naves na órbita lunar, os impulsos
do computador direcional deixaram de ser transmitidos.
Este fato representara uma surpresa quase total para
o major Rhodan. Mas o primeiro-tenente Freyt,
comandante da Stardust-II, nem se abalou com a
repentina cessação do funcionamento da teledireção. As
três naves continuaram a percorrer a órbita prevista e não
ocorreu qualquer outro fato que pudesse ser considerado
como medida defensiva.
Depois de completadas duas órbitas de polo a polo,
o capitão Rod Nyssen assumiu o comando. O dispositivo
de pontaria funcionava com a maior exatidão. O
instrumental de comando da Stardust-II transmitia
impulsos constantes aos computadores eletrônicos de
direção automática acoplados nas três bombas.
Nyssen aguardou até que o sinal luminoso se
tornasse vermelho. Na tela localizadora, surgiu o alvo: um
objeto esférico. A localização ótica, dirigida pelo tenente
Recert, deu sinal de perfeita identificação do objetivo.
Através de cálculos ultrarrápidos, os computadores
apuraram as dimensões do alvo, considerado a distância
verdadeira. O primeiro-tenente Freyt transmitiu a última
mensagem antes do comando de fogo:
— Do comandante da Stardust-II para as naves
companheiras: objetivo identificado. Localização perfeita.
Atenção, oficiais-artilheiros: aguardem instruções para
disparo. Capitão Nyssen: preparar para disparo.
Nyssen era a tranquilidade em pessoa. Começou a
contar em voz alta os últimos segundos. Nos
compartimentos de carga das três naves, ouviu-se um
estalo vindo dos dispositivos de direção das bombas. As
últimas correções foram feitas. O objetivo, identificado
pelos instrumentos de orientação de tiro, foi introduzido
na memória eletrônica de direção das bombas.
— ...três... dois... um... fogo! — transmitiu Nyssen.
Com o simples movimento de uma chave, ele
provocou a ignição das três bombas. O trabalho dos
outros dois oficiais consistiu apenas em observar o
funcionamento dos mecanismos.
Os lançadores dispararam os três artefatos reluzentes
e, no mesmo instante os computadores de direção das três
naves entraram em funcionamento. Os mecanismos
propulsores uivaram, arrancando-as da órbita em uma
aceleração bastante elevada.
A única preocupação do primeiro tenente Freyt foi
escapar a tempo. As explosões seriam terríveis. As naves
dispararam na vertical. Lá embaixo, a mais de oitocentos
quilômetros de distância, os foguetes direcionais entraram
em ação. O alvo havia sido captado pelo mecanismo de
direção automática. Nenhum desvio seria possível.
***
Uma explosão nuclear ocorrida no vácuo absoluto
nunca se desenrolará da mesma forma que numa densa
camada atmosférica.
Na superfície lunar, desprovida de ar, não ocorreria
um dos principais efeitos destruidores, resultante do
terrível deslocamento de massas de ar fortemente
comprimidas e superaquecidas.
Como não se dispusesse de qualquer experiência
sobre os efeitos de uma explosão nuclear no espaço
cósmico, decidiu-se recorrer a três bombas H. O objetivo
ficaria situado exatamente no centro da região onde os
processos de fissão nuclear seriam desencadeados
simultaneamente.
Com isso, tudo que estivesse na área-alvo, seria
abrangido e pulverizado pela esfera gasosa das explosões
conjugadas e se volatilizaria com as temperaturas geradas
pelo processo.
As emissões radioativas foram consideradas um
fator secundário, ao menos na hipótese específica de que
se tratava. Sem dúvida, os efeitos da compressão
cessariam muito mais depressa que numa atmosfera
densa. Praticamente, ficaria restrita à capacidade de
expansão dos gases liberados pelas explosões.
Assim, ninguém contava com o nascimento de um
sol artificial. De início, a esfera incandescente, branco-
azulada, surgiu em forma de um ponto, para expandir-se
com incrível rapidez, até assumir a forma de uma
gigantesca esfera luminosa.
O tristemente famoso cogumelo atômico deixou de
aparecer. Em compensação, o pólo sul lunar foi
transformado numa cratera fumegante. As detonações,
ocorridas junto ao solo, atiraram massas gigantescas de
pedras incandescentes para o negrume do céu.
Os tripulantes da estação espacial avistaram a esfera
gerada pela liberação das tremendas forças do átomo. A
massa destruidora atingiu um tamanho tal que ultrapassou
o horizonte lunar.
A nave auxiliar dos arcônidas, que desenvolvia uma
velocidade incrível, penetrou na extremidade da área de
influência da terrível explosão. Mais tarde, Rhodan não se
lembraria do que pensara ou sentira nos segundos que a
nave levou para atravessar aquele inferno. Só sabia que a
reação extremamente rápida do dispositivo positrônico da
nave fez com que os reatores de alto desempenho fossem
acionados para retirar a nave da área atingida.
A nave foi arrancada de sua trajetória e arremessada
ao espaço cósmico. Só quando se encontrava fora do
alcance da explosão, os autômatos conseguiram controlar
seu curso e estabilizar sua posição.
Dez minutos depois do ataque, a esfera flutuava no
espaço vazio. Thora demonstrava uma calma estranha.
65
106
Seus olhos tristes e apagados fitavam as telas que lhe
revelavam todos os detalhes da catástrofe. A nave devia
estar, ou melhor, estivera em meio àquele caldeirão
borbulhante.
Rhodan esperou alguns instantes antes de perguntar:
— Por que torturar-se com sentimentos de culpa?
Deixe disso! É preferível seguir o exemplo dos seres de
minha raça! Não acredito que sua nave tenha resistido ao
ataque. De qualquer maneira, terá de aguardar até que
tenham cessado os efeitos da reação, se pensa em pousar
para verificar.
Para Rhodan, homem de raciocínio lúcido, que não
se entregava a ilusões, a destruição da nave exploradora
dos arcônidas era um fato consumado e ele era muito
realista para refletir sobre acontecimentos passados. Por
isso, disse, em tom de advertência.
— Não pense em vingar-se, Thora. Sugiro que pouse
imediatamente no deserto de Gobi. Resta-lhe a escolha
entre a indignidade e primitivismo de uma vingança e as
normas do raciocínio e das decisões tomadas dentro da
lógica. Decida. Uma expedição punitiva não serviria nem
a Crest nem a você. Além disso, garanto-lhe que teria de
enfrentar alguns problemas criados por mim.
Thora contemplou a arma que Rhodan trazia na mão.
Um traço de amargura desenhou-se em seus lábios.
— Eu os subestimei; e é só — respondeu com voz
apática. — Não pense que uma comandante do Grande
Império vai sucumbir por causa da destruição de uma
nave espacial. Essas coisas acontecem todos os dias. Qual
é a sua proposta?
Rhodan sabia que alcançara uma vitória definitiva.
Agindo contra sua vontade, a humanidade, tomada de
pânico, fizera alguma coisa que ele, Rhodan, considerava
como uma das condições básicas para a conquista do
poderio cósmico.
Os dois arcônidas, Thora e Crest, estavam isolados.
Não poderiam recuar. Por isso, Rhodan, consciente da
posição em que eles se encontravam, disse-lhes:
— Antes de qualquer coisa, vamos pousar. Farei o
possível para que os povos da Terra reconheçam a terceira
potência como um estado soberano.
Thora estava desesperada. Rhodan percebeu-o.
Algum tempo depois, a nave esférica voltou a pousar
no solo pedregoso do deserto de Gobi.
Lá no espaço, bem longe da Terra, doze homens
respiraram aliviados. As três naves retornavam às
respectivas bases.
— Gostaria que não tivéssemos chegado a esse
ponto! — murmurou o comandante Freyt, lançando um
último olhar sobre as telas. — Viu aquela sombra que
passou em disparada? Quando dispusermos de naves com
aquela velocidade, a Galáxia será nossa.
FIM
O ataque de surpresa desencadeado pelas potências unidas destruiu a nave dos arcônidas
pousada na Lua. No entanto, a cúpula energética de Rhodan, instalada no deserto de Gobi,
resistiu aos ataques maciços dos exércitos da Terra. A mudança de atitude dos governantes
terrenos será apenas questão de tempo. Mais cedo ou mais tarde, terão de abandonar as
mesquinhas ideias nacionalistas para pensar em termos internacionais e cósmicos. Para
saber de que forma isso acontecerá, em:
O CREPÚSCULO DOS DEUSES
71
107
Nº 04
De
Clark Darlton
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório
Revisão e new format
W.Q. Moraes
Perry Rhodan, comandante da nave Stardust, descobriu, na Lua, a nave
gigantesca dos arcônidas que realizou um pouso forçado. Foi um acontecimento
feliz para a humanidade.
Rhodan prestou auxílio aos arcônidas, uma raça em decadência que
dominava um império galáctico que entrara em declínio. Na verdade, prestou
auxílio aos homens, ao empregar o enorme poderio de Árcon para impedir a
eclosão da terceira guerra mundial. Já existem muitos homens que compreendem
os esforços de Rhodan em prol da união do mundo. Mas falta percorrer um
caminho longo até o Crepúsculo dos Deuses, representado pelo abandono do
pensamento mesquinho que até então prevalecia...
108
I
Pelo meio-dia, o ribombar do canhoneio ininterrupto
diminuiu um pouco. Só vez por outra uma granada
detonava sobre a cúpula energética, liberava suas forças
sob a forma de um relâmpago refulgente e não produzia
qualquer outro efeito.
Depois de algum tempo, o silêncio começou a reinar.
Os quatro homens que se
encontravam na sala de comando da
nave terrena olharam-se. Com um
movimento indolente, o capitão
Reginald Bell, copiloto da Stardust
e perito em mecanismos de
propulsão nuclear, afastou o
tabuleiro de xadrez. Seus olhos cor
de gelo refletiam a pergunta que
acabou por formular:
— O que significa isso?
Seu parceiro lançou um olhar
triste sobre as peças derrubadas e
deu de ombros.
— Sei lá! Resolveram fazer uma
pausa.
— Depois de nos terem
bombardeado dias a fio? Aposto
que têm um bom motivo para isso.
— Tenho certeza de que você
ganharia a aposta — confirmou o
homem que se encontrava diante
dele. — Tudo tem seu motivo —
disse, apontando para as peças do
tabuleiro. — Aliás, isso foi um
truque infame, pois você teria
perdido o jogo.
— Caro Dr. Manoli — disse
Bell em tom professoral — o que
teria acontecido é exatamente o
contrário. A partida estava
praticamente ganha.
— Estava... para mim — respondeu o médico em tom
tranquilo.
— Talvez seja melhor deixarmos a solução do
problema do xadrez para depois — interveio o homem
alto e magro de olhos cinzentos, que se levantara e
chegara perto da vigia redonda, para examinar o quadro
que se oferecia no exterior. — Pelo que vejo, os asiáticos
se retiraram.
Perry Rhodan, que já fora símbolo de um mundo
entusiasmado pelas viagens cósmicas, passara a ser o
inimigo público número um. Reforçou suas palavras com
um lento aceno de cabeça. Passou uma das mãos pelos
cabelos, enquanto mantinha a outra no bolso da calça.
Depois de algum tempo, dirigiu-se ao outro homem que
ali se encontrava e que, até então, estivera em silêncio:
— Doutor, como está Crest?
O Dr. Frank Haggard esboçou um sorriso bastante
expressivo. Há algumas semanas, Bell trouxera-o da
Austrália numa missão arriscada, a fim de curar Crest,
que sofria de leucemia.
— Sob o ponto de vista médico, poderíamos afirmar
que Crest está curado. Pelo menos a fase aguda da
leucemia foi vencida.
— Quer dizer que continuará vivo?
— É claro que sim. É bem verdade que não sei quanto
tempo costumam viver os arcônidas, mas, como estão à
procura do planeta da imortalidade, é de supor que sua
vida tenha um limite. De qualquer maneira, seus órgãos
demonstram — como direi? — demonstram um
extraordinário vigor juvenil. Pelo aspecto exterior dir-se-
ia que Crest tem cinquenta anos.
— É mais velho, muito mais
velho, tal qual Thora — disse
Perry.
Thora, a comandante da nave
exploradora dos arcônidas, era
uma fonte perene de mistérios
para os homens. Sua aparência
fascinaria qualquer observador. O
cabelo claro, quase branco, os
olhos grandes que reluziam numa
estranha tonalidade vermelhos
dourados, em nada serviam para
diminuir o fascínio que ela
exercia. E, além do mais, era
muito bonita. No entanto, Rhodan
estava convencido de que era
formada apenas de uma
inteligência cristalina e de um
perfeito raciocínio lógico, não
possuindo quaisquer outros
sentimentos. Jamais concordaria
em ajudar os homens, quanto mais
considerá-los em pé de igualdade
com sua raça, se a isso não tivesse
sido forçada pelas circunstâncias.
A nave pousada na Lua, que
representava a única possibilidade
de retornar à pátria, fora destruída.
É verdade que a nave auxiliar —
um gigantesco veículo espacial
esférico de sessenta metros de
diâmetro — era dotado de um mecanismo propulsor de
velocidade superior à da luz, mas seu raio de ação não
ultrapassava quinhentos anos-luz, o que não seria
suficiente para estabelecer contato com a base arcônida
mais próxima.
— Thora irrita meus nervos — constatou Bell e
levantou-se. — É duro saber que, no íntimo, sente um
desprezo profundo por nós, e apenas nos ajuda porque
quer ajudar a si mesma. Não sei, não...
— É verdade que os arcônidas precisam de nós —
confirmou Rhodan. Levantando a voz, acrescentou:
— Mas não devemos esquecer que também
precisamos do auxílio deles. Trata-se de uma espécie de
intercâmbio, sem o qual jamais alcançaríamos nossos
objetivos. E um desses objetivos é a união da
humanidade. O perigo aparente fez com que, pela
primeira vez na história, todas as nações do mundo se
unissem — mesmo que essa união só tivesse por fim
destruir-nos.
Haggard foi para junto de Rhodan e olhou pela vigia.
A nave esférica dos arcônidas estava pousada bem perto
da Stardust. No seu interior ficava o gerador que produzia
o enorme campo energético que envolvia a base com uma
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Salvador da humanidade e inimigo público número um.
Reginald Bell — Engenheiro eletrônico da Stardust. É o melhor amigo de Rhodan.
Dr. Eric Manoli e Dr. Frank M. Haggard — Em suas mãos repousava a vida do arcônida Crest — e da humanidade.
Crest e Thora — Os únicos sobreviventes da expedição espacial dos arcônidas.
Albrecht Klein, Li Shai-tung e Peter Kosnow — Três agentes secretos que juraram dar apoio a Perry Rhodan.
Allan D. Mercant, Ivan Kosselov e Mao Tsen — Chefes dos serviços secretos das três superpotências. Graças à intervenção de Rhodan a inimizade que os separava teve um fim súbito.
Tako Kakuta — Filho de sobreviventes da explosão atômica de Hiroxima.
109
cúpula protetora cujas bordas só tocavam o solo a uma
distância de cinco quilômetros. Era uma fortaleza
inexpugnável. Até mesmo o impacto produzido por uma
bomba atômica seria inútil em face dessa muralha
invisível.
Os robôs, que emitiam um brilho metálico, andavam
apressadamente de um lado para outro. Ancoraram a nave
esférica ao solo e realizaram outros trabalhos. Fora Crest
e Thora, eram os únicos sobreviventes da gigantesca nave
destruída na Lua, marcando o final de uma expedição
espacial que partira de um império estelar cujos domínios
dificilmente poderiam ser imaginados pela mente
humana.
Nave auxiliar: era assim que Crest e Thora
designavam aquele veículo espacial, capaz de percorrer
em poucos dias uma distância de quinhentos anos-luz; um
percurso inconcebível para a mente humana; porém, para
os arcônidas, uma distância quase insignificante, embora
inatingível.
Eles estavam na mesma situação de um náufrago
preso numa ilha do Pacífico que escava um tronco para
fabricar uma canoa.
Todavia, nos porões da nave auxiliar havia pilhas de
máquinas e peças sobressalentes que possibilitariam a
construção de naves maiores, desde que pudessem
recorrer ao potencial das indústrias da Terra.
Foi esse fato que levou Crest e Thora a se aliarem a
Perry Rhodan. Seria possível construir uma nave capaz de
atingir o planeta que girava em torno de um sol quente e
azulado, situado no grupo estelar M-13, que ficava a uma
distância de mais de trinta e quatro mil anos-luz. Árcon
— era esse o nome do planeta — era o centro de um
império de dimensões incalculáveis.
Haggard apontou em direção à nave esférica.
— Estão se instalando na Terra, Perry. Como é que
vão construir uma nave aqui no deserto, longe de tudo e
de todos?
— Ainda não sei, mas começo a ter uma ideia — disse
o comandante. — Não se esqueça de que nos encontramos
numa cúpula energética de dez quilômetros de diâmetro.
É uma área bastante ampla. Não acredita que seja
suficiente para a montagem de uma usina?
— Uma usina? — Haggard arregalou os olhos. —
Quer dizer...
— Apenas estou insinuando uma possibilidade —
disse Rhodan com a voz suave. — Não conheço todos os
detalhes do plano de Crest, mas tenho certeza de que
precisará de nossa assistência técnica. Veremos.
Bell também se levantara. Estava bocejando.
— Para ser franco, este silêncio me deixa preocupado.
Enquanto os chineses estavam atirando, não poderiam
fazer outra coisa.
De repente, Rhodan franziu a testa.
— Fazer outra coisa? Rapaz, você fez surgir uma ideia
desagradável em minha cabeça. Que tais se fizerem
alguma coisa de que nem desconfiamos?
Bell empalideceu.
— Não foi o que eu quis dizer.
— Mas é bem possível que lancem mão de outros
meios para extirpar este tumor maligno; pois é exatamente
isso o que somos aos seus olhos. Infelizmente, daqui de
dentro, não podemos saber o que se passa lá fora. Não
temos amigos.
Bell interrompeu-o.
— Você se esquece do capitão Klein, do Conselho
Internacional de Defesa. Não se lembra de que se colocou
inequivocamente ao nosso lado, juntamente com o tenente
Kosnov e o tenente Li, quando haviam recebido ordem
para dar cabo de nós com aqueles micro-organismos?
Tenho certeza de que não deixariam de nos prevenir, se
soubessem que estamos correndo algum risco.
— É verdade, temos o capitão Klein. Quase me
esqueço dele. Mantém boas relações com o Comando
Supremo na Groenlândia e está diretamente subordinado a
Mercant. Se soubesse de alguma ameaça séria contra nós,
não deixaria de nos comunicar.
Voltou a olhar pela vigia e estremeceu. Uma sombra
passou pelo seu rosto; mas não era de contrariedade. Por
um instante pareceu embaraçado, mas logo se controlou.
Dirigiu-se aos companheiros:
— Thora quer falar comigo — disse, dirigindo-se à
porta da sala de comando.
Bell olhou para a vigia. Lá fora, perto da esfera
gigantesca, via-se uma figura delicada, alta e esbelta. Os
cabelos claros mal se destacavam do fundo metálico da
nave. A orgulhosa comandante da expedição cósmica
frustrada mantinha-se numa atitude de tranquila
expectativa. Sua presunção não lhe permitia ir ao
encontro dos homens.
Rhodan não saberia dizer o que o atraía naquela
mulher. Nunca se encontrara com uma criatura mais
inteligente, orgulhosa e inacessível. Nunca percebera
tamanho desprezo e repugnância, tamanha antipatia e
desconfiança. Esse ser, vindo de um mundo estranho e
que tinha a forma de uma bela mulher, não possuía alma;
talvez não tivesse nem ideia do que isso significasse.
Mas não era a beleza que atraía Perry Rhodan; era a
altivez. No início, achou que devia convencê-la de que os
homens também são seres dotados de inteligência e que,
por isso mesmo, tinham o direito de viver. Mas acabou
percebendo que, uma mulher como Thora, só poderia ser
convencida por uma lógica fria. Logo, teria de provar-lhe
que os homens não eram apenas inteligentes, mas também
indispensáveis à execução dos seus planos.
Ela não avançou um milímetro ao seu encontro.
Permaneceu imóvel até que o visse diante de si.
— Suspenderam o fogo — disse em tom indiferente.
Rhodan percebeu que evitava as palavras homem ou
terreno. Em sua voz sentia-se o desprezo. Acrescentou: —
Por que será?
— Talvez a ampliação da cúpula energética os levasse
a modificar seus planos — respondeu Rhodan,
tranquilamente. — Afinal, quintuplicamos o nosso
território. Depois da advertência que receberam, viram-se
obrigados a uma retirada precipitada. E bem verdade que
prosseguiram o bombardeio. Provavelmente, nesse meio
tempo, terão elaborado novos planos.
— Não conseguirão nada com eles.
— Você ainda subestima os homens? — disse Perry
Rhodan lentamente. — Já incidiu nesse erro e perdeu a
nave estacionada na Lua. Por que insistir nele?
— Nunca cometo erros, não se esqueça. A
responsabilidade da catástrofe na Lua cabe aos robôs.
— Que apenas seguiram suas instruções — retrucou
Rhodan, sem alterar o tom de voz. Sentia prazer em
humilhá-la. — Será que a cúpula não é muito grande?
110
Receio que a extensão possa reduzir a estabilidade.
— Deixe isso por minha conta. Acho que a maior
bomba dos terráqueos não produzirá o menor efeito ao
explodir sobre ela. Você subestima a capacidade do reator
dos arcônidas. Ele é capaz de gerar energia suficiente para
arrancar o planeta Terra da sua órbita.
Perry sabia que ela não estava exagerando.
— De qualquer maneira, fico-lhe grato por limitar-se
às medidas defensivas — reconheceu. — Se quisesse
poderia reduzir a pó os exércitos que nos cercam. Por que
não o faz?
Um ar de contrariedade se fez notar na beleza fria
daquele rosto.
— Crest não quer. Acha que lhes deve certa gratidão
pela sua cura.
— E não deve?
— A pergunta está mal formulada. Ao ajudá-los,
apenas estamos pagando uma dívida. É verdade que, na
medicina, estão à nossa frente em alguns pontos, mas na
técnica...
Deixou a frase em meio e Rhodan continuou:
— Sei perfeitamente que, sob o ponto de vista de
tecnologia, estão muito mais avançados do que podemos
imaginar. Mas, apesar de todo esse adiantamento técnico
e científico, estarão perdidos se não puderem contar com
o nosso auxílio. Embora, para nós, uma distância de
quinhentos anos-luz só possa ser concebida em sonho, ela
nada representa para você. Mas, mesmo assim, é muito
pouca para que possa alcançar seu planeta natal. Você
sabe muito bem que só a cooperação com os terrenos
tornará possível a viagem de volta. E é por isso, só por
isso, que concorda com a aliança. Não é por gratidão. Por
que fingir?
Thora nem chegou a sorrir.
— Aos poucos está aprendendo a raciocinar
logicamente, Rhodan. Formamos uma comunhão de
interesses; nada mais. Assim que você tiver atingido o seu
objetivo e nós, o nosso, separamo-nos. Não haverá
motivos para agradecimento, pois ambos teremos lucrado
com a aliança. É assim que eu vejo as coisas.
— Crest pensa em termos muito mais humanos, se é
que se pode usar esta expressão. Tem alma.
— Alma? O que é isso?
Perry fez um gesto de desprezo.
— É possível que, em outra oportunidade, eu tente lhe
explicar. No momento, seria pura perda de tempo. Por que
deseja falar comigo.
Thora sentiu-se decepcionada com a frieza com que
ele proferiu estas palavras. Nem desconfiava do esforço
que Rhodan fazia para manter esta atitude. Um brilho
ameaçador surgiu nos olhos da mulher.
— O comando automático estabilizou a cúpula.
Podemos aguardar tranquilamente novos ataques. Quando
é que providenciará a mão de obra prometida para que
possamos iniciar a construção da nossa nave?
— Assim que a humanidade tiver desistido de lutar
contra mim. Só então poderemos começar a trabalhar.
Infelizmente seu auxílio constitui uma condição
necessária para o nosso; não posso modificar isso.
— E quanto tempo levará a humanidade para
compreender a inutilidade da luta que está travando contra
nós?
— Pelo que conheço a respeito do espírito humano,
isso não acontecerá nunca, a não ser que sejam
convencidos por meios radicais. Somos uma raça
guerreira — acrescentou com um sorriso frio.
Thora olhou-o. Por um segundo, Rhodan acreditou ler
certa simpatia nos seus olhos. Mas talvez fosse um
engano.
— Também já fomos guerreiros — disse. — Quando
éramos jovens e imaturos. Isso só passa quando a raça
alcança a sabedoria e a maturidade.
— E a velhice — observou Rhodan.
Para sua surpresa, Thora concordou sem que se
mostrasse zangada.
— Tem razão. Infelizmente.
Deu-lhe as costas e dirigiu-se à nave esférica.
2
Atrás da escrivaninha, via-se um homem de aspecto
despretensioso. Era baixo, parecia jovem e dava a
impressão de uma profunda ingenuidade. Uma coroa rala,
de cabelos castanhos dourados cercava a cabeça calva. Só
nas têmporas notavam-se algumas manchas grisalhas. Os
olhos contemplavam o mundo com uma expressão pacata.
No momento, esse mundo consistia apenas de um
escritório, dotado de todos os requisitos exigidos pelo
conforto e pela segurança, montado três mil metros
abaixo do nível do solo, sob a calota de gelo que cobre as
terras da Groenlândia. Era o local onde estava
estabelecida a sede do Conselho Internacional de Defesa,
o mais bem organizado serviço secreto do mundo.
Tratava-se de uma equipe especializada, surgida no
tempo da guerra fria. Estava subordinada à OTAN e o
111
homem de aparência inofensiva que se encontrava atrás
da escrivaninha era o chefe da organização, Allan D.
Mercant, uma das pessoas mais temidas do século XX.
Uma tela iluminou-se.
— Os chefes dos serviços secretos acabam de chegar,
senhor.
— Do Bloco Oriental e da Federação Asiática?
— Ivan Kosselov, do Bloco Oriental, e Mao Tsen, da
Federação Asiática — confirmou a voz no
intercomunicador. — O general Tai-tiang acaba de
aterrisar na pista Davis. Já foi conduzido ao elevador
eletrônico.
— Então o clube está quase completo — disse
Mercant com um aceno de cabeça e reclinou-se na
poltrona. Esperou que a tela se apagasse antes de esboçar
um ligeiro sorriso. Há poucas semanas teria sido um
absurdo sonhar com aquilo que estava acontecendo. Os
homens que se combatiam encarniçadamente, os chefes
supremos dos serviços secretos e das organizações de
espionagem, encontravam-se no quartel-general do CID
do Ocidente. Desta vez, havia um inimigo comum que
teria de ser eliminado.
De repente, uma expressão de amargura misturou-se
ao sorriso de Mercant.
O que aconteceria se o conseguissem? No mesmo
instante, a resposta surgiu em sua mente. Um fogo
estranho brilhou em seus olhos quando se inclinou para
comprimir um botão. Outra tela iluminou-se. A cabeça de
uma moça linda apareceu.
— Senhor Mercant?
— Providencie para que os três homens alojados no
hotel dos visitantes sejam convocados à conferência.
Trata-se do capitão Albrecht Klein, do tenente Li Shai-
tung e do tenente Peter Kosnow. Quero que aguardem
numa das antessalas até que eu os chame. Entendido?
— Certo senhor — confirmou a moça e desapareceu
da tela. Mercant continuou a fitar a tela vazia por um
segundo. Depois, levantou-se bastante contrariado.
Desta vez, a sala das sessões não seria a mesma em
que se reuniram quando da discussão e planejamento da
expedição lunar. Agora, Mercant fazia questão de que
fosse mantido sigilo absoluto. Não haveria nenhum
microfone oculto, nem qualquer gravador ou filmadora
que registrasse a reunião. A sala era pequena, só tinha
uma porta e nela não havia aparelhagem de renovação de
ar. Um simples aspirador purificaria o ar, que seria
substituído progressivamente por meio de garrafas que se
encontravam no próprio recinto. Era um ambiente
primitivo, ninguém o contestaria; mas oferecia segurança
absoluta contra qualquer tipo de escuta.
Mercant sabia perfeitamente por que desta vez não
desejava a presença de outros agentes de segurança.
Quando entrou na sala, os três homens já estavam
sentados em torno da mesa. Interromperam a palestra
conduzida em russo e levantaram-se. Mercant exibiu seu
sorriso ingênuo.
— Tenho muito prazer em cumprimentá-los aqui,
cavalheiros. Mais uma vez é o inimigo comum que nos
une. É uma pena que, um belo dia, tenhamos de liquidar
esse inimigo, não acham?
O general Tai-tiang, comandante das tropas que
cercavam a cúpula, parecia perplexo. Não sabia como
reagir a essa observação.
A reação de Ivan Kosselov, chefe da defesa do Bloco
Oriental, foi totalmente diferente. Um sorriso largo surgiu
em seu rosto. Bateu com a palma da mão na nuca carnuda
e disse com voz retumbante:
— Tenho certeza de que o presidente de seu país não
gostaria de ouvir esta observação. Mas isso vai ficar entre
nós, não é?
Mao Tsen, da Federação Asiática, esboçou um sorriso
significativo, mas não fez qualquer comentário.
Mercant apertou a mão dos três homens e pediu-lhes
que sentassem. Subitamente, seu sorriso bonachão
apagou-se. Olhou para Kosselov.
— Pode ficar tranquilo, colega Kosselov. Ninguém, a
não sermos nós, saberemos o que vai ser dito nesta sala.
Estamos completamente isolados do mundo. A porta foi
lacrada eletronicamente. Estamos sós. Se neste instante
um ataque cardíaco me matasse, as organizações dirigidas
pelos senhores ficariam acéfalas, pois ninguém os tiraria
daqui. Talvez dentro de alguns meses alguém se
perguntasse por que nossa conversa estava demorando
tanto e, até que se desarmassem os dispositivos de
travamento eletrônico da porta, seria tarde demais.
— O senhor tem um estranho senso de humor —
observou Mao, sorrindo. — Mas vamos ao que importa.
Talvez seja melhor ouvirmos em primeiro lugar o relato
de nosso amigo Tai-tiang.
O general estremeceu. Ao que parecia, ainda estava
refletindo sobre as palavras de Mercant. Mas logo se
controlou. Sua voz, que a princípio parecia insegura, aos
poucos adquiriu firmeza.
— Seguimos as recomendações dos peritos.
Orientamos o ângulo de tiro de tal maneira que as
granadas atingissem a cúpula energética de Rhodan na
vertical e sempre no mesmo ponto. Observamos certo
afrouxamento, mas o resultado não durou muito. Há
poucos dias, Rhodan ampliou seu domínio. O diâmetro da
cúpula, que era de quatro quilômetros, passou a dez. Com
isso, Rhodan ocupou uma área de quase oitenta
quilômetros quadrados no território da Federação
Asiática. É uma situação intolerável.
— Não só para os senhores — confirmou Mercant. —
Que providências adotaram?
— Assim que Rhodan nos preveniu, retiramos nossas
tropas. Depois, reiniciamos o bombardeio. Mas, embora
tivéssemos intensificado o fogo, a cúpula não apresentou
mais qualquer ponto fraco. Os geradores da nave esférica
dos arcônidas devem produzir quantidades inconcebíveis
de energia. Devo reconhecer que estamos reduzidos à
impotência. Há alguns dias vimo-nos obrigados a
suspender o fogo por falta de munição. Uma atividade
bastante intensa começou a se desenvolver no interior da
cúpula. Assistimos à construção de casinhas, cuja
finalidade nós desconhecemos. Existem robôs em
quantidade, mas só vimos os quatro homens e dois
arcônidas. A base está cercada e, ao que sabemos
ninguém entrou nela ou dela saiu.
Mercant, tranquilo, confirmou com um movimento de
cabeça.
— Ninguém a não ser nossos agentes Klein, Li e
Kosnow.
— Infelizmente sem o menor êxito — reboou a voz de
Kosselov. — Devíamos repetir a experiência.
— Foi por isso que os convidei a vir até aqui — disse
112
Mercant. — Mas, antes de tudo, quero saber a quanta
andamos. General Tai, o senhor acha possível vencer a
fortaleza por meio de um ataque vindo de fora? Está
convencido de que nenhuma das bombas existentes na
Terra conseguiria romper a cúpula energética?
Tai-tiang confirmou com um movimento de cabeça.
Mercant encarou o chefe da defesa da Federação Asiática.
— Então, Mao, o que acha? Tem alguma ideia?
O chinês sorriu.
— Nossos agentes não conseguiram nada. Ninguém
chegou tão perto da base como o tenente Li. E não sabe
mais que o senhor ou eu. Sinto muito, mas não sei mais o
que fazer.
O olhar de Mercant continuou a vagar. Parou no russo.
— E o senhor, Kosselov?
— Poderia dizer que faço minhas as palavras do
senhor Mao Tsen, mas isso seria uma frase muito banal.
Para falar com franqueza, nos últimos dias fiquei
pensando muito sobre a nossa situação. Procurei descobrir
qual é a utilidade que poderíamos extrair desse problema
confuso. E, vejam sós, cheguei à conclusão de que até
mesmo as coisas aparentemente más têm um lado
vantajoso. No início da nossa palestra, o senhor fez uma
observação no mesmo sentido. Vejam o que Rhodan já
conseguiu: aqui estamos nós, reunidos em torno de uma
mesa de conferências. A necessidade fez com que nos
uníssemos, não é? Antes desses acontecimentos éramos
inimigos, hoje somos amigos.
— Ora essa! — exclamou o general Tai-tiang. Sentiu-
se, porém, atingido pelo olhar duro de Mao Tsen e, logo,
voltou ao silêncio.
— É isso mesmo: somos amigos! — repetiu Kosselov
em tom sério. — E por quê? Só porque Rhodan nos mete
medo. Porque sabemos que, diante dos recursos
tecnológicos de que dispõe somos impotentes. Porque
sabemos que pode nos destruir assim que o desejar. Quase
chego a sentir-me perturbado porque ainda não o fez.
— É uma constatação macabra — Mercant deu um
sorriso suave. — Mas retrata precisamente a nossa
situação. Prossiga Kosselov. Muito me interessam as
conclusões que extrai dos fatos que acaba de expor.
— Nem penso em contar-lhe isso. Mas, posso colocar
as cartas na mesa em relação a outro ponto. O general Tai
é de opinião que nunca conseguiremos destruir a base de
Rhodan por meio de um ataque desencadeado de fora. Se
for assim, por que não atacamos do lado de dentro?
O olhar de Mercant revelou uma sombra de interesse.
— Muito interessante! Como faremos isso?
— Quase sempre, as ideias mais práticas e óbvias
surgem por último. Pense na sua situação, Mercant. Onde
é que está? Onde é que se sente seguro? Bem embaixo da
terra. Se quiséssemos lançar um ataque contra o senhor e
seu quartel-general, tal ataque teria de ser subterrâneo. E
o que vem a ser a tal cúpula energética de Rhodan senão
uma defesa aérea, tal qual uma camada de rocha de mil
metros ou mais de espessura? Se quisermos destruir
Rhodan, teremos de atacar sua base por baixo.
Por um instante o silêncio reinou na sala. Só se ouvia
a respiração dos quatro homens. Kosselov recostara-se,
aguardando o efeito de suas palavras.
Mercant falou:
— Kosselov; creio que já chegamos a um acordo em
dois pontos. No terreno político chegamos à mesma
conclusão, embora não a enunciássemos; e no terreno
estratégico também. Até parece que adivinhou meu plano.
Permite que chame três homens que conhecem a base de
Rhodan melhor do que nós?
Não esperou resposta. Comprimiu o botão da
campainha que se encontrava no canto da mesa. Após
alguns segundos, a porta se abriu. Alguém enfiou a
cabeça pela abertura. Mercant fez um sinal. A cabeça
desapareceu.
O capitão Klein, o tenente Kosnow e o tenente Li
entraram no recinto. A porta tomou a se fechar.
Mercant apontou para três cadeiras vazias.
— Não há necessidade de apresentações, pois todos já
se conhecem muito bem. Mas, dentro de alguns minutos,
verão um homem que não conhecem. Kosselov, o senhor
ficara admirado de ver como estamos de acordo em vários
pontos. Capitão Klein, o senhor ia explicou o motivo do
fracasso de seu; plano de vencer Rhodan por meio de
bactérias. A missão não teve o êxito que esperávamos.
Acho que não se oporão a nova tentativa no mesmo
sentido. Só que, desta vez não usaremos bactérias.
Klein não respondeu. Como é que Mercant sabia que
ele pensara em bactérias. A ideia não era tão evidente
assim.
A porta se abriu. Um homem que envergava a farda de
coronel entrou, ficou em posição de sentido e fez
continência. Depois, ficou imóvel, em atitude de
expectativa. Mercant levantou-se.
— Cavalheiros, permitam que lhes apresente o coronel
Donald Cretcher, do CID. O coronel Cretcher, perito em
trabalhos subterrâneos, teve participação destacada na
construção deste quartel-general.
Os presentes apertaram a mão do coronel com certo
constrangimento, especialmente o general Tai-tiang, que
não se esforçou em ocultar a desconfiança. Só Kosselov
ficou atento ao ouvir a especialidade de Cretcher.
Mercant tomou a palavra.
— Conforme Kosselov já sugeriu, devemos atacar
Rhodan por baixo da terra. A cúpula energética só
funciona na atmosfera; não penetra no solo. É claro que
não dispomos de provas de que não tenha certa eficácia
embaixo do solo. Mas, para falar com franqueza, não
acredito nisso. Se conseguirmos cavar uma galeria
bastante profunda e fizermos avançá-la até um ponto
situado embaixo da base, uma única explosão atômica
deverá bastar para mandar todo esse feitiço para o inferno.
Em resumo, este é o meu plano. Eu os convoquei para
discutirmos os detalhes da execução, pois sem a
cooperação de todas as grandes potências não
conseguiremos levar avante o empreendimento. Em
primeiro lugar, teremos de contar com a boa vontade da
Federação Asiática, em cujo território eles irão agir.
O cérebro de Klein trabalhava febrilmente. Também
Kosnow e Li refletiam. Os três agentes se haviam
encontrado quando seus governos os haviam incumbido
de estabelecer o primeiro contato com Rhodan. Como
nada conseguissem agindo isoladamente, resolveram unir-
se. Klein conseguira penetrar na cúpula energética, mas
uma palestra com Perry Rhodan deixara-o convencido de
que este só desejava o bem da humanidade. Daí em
diante, passara para o campo oposto, juntamente com seus
colegas. Não havia ninguém no mundo que suspeitasse
desse ato de alta traição.
113
Ninguém mesmo?
Allan D. Mercant olhou para Klein. Havia um brilho
estranho em seus olhos. Mas, logo, o mesmo voltara a
sorrir numa expressão suave e compreensiva. Com um
aceno de cabeça, disse:
— Se o plano tiver êxito, isso significará o fim de um
temor que nos tornou amigos. Sei perfeitamente que
existem homens para os quais este temor é uma bênção,
pois preferem o medo de Rhodan ao pavor constante de
uma guerra nuclear e do fim do mundo que será a
consequência da mesma. Conheço, pessoalmente,
algumas dessas pessoas. Talvez chegue mesmo a partilhar
da opinião delas — mas nosso dever é eliminar Rhodan. É
que nossa existência se vê ameaçada por um perigo contra
o qual não nos podemos defender. Falei claro, capitão
Klein?
Sete pares de olhos fitaram o agente do serviço
secreto, que sentiu o chão oscilar por baixo dos seus pés.
Mercant não poderia saber...
— Não entendo senhor Mercant.
Um sorriso amável surgiu no rosto de Mercant.
— É claro que entende Klein. Entende muito bem. E
não acredite que os motivos nobres que o animam
poderão levar-me a fazer vista grossa aos seus atos
criminosos. Confiar-lhe-emos uma missão através da qual
poderá provar que considera as ordens recebidas mais
importantes que suas opiniões pessoais. E a mesma coisa
aplica-se a Li e Kosnow.
Kosselov indignou-se.
— Ponho a mão no fogo pelo meu agente!
— Cuidado para não se queimar — observou Mercant
com a voz tranquila.
— O senhor não tem provas! — insistiu o russo.
— Mas tenho um ótimo faro, e um instinto infalível.
Infelizmente era verdade. Klein sabia que justamente
por isso Mercant era temido pelos subordinados. Durante
os interrogatórios, nunca precisava recorrer a detetores de
mentiras ou outros métodos. Sabia perfeitamente se o
interrogado falava a verdade ou não. Havia agentes que
afirmavam seriamente que Mercant sabia ler os
pensamentos.
Mao Tsen interveio.
— Reunimo-nos para elaborar nossos planos de
ataque contra Rhodan e não para lançar acusações mútuas
contra nossos melhores agentes. Nem quero saber o que
vai fazer com seu subordinado, Mercant. Mas deixe o
tenente Li fora disso. Ele goza da minha irrestrita
confiança. Sugiro que passemos ao que nos interessa.
— É o que faremos agora mesmo — confirmou
Mercant e tirou um mapa do bolso. Estendeu-o sobre a
mesa. As cabeças dos outros homens se inclinaram para
frente. — Neste mapa está assinalada a posição exata da
base de Rhodan no deserto de Gobi. O círculo mostra a
extensão da cúpula energética. Conforme veem, ela chega
a cobrir parte do lago. Ali haveria possibilidade de se
penetrar na cúpula por meio de equipamento de mergulho,
passando por baixo de sua borda. Mas de nada nos
adiantaria introduzir alguns homens sob a capa protetora;
sabemos de que armas Rhodan dispõem. Só poderemos
alcançar êxito através de medidas radicais. Discuti todos
os detalhes com o coronel Cretcher. Talvez seja preferível
que ele mesmo exponha seus pontos de vista.
O coronel confirmou com um ligeiro aceno de cabeça.
Aproximou o mapa do lugar em que estava sentado e
colocou a mão sobre uma área situada ao norte do círculo.
— Neste ponto, situado a cerca de dois quilômetros da
cúpula, existem algumas colinas. É mais íngreme na face
norte. É essa encosta que pode servir de ponto de partida
da galeria que vamos cavar, pois não pode ser vista das
naves espaciais. Teríamos de fazer a galeria avançar sete
quilômetros para atingir o ponto central da base. A
profundidade terá de ser de quinhentos metros no mínimo,
a fim de reduzir ao mínimo a detecção por meio de
instrumentos de escuta. Confesso que se trata de um plano
audacioso, mas é absolutamente seguro.
Kosselov e Mao Tsen se olharam. A admiração e o
reconhecimento brilhavam nos seus olhos. O general Tai-
tiang apontou para o mapa.
— Conheço perfeitamente estas colinas; minha
posição de combate fica ali. Aliás, coronel Cretcher,
como foi que o senhor teve conhecimento da existência
delas?
O coronel do CID deu um sorriso misterioso.
— Ora, general! É claro que tenho homens da minha
confiança que servem no seu exército. Além disso, há de
estar lembrado de que alguns oficiais das forças
ocidentais tiveram permissão oficial para examinar o
terreno. Como vê, isso tem uma explicação lógica.
— Naturalmente, queira desculpar. Quer dizer que, em
sua opinião, essas colinas, situadas ao norte da base
constituirão o melhor ponto de partida para um
empreendimento como esse?
— Sem dúvida! Quando estivermos exatamente
abaixo das duas naves, faremos explodir uma bomba de
hidrogênio. Acha que, depois disso, sobrará alguma coisa
de Rhodan e seus amigos extraterrenos?
— Não sobrará muita coisa — confessou Kosselov,
cocando a cabeça. — Só vejo um inconveniente. Não
acredito que esses arcônidas sejam tolos a ponto de não
lhes ter ocorrido à mesma ideia. Para isso, bastará um
pouco de senso lógico. E devem ter adotado providências
para se protegerem.
— Já pensamos nisso — asseverou Mercant. — É
claro que cometeríamos um erro se, daqui por diante, nos
mantivéssemos numa expectativa tranquila. Muito pelo
contrário. Assim que iniciarmos as escavações, o general
Tai-tiang deverá reiniciar os bombardeios. Não é
necessário que seja tão intenso como da outra vez, mas
deverá ser suficiente para manter Rhodan e seus aliados
ocupados. Além disso, a detonação das granadas abafará o
ruído que for causado pelas cargas de dinamite que
tivermos de usar sob o solo. Por outro lado, é impossível
que Rhodan seja avisado das nossas intenções. A base foi
isolada hermeticamente do mundo exterior. Até mesmo a
comunicação pelo rádio tornou-se impossível, pois as
potentes emissoras de interferência que instalamos não
permitem qualquer forma de recepção no interior da
cúpula. Rhodan não poderá ser prevenido por quem quer
que seja.
Ao dizer isso, o brilho suave voltou a surgir em seus
olhos. Seu olhar dirigiu-se para Klein, em quem se
demorou um pouco, para depois dirigir-se a Li e Kosnow.
O coronel Cretcher apontou para o mapa.
— Formaremos um comando internacional. Todas as
nações deverão colocar seus recursos à disposição.
Unidos, conseguiremos dar cabo desse inimigo comum.
114
— De qualquer maneira, Rhodan é americano — disse
Mao Tsen, pensativo.
— Foi americano! — disse Mercant em tom
penetrante. — Conforme sabe, foi privado dos seus cargos
e direitos. Mas isso não importa. Na verdade, deparamo-
nos com uma invasão vinda do espaço cósmico, que
deverá ser repelida de qualquer maneira. Se não
conseguirmos isso, dentro de pouco tempo não seremos
mais os donos da Terra.
Houve uma ligeira pausa. O tenente Kosnow rompeu
o silêncio:
— Qual será a nossa missão?
Mercant sorriu.
— Já esperava esta pergunta. É claro que Rhodan
possui amigos entre os homens; ninguém pode negar isso.
Talvez alguns desses homens venham participar dos
comandos encarregados das explosões subterrâneas,
mesmo que ali não lhe possam prestar muito auxílio. De
qualquer maneira, seria conveniente que os homens do
comando especial fossem continuamente vigiados. Como
não podemos nos encarregar disso sozinhos, gostaria de
lançar mão de uma equipe de agentes incumbida
exclusivamente da segurança do empreendimento. Acho
que todos me entenderam, não?
Klein observou Mercant enquanto este falava. Os
olhos não traíam nada do que se passava em seu cérebro.
Mesmo assim, Klein pensou que sentia a ironia
provocadora que se ocultava nas palavras do chefe do
CID.
O general Tai-tiang bateu no mapa.
— Assim que os comboios de abastecimento forem
colocados em movimento, poderei reiniciar o bombardeio.
Em quanto tempo a galeria ficará pronta?
O coronel Cretcher deu de ombros.
— A organização do comando durará alguns dias.
Quanto ao trabalho propriamente dito... bem, meus
cálculos vão a quinze dias, se pudermos utilizar os
recursos mais avançados. Também depende da
constituição do solo. Se encontrarmos muita rocha...
— Nas camadas mais profundas deverão encontrar.
— Bem, digamos umas três semanas! Mais ou menos
daqui a um mês, uma enorme cratera se abrirá no deserto
de Gobi e Perry Rhodan com seus arcônidas logo se
transformará numa lenda que não demorará a cair no
esquecimento...
— E que, de qualquer maneira, nos trouxe um período
de paz — concluiu Kosselov em tom seco.
Mais tarde, quando voltou a estar a sós no seu
escritório, recapitulando os acontecimentos, Mercant
evocou principalmente estas palavras. Sabia perfeitamente
que Kosselov não se sentia seguro. Mao Tsen era o único
que raciocinava claramente e sem paixões. Para o chinês,
Rhodan era o grande inimigo; e teria que ser destruído,
custasse o que custasse. Mao não pensava no que viria
depois; Kosselov pensava tal qual ele mesmo.
Também Klein era um homem dotado de enorme
capacidade de raciocínio. Talvez fosse por isso mesmo
que Mercant conseguira captar algumas das emanações
mais poderosas daquele cérebro e interpretá-las
vagamente.
Mercant sorriu. Sabia do falatório dos seus
subordinados, que diziam que ele era um feiticeiro
quando lhes dizia face a face o que estavam pensando. Ele
não lia propriamente os pensamentos, mas sabia sentir
determinadas emoções dos outros. O cérebro possuía
tantas partes ociosas que um pequeno estímulo poderia ser
suficiente para pôr em funcionamento uma delas. Era o
que devia ter acontecido com ele. Se realizasse um
esforço dirigido a si mesmo, sem dúvida seria capaz de
desenvolver mais intensamente a capacidade, ainda
limitada, de adivinhar os pensamentos alheios.
Mercant contemplou seus dedos esguios. Depois,
sacudiu a cabeça. Não, não era mais que um homem igual
aos outros. Mas era dotado de poderes extraordinários,
que lhe permitiam distinguir entre a mentira e a verdade.
Foi por isso que teve segurança absoluta de que, dos
oito participantes da reunião, exatamente a metade tinha,
ao menos, alguma simpatia pela causa de Perry Rhodan.
Quase teria acontecido o quinto homem, que obedecia
incondicionalmente às ordens dos governos a que estava
submetido, mas já sentia vacilar o coração e preocupava-
se com os verdadeiros objetivos de Rhodan.
Era ele mesmo.
3
Fazia cinco dias que nenhum tiro era disparado.
Rhodan e os outros sentiram que algo de estranho e
decisivo estava por vir, mas não tinham a menor ideia do
que se tratava. Bell estava irritado. Andava que nem uma
fera enjaulada no interior da nave, quando não se dirigia
para perto da nave dos arcônidas para assistir ao trabalho
incessante dos robôs. Protegido pela cúpula energética
onde, aos poucos, o ar foi se tornando quente e abafado,
tomava seu banho diário no lago salgado. Muitas vezes,
vagava horas a fio pelo deserto e arriscava-se até as
proximidades da muralha invisível que os separava do
mundo exterior.
Não havia viva alma por perto. De repente, pareciam
estar sozinhos no mundo. As tropas que cercavam a base
haviam-se retirado para posições mais afastadas. Até
mesmo pelo binóculo só eram visíveis sob a forma de
pontos que surgiam vez por outra. Não se via o mais leve
sinal dos tanques e canhões.
115
Alguma coisa estava no ar.
Rhodan o sentia e, tomado de certa inquietação, saiu
da Stardust no quinto dia e dirigiu-se à nave dos
arcônidas. Nos últimos dias tivera pouquíssimos contatos
com Crest, pois o cientista seguia à risca as
recomendações do Dr. Haggard. Geralmente estava
mergulhado num sono artificial, a fim de que seu sangue
pudesse regenerar-se.
Um dos robôs bloqueava a escotilha de entrada.
Rhodan aguardou alguns minutos. Quando viu que o
vigia metálico não saía do lugar, aproximou-se e tentou
empurrá-lo para o lado. É claro que a experiência não foi
bem sucedida. Lá de cima soou a voz clara e estridente de
Thora:
— É muito imprudente, Rhodan! O que deseja?
— Preciso falar com Crest.
— Por quê?
— Tenho vários motivos. Um deles é que tenho
certeza absoluta de que está sendo preparado um ataque
contra nós.
— E daí? Acredita que não saberemos nos defender?
— Sabe que precisamos da humanidade para executar
nossos planos. Se, por um ato de defesa irrefletido,
destruir nossa raça, você nunca mais reverá Árcon.
Com estas palavras, ele tocou no ponto sensível de
Thora. No íntimo, ela ardia para dar uma lição nos
“selvagens rebeldes”. Mas Rhodan e Crest impediam-na
de levar avante os seus intentos. Impediam a ela,
comandante da expedição. Reconhecia que os dois
homens estavam com razão. Os robôs não seriam capazes
de montar um parque industrial que lhes permitisse a
construção de uma nave maior e mais potente.
Proferiu uma palavra incompreensível e o robô
afastou-se de onde estava deixando o caminho livre.
Rhodan subiu os degraus que conduziam à entrada da
nave. Thora olhava-o com uma expressão fria no rosto.
— Crest precisa de descanso.
— Sei disso — confirmou Rhodan, tranquilo. —
Acontece que o Dr. Haggard me deu permissão para falar
com ele.
— Ah, é? O Dr. Haggard deu permissão? — disse,
esticando as palavras num tom de desprezo. — E acha
que não é necessário consultar a mim?
— No presente caso, não é necessário — respondeu
Rhodan, empurrando-a suavemente para o lado. Seguiu
sem olhar para trás, achou o elevador antigravitacional e
foi levado para cima.
Crest estava acordado. Jazia numa cama larga,
colocada numa cabina espaçosa. Assistira a um programa
de figuras coloridas abstratas que desfilavam sobre a tela.
Quando Rhodan entrou, desligou o aparelho e levantou-
se.
— Olá, Perry! Fico muito satisfeito em ver que
arranjou tempo para fazer-me uma visita.
— A satisfação é minha Crest. Como vai? Pelos
relatórios de Haggard está atravessando uma segunda
juventude.
— É o que sinto Perry. O homem é fantástico!
— Ele é um excelente profissional — disse Perry.
Também Crest tinha cabelos claros, quase brancos, e
os olhos ligeiramente avermelhados. Sua cabeça, muito
comprida, lhe proporcionava uma testa que tomava quase
a metade da caixa craniana. De resto, as diferenças que o
distinguiam dos homens eram exclusivamente de natureza
orgânica. No lugar das costelas, possuía uma blindagem
óssea que protegia o coração e os pulmões. Essa
circunstância dificultaria eventuais operações, mas
oferecia ampla proteção a esses órgãos tão sensíveis. Sob
os padrões humanos, seria considerado um verdadeiro
gênio. Bastava dizer que sua memória fotográfica
lembrava a capacidade dos grandes computadores
eletrônicos. Crest era o chefe científico da expedição
malograda dos arcônidas e um dos últimos descendentes
da dinastia reinante de Árcon.
— Nós não temos nenhum médico igual à Haggard —
respondeu Crest. Talvez nossa raça tenha adoecido
justamente por isso. Dispomos de recursos para prolongar
a vida; e isso nos deixou por demais despreocupados.
Degeneramos, pois nossa presunção desmedida não
permitiu que nos misturássemos com outras raças. Na
verdade, todos os arcônidas são parentes.
— Já lhe falei da necessidade premente de uma
renovação do sangue.
— Tem uma ideia de como isso poderia ser feito? —
disse Crest, com um sorriso débil. — Confesso que vocês
são jovens de corpo e espírito. Se combinássemos isso
com o nosso saber, obteríamos uma raça de seres
superinteligentes. É claro que isso não passa de uma
divagação. Os resultados de uma experiência fantástica
como esta só começariam a surgir depois de algumas
gerações. Acho que qualquer auxílio aos arcônidas
chegaria tarde. E há mais. Acredita que Thora pudesse
pensar seriamente em misturar seu sangue com o de um
terreno, que a seus olhos não passa de um ser primitivo?
— Não acredito — disse Perry, sacudindo a cabeça.
Crest comprimiu um botão. Junto ao seu leito a parede
côncava deslizou para o lado, fazendo surgir uma abertura
oval. Estavam a cerca de quarenta metros de altura. Uma
vista imponente sobre a imensidão infinita do deserto
descortinava-se diante deles. Atrás da nave, o sol ainda se
encontrava bem alto no céu. Ao norte, estendia-se uma
série de pequenas colinas.
— Muitas vezes, este mundo me faz lembrar minha
terra natal, da forma como ela já deve ter sido — disse
Crest baixinho. — Depois de algum tempo tornamo-nos o
centro de um império galáctico e já não poderíamos dar-
nos ao luxo de ter a natureza ao redor de nós.
— Sabe que eu gostaria de visitar Árcon. Um sorriso
condescendente esboçou-se no rosto do cientista.
— É bem possível que se sentisse decepcionado,
Perry. Nosso mundo, que é do tamanho da Terra, não
passa de uma grande cidade. Mas, seja como for, um dia
você vai conhecer Árcon.
Perry inclinou-se para frente; estava perplexo.
— Eu? Conhecer Árcon? Quando? Como?
Crest voltou a reclinar-se. Contemplou o teto baixo da
cabina. Depois, lançou os olhos sobre Perry.
— Sim, Perry Rhodan, você verá Árcon. Talvez não
me tenha expressado com clareza quando falei numa
renovação do sangue dos arcônidas. Jamais deverá haver
uma mistura das duas raças, pois a sua sairia perdendo.
Mas é bem possível que os homens, depois de unificados,
nunca antes, acabem tornando-se herdeiros do Império
Galáctico, sob a orientação dos arcônidas. A imagem lhe
agrada?
Rhodan respirou profundamente.
116
— É fantástica demais para ser levada a sério, Crest.
Afinal, os arcônidas dominam um império espacial e
nunca o entregariam espontaneamente. Por outro lado, os
homens não estão maduros nem mesmo para sonhar com
um império desses.
— Acho que desta vez é você que está subestimando
os homens. Tive oportunidade de manter longas palestras
com Haggard. Ele concorda comigo.
— Mesmo que acreditasse na capacidade dos homens,
nunca poderia acreditar no altruísmo dos arcônidas.
— Não nos julgue por Thora — recomendou Crest
com a voz suave. — Ela comanda uma expedição e foi
treinada especialmente para esse tipo de missão. Sua
inteligência lógica e fria é o resultado de uma doutrinação
intensa.
— O que vem a ser isso?
— A doutrinação é um processo de aprendizagem
hipnótica, através da qual se ativam determinados setores
ociosos do cérebro e se intensificam as funções de outros.
— Trata-se de aulas hipnóticas?
— É também poderíamos usar este nome. O método
permite transformar uma criatura primitiva em um ser
inteligente, desde que possua um cérebro. Pretendo usar
este método para transmitir-lhe parte do saber dos
arcônidas.
Rhodan recuou instintivamente.
— O quê? Pretende...? — Olhava surpreso para Crest,
que continuava a sorrir. — Por quê?
— Meu amigo, você é todo desconfiança. Acha que
sou incapaz de qualquer ação altruística; e está com razão.
Mas meu pensamento vai mais longe. Vejo o futuro
desenhado diante de mim, mas não é o futuro só dos
arcônidas. Duas raças aparentadas dominarão a Via
Láctea: os arcônidas e os terranos. Ouça bem, Rhodan: os
terranos! Acho que sabe qual é a diferença entre um
homem e um terrano. Você já viu o espaço cósmico e,
com isso, transformou-se num terrano. Qualquer um
passará por essa transformação, desde que sinta que pode
envolver o mundo em que nasceu com as mãos. Mas os
outros, principalmente os que nos atacam, são homens
que ainda estão longe de saber que o planeta em que
vivem nada é senão uma base para o futuro. Todos os
seres inteligentes descendem do mar, pois lá foram
geradas as células primitivas. E o mar assemelha-se ao
espaço cósmico. Dessa forma, o homem, ao penetrar no
espaço, retorna ao elemento que lhe deu origem. Um belo
dia, quando os terranos e os arcônidas tiverem
consolidado o império cósmico, a Terra não passará de
uma lenda perdida em meio a milhões de pontinhos
luminosos que reluzem no infinito de um mar que não
conhece fronteiras.
Crest deixou passar alguns segundos, a fim de que
Perry Rhodan tivesse tempo para absorver a grandiosa
visão do futuro. Depois, prosseguiu:
— Dentro de poucos séculos, os arcônidas não mais
estarão em condições de impedir a desagregação do
império. Um e outro planeta já tentam reconquistar sua
independência — uma independência que não lhes servirá
para nada, pois logo se lançarão uns contra os outros. Se
quisermos manter a paz dentro da galáxia, uma mão forte
deve segurar as rédeas. Dentro de pouco tempo, os
arcônidas não mais serão capazes disso. Antes de
assistirmos à desagregação do império cósmico, ou de
deixar que caísse em mãos incapazes ou nas de alguém
que seja mais forte e talvez mais cruel que nós,
preferimos partilhá-lo com um aliado que só através de
nós chegou ao que é. Preferimos partilhá-lo com um
amigo que nos seja grato. Nunca encontramos alguém que
esteja em melhores condições de desempenhar esse papel
que os habitantes do planeta Terra, situado na
extremidade da Via Láctea. Já compreende que até chego
a ser egoísta quando quero fortalecê-los?
Rhodan respondeu com um ligeiro aceno de cabeça.
Estava compreendendo.
— Foi por isso que decidi, contra a vontade de Thora,
confiá-lo ao nosso doutrinador. Como desejo ter dois
homens ao meu lado, eu lhe peço que me indique o nome
de seu melhor amigo. Este receberá o mesmo treinamento
hipnótico. Suponho que proporá Reginald Bell, não é?
Perry confirmou.
— Em que consiste este treinamento?
— Não receie, não haverá a menor perda de tempo —
disse o cientista com um sorriso. — Se começarmos hoje,
amanhã, você e Bell disporão de um saber muito maior
que toda a humanidade. Além disso, determinados setores
do cérebro serão ativados. Se deixássemos que este
desenvolvimento seguisse o curso normal, ele levaria
milênios. Já lhe falei isso. Não há dúvidas de que será
dotado de capacidades telepáticas, ainda restritas.
Infelizmente não posso prever quais serão as outras
faculdades que se desenvolverão. Talvez sejam ativadas,
mas não plenamente desenvolvidas.
— É inacreditável.
— Quando dispuser do nosso saber, você
compreenderá. Trazemos o doutrinador a bordo a fim de
treinar raças menos inteligentes. Os indivíduos tratados
por ele estarão em condições de desempenhar o papel de
gênios de sua raça, transmitindo-lhe ideias progressistas.
Trata-se da aceleração artificial de um processo que, em
condições normais, seria muito lento. No seu caso,
adotaremos um processo mais radical. Eliminaremos os
estágios. Saltaremos por cima dos milênios. Você se
transformará em um homem que corresponderá ao tipo
normal que surgirá daqui a dez mil anos, quando tiver
sido consolidado o império galáctico, cuja pedra
fundamental foi lançada pelos arcônidas.
Crest calou-se, dando tempo para que Rhodan
ordenasse seus pensamentos.
A atuação aparentemente generosa do cientista
extraterreno tornou-se compreensível aos seus olhos. Ao
ajudar os homens, servia em primeira linha a si mesmo e a
sua raça. Descobrira o verdadeiro motivo dos seus atos.
Os homens deveriam colocar-se ao lado dos arcônidas
debilitados, a fim de que estes não perdessem o império.
Rhodan abanou lentamente a cabeça. Era uma
conclusão lógica, resultante das circunstâncias.
— Estou de acordo — disse tranquilo, embora mal
conseguisse dominar a emoção. — E Thora, o que dirá?
Crest deu de ombros.
— Terá de conformar-se. O cientista da expedição sou
eu; é a mim que cabe decidir.
— Mas ela é a comandante — objetou Rhodan.
— É verdade. É responsável pela nave e pela viagem,
mas não pelas providências de caráter científico. Sobre
estas, somente eu decido. E também assumo a
responsabilidade pelas decisões nesse campo. E, acredite,
117
sei perfeitamente o que estou fazendo.
Rhodan estava convencido disso.
Duas horas depois, ele e Bell eram conduzidos por
Crest para uma parte da nave que, até então, permanecera
fechada. Em meio a um complexo de máquinas
interligadas por uma enorme quantidade de cabos, havia
duas poltronas isoladas, dotadas de capacetes. Os
grampos metálicos presos aos mesmos iam diretamente às
máquinas. Um zumbido ameaçador fez-se ouvir. Luzes
acendiam-se e voltavam a se apagar.
— É o doutrinador. Queiram sentar-se nas poltronas.
Perderão a consciência e não perceberão nada do que se
passa ao seu redor. O funcionamento dessa instalação é
totalmente automático. Nesta escala, marco o grau de
transmissão de saber. Como veem, estou escolhendo o
grau mais elevado para ambos. Com isso, se
transformarão espiritualmente em arcônidas. Mas os
traços natos do seu caráter permanecerão inalterados.
Bell lançou um olhar desconfiado para os capacetes.
— Isso até parece uma cadeira elétrica. Tenho a
impressão de estar em Sing-Sing.
— O que vem a ser isso? — perguntou Crest.
— Trata-se de uma instituição onde são presos os
criminosos — esclareceu Rhodan, sarcástico. — Bell tem
medo de levar um choque ao sentar nessa cadeira.
— Não sentirá nada — asseverou Crest em tom
tranquilizador.
Quando Crest apertou os grampos, Rhodan sentiu um
formigamento na pele. O zumbido tornou-se mais forte.
Crest pôs a mão numa chave amarela e olhou para ele.
— Daqui a alguns segundos, você adormecerá, e
despertará em seguida. Ao menos, terá esta impressão. Na
verdade, dormirá por vinte e quatro horas. Só faço votos
para que nada aconteça durante esse tempo, pois qualquer
interrupção representará um grave risco para o êxito do
treinamento-relâmpago. Se surgir alguma emergência,
Haggard e Manoli terão de decidir sobre as medidas a
serem adotadas. E agora...
— Pare!
A voz zangada soou da porta, em cujo limiar se via
Thora. A raiva e o ódio chispavam de seus olhos
vermelho-dourados.
Suas mãos estavam crispadas.
— Proíbo a doutrinação, Crest. Nesta nave não se faz
nada contra minha vontade. Os homens são uma raça
guerreira. Se forem dotados de uma inteligência
excessiva, representarão uma ameaça para a nossa
existência.
Crest deixou a mão pousada na chave.
— Você está enganada, Thora. Eles nos ajudarão a
salvar nosso império. Procurei explicar-lhe as minhas
razões; lamento muito que não as tenha compreendido. Se
não quisermos submergir, precisaremos de Perry Rhodan
e de sua raça. Nossa elite está desaparecendo...
— Se encontrarmos o planeta da vida eterna, eles não
desaparecerão.
Crest sorriu.
— Thora, nunca lhe ocorreu que o relato sobre o
planeta da vida eterna talvez não passe de um símbolo?
Talvez a Terra seja o planeta que procuramos, é lógico
que em sentido figurado. Não me atrapalhe! Tenho muito
que fazer. Daqui a pouco conversaremos.
A voz de Thora assumiu um tom ameaçador.
— Se fizer isso, usarei o gravitador para arremessar
este planeta contra o Sol.
O rosto de Crest tornou-se sério.
— Você não se atreverá a isso, Thora. Assim, estaria
violando nossas leis fundamentais. Aguarde no meu
camarote. Ainda conversaremos sobre isso, enquanto o
doutrinador estiver trabalhando.
Antes que a comandante pudesse responder, Crest
empurrou a chave. O zumbido tornou-se insuportável. O
sangue martelava as têmporas de Rhodan. Ele ouviu,
ainda, Bell gemer. Depois a escuridão espalhou-se por
toda parte. Parecia mergulhar num abismo sem fim.
Dali a alguns segundos não tinha mais consciência do
que se passava em redor.
4
Nestas semanas de calma enganadora, muita coisa
estranha aconteceu no mundo.
Nas colinas situadas ao norte da base, desenvolvia-se
uma atividade febril. Contingentes de tropas foram
retirados, outros foram trazidos. Máquinas e tratores
vindos do norte estacionaram nas depressões dos terrenos
especialmente preparados. Redes de camuflagem foram
estendidas sobre os mesmos. Um exército de especialistas
pôs-se a trabalhar. Realizaram-se medições para localizar
a entrada da galeria. O general Tai-tiang providenciou o
abastecimento de munições para suas peças de artilharia.
Aguardava o sinal convencionado.
Enquanto isso, na nave esférica dos arcônidas, o
tempo corria em disparada por cima de Perry Rhodan e
Reginald Bell, deixando sua marca sob a forma de um
saber concentrado no cérebro de ambos. Subitamente,
118
células adormecidas despertaram para a vida.
Com muito esforço, Crest impediu que Thora
cumprisse sua ameaça de destruir a humanidade. Ela
concordou em aguardar o resultado da experiência. Crest
teve a impressão de que Thora não estava falando sério
quando ameaçou precipitar a Terra contra o Sol.
Houve mais quatro acontecimentos no mundo, que
apressaram a evolução que se vinha processando e lhe
conferiram um fundamento lógico. Embora independentes
uns dos outros, esses acontecimentos guardavam uma
relação estreita entre si. Suas causas situavam-se muito
longe.
Naquela época, um cogumelo mortífero erguia-se
sobre uma pequena cidade, um cogumelo que se
transformaria no símbolo de uma nova era.
***
Era uma ideia maluca. Fred Hangler sabia desde o
primeiro instante, mas quem mandava não era ele, e, sim,
o patrão. Um assalto ao Banco Central de Brisbane em
plena luz do dia! Isso não poderia acabar bem.
Tudo fora planejado nos menores detalhes. Lá fora, o
carro estava esperando. O patrão estava recostado no
assento de trás, com a pistola sobre os joelhos. A porta
estava apenas encostada. Junto ao motorista, Jules Arnold
estava à espreita, com a mão no bolso. Mantinha uma
vigilância ininterrupta sobre a rua principal,
especialmente sobre o guarda de trânsito postado na
esquina. Este não desconfiava de nada. Parado sob o
guarda-sol sacudia os braços, como se dirigisse uma
orquestra, não o trânsito de Brisbane, uma cidade situada
na costa leste da Austrália.
Fred Hangler recebera o trabalho mais difícil. Teria de
entrar no banco e obrigar o caixa a entregar-lhe todo o
dinheiro que se encontrava no cofre. Ninguém contaria
com um acontecimento desses poucos minutos antes do
meio-dia. A surpresa seria completa. Além disso, todo
mundo sabia que à uma hora dessas, até os policiais
ansiavam pela merecida sesta e relaxavam a vigilância.
Tudo seria muito rápido, pois não seria possível evitar o
alarma. Hangler não tinha a menor intenção de matar um
funcionário do banco. Eventualmente, estaria disposto a
enfrentar alguns anos de penitenciária, mas não a forca.
Assim que estivesse de posse do dinheiro, correria
para o carro que estava à espera. Uma viagem curta e
vertiginosa, e logo desapareceriam na garagem de
Jeremias. Depois de dois minutos, mais ou menos, o carro
teria mudado de cor e de placa. O guarda da esquina
juraria em vão sobre suas declarações. O veículo que vira
teria desaparecido sem deixar o menor vestígio.
O patrão pensara em tudo. Sempre pensava em tudo.
Apenas não se lembrava que de que muitos anos antes, a
primeira bomba atômica explodira em Hiroxima. Mas não
devemos ser injustos. Ninguém se lembraria de um
detalhe desses quando estivesse planejando um assalto a
banco. Acontece, porém, que foi justamente esse detalhe
que se constituiu no fator decisivo para o fracasso do
empreendimento.
Ao entrar no saguão, com a pasta numa das mãos e a
pistola na outra, metida no bolso do paletó — Fred
Hangler ficou contrariado ao perceber que ainda havia
alguns clientes. O patrão esperava que há esta hora
ninguém mais fizesse depósitos ou — o que é mais
lamentável — retirasse dinheiro. Paciência. Não se podia
fazer nada.
Colocou-se atrás dos três clientes e ficou aguardando.
O outro guichê já estava fechado. O funcionário que ali se
encontrava bocejou, lançou um olhar de reprovação sobre
o novo cliente e desembrulhou seus sanduíches. Uma
garrafa de leite formava o complemento de sua frugal
refeição.
Seu colega estava empenhado no trabalho. Pagou uma
quantia pequena, deu uma informação ao segundo cliente
e dirigiu-se ao terceiro. Fred Hangler ficou satisfeito ao
perceber que sua fortuna crescia em algumas centenas de
libras. A mão que cingia a coronha da pistola começou a
transpirar. O homem que se encontrava diante dele contou
cerimoniosamente as notas em cima do guichê. O
funcionário conferiu o dinheiro com a mesma atitude.
Subitamente, o caixa que fazia o lanche parou de
comer. Estava bem quieto como se perscrutasse seu
interior. Um brilho estranho surgiu em seus olhos. Como
se fosse por acaso, seus olhos vagaram pelo recinto,
parando em Fred Hangler. Uma ruga surgiu em sua testa
e, então, pisou no botão do dispositivo de alarma.
No saguão, nada de estranho aconteceu. Apenas na
delegacia mais próxima, a um quilômetro dali, uma sereia
começou a uivar. O inspetor de plantão foi arrancado
abruptamente da sesta a que nem devia estar entregue,
pois o relógio ainda marcava alguns minutos para o meio-
dia. Levantou-se perturbado e fitou a sereia. Um número
surgiu em um painel luminoso. Quatro. Era o Banco
Central. Um assalto!
Um assalto? Isso mesmo. Que diabo! Logo agora...
O policial ficou furioso. Tirou o fone do gancho e
berrou algumas ordens. Apertou o cinto e verificou se a
arma se encontrava no coldre. Depois, correu para fora da
sala. No corredor, esbarrou nos homens que acudiam ao
alarma.
— É um assalto no Banco Central! Depressa!
Não se percebia mais nada do descanso do meio-dia.
Poucos segundos depois, o carro com cinco policiais
armados saía do pátio da delegacia e disparava para o
local do crime.
John Marshall já retirara o pé do botão que se tornaria
funesto ao assaltante. Sabia que a polícia só demoraria
alguns minutos, desde que não estivessem todos
dormindo, o que era possível devido ao calor e ao
ambiente pacato da cidade. E não tirava os olhos do
cliente, que esperava pacientemente que o homem que
havia depositado todo aquele dinheiro saísse do saguão.
Depois disso, dirigiu-se ao guichê.
O inspetor fora bastante inteligente ao desligar a
sirena. Assim, conseguiu chegar perto do banco sem
despertar a atenção dos assaltantes e estacionar do outro
lado da rua. Quando os policiais desceram da viatura, o
carro preto estacionado diante do banco pôs-se em
movimento. Um fato que não despertou a atenção de
ninguém. O inspetor admitiu que, se aquele carro fosse de
participantes do assalto, eles não teriam esperado a
chegada da polícia.
Fred Hangler colocou a pasta sobre o guichê e disse
com a voz tranquila:
— Preste atenção, jovem. Quero retirar todo o
119
dinheiro que se encontra no cofre. Aqui estão minhas
credenciais. — E retirou a pistola do bolso, apontando-a
para o caixa. Pelo canto do olho, fitava John Marshall.
Este voltara a mastigar seu sanduíche e aguardava as
coisas que estavam para acontecer. — Não toque nas
instalações de alarma — preveniu o bandido. — Antes
que a polícia chegue o senhor estará morto.
— Eu não diria uma coisa destas — disse Marshall
enquanto mastigava. — Se o amigo virar o rosto verá que
a polícia já chegou.
Hangler fitou-o. Estava perplexo. O caixa que fora
ameaçado tomou-lhe a pistola com um movimento rápido.
Sem oferecer resistência, Hangler virou-se. Viu os cinco
policiais que atravessavam a rua a passos largos e
entravam no banco. As amplas janelas permitiam a
observação da cena.
O inspetor correu na frente dos outros.
— O que houve? — perguntou espantado.
O quadro que se oferecia aos seus olhos era estranho.
Atrás de um dos guichês, um homem comia
tranquilamente um sanduíche e tomava leite, bebida que o
inspetor detestava. No outro guichê, um homem de
aspecto inofensivo era ameaçado pelo outro caixa, que
tinha uma arma na mão. Nos fundos do saguão, outro
homem, vestido com apuro, entrava por uma porta. Ele
também parou perplexo.
— O que está havendo aqui, Myers? — indagou este
último.
O funcionário que segurava a pistola não tirava os
olhos de Hangler.
— Que coincidência! — suspirou. — Santo Deus, que
coincidência!
— Coincidência, por quê? — perguntou o inspetor.
O cavalheiro que entrara pela porta do fundo do
saguão aproximou-se.
— Este homem pretendia assaltar-nos — explicou
Myers. — Marshall tentou um blefe, dizendo que a
polícia estava chegando. O rapaz ficou nervoso e
consegui tirar-lhe a arma. E não é que a polícia chegou
mesmo? Não entendo mais nada.
— Viemos porque o alarma soou na delegacia —
disse o inspetor. — Até parece que o senhor não sabe
mais para que serve o botão que se encontra junto aos
seus pés.
— Não acionei o alarma — asseverou Myers. — Se o
tivesse feito, não teria dado tempo. Este sujeito mal tinha
manifestado suas intenções quando os senhores
apareceram.
— O caso é que a polícia age com muita rapidez —
disse o gerente, radiante.
Pensava que adivinhara o que tinha acontecido.
Hangler, que recobrara o ânimo, disse, com
arrogância:
— Ninguém pode provar que tentei cometer um
assalto. Sempre ando armado. Só ia sacar algum dinheiro.
— Isso mesmo — confirmou Myers. — Só que com a
pistola.
— Tudo isso será esclarecido no devido tempo —
interveio o inspetor e fez um sinal a um dos outros
policiais. Um par de algemas fechou-se em torno dos
pulsos do bandido. — O que sei é que há exatamente três
minutos o alarma soou na delegacia. — Olhou o relógio.
— Ou melhor, há quatro minutos.
— Há quatro minutos, eu ainda estava atendendo
outro cliente e nem desconfiava de assalto. Marshall já
iniciara o seu descanso.
— Ah, é? — disse o gerente, lançando um olhar de
censura ao outro caixa, — De manhã, o senhor chega
atrasado e, em compensação, inicia o horário de almoço
antes do tempo. Estou gostando!
— Eu também — disse Marshall, calmo.
— Foi por isso que aceitei o emprego neste banco.
O gerente franziu a testa. Myers sorria. O inspetor
empurrou o preso em direção à porta.
— Vá andando. Temos muito que conversar. — E,
voltando-se para o gerente:
— Dê-se por feliz por dispor de gente tão decidida.
Por pouco não perde uma boa nota. Assim que tiver
terminado o interrogatório desse sujeito, precisarei do seu
testemunho, senhor Myers.
Saiu do banco à frente dos outros policiais. Pouco
depois, o carro arrancava em alta velocidade.
Marshall acabou de tomar seu leite.
— O que foi que o senhor disse? — perguntou o
gerente, olhando a garrafa de leite com uma expressão de
repugnância. Ao que parecia, também não gostava muito
daquela bebida.
— Afirmei que gosto de trabalhar com o senhor.
— Prefiro isso! Myers, meu caro, quero agradecer-lhe
por sua pronta atuação. Se não tivesse acionado o alarma
e desarmado aquele sujeito...
— Não acionei o alarma — disse Myers.
— Só vi o carro de polícia parar na rua e eles entrarem
correndo. Só então pude agir. Se alguém deu o alarma, só
pode ter sido Marshall. Mas não creio que seja possível; a
polícia não poderia ter chegado com tamanha rapidez.
Entre o momento em que ele sacou a arma e a chegada
dos policiais não se passaram cinco segundos. Para mim,
isto tudo está muito misterioso.
O diretor voltou-se para Marshall.
— O senhor acionou o alarma? — perguntou
asperamente.
— Acionei senhor.
— No momento em que o bandido apontou a arma
para Myers?
— Não, senhor. Antes disso.
— Antes? — O rosto do gerente parecia transformado
num ponto de interrogação. — Antes disso o senhor não
poderia saber o que o sujeito pretendia fazer. Ou será que
o senhor adivinha pensamentos?
Marshall confirmou com um aceno tranquilo da
cabeça.
— Deve ser isso. O fato é que eu sabia quais eram as
suas intenções. Estava parado junto ao guichê, esperando
a vez de ser atendido. Subitamente, fiquei sabendo que
sua mão direita segurava uma pistola, com a qual
pretendia ameaçar Myers. A única coisa que me cabia
fazer era acionar o botão do alarma. Afinal, é para isso
que ele está aqui.
— Isso é estranho, muito estranho. — O gerente
coçou um ponto da cabeça onde sabia existirem alguns
fios de cabelo. — O senhor deve ter captado as radiações
do cérebro daquele homem. É inacreditável! Se a
diferença de tempo não estivesse aí para confirmar tudo,
eu não acreditaria em uma só palavra do que está dizendo.
Isso já lhe aconteceu antes?
120
— O quê?
— Essa captação de pensamentos alheios. Acho que
isso não pode surgir de uma hora para outra. Será que
você é capaz de adivinhar o que estou pensando?
John enrugou a testa. Parecia refletir profundamente.
De súbito, seu rosto iluminou-se.
— Ora, senhor, isso seria ótimo!
— Hein? — fez o outro. — O que seria ótimo?
— A recompensa para Myers e para mim. O senhor
estava pensando em dar-nos um prêmio de cem libras, não
é?
O diretor encarou-o com a expressão de quem perdeu
a razão. Depois, um ar de medo começou a cintilar nos
seus olhos. Num gesto defensivo, estendeu as palmas das
mãos em direção a Marshall.
— Que coisa horrível! Um telepata! Senhor Marshall,
o senhor é um telepata. Realmente pensei em dar-lhes esta
recompensa. É incrível! Quando isso começou? Lembra-
se?
Marshall sorriu e colocou a garrafa de leite debaixo do
balcão. Parecia ter muito menos que os vinte e seis anos
que trazia na certidão de nascimento, em especial, quando
sorria.
— Não sei. Na escola eu sabia muito mais que os
colegas e sempre tirava notas muito altas, porque
conhecia a resposta dos problemas ou do que quer que
fosse. Na certa, eu lia, sem saber, o pensamento dos
professores. Engraçado! Agora percebo que se trata de
muito mais que um simples pressentimento como eu
julgava na época.
— É isso mesmo! — murmurou o gerente. Depois,
dirigiu-se a Myers e tirou-lhe a pistola. — O senhor ainda
vai arranjar uma desgraça. Já pensou no que pode
acontecer se isso disparar? — enfiou a arma no bolso e
voltou-se para Marshall. — O senhor tem que se submeter
a um exame. O senhor é um fenômeno! É fantástico! Se
não tivesse assistido pessoalmente, não acreditaria.
É claro que os outros não acreditaram. Especialmente
os jornais. Publicaram artigos enormes sobre o assalto
malogrado. Usaram títulos; “Telepata Desmascara
Assaltante”. Mas ninguém acreditou na história. Jules
Arnold e o patrão foram os únicos que refletiram a
respeito. Mas isso não lhes adiantou nada.
Naquela noite, John Marshall não foi para a cama tão
cedo como de costume. Trancou a porta de seu pequeno
apartamento de solteiro, foi à minúscula cozinha,
preparou um lanche e sentou-se na sala. Os
acontecimentos do dia voltaram a desfilar em sua mente.
Fred Hangler era um bandido perigoso; ele o soubera
pelo noticiário dos vespertinos. Mas não notara nada de
extraordinário nele quando o mesmo entrou no prédio.
Estava ocupado com seus sanduíches. Subitamente, algo
se insinuou em sua mente.
...tenho de esperar até que esses sujeitos que se
encontram à minha frente tenham sido atendidos... quem
sabe se não vão fazer um depósito... saberei lidar com o
caixa... colocarei a pistola no seu rosto... o patrão está
esperando lá fora... um assalto tão...
Embora não entendesse nada, John reagiu com
extrema rapidez. Havia quatro clientes. Era evidente que
só podia ser o que tinha chegado por último.
...que diabo! Este sujeito ainda está sacando dinheiro...
Ao sentir, com tamanha nitidez, o pensamento raivoso
do quarto homem, John teve um calafrio. Observou com
cuidado. A mão direita estava enfiada no bolso do paletó.
A pistola! Era verdade. Não havia a menor dúvida.
John acionou o alarma.
...em compensação este sujeito está fazendo um bom
depósito. Só faltam alguns segundos. Calma...
Certa vez John conhecera e amara uma jovem. Muitas
vezes dizia coisas que ela estava a ponto de lhe
comunicar. Achavam que era o exemplo perfeito da
afinidade espiritual.
...tomara que não apareça mais ninguém... engatilhar...
agora...
Talvez fosse mesmo transmissão de pensamento,
refletiu John. Se o pensamento de alguém fosse muito
intenso, as tênues radiações do seu cérebro poderiam
tornar-se mais fortes, de tal forma que pudessem ser
captadas por outrem. Ele, John, devia possuir um dom
especial para isso, mas nunca o percebera com tamanha
nitidez como naquele dia. Estava convencido de que teria
sido capaz de captar todos os pensamentos do bandido, se
ele mesmo não estivesse tão nervoso. Havia o exemplo do
gerente. Quando este lhe pediu que desse uma mostra da
sua capacidade, ele conseguiu fazê-lo.
...e agora... a arma... sim... agora...
John suspirou. O interrogatório realizado na parte da
tarde fora breve. Reduziram suas declarações a termo, ele
as assinou e tudo estava liquidado. Transmissão de
pensamento — bolas! O inspetor soltara um palavrão.
Depois, gracejando, disse-lhe que talvez fosse por causa
do leite. Mas acabou agradecendo, aludindo a uma
extraordinária rapidez de reflexos. De qualquer maneira,
Fred Hangler estava trancado na cela.
— Quem sabe se não se trata de uma capacidade que
pode ser desenvolvida? — refletiu Marshall em voz alta.
— Todo e qualquer tipo de saber pode ser melhorado,
desde que nos esforcemos. Até agora não prestei atenção
a isso; pensei que fosse simples coincidência. Pode ser
que outras pessoas que possuam este dom incidam no
mesmo erro. Ouve-se falar em telepatia nos romances e
nos relatos de experiências realizadas por certos
cientistas, mas ninguém acredita que ela exista. Bem,
acabo de perceber que ela existe. Podia tentar outras
provas. Se fosse verdade...
Um quadro que parecia utópico desenhou-se diante de
seus olhos. Via-se como a oitava maravilha do mundo.
Políticos e magnatas disputariam suas boas graças.
Qualquer um gostaria de contar com o assessoramento de
um telepata, pois, assim, ficaria sabendo de antemão as
intenções dos concorrentes. E, é óbvio, um homem desses
seria muito bem pago.
“No apartamento ao lado, reside à senhorita Julie”,
disse John de si para si. “Pelo que sei, ela está em casa, e
a única coisa que nos separa é esta parede. Uma parede
não pode deter pensamentos. Talvez valesse a pena
tentar...”
De súbito, sentiu-se tomado por uma excitação febril.
Os acontecimentos daquele dia não deixavam margem
para dúvidas. Se quisesse, poderia ler pensamentos. Santo
Deus, por que não havia percebido isso antes? Agora
poderia provar a si mesmo que não era sonho nem
coincidência.
Levantou-se e foi até a parede.
Ao encostar o ouvido na mesma, sentiu a respiração
121
de uma pessoa. Concluiu que a senhorita Julie já estava na
cama. Por certo, ainda estaria lendo um pouco. Talvez
fosse o jornal que trazia a notícia do assalto frustrado. Se
assim fosse, há esta hora já saberia que perto dela morava
um herói.
De resto, tudo estava em silêncio. John procurou
concentrar-se. Evocou a imagem da moça, viu-a deitada
na cama, reconheceu o rosto que o fitava, um tanto
admirada. E depois...
Um choque elétrico pareceu atravessar o corpo de
John.
No início, pensou que estivesse imaginando coisas,
mas as dúvidas se desvaneceram. Mais uma vez, os
pensamentos alheios pareciam introduzir-se no seu
cérebro, expulsando os seus. Depois de algum tempo, não
só compreendeu esses pensamentos, mas chegou a ver,
com os olhos da moça. Viu o livro que ela lia, o quebra-
luz sobre a mesinha de cabeceira, viu as linhas impressas
— e conseguiu lê-las.
Apavorado, fechou os olhos, mas os pensamentos
continuaram. A moça guardou o livro, mas continuou a
pensar. E — que coisa estranha! — pensava nele, em
John.
Céus! O que pensava!...
John enrubesceu como um adolescente recuou da
parede e arregalou os olhos. Caiu sentado na poltrona,
estarrecido. De repente, irrompeu numa gargalhada.
Era verdade! Não era fantasia e nem coincidência!
Podia captar os pensamentos dos outros, desde que se
concentrasse sobre a pessoa. Não havia mais dúvida.
Mas seria preferível que ninguém soubesse disso. Ao
menos, por enquanto. Teria de alcançar certo grau de
perfeição antes de utilizar sua capacidade num fim
lucrativo.
Esqueceu o noticiário dos jornais, que a maioria dos
leitores não levava a sério. Mas não se esqueceria de uma
coisa: visitar a senhorita Julie no dia seguinte.
* * *
Com Anne Sloane as coisas eram totalmente
diferentes.
Desde os dezoito anos, sabia que não era uma criatura
igual às que geralmente são designadas como normais.
Seu pai, um célebre físico nuclear e que colaborara na
produção das primeiras armas atômicas, nunca a deixara
na incerteza. A mãe ficara exposta a um forte feixe de
radiação três meses antes do parto. De início, não se
percebeu nenhuma consequência, mas, depois que Anne
nasceu, a atenção do professor Sloane concentrou-se
sobre a filha. Quando ela completou nove anos, surgiu o
primeiro desvio. O forte desejo de Anne movimentara um
trem de brinquedo, embora o mesmo não estivesse ligado
à corrente. Sua vontade mostrou-se suficiente para pôr o
trem em movimento. De início, o professor Sloane ficou
assustado, mas acabou compreendendo que a estrutura de
seu cérebro devia ter sofrido alterações em consequência
da radiação. Certas capacidades ociosas do espírito foram
despertadas e desenvolvidas.
Anne Sloane possuía o dom da telecinese.
No curso dos anos, aquilo que fora um simples
pressentimento acabou por transformar-se em certeza.
Mas só quando Anne completou dezoito anos, seu pai
esclareceu-lhe sobre tudo. Anne começou a observar-se
sistematicamente. E sempre descobria variantes novas da
telecinésia. Acabou fugindo para a Europa sob um nome
fictício, a fim de escapar às investigações dos cientistas.
Foi-se aperfeiçoando em silêncio, até que conseguiu
dominar a matéria com a força de sua vontade.
Estava com vinte e seis anos. Voltara a residir com os
pais, em Richmond, na Virgínia. Era respeitada e temida,
mas o Departamento de Estado garantiu sua segurança. E
tinha muitos e bons motivos para isso.
Anne estava deitada na varanda, tomando um banho
de sol, quando os dois cavalheiros de terno cinza tocaram
a campainha e pediram à senhora Sloane que lhes
permitisse falar com sua filha. Não era a primeira vez que
recebiam visitantes desse tipo. Percebia-se que eles eram
do serviço secreto.
Mas, desta vez, havia alguma coisa diferente.
O carro no qual haviam chegado estava estacionado na
ruazinha tranquila, bem diante da casa. Outro carro, com
quatro homens, parou logo atrás. Os rostos eram
inexpressivos, mas os olhos comprimidos e vigilantes
despertariam a atenção de qualquer um. Mantiveram-se
atentos e não desviaram os olhos da casa em que os dois
cavalheiros haviam entrado.
A senhora Sloane notou logo que não se tratava dos
agentes que costumavam aparecer por ali. A segurança
que irradiavam revelava grande dose de poder e
autoridade. Deviam exercer cargos elevados dentro dos
setores de segurança.
— Desejamos falar com a senhorita Sloane — disse
um deles. Um homem de aparência jovem, cujo cabelo
ralo formava uma coroa dourada em torno da calva. As
têmporas embranquecidas reforçavam a impressão de que
se tratava de um homem pacato. — O assunto é muito
importante.
— Posso imaginar — respondeu à senhora Sloane,
que já estava habituada a visitas desse gênero. — Mas
uma missão do governo. Fizemos tudo para escapar a
isso, mas, infelizmente...
— A liberdade do mundo ocidental é mais importante
que a comodidade de um indivíduo — disse o homem em
tom solene. — O assunto é, realmente, de suma
importância.
— Minha filha está na varanda. Venham comigo; eu
os levarei até lá.
O outro visitante parecia mais velho. Mas também
irradiava tamanha benevolência e jovialidade que
qualquer um se sentiria tentado a chamá-lo de tio.
Cumprimentou a senhora Sloane com um amável aceno
de cabeça e seguiu o colega.
Anne levantou os olhos, contrariada, quando a mãe
anunciou os dois cavalheiros. Mas, quando fitou os olhos
amáveis, mas decididos, dos seus visitantes, sua
resistência desvaneceu-se. Seu instinto disse-lhe que não
se tratava de simples agentes.
— Os senhores me deixaram em paz por algum tempo
— disse, apontando para duas cadeiras que se
encontravam junto a uma mesa. — Sentem-se e digam o
que os traz aqui. Mãe será que a senhora pode arranjar um
refresco para os cavalheiros?
Não aguardou nenhuma apresentação, pois seus
visitantes misteriosos sempre se chamavam Smith, Miller
ou Johnson. Muitas vezes, suas faculdades lhe haviam
122
permitido prestar bons serviços ao FBI ou à organização
de defesa, por isso, gozava da proteção do governo.
O mais jovem dos dois, que ostentava a coroa de
cabelos dourados, puxou a cadeira e estendeu a mão a
Anne.
— Sou Allan D. Mercant. Não sei se este nome
significa alguma coisa para a senhorita. Sou o chefe do
Conselho Internacional de Defesa. Permita-me que lhe
apresente o coronel Kaats, chefe da Segurança Interna,
um departamento da Polícia Federal.
Anne estreitou os olhos, dando ao rosto uma
expressão de desconfiança.
— É um prazer conhecê-los. Mas acho estranho que
logo os senhores se deem ao incômodo....
— Pelo contrário. Temos um prazer imenso em
conhecer pessoalmente nossa eficiente colaboradora. Já
ouvimos muito a seu respeito. — Mercant sentou de tal
maneira que podia fitar os olhos de Anne. Kaats tomou
lugar bem perto dele. Contemplou a moça com uma
expressão de benevolência. — Provavelmente há de
imaginar que não viemos exclusivamente para conhecê-la.
— É óbvio — confirmou Anne.
— Um grave dever nos obrigou a vir até aqui — disse
Kaats com um sorriso triste. — Precisamos de seu auxílio.
— Era o que eu imaginava — Anne levantou os olhos
para o céu azul. Indagou de si para si se alguma vez
voltaria a ter a vida pacata e despreocupada que tivera na
juventude. — Sou toda, ouvidos.
Mercant pigarreou.
— Prefiro começar do início. Só assim poderá saber o
que aconteceu e compreenderá por que precisamos do seu
auxílio. Não se trata de um caso corriqueiro. Não estamos
atrás de um espião ou de um agente que desejamos
reduzir à inatividade. Estamos em busca da paz para
nosso planeta.
— Como sabem, já fiz uma tentativa...
— Sabemos disso. Procurou obrigar as grandes
potências a destruir seus arsenais nucleares. A tentativa
estava fadada ao fracasso, pois a violência só pode ser
vencida pela violência. Ao menos, há muita gente que
pensa assim. Não conseguiram impedir a guerra, mas
houve quem conseguisse. Sabe a quem me refiro, a Perry
Rhodan.
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— Esta visita tem alguma relação com o mesmo?
— Tem. Já conhece a história do ex-major Perry
Rhodan. Ele comandou a primeira viagem tripulada à
Lua. Foi acompanhado pelos capitães Reginald Bell e
Clark Fletcher e pelo tenente-médico Eric Manoli. Ao
retornar a Terra, a Stardust não pousou em Nevada,
conforme estava previsto, mas no deserto de Gobi. Por
ocasião do pouso na Lua, Rhodan encontrou alguma coisa
que lhe conferiu um poder extraordinário. Nesse meio
tempo, soubemos que se tratava de uma nave espacial
extraterrena, que estava pousada em nosso satélite natural
e dispunha de recursos técnicos inconcebíveis. Quando a
guerra entre o Ocidente e o Oriente estava prestes a
irromper, Rhodan intrometeu-se em nome de uma terceira
potência e impediu que as duas partes se exterminassem
mutuamente. É um ato louvável, não há como negar isso.
Por outro lado, porém, essa demonstração de força
representa uma terrível ameaça. Imagine só, senhorita
Sloane: em alguma parte do mundo existe um centro de
poder que a qualquer momento pode destruir todas as
nações da Terra. Hoje, Perry Rhodan está em condições
de impor sua vontade a todos os homens. Com o auxílio
dos seres extraterrenos, quase conseguiu frustrar as
expedições lunares que após isso foram lançadas por nós
e pela Federação Asiática. Isso quer dizer que o seu poder
já se estende pelo espaço cósmico. No deserto de Gobi
formou-se uma área de poderio tão forte que não pode ser
concebido nem por nossa imaginação. Armas e naves
espaciais são produzidas sem que ninguém o possa
impedir. As instalações são cobertas por uma cúpula
energética invisível que resiste até a um ataque atômico.
Sabem manipular a força da gravidade e, a pequena
distância chega até a dominar a vontade humana.
Calou-se, encarando Anne numa atitude de
expectativa.
— Concordo em que é uma situação extraordinária —
respondeu a moça — talvez penosa, mas não chega a ser
ameaçadora. Por que Perry Rhodan representaria um
perigo para nosso mundo? Sua intervenção não prova que
ele deseja evitar a guerra?
— A senhorita conhece os seus motivos? —
respondeu Mercant. — Ninguém sabe o que se passa no
Gobi. Até hoje, nenhum agente conseguiu penetrar na
base. Rhodan recusa qualquer esclarecimento.
Sua atuação traz, ao menos, uma vantagem: a guerra
entre o Ocidente e o Oriente foi transformada em fantasia.
Até mesmo os inimigos mais encarniçados costumam
unir-se quando surge um adversário mais poderoso.
Estamos colaborando com os serviços secretos da
Federação Asiática e do Bloco Oriental, infelizmente sem
o menor êxito. Por isso, pensamos em recorrer à
senhorita.
— O que querem que eu faça? — perguntou Anne. —
Como sabem, minhas faculdades são limitadas. Além
disso, não tenho a menor ideia do comportamento de uma
muralha energética; não sei se a mesma deixará passar
radiações cerebrais. E isso seria necessário para realizar
qualquer ato telecinético. Além disso, não sei como
poderia agir.
— E claro que lhe forneceremos instruções completas
— apressou-se Mercant a declarar, pois via nas palavras
da moça um princípio de consentimento. — Já
elaboramos um plano detalhado para sua atuação. O
objetivo final consiste em reduzir Rhodan à inatividade e
pôr as mãos nos instrumentos do seu poder.
— Por quê? Ele não lhes fez nada! Afinal, Rhodan é
americano, não é?
— Foi americano — interveio Kaats. — Foi privado
de todos os seus direitos. Perry Rhodan é agora, um
inimigo da humanidade.
Anne voltou a contemplar o céu. O sol andara mais
um pedaço, aproximando-se da copa de uma árvore.
Logo, a sombra seria projetada sobre a varanda.
— Um inimigo da humanidade? — disse. — Sempre
imaginei que isso fosse outro tipo de pessoa, não alguém
que impediu uma guerra nuclear.
Mercant ficou nervoso.
— Ouça senhorita Sloane, a decisão a este respeito
deve ficar por nossa conta. Sabemos mais que a senhorita.
Rhodan pretende lançar mão não apenas do poderio
militar, mas também de todo o potencial das indústrias da
Terra. Seus recursos já ultrapassam tudo que conseguimos
123
imaginar. Eles seriam suficientes para abalar os
fundamentos econômicos de nossa existência.
— Isso é formidável — ironizou a moça. — Gostaria
tanto de travar conhecimento com esse Rhodan. Por isso
estou interessada em ouvir o que os senhores têm a me
dizer.
— Terá oportunidade de conhecê-lo, se estiver
disposta a ajudar-nos — prometeu Mercant. — Rhodan e
seus aliados estão à procura de amigos e colaboradores. A
senhorita se oferecerá.
Anne ficou perplexa.
— Ah, é? Será possível que o inimigo mundial
número um esteja à procura de amigos? Como poderá
fazer uma coisa dessas?
— Às claras! Quem o impediria? Ninguém sabe para
onde viaja o vizinho que arruma as malas. O Dr. Haggard
foi sequestrado na Austrália. Está trabalhando para
Rhodan. Tentamos introduzir agentes nossos na base, mas
foram descobertos. Talvez a senhorita tenha mais sorte.
— Tenho minhas dúvidas. — Anne sacudiu a cabeça.
— Dificilmente serei mais bem sucedida que seus agentes
que, afinal, dispõem de mais experiência que eu.
— É justamente porque dispõe de menos experiência
que terá êxito. Nossos agentes são muito desconfiados e
reagem de acordo com esse estado de espírito. Além
disso, a senhorita é uma mulher.
— Sem dúvida — confirmou rindo. — O que é que
uma coisa tem que ver com a outra?
— Tem muita coisa. Um dos membros da tripulação
da Stardust, o capitão Fletcher, quis voltar para os Estados
Unidos. Rhodan aplicou-lhe um bloqueio hipnótico que
provocou uma amnésia artificial. Infelizmente Fletcher
sofreu um derrame cerebral ao ser interrogado pelas
autoridades australianas. A viúva faleceu algumas
semanas depois, ao dar à luz o primeiro filho. Sua morte
vem sendo mantida em segredo. Mas temos seus
documentos e uma fotografia. Olhe senhorita Sloane.
Mercant tirou a carteira e pegou uma fotografia do
tamanho de um cartão postal. Anne segurou-a, hesitante, e
examinou-a. Viu uma mulher esbelta, morena, que não
teria mais de vinte e cinco anos. Não notou nada de
especial, a não ser certa semelhança com alguém que
conhecia muito bem.
— Parece com a senhorita, não é?
Kaats proferiu a pergunta em tom de expectativa.
Agora, Anne também estava percebendo. Havia uma
semelhança remota, nada mais.
— Ninguém pensaria em confundir-me com ela, se é
isso que quer dizer. Não acredito que possa desempenhar
o papel dessa mulher.
— Isso não é tão importante — disse Mercant. —
Nem Rhodan, nem Bell e nem Manoli conheciam a
senhora Fletcher, mas pode ser que já tenham visto uma
fotografia dela. Por isso, a pequena semelhança é tão
importante. A senhorita tentará penetrar na base, fazendo-
se passar pela senhora Fletcher.
— Não creio que dê certo. Acho que Rhodan não cairá
num truque desses — disse Anne.
— Ele cairá. Vai compreender que a viúva de Fletcher
tem interesse em entrar em contato com ele para saber os
motivos de sua morte. Uma vez no interior da cúpula,
poderá valer-se de suas faculdades. Acredito que nem
mesmo os arcônidas conhecerão qualquer recurso contra
isso. Pelo menos, esperamos que não conheçam.
— Os arcônidas?
— Isso mesmo. São os seres estranhos que realizaram
um pouso forçado na Lua. Vêm de um sistema solar que
distam trinta e quatro mil anos-luz do nosso. Parece
inacreditável, não é? Mais exatamente, eles vêm do grupo
estelar M-13-NGC-6205.
— Nesse caso, se eles vêm mesmo de uma estrela
distante, os recursos inconcebíveis de que dispõem se
tornariam compreensíveis. Receio que minhas faculdades
limitadas não os impressionarão.
— Esperemos. De qualquer maneira, noto que está
demonstrando certo interesse pela tarefa. Portanto, tenho
motivo para supor que aceita.
— Não me resta alternativas. Além disso, para ser
franca, o assunto realmente me interessa.
Mercant remexeu o bolso.
— Aqui estão suas instruções. Estão acompanhadas de
um mapa aerofotogramétrico da área. Antes de partir, fará
um curso intensivo de psicologia.
Subitamente, Anne sentiu frio. Olhou para o alto e viu
que o sol estava encoberto pelos galhos da árvore.
Levantou-se.
— Vamos entrar. Estou com frio. Os senhores podem
explicar todos os detalhes com um copo de uísque.
Enquanto caminhava à frente dos dois homens, teve,
de repente, a impressão de que iria lançar-se a uma tarefa
que ultrapassava suas forças. Perry Rhodan, o astronauta
festejado, merecera sua admiração irrestrita quando se
lançou à aventura no cosmos. Não compreendera muito
do que ocorreu depois; só sabia que ele não era nenhum
traidor, muito menos um criminoso, embora tivesse o
mundo contra si. E agora, ela também o combateria.
De repente, não se sentiu mais tão segura de que o
faria.
***
Ao contrário de Anne Sloane, Ras Tchubai não
suspeitava de nada. Nascera em El Obeid, um lugarejo do
Sudão, estudou na índia e vivia há dois anos em Moscou,
a metrópole do Bloco Oriental. Trabalhava num
laboratório de pesquisa científica que se dedicava à
produção de um soro destinado a prolongar a vida.
Na qualidade de químico, participou de uma
expedição pelo interior da África, onde existia certa
qualidade de abelhas selvagens, cuja geleia real, rica em
hormônios, era imprescindível à produção do soro.
Há várias semanas, a expedição vagava pelas florestas
que cercam as nascentes do Congo, longe da civilização e
sem possibilidades de reaprovisionamento. O contato pelo
rádio fora interrompido em virtude de uma pane no
transmissor-receptor. Os carregadores nativos haviam-se
demitido um por um, à sua maneira, mergulhando na
escuridão da floresta.
A situação era desesperadora. Justamente na época da
tecnologia avançada, qualquer retorno às condições
primitivas de existência significava a morte certa. Os dois
russos, o alemão e o africano Ras Tchubai estavam presos
em meio à imensidão da mata virgem, cercados por um
ambiente selvagem e hostil e longe de qualquer auxílio.
Até parecia ironia quando o ruído dos jatos soava por
cima das copas das árvores; encontravam-se a poucos
124
quilômetros de distância, mas, assim mesmo, estavam
fora do seu alcance.
Os mantimentos escassearam. E os remédios também.
O chefe da expedição suspirou.
— O diabo que carregue essas abelhas milagrosas!
Dizem que prolongam a vida. Para isso, não precisamos
de abelhas, mas de algumas latas de conservas e muita
sorte. Ras, você é o único que tem algum conhecimento
desta terra. Se existe alguém que possa nos ajudar, este
alguém é você.
Estavam sentados diante da barraca, junto à fogueira
que soltava uma fumaça insuportável. Só havia lenha
úmida, pois o sol nunca penetrava até ali.
— Só nasci na África, mas vivi na índia e em Moscou.
— Seus pais viveram aqui e seus avós também.
Transmitiram-lhe seu saber e seus instintos. Só você está
em condições de achar um caminho em meio a este
labirinto. Há dias tentamos em vão encontrar ao menos
uma aldeia. Já não temos força para prosseguir na luta.
Um de nós tem de seguir sozinho... e é você, Ras.
Ras assustou-se. Era verdade que seus avós haviam
lutado por sua independência enfrentando os brancos; até
seus pais o fizeram. Viveram nas estepes infinitas e nas
matas impenetráveis, alimentando-se de caça. Mas uma
geração os separava. Qual era o conhecimento que tinha
dos perigos da selva? Nenhum; ao menos, praticamente
nenhum. Sacudiu a cabeça.
— É inútil, tenho certeza. Nunca encontrarei o
caminho sozinho. Nem sabemos se nesta selva ainda vive
alguém, alguma tribo. Os nativos costumavam habitar as
estepes e as zonas costeiras. Mesmo as tribos mais
primitivas sentiram-se atraídas pela civilização. A mata
virgem foi abandonada. Os animais tomaram posse da
área. Como é que eu, sozinho, poderei encontrar o
caminho que nos levará de volta à civilização?
Enquanto falava, um quadro do passado distante
surgiu em sua mente. Nas grandes estepes do Sudão havia
um oásis no qual se formou uma aldeia que se
transformou numa verdadeira cidade: El Obeid. Era o
lugar em que seus pais viveram e onde ele tinha nascido.
Ali passara os dias despreocupados da infância e a
juventude. A escola e seus velhos professores, que
evocavam travessuras quando se pensava neles. O velho
chefe que costumava sentar-se sob o pé de fruta-pão junto
ao lago para contar histórias às crianças. Como Ras se
lembrava. Até parecia que tinha sido no dia anterior. E
seus pais...
— O instinto, Ras! — disse o chefe da expedição,
arrancando-o dos seus sonhos. — Não é só a bússola que
resolve, mas, também, o instinto. Não se esqueça de que
seus pais ainda eram selvagens na infância. A civilização
que você ostenta, não passa de uma fina camada que pode
ser removida a qualquer momento. Desculpe se essas
palavras parecem duras ou grosseiras, mas elas exprimem
a pura verdade. Só algumas gerações fazem com que essa
camada se torne mais espessa e resistente. Você pertence
à primeira geração. Se um de nós tem chance de
sobreviver, é você. Logo, é você que tem maiores
possibilidades de conseguir auxílio.
Os olhos de Ras vagaram de um companheiro para
outro. O alemão estava agachado junto ao fogo; parecia
sentir frio, embora o tempo fosse quente e abafado.
Enxugava as botas e os pés, atingidos pela umidade do
pântano. Um dos russos estava sentado num tronco podre,
olhando para o chão com expressão sombria. Tinha a
espingarda ao seu lado, mas só lhe restavam dois
cartuchos. O chefe da expedição encarou Ras numa
atitude de expectativa. O estudante de química suspirou.
— O chefe é o senhor. Se quiser, tentarei, mas não
sei...
— Você conseguirá. Tome uma espingarda e cinco
balas. Ficaremos com dez para caçar. Além disso, levará
sua cota de medicamentos. Não é muita coisa, mas servirá
para o caso de um ataque. Há água em abundância, mas
você terá de caçar.
— Quer dizer que não receberei mantimentos?
— Não. Os mantimentos estão muito escassos. Sinto
muito, mas não vejo alternativas. Você partirá hoje.
Ras sabia que não adiantaria argumentar. Submeteu-se
à ordem e despediu-se dos companheiros. Afastou-se a
passos firmes e penetrou na mata. Os galhos fecharam-se
atrás dele, separando-o dos amigos que permaneciam
imóveis na pequena clareira, seguindo-o com os olhos.
No início, as coisas não foram tão ruins como ele
esperava. Encontrou uma trilha formada pelas pisadas dos
animais e seguiu por ela em direção a oeste. Se
continuasse a andar uns mil quilômetros nessa direção
chegaria à costa, pensou amargamente. Acontece que na
velocidade que ele andava isso levaria semanas ou meses.
Era inútil. Mas o que podia fazer? Talvez o acaso viesse
em seu auxílio, fazendo-o encontrar uma tribo de
nômades ou pigmeus. Ou então...
El Obeid!
Se tivesse ficado lá, sem dúvida estaria vivendo bem.
É verdade que não teria estudado no exterior, mas
contaria com os recursos do local e talvez chegasse a ser
professor. O certo é que teria a chance de uma vida longa.
Talvez seus pais ainda estivessem vivos. E sua irmã, por
certo, ainda estaria residindo, só, na velha casa que lhes
pertencia. Fazia muito tempo que não a via.
Cuidado!
Foi apenas um macaco que, em meio à folhagem,
havia descoberto o andarilho solitário e exprimia sua
admiração. Sua tagarelice provocou um eco bastante
animado. Ras pensou em abatê-lo com um tiro, mas ainda
não estava com fome, embora naquele dia não tivesse
comido quase nada. Prosseguiu a passos largos.
A escuridão veio depressa. Decidiu que, em hipótese
alguma, pernoitaria no solo. Teria de encontrar uma
árvore cujo primeiro galho pudesse atingir com a mão.
Não era fácil. Quando a escuridão estava quase completa,
descobriu um gigante tombado, que abrira uma brecha na
vegetação. Correu pelo tronco e atingiu um galho
bifurcado, por onde atingiu os numerosos caminhos que
conduziam a um novo reino, ainda desconhecido. Um
emaranhado de galhos formava uma cobertura situada a
mais de vinte metros do solo.
Não foi difícil encontrar um lugar para repousar. Um
tipo de caverna dava proteção contra o vento e fornecia
uma cobertura nas costas. Desenrolou a coberta que trazia
no ombro e estendeu-a. Encostou a espingarda num canto.
Continuava sem fome, mas, em compensação, sentia-se
muito cansado. Deitou na depressão formada pelos
galhos, prestou atenção, por um instante, aos ruídos da
selva e adormeceu.
Sonhou. E, por uma coincidência estranha, seus
125
sonhos fizeram-no tornar mais uma vez ao lugar em que
passara a infância. Percebeu tudo com tamanha nitidez
que nem parecia sonho, mas realidade. O velho chefe
contava as histórias dos dias em que ainda andava pelas
estepes de arco e lança, para combater os guerreiros
inimigos. A irmã foi ao poço com um jarro. Os pais...
Ras despertou subitamente. Ouvira um ruído que não
pertencia ao concerto noturno.
De início, o tronco estremecera ligeiramente, como se
alguém tivesse saltado sobre ele, de um ponto situado
pouco acima. Seguiu-se um tatear, como se alguém se
aproximasse. Alguma coisa se arrastava sobre a madeira.
Ras ergueu-se e procurou a arma. A mão percorreu o
espaço; não a encontrou logo. Quando tocou nela, porém,
fê-lo do lado errado. O leve contato bastou para derrubá-
la. Antes que Ras pudesse segurá-la, caiu sobre a beirada
da pequena plataforma e despencou para o solo. Bateu
várias vezes nos galhos e folhas até que se ouviu um
baque surdo. E foi só.
O silêncio retornou.
Ras tremia de medo. O pavor gerado pela superstição
tomou conta dele. Voltou a ouvir o tatear arrastado.
Tornara-se mais forte.
E, então, seu coração pareceu parar por um momento:
viu duas luzes um pouco à frente, não estavam longe.
Devia ser um gato-do-mato que o seguira pelo faro.
Ras sabia que estava perdido. Sua arma estava no
solo, lá embaixo. A faca era tão pequena que não serviria
para nada. Com ela, jamais conseguiria defender-se de
uma fera perigosa. Mesmo assim, retirou-a do cinto.
O par de olhos fitava-o na escuridão, a menos de três
metros de distância. Ras chegou a pensar que sentia o
cheiro nauseabundo da respiração do animal. Ficou
sentado, recostou-se contra o tronco... e esperou.
À esquerda ouviu-se um chiado. O par de olhos sumiu
de repente. A fera saltara sobre o rival. Ras não via nada,
mas imaginava o desenrolar da luta que se travava na
escuridão, a poucos metros de distância. Os animais
lutavam pela presa... Por ele.
O vencedor não demoraria a atacá-lo. Mas restavam
alguns minutos para se preparar. Embora soubesse
perfeitamente que não adiantaria muito. Ainda assim, sua
mão apertou a faca.
O barulho da luta afastou-se um pouco, mas tornou-se
mais forte e selvagem. As garras, ao penetrarem na
madeira, provocavam um ruído martirizante que sacudia
Ras até a medula dos ossos. E então, de repente e sem que
o esperasse, o silêncio retornou. Mas apenas por uma
fração de segundo. Logo, Ras ouviu os galhos que se
quebravam e o embate surdo de um corpo. Um dos
animais perdera o equilíbrio e caíra. A luta havia chegado
ao fim.
A segunda luta logo começaria.
Voltou a enxergar os olhos cintilantes, desta vez a
uma distância um pouco maior. Eles se moviam em sua
direção.
Que diabo! Por que se metera nessa aventura? Como é
que o chefe da expedição podia ordenar-lhe que
caminhasse sozinho pela mata virgem? Por que tivera a
maldita ideia de emigrar para Moscou? Por que se meteu
a estudar? Devia ter ficado em El Obeid, com os pais e a
irmã.
Santo Deus, a irmã! Era o único parente que ainda
estava vivo. Sempre gostara dela. A casa...
Esqueceu a fera que se aproximava. Se tivesse que
morrer, que ao menos o último pensamento fosse para sua
terra amada, para a irmã querida.
Viu-a diante de si, na saleta que dava para a rua
principal. Estava sentada à mesa e, num pilão, amassava o
cereal até transformá-lo em farinha. Ele mesmo estava
parado junto à porta, foi pelo menos a posição em que se
colocaram por ocasião da última visita, dois anos atrás. A
irmã não fora avisada de que ele iria e, de início, nem o
reconhecera. Mas depois...
Daria tudo para que, nesse instante, pudesse estar
junto dela, na velha casa, onde estaria seguro. Todo o seu
ser ansiou por isso. Não pôde conceber qualquer outra
ideia. Até se esquecera da fera...
***
A irmã estava sentada à mesa, mas não amassava
cereal. Folheava um maço de cartas velhas guardadas
numa caixa. Mas o Ras que viu diante de si era uma
pessoa estranha, que não conhecia. Era um homem
esfarrapado, de faca em punho...
— Ras? O que houve com você? Essa faca...
O estudante estava petrificado. Os olhos arregalados
fitavam a irmã. Aos poucos foi baixando a mão com a
faca, deixando-a cair ao solo.
— Meu irmão! O que houve com você?
Ras respirava com dificuldade. Olhou em torno, sem
compreender como viera parar ali. Há um segundo estava
na selva, a mais de dois mil quilômetros dali, sentado
numa árvore, com a morte se aproximando.
E agora...
El Obeid. A casa paterna. A irmã.
— Sara! É você? Estou mesmo aqui?
— Claro que você está aqui! Mas como está! Fugiu de
alguém? Santo Deus! Até parece que escapou da prisão.
— Quem sabe se não escapei mesmo — murmurou
com a voz trêmula. — De uma prisão espiritual. De uma
prisão construída por nosso cérebro. Mas não é possível!
Por que justamente eu?
— O que está dizendo? Não consigo compreender.
— Sara, eu também não. Mas o fato é que não sei
como vim parar aqui. Eu estava participando de uma
expedição... A expedição!
De repente, lembrou-se da missão que lhe fora
confiada. Ele saíra para procurar auxílio. Mas encontrava-
se a dois mil quilômetros de distância. Bem, aquilo não
seria problema. Se conhecesse a posição exata em que se
encontravam, um avião poderia localizá-los.
— Escute, Sara. Meus amigos estão em perigo.
Deixei-os hoje pelo meio-dia, lá no Congo.
A irmã encarou-o com uma expressão de dúvida. Ras
estava febril, não havia a menor dúvida. Teria de levá-lo a
um médico, e já.
— Há mantimentos nessa casa? — perguntou Ras com
voz firme. — Embrulhe tudo, rápido!
Dez minutos depois, segurava o embrulho nas mãos.
— Vire-se Sara. Dentro de uma hora estarei de volta.
Você tem de acreditar em mim. Vou...
A irmã correu para junto da porta e trancou-a. Enfiou
a chave no bolso do avental.
126
— Você vai ficar aqui, Ras! Seja o que for que você
pretende fazer, antes de tudo você vai esperar pelo Dr.
Schwarz. Já mandei chamá-lo. Ele o examinará e...
Calou-se.
Só se virará por um instante para fechar a janela.
Quando voltou a olhar para o lugar em que Ras estivera,
não havia mais ninguém...
* * *
Existe um quarto caso que merece ser registrado.
Trata-se da ocorrência mais misteriosa e inconcebível,
pois diz respeito a uma área da parapsicologia da qual até
então ninguém suspeitara. Nenhum homem jamais tinha
pensado seriamente nessa possibilidade...
O fato deu-se na Alemanha. Todas as sextas-feiras,
alguns artistas jovens do Schwabing, bairro boêmio de
Munique, costumavam encontrar-se na residência do
escritor Ernst Ellert. Cada um participava da despesa sob
a forma de uma garrafa de bebida ou um pacote de
linguiça. Isso lhes dava a sensação tranquilizadora de que
não pesariam em demasia sobre o bolso mirrado do
artista.
Naquele dia, mais uma reunião tinha lugar.
Eles festejavam o aniversário de Johnny, um pintor
imbuído de uma criatividade incrível. Mesmo numa
oportunidade como aquela, não podia abster-se de lançar,
ao menos, alguns esboços sobre o colorido papel de
parede. Ellert já desistira de repreendê-lo por isso. Sempre
que o fazia, ouvia falar de um “efeito inibidor ignóbil”;
uma frase que, aos seus ouvidos, soava como as iras do
inferno.
Heinrich Lothar chegou um pouco atrasado, como
sempre. Ninguém saberia dizer de que vivia. Dizia-se que
fotografava modelos para revistas e, eventualmente, fazia
traduções. Isso não o impedia, porém, de toda vez que
cumprimentava alguém, cochichar, discretamente ao seu
ouvido:
— Escute, será que você pode me emprestar cinco
marcos até amanhã?
Para sua infelicidade, esse apelo cordial só terá êxito
uma vez. Ellert se comovera e, é claro, nunca mais viu os
cincos marcos.
O quarto elemento veio na pessoa de Aarn Munro,
editor de uma revista minúscula que ninguém lia. É claro
que seu verdadeiro nome não era Aarn Munro. Mas ele
gostava de ser chamado pelo nome de um famoso herói de
aventuras de ficção científica que muito lera e admirara
em sua juventude. Como não conseguia viver apenas de
sua revista, exercia uma profissão burocrática que não
gostava de mencionar. Preferia passar por artista e, como
soubesse fazer desenhos bem bonitos, todos o
reconheciam como tal.
Finalmente, havia Frettel, outro homem bastante
inteligente para encarar a arte como ocupação principal.
Frettel era cantor, conferencista, empresário, diretor,
humorista, mecenas e, como se não bastasse, médico.
— Acho que todos sabem qual é o tema dessa noite —
disse o anfitrião, tirando um cigarro do maço de Aarn
enquanto este estava distraído. — Na última sexta-feira,
Frettel aludiu a certas ocorrências estranhas, que se teriam
desenrolado em Londres. Não encontramos qualquer
explicação plausível. Lothar acha que se trata de uma das
chamadas paraciências das quais, para dizer a verdade,
não entendo nada, motivo por que não ponho muita fé
nelas. Até ontem, esse era o meu ponto de vista.
Lothar pegou as azeitonas que Aarn havia trazido.
Num gesto quase automático, derramou o conteúdo de um
pequeno cálice em sua boca enorme, mastigando
prazerosamente.
— Até ontem? — disse ainda ocupado com a
mastigação. — Por quê?
— Porque mudei de opinião — respondeu Ellert,
procurando apoderar-se de uma azeitona, sem consegui-
lo. — Afinal, um artista pode mudar de opinião quantas
vezes ele quiser.
— Nossa opinião é a única que podemos modificar —
disse Frettel em tom filosófico. — A não ser,
provavelmente, as cifras das nossas contas de honorários.
— Você é médico — lembrou Ellert. — Com um
escritor, as coisas não são tão simples. Nossos editores...
— Nossos editores são as caixas de providência —
disse Frettel era tom ambíguo. Acendeu
cerimoniosamente seu longo cachimbo, como se receasse
ter falado demais. — Elas trabalham com tabelas
preestabelecidas.
Aarn não tinha o menor interesse no debate. Não
costumava pagar direitos autorais, pois os escritores
sentiam-se felizes em ver seus nomes impressos na
pequenina revista. Por isso, interrompeu abruptamente a
conversa:
— Por que você modificou de ontem para hoje a sua
opinião sobre a parapsicologia, Ernst?
Ellert sentiu-se feliz por não mais precisar falar sobre
dinheiro, do qual possuía muito pouco.
— Porque ontem me aconteceu uma coisa muito
estranha.
— O quê? — perguntou Johnny, enquanto se
esforçava para colocar a garrafa de uísque em segurança,
antes que ela ficasse totalmente vazia. — Talvez isso me
proporcione alguma inspiração.
— Não creio — respondeu Ellert, piscando os olhos.
Mas, logo, voltou a assumir um ar sério. — Muito bem!
Vou lhes contar uma história muito interessante, mas sei
de antemão que ninguém acreditará nela.
Esperou que seus hóspedes tivessem assumido uma
posição mais confortável e acendido seus cigarros.
Depois, perguntou:
— O que acham de uma viagem no tempo?
A perplexidade foi geral. Depois de alguns segundos,
Aarn resmungou:
— É seu hobby, não é? Você já escreveu a respeito e
as pessoas sensatas não lhe deram atenção. Se quiser
saber a minha opinião, acho que não passa de fantasia.
Os outros concordaram com um movimento de
cabeça. Ellert suspirou.
— Não esperava outra coisa. De qualquer maneira,
ouçam minha história. Como sabem, tenho-me ocupado
desse problema e acho perfeitamente possível que alguém
realize uma viagem no tempo, em sentido espiritual. Um
sonho pode ser uma viagem desse tipo, desde que nos
transporte para o passado ou para o futuro distante. Até
mesmo a recordação de fatos passados representa uma
viagem dessas, se bem que bastante restrita. Como veem a
ideia de uma viagem no tempo não é tão absurda assim.
— Um momento! — objetou Frettel. — Isso é uma
127
tolice rematada. O que é que essas atividades mentais têm
que ver com uma viagem no tempo? Para mim, esta
consiste na trasladação do corpo de um homem para o
passado ou para o futuro. Toda minha pessoa deve se
encontrar num segmento diferente do tempo. Só assim
poderei falar em uma viagem.
— Perfeitamente — confirmou Ellert para surpresa do
interlocutor. — Sou da mesma opinião, muito embora
tenha registrado a outra possibilidade. É que a mesma
constitui um dos pressupostos. Para resumir: às vezes,
passo a noite acordado refletindo sobre a possibilidade de
lançar um olhar para o futuro. Gostaria de fazê-lo até em
espírito, mesmo que não conseguisse situar minha pessoa
neste futuro. Vivo quebrando a cabeça sobre as relações
existentes entre o sonho, a fantasia e o desejo, sobre as
possibilidades hipotéticas da teleportação corporal e da
teleportação temporal, se é que podemos usar esta
expressão. Se existe a possibilidade de transportar o corpo
e o espírito a outro lugar do espaço, também deve ser
possível transportá-lo para outro ponto no tempo.
— Espere aí, rapaz — disse Jonny sem tirar a mão da
garrafa. — Quem sabe se você tem uma capacidade
extraordinária de tornar verossímeis as coisas
impossíveis.
— Grande coisa! — resmungou Frettel. — Ele é pago
para isso.
Ellert esperou que a excitação amainasse. Parecia
muito seguro de si. Quem o conhecesse, sabia que ainda
tinha algumas surpresas para oferecer.
— A coisa está começando a ficar interessante —
disse Lothar, em tom mordaz.
— Continue! — pediu Aarn. Um brilho curioso surgiu
em seus olhos.
Ellert fez que sim.
— Estou interessado no futuro, por isso dedico todos
os meus pensamentos a ele. Foi o que aconteceu ontem.
Ninguém sabe o que será o amanhã; ninguém sabe se
amanhã ainda existiremos. No ano passado, por duas ou
três vezes escapamos por pouco do fim do mundo. Uma
guerra nuclear e estaremos liquidados. Todo o mundo
sabe disso. Se o tal do Rhodan não tivesse interferido,
hoje não nos encontraríamos nesta reunião agradável.
Apesar disso, consideram-no inimigo. Para mim, não há
nenhuma lógica nisso. Pois bem, ontem à noite,
concentrei meus pensamentos no futuro, a tal ponto que,
de repente, julguei encontrar-me em meio a ele. Queria
saber de qualquer maneira o que aconteceria daqui a dois
anos. Queria saber e, de repente, soube.
— O quê? — exclamou Jonny.
Com o susto, ele soltou a garrafa, do que se aproveitou
Aarn de imediato.
— Você soube? Conte!
— Enquanto meus pensamentos se agarraram ao
problema, senti que uma modificação se processava
dentro de mim. Não tive tempo de definir o que estava
acontecendo; foi muito rápido. Meu quarto ficou escuro.
Por alguns segundos — talvez tenha sido uma eternidade
— flutuei numa escuridão total. De súbito, a claridade
voltou a surgir em torno de mim. O sol iluminava o
quarto. Eu estava sentado na cama. O dia chegou num
segundo.
— Você devia estar bêbedo — conjeturou Jonny.
Ellert sacudiu a cabeça.
— Espere meu caro, a história ainda não terminou. Era
dia e o sol brilhava. Lenvantei-me e lancei os olhos
admirados em torno de mim. No início, pensei que
adormecera com minhas reflexões e que já era manhã.
Teria de levantar-me. Mas reparei que dois quadros que
costumavam ficar pendurados na parede não mais
estavam em seus lugares. Eram quadros de sua autoria,
Jonny. No lugar deles, havia dois outros que traziam a
assinatura de Aarn...
— Nunca pintei quadros desse tamanho — objetou
Aarn.
— Pois é isso! — confirmou Ellert. — Isso já é uma
prova. Acontece que você vai pintar quadros desse
tamanho. Possivelmente para as editoras. E um belo dia,
dentro de pouco tempo, você me dará dois deles. Os que
avistei, ontem.
— Ficou louco — cochichou Lothar a Frettel, seu
vizinho de mesa. — Você devia examiná-lo.
— Costumo consertar apêndices, mas não um espírito
avariado — retrucou o médico.
Ellert não se perturbou com a observação.
— No início, não compreendi. Olhei os quadros, que,
aliás, são formidáveis, Aarn, e fui andando. Parei diante
da folhinha onde anoto os compromissos de todos os dias.
No dia de hoje, por exemplo, consta: Aarn Jonny, Lothar
e Frettel. Isso significa que vocês me honrariam com sua
visita. Pois bem. Olho para a folhinha. O que acham que
vejo?
— Não faço a menor ideia — resmungou Lothar. —
Fale logo!
— Vejo a data. Eu tinha avançado dois anos no tempo.
Jonny riu. Voltou a segurar a garrafa, sorveu um
grande gole e passou-a adiante. Riu até que as lágrimas
lhe rolaram face abaixo. Em vão tentou dizer alguma
coisa.
Frettel não riu.
— O que você acaba de contar é verdade? —
perguntou. — Explique! O que aconteceu?
— É simples: meu desejo muito forte transportou-me
para o futuro. Um futuro que fica a mais de dois anos.
Mas, e isso é o mais estranho, meu corpo não foi
transportado. No início, pensei que tivesse sido, mas
percebi, de repente, que uma vontade estranha lutava
contra a minha. Essa vontade também era minha,
conforme perceberia logo. Só meu espírito havia chegado
ao futuro, penetrando no corpo de um Ernst Ellert que já
era dois anos, mais velho. E, com os olhos dele, vi e vivi
o tempo que ainda se encontra diante de mim. Participei
de recordações. Mas não consegui impor-lhe minha
vontade. De qualquer maneira, sabia que na noite daquele
dia teríamos a nossa reunião costumeira. É bem verdade
que, segundo as informações da folhinha, tratava-se de
uma exceção. A exceção era eu. Estava de férias e, só
assim, pudemos realizar a reunião.
— Férias? — espantou-se Jonny, que nunca ouvira
essa palavra.
— Isso já é outra história — retrucou Ellert. — De
qualquer maneira, posso tranquiliza-los. Daqui a dois
anos ainda estaremos vivos. Não terá havido nenhuma
guerra, mas, acredito piamente que grandes mudanças
ocorrerão.
— Já sei o que aconteceu com ele — interrompeu
Lothar em tom triunfante. — Tornou-se um adivinho.
128
— Talvez existam relações de que nem suspeitamos
— disse Ellert sem se perturbar. — Vejo que não
acreditam na minha história...
— É claro que não acreditamos — disse Frettel,
sorrindo. — Mas é muito divertida. Estou esperando pelo
ponto culminante.
— O ponto culminante?
— É claro! O ponto culminante. O desfecho! Cadê o
desfecho?
— Esta história não tem ponto culminante e nem
desfecho. Acontece que é verdadeira. Querem uma prova?
— Seria muita gentileza de sua parte — concordou
Lothar.
Frettel e os outros confirmaram com um aceno de
cabeça. Todos pareciam muito interessados.
— Agora, tentarei visitar nossa próxima reunião.
Daqui a pouco lhes direi o que acontecerá de hoje a uma
semana, ou melhor, o que terá acontecido no meio tempo.
De hoje a uma semana vocês contarão. Ouvirei a palestra
sob a forma de um Ellert que tem mais uma semana de
idade. Logo voltarei para contar. No correr da próxima
semana vocês passarão por aquilo que eu lhes disser.
Estão de acordo?
— Naturalmente — Frettel sorria. — Enquanto seu
espírito estiver vagando pelo futuro, examinarei seu
corpo. Quem sabe se não constato uma diferença, com o
que você terá mais uma prova?
— Não acredito que note qualquer diferença — disse
Aarn, irônico.
Ellert não se interessou pela discussão que teve início
naquele momento. Reclinou-se na poltrona e fechou os
olhos. Não se movia. Sua respiração era lenta e regular.
Frettel aguardou alguma modificação, mas nada ocorreu.
Depois de algum tempo, impacientou-se. Tocou o peito de
Ellert.
— Já começou?
Ellert não respondeu. Dormia. E não conseguiram
despertá-lo. Todas as tentativas falharam. Frettel
examinou o pulso e as outras funções orgânicas. Estas não
se distinguiam das de qualquer homem adormecido.
Apenas, o sono de Ellert era mais profundo que qualquer
outro já presenciado pelo médico.
— Já faz cinco minutos — disse, olhando para o
relógio.
Jonny também ficou sério. Olhou para Aarn e Lothar.
— Vocês acham que há algo de verdadeiro no que ele
acaba de contar?
Todos deram de ombros.
De repente, Ellert abriu os olhos. Depois de olhar em
torno por um segundo, com uma expressão perturbada,
pareceu lembrar-se. Um sorriso débil esboçou-se em seu
rosto.
— Então? — insistiu Aarn. — O que houve?
— Passei uma semana no futuro — murmurou Ellert
com uma expressão resignada. — Exatamente uma
semana, a contar de hoje. Foram cinco minutos.
Infelizmente não lhes posso dizer o que acontecerá com
vocês, pois não os encontrei. Na próxima sexta-feira não
nos encontraremos, porque não estarei aqui. Encontrei
meu corpo com mais oito dias de idade. Mas não o
encontrei em Munique.
— Onde foi?
— Na Ásia. Para falar mais exatamente, no deserto de
Gobi. É claro que não sei como irei parar lá. Tive bastante
trabalho em arranjar um jornal para poder contar-lhes o
que vai acontecer nestes oito dias. Queria dar-lhes a prova
que pedem. Infelizmente, não pude trazer o jornal, pois a
matéria não pode viajar no tempo. Mas li algumas
notícias.
— Ah! As cotações da bolsa vão baixar — resmungou
Jonny. Continuava desconfiado. — Gostaria de saber por
que justamente você vai parar no deserto de Gobi. Foi lá
que pousou a nave espacial dos americanos.
— Exatamente — confirmou Ellert. — Daqui a oito
dias estarei falando com Perry Rhodan.
— Que história interessante! — exclamou Lothar,
irônico. — Acho que ela se transformará num dos seus
contos mais fantásticos.
Todos riram. Ellert foi o único a permanecer sério.
— Dentro de poucos dias, vocês não mais estarão
rindo. Depois de amanhã serão realizadas as eleições. Já
conheço o resultado. Aceitariam o mesmo como prova?
Frettel estreitou os olhos.
— Sim, desde que não seja mera coincidência.
Ellert sacudiu a cabeça.
— O resultado, em si, poderia ser uma coincidência;
mas não o fato de que o vencedor será vitimado por um
enfarte na noite do pleito. As eleições serão repetidas
dentro de trinta dias.
Aarn falou pensativo, em meio ao silêncio que se
formou:
— Telepatia, teleportação, telecinésia e, por cima de
tudo, a teletemporação: a viagem pelo tempo com o
auxílio do espírito...
— Teletemporação! — exclamou Frettel
entusiasmado. — Aarn, você acaba de definir um
conceito. E você, Ellert, inventou mais uma variante das
paraciências.
Ellert lançou-lhe um olhar amargo.
— Não inventei meu caro Frettel, descobri...
129
5
Perry teve a impressão de só ter fechado os olhos por
um segundo. Quando voltou a abri-los, tudo continuava
no mesmo. Perto dele, Bell estava reclinado na poltrona
do doutrinador. Também se esforçava para abrir os olhos.
No seu rosto havia uma expressão de assombro.
O doutrinador! Subitamente, Rhodan sabia como
funcionava. As informações armazenadas eram reforçadas
pelos dispositivos positrônicos, de onde eram conduzidas
aos nervos cranianos, que as absorviam, transmitindo-as
ao cérebro, onde eram depositadas no centro de memória.
Esse centro, ampliado consideravelmente através de uma
série de choques, recebia as informações e armazenava-
as. Poderiam ser “retiradas” a qualquer momento.
Crest estava junto ao quadro de chaves.
— Podem levantar — disse tranquilo. — O
treinamento foi concluído com êxito. Ambos receberam
os mesmos ensinamentos; apenas achei recomendável que
Perry obtivesse certa superioridade, mesmo em relação a
você, Bell. A capacidade de enfrentar qualquer
emergência com extrema rapidez foi ampliada. Além
disso, sua consciência sugestiva foi consideravelmente
reforçada. Daqui em diante, nenhum homem normal
deixará de executar prontamente as suas instruções, que
equivalerão a verdadeiras vozes hipnóticas de comando.
Sei que nunca abusará desse superpoder. Terá necessidade
dele para executar aquilo que planejamos em conjunto. O
seu saber... bem, constate por si mesmo.
Rhodan levantou-se.
— Não estou percebendo nada de diferente.
Crest sorriu.
— Então me diga qual é a raiz quadrada de 527.076?
— Setecentos e vinte e seis, por quê?
Rhodan proferiu o número com a calma de quem faz
algo corriqueiro e natural. Só empalideceu de ter
respondido. Bell segurou-lhe o braço.
— Ei! Também sei o resultado!
— O cérebro de vocês está calculando
automaticamente com a velocidade da luz se me permitem
esta expressão — explicou Crest. — Os cálculos são
realizados no subconsciente. O pensamento consciente
fica reservado para tarefas mais importantes Estão
convencidos de terem passado por uma modificação?
Bell sacudiu a cabeça.
— E meu professor de matemática, que vivia dizendo
que eu era um fracasso em toda a linha. Se visse uma
coisa dessas!...
— Nos próximos dias, descobrirão mais coisas em sua
mente. Não se assustem. O que vale é que dispõem de
uma explicação natural para suas novas faculdades: o
doutrinador e o saber formidável de nossa raça, que,
agora, também pertence a vocês.
— Faço votos para que saibamos lidar com o mesmo.
— Tenho certeza de que saberão. Agora,
acompanhem-me. Preciso falar-lhes. Nossas
comunicações com o exterior estão interrompidas. As
interferências provocadas por uma emissora impedem
todo e qualquer contato. Um de vocês tem de sair da
cúpula energética para colher informações. Não
conseguiremos nada se ficarmos parados aqui. Os
primeiros pavilhões já estão montados. Os robôs não
podem continuar. Precisamos de material e mão de obra.
Neste deserto surgirá um complexo industrial que deixará
para trás tudo que já existiu neste mundo. Sem naves
espaciais potentes nunca chegaremos a Árcon. E
queremos mais que isso.
Rhodan fez que sim. Num espaço de poucos segundos,
as visões arrojadas do futuro de que Crest lhe falara
desfilaram diante dele. O império cósmico! Uma frota
enorme seria necessária para instalá-lo e mantê-lo. Mas
uma indagação surgiu em sua mente. Será que a
humanidade estava madura para isso?
Ouviu sua própria voz.
— Eu mesmo irei. Só falta saber quanto tempo levarão
para me descobrir.
— Ora essa! — disse Crest. A esta altura você já sabe
os recursos técnicos de que pode lançar mão.
No mesmo momento, Perry lembrou-se. O centro de
memória ampliado de seu cérebro forneceu a informação.
O equipamento dos arcônidas. Um microrreator
fornecia a energia. A qualquer hora poderia montar uma
minicúpula energética, que o protegeria de qualquer
perigo. Os projéteis de pequeno calibre não poderiam
atravessá-la. O defletor de ondas luminosas torná-lo-ia
invisível aos olhos humanos. Um neutralizador
gravitacional embutido conferiria ao portador do
equipamento a capacidade de voar, percorrendo distâncias
não muito longas, já que a velocidade seria reduzida.
— Como faço para sair da cúpula?
— Esta noite suspenderemos a cúpula por alguns
segundos, muito embora você pudesse atravessá-la. Mas,
antes disso, vamos combinar os detalhes. Thora está de
acordo. Acabou reconhecendo a necessidade da
colaboração, mesmo a contragosto.
— Era o que eu imaginava — disse Rhodan
laconicamente.
* * *
Los Angeles, dois dias depois.
Num pequeno restaurante junto à estrada do aeroporto,
Perry Rhodan estava sentado diante de um enorme bife, e
procurava devorá-lo com toda a calma. Desde o dia
anterior mantivera contatos com os diretores de grandes
empresas industriais. Graças aos poderes de que era
dotado, conseguira obter a promessa de grandes
fornecimentos. E dera um endereço suposto, em Hong
Kong.
Do lado de fora, um motorista esperava com o táxi.
Lá estava ele, sentado em meio aos homens que o
consideravam seu maior inimigo. Não sentia o menor
temor e não julgou necessário esconder-se. Seu retrato
fora publicado em todos os lugares do mundo, mas até
então, ninguém conseguira reconhecê-lo. Mesmo que isso
acontecesse... Perry sentia-se absolutamente seguro com o
equipamento dos arcônidas que trazia consigo. Sem que
ninguém percebesse, usava uma vestimenta especial por
baixo do terno comum.
Um homem tomou lugar na mesa ao lado. Os cabelos
estavam penteados para trás. Dava a impressão de uma
pessoa que cuidava muito bem da sua aparência. Um par
de óculos escuros encobria os olhos. Tirou um jornal do
bolso e mergulhou no noticiário econômico. Distraído, fez
seu pedido ao garçom e voltou à leitura.
Perry tornou a dedicar sua atenção ao bife. Teve que
130
lutar contra um nervosismo súbito. Fazia dois dias que se
afastara de sua base. A imprensa, de um modo geral, fazia
de contas que a ameaça no deserto de Gobi não mais
existia. Este silêncio estranho podia ser tudo, menos
tranquilizador.
E se, enquanto ele estava afastado, fosse iniciado o
ataque que se esperava?
Saberiam defender-se, por certo, mas ele receava
algum ato precipitado de Thora. Se não ficassem de olho
nela, poderia empreender ações muito desastrosas,
estragando os planos para o futuro. Nas negociações que
travara no dia anterior, notara que nem todo mundo estava
contra ele. Muito pelo contrário. Os industriais mais
sagazes perceberam as chances que se lhes ofereciam. E
todos estavam plenamente cientes de que evitara uma
devastadora guerra nuclear.
O que estaria fazendo Bell? Sem dúvida, a doutrinação
lhe havia conferido novas faculdades de espírito e
capacidades de que nem suspeitava, mas o caráter
continuava inalterado. Não que Bell fosse dado aos atos
impensados, mas sua impulsividade só teria o necessário
freio com a presença de Perry Rhodan.
O cavalheiro da mesa ao lado guardara o jornal. Em
sua testa viam-se algumas rugas. Ao que parecia, sua
atenção concentrava-se no vizinho que acabara de afastar
o prato vazio. Por várias vezes fez menção de levantar-se,
mas parecia não ter certeza do que faria. Subitamente,
pôs-se de pé e dirigiu-se à mesa vizinha. Parou diante de
Perry Rhodan, lançou-lhe um olhar indagador e
murmurou:
— Dá licença? Gostaria de fazer-lhe uma pergunta.
Apontou para a cadeira que se encontrava junto a
Perry. Este parecia perplexo. No seu íntimo, preparou-se
para um eventual ataque. Um ligeiro aperto no cinto
bastaria para cercá-lo de uma cúpula energética.
— Faça o favor.
O desconhecido sentou-se e esboçou um sorriso
forçado.
— Talvez eu esteja enganado, cavalheiro, mas existem
duas circunstâncias que me levam a crer que não é esse o
caso. É verdade que a semelhança é um pouco vaga, mas
tenho certeza de já tê-lo visto. Mas não foi apenas este
fato que me fez supor que o senhor é Perry Rhodan. Não,
não se assuste! Nem penso em traí-lo. O senhor fez muito
por nós todos. Mas... não sei como lhe direi, senhor
Rhodan. O senhor costuma ler jornais?
Perry sacudiu a cabeça.
— Ultimamente tenho lido muito pouco, quase nada.
Mas, nos dois últimos dias...
— Há cerca de uma semana escreveram muito sobre
mim, ao menos em Brisbane. Ninguém acreditou, mas é
verdade. Sou John Marshall. Não sei se este nome lhe diz
alguma coisa.
Perry recordou-se. Havia lido uma notícia breve e já a
esquecera. Era algo sensacionalista, nada mais. Mas, de
repente, a notícia voltara a ganhar importância. Seu
raciocínio lógico entrou em funcionamento e em poucos
segundos respondeu à indagação sobre os motivos por que
aquele homem o reconhecera. Levantou as sobrancelhas.
— O senhor é a pessoa que tem capacidade para ler
pensamentos, não é senhor Marshall? Estava sentado na
mesa ao lado e captou meus pensamentos, que estavam
bastante concentrados. Foi assim que descobriu quem sou
não é mesmo?
John fez que sim. Perry sorriu.
— Quer dizer que a esta altura já é um perigo
deixarmos nossos pensamentos vagando por aí. Há quanto
tempo sabe fazer isso?
— Desde a infância, se bem que não tinha consciência
da coisa. Só há uma semana percebi que sou telepata. Não
sei por quê.
— Quando nasceu?
— Em fins de 1945.
As possibilidades relampejaram no cérebro de Perry,
as combinações cruzavam-se, as conclusões se ofereciam
— e a solução surgiu.
— Foi por causa de Hiroxima — disse. — As
radiações. Deve haver outros mutantes.
— Mutantes?
— É. Trata-se de uma modificação do lastro
hereditário, geralmente transmissível aos descendentes.
As radiações influenciaram o seu cérebro em formação,
antes de seu nascimento.
Por um instante, outra visão do futuro desvendou-se
aos olhos de Rhodan. Os mutantes! Representavam uma
perspectiva inteiramente nova. Se conseguisse reunir as
maiores capacidades entre os mutantes da Terra e engajá-
los na sua luta, formaria um exército invencível. E quem
sabe se, mais tarde, não precisaria desse exército... Parou
repentinamente, pois sentiu o olhar perplexo de John. Já
ia se esquecendo de que seu interlocutor podia captar seus
pensamentos. Num gesto automático, isolou o cérebro por
meio de um bloqueio. Era outra faculdade que o
doutrinador lhe havia conferido.
— Por que resolveu dirigir-se a mim?
John Marshall sorriu, meio sem jeito.
— Tive a intenção de utilizar minhas faculdades para
um fim lucrativo — confessou com franqueza. — A partir
de ontem, estou em negócios com várias instituições.
Ofereceram-me quantias astronômicas. Mas acho que o
destino me reserva uma missão mais importante. O senhor
acaba de insinuar essa possibilidade em seus
pensamentos.
Perry suspirou aliviado.
— Quer dizer que está disposto a trabalhar para mim?
— Estou.
— Ainda não estou em condições de lhe oferecer
dinheiro.
— Existem coisas que valem mais que todo o dinheiro
do mundo. Um ideal, por exemplo.
— Um ideal? O que quer dizer com isso?
— Por que o senhor luta contra todo mundo?
Simplesmente pelo poder?
— Confesso que também luto pelo poder. Mas o
próprio poder pode servir para a realização de um ideal.
— É isto mesmo. Estou à sua disposição, se me
quiser.
Perry lançou-lhe um olhar perscrutador. Estava
gostando daquele novo aliado, mesmo abstraindo das suas
faculdades. Estendeu-lhe a mão. John retribuiu o aperto.
Súbito, seus olhos se estreitaram por trás das lentes
escuras e dirigiram-se para além de Rhodan. A expressão
do esforço concentrado deu-lhe ao rosto um ar sério.
Depois de alguns instantes, cochichou:
— Estão atrás do senhor, Rhodan. O carro que está
estacionado junto ao seu táxi é da polícia. Dois homens
131
acabam de descer. Não, não se vire. Estão falando com
seu motorista. Agora vêm para cá, dirigem-se a nossa
mesa. E agora?
O cérebro de Perry trabalhou em ritmo vertiginoso.
Um dos diretores com quem conferenciara deve ter
revelado o fato, talvez sem qualquer intenção má. Os
homens do CID não eram tolos. Depois de terem farejado
uma pista, não desistiriam antes de capturar a caça.
Quando os dois homens de aparência absolutamente
normal se aproximaram da mesa, Perry estava preparado.
Fez um sinal quase imperceptível para John e colocou
uma nota debaixo do prato. Depois, levantou-se.
— Encontramo-nos no aeroporto, a três quilômetros
daqui. Dentro de uma hora. Espere por mim. Ninguém o
importunará.
John retribuiu o sinal. Levantou-se e foi à mesa
vizinha, fazendo de conta que nada tinha com o que
estava acontecendo.
Os agentes hesitaram por um precioso segundo, depois
se aproximaram resolutos. Um deles colocou a mão no
bolso. O outro se achegou de Perry por trás e colocou a
mão sobre o seu ombro.
— Perry Rhodan, em nome da humanidade...
Perry virou-se. Seus olhos cinzentos cruzaram-nos dos
agentes.
— Que desejam?
— O senhor é Perry Rhodan...
— Sou Foster Douglas, se não se importar. Por que
estão me importunando?
O homem hesitou. Parecia inseguro. Seu colega não
estava tão impressionado. Tirou a mão do bolso. Nela se
via uma enorme pistola.
— Rhodan, não faça tolices. Deixe as mãos no mesmo
lugar em que se encontram e venha conosco.
Perry encarou-o.
— Sou Foster Douglas. Não chateie!
A cena começou a despertar a atenção dos
frequentadores do restaurante. Alguns se viraram para
acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. John
Marshall levantara-se e saiu tranquilamente em direção ao
ponto de táxi.
O outro agente, indeciso, baixou a arma. Alguma
coisa lhe dizia que se enganara e que esse homem não era
Perry Rhodan. No entanto... uma outra ordem ainda o
importunava.
— Agora, os senhores me deixarão em paz — disse
Perry encarando-os fixamente. — Não encontraram Perry
Rhodan. Informem seus superiores nesse sentido,
entenderam?
Um deles fez que sim. O outro ainda hesitava.
Perry deu-lhes as costas e saiu. Não se sentia muito
bem, pois seu corpo não era imune a uma bala traiçoeira,
mas só ligaria a cúpula energética em caso de extrema
emergência. E não poderia sair voando em pleno dia.
Mandariam caças atrás dele.
Os dois agentes ainda estavam indecisos quando ele
entrou no táxi. O carro da polícia esperava logo atrás. O
motorista segurava um microfone e falava muito. O
comportamento estranho dos dois colegas representava,
para ele, uma verdadeira charada.
— Vamos para o aeroporto — ordenou Perry.
O táxi saiu da área de estacionamento e, uma vez na
estrada, aumentou a velocidade.
Os dois agentes superaram o choque. Pareciam
despertar de um sonho. A mesa diante deles estava vazia e
Perry Rhodan sumira. Os frequentadores do restaurante
olhavam-nos espantados. Lá fora, o carro os esperava. O
táxi em que Rhodan viera já não estava perto do carro
policial. Também havia sumido.
— É um truque! — gritou o homem que segurava a
pistola, e correu para o carro, onde começou a gritar com
o motorista:
— O que houve? Por que o deixou escapar?
O homem colocou o microfone no suporte.
— Eu o deixei escapar? Foram vocês que o deixaram
ir embora. Não era Rhodan?
O outro agente também se aproximara. A pressão do
cérebro tinha desaparecido.
— Foi hipnotismo! O sujeito nos enganou. Em que
direção fugiu?
O motorista apontou para a estrada.
— Para lá. Em direção ao aeroporto.
— Vamos atrás dele! Dê alarma geral! O carro
arrancou, derrapando na curva. Enquanto isso, John
Marshall conseguia um táxi e chegava à estrada quase ao
mesmo tempo em que o carro dos agentes secretos.
Reclinado no assento, procurou captar os pensamentos
dos agentes exaltados. Mas nada conseguiu distinguir na
confusão causada pelos emissores numerosos. Só lhe
restou pedir que o motorista não perdesse de vista o carro
preto.
Os três carros seguiam em disparada pela pista larga.
Todos se dirigiam ao aeroporto. O primeiro, de Rhodan,
levava uma vantagem considerável sobre os demais, que
seguiam bem próximos um do outro. O tráfego intenso
não lhes permitia uma velocidade maior, mas, mesmo
assim, Rhodan chegou ao aeroporto bem antes dos
demais, pagou o táxi e entrou apressado, no amplo hall,
mergulhando na multidão que lotava o recinto.
Sereias começaram a uivar. De repente, policiais à
paisana postaram-se em todas as entradas e saídas.
Traziam as mãos nos bolsos, sinal seguro de que
portavam armas. Os balcões das diversas empresas
suspenderam as atividades. Os passageiros começaram a
se inquietar. Um alto-falante começou a berrar:
— Mantenham-se calmos. A polícia acaba de cercar o
edifício do aeroporto. Estamos realizando um exercício.
Mantenham a calma. Continuem como estão.
Perry sabia que se encontrava num aeroporto civil.
Mas também sabia que numa das extremidades do campo
de pouso um caça-bombardeiro do CID estava pronto para
decolar. Os tripulantes, quatro homens, deviam estar perto
da aeronave.
Encontrava-se em meio a um grupo de comerciantes
que vociferavam. A cinquenta metros dali, John Marshall
tentava se aproximar cautelosamente. Os dois agentes que
vira no restaurante iam de um grupo a outro.
Perry Rhodan cerrou os dentes. Apertou um dos
botões embutidos no cinto do equipamento dos arcônidas.
O defletor de ondas luminosas entrou em funcionamento,
tornando-o invisível.
Andando cautelosamente, para não esbarrar em
ninguém, deslocou-se em direção a John. O antigo
funcionário de banco sobressaltou-se quando sentiu, de
repente, o toque vindo do nada. Mas os pensamentos de
Perry logo penetraram no seu cérebro.
132
“Continue parado. Marshall. Estou invisível, não me
encontrarão. Dessa forma, suspenderão a busca. Afinal,
não podem fechar o aeroporto por horas a fio.”
John confirmou com um movimento da cabeça.
Esperaram.
“Há um bombardeiro de alta velocidade estacionado
na pista. Tentaremos alcançá-lo. Quer vir comigo?” John
fez que sim. “Muito bem. Vá andando em direção à
barreira. Assim que eu me tornar visível, grude-se em
mim. Se necessário montarei uma cúpula em torno de nós.
Assim, estaremos protegidos. Depois iremos ao avião.
Entendido?”
John voltou a confirmar com um movimento de
cabeça. Saiu andando devagar. Os passageiros começaram
a se impacientar. Desrespeitaram as ordens da polícia
saindo do lugar em que se encontravam. Ninguém pôde
impedi-los.
John mostrou o passaporte. Deixaram-no passar pela
barreira. Perry, invisível, seguia-o. Os dois homens
estavam junto ao edifício, com o campo de pouso diante
de si. Algumas aeronaves estavam com os motores
ligados, aguardando os passageiros. Os funcionários das
companhias e a polícia controlavam os passageiros que
entravam.
“Continue andando”, pensou Perry.
John passou pelo primeiro avião. Viu o caça-
bombardeiro estacionado à esquerda. Dois dos tripulantes
estavam deitados embaixo de uma das asas,
espreguiçando-se na sombra. O piloto examinava os trens
de pouso. O quarto homem estava sentado na cabina,
recebendo as mensagens radiofônicas. Do lugar em que se
encontravam, não podiam vê-lo.
John foi andando tranquilamente em direção ao avião.
O piloto interrompeu seu trabalho, lançando-lhe um olhar
curioso.
“Cuidado” advertiu Perry. “Voltarei a tornar-me
visível.”
O piloto e os tripulantes deitados embaixo da asa
arregalaram os olhos quando, perto do desconhecido,
subitamente outro homem se materializou a partir do
nada. Só tiveram consciência da realidade porque era
justamente por causa de Rhodan, que os mesmos se
encontravam em regime de rigorosa prontidão. Quem
senão Rhodan poderia estar em condições de tornar-se
invisível a qualquer momento?
O radiotelegrafista surgiu à entrada do avião.
— Decole imediatamente! — ordenou Perry, lançando
um olhar dominador sobre o piloto. — Iremos com você.
Qual é a reserva de combustível? Será suficiente para
cruzar o Pacífico?
O piloto já se recuperara da surpresa. Esboçou um
sorriso débil. Mas o radiotelegrafista voltou à cabina e
retornou com uma pistola. Apontou-a para Perry.
— Quem é o senhor?
— É Rhodan — disse o piloto. — Guarde a arma. Ela
não lhe servirá de nada. Um homem que pode tornar-se
invisível a qualquer momento saberá defender-se de uma
bala. Não é verdade, senhor Rhodan?
— Você ainda não respondeu à minha pergunta.
— O combustível? Se desejar, posso completar
metade do caminho em volta da Terra. Entre. Apresse-se
porque meus colegas já vêm vindos.
— As intenções dele são honestas — cochichou John
ao ouvido de Perry. — Está com o senhor. É estranho.
— E os outros?
— Não sabem o que fazer.
Perry dirigiu-se ao piloto.
— Por que quer ajudar-me?
— O senhor me obriga, não é? Ei! Jim, Hal, vamos
logo para dentro. Venha, Rhodan. Se demorarmos demais
esses caras estarão aqui antes de decolarmos.
Perry manteve-se vigilante. Mesmo depois que o veloz
caça correu pela pista e começou a ganhar altura, não
perdeu a desconfiança. Afinal, essa gente era do CID —
se bem que do capitão Klein podia-se dizer a mesma
coisa. Não era por causa dos seus poderes de sugestão que
a tripulação do bombardeiro lhe prestava auxílio. Faziam-
no espontaneamente. Estavam com ele, contrariando as
ordens que haviam recebido.
Enquanto o avião se deslocava para o oeste,
atravessando o Pacífico, Perry teve um sentimento que
parecia ser gratidão. Não estava só. Tinha amigos entre os
homens, muito amigos. Subitamente, percebeu que a
humanidade merecia governar o império cósmico, junto
com os arcônidas.
* * *
O capitão Klein não estava bem disposto.
Parado na colina olhava para o sul. A enorme nave
esférica dos arcônidas destacava-se no horizonte. Perto
dela, a Stardust parecia uma mancha escura, pequena e
insignificante. As granadas detonavam a intervalos
regulares na muralha energética que envolvia a base.
Bem abaixo de Klein, o solo vibrava, embora ele não
o sentisse. As brocas faziam a galeria avançar numa
velocidade assustadora. Os destacamentos especiais
trabalhavam noite e dia. Lá no vale, um montão de terra
se acumulava. As explosões pouco numerosas foram
camufladas por meio de uma intensificação das salvas de
artilharia.
Não havia qualquer possibilidade de prevenir Rhodan.
Os agentes dos serviços secretos dos três blocos estavam
à espreita nos postos avançados. A base do inimigo da
humanidade estava totalmente isolada. Ninguém
conseguiria aproximar-se sem ser percebido.
Embaixo da terra, a galeria já ultrapassara a linha que
representava a continuação da cúpula sob o solo. Portanto,
já estavam dentro da base. Bastava subir, e estariam na
superfície, no interior da cúpula.
As máquinas especiais continuavam roendo as terras
em direção ao sul e já se aproximavam do ponto
previamente fixado; bem embaixo das duas naves. Dentro
de dois dias, tudo estaria terminado. E a bomba de
hidrogênio já estava a caminho da Ásia.
Klein ouviu passos atrás de si. Era Kosnow que se
aproximava. O russo também parecia preocupado.
— Rhodan não se encontra na base — disse, em voz
baixa, como se receasse ser ouvido ao longe. —
Reconheceram-no em Los Angeles, quando tentou
entabular negociações com alguns empresários. Pelo que
dizem, conseguiu fugir num caça-bombardeiro do CID.
— Era só o que faltava — disse Klein, sorrindo. —
Deve chegar daqui a pouco. O fogo será para valer.
— Tanto faz desde que consigamos preveni-lo a
tempo. Deve ser avisado do que pretendem fazer com ele.
133
Daqui a dois dias a galeria começará a subir. O
bombardeio será intensificado para abafar as vibrações. A
bomba será detonada cinquenta metros abaixo da
superfície. Se isso acontecer, não sobrará coisa alguma de
Rhodan e de seus amigos.
— Encontraremos um meio — tranquilizou-o Klein.
— Nem que eu mesmo vá até a cúpula para preveni-los.
— Ninguém conseguirá romper as áreas de bloqueio.
Sabe muito bem que não confiam em nós. Não há dúvidas
de que Mercant sabe do nosso ato de traição. Mas não faz
nada. Quase chego a acreditar que, no íntimo, ele acha
que Rhodan, e nós, temos razão. Mas, se for assim, por
que permite o ataque? É isso que não consigo entender.
— Não lhe resta alternativas. Não pode dizer
abertamente o que pensa. Ele sabe tão bem quanto nós
que Rhodan agiu corretamente quando não permitiu que o
poderio de que dispõe caísse nas mãos de um Estado,
preferindo colocá-lo acima de todos. Mas não pode
admiti-lo expressamente. Mas chegará o dia em que
mesmo Mercant poderá dizer a verdade.
— E se Rhodan for destruído antes disso?
— Isso não vai acontecer. Se for necessário eu me
sacrificarei. A bomba ainda está muito longe daqui. E a
galeria ainda não foi concluída — completou Klein.
Lançaram um último olhar para a esfera distante e,
caminhando em direção ao norte, desceram para o vale.
Lá embaixo, os tratores empurravam para o fundo do vale
a terra que as esteiras rolantes traziam da galeria. Em toda
a parte viam-se grupos de técnicos. O coronel Cretcher e
o general Tai-tiang conversavam.
Um homem surgiu correndo pela planície desolada,
fez continência para os dois oficiais e entregou uma
mensagem ao general. Este a leu e passou-a ao coronel.
Sem aguardar a resposta deste último, correu em direção a
um dos abrigos subterrâneos. Cretcher ficou indeciso por
alguns instantes, depois começou a andar em direção à
galeria.
Kosnow franziu a testa.
— Aconteceu alguma coisa!
— Se andarmos depressa, poderemos alcançar o
mensageiro. Talvez ele nos conte o que houve. Ei! O
alarma! Deve ter sido algo de muito sério.
O telegrafista ia entrar em sua barraca quando Klein
segurou-o pela manga do uniforme.
— O que houve?
— É Rhodan — disse o homem, um soldado chinês.
— Roubou um avião...
— Isso nós sabemos desde ontem — interrompeu
Kosnow. — E, por isso, não é preciso dar o alarma.
— É que ele vem para cá! Daqui a cinco minutos...
Klein olhou para Kosnow. Então era isso!
Deram as costas ao radiotelegrafista, ainda perplexo, e
correram em direção à galeria. Se a notícia fosse correta,
dali a cinco minutos as baterias entrariam todas em ação.
Tentariam evitar a todo custo que Rhodan alcançasse sua
base. Ou então...
Uma possibilidade relampejou no cérebro de Klein.
Talvez nem devessem impedi-lo. Havia bons motivos
para isso. Mas, será que o general Tai-tiang teria a mesma
ideia?
— Vamos, Kosnow! Temos de falar com o general.
Tive uma ideia.
Tai-tiang parecia espantado quando os dois agentes
chegaram ao abrigo de comando. Fizera as ligações com
as posições de artilharia e estava a ponto de transmitir as
instruções adequadas.
— O que houve? Como se atrevem?...
— Revogue a ordem de fogo! — disse Klein.
— O que sabem a respeito disso?
— Rhodan apoderou-se de um avião e tentará pousar
junto à base. O senhor pretende impedi-lo. Já pensou no
que acontecerá depois? Ao perceber o perigo dará meia-
volta e desaparecerá. O que nos adianta explodir a base,
se Rhodan não explodir junto com ela?
Quando necessário, o general Tai-Tiang sabia reagir
prontamente. Lançou um olhar perscrutador sobre Klein,
depois, confirmou com um aceno de cabeça.
— A ideia não deixa de ser inteligente. Permitirei que
Rhodan pouse e penetre na cúpula. Dali não escapará. A
bomba já está a caminho. Terminaremos isso antes da
data prevista, segundo comunicado do coronel Cretcher.
Certo! Instruirei os caças que o perseguem.
Dirigiu-se à barraca em que funcionavam os serviços
de rádio.
Klein e Kosnow voltaram a subir a colina para
presenciar o esperado pouso de Rhodan.
* * *
Este não se fez esperar. Um ponto minúsculo surgiu
no horizonte, cresceu vertiginosamente e assumiu a forma
de um caça-bombardeiro dos mais modernos. Alguns dos
aparelhos menores que o acompanhavam, procuravam
forçá-lo a descer, mas não atiravam para não expor a
tripulação do caça a um risco desnecessário.
Perry encontrava-se junto ao piloto.
— Você agiu com bravura. Fico-lhe muito grato pelo
auxílio. Quem sabe se, um dia, poderei retribuir-lhe o
favor. Aterrize exatamente no ponto que lhe indicarei.
Nada lhe acontecerá, pois você poderá declarar sob o
juramento que eu o obriguei a trazê-lo até aqui. Logo,
Marshall e eu os deixaremos. Dali até a cúpula é poucos
metros.
— Como vamos atravessá-la? — perguntou Marshall.
— Tenho um equipamento especial que nos permitirá
neutralizar a cúpula em qualquer ponto. Dentro de alguns
minutos estaremos em segurança. O importante é
aterrizarmos antes que os pilotos dos outros caças saibam
onde o faremos.
O avião iniciou a descida.
— Estou admirado por não nos terem recebido com
fogo antiaéreo — disse o piloto.
O radiotelegrafista, que trazia o fone no ouvido,
murmurou:
— A ordem de fogo foi revogada. Não deram os
motivos. Talvez nossa vida seja muito preciosa para eles.
Também é possível que pretendam interrogar-nos... E os
mortos não falam.
As rodas tocaram o solo. O enorme bombardeiro
correu pela planície irregular, descontrolou-se e acabou
batendo numa rocha. Pelos cálculos de Rhodan, estavam a
menos de cem metros da muralha energética.
O piloto foi atirado contra o painel, mas, com reflexo
rápido, cortou a entrada de combustível. O
radiotelegrafista caiu por entre os instrumentos
destroçados. Os outros dois tripulantes, ilesos, abriram a
134
porta de saída.
— Mais uma vez obrigado, e boa sorte! — disse
Rhodan, arrastando Marshall. — Temos de correr, senão
nos pegam antes de chegarmos à muralha. Fique junto de
mim. Vou ligar a cúpula energética.
Saltaram para o solo pedregoso do deserto. Segurando
Marshall pela mão, Perry correu em direção à nave
esférica que ficava a cinco quilômetros de distância.
Enquanto corria, comprimiu um botão colocado no cinto.
Aparentemente, nada aconteceu. Apenas, não sentiram
mais a ação do vento. Uma pequena cúpula os isolava por
completo do mundo exterior.
Um dos caças descreveu uma curva ampla e
aproximou-se a baixa altitude. As asas expeliram raios.
Quatro fileiras de projéteis caíram sobre Perry e Marshall,
que soltou um grito de pavor.
Os impactos logo cessaram.
— Não se preocupe Marshall. Para romper esta
cúpula, precisarão de calibres maiores.
O caça descreveu uma curva à direita, ganhou altitude
e, de repente, bateu contra um obstáculo invisível. A
violência do impacto fez o aparelho ricochetear, antes de
perder o controle e mergulhar contra o solo. As chamas
começaram a subir e, segundos depois, a munição
explodiu, atirando destroços para todos os lados.
— É a cúpula energética. Está a poucos metros de
distância. Cuidado! Vou ligar o campo neutralizador. Os
outros caças não chegarão a tempo. Pronto, estamos em
segurança. Agora podemos nos mover à vontade.
Perry soltou a mão de Marshall, virou-se e viu que os
outros caças ganharam altitude, afastando-se em direção
ao sul. Quatro homens estavam parados junto ao caça-
bombardeiro, olhando para eles. Um dos tripulantes
ergueu a mão, num aceno. Logo, os outros o imitaram.
Depois, puseram-se em marcha em direção às posições do
exército que cercava a base. Sabiam que algumas horas
desagradáveis os esperavam.
— Venha, Marshall. A Stardust está esperando por
nós. Conseguimos. Permita que lhe dê as boas-vindas ao
meu reino.
— Obrigado — disse Marshall, entre alegre e ainda
surpreso.
Caminhavam em direção às duas naves que pareciam
esperá-los em meio ao deserto e, por pouco, quase
tropeçaram em um homem que, de súbito, surgiu do nada,
fitando-os com os olhos assustados.
Rhodan parou de chofre.
A planície de areia não oferecia a menor proteção...
6
A máquina em forma de torpedo penetrava na rocha
com uma velocidade vertiginosa. A pedra triturada era
atirada automaticamente sobre a esteira transportadora
que a conduzia à superfície. Os cabos forneciam energia
para as máquinas e a iluminação. A renovação do ar
funcionava perfeitamente.
O coronel Cretcher estava parado junto a Klein e Li.
Seu rosto irradiava satisfação.
— Klein, a ideia de não abrir fogo contra Rhodan foi
excelente. Não me esquecerei de mencionar isso perto de
Mercant.
— Ele ficará satisfeito — conjeturou Klein, em tom
ambíguo.
O tenente Li apontou para a escavadeira mecânica.
— Quanto tempo acha que ainda levaremos?
— Terminaremos amanhã ao anoitecer. A galeria
vertical só terá largura suficiente para transportar a
bomba. Depois de amanhã, Perry Rhodan não mais
existirá — nem os arcônidas.
— O mundo, irá respirar muito aliviado — murmurou
Klein.
Cretcher olhou-o ligeiramente.
— É possível — disse, e voltou sua atenção às
máquinas. Klein e Li foram andando em direção à saída
distante.
A galeria era da altura de um homem e estava bem
iluminada. As paredes eram quase perfeitamente lisas. À
esquerda, a esteira transportadora deslizava em silêncio.
Não havia ninguém por perto.
— Temos de prevenir Rhodan — cochichou Klein,
desesperado. — Amanhã será muito tarde. Há esta hora já
não saberia como evitar a explosão, mesmo que tivesse
conhecimento dela.
— Não fale tão alto — disse Li. — Lembre-se de que
isso aqui é um bom condutor de som. Eu também não sei
o que fazer. Até chego a ter a impressão de que estou
prestes a trair Rhodan. O que será de nós se o plano tiver
êxito e Rhodan for morto? Depois de amanhã a guerra fria
será reiniciada, e, com ela, o eterno medo de uma
catástrofe nuclear. Não sei se aguentaremos por muito
tempo.
Klein parou.
— Hoje à noite tentarei atravessar a linha de posições
montadas pelos serviços secretos.
O chinês sacudiu a cabeça.
— Mesmo que conseguisse, não arranjaria nada.
Rhodan não pode manter um serviço de vigilância
ininterrupto sobre suas fronteiras. Nem perceberá que
você está por perto. O lógico seria despertar a atenção
dele. Mas como?
— Silêncio! Vem gente por aí — cochichou Klein.
Ouviram o ruído dos passos que se aproximavam. Um
homem vinha ao encontro deles. Quando se encontrava
bem próximo, reconheceram-no. Era Tako Kakuta, um
técnico japonês. Seus olhos suaves fitaram-nos com uma
expressão indagadora.
— Então, Tako! Estamos quase prontos, não é?
— Creio que sim — respondeu o japonês, cauteloso.
— O coronel Cretcher está lá dentro?
— Está perto da escavadeira — confirmou Klein e foi
andando. Li seguiu-o. O caminho para a saída era
135
interminável, mas, quando se cansavam, sentavam-se na
esteira transportadora. Assim, avançavam mais depressa.
Já podiam ver a claridade da entrada do túnel mais
adiante, quando uma sombra se desenhou contra a
luminosidade. Era um homem que também caminhava em
direção à saída. Iam passando por ele quando uma
lâmpada derramou uma luz forte. Ao reconhecer o
homem, Klein arregalou os olhos. Virou-se, sem querer
crer no que via e, de um salto, desceu da esteira. Li, que
não reagiu com a mesma rapidez, foi carregado mais um
pouco.
Klein parou e esperou que o homem se aproximasse.
Era Tako Kakuta.
A galeria não era muito larga. O japonês tinha ido à
parte dos fundos, para falar com o coronel Cretcher. Fora
há vinte minutos. Nesse meio tempo, tinham avançado,
ele e Li, em direção à saída. E o japonês,
inexplicavelmente, havia passado por eles, já voltando.
Não era possível.
Klein estreitou os olhos. Seu cérebro trabalhava
febrilmente. Tentou, em vão, encontrar a solução para
aquele problema, que se afigurava fantástico.
Tako esboçou seu insondável sorriso. E, com um ar de
humildade, disse:
— Devemos ter passado um pelo outro sem
percebermos, senhor Klein.
Klein sacudiu lentamente a cabeça.
— Como você chegou até aqui? Como sabe, sou um
agente de segurança e, por isso, tenho direito a certas
perguntas. Você não pode ter passado por nós, Tako. Na
verdade, há esta hora, ainda não poderia, ao menos, ter
alcançado o ponto onde o coronel Cretcher está. Diga
logo! Como conseguiu chegar até aqui?
O japonês continuava a sorrir.
— Passei na frente dos senhores.
— Você está mentindo. Nós o teríamos visto. Diga a
verdade.
Pela primeira vez, o medo começou a desenhar-se nos
olhos do japonês.
— O senhor não acreditaria — asseverou. — Por
favor, senhor Klein, não dê importância ao que passou.
Por favor!
— Pois eu tenho de dar importância a uma porção de
coisas — respondeu Klein, segurando o japonês pelo
braço. — Venha comigo.
Sua mão pegou no vazio. O japonês havia
desaparecido. Parecia que se dissolvera no ar ou se
tornara invisível. Klein estava petrificado quando Li
chegou perto dele.
— O que houve Klein? Onde está Tako?
Klein parecia despertar de um sonho.
— Sei lá! O homem desapareceu da mesma forma
como surgiu. Devo sofrer alucinações, ou então...
— Ou então?
— Ou então o homem pode se tornar invisível, Li.
Mas uma coisa dessas não existe. Ninguém pode tornar-se
invisível.
Li encarou a parede lisa da galeria.
— Existe outra possibilidade. Já ouvi falar de casos
em que pessoas desaparecem de repente, para aparecer em
outro lugar.
— Ora, Li! Não me diga que você crê nessas coisas...
— Mas é verdade.
— Li, estamos no século vinte.
— Justamente! Isso é consequência dos
acontecimentos do século vinte. Nunca ouviu falar em
mutações? Na ativação de setores ociosos do cérebro? Os
homens atingidos por esse fenômeno descobrem
faculdades das quais, ninguém suspeitaria. Talvez Tako
seja um caso desses. Imagino que se trate de teleportação.
— De quê?
— Isso significa que Tako pode transportar-se de um
lugar a outro, por força única e exclusivamente de sua
vontade. Sei que isso parece lenda, mas também sei que é
possível, uma vez presentes os respectivos pressupostos.
— Que pressupostos são esses?
Li assumiu um ar sério.
— As radiações produzidas pelas bombas atômicas.
Só agora as crianças que não haviam nascido ao tempo da
explosão de Hiroxima estão se tornando adultas. E eis que
os primeiros mutantes surgem no mundo. Nem me atrevo
a imaginar como será a humanidade daqui a cinquenta
anos. Klein tornara-se pálido.
— Você está brincando! Esses casos só podem ser
exceções, se é que suas suposições são corretas.
— Um belo dia — disse Li, sacudindo a cabeça — o
homem de hoje será a exceção. Venha comigo,
precisamos encontrar Tako. Precisamos saber se ele é
realmente um mutante.
Enquanto procuravam, Klein viu, repentinamente, a
solução diante de si. Se conseguisse fazer de Tako um
aliado, haveria uma possibilidade de prevenir Rhodan.
Mas será que Li tinha razão?
* * *
— É claro que poderia ter fugido — disse Tako
Kakuta com a voz humilde. — Mas isso não adiantaria
nada. Teriam ido, em minha perseguição e, um belo dia;
encontrar-me-iam. Por isso foi que vim falar com os
senhores. Podem perguntar o que quiserem.
A porta estava trancada. Estavam sós. Klein sabia que
Li vigiava do lado de fora. Ninguém os surpreenderia.
— Você é um mutante?
— Meus pais estão entre os sobreviventes da
catástrofe de Hiroxima. Nasci pouco depois. Minha mãe
morreu em consequência das radiações. Meu pai ficou
aleijado. Só eu fui poupado e cresci normalmente, se não
levarmos em conta uma faculdade que descobri no ano
passado. Já consegui desenvolvê-la, mas acredito que
ainda pode ser aperfeiçoada. O que pretende fazer
comigo, senhor Klein?
— Não tenha receio, Tako. Que distância pode
percorrer dessa maneira?
— Uns quinhentos metros: daí não passo. Para vencer
distâncias maiores tenho que realizar vários saltos.
— Só, quinhentos metros? — Klein não ocultou o
desapontamento. — Não é muito. O que acontece se você
se materializar dentro de um objeto sólido e não ao ar
livre?
Tako sorriu.
— Isso não é possível. O salto subsequente segue-se
logo após. É automático. Tenho pouca influência sobre
isso. Mas posso regular o primeiro salto com bastante
precisão. Praticamente, não corro o menor risco.
Klein respirou profundamente.
136
— Quero fazer-lhe uma pergunta, Tako. Você odeia,
ou tem qualquer razão para desejar a morte de Perry
Rhodan, o homem que queremos destruir com uma
bomba atômica?
O sorriso de Tako continuava inalterado.
— Capitão, o senhor é um agente de segurança. Seu
dever é velar para que esta missão tenha êxito e para que
ninguém tente sabotá-la. Se eu não odiasse Rhodan, não
iria dizê-lo justamente ao senhor. Não é verdade?
— Concordo. Tako. Mas esta pergunta não é uma
armadilha. Apenas gostaria de saber sua opinião. Arrisco
muita coisa, Tako, mas confio em você. Veja bem: esta
missão que ajudo a fiscalizar não pode ter êxito. Rhodan
não pode ser morto, compreende? Se isso acontecer,
amanhã à noite a ameaça do holocausto atômico voltará a
surgir sobre nossas cabeças. Só a terceira potência pode
impedir esta guerra. É difícil admitir este fato, mas ele
constitui uma conclusão lógica dos acontecimentos
passados. Bem, você já conhece a minha opinião. Posso
saber qual é a sua?
A expressão do rosto de Tako Kakuta não se alterou.
— Perry Rhodan já possui mais amigos do que ele
mesmo imagina. Ainda têm de se manter ocultos, pois o
medo que o poderoso sente do poderoso ainda é mais
forte que a razão. Como vê senhor Klein, suas
preocupações não têm o menor fundamento. Mas, o que
nos resta senão executar as ordens dos nossos governos?
O indivíduo isolado não pode rebelar-se contra os
mesmos. Se pudesse, teria êxito?
— Um indivíduo isolado, não; muitos indivíduos, sim.
Unidos, constituirão um elemento de força que ninguém
poderá vencer. Mas vamos à pergunta que acaba de
formular: pode Tako, um indivíduo isolado, às vezes,
pode ter êxito.
— Como?
— Você deve transportar-se para junto de Rhodan a
fim de preveni-lo. Só você pode penetrar naquela
fortaleza. Creio que o anteparo energético não poderá
detê-lo.
— Não — disse Tako. — Ele não me detém.
Klein parecia perplexo.
— O quê? Como você sabe?
— Já que não existem segredos entre nós, e temos os
mesmo propósitos, vou contar tudo. O senhor queria que
eu fosse para junto de Rhodan para preveni-lo, não é?
Pois bem, também tive esta ideia. Perry Rhodan já foi
prevenido, capitão Klein. Recomendo-lhe que não entre
mais na galeria depois da meia-noite. Foi este o prazo que
Rhodan nos concedeu quando teve conhecimento do
projeto.
Klein ficou boquiaberto; encarou Tako e, depois de
alguns segundos, disse:
— Você tem razão, Tako. Rhodan tem mais amigos
do que ele pode imaginar.
7
Perry logo notou que o homem que se encontrava
diante dele era um japonês. Este assumiu uma posição
quase humilde, baixou o rosto jovem e sorridente e fez
uma mesura.
— Não se assuste senhor Rhodan. Vim para preveni-
lo de um grande perigo.
— Como conseguiu atravessar a barreira energética?
— perguntou Perry, já recuperado do espanto. O
homenzinho devia ter escapado à sua vista em meio ao
deserto. — O senhor surgiu de repente...
— Possuo o dom da teleportação. Meus pais passaram
pela catástrofe de Hiroxima. Talvez compreenda...
Marshall cochichou ao ouvido de Rhodan:
— É um mutante, tal qual eu. Pode trasladar-se
instantaneamente de um lugar para outro. Vem de um
ponto abaixo da superfície.
— Sob a superfície? — inquiriu Rhodan, surpreso.
— É — confirmou Tako — venho de uma galeria
cavada embaixo desta área. Como foi que o senhor soube
disso?
Marshall aproximou-se.
— Sou um mutante, tal qual você, Tako. É este o seu
nome não é? Tako Kakuta. Você possui o dom da
teleportação; e eu sei ler pensamentos. — Estendeu-lhe a
mão. — De certa forma somos companheiros. Também
você está ajudando Perry Rhodan.
Tako apertou a mão estendida com um sorriso nos
lábios.
Perry Rhodan tranquilizou-se. Encontrara mais um
mutante. Suas suposições se confirmavam. Com isso, seu
plano de formar um exército de mutantes dedicado a
ajudá-lo a vencer os inimigos que o cercavam ganhou
uma base mais realista.
— Qual é o perigo contra o qual veio me prevenir,
Tako?
— Trata-se de um destacamento especial que está
cavando uma galeria por baixo da terra e que irão até um
ponto sob as duas naves espaciais. Amanhã, pretendem
introduzir nela uma bomba de hidrogênio de alta potência.
A galeria terminará cinquenta metros abaixo da
superfície. Não creio que reste muita coisa, caso o senhor
não tome as providências necessárias.
— Uma bomba embaixo da terra! — Num instante, o
cérebro de Rhodan pôs-se a trabalhar velozmente, e logo
ele teve ciência das medidas defensivas a serem adotadas.
— Obrigado, Tako. Acredito que não poderá retornar
mais ao seu destacamento. Se quiser, pode ficar conosco.
— Mais tarde — disse o japonês, em tom modesto. —
Suponho que pretendem defender-se. Tenho o dever de
evitar que aconteçam baixas entre os trabalhadores. Posso
saber o que pretende fazer?
— Ainda não sei — disse Rhodan. — De qualquer
maneira, não pretendo tomar qualquer medida defensiva
antes do anoitecer. Esta informação basta?
— Providenciarei para que hoje à noite não haja
ninguém na galeria.
Perry colocou a mão sobre o ombro do japonês.
— Você é muito humano, Tako...
— Qualquer um faria a mesma coisa, ao menos
qualquer pessoa cujos pais passaram por um ataque
atômico. Ainda nos veremos senhor Rhodan...
Tako Kakuta sumiu diante deles como se nunca
tivesse estado ali. Só o deserto cercava os dois homens.
Ao longe, viam-se os contornos reluzentes das naves. Um
vulto surgiu perto delas. Vinha ao encontro deles.
— O que foi que ele pensou? — perguntou Rhodan.
John Marshall respondeu:
137
— Pensou o que disse.
— Quer dizer que disse a verdade. Vamos andando, aí
vem Bell.
— Quem é Bell?
— Reginald Bell, copiloto e técnico de bordo da
Stardust. Um ótimo sujeito e um grande amigo.
Eles encontraram-se com Bell a poucos metros da
nave.
— Olá, Perry! Tudo bem? Quem é o cavalheiro que
nos visita?
Antes que Perry pudesse fazer as apresentações,
Marshall foi logo dizendo:
— Em primeiro lugar, não uso brilhantina, senhor
Bell. Meus cabelos são lisos por natureza. Em segundo, o
senhor também não é um modelo de beleza. E em
terceiro, não é da sua conta como foi que me aproximei
do senhor Rhodan.
Os cabelos ruivos de Bell arrepiaram-se.
Olhou perplexo para o estranho e, depois para
Rhodan.
— Santo Deus! Será que este cara sabe ler
pensamentos?
— Adivinhou! — confirmou Rhodan sem conter o
riso. — Ele os lê com perfeição. Se eu fosse você,
passaria a utilizar o bloco protetor sempre que quiser se
entreter com pensamentos secretos. Permita que lhe
apresente John Marshall, o primeiro telepata de uma
humanidade que aos poucos vai se tornando adulta.
— Muito prazer — disse Bell, refeito do susto.
— O prazer é meu — John apertou a mão estendida.
— Fico satisfeito em saber que, daqui por diante,
controlará seus pensamentos.
Perry interrompeu-o.
— Tudo em ordem, Bell?
— Tudo perfeito, Perry.
— Ótimo. Vamos andando. Preciso falar
imediatamente com Crest. O assunto é muito urgente.
Estão preparando um ataque contra nós. Pretendem
explodir-nos amanhã. É uma gente muito simpática, não
é?
— Muito — concordou Bell. — E como é que querem
nos explodir?
— Cavaram uma galeria que termina embaixo das
naves.
— Como soube disso?
— Depois eu conto.
Crest aguardava-os diante da nave esférica. Eric
Manoli estava ao seu lado. Haggard, um pouco afastado,
observava o trabalho dos robôs, controlado por Thora.
Crest cumprimentou seu aliado.
— Fico satisfeito em tê-lo de volta. Conseguiu alguma
coisa?
— Muita! Crest quer fazer o favor de chamar Thora,
imediatamente. Se não agirmos depressa, estaremos
perdidos. As potências da Terra trabalham em conjunto e,
quando isso acontece, elas se tornam perigosas. Não
conseguiram romper a cúpula energética, mas
encontraram outro caminho. Abriram uma galeria que
termina embaixo das naves. Amanhã pretendem detonar
uma bomba atômica.
— Como vejo, trouxe alguém — disse Crest, sem
fazer a menor referência sobre o perigo que os ameaçava.
— Sinto que é um telepata. Com isso a humanidade saltou
um estágio na evolução. Seja bem-vindo, senhor
Marshall. Como vê meu cérebro também possui esta
capacidade. O que acaba de dizer, Rhodan? Cavaram uma
galeria? Tencionam detonar uma bomba? Thora vai ficar
satisfeita.
Se ficou satisfeita, Thora não o demonstrou.
— Eles nunca compreenderão — disse ao ouvir a
notícia. Os cinco homens estavam sentados, em
companhia de Crest e Thora, num confortável camarote
da nave esférica. O crepúsculo já descia sobre o deserto.
— Está na hora de dar-lhes uma lição da qual jamais se
esquecerão.
— Recomendo-lhe que se abstenha de qualquer ato
precipitado — disse Crest, sacudindo a cabeça. — Se
conseguirmos impedir a explosão, devemos dar-nos por
satisfeitos.
— Se dependesse de mim, exterminaria esta raça —
respondeu Thora, exaltada.
— Além de insensato, seria perigoso. Se não
pudermos contar com o auxílio deles, jamais chegaremos
a Árcon. E ninguém sabe se, num raio de quinhentos
anos-luz, existe outra raça inteligente.
A constatação de Crest não deixou de produzir efeito.
Thora concordou. Com alguma relutância, é verdade.
— Muito bem. Acato a decisão da maioria. O que
faremos?
Perry inclinou-se para frente.
— Existe alguma possibilidade de destruir a galeria
sem sairmos daqui?
Thora fez que sim.
— O localizador está indicando a posição exata da
galeria. Posso ligar o combustor centralizado.
— O que é isso?
— Trata-se de uma fonte de energia. Esta sai do
gerador sob a forma de radiações inofensivas. O
conversor faz com que, no ponto escolhido, ela se
transforme numa força destrutiva. Em outras palavras,
daqui, posso fazer com que um raio energético atravesse a
matéria sem produzir o menor dano. O efeito devastador
só começará a cinco, cinquenta ou quinhentos metros
abaixo da superfície. O localizador indica a posição exata
do objetivo, regulo o combustor para esse ponto e, com
isso, é possível derreter a galeria. Por dias a fio será
transformada num inferno incandescente e, portanto,
intransitável. Será que isso basta? Rhodan esboçou um
sorriso suave.
— Basta. Muita coisa poderá acontecer antes que
decidam desencadear outro ataque. Não acredito que
continuem por muito tempo a nos considerar como
inimigos mortais. Aos poucos, a ideia de que só
oferecemos vantagens à humanidade vai ganhando
terreno. Já temos mais amigos pelo mundo do que
podemos imaginar.
— Fico satisfeito em saber disso — observou Crest.
Thora interrompeu-o.
— A que horas devo começar? Perry olhou para o
relógio.
— Exatamente daqui a dez horas, Thora. Às quatro da
manhã não haverá ninguém na galeria.
Thora encarou-o.
— Muito bem. Mas asseguro-lhe que é esta a última
vez que levo em consideração os sentimentos alheios. A
defesa contra o próximo ataque que for lançado
138
representará a destruição de sua raça. Convém comunicar
isso a sua gente.
Levantou-se e saiu de cabeça erguida, sem se voltar.
Marshall dirigiu-se a Rhodan, rompendo o silêncio:
— É estranho. Ela está mentindo. Não pensa o que
diz...
* * *
O dia estava amanhecendo no leste.
Todos dormiam. Só Rhodan e Bell esperavam na
cabina de comando da Stardust. Viviam olhando para o
relógio. Os ponteiros avançavam muito devagar. Ainda
faltavam alguns minutos para as quatro.
No interior da nave esférica havia uma luz acesa. Vez
por outra se via uma sombra esbelta que se movia atrás da
vigia. Era Thora. Estava diante do mecanismo que
designara como combustor centralizado. Talvez sua mão
descansasse sobre uma chave.
— Será que ela cumprirá a palavra? — cochichou
Bell.
— Cumprirá — disse Perry. — Não há dúvidas de que
o japonês conseguiu evacuar a galeria, senão ele nos teria
comunicado e pedido um adiamento. — Está na hora.
Uma luminosidade esverdeada saiu da vigia da nave
esférica, dando um brilho fantasmagórico ao romper do
dia. Ao leste, o primeiro tom rosado surgia no horizonte.
Lá embaixo, a energia liberada iniciava sua ação
fulminante, transformando produtos da técnica humana
em montões de metal derretido. A rocha gotejava e, ao
endurecer, assumia formas bizarras. A terra deslizava,
emitindo um chiado ao volatizar-se. Aos poucos, a
marcha destrutiva foi prosseguindo em direção à saída da
galeria.
De início, a sentinela postada ali percebeu o aumento
da temperatura. Depois de algum tempo, os vapores
corrosivos começaram a sair da galeria e abriram caminho
até os pulmões do homem. Este, vencendo o pavor que
começava a dominá-lo, deu o alarma. Dentro de poucos
segundos, todos estavam de pé no acampamento. A rocha
liquefeita saiu da galeria e, em contato com o ar frio da
manhã, endureceu, fechando a entrada fumegante.
* * *
Klein afastou-se da janela. Eram quatro e dez da
manhã.
— A galeria deixou de existir, Tako. Você prestou um
grande serviço à humanidade. Além de prevenir Rhodan,
fez com que há esta hora não houvesse ninguém na
galeria.
— Não foi fácil convencer o coronel Cretcher da
existência da radioatividade. Ainda bem que consegui
introduzir alguns gramas de urânio na galeria.
Li e Kosnow levantaram-se e, em silêncio, apertaram
a mão do japonês.
— Dê lembranças a Rhodan — disse Klein. — E diga-
lhe que poderá contar sempre conosco. Diga-lhe, também,
que aguardamos o dia em que poderemos estabelecer
contato com ele em caráter oficial.
— Não esquecerei — prometeu Tako, apertando a
mão dos três homens. — Podem ter certeza. Ainda
teremos oportunidade de dar provas de lealdade e
coragem. Passem bem e até a vista...
No mesmo instante, os três se viram sós. E Tako
Kakuta voltou a materializar-se na cabina de comando da
Stardust.
Bell, de costas para a vigia, bocejava.
— Está no fim — disse. Estou cansado; vou dormir
um pouco.
De repente, a dois metros de distância, um ser humano
surgiu do nada. O homem inclinou-se ligeiramente e,
dirigindo-se para Rhodan, disse:
— Minha missão foi cumprida, senhor Rhodan. Vim
para oferecer meus serviços.
Embora o cérebro de Bell funcionasse com uma
extraordinária rapidez, a surpresa sobrepujou a razão.
Rhodan lhe havia falado a respeito do poder de que Tako
era possuidor. Mesmo assim, o impacto de ver um ser
humano surgir vindo não se sabe de onde surpreende pelo
que tem em si de fantástico.
— Feche a boca, Bell, senão Tako é capaz de cair
dentro do seu estômago — recomendou Perry, rindo,
antes de dirigir-se ao japonês.
— Aceito os serviços que me oferece Tako.
Juntamente com Marshall, você representa um poder
imenso. Tenho certeza de que conseguiremos nosso
objetivo.
— Se eu não acreditasse nisso, não estaria aqui —
respondeu o japonês com humildade. Mas, nos seus olhos,
brilhava o orgulho.
Bell aproximou-se e, com um sorriso, colocou a mão
sobre o ombro de Tako, murmurando em seguida:
— É verdadeiro!
— Claro que é! — interveio Rhodan. — Acreditava
que fosse um fantasma?
— Escute. Você pode deslocar-se para qualquer lugar
a qualquer momento?
— Posso senhor Bell.
Um brilho estranho surgiu nos olhos de Bell.
— Mesmo para o interior da nave dos arcônidas?
— Por que não?
Bell sorria.
— Tako, será que você pode verificar se Thora já
concluiu o contra-ataque? Acho que não há nada demais
em saber, não é, Perry?
Perry Rhodan concordou.
— Claro que não! E pouparíamos uma caminhada até
lã. O que acha Tako?
O japonês aproximou-se da vigia e olhou para a nave
esférica.
— Está bem...
Antes que Bell pudesse dizer qualquer coisa, ele
desapareceu. Dali a alguns segundos, Bell começou a
falar:
— Fico satisfeito só em pensar no susto que Thora vai
levar quando, de repente...
Quem levou um susto foi ele. No mesmo instante,
Tako voltou a aparecer em sua frente. Seus olhos sorriam
como se pedissem perdão. Disse:
— Sinto muito, mas a senhorita Thora não pôde me
atender. Estava indo para a cama.
Um sorriso galhofeiro brincou em torno dos lábios de
Perry.
— E daí?
— É, e daí? — perguntou Bell, triunfante. — Ela se
139
assustou?
— Não chegou a me ver — explicou Tako. —
Materializei-me atrás das suas costas. Estava tirando a
roupa.
— Tirando a roupa?! — Bell arregalou os olhos. Mas
logo se controlou. Seu rosto iluminou-se. Colocou as
mãos nos ombros de Tako.
— Já somos bons amigos, concorda? Nossa amizade
só tende a crescer, não é?
— Naturalmente — gaguejou o japonês, sob o peso
das mãos do gigante. — Por que pergunta?
Bell cochichou-lhe ao ouvido:
— Que tal você me ensinar a teleportação?...
E arrastou Tako Kakuta, surpreso, para fora da cabina.
Perry Rhodan seguiu-os com os olhos. Sorria. Antes
de deitar, lançou um olhar pela vigia.
O deserto estava vazio. A paz reinava nele.
Lá longe, ao leste, o céu tornava-se rubro. Um novo
dia raiava. O que traria?
FIM
A nave dos arcônidas, pousada na Lua, foi destruída num ataque de surpresa lançado
pelas potências terrenas. Apesar disso, a base de Rhodan, montada no deserto de Gobi,
mantém-se intacta sob a proteção da cúpula energética. E o fator decisivo é este. Só a
Terceira Potência pode dominar a nova crise que teve origem com a destruição da nave dos
arcônidas. Saiba como isso acontece, lendo o quinto episódio da série:
ALARMA GALÁCTICO
140
Nº 05
De
Clark Darlton
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
O impossível acontece! Num ataque de surpresa, as superpotências terrenas
destruíram, na superfície lunar, a nave dos arcônidas, uma raça semelhante aos
homens, que domina um grande império galáctico.
Apenas dois arcônidas sobreviveram ao ataque e se encontram em segurança junto
a Perry Rhodan, o homem que descobriu a nave dos arcônidas e, com o auxílio dos
recursos tecnológicos infinitamente superiores dos mesmos, formou a Terceira
Potência. Perry Rhodan impediu a guerra mundial que há tanto tempo ameaçava a
humanidade. E agora, quando um novo perigo, vindo do espaço cósmico
desencadeia o Alarma Galáctico, mais uma vez a Terceira Potência realiza uma
intervenção decisiva.
141
I
— Você nunca compreenderá! Não conseguirá
entender nenhum dos impulsos. Seu cérebro ficará
confuso. Você...
Thora interrompeu-se em meio à frase. As palavras
não lhe acudiam com a rapidez exigida por sua ânsia
incontida.
“Como é fácil descobrir
suas intenções”, pensou Perry
Rhodan. “O que a deixa
preocupada não é meu
cérebro. Na verdade, quer
convencer-me de que sou um
ser tão subdesenvolvido que
nunca chegarei a compreender
seus segredos.”
— O que importa? —
retrucou. — Você não tem
nada a perder. Só poderá ficar
satisfeita ao ver Perry Rhodan
transformado num idiota
balbuciante, não é?
Thora percebeu que
Rhodan lhe armava uma cilada
e ficou aborrecida por notar
que isso era fácil para ele.
— Não se trata disso —
respondeu em tom seco. — Os
cristais informáticos só podem
ser ativados um número
limitado de vezes. Devemos
evitar qualquer desperdício, especialmente quando a
perspectiva de um fracasso é tão patente como no
presente caso.
Perry Rhodan virou a palma da mão direita para
cima.
— Thora, você está sendo injusta comigo! — disse
em tom suplicante. — Não compreendemos tudo o que
nos foi apresentado até agora?
Thora estalou os dedos, num gesto de desprezo.
— O que você aprendeu até agora não é nada em
comparação ao que lhe está reservado.
Rhodan voltou-se para Crest que, como de costume,
estava muito sério. Só quem o conhecesse adivinharia
pelas rugas de sua testa o quanto estava se divertindo.
“Uma única situação destas vale mil programas de
ficção”, pensou Crest. “Oh Senhor dos Mundos! A mais
inteligente das arcônidas e um homem que é um
verdadeiro semideus; e comportam-se como crianças.”
Na verdade, tratava-se de coisas muito mais
importantes. Depois de alguma resistência, Thora acabara
concordando em que Rhodan e Bell adquirissem parte da
ciência arcônida através do método de ensino hipnótico.
Mas, agora que Rhodan propusera que, para alcançar
maior grau de eficiência, os últimos segredos lhe fossem
revelados, ela passou a opor uma resistência encarniçada.
Todavia, Crest ponderou que os dois arcônidas só
poderiam contar com a energia dos subdesenvolvidos,
cujo auxílio poderia tornar-se muito mais eficiente se lhes
fossem transmitidos os conhecimentos necessários.
Apesar disso, Crest teve de fazer valer a autoridade
de que se achava investido na qualidade de membro da
dinastia reinante dos arcônidas, e que também se estendia
a Thora, para quebrar a resistência que a mesma opunha à
sugestão de Rhodan.
Este se sentia bastante atingido pela obstinação de
Thora, muito mais do que se dava conta. Encerrando a
palestra; disse:
— Muito obrigado pela confiança. Verá que a
mesma não foi mal aplicada em mim e em Bell.
Dirigindo-se a Thora, observou:
— Com o tempo, você se
convencerá de que não tenho a menor
intenção de prejudicá-la ou ferir seu
orgulho.
Achou necessário acrescentar
essas palavras, embora soubesse que
Thora não tinha a menor
receptividade para elas. Ainda não
tinha.
***
— Vá para o inferno! — disse
Reginald Bell em tom exaltado.
Procurou disfarçar o susto que
Tako Kakuta lhe metera ao surgir,
repentinamente, ao seu lado, vindo do
nada.
Um sorriso surgiu no rosto
redondo e infantil de Tako.
— Por que devo ir para o
inferno? — perguntou em voz fina.
— Mereço coisa melhor. Trago
notícias boas.
— Notícias boas? — perguntou Bell. — De que
lugar, deste mundo de Deus, ainda podem vir notícias
boas?
— As notícias vêm de Tai-tiang — disse Tako,
sempre sorrindo. — Acabou reconhecendo que mesmo
com a tal Divisão de Engenharia não conseguirá nada
contra a Terceira Potência. Seus homens estão se
retirando.
Bell já sabia que Tai-tiang não teria alternativa,
depois que a Terceira Potência havia destruído a galeria
por meio da qual pretendiam passar por baixo da cúpula
energética, para destruir a nave dos arcônidas com uma
explosão nuclear. Apesar disso, a notícia de Tako
produziu certo alívio em sua mente.
— Obrigado, Tako — disse com um ligeiro suspiro.
— Até logo, capitão — respondeu Tako e
desapareceu.
Bell continuou fitando o lugar em que o japonês
estivera. Parecia pensativo. Nos últimos meses
conformara-se com a ideia de que só os arcônidas seriam
capazes de oferecer novidades que pudessem espantar um
homem à prova de choque como ele. Levaria algum
tempo para aceitar o fato de que Tako Kakuta não era
outro arcônida, mas um ser como ele. Ainda se assustava
quando o teleportador surgia, vindo do nada, para depois
de algum tempo voltar a desaparecer, como que
dissolvido no ar.
Reginald Bell refletiu sobre o dom estranho da
teleportação. Embora Tako lhe oferecesse várias
demonstrações por dia, o fenômeno ainda lhe parecia tão
Personagens principais deste episódio:
PERRY RHODAN — Chefe da Terceira Potência. REGINALD BELL — Amigo e auxiliar direto de Rhodan.
TAKO KAKUTA — Homem que deve o dom da teleportação à explosão atômica de Hiroxima. CREST e THORA — Únicos sobreviventes da expedição espacial dos arcônidas. JESSE MORGAN — Um jovem curioso de profissão. CAPITÃO ZIMMERMANN — Oficial do Serviço Secreto. Só acredita no que vê. ALLAN D. MERCANT — Chefe dos Serviços de Defesa Internacional. Seus colaboradores acreditam que sabe ler pensamentos.
142
inacreditável e apavorante como um cavalo que lhe desse
bom-dia. Subitamente ouviu um zumbido, vindo da
parede, e o brilho suave da tela interrompeu o crepúsculo
frio que reinava na sala.
O rosto de Rhodan surgiu na tela.
— Bell, gostaria de falar com você — disse Rhodan.
— Tem tempo?
— Tenho. E no seu camarote?
— É sim. Crest também está aqui. Bell acenou e saiu
da sala. A tela apagou-se.
Quando entrou no camarote de Rhodan, este disse:
— Pretendemos dizer adeus a Terra por alguns dias.
Bell aguçou os ouvidos. Crest continuou:
— Enquanto se completa o treinamento hipnótico,
os senhores precisam do máximo de repouso. Além disso,
nossa excursão terá outra finalidade. Não é de supor que
nossa nave pousada na Lua tenha sido totalmente
destruída. Não acredito que um míssil terrestre tenha
tamanho poder de destruição. Acho que, se procurarmos
com calma conseguiremos salvar alguns objetos
importantes.
A decolagem da nave foi marcada para dali a dois
dias. Enquanto isso, a tripulação, especialmente Bell e
Rhodan, desenvolvia uma atividade que fez retumbar os
corredores da nave.
Em virtude das funções que lhe cabiam, a nave
dispunha de um grupo de robôs de reparo. Para Rhodan,
qualquer segundo durante o qual estes permaneciam
inativos, atirados ou encostados no depósito, representava
um desperdício. Por isso, pediu a Crest que elaborasse um
programa das atividades dos robôs.
— Quando estará pronto o programa? — indagou.
— Daqui a dez minutos.
— Caramba! — exclamou Rhodan. — Em dez
minutos?
Crest confirmou com um movimento de cabeça e
dirigiu-se à escrivaninha. Rhodan, ao sair, marcou a hora.
Pensativo, dobrou um ângulo do corredor. Não vira
a pessoa que se aproximava do outro lado. Quase esbarrou
em Thora.
— Oh, desculpe! — disse com um sorriso,
ligeiramente perturbado.
Thora parecia estar de bom humor. Lançou-lhe um
olhar irônico.
— Se continuar a desenvolver tanta energia, um dia
acabará atravessando a parede, sem precisar fazer a curva.
— E se um belo dia você conseguir ser menos
presunçosa, até que será uma mulher agradável —
respondeu Rhodan.
Thora estreitou os lábios. Virou-se abruptamente e
desapareceu em outra curva do corredor. Suspirando,
Rhodan continuou seu caminho.
Tako Kakuta estava esperando por ele. Rhodan
entregou-lhe um maço de papéis com anotações.
— Leia isto, Tako. Depois falaremos a respeito.
Sem perda de tempo, Tako pôs-se a examinar as
anotações de Rhodan. Este hesitou um pouco antes de
por-se a caminho para junto de Crest.
— Chegou bem na hora, Rhodan — disse o cientista.
— Acabei neste instante.
Tomaram um elevador e desceram ao depósito de
robôs.
— Fiz um programa para cada um deles — disse
Crest com certo orgulho. — Quando voltar ficará
admirado com o trabalho destas máquinas.
Havia uns vinte robôs-trabalhadores com funções
universais. Todos eles tinham forma humanóide. Os
arcônidas haviam descoberto que esta representava o tipo
ideal em meio ao arsenal inesgotável das gerações. Dessa
forma, haviam dotado seus robôs de dois braços, duas
pernas, mãos com cinco dedos, inclusive um polegar, uma
cabeça que continha o equivalente positrônico de um
cérebro humano, inclusive os órgãos dos sentidos mais
importantes. A postura ereta permitia aos robôs
contemplarem o mundo da mesma perspectiva que os seus
construtores. Apesar das suas funções universais, podiam
receber uma programação específica para determinadas
tarefas.
O programa que Crest elaborara para cada uma das
máquinas estava registrado numa delgadíssima fita de
plástico.
— Aqui estão registrados todos os impulsos —
explicou.
Pôs-se a introduzir os programas nos robôs. Essa
atividade consistiu tão-somente em colocar a fita de
plástico numa fenda, que era encontrada num ponto
diferente em cada uma das máquinas. Feito isso, era só
esperar que o robô emitisse um zumbido e desse sinal de
que estava pronto a entrar em funcionamento.
— Depois de uma pausa tão longa, a ativação
demorará alguns segundos — explicou Crest.
Para Rhodan, alguns segundos pareciam um tempo
insignificante em comparação com a atividade que as
máquinas logo começaram a desenvolver. Zumbindo
como abelhas, começaram a se movimentar, afastando-se
de sua posição primitiva. Desviando-se uns dos outros
sempre que corriam risco de esbarrar, marcharam em
direção ao elevador pelo qual Crest e Rhodan haviam
descido poucos minutos antes. Quando a última máquina
acabou de subir, Rhodan deu uma risada.
— Meu Deus! — suspirou. — Nunca seria capaz de
imaginar que uma coisa dessas pudesse existir realmente.
— Pois ficará admirado de ver o que estes robôs
sabem fazer — respondeu Crest. — Trata-se de robôs
genuínos, que, até certo ponto, são capazes de pensar e
agir de forma independente. Não sei o que seria da cultura
arcônida se não existissem estas máquinas.
***
Os robôs não saíram diretamente da nave. Antes
disso, reuniram os objetos que, segundo o programa,
tinham de levar para fora.
Ao conceber seu plano, Rhodan tivera a ideia de não
desperdiçar um instante do tempo de que dispunham para
cumprir as tarefas ambiciosas que se haviam imposto.
Rhodan percebeu uma chance que não deveria perder e
que lhe permitiria obter, das indústrias terrenas, as peças
necessárias à construção de uma nave ultraveloz e de raio
de ação ilimitado, desde que fizesse encomendas bem
definidas. Mas a montagem da nave só poderia ser
realizada sob a proteção da cúpula energética. Face às
condições reinantes na Terra, ele cometeria um erro de
extrema gravidade se assumisse o risco de incumbir à
indústria terrestre da construção da nave. Esse receio
143
tinha sua origem tanto na política das grandes potências,
como no caráter humano.
Rhodan sabia perfeitamente que o espaço existente
sob a cúpula energética seria bastante para realizar a
montagem final, mas nunca pensara em comprimir todo o
processo produtivo numa área de apenas oitenta
quilômetros quadrados.
Ficou entusiasmado com a atividade enérgica e
resoluta dos robôs. Depois de haverem retirado da nave os
materiais de que precisavam para seu trabalho,
empilharam os mesmos num local afastado e puseram-se
a aplainar o solo.
Rhodan tinha certeza de que, quando retornassem de
sua viagem, grande parte do serviço estaria concluída.
***
Tako Kakuta concluíra a leitura das anotações.
Quando Rhodan entrou em seu camarote, estava reclinado
numa poltrona giratória, olhando, pensativo, para o alto.
— Compreendeu tudo? — perguntou Rhodan
laconicamente.
— Sim, senhor. Não será nada fácil... Rhodan pegou
uma cadeira e sentou em frente de Tako.
— Ouça Tako! — começou a falar em tom
insistente. — O assunto é muito sério. Para conservar a
amizade de Crest e daquela mulher, teremos de construir
uma nave cujo raio de ação seja bastante amplo. Se não
conseguirmos levá-los ao seu planeta natal e trazê-los de
volta, morreremos de velhice antes de conseguirmos fazer
alguma coisa que imponha respeito aos habitantes da
Terra. Precisamos do auxílio de Crest e, para
conseguirmos que este faça por nós tudo que estiver ao
seu alcance, precisamos de uma boa nave.
— Sim, compreendo — disse Tako.
— Estarão atrás de você — prosseguiu Rhodan. —
Será caçado pelos serviços secretos e terá de cuidar-se o
mais possível. Encontrará muita gente que, de olho no
dinheiro, gostará de entrar em negócios conosco e estará
disposta a fornecer qualquer coisa de que precisemos.
Mas não duvide de que, entre essa gente, haverá pessoas
que lhe farão ofertas fabulosas e avisarão a polícia assim
que você lhes der as costas. Nunca confie demais na
faculdade especial de que é dotado. O serviço secreto
levará uns cinco ou seis dias para descobrir que é um
teleportador. Daí em diante; atirarão sem avisar, à traição,
se for necessário. Você receberá um traje protetor dos
arcônidas, que lhe prestará bons serviços. Mas, em última
análise, o responsável pela sua segurança será você
mesmo.
Tako confirmou com um movimento de cabeça e
repetiu:
— Sim, compreendo.
— Você mesmo decidirá por onde vai começar o seu
trabalho. Talvez tenha mais sorte junto às empresas
privadas. Dar-lhe-ei uma relação completa dos artigos de
que precisamos. Na opinião de Crest, a nave deve ter,
pelo menos, trezentos metros de diâmetro. Muita gente
pensará que você está louco, quando pedir andaimes para
uma construção de plástico de trezentos metros de altura,
ou alguns geradores na base de fusão com uma potência
de cem milhões de megawatts. Além disso, deverá ter
cuidado para que nenhuma firma forneça tantas peças que
se possa adivinhar para que sirvam. Não se iluda. Trata-se
da tarefa mais difícil que já lhe foi confiada. Deverá estar
preparado até o momento de nossa decolagem.
Rhodan levantou-se. Tako também se levantou e fez
uma mesura. Rhodan sorriu e deu-lhe uma palmadinha no
ombro.
— Faça um serviço bem feito, Tako! Muita coisa
depende disso.
* * *
Rhodan estava preparando a relação que seria
entregue a Tako. Eram muitas as peças que teriam de ser
providenciadas num breve espaço de tempo.
A indústria terrena não seria capaz de fornecer os
mecanismos propulsores de velocidade superior à da luz.
Crest esperava encontrar, na nave destruída, algumas
peças que poderiam ser utilizadas. Quanto ao resto,
encomendariam as partes separadas, que teriam de serem
montadas sob a cúpula energética.
Rhodan sentiu uma tensão eletrizante ao lembrar-se
de que faltavam menos de setenta horas até o momento
em que conheceria o segredo da propulsão a velocidade
superior à da luz.
Fitando a lâmpada mortiça do camarote, deixou que
seus pensamentos vagassem livremente.
Bell entrou correndo, sem anunciar-se. Estava
exaltado e fungava.
— Klein está dando sinal! — disse apressadamente.
— Temos de mandar Tako para fora.
— Klein?
Bell fez que sim.
— Acho que devíamos apressar-nos. Klein não
gostará de ficar rastejando por muito tempo pelo deserto
sob o olhar de Tai-tiang.
Rhodan ligou o equipamento de intercomunicação.
O rosto sorridente de Tako surgiu na tela.
— Explique a ele! — pediu Rhodan, dirigindo-se a
Bell.
— Klein transmitiu o sinal convencionado — disse
pela segunda vez. — OPQ na faixa de 6,3 megahertz. Está
esperando no lugar combinado. Você deve-se pôr-se a
caminho o quanto antes.
Tako fez que sim.
— Irei imediatamente, capitão.
Nem deu tempo para desligar o aparelho. Viram que
de um instante para outro ele desapareceu do lugar em
que se encontrava.
O capitão Klein ocupava três funções como agente:
em caráter profissional, trabalhava para o Conselho
Internacional de Defesa; por convicção, lutava pela paz e
o entendimento entre os povos; e, finalmente, como aliado
da Terceira Potência, também desempenhava suas
funções de agente secreto. Conforme se esperava dele,
reunira-se às suas tropas, juntamente com seus
companheiros Kosnow e Li e se retirara em companhia
delas. Assumia-se o risco de abandonar a segurança
proporcionada pelo acampamento militar para aventurar-
se até as proximidades da cúpula energética, devia ter
uma razão muito forte para isso.
O sinal OPQ na faixa de 6,3 megahertz significava
uma pequena elevação, situada a cerca de seis
quilômetros ao sudoeste do lago. Klein dispunha de várias
144
senhas para entrar em contato com a equipe de Rhodan.
Cada uma delas indicava um lugar de encontro.
Tako Kakuta voltou após quinze minutos. Rhodan e
Bell fitavam a tela de telecomunicação, para vê-lo
materializar-se. Mas, em vez de fazer sua aparição em seu
próprio camarote, surgiu inopinadamente na sala em que
Rhodan se encontrava.
Bell sobressaltou-se.
Tako não lhe deu atenção. Voltou-se para Rhodan.
Parecia muito nervoso.
— Tenho notícias más, senhor! Pequim deu
instruções a todos os setores da indústria estatal para
entregar imediatamente ao serviço secreto qualquer dos
nossos agentes que procure estabelecer contato com eles.
Moscou deu ordens idênticas para o seu território e, na
área da OTAN, a partir de hoje, qualquer empresário que
entabule negociações conosco, está sujeito a algumas
penas bastante graves.
Rhodan ficou pensativo por um instante.
— Algum espertalhão deve ter descoberto os nossos
planos — disse com a voz pausada. Deu dois passos,
virou-se abruptamente e encarou o japonês. — Tako! Sua
tarefa continua inalterada. Apenas receio que terá de ser
ainda mais cauteloso.
II
A nave decolou conforme fora previsto. Os robôs
haviam trabalhado durante dois dias, e a tarefa de que
foram incumbidos estava adquirindo certa forma.
Havia um número suficiente de geradores de campo
para manter a cúpula energética, durante a ausência da
nave. Alguns dos aparelhos foram colocados a bordo para
frustrar os planos que os comandos militares da Terra
elaboraram assim que lhes foi comunicada a decolagem
da nave.
Durante a viagem, não havia qualquer serviço a
executar. O equipamento de direção automática da nave
funcionou de acordo com os dados introduzidos por Crest.
A oitocentos quilômetros da Terra os equipamentos
de bordo localizaram o primeiro foguete. Em poucos
segundos, surgiu nas telas de vigilância ótica sob a forma
de um fugaz raio metálico. Rhodan não conseguiu
impedir que o susto lhe gelasse o sangue e o fizesse
prender a respiração por um instante. Viu a esfera
incandescente gerada pela explosão e só se acalmou
quando comprovou que nada tinha sido alterado no
interior da nave. O brilho da explosão dissolveu-se no
espaço e foi desaparecendo. A nave dos arcônidas
afastava-se a uma velocidade cada vez maior.
Rhodan virou-se. Bell estava atrás dele. Ambos
conseguiram esboçar um sorriso amarelo.
— Até parece uma festa de Natal — disse numa voz
a que não conseguiu imprimir firmeza suficiente para
ocultar o medo de que, pouco momento antes se sentira
possuído.
Crest exibiu seu sorriso manhoso, mas amável.
Thora manteve-se impassível. Seu rosto imóvel continuou
a contemplar a tela.
Houve uma série de novos ataques, entre oitocentos
e três mil quilômetros de altitude. O invólucro protetor da
nave repeliu ao todo quinze foguetes sem que se sentisse a
mais leve oscilação.
Após isso, o bombardeio cessou e a nave entrou
numa órbita situada a quatorze mil quilômetros da
superfície da Terra.
— Podemos dar início à instrução — disse Crest. —
Como viram os foguetes não nos fazem nada. Mesmo que
o bombardeio fosse reiniciado, isso não nos perturbaria.
Rhodan estava de acordo. Uma vez vencido o pavor
do impacto de algum dos foguetes, sentiu-se tomado de
novo pela curiosidade de conhecer os últimos segredos da
ciência dos arcônidas.
O procedimento era idêntico ao que ele e Bell já
tinham experimentado por várias vezes. Deitados
confortavelmente foram ligados aos informador-
transmissores.
— O processo durará cerca de três horas — disse
Crest. — Desta vez vamos lidar com um assunto
extremamente difícil; até para mim.
Depois de examinar o equipamento, perguntou:
— Estão prontos?
— Estamos — responderam Rhodan e Bell.
A consciência de Rhodan desvaneceu-se em meio ao
pensamento a respeito dos motivos por que Thora não
teria vindo para assistir ao início da operação.
Rhodan nunca saberia contar o que sentira durante o
tratamento. Só conseguia lembrar-se de um torvelinho de
informações fragmentadas, das quais não conseguia
extrair qualquer sentido. Não experimentava qualquer
sensação corporal. Percebia nitidamente o que estava
acontecendo, notava tudo que se passava em seu cérebro.
Mas, se não fosse o processo de indução hipnótica que
garantia a eficácia da instrução, não saberia o que fazer
das informações desconexas de que ainda se lembrava.
Sabia que o processo normal de instrução incluía um
período de recuperação cerebral, após a operação de
indução hipnótica. Lembrava-se de que das vezes
anteriores em que adquirira uma parcela do saber arcônida
através desse método, despertara alegre e bem disposto.
Por isso, ao despertar com uma dor de cabeça
latejante, soube imediatamente que algo de imprevisto
havia acontecido.
Crest, de pé ao seu lado, olhava-o com uma
expressão de perplexidade.
145
Rhodan despertou imediatamente.
— O que houve? — gritou para Crest.
Ao lado dele Bell gemia. Rhodan não se preocupou
com ele. Bell ainda levaria algum tempo para recuperar a
consciência. Crest estremeceu.
— Está passando bem? — perguntou Crest.
— Sim, estou passando muito bem. O que houve?
Não estava passando bem coisa alguma. A dor de
cabeça era quase insuportável.
— Foi Thora — balbuciou Crest. — Ela...
Rhodan lembrava-se de que receara algo semelhante.
A facilidade com que Thora concordara com o projeto da
instrução hipnótica fora suspeita. Deviam ter
compreendido logo que ela estava tramando alguma coisa.
Levantou-se, arrancando os fios de comunicação
com o transmissor. Crest recuou apavorado.
— Onde está essa mulher? — berrou.
— Na sala de comando! — disse Crest com voz
lamentosa.
Rhodan não lhe deu mais atenção. A última coisa
que ouviu ao sair da sala foi à voz de Bell.
— Vá à frente, chefe! Daqui a pouco eu vou.
Rhodan passou pelo corredor que levava ao centro
da nave. Pôs a mão no quadril e tirou do coldre a pequena
pistola Smith & Wesson que sempre trazia consigo. Por
um instante, lamentou não ter consigo nenhuma das armas
dos arcônidas. Os pequenos projéteis revestidos de aço
seriam totalmente inúteis diante da escotilha da sala de
comando se Thora a tivesse fechado.
Ela a tinha fechado.
Não iria assumir qualquer risco em face de dois
homens cuja energia, medonha para as concepções de um
arcônida, já por diversas vezes lhe causara verdadeiro
pavor.
Rhodan acionou o dispositivo de chamada e
martelou a escotilha com os punhos cerrados. Nenhuma
resposta. Recuou três passos, até o local em que se
encontrava a primeira tomada de intercomunicação. Fez a
ligação e esperou ansiosamente que a tela se iluminasse.
Thora já esperava a chamada. Seu rosto tomou toda
a extensão da tela. Rhodan assustou-se. Nunca vira
tamanho ódio no rosto de qualquer ser vivo.
— O que houve? — perguntou Thora calmamente.
Rhodan refletiu. Chegou à conclusão de que não
adiantaria gritar com ela. Desde que a conhecia sempre
alcançara melhores resultados quando aplicava o método
de fazê-la sentir que se considerava superior a ela.
— Que tolice foi inventar desta vez? — perguntou
tranquilamente, com um sorriso de escárnio.
Ao que parecia Thora se pusera de sobreaviso contra
esse método. Não havia o menor sinal do estreitamento
instantâneo dos olhos que, das outras vezes, indicara o
quanto a ironia de Rhodan a ofendera.
Falou em arcônida, para dar a entender que
considerava o assunto exclusivamente seu.
— Estou cansada de me deixar tocar de um lado
para outro por um homem-macaco. É só.
Rhodan refletiu na resposta. Ouviu os passos de
Bell, que se aproximava pelo corredor. Com a mão
direita, que Thora não poderia ver refletida na tela, fez-lhe
sinal de que se mantivesse afastado. Bell obedeceu
prontamente.
— Diga-me uma coisa — voltou a falar Rhodan. —
O que acha que pode fazer para livrar-se de nós?
Pela primeira vez, notou um sinal de inquietação em
seu rosto.
— Pousarei na Terra e cuidarei pessoalmente de
tudo — respondeu Thora.
— De que coisas? Acha que conseguirá comprar
uma nave novinha em folha por aí?
— Não. Mas posso obrigar os homens a construir
uma.
— Obrigar? — Rhodan riu. — Como?
Thora recuou um passo. Na tela, Rhodan pôde
enxergar para além dela. Subitamente descobriu como
teria de fazer para dissuadi-la da loucura que pretendia
cometer.
— Você sabe perfeitamente que com as armas que
tenho a bordo desta nave posso acabar com qualquer
mundo igual ao seu — respondeu Thora.
Rhodan passou a desenvolver uma atividade febril.
Não tirou os olhos do rosto dela; aproximou-se mais do
aparelho de intercomunicação. Com a mão direita fez um
sinal a Bell, sem que Thora o visse. Apontou para o lugar
em que o soalho do corredor se encontrava com a parede
oposta.
Enquanto isso, Thora prosseguia:
— Pousarei no interior da cúpula energética e farei
com que os governos da Terra compreendam do que
preciso.
Rhodan abanou a cabeça, enquanto abria os dedos da
mão direita. O indicador continuou a apontar para o
soalho do corredor, mas o polegar mostrava a imagem que
se via na tela do intercomunicador. Não podia ver se Bell
o estava entendendo.
— Quero deixar claro que transformarei seu planeta
num montão de cinzas se meus desejos não forem
cumpridos.
— Para você é a maneira mais segura de ir para
casa, não é? — perguntou Rhodan em tom irônico.
Enquanto falava, modificou os gestos que fazia com
a mão direita. Curvou o dorso da mão, enquanto o dedo
médio apontava para cima. Depois de algum tempo, o
indicador passou a fazer movimentos de quem aperta o
gatilho de uma pistola.
Rhodan percebeu que começava a transpirar.
— Pense bem! — disse com toda calma de que era
capaz. — Então pretende destruir a Terra, porque ela não
cumpre seus desejos. O que lhe restará depois disso? Um
fim de vida miserável em Marte ou Vênus. É isso que
pretende?
Thora fez um gesto de desprezo.
— Acredita que os terranos deixarão que as coisas
cheguem a esse ponto? Farei com que compreendam que
não poderão esperar a menor compaixão da minha parte.
Rhodan passou a odiá-la por essas palavras.
— Os homens zombarão de você — disse em tom de
escárnio. Fez uma ligeira pausa de triunfo, ao ouvir que
atrás dele Bell se afastava sorrateiramente. — Farão
pouco de você; procurarão abrigar-se e terão a satisfação
de ver que, uma vez devastada a Terra, você estará em
situação muito mais difícil que antes.
Thora pareceu crescer em altura.
— Não farão nada disso! — respondeu fungando. —
Ninguém se deixa matar quando pode evitá-lo.
Rhodan encostou-se tranquilamente à parede, para
146
mostrar que estava disposto a entreter uma palestra
prolongada.
— Pois é isso! Neste ponto você subestima os
homens. Não se iluda. De qualquer maneira, uns poucos
covardes que se disponham a ceder às suas exigências
para poupar a vida não poderão fazer muito por você.
Pretendia dizer mais alguma coisa. Mas, nesse
instante, percebeu um movimento na tela. Na parede da
cabina de comando, perto do lugar em que Thora se
encontrava, havia uma abertura do tamanho aproximado
de uma cabeça humana, e que servia à insuflação de ar.
Essa abertura dava para um conduto de metro e meio de
largura, que atravessava a nave em sentido vertical e
distribuía o ar puro vindo das câmaras de tratamento.
Na abertura surgiu primeiro o cano de uma pistola e,
logo a seguir, uma mão coberta de pêlos.
— Tudo em ordem, chefe! — disse Bell de tal forma
que Rhodan podia ouvi-lo pelo intercomunicador. —
Vire-se para mim e levante as mãos, menina!
Thora não chegou a virar-se. Ao ouvir a voz de Bell,
fez menção de voltar à cabeça. Mas, em meio ao
movimento, foi dominada pelo susto. Estendeu os braços
e, de bruços, caiu ruidosamente no piso.
— Muito bem! — exclamou Bell. — Ela quis assim.
Chefe arrebente logo a porta, antes que ela desperte.
Rhodan fez-lhe um sinal de aprovação. Chamando
por Crest, correu pelo corredor em direção à sala de
informações, onde ele e Bell haviam estado deitados sob a
influência do radiador hipnótico.
Crest estava de pé na escotilha aberta.
— Dê-me uma de suas armas! — disse Rhodan
esbaforido. — Preciso de uma arma com que possa abrir a
escotilha da sala de comando. Thora está inconsciente. Se
não nos apressarmos despertará e tudo terá sido em vão.
Crest saiu correndo.
Voltou dentro de trinta segundos. Respirando com
dificuldade, entregou a Rhodan a pesada pistola de raios
perfuradores.
— Aqui está! — disse. — Mas tenha cuidado.
Rhodan precipitou-se corredor afora. Enquanto
corria engatilhou a arma. Parou a cinco metros da
escotilha e dirigiu o feixe compacto de raios energéticos
para o dispositivo eletrônico de travamento.
O metal chiou, soltou bolhas e derreteu-se. Um furo
abriu-se na escotilha. Assim que pôde olhar através dele,
Rhodan suspendeu o bombardeio energético.
A escotilha já não representava o menor obstáculo.
Rhodan abriu-a sem dificuldade. Ouviu o desabafo de
Bell, vindo do orifício de insuflação de ar:
— Graças a Deus! Não seria capaz de atirar nela.
Thora ainda estava inconsciente. Depois de levantá-
la Rhodan acomodou-a num dos leitos encostados à
parede. Pôs a funcionar o intercomunicador e chamou
Crest.
— Faça o favor de vir até aqui — disse com a voz
tranquila. — Gostaria que estivesse presente quando ela
despertar.
Bell nem se dera tempo para enxugar o suor que lhe
escorria pela testa. Mas um largo sorriso cobria-lhe o
rosto.
— Você nem imagina o orgulho que sinto por ter
entendido a linguagem codificada dos três dedos.
Rhodan lançou-lhe um olhar sério.
— Afinal, você é um menino inteligente.
Crest entrou.
— Como foi que fez isso? — perguntou sacudindo a
cabeça.
— Foi assim — respondeu Bell, cortando o ar com
os dedos da mão direita.
Rhodan riu.
— Encontramos em tempo o conduto de ar —
explicou a Crest. — Bell desceu por ele. Quando Thora
percebeu que ele estava perto dela, desmaiou.
Crest sentou na beirada do leito em que Thora estava
deitada.
— Não é de estranhar — disse em tom pensativo. —
Quase morri há poucos minutos quando vi que os
senhores se levantavam.
— Por quê?
— Na fase inicial da aplicação da técnica de
treinamento hipnótico, quando mal havíamos construído
os primeiros aparelhos e ainda não dispúnhamos da
experiência necessária, houve alguns casos lamentáveis,
em que o processo de treinamento teve de ser
interrompido. Isso foi devido a influências exteriores. Em
todos esses casos, a pessoa cujo treinamento foi
interrompido perdeu a razão. A explicação é simples: no
curso do processo de treinamento hipnótico, o cérebro
encontra-se num estado de ativação muito intensa. Se não
tiver oportunidade de retornar lentamente às suas funções
normais, a confusão instala-se nele. Em consequência
disso, surge uma forma de loucura que nem mesmo os
nossos psiquiatras conseguem curar.
Ergueu os olhos e fitou primeiro Rhodan, depois
Bell.
— Compreendem o que quero dizer? Desde os
primórdios do treinamento hipnótico não existe, em
Árcon e nos mundos submetidos às leis arcônidas,
nenhum crime mais grave que a interrupção de um
processo de treinamento. Enquanto vocês estavam ligados
ao transmissor, Thora não receava qualquer interferência
de sua parte. Sabia perfeitamente que não me atreveria a
despertá-los antes de concluído o treinamento. E dentro
de três horas ela poderia ter levado a nave à Terra e
tomado as providências necessárias para que você,
Rhodan, não representasse mais qualquer perigo para ela.
Crest fez uma pausa.
— Assim mesmo você nos despertou! — disse
Rhodan, falando pausadamente e com a voz grave.
Crest fez que sim e baixou os olhos.
— Foi uma decisão muito difícil. Mas não me
restavam alternativas, senão, agir de acordo com os fatos.
Caso não os tivesse despertado, Thora pousaria na Terra e
inutilizaria os resultados dos nossos esforços. Não tenho a
menor dúvida de que as ideias dela teriam causado a
destruição do planeta e desta nave.
Ergueu os olhos e sorriu.
— O resto não passou de um exercício de
matemática infantil. De qualquer maneira teríamos
morrido. Por que, então, não iria aproveitar a única
chance de continuarmos vivos? Tinha uma leve esperança
de que a estrutura do cérebro de vocês fosse diferente da
dos arcônidas, de forma que estivessem em condições de
resistir ao choque provocado pela interrupção do
treinamento.
De repente mostrou-se radiante.
147
— Não me enganei! A humanidade terrena...
Nesse instante Crest foi interrompido de forma
grotesca.
Atrás dele, alguma coisa começou a mexer-se no
leito. Sem conseguir dominar a voz, Thora disse:
— Crest, você é um traidor miserável!
Rhodan virou-se abruptamente. Bell levantou-se de
um salto e postou-se aos pés do leito. Crest não se abalou:
continuou sentado. Um sorriso triste esboçou-se em seu
rosto. Respondeu com a voz tranquila:
— Não, minha filha; não sou nenhum traidor. Você
ainda há de compreender. Apenas receio que isso ainda
leve muito tempo.
Thora fechou os olhos.
Rhodan lançou um olhar sério para ela. Quando esta
voltou a abrir os olhos, estremeceu.
— Ouça! — disse em tom ríspido. — Já estamos
fartos das suas idiotices, da sua obstinação e da sua
repugnante arrogância. Daqui em diante cuidaremos para
que não nos atrapalhe mais, enquanto não aprender a usar
a inteligência. Não tem nada a recear de nós. Não lhe
faremos mal. Mas é bom que saiba uma coisa: deste
momento em diante assumo o comando desta nave e
qualquer tentativa de realizar programas tresloucados será
considerada como amotinação, e punido de acordo com as
leis terrenas.
Thora não soube o que responder. Seu rosto
impassível não revelava o que se passava dentro de sua
cabeça.
Rhodan não restringiu sua liberdade de movimentos.
Apenas incumbiu Bell de exercer uma vigilância
cuidadosa sobre ela, enquanto estivesse em condições de
fazê-lo. Por enquanto pretendia continuar o treinamento
hipnótico e conclui-lo o quanto antes.
Rhodan lamentou não ter trazido o Dr. Manoli ou o
australiano. Qualquer um deles poderia ficar de olho em
Thora, enquanto ele e Bell estivessem ligados ao
transmissor de conhecimentos.
Nas condições em que se encontrava não lhe restava
alternativa, senão, entregar a pistola de radiação
energética a Crest, recomendando-lhe encarecidamente
que a usasse se Thora tentasse interferir novamente.
Feito isso, reclinou-se na poltrona e esperou
pacientemente que Crest substituísse o equipamento
transmissor que fora arrancado e começasse a prepará-lo
para o reinicio do processo.
Depois foi a vez de Bell.
— Pronto? — perguntou Crest.
— Pronto! — Veio à resposta. Seguiu-se
imediatamente a inconsciência abrupta e profunda
causada pelo treinamento hipnótico, que sempre voltava a
surpreender. Parecia que alguém havia arremessado uma
capa que cobria todo o mundo.
III
Tako Kakuta estava numa loja, renovando seu
guarda-roupa. Lembrou-se de que o suprimento de
dinheiro estava se transformando num problema bastante
sério para a Terceira Potência. Com a perda da nave dos
arcônidas, pousada na Lua, os meios de troca tinham-se
tornado escassos. Tinham de ser reservados para as
transações mais importantes.
Tako chegara a Petersburgo sem encontrar o menor
obstáculo. Rhodan dera-lhe ampla liberdade na escolha de
seu itinerário. Decidira visitar em primeiro lugar os
Estados da Nova Inglaterra, que abrigavam a maior
concentração da indústria norte-americana.
Tako abandonara a cúpula energética durante a
noite, junto ao lago salgado de Goshun. Sua vestimenta
especial permitiu-lhe voar em direção sul até Wuwei.
Chegou ao raiar do sol e aproveitou a primeira conexão
para Lantchou. Ali se abriam duas alternativas: voar a
Tchunking ou a Pequim, para tomar um voo
intercontinental destinado aos Estados Unidos. Optou por
Tchunking, pois Pequim, um lugar em que a polícia
secreta desenvolvia uma atividade intensa, era um sítio
muito perigoso para um homem como ele.
Tako estava consciente da vantagem que levava fora
da cúpula energética sobre qualquer dos membros da
Terceira Potência: não era conhecido. Ninguém
desconfiava de que era um homem de Rhodan. Nunca era
mencionado nos noticiários sobre a Terceira Potência,
irradiados periodicamente pelas emissoras de TV de todo
o mundo.
Decidiu aproveitar essa vantagem enquanto fosse
possível. Teria de deixar cair à máscara no momento em
que iniciasse as negociações.
Uma vez provido de boas roupas, pôs-se a trabalhar.
Pegou um táxi e foi à usina de ferro-plástico, um local que
parecia oferecer-lhe oportunidades bastante promissoras
para a realização dos seus objetivos.
A empresa Ferroplastics Limited pertencia ao grupo
Dupont, uma das famílias mais importantes dos Estados
Unidos.
Tako soube dar-se uma impressão imponente. Ao
anunciar-se, assegurou-lhe que fariam o possível para
conseguir, quanto antes, uma audiência com um dos
diretores.
Tako acrescentou com a maior ênfase:
— Não se esqueça de mencionar que se trata de
encomenda muito importante.
Adotara um nome suposto, que constava do
passaporte que trazia consigo. Não dissera nada sobre sua
procedência ou sobre a identidade de quem o incumbira
de fazer a encomenda. Por enquanto, poderiam acreditar
que estavam lidando com um representante da Federação
Asiática. Todo mundo sabia que no setor dos metais
plastificados a Federação Asiática ainda engatinhava atrás
das indústrias do Bloco Oriental e do mundo ocidental.
Fizeram-no esperar uns vinte minutos no enorme
hall. Mergulhou na leitura das revistas destinadas aos
visitantes, mas fazia-o de maneira a utilizar a borda
superior como horizonte visual, por cima do qual
observava os arredores. Através do hall fluíam e refluíam
as vagas humanas desencadeadas pela atividade febril da
grande usina. Não havia nada que devesse preocupar
Tako.
Dentro de vinte minutos o homem que o havia
recebido voltou a aparecer. Sorria.
— Consegui senhor — disse no seu falar arrastado
de americano. — O patrão quer recebê-lo imediatamente.
Tako esboçou um sorriso de cortesia.
— Meu caro, o senhor está enganado — respondeu.
— Sou eu que quero ser recebido pelo patrão. Como é o
148
nome dele?
— La... Lafitte — gaguejou o jovem. — Quer fazer
o favor de subir comigo?
Tako levantou-se.
O escritório de Lafitte ficava no último andar do
imponente edifício. Enquanto era conduzido Tako
desfrutou a visão panorâmica sobre a cidade.
Assim que ele entrou, Lafitte levantou-se atrás da
mesa. O jovem que o havia acompanhado ficou do lado
de fora; fechando a porta dupla.
— Queira sentar! — disse Lafitte, apontando para
uma poltrona confortável.
Tako sentou. Recusou o cigarro que lhe foi
oferecido. Passou tranquilamente os olhos pela sala.
Lafitte começou a ficar nervoso, mas Tako não se sentiu
perturbado com isso.
Finalmente levantou os olhos e disse:
— Onde poderíamos conversar?
Lafitte parecia perplexo.
— Por quê? Não gosta daqui? Costumo discutir os
meus negócios neste escritório.
Tako concordou com um sorriso.
— Minha missão é muito difícil e delicada — disse
com a voz fina. — Não posso correr o menor risco. O
senhor compreende? Veja, por exemplo, esse vaso de
flores. Não acha que seria um ótimo esconderijo para um
microfone? Compreendo suas precauções, senhor Lafitte;
peço-lhe que também procure compreender as minhas.
A expressão do rosto de Lafitte mudou do espanto e
do desagrado para um princípio de contrariedade e
terminou num sorriso matreiro.
— Tenho a impressão de que não me mandaram
nenhum tolo — disse com a voz ligeiramente manhosa,
que não permitiu a Tako sentir-se seguro.
Levantou-se e saiu de trás da mesa.
— É claro que estou disposto a conversar num lugar
que lhe seja agradável — prosseguiu. — Faça uma
sugestão.
— Que tal meu hotel? Reservarei uma sala de
conferências.
Lafitte apontou para o telefone. Tako chamou o
hotel em que estava hospedado e reservou uma das
menores salas de conferências.
Enquanto desciam pelo elevador, observou Lafitte
com os olhos atentos. Não notou que este tivesse feito
sinal para que alguém os seguisse. Assim mesmo Tako
acreditava que estava tramando alguma coisa que não se
harmonizava com seus planos.
A viagem de táxi decorreu sem contratempos. Por
várias vezes Tako olhou pelo vidro traseiro; ao que
parecia, ninguém os estava seguindo. A não ser que se
tratasse de uma pessoa muito hábil; e Tako não excluía
essa possibilidade.
A sala de conferências fora preparada. Tako deu
instruções para que ninguém os perturbasse. Sentaram-se
a uma mesa pequena e baixa; Tako começou a agir.
Colocou Lafitte sob a influência de seu minúsculo
aparelho hipnotizador e ditou suas exigências.
— ...um revestimento de 0.75 metros de espessura
para uma esfera com exatamente 310 metros de diâmetro.
O material deverá ser de ferroplástico A-10 com um
aditivo de volfrâmio e terá de ser fornecido em peças
facilmente transportáveis. Ainda lhe transmitiremos
instruções precisas sobre a forma de entrega. A título de
compensação meu comitente lhe remeterá um gerador
antigravitacional. Trata-se de um aparelho capaz de
neutralizar um campo gravitacional até uma potência de
dez vezes o da Terra. Com isso obterá um valor que
representa muito mais que o das chapas de ferroplástico.
Não se esqueça de que terei de insistir no exato
cumprimento do prazo de entrega. Se esta não se verificar
dentro de trinta dias, nosso acordo ficará sem efeito. Não
celebraremos nenhum contrato escrito. Temos plena
confiança um no outro.
Tako levantou-se. Lafitte olhava-o com a expressão
apagada de quem se encontra sob influência hipnótica.
— Se acreditar que sou um agente da Terceira
Potência, faça o favor de abandonar essa ideia — concluiu
Tako com um sorriso. — Trabalho sob as ordens da
Federação Asiática que, conforme sabe, está atrasada no
setor do ferroplástico. A esfera que pretendemos construir
servirá como envoltório de um grande reator nuclear, cuja
construção está sendo iniciada. Faço votos para que a
encomenda seja executada a contento de meu comitente.
Aqui estão as instruções sobre a forma de entrega.
Entregou a Lafitte um maço de papéis que ele
mesmo escrevera no dia anterior, numa máquina
emprestada pelo hotel.
Desligou o hipnotizador e notou que o rosto de
Lafitte retornou à expressão normal. Ele levantou-se e
estendeu a mão a Tako.
— Fico satisfeito por termos chegado a um acordo
tão depressa — disse. — Ainda hoje submeterei o assunto
ao Conselho Fiscal. Acredito que não haverá dificuldades.
Afinal, teremos uma recompensa regia.
Tako abriu a porta da sala de conferências. O
corredor estava vazio. O sol penetrava por uma ampla
janela de frente, refletindo-se na passadeira brilhante.
— Não se esqueça de me informar sobre a decisão
do Conselho Fiscal — pediu Tako. — Meu comitente está
empenhado em receber o material com a maior rapidez.
Caso não haja interesse de sua parte, terei de procurar
outro fornecedor.
Sorrindo, Lafitte fez um gesto negativo.
— Não se preocupe. Tudo irá bem. Darei uma
solução ainda hoje.
Tako acompanhou Lafitte até o elevador. Assim que
este começou a descer, correu à janela e olhou para fora.
Lafitte saiu do prédio e chamou um táxi. Não olhou para
trás; entrou no carro que partiu imediatamente.
Tako esperou. Poucos minutos depois um carro
cinza afastou-se do meio-fio do lado oposto da rua e
disparou na mesma direção seguida pelo táxi de Lafitte.
Tako voltou ao seu apartamento. Estava pensativo.
O carro cinza não provava que ele fora seguido por
alguém que lhe controlava os passos. Mas não se podia
saber...
Tako pediu à telefonista que o ligasse com a
Ferroplastics Limited. Uma voz feminina respondeu.
— Meu nome é Yamakura — disse Tako. — Há
poucos minutos tive a honra de falar com o senhor Lafitte
a respeito de uma grande encomenda. Ele disse que
convocaria imediatamente uma reunião do Conselho
Fiscal. É possível que daqui a pouco tenha que telefonar
novamente, para dar outras informações a ele. Será que
poderei ligar para aí? As reuniões do Conselho Fiscal
149
costumam ser realizadas nesse edifício?
— Por este telefone o senhor poderá alcançar o
senhor Lafitte a qualquer momento, senhor Yamakura —
respondeu a voz feminina. — A sala de sessões fica neste
edifício, perto da sala em que me encontro.
— Muito obrigado — disse Tako — A senhora me
prestou uma grande ajuda.
Logo a seguir, Tako tirou o terno recém-adquirido e
pôs a vestimenta transportadora que Crest lhe dera,
Colocou uma arma no bolso e também levou o
hipnotizador.
O rosto do porteiro assumiu uma expressão pateta,
quando viu o hóspede passar diante dele em tais trajes.
Mas Tako confiara em que nos hóspedes exóticos seriam
toleradas certas excentricidades.
Tako tomou um táxi e pediu ao motorista que o
levasse à sede da Ferroplastics Limited. Durante a viagem
ficou refletindo, para ver se descobria algum ponto
vulnerável em seus planos. Tudo parecia de uma
simplicidade tão extrema, que Tako desconfiou da
coordenação primária de suas ideias. Mas teve de
reconhecer que os recursos extraordinários de que
dispunha justificavam até certo ponto a simplicidade do
plano. Isso o tranquilizou.
* * *
Quase no mesmo instante Lafitte entrava
apressadamente no hall da Ferroplastics Limited. Já
avisara os membros mais importantes do Conselho Fiscal
e tinha certeza de que dentro de uma hora o órgão emitiria
uma deliberação que correspondesse às suas intenções.
Ao passar pela mesa telefônica, a senhorita Defoe
chamou-o.
— O que houve? — perguntou em tom impaciente.
— Não tenho tempo.
A jovem esboçou um sorriso suave.
— O senhor Yamakura acaba de telefonar.
Perguntou se por este telefone pode falar com a sala de
sessões do Conselho Fiscal.
— O senhor Yamakura? — Lafitte franziu a testa.
— O que é que ele quer?
— Por enquanto nada. Diz que talvez tenha de falar
com um dos conselheiros durante a sessão.
— Está bem. Ligue-me imediatamente com ele, se...
O que houve desta vez?
Um homem alto e jovem atravessou o hall e parou
perto de Lafitte. Notava-se que queria dizer alguma coisa.
— Eu o segui, patrão, conforme combinamos. Está
tudo em ordem?
— Sim, Morgan, tudo está em ordem.
Morgan hesitou. Ia afastar-se, mas continuou parado.
— Tem certeza de que tudo está em ordem?
Lafitte bateu o pé.
— Tenho, sim. Que inferno! Tenho certeza absoluta!
Morgan não se abalou.
— Muito bem — murmurou.
Afastou-se e saiu. Tirou o carro de junto da
escadaria e estacionou-o no lugar reservado. Voltou para
junto da telefonista. Lafitte já se afastara.
— Que história é essa, Morgan? — perguntou ela,
nervosa. — Por que está com medo?
Morgan pegou uma cadeira e sentou junto à mesa
telefônica. Deu de ombros.
— Não sei... Parece que fizeram um grande negócio.
Lafitte correu que nem um louco para reunir o Conselho
Fiscal ainda hoje. Acontece...
A telefonista sacudiu a cabeça.
— Não vejo nada de errado nisso.
— Já viu alguma vez como Lafitte costuma fazer
seus negócios?
— Nunca.
— O tempo que Lafitte leva para tomar uma decisão
costuma ser proporcional ao valor da encomenda. Nunca
levou menos de cinco horas para discutir um negócio. E
desta vez levou cinco minutos, ou talvez quinze, se
contarmos tudo. E agora convoca o Conselho Fiscal. Deve
tratar-se de um negócio muito importante. Se não fosse
assim, Lafitte decidiria sozinho. Concluiu um negócio
enorme em quinze minutos. É isso que me deixa
preocupado.
A telefonista sorriu.
— Ora essa! Só por isso faz tanto drama?
Morgan fez que sim.
— Você me deixaria escutar quando esse
Yamakura...
— Não, respondeu ela em tom ríspido. — Nunca
permito que alguém escute os telefonemas dos outros.
Mas Morgan conseguiu convencê-la.
Por algum tempo conversaram sobre assuntos
banais. Subitamente a porta do hall abriu-se. Ao ouvir o
ruído, Morgan virou-se. Viu o batente largo girar para
fora, voltar para dentro e oscilar até atingir sua posição de
repouso. Esfregou os olhos. Nem por isso o quadro se
alterou. No hall desenvolvia-se a agitação de um dia
movimentado. Não havia ninguém perto da porta.
A jovem teve a atenção despertada.
— O que houve?
— A porta abriu-se, mas não entrou ninguém.
O telefone chamou. Ela fez uma ligação e voltou a
colocar o fone no gancho. Depois disse:
— Você devia tirar férias, Morgan. Já está se
tornando ridículo com essa mania de ver fantasmas.
Morgan protestou.
Nesse instante aconteceu uma coisa estranha. Um
velho mensageiro estava atravessando o hall com uma
pasta. Subitamente parou, como se tivesse esbarrado em
alguma coisa, deixou cair à pasta, atirou os braços para o
alto e soltou um grito de pavor. Num segundo, Morgan
colocou-se ao seu lado.
— O que houve?
O velho estava com o rosto mortalmente pálido.
Tremia e falou gaguejando.
— Eu... ele... por aqui havia alguma coisa e esbarrei.
Foi aqui mesmo!
Morgan foi ao lugar apontado pelo velho.
— Tolice! — resmungou. — Aqui não há nada.
O homem sacudiu a cabeça.
— O que foi? — perguntou Morgan.
— Não sei dizer. Talvez tenha sido um homem. Se
for, não usava roupa igual a nós. Estava muito duro.
Morgan passou a mão pelo cabelo.
— Não viu nada?
— Aí que está! Não vi nada.
— Muito bem. — Morgan abaixou-se, levantou a
pasta e colocou-a sob o braço do velho. — Esqueça-se
disso e não conte a ninguém. De qualquer maneira, não
acreditariam.
150
— Sim senhor. Muito obrigado — disse o velho,
ainda perturbado.
Morgan voltou para junto da telefonista.
— O que houve? — indagou esta.
— O homem esbarrou em algo invisível.
Ela teve um acesso de riso.
— Fico me perguntando o que há de verdade em
tudo isso — disse Morgan com a voz séria.
A moça olhou-o, incrédula, e interrompeu-se em
meio à risada.
— Você não vai me dizer...
Morgan não respondeu. Apoiou a cabeça nas mãos e
ficou refletindo.
Depois de algum tempo a porta do hall voltou a se
abrir, desta vez para deixar passar dois membros do
Conselho Fiscal, que haviam sido convocados por Lafitte.
Passaram junto à mesa telefônica e cumprimentaram
a senhorita Defoe com um aceno de cabeça, sem
interromper a palestra em que estavam entretidos. Morgan
seguiu-os com os olhos. Para chegar à sala de sessões era
necessário atravessar um corredor largo e curto, separado
do hall por uma porta de vidro. Morgan viu perfeitamente
que, quando os dois homens passaram pela mesma, o
batente esquerdo logo voltou à posição normal, enquanto
o direito continuou aberto até que os conselheiros já
haviam andado uns três ou quatro passos pelo corredor.
Para Morgan já não havia a menor dúvida: uma
pessoa que sabia tornar-se invisível seguira os dois
membros do Conselho Fiscal. Estava a ponto de alarmar a
guarda do estabelecimento. Mas lembrou-se de que não
poderia apresentar qualquer motivo plausível. Zombariam
dele e os guardas continuariam nos seus postos.
Se alguma coisa pudesse ser feita, ele mesmo teria
de cuidar disso.
* * * Notava-se que Lafitte se orgulhava da encomenda
que conseguira negociar. Com uma enorme autoconfiança
apresentou a oferta aos membros do Conselho Fiscal, sem
perturbar-se com os rostos daqueles homens, que de
minuto a minuto, assumiam uma expressão cada vez mais
perplexa e contrariada.
Finalmente Whitmore levantou-se de um salto,
dando um empurrão na cadeira que a fez deslizar no
soalho.
— Senhor Lafitte — começou com a voz áspera. —
Como membro do Conselho Fiscal, quero dar expressão
ao espanto causado pela sua oferta. — À medida que
falava, enfurecia-se cada vez mais: — Acha que está
fazendo uma boa piada ao arrancar-nos das nossas
ocupações, arrastar-nos até aqui e submeter-nos essa
oferta absurda? Levante-se, Lafitte, e explique-se. Se não
o fizer, esta assembléia lhe dará uma lição de que nunca
se esquecerá.
Assim era Whitmore. Ia sentar-se para dar uma
oportunidade de defesa a Lafitte, que parecia bastante
perturbado. Mas, enquanto puxava a cadeira, uma ideia
pareceu surgir em sua mente.
— Espere — disse, fazendo um gesto nervoso em
direção a Lafitte. — O que nos oferecem mesmo em
pagamento?
— Um gerador antigravitacional — voltou a explicar
Lafitte. — Trata-se de um aparelho capaz de neutralizar
campos gravitacionais até a potência equivalente a dez
vezes a gravidade terrestre. É um equipamento de
transporte ideal, que ainda não existe em qualquer parte
do mundo.
Whitmore confirmou com um movimento de cabeça.
— Já que é assim — disse, passando os olhos pelos
homens sentados em torno da mesa de conferências —
considero a oferta perfeitamente viável.
Os outros homens assentiram. Ninguém parecia
lembrar-se de que há trinta segundos ainda consideravam
a oferta de Lafitte uma piada de mau gosto. Ninguém teve
a ideia de perguntar quem seria capaz, neste planeta, de
fornecer um aparelho com que até então à ciência mal
ousara sonhar. Subitamente, bastou-lhes que tal aparelho
fosse oferecido. Não duvidavam da idoneidade do autor
da encomenda.
Lafitte leu as condições de fornecimento e as
instruções de embarque. Chegou-se à conclusão de que
umas e outras poderiam ser cumpridas sem maiores
dificuldades.
Segundo a promessa de Lafitte, a sessão terminou
dentro de uma hora. A encomenda tinha sido aceita e as
instruções correspondentes foram emitidas
imediatamente. Os membros do Conselho Fiscal
despediram-se na convicção de terem concluído o maior
negócio da história da Ferroplastics Limited.
O homem que os ajudara a tomar essa decisão
esperou até que todos tivessem saído da sala. Como não
tivesse mais necessidade de concentrar todos os seus
esforços — situação em que se encontrara quando
começou a influenciar os membros do Conselho Fiscal —
achou preferível não voltar pelo hall, para evitar o risco
de novo incidente como aquele que há pouco tanto o
assustara. Concentrou sua mente num local abandonado
nas proximidades da sede da Ferroplastics Limited e para
lá se transportou num telessalto.
Conforme imaginara, aterrissou perto da rua, num
terreno baldio coberto de mato. Não havia ninguém que o
visse surgir.
Atravessou a rua e esperou até que aparecesse um
táxi vazio. Fez sinal. Poucos minutos depois desceu em
frente ao hotel. Entretido nos seus pensamentos, passou
pelo porteiro, entrou no elevador e subiu.
Estava satisfeito com o trabalho daquele dia.
A única coisa que o preocupava era o esbarrão no
mensageiro.
Não pudera evitá-lo, porque um segundo antes tivera
que desviar-se de outra pessoa. Notara perfeitamente que
o jovem esbelto que correra em auxílio do mensageiro
acreditara na história muito mais do que Tako teria
gostado. Ao que parecia alguém pretendia colocar-se no
seu encalço. Se tivesse bastante senso objetivo para
acreditar na história do homem invisível que esbarrara no
mensageiro, poderia transformar-se num adversário
temível.
Tako gravara bem seu rosto. Decidiu submetê-lo à
sua vontade assim que tivesse oportunidade para isso.
IV Abriu a porta do apartamento e entrou. Quando já se
encontrava perto da mesa, ouviu uma voz às suas costas:
— Não se assuste cavalheiro! Não lhe farei nada.
Tako virou-se instantaneamente. Cerrou os olhos e,
num movimento instantâneo, segurou a pistola.
151
Viu um homem de idade sentado numa poltrona
perto da porta. Mantinha os braços erguidos, como que
assustado com a pistola.
— Santo Deus! — gemeu. — Vire isso pra lá! Não
trago nenhuma arma.
Tako baixou a pistola.
— Quem é o senhor?
— Será que isso vem ao caso? Sou uma figura sem a
menor importância nesse jogo. Mandaram-me até aqui
para dar-lhe um recado. Chame-me de Webster, se isso o
agrada.
Tako fitou o velho. Pela idade usava roupas muito
vistosas, o que lhe conferia um aspecto pouco sério.
— Qual é o recado?
— Preste atenção! Sabemos que está atrás de certas
coisas que só poderá conseguir com muita dificuldade e
enfrentando graves perigos. Oferecemo-nos como
intermediários. Podemos comprometer-nos a conseguir
qualquer coisa de que precise.
Com um sorriso de satisfação reclinou-se na
poltrona.
— É claro que pedimos um preço adequado —
acrescentou.
Tako fitou-o pensativo. Antes que pudesse formular
qualquer pergunta, Webster voltou a retesar-se na
poltrona:
— Antes que me esqueça: sabemos que o senhor
dispõe de uma série enorme de truques. Provavelmente
poderia influenciar-me para que lhe conte tudo que sei.
Peço-lhe que não o faça. Primeiro; não conheço a pessoa
que me confiou esta incumbência; depois, ela interpretaria
seu truque como um voto de desconfiança, o que a levaria
a suspender imediatamente as negociações. Se estiver
disposto a pagar bem, seremos os sócios mais leais que
poderia desejar.
— Quem seriam esses sócios? — perguntou Tako
laconicamente.
Webster deu de ombros. Tako enrugou a testa,
tomando lugar numa poltrona em frente à Webster.
— Como conseguiu entrar aqui? — perguntou.
— Ora! — disse Webster com um sorriso. — Para
um homem do meu tipo existem inúmeras possibilidades.
— Estou disposto a ouvir sua oferta — disse Tako.
— Onde poderei tomar conhecimento dela?
— Tenho o endereço. Espere! — interrompeu-se,
quando Tako ia pegar o cartão. — Antes de qualquer
coisa: não experimente seus truques conosco. Antes de
negociar com o senhor, submetê-lo-emos a todas as
provas. Sabemos que nos expomos bastante ao submeter-
lhe uma oferta. Por isso queremos que nosso risco seja o
menor possível. Entendido? — entregou o cartão a Tako.
— Manteremos nossa oferta pelo prazo de dez dias. Se
quiser aparecer, telefone para este número e diga:
Holoway chegará as quatorze horas, ou às oito horas,
conforme lhe convenha. Entendido?
Tako fez que sim.
— Não terão de esperar muito por mim — disse com
um sorriso.
Webster saiu. Deixou atrás de si um Tako muito
pensativo. Aquilo que Webster designava como seus
truques provavelmente eram seus dons extraordinários e
os recursos que as vestes dos arcônidas lhe
proporcionavam. Como poderiam saber disso?
A pessoa de Webster também representava um
enigma para ele. Ao que tudo indicava, pertencia a uma
das camadas inferiores da sociedade. Trajava-se e falava
como tal. Quem o teria enviado? Sua resposta à pergunta
de como entrara ali dava a entender que era um
arrombador ou coisa semelhante. Será que um bando de
arrombadores poderia prestar auxílio à Tako?
Conseguiriam roubar as peças do equipamento de uma
nave espacial de trezentos metros de diâmetro?
A ideia divertiu-o; recuperou a autoconfiança. Não
teria que temer nada. Pelo menos enquanto usasse as
vestes arcônidas e possuísse o dom da teleportação.
Assim, achou preferível não mudar de roupa para o
jantar. Desceu à sala de refeições tal qual estava e não se
perturbou com os olhares espantados dos outros hóspedes.
* * *
Webster entrou numa sala na qual só havia uma
mesa, duas cadeiras e, sobre a mesa, um telefone e um
aparelho de intercomunicação. Fechou a porta
cuidadosamente, depois de ter apagado a luz. Comprimiu
o botão do aparelho de intercomunicação. Uma luzinha
acendeu-se e uma voz áspera perguntou:
— O que houve?
— Aqui fala Webster. Acho que o homem virá.
— Muito bem. Mais alguma coisa?
— Não.
— Mas eu tenho uma coisa para você, Web.
— Diga.
— Finch deu com um sujeito que vive espionando
esse japonês. Seu nome é Morgan e vem da Ferroplastics.
Descobrimos que é detetive da empresa. Você e Finch
ficarão de olho nele até que Yamakura tenha fechado
negócio conosco. Não podemos permitir que alguém
fareje os nossos negócios. Não tenham a menor
consideração por ele.
— Está bem, chefe — respondeu Webster em tom
submisso.
— Outra coisa. Ligue o telefone para cá. Quero
ouvir o telefonema do japonês.
— Perfeito.
Webster comprimiu um botão que ficava na base do
aparelho.
— Finch instalou seu quartel-general no restaurante
Fratellini. Procure chegar lá quanto antes.
— Sim, chefe.
— Fim.
Webster desligou o aparelho de intercomunicação,
abriu a gaveta da mesa e tirou uma pistola. Feito isso se
levantou, apagou a luz e saiu.
Do outro lado da porta ficava um escritório. Via-se
uma fileira de cadeiras e escrivaninhas. Tudo estava
coberto por uma grossa camada de pó que só era
interrompida no trajeto da porta pela qual Webster
acabara de passar até a saída.
A Eastern Transport era uma firma que só existia na
placa colocada na porta de entrada. Se alguém lhe
quisesse confiar algum objeto para ser transportado,
diriam, numa linguagem adequada, que infelizmente
estavam tão sobrecarregados, que nas próximas oito ou
dez semanas não podiam aceitar nenhum serviço.
A porta de entrada dava para um corredor situado no
trigésimo andar de um arranha-céu. Há essa hora, o
152
corredor estava vazio. Webster foi até o elevador e
desceu. Deu boa-noite ao porteiro, pegou um táxi e foi até
a Sétima Avenida, onde ficava o restaurante de Fratellini.
Finch estava sentado numa sala que o proprietário
costumava reservar para hóspedes especiais.
Webster sentou à sua frente.
Finch levantou os olhos.
— Parece que o peixe acaba de escapar da nossa
rede — disse, devagar e com a voz cansada.
* * * Jesse Morgan contribuíra involuntariamente para o
fracasso que os homens de Finch acabavam de sofrer.
Morgan era um dos detetives de Pinkerton e fora
destacado para o serviço da Ferroplastics Limited e não
demorou a descobrir que, ao esforçar-se para entrar em
contato com o japonês Yamakura, era seguido por vários
homens, que se revezavam e agiam com uma habilidade
extraordinária.
Gastou uma boa quantia em corridas de táxi,
entradas de cinema, uma enorme porção de sorvete que
nem chegou a tocar e uma boa dose de energia física para
livrar-se de seus perseguidores. Mas, com isso, seu plano
de entrar em contato com Yamakura no seu apartamento,
ainda naquela noite, caíra n’água.
Ficou refletindo sobre quem seriam as pessoas que
ficavam grudadas aos seus calcanhares. Depois que
Lafitte se recusara a informá-lo sobre as excentricidades
do japonês, Morgan encarou o assunto como objeto de sua
curiosidade pessoal. Pouco lhe interessava se de suas
investigações poderia resultar algo de útil para a
Ferroplastics Limited.
Morgan tinha uma ideia bastante nítida do japonês.
Até poucas semanas atrás, quando o noticiário entrou
numa estranha maré baixa, os jornais costumavam encher-
se de informações sobre os acontecimentos estranhos que
se desenrolavam no deserto de Gobi e que tinham sua
origem nas pessoas que costumavam designar-se como a
Terceira Potência. No caminho da China para os Estados
Unidos, muitas informações foram distorcidas,
adulteradas e exageradas a tal ponto que, nos jornais
americanos, se liam coisas que mesmo numa pessoa
completamente desinteressada só provocava risos.
Acontece que Morgan sabia separar o joio do trigo, para
fazer surgir aquilo que tinha foros de verdade. E, agindo
assim, achou mais que provável que Yamakura não fosse
nenhum encarregado da Federação Asiática, conforme
Lafitte procurou dar a entender com suas insinuações,
mas um agente da Terceira Potência.
Sendo assim, pensou Morgan, talvez caísse no
truque barato que iria aplicar.
Quando se sentiu absolutamente seguro de que não
estava mais sendo seguido por nenhum dos
desconhecidos, entrou numa lanchonete, sentou a uma
mesa que ficava no canto mais escondido e pediu um
refresco. Passado algum tempo, levantou-se e foi até o
telefone. O aparelho ficava numa cabine bem fechada.
Ninguém ouviria o que pretendia dizer. Ligou para o
Hotel Atlantic, onde Yamakura estava hospedado.
— Aqui fala Donovan. Quero falar com o senhor
Yamakura.
A telefonista murmurou algumas palavras
incompreensíveis. Houve uma pausa, Logo após veio a
resposta.
— Sinto muito, mas o senhor Yamakura está
jantando.
— No hotel?
— Sim.
— Queira chamá-lo.
— Um momento. Vou ligar para lá.
Ouviram-se ruídos, o rumor de passos e de vozes.
Finalmente uma voz aguda respondeu:
— Alô!
— Aqui fala Donovan — disse Morgan, falando
devagar e enfatizando as palavras. — Quero fazer-lhe
uma oferta.
Yamakura parecia perplexo. Levou algum tempo
para responder:
— E quem lhe diz que estou interessado nas suas
ofertas?
— Eu mesmo. Disponho de muitas relações e posso
conseguir num golpe aquilo que o senhor teria de reunir
aos poucos e com muito esforço.
— Não diga! — disse o japonês em tom irônico. —
Vai fazer isso por pura caridade?
— Não. Tenho meu preço.
— E daí?
— Que tal um encontro?
— Onde?
— Faça uma sugestão.
Yamakura refletiu.
— Não conheço a cidade. Que tal a primeira
lanchonete na rua à esquerda do Atlantic?
— De acordo. Quando?
— Daqui à uma hora.
— Muito bem. Aguardarei o senhor.
O japonês desligou. Ao sair da cabina telefônica,
Morgan não conseguiu disfarçar um sorriso de satisfação.
Uma pessoa que não dispusesse de recursos
extraordinários não teria caído num truque desses.
Morgan não duvidava de que, embora tivesse concordado,
Yamakura contava com uma tentativa de capturá-lo.
Pagou a conta e seguiu a pé em direção ao local de
encontro. Tinha tempo de sobra, mas queria chegar antes
de Yamakura.
* * *
Finch recebeu, quase ao mesmo tempo, duas
informações diferentes. Uma lhe causava preocupações,
outra o deixou satisfeito.
— Pete diz que o japonês está saindo do hotel —
resmungou para Webster. Mas logo seu rosto se iluminou.
— Por outro lado, Vale voltou a descobrir o cão-de-fila da
Ferroplastics. Está sentado num bar do Washington
Boulevard.
Webster fitou-o atentamente.
— Acho que já está na hora de lhe darmos uma lição
— disse Finch. — Quer encarregar-se disso?
Webster fez que sim e levantou-se.
— Qual é a idéia?
— Façam-no sair do bar, levem-no a algum lugar e
deem-lhe uma sova. Digam-lhe que, se continuar a enfiar
o nariz em nossos negócios, vai levar mais.
— Muito bem.
Webster saiu, pegou um táxi e foi ao Washington
Boulevard. Lá, pediu ao motorista que seguisse junto ao
meio-fio do lado direito. Viu um dos homens de Finch,
153
pagou o táxi e desceu.
— Onde está o homem? — perguntou a Vale.
Este apontou com o polegar por cima do ombro.
— Lá dentro.
Webster olhou para o lado da rua. O Hotel Atlantic,
onde Yamakura estava hospedado, ficava a menos de
trezentos metros. Isso deu que pensar a Webster. Será que
ele tinha um encontro marcado com Yamakura?
Assustou-se quando reconheceu, à luz dos tubos
fluorescentes, a figura do japonês, que subia pela rua,
estava à cerca de uns cem metros de distância. Como
andasse devagar, parando de vez em quando diante das
vitrinas, ainda tinham uma chance.
— Onde está seu carro? — perguntou a Vale.
Vale apontou para um velho Chrysler, estacionado
junto à entrada do bar.
— Aguente o japonês por aí, se ele chegar muito
cedo — disse Webster e entrou no bar.
Conhecia a descrição de Morgan e reconheceu-o
assim que o viu. Aproximou-se calmamente de sua mesa e
parou perto dele. Sabia que tinha de falar de maneira a
despertar um mínimo de suspeita em Morgan.
Morgan ergueu os olhos.
— O que deseja?
— O senhor Yamakura quer falar-lhe. “Isso tem que
dar certo”, pensou Webster.
— Ele não vem para cá?
No mesmo instante, Morgan teve vontade de
arrancar a língua. Como podia ter certeza de que o outro
havia sido enviado por Yamakura?
Webster ficou satisfeito com a dica. Continuou:
— Infelizmente ele não pôde vir. Pede-lhe para que
me acompanhe até o hotel em que está hospedado.
Morgan refletiu. Webster começou a impacientar-se.
— Parece que o senhor Yamakura tem muita pressa.
Quer viajar hoje de noite.
— Ora essa! — disse Morgan em tom de surpresa.
Chamou o garçom e pagou, saindo em companhia de
Webster.
— Meu carro está aqui — disse este.
— Obrigado — respondeu Morgan. — Prefiro andar
este pedacinho.
Neste ínterim, Webster o havia empurrado até o
meio-fio. Sem que os transeuntes o percebessem,
encostou o cano de uma pistola em Morgan.
— Faça o que digo! — murmurou.
Um olhar rápido fê-lo notar que Vale esbarrou em
Yamakura e procurava detê-lo.
— Abra a porta e entre — ordenou Webster.
Morgan obedeceu. A pistola apontada para ele não
lhe deixava alternativas.
Webster sentou perto dele. Vale continuava ocupado
com Yamakura. Webster rangeu os dentes. Seu
companheiro estava perdendo muito tempo. Yamakura
pôs-se a conversar com ele.
Webster baixou o vidro e deu um assobio. Vale
procurou livrar-se de Yamakura. Mas o japonês grudou-se
a ele com uma obstinação que fez porejar o suor na testa
de Webster. Vale disse:
— Muito prazer, cavalheiro. Tenho que despedir-
me.
Correu em volta do carro. Mas Yamakura pareceu
não se conformar com uma despedida tão apressada.
Aproximou-se do carro, olhou pelo vidro e, antes que
Vale pudesse dar partida, descobriu Jesse Morgan. O
motor roncou e Webster grunhiu entre os dentes:
— Vamos embora!
Antes que Vale pudesse obedecer, a voz enérgica de
Yamakura fez-se ouvir pela janela entreaberta:
— Espere! Quero ir com os senhores. Webster
sentiu-se inseguro.
— O senhor é um dos homens com quem se pode
falar pelo telefone AN 23-551, não é? — perguntou o
japonês.
Webster confirmou com um movimento instintivo
da cabeça.
— Pois então, leve-me. Não gostaria que
acontecesse qualquer coisa a este jovem. Posso obter a
lealdade dele de uma forma muito mais conveniente.
— Entre!
Yamakura abriu a porta da frente e sentou-se perto
de Vale.
— Para onde gostaria de ir? — perguntou a Webster,
virando-se de tal forma que podia olhar confortavelmente
para trás.
— Para fora da cidade — respondeu este.
— Faça isso! — recomendou o japonês. Vale partiu.
O carro disparou pela Washington Boulevard.
Vale dirigia muito bem. Saiu da cidade pelo
caminho mais curto, deixou a autoestrada e entrou numa
via secundária. Parou a cerca de um quilômetro da
estrada.
— Ande mais um pedaço — disse Yamakura.
O motorista fitou-o. Depois lançou um olhar
indagador para Webster. Este deu de ombros. Vale deu
partida e andou mais dois quilômetros.
— Obrigado; já chega — disse o japonês.
Voltou-se novamente para trás e disse a Jesse
Morgan:
— Desça!
Morgan obedeceu sem pestanejar. Desceu, fechou a
porta com força e, como que absorto em pensamentos, foi
andando devagar pelo caminho, em direção à autoestrada.
— Espere aí! — protestou Webster. — Nada disso!
Tenho ordens...
— Calma! — disse Yamakura com um sorriso
amável. — Logo você saberá quais as minhas intenções.
Olhou para Vale.
— O senhor se importaria de seguir mais um pedaço
por este caminho antes de voltar?
Vale sacudiu a cabeça e partiu. Webster estava
perplexo. Olhando pelo vidro traseiro, viu que Morgan
retornava à estrada, sem dar a menor atenção ao carro que
se afastava.
Andaram mais um quilômetro. Depois voltaram.
Começara a chover.
Dali a dez minutos alcançaram Morgan.
— Quando ele fizer sinal, pare — disse Yamakura.
Morgan estava parado sob uma árvore. Cobrira a
cabeça com o casaco e gesticulava.
Vale parou. Morgan aproximou-se correndo e abriu
a porta.
— Graças a Deus! — disse, atirando-se no assento
junto a Webster, que estava apavorado. — Estava atrás de
um ladrão quando fui surpreendido pelo mau tempo. Pode
levar-me até a cidade?
154
O japonês fez que sim.
— Com muito prazer. Conseguiu alguma coisa?
— Não. Acho que segui uma pista falsa.
No caminho ficou falando de um homem que
seguira desde a cidade, porque julgava ser um ladrão.
Alguém o trouxera da cidade até ali, deixando-o na
entrada do caminho, porque era para ali que a pista
conduzia.
Morgan conversava sem cessar. Yamakura ouviu
com toda a atenção. Webster e Vale, perplexos,
começavam a compreender que Morgan perdera a
consciência do que realmente acontecera.
E não era só! O espírito de Morgan criara uma
compensação, que preenchia o vazio. Nunca mais se
lembraria de Yamakura, o japonês que chegara a
perseguir.
Yamakura deixou-o num subúrbio. Webster, que já
se recuperara do espanto, começou a fazer perguntas. O
japonês interrompeu-o com um gesto.
— Leve-me a um telefone público — ordenou. —
Quero telefonar para AN-23 551.
* * * O caminho que o fizeram percorrer dava àquela
palestra o aspecto de um complô. Webster insistiu em que
ficasse com os olhos vendados. Tako não se opôs.
Não se esforçou para reter na memória as curvas e
subidas do caminho. Não teve dúvida de que conseguiria
conduzir as negociações a um desfecho favorável, e que
dali retornaria sem venda nos olhos.
Estava satisfeito porque o caso Morgan terminara
tão bem. O acaso interferira nos seus planos, poupando-
lhe muito esforço.
Finalmente a andança pelos corredores e escadas
chegou ao fim.
A venda foi retirada. Tako viu-se numa sala
parcamente iluminada e decorada com um bom gosto
excessivo. Os homens que, de pé, rodeavam a grande
mesa e o encaravam com os olhos curiosos combinavam
com o ambiente.
— Boa noite, cavalheiros! — disse Tako em tom
amável.
Os homens sorriram.
— Boa noite! — respondeu um deles. Tako
conhecia-o. Vira muitas vezes seu retrato nos jornais. Pelo
que se dizia, Stan Brabham mandava mais no Sindicato
dos Trabalhadores do Aço que o próprio chefe.
Tako não estava surpreso. Não esperava outra coisa.
A primeira aparição de Webster já lhe sugerira a ideia de
algum sindicato.
— Vamos sentar! — disse Brabham em tom cordato,
pegando uma cadeira para Tako.
— E vamos tratar logo de negócios, senhor Brabham
— acrescentou o japonês.
Brabham piscou os olhos.
— Caramba! Como sabe?
— Leio os jornais — respondeu Tako, lacônico. —
Mas, tanto faz. Quer ajudar-me?
Brabham fez que sim.
— Por quê?
— Em primeiro lugar, por causa disto — Brabham
esfregou o dedo indicador no polegar. — E depois,
porque simpatizamos com a Terceira Potência.
— Por quê? — repetiu Tako, disfarçando a surpresa.
— Entre nós existe muita gente que sabe ficar de
olhos abertos — explicou Brabham com um sorriso. —
Também na Ferroplastics Limited, por exemplo. Encare a
coisa por essa forma: farejamos a coisa e tivemos bastante
inteligência para tirar nossas conclusões. Esta explicação
lhe basta?
Tako fez que sim.
— O que pode fazer por nós? — perguntou.
Brabham brincou com um toco lápis.
— Podemos arranjar-lhe quase tudo de que precisa
— respondeu em tom tranquilo. — Não estou exagerando.
Tako acreditou. Estava informado sobre o prestígio
dos grandes sindicatos dos Estados Unidos.
— O que pede em troca?
— Cinco por cento do preço de compra de cada lote
— respondeu Brabham sem a menor emoção.
Não era pouco. Mas era muito menos do que Tako
esperava.
— Por que vai trabalhar tão barato?
— É o que precisamos. Além disso, acho que os
senhores são pessoas formidáveis; já lhe disse isso. Têm
todas as possibilidades de transformar-se numa terceira
potência. Nós, os trabalhadores; não queremos ficar de
braços cruzados quando se trata de instaurar a paz
perpétua.
— Sabe que está agindo contra as leis de sua pátria?
Brabham confirmou com um gesto indiferente.
— Essas leis são uma tolice. Dentro de poucos anos
todo mundo reconhecerá isso.
Tako refletiu. Depois soltou sua primeira pergunta:
— Está em condições de arranjar garrafas
magnéticas com uma capacidade útil de mil metros
cúbicos por unidade?
Brabham olhou para o lado.
— O que diz Jeff?
— Não há problema; podemos arranjar essas
garrafas — respondeu um homem pequeno e magro.
Brabham voltou a dirigir-se a Tako.
— O senhor receberá as garrafas. Quantas vai
querer?
— Cinco.
— Para quando?
— O mais rápido possível.
— Jeff, quanto tempo levará?
— Quatro a cinco semanas.
— Dentro de cinco semanas. Concorda?
— Concordo.
— Mais alguma coisa?
Tako sorriu.
— Por enquanto é só, senhor Brabham. Não quero
mostrar-lhe todas as cartas antes que o senhor me dê uma
prova da sua capacidade. Espero que este tipo de cautela
não prejudique nossa cooperação.
Brabham soltou uma estrondosa gargalhada.
— Compreendo — disse. — Mas nós o
convenceremos.
— Os senhores terão de descobrir um meio para que
ninguém descubra quem é o autor da encomenda —
prosseguiu Tako.
Brabham confirmou com um movimento da cabeça.
— Pode deixar por nossa conta. Não gostamos de
nos expor.
155
Ainda havia algumas formalidades para acertar.
Finalmente Tako retirou-se, satisfeito e sem venda nos
olhos. Uma vez no hotel, pagou a conta e saiu de
Petersburg ao amanhecer.
V Raramente algum homem inspirara tamanha gratidão
a Perry Rhodan como a que sentia por Crest, porque o
mesmo não lhe apareceu depois de terminado o
treinamento.
É verdade que por ali ainda se encontrava Bell, que
poderia perturbá-lo. Mas quando este despertou e ergueu-
se, ficou sentado de costas para Rhodan. Inclinou-se para
frente e apoiou a cabeça nas mãos, como se ela fosse
muito pesada.
Passou-se uma hora sem que fosse pronunciada uma
palavra. Rhodan testou seu cérebro; viu diante de si um
complexo imenso com uma quantidade enorme de
minúcias que se lhe apresentavam com toda clareza.
Havia uma gama infinita de conhecimentos armazenados.
Assim que formulava qualquer desejo em pensamento, a
respectiva solução oferecia-se imediatamente, desde que
se tratasse de um problema matemático ou científico.
Procurou avaliar as dimensões do complexo que
constituía seu cérebro, mas não descobriu nenhum limite.
Era infinito. Por mais que se aprofundasse, não
encontrava nenhuma parede, sempre havia um caminho
que o conduzia mais adiante.
Levantou a cabeça. Seus olhos caíram no aparelho
de intercomunicação. Poderia apostar tranquilamente que
Thora o estava observando lá do seu camarote e estudava
suas reações. Não estava disposto a nutrir seu orgulho,
vendo-o cismar por muito tempo sobre as conquistas da
ciência dos arcônidas.
Levantou-se. Bell fungou aborrecido.
Isso não o perturbava. Bastava que um dos dois não
se mostrasse impressionado, para deixar Thora nervosa.
Saiu e foi andando pelo corredor. A porta de seu camarote
estava aberta. Crest, sentado numa poltrona giratória,
fitava o camarote de Thora numa tela de
intercomunicação.
Quando Rhodan entrou, Crest voltou à cabeça.
— Então? — perguntou com um sorriso, em tom
ligeiramente preocupado.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Nada. Cometi um erro.
Crest endireitou-se abruptamente. A poltrona
seguiu-lhe o movimento.
— Um erro?
— Isso mesmo. Ao que parece a solução do
problema ocorreu numa data mais recente. Acredito que
seus homens tenham sido muito indolentes para examinar
todos os aspectos do problema.
Crest estremeceu. Rhodan piscou em direção ao
intercomunicador, dando a entender que suas palavras
destinavam-se a Thora.
— Que interessante! — cochichou Crest. — Que
erro foi esse?
— Trata-se do problema da reprodutibilidade das
hipertrajetórias. Está lembrado? — explicou no tom mais
indiferente que conseguiu dar à voz. — A equação
diferencial em que elas se baseiam é instável, além de
formalmente insolúvel. Trata-se de uma equação
diferencial de sétimo grau, com aplicação de um processo
de aproximação numérica de décimo terceiro grau. Vê-se
que o processo de aproximação ainda encerra mais alguns
graus de instabilidade que a equação. E, quando nos
movemos no terreno da instabilidade, um pequeno desvio
produz um erro de grandes proporções.
Até mesmo a matemática terrena conhece soluções
de aproximação de sétimo grau para equações
fundamentais desse tipo. Quer que lhe diga por que esse
erro foi cometido em Árcon?
Crest não soube dizer mais nada.
— É porque o processo de aproximação que foi
empregado torna-se muito cômodo — disse Rhodan com
a voz áspera e retumbante. — É porque, segundo deduzo
de outras informações, esse processo está gravado nas
calculadoras. Foi por pura indolência que ninguém se deu
ao trabalho de examinar a equação fundamental quanto à
sua estabilidade e foi ainda por indolência que se
empregou o método usual; um décimo da energia prevista
seria suficiente.
Sentiu-se triste com a forma pela qual Crest reagiu à
sua explanação; encolhendo-se lentamente, este deixou
que a cadeira voltasse a inclinar-se para trás. Crest
sacudiu a cabeça e murmurou palavras desconexas.
Rhodan procurou não olhar para a tela. Sabia que
Thora o observava, e, provavelmente, o compreenderia. O
drama fora preparado para ela, não para Crest. O erro era
verdadeiro, mas a maneira de expô-lo fora escolhida para
impressionar Thora. Gostaria de ver seu rosto.
Aos poucos, Crest foi recuperando o autodomínio.
Rhodan dirigiu-lhe um sorriso tranqüilizador, para que
voltasse a ficar em forma mais depressa.
— Não pretendia falar com você sobre isso — disse.
— Apenas pretendia agradecer-lhe por tudo que fez por
nós. Nem imagina como nos sensibilizou.
Crest compreendeu; interrompeu Rhodan com um
gesto. Contorceu o rosto, como se quisesse rir, mas
apenas conseguiu esboçar uma careta.
— Pare Rhodan — murmurou com a voz débil. —
Você está desperdiçando seus agradecimentos com a
pessoa errada. Nós é que temos de ficar gratos. Gratos ao
destino, por nos ter proporcionado um encontro com uma
raça como a sua.
156
Ergueu-se na poltrona.
— Sabe que você é a primeira pessoa que se atreve a
absorver de uma só vez os dez estágios de
desenvolvimento? Sabe por quanto tempo tive de
observá-lo antes de ter certeza de que poderia dar esse
passo sem que seu espírito corresse perigo? Acreditava
que levasse alguns dias para recuperar-se do choque
tremendo causado pelo treinamento dos dez estágios. Mas
o que vejo? Mal o transmissor é desligado, levanta-se,
dirige-se a mim e diz: estão vendo, seus idiotas? Aqui
vocês erraram. Sabe o que significa isso?
Qualquer um saberia a resposta. Respirando
profundamente, Crest voltou a recostar-se na poltrona.
No corredor ouviram-se os passos de Bell, que
pareciam marteladas. Rhodan ouviu-o murmurar de si
para si. Bell entrou pela escotilha.
— Ouça chefe! — disse em tom enfático. — Sabe
que essa gente cometeu um erro? Ao tentarem obter uma
reprodução matemática de uma hipertrajetória,
empregaram uma equação diferencial de sétimo grau.
Para isso...
A tensão de Rhodan terminou numa estrondosa
gargalhada. Ao ouvir os primeiros sons, Crest assustou-
se. Até parecia que o riso lhe causava dor. Mas, por fim,
controlou-se e conseguiu brindar a situação com um
sorriso quieto e resignado.
* * * Uma hora depois a nave abandonou a trajetória
terrestre e tomou a direção da Lua. Rhodan assumira o
comando, executando-o de acordo com os conhecimentos
adquiridos no processo de treinamento.
Reginald Bell exercia as funções de copiloto.
Crest, sentado nos fundos, olhava fixamente para
frente. Vez por outra, Rhodan virava a cabeça para vê-lo.
Para um homem da sua substância espiritual seria
necessário bastante tempo para recuperar o equilíbrio
após o choque pelo qual passara.
Thora só entrou na sala de comando quando a nave
já havia tomado à rota da Lua. Rhodan não se voltou à sua
entrada. Ouviu sua voz:
— Rhodan, você está perdendo seu tempo. Esta nave
está equipada com direção automática.
Procurara ser irônica; ficou desapontada ao notar
que não o conseguira. Bell encarou-a.
— Conhecemos os autômatos dos arcônidas — disse
com voz indiferente. — Um deles mostrou-se muito
eficiente na defesa de três foguetes nucleares na Terra,
não foi?
Rhodan não pôde ver a reação de Thora. Não voltou
a ouvir sua voz. Quando pôde ver o rosto de Bell, notou
que este repuxava os cantos da boca num contentamento
disfarçado.
* * * A nave dispunha de grande variedade de
instrumentos destinados à medição de radiações. Rhodan
fez a nave parar acima do lugar em que se encontravam os
destroços do cruzador espacial e pediu a Bell que
realizasse as medições.
Na Lua não se verificara nenhuma precipitação de
partículas radioativas. A radioatividade gerada pelas
bombas foi projetada para o espaço, ou fixou-se ao solo.
A ausência de atmosfera reduzia os riscos a que se
expunha a pessoa que quisesse descer na Lua.
Pelos destroços não se podia saber se alguma parte
do gigantesco cruzador espacial tinha escapado à
destruição. Rhodan sabia que existia alguma esperança
em relação ao compartimento interno, cujas paredes eram
feitas de um tipo de plástico metalizado que possuía um
campo de cristalização dotado de uma dureza que
ultrapassava o poder de imaginação da metalurgia terrena
e uma resistência à temperatura que não possuía similar.
Os envoltórios feitos desse metal tinham capacidade de
resistir a qualquer tipo de tensão mecânica e a
temperaturas de até 80.000 graus centígrados.
Todavia, o casco do cruzador espacial estava
reduzido a uma confusão de material derretido e
endurecido. Para atingir o compartimento interno, teriam
de procurar um caminho através desse labirinto de
plástico metalizado altamente radioativo.
Bell informou:
— Dois microroentgen por hora.
— Numa altitude de cinquenta quilômetros —
completou Rhodan. — É uma conta muito simples, não é?
No local podemos esperar — levou algum tempo
calculando — cinquenta a cem roentgens por hora, se
considerarmos as dimensões da fonte geradora de
radioatividade.
Bell confirmou com um movimento de cabeça.
— Quer dizer que não podemos utilizar nossos trajes
protetores.
Rhodan voltou-se para Crest.
— A bordo desta nave existem trajes protetores
contra radiações intensas e uma instalação de
descontaminação. Não há motivo para deixarmos de
pousar e examinar o cruzador.
Crest fez que sim.
Rhodan realizou um pouso impecável. A nave
estacionou a cerca de um quilômetro do limite da área
pela qual estavam espalhados os destroços do cruzador
dos arcônidas.
— Pretendo sair com Bell — disse Rhodan. — O
que tem de ser feito deve ser feito sem demora e somos os
homens indicados para isso. Crest gostaria de manter
comunicação ininterrupta com você. Não quero correr o
menor risco.
Para reforçar suas palavras, dirigiu-se ao painel de
comando e regulou para desempenho zero os reatores que
geravam a força do mecanismo propulsor. Com isso a
decolagem seria retardada por meia hora, que era o tempo
necessário ao aquecimento dos reatores. Só assim
estariam garantidos contra uma decolagem instantânea
realizada por Thora, que os deixaria naquele inferno
radioativo.
Crest esboçou um sorriso. Thora não se moveu, mas
o vermelho dos seus olhos emitiu um brilho mais intenso
que de costume. Bell saiu à procura dos trajes protetores.
Eram muito mais práticos que os trajes de que
Rhodan e os demais tripulantes dispunham na Stardust.
Para colocar um traje espacial terreno com observância
das normas, realizando os controles devidos, era
necessário pôr a paciência do indivíduo à prova por mais
de vinte minutos. Os trajes dos arcônidas podiam ser
enfiados no corpo como qualquer roupa e uma luz junto
ao punho esquerdo era o sinal de que tudo estava em
ordem. Não havia nenhum recipiente de oxigênio
157
desajeitado, nenhum rádio de capacete pesava sobre a
cabeça, nenhuma junta de pescoço comprimia a nuca
quando se olhava para cima. O traje gerava o oxigênio por
meio de pequeninos recipientes de produtos químicos. O
telefone miniatura era do tamanho de uma unha. O
capacete e o traje formavam uma única peça, de maneira
que não havia necessidade de qualquer junta.
Rhodan e Bell levaram pistolas de radiação. Era
provável que a explosão das três bombas não lhes tivesse
aberto nenhum caminho para o interior do cruzador
espacial. A energia das pistolas de radiação atingia, no
foco central, uma temperatura de cerca de cinquenta mil
graus. Teriam de recorrer a instrumentos mais potentes e
pesados, se nenhuma das escotilhas do compartimento
interno pudesse ser aberta de forma normal.
Crest seguiu-os com os olhos, quando deixaram a
nave por uma das duas escotilhas. Thora não lhes deu
atenção. Parada diante de uma tela fitava os destroços de
seu cruzador.
— Fique de olho nela! — disse Rhodan, dirigindo-se
ao arcônida. Pouco lhe importava que Thora ouvisse suas
palavras ou não.
Ligaram os geradores e foram levados aos poucos
para a área atingida pelas explosões. Vistos de perto, os
destroços derretidos e disformes ofereciam um aspecto
assustador.
Não trocaram uma única palavra. Só Crest falava de
vez em quando.
— Tudo em ordem!
Rhodan pousou junto ao maior monte de destroços
que conseguiu localizar. Tudo indicava que no interior do
mesmo devia encontrar-se o compartimento interno do
cruzador espacial.
Ao olhar para cima a fim de avaliar a altura da
massa de metal, Bell começou a gemer.
Sem a menor perda de tempo, puseram-se a
trabalhar. As pistolas de radiação desprenderam os
destroços, pedaço por pedaço, abrindo um caminho. O
dosímetro registrava dez roentgen; ainda não fazia dez
minutos que se encontravam fora da nave. A única coisa
tranquilizadora em meio ao ambiente desolado era a voz
de Crest.
— Tudo em ordem!
Numa hora conseguiram avançar uns vinte metros
para dentro do monte.
Rhodan ficou preocupado; não sabia se aquele
amontoado teria estabilidade bastante para sustentar as
paredes de um túnel de cerca de vinte metros de extensão.
Pediu que Bell suspendesse o trabalho por algum tempo e
bateu no material. A cada batida descansava a mão no
local em que dera a mesma, a fim de poder sentir qualquer
reação anormal que se verificasse. Mas não percebeu nada
além da vibração normal do plástico metalizado quando
percutido.
Fez um sinal a Bell. O trabalho prosseguiu.
Dali a mais uma hora o monte foi se tornando menos
denso. Prosseguindo pelas gretas que se abriam,
avançaram um bom trecho sem usar a pistola de radiação.
— Já fizemos cinquenta metros — murmurou Bell.
— Acho que não falta muito.
Bell arquejava visivelmente.
— Pois então! — resmungou, dirigindo o raio de sua
pistola contra o obstáculo que se lhe antepunha.
Dali a um minuto soltou um grito de triunfo:
— Veja! Chegamos!
Rhodan olhou por cima de seu ombro. Atrás do
último pedaço de plástico metalizado que conseguiram
desprender apareceu uma parede lisa. Ao primeiro lance
de olhos notava-se que ela não fora afetada pelo calor da
explosão.
Rhodan sabia que o plástico metalizado provido de
um reforço de cristais elásticos era de cor azul-turquesa. E
azul-turquesa era a cor da parede que Bell pusera à vista.
Intensificaram os esforços. Trabalhando
encarniçadamente, conseguiram limpar metro por metro
da parede. Crest começou a fazer perguntas, mas só lhe
deram respostas lacônicas.
— Aqui há uma escotilha — disse Bell depois de
algum tempo.
Como trabalhasse à frente de Rhodan, descobrira em
primeiro lugar a estreita reentrância na parede. Estava em
posição inclinada, o que indicava que a posição do
compartimento interno se modificara com a explosão.
Levaram quinze minutos para desobstruir a escotilha.
Rhodan sabia que no momento da explosão ela se fechara
automaticamente e só se abriria com um código especial,
isso se o mecanismo ainda funcionasse.
Pegou o emissor de impulsos que trouxera da nave.
Era um bastão da grossura de um lápis, com dez
centímetros de comprimento, que trazia um minúsculo
decodificador no seu interior. Comprimiu-o contra a
escotilha.
Subitamente percebeu que o chão tremia sob seus
pés. Parecia que a escotilha iria mover-se. Rangendo,
abriu-se numa fresta de alguns milímetros, apenas para
voltar a fechar-se, quando não pôde vencer as forças que a
obstruíam.
Rhodan fez um sinal a Bell. A escotilha era leve e
não muito grande. Com algum esforço, um homem
poderia abri-la com a energia muscular.
Pela segunda vez, Rhodan pôs a funcionar o emissor
de impulsos. O chão voltou a vibrar. Do lado direito da
escotilha surgiu uma fresta. Desta vez era mais larga; Bell
conseguiu enfiar nela as pontas dos dedos.
Apoiando o ombro contra a parede, puxou com toda
força. Rhodan não tirou o emissor de impulsos de cima do
material azul.
Bell mudou de posição e voltou a puxar. De repente,
ele perdeu o apoio e, face à gravitação pouco intensa da
lua, foi atirado com toda força contra a parede do túnel. O
obstáculo fora vencido. Abrindo-se para o lado, a
escotilha pôs à vista o corredor estreito e escuro de uma
eclusa. A voz de Crest soou, longe:
— Tudo em ordem por aqui. O que houve com
vocês?
— Encontramo-nos diante de uma decisão difícil —
respondeu Rhodan.
— O que é?
— A escotilha está aberta. Ao que parece a eclusa
está funcionando. Tivemos bastante trabalho com a
escotilha. Se entrarmos normalmente, pode ser que não
consigamos abrir a escotilha do lado de dentro.
— Não compreendo.
— Poderíamos abrir o outro lado da eclusa sem
fechar a escotilha, mas nesse caso o ar que se encontra no
compartimento interno escaparia de forma explosiva.
158
— Isso os incomoda? Não poderiam abrigar-se?
— A nós isso não incomoda nem um pouco. Mas
pode ser que lá dentro alguém esteja vivo. E então?
Ouviram a respiração de Crest.
— Quais são as possibilidades? — perguntou. — Se
alguém estivesse vivo, já teria tido possibilidade de
comunicar-se conosco.
— Pode ser que esteja gravemente ferido e não
possa movimentar-se.
Crest suspirou. Depois de algum tempo disse com a
voz tranquila:
— Abra de qualquer maneira! Não podemos correr
nenhum risco. Temos muita pressa dos objetos que se
encontram no compartimento interno.
Rhodan fez que sim. Se dependesse dele, teria
tomado à mesma decisão. Mas, num momento desses,
convinha dividir a responsabilidade com alguém.
Bell tirou o emissor de impulsos das mãos de
Rhodan e dirigiu-se ao outro extremo da eclusa.
— Aqui há um lugar em que posso abrigar-me —
disse em tom tranquilo. — Fique do lado de fora, chefe.
A escotilha interna não apresentou o menor defeito.
Os destroços tremeram quando o ar foi expelido num
golpe. Juntamente com ele saiu uma nuvem de pó e
alguns instrumentos menores que se encontravam soltos.
A confusão não durou mais que um segundo. Quando
Rhodan entrou, Bell estava saindo do esconderijo.
— Santo Deus! — gemeu. — Até parece que
alguém jogou um saco de areia na minha cabeça.
Procurou olhar pela lâmina transparente.
Lá dentro estava escuro. Mas havia uma lâmpada
nos seus capacetes. Acenderam-na para iluminar o
caminho.
Rhodan notou que o interior do compartimento fora
afetado pela explosão muito mais que o envoltório. Com a
explosão, o compartimento ficara de cabeça para baixo.
Alguns dos aparelhos mais pesados tinham sido
arrancados de seus suportes e estavam inutilizados.
Mas havia muita coisa que ainda poderia ser
aproveitada. Seria muito mais fácil se levassem para a
Terra tudo que ali se encontrava.
Bell foi andando, curioso. Rhodan quis dizer-lhe
alguma coisa. Mas nesse instante a voz trêmula de Crest
fez-se ouvir.
— Pelo amor de Deus! Rhodan, Bell! Venham o
mais rápido possível! Venham!
Rhodan parou.
— O que houve?
— Rápido! Venham logo!
Rhodan virou-se e saiu em disparada. Bell seguiu-o.
Desligaram a gravitação e, fazendo movimentos
vigorosos de nadador, avançaram velozmente pelo túnel
que haviam aberto.
Uma vez do lado de fora, regularam os geradores
para a potência máxima e saíram numa trajetória alta em
direção à nave. Crest abrira a eclusa ou então nem
chegara a fechá-la. Passaram alguns segundos de
impaciência, enquanto os dispositivos acoplados à eclusa
encheram-na de ar.
Crest esperava-os atrás da escotilha interna. Tremia
e seus olhos brilhavam numa tonalidade vermelha.
— O que houve? — perguntou Rhodan.
— É uma coisa horrível! — suspirou Crest.
Rhodan correu em direção à sala de comando. Crest
teve de esforçar-se para permanecer ao seu lado.
— Thora largou uma hipersonda. Isso não era contra
nosso acordo, e, assim, não a impedi.
Rhodan confirmou com um movimento de cabeça.
Enquanto andava, começou a tirar o traje espacial. Uma
hipersonda servia para localizar o feixe de ondas de um
hiperemissor. Esse feixe podia ser concentrado numa
fração de centímetro e quem não o captasse diretamente,
nada perceberia de sua existência. Existiam sondas
inteiramente automatizadas, formadas de pequenas naves,
cujo tamanho não ultrapassava o de uma mão humana e
que vasculhavam determinada área, centímetro por
centímetro, detectando qualquer onda direcional que ali se
localizasse.
Entraram na sala de comando. Thora estava
encostada ao painel de controle, com o rosto voltado para
eles. Rhodan notou um traço de orgulho misturado com
ironia. Limitou-se a contemplá-la com um olhar de
esguelha.
— Por algum tempo a sonda ficou vagando por aí,
sem encontrar nada — prosseguiu Crest com a voz
exaltada. — Mas, de repente, encontrou alguma coisa.
— O que encontrou? — perguntou Rhodan com a
voz impaciente.
— Descobriu os impulsos emitidos por nosso
hiperemissor. — Crest apontou apressadamente para a
tela que mostrava a nave destruída. — Os impulsos
provêm da nave. São impulsos automáticos de
emergência. Compreende?
Rhodan compreendeu de imediato. Mais que isso,
logo percebeu as consequências. Todas as naves arcônidas
eram equipadas com um hiperemissor. A energia emitida
por ele tinha a mesma estrutura matemática do campo
hipergravitacional que possibilitava as viagens espaciais a
uma velocidade superior à da luz. As hiperondas
propagavam-se de forma quase instantânea por qualquer
distância, constituindo o meio de comunicação ideal de
uma época que calculava em termos de milhares de anos-
luz com a mesma naturalidade com que o homem lidava
com quilômetros.
Todo hiperemissor era equipado com um dispositivo
automático de emergência que o colocava em
funcionamento logo que algo acontecesse à respectiva
nave, tanto em virtude de um ataque vindo de fora como
de um defeito interno. Dali em diante, o emissor
irradiaria, em sequência ininterrupta, um sinal
predeterminado. Além disso, concentrava o feixe de
ondas, orientando-o em direção ao receptor mais próximo.
Rhodan sabia que o receptor a que se destinava o
sinal de emergência estava postado em Mira-4. Estava
bem informado sobre isso. Era um planeta desolado e frio
que ficava perto de um sol em extinção, a menos de
oitocentos anos-luz do ponto em que se encontravam. Era
tão inóspito que o Império só colocara nele uma divisão
de vanguarda de naves robotizadas.
As consequências eram facilmente previsíveis. As
naves robotizadas receberiam o sinal de emergência e
decolariam em direção ao emissor. Constatariam que o
cruzador fora destruído por um bombardeio de foguetes.
Localizariam a base desses foguetes e empreenderiam
uma ação de represália nas áreas adjacentes, empenhando
nela todo o seu potencial.
159
No presente caso, a base de foguetes situava-se na
Terra e a área adjacente compreendia todo o planeta. Sem
dúvida as naves robotizadas estariam em condições de
exercer uma represália à altura.
O fato de o emissor de emergência localizada na
nave emitir o sinal convencionado significava apenas que
dentro de quarenta e cinco dias, contados do momento em
que o cruzador espacial foi destruído, alguém procuraria
transformar a Terra num montão de cinzas. E, pelo que
tudo indicava esta não estaria em condições de defender-
se contra o ataque. As únicas pessoas que poderiam vir
em seu auxílio estavam separadas por profundas
divergências.
Rhodan olhou para Crest. Este parecia adivinhar
seus pensamentos.
— Já pus o reator em funcionamento — disse.
Rhodan fez um sinal de agradecimento.
— Partiremos o quanto antes.
VI O Fiorde de Umanaque, no estreito de Davis é um
lugar que, para se distinguir o céu cinzento, das
montanhas, também cinzentas de gelo, deve-se colocar a
mão para sentir o gelo ou o ar entre os dedos.
Dificilmente haveria um trecho de terra mais
desolado. E dificilmente haveria outro em que se
tomavam decisões tão importantes como ali.
O fiorde de Umanaque servia de quartel-general ao
Conselho Internacional de Defesa. No momento, o
número dos agentes estrangeiros que o abarrotavam quase
chegava a exceder o dos que pertenciam aos seus quadros.
Pouca coisa se via por cima do solo. Apenas
algumas casas de espessas paredes de madeira
pertencentes a uma sociedade comercial dinamarquesa e
habitada por esquimós. Numa das casas havia uma tábua
sobre a qual alguém escrevera, em letras desajeitadas, que
ali se vendiam peles. Mas, até então, nenhum mercador
havia adquirido peles da Umanak Fur Company.
Os esquimós eram agentes bem treinados. O chefe
do posto era um dinamarquês que ocupava o posto de
primeiro-tenente e era bem visto por Allan D. Mercant.
Os restantes das instalações estavam ocultas sob o
gelo e a rocha. A expressão “o restante” pode induzir em
erro sobre a situação real. Mais de noventa e cinco por
cento das atividades exercidas no fiorde de Umanaque
desenrolavam-se abaixo do solo e a distribuição das
instalações seguia a mesma proporção.
Umas quinhentas pessoas viviam constantemente em
Umanaque, mas destas apenas dez conheciam todas as
instalações subterrâneas. Os agentes da Federação
Asiática e do Bloco Oriental, hospedados no local durante
os dias de cooperação forçada, só conheciam os dois
andares superiores.
Mercant residia no piso mais baixo do conjunto.
Estava cercado de todos os lados por dispositivos de
segurança. Não temia pela sua segurança pessoal. O que
preocupava a ele, e aos que haviam instalado os
dispositivos, era a quantidade enorme de documentos
secretos, da mais alta importância, guardados nos cofres
blindados do pavimento inferior.
Mercant possuía um escritório particular, montado
segundo seu gosto pessoal. As dimensões dos móveis
eram exageradas. O visitante que penetrasse pela primeira
vez naquela sala enorme teria de procurar por algum
tempo antes de encontrar o oficial de pequena estatura.
Em geral, Mercant ficava sentado atrás da imensa mesa;
reclinado numa poltrona que de tão grande dificilmente
poderia ser confortável, só a cabeça aparecia por cima da
tampa da mesa.
Não dividia as horas do dia. Trabalhava até sentir-se
tão cansado que o prosseguimento das suas atividades não
daria nenhum resultado; dormia e levantava-se quando se
sentia razoavelmente descansado. A iluminação uniforme
das peças por ele ocupadas ajudava-o, a esquecer do ritmo
harmônico do dia de vinte e quatro horas que prevalecia lá
em cima.
Os verdadeiros prejudicados eram os ordenanças de
Mercant. A maior parte deles apreciava uma atividade
regular e um sono nas horas certas. Mas Mercant defendia
a opinião de que a segurança do mundo não devia ser
negligenciada em benefício da predileção que alguns
oficiais subalternos nutriam pelas rotinas da vida
burguesa.
Naquele dia levantara às três horas. Não se
interessou em saber se eram três horas da manhã ou da
tarde. Começou a trabalhar em assuntos que tivera que
deixar de lado ao deitar-se.
As três e quinze apareceu o sargento O’Healey
informando-o:
— Nenhum acontecimento extraordinário nas
últimas quatro horas, senhor.
Saiu. Daí a alguns minutos voltou com uma xícara
de café e alguns biscoitos. Esperou tranqüilamente até que
Mercant engolisse o primeiro gole do líquido fervente e
formulasse a pergunta usual:
— Que horas é sargento?
— Três horas e vinte e três minutos, senhor.
Olhando por cima da xícara, Mercant fitou o relógio.
Eram três e vinte e dois.
— De que parte do dia?
— Da manhã, senhor.
Satisfeito, Mercant abanou a cabeça. O’Healey
cumprimentou e saiu. Já se desacostumara de refletir
sobre aquele cerimonial estranho. Quando iniciara o
serviço junto a Mercant, o mesmo lhe parecia uma piada
de mau gosto.
A cirurgia plástica conhecia uma porção de truques
difíceis de desmascarar. Para garantir-se contra eles,
Mercant obrigava os sargentos da sua guarda há dizerem
um minuto mais que o real, quando perguntados a respeito
da hora. Além disso, deviam dizer “de manhã”, quando
era de tarde ou de noite, e vice-versa.
O’Healey estava convencido de que Mercant o
mataria na hora se por esquecimento dissesse a hora exata
ou a metade verdadeira do dia.
No entanto, em parte, estava enganado. Mercant
estaria satisfeito quanto à identidade de O’Healey se este
lhe dissesse um minuto a mais que o tempo verdadeiro. A
indicação da metade do dia em que se encontravam
representava uma verdadeira informação para ele. Só
quando O’Healey lhe dizia que era de manhã ficava
sabendo que na verdade já era de tarde.
Meia hora depois de O’Healey ter saído o capitão
Zimmermann veio apresentar seu relatório.
— O mais importante, senhor, é a conferência com
160
os oficiais da Federação Asiática — principiou. — O
major Pervuchin, de Moscou, participará como
observador.
— O que pretende observar? — perguntou Mercant
entediado. — Tem alguma ideia do que estes amarelos
querem desta vez?
— Pelo que se diz, trazem uma porção de sugestões
que gostariam de discutir com o senhor.
— Sugestões para quê? Para uma paz mundial
duradoura?
— Não, senhor. Sobre a maneira de agarrar aqueles
desertores no deserto de Gobi.
Mercant levantou a mão direita e examinou as
unhas.
— Não fique chamando essa gente de desertores,
Zimmermann. Ouvi muita coisa boa a respeito deles e não
pretendo julgá-los antes de conhecer seus motivos.
Zimmermann não respondeu.
— Mais alguma coisa? — perguntou Mercant.
— Por enquanto nada, senhor.
— Obrigado.
Zimmermann fez continência e saiu.
* * *
Rhodan pousou a nave a trezentos quilômetros da
costa, numa planície de gelo cinza-azulada. A planície
não era muito extensa e estava cercada de todos os lados
por montanhas bastante altas. Não havia o menor perigo
de que alguém descobrisse a nave por acaso. Além disso,
na Groenlândia trezentos quilômetros representavam uma
distância mais que suficiente.
Face aos recursos técnicos de que dispunha a nave,
Rhodan não teve a menor dificuldade de escapar às
sondagens realizadas pelas bases de radar, bastante
numerosas nos arredores do fiorde de Umanaque. Estava
certo de que nas telas não surgiria o mais leve lampejo.
A possibilidade da localização ótica direta não
preocupava Rhodan. As nuvens pendiam bem baixo sobre
o solo da Groenlândia. Era mais fácil manter a nave acima
dela do que cercá-la de uma cúpula defletora, que
consumiria uma quantidade considerável de energia.
Ao retornar da Lua, avisara Tako do ocorrido e
mandara-o de volta para o lago salgado de Goshun. No
momento, havia coisa mais importante a fazer do que
manobrar nas antecâmaras dos capitães de indústrias.
Rhodan tinha boas razões para acreditar que dentro de
pouco tempo já não seria necessário transmitir os pedidos
às escondidas, com um receio constante dos serviços
secretos. Era bem verdade que, conforme provara a
atuação de Tako, mesmo por essa forma podia se
conseguir muita coisa.
Rhodan saiu da nave de tarde, com um traje
transportador arcônida e uma pistola de radiação. Bell
ficou para trás, já que, com a descoberta realizada na Lua,
a rebeldia de Thora parecia ter entrado numa fase mais
ativa e a vigilância exercida por Crest não era suficiente.
Com o traje transportador, venceu os trezentos
quilômetros que o separavam do fiorde de Umanaque em
uma hora e meia. O tédio da viagem, juntamente com a
incerteza sobre aquilo que o esperava, mexia com os
nervos de Rhodan.
Nada indicava que Mercant seria acessível às suas
solicitações, a não ser a revelação que o capitão Klein lhe
fizera no deserto de Gobi, de que Mercant sabia do papel
ambíguo que ele, Klein, estava desempenhando e,
aparentemente, o aprovava.
Acionou o defletor a partir do momento em que
deixou a nave. O campo de deflexão, alimentado pelo
microgerador embutido no traje que Rhodan envergava,
exercia sua influência sobre radiações eletromagnéticas de
comprimento de onda situadas no intervalo de 2.000 a
80.000 angstroms, obrigando-as a contorná-lo como as
linhas de fluxo de um processo hidromecânico. Isso
significava que a pessoa que envergasse um traje desse
tipo não poderia ser vista através das radiações
ultravioletas, da luz comum ou dos raios infravermelhos.
O traje não podia desviar os raios do radar, mas o objeto
era muito pequeno para ser localizado por esse meio.
Com o aprendizado que recebera, Rhodan
compreendeu que as radiações eletromagnéticas
submetidas à influência do campo defletor podem ser
interpretadas de acordo com as equações da
hidromecânica. No entanto, o campo defletor
propriamente dito escapava às possibilidades da
matemática terrena, já que sua descrição é realizada
através de equações em que se inserem constantes
situadas no espaço de cinco dimensões.
Rhodan pousou no interior do posto da Umanak Fur
Company. Não sabia que direção deveria tomar para
encontrar Mercant. A única coisa que sabia era que ele
residia sob o solo. A primeira coisa que teria de fazer era
localizar a entrada para as dependências situadas no
subsolo.
Descobriu que, mesmo invisível, era difícil
locomover-se entre as pessoas. No fiorde de Umanaque
desenvolvia-se uma atividade febril. Quando duas pessoas
se aproximavam dele, vindas de direções diferentes, via-
se obrigado a concentrar-se totalmente no esforço de
desviar-se delas.
Pelas quatro da tarde, Rhodan descobriu um lugar
que, segundo lhe parecia, constituía o acesso às
instalações subterrâneas. Pelo aspecto externo parecia um
grande depósito, de telhado baixo. Parado nas
proximidades vira uma porção de gente, desaparecer no
interior do edifício ou sair dele.
Colocou-se junto à porta e esperou. Quando
apareceu a primeira pessoa, esgueirou-se com ela porta
adentro. O interior do edifício estava profusamente
iluminado por lâmpadas de plástico. Na parede oposta viu
a desembocadura de uma galeria alta e larga.
O movimento intenso de pessoas no interior da
galeria representava um perigo que não devia ser
subestimado. No percurso de cinquenta metros que
separava a entrada da galeria dos elevadores teve de
concentrar toda sua atenção para não esbarrar em
ninguém.
Os elevadores eram quinze ao todo. Rhodan não se
atreveu a utilizar um deles exclusivamente para si.
Esperou que uma pessoa entrasse, para colocar-se a seu
lado.
Infelizmente essa pessoa só desceu dois andares.
Rhodan ficou sozinho no elevador. Viu um guarda
uniformizado enfiar a cabeça.
— Tudo em ordem — murmurou o homem. — Pode
andar.
Mal o guarda se retirou, Rhodan comprimiu o botão
161
de baixo. O elevador arrancou e foi descendo.
Assim que parou, Rhodan desceu. A galeria
estendia-se para ambos os lados. Era igual à de cima. Na
parede oposta à dos elevadores via-se o número 15.
Rhodan contara: era o décimo quinto andar a partir do
nível do solo.
Junto à parede estavam postados vários guardas.
Dois deles dirigiram-se ao elevador de que Rhodan
acabara de sair. Examinaram a cabina. Um deles virou-se
e gritou para os outros:
— Olhem só! Alguém apertou o botão do décimo
quinto andar, do lado de dentro, mas o elevador está
vazio.
Ao que parecia, essas palavras foram dirigidas a dois
dos homens que se encontravam junto à parede. Eles
aproximaram-se e também examinaram a cabina do
elevador. Não pareciam satisfeitos com o resultado do
exame. Um deles voltou e foi andando pela galeria.
Rhodan teve que desviar-se dele. Viu o homem pegar um
telefone e falar por algum tempo. Não entendeu o que
dizia.
Rhodan amaldiçoou sua leviandade. Desde os
tempos em que servira no Campo Espacial de Nevada
sabia da existência de elevadores em cujas placas de
comando se podia ler se os mesmos tinham sido
colocados em movimento pelo lado de dentro ou pelo de
fora. Bem que poderia ter imaginado que Mercant estaria
usando o mesmo tipo de elevador.
O guarda voltou e disse aos homens que
continuavam ocupados no exame do elevador:
— Bloquear imediatamente! Zimmermann quer ver
isso.
Um dos guardas comprimiu o botão de parada no
interior da cabina. Depois saíram e ficaram esperando por
Zimmermann.
* * *
O’Healey disse:
— Lá em cima, no décimo quinto andar, aconteceu
uma coisa estranha, senhor. Alguém fez o elevador descer
lá, mas quando os guardas o examinaram, não havia
ninguém.
Mercant ergueu os olhos.
— Não havia ninguém? O que diz Zimmermann?
— O capitão Zimmermann chamou alguns
especialistas que deverão procurar impressões digitais e
não sei mais o quê no interior da cabina.
Mercant levantou-se.
— Levarão três meses para examinar todas as
impressões digitais. Onde foi mesmo que isso aconteceu?
No décimo quinto andar?
— Sim, senhor.
— Venha comigo. Vamos subir até lá.
* * * Rhodan já constatara que o décimo quinto andar não
era o último. Foi ao encontro do capitão Zimmermann
quando este se aproximou pelo corredor, e procurou
descobrir de onde ele viera. Descobriu dois elevadores
que conduziam apenas para baixo.
Esses elevadores eram vigiados com maior rigor que
aqueles por onde ele descera. Não havia a menor dúvida
de que os guardas reagiriam ao mais leve movimento de
qualquer das cabinas.
Rhodan esperou. Dali a pouco, o capitão
Zimmermann voltou em companhia de um sargento. Os
guardas fizeram continência. Zimmermann e o sargento
entraram no elevador do lado direito.
Rhodan seguiu-os sem fazer o menor ruído e
comprimiu-se contra a parede do elevador para não tocar
em nenhum deles.
Zimmermann disse:
— Que coisa estranha! Até dá para desconfiar que o
sujeito saltou do elevador no meio da viagem. Mas isso é
impossível!
O elevador parou de repente. Pela contagem de
Rhodan, haviam descido mais seis andares.
Rhodan não saltou do elevador com a necessária
rapidez, pois receava que os sapatos de seu traje fizessem
ruído. O sargento, que não tinha nenhum motivo para esse
tipo de receio, passou por ele e esbarrou em seu corpo.
Parou de chofre. Zimmermann esbarrou nele.
Rhodan conteve a respiração e desviou-se para o lado em
passos minúsculos.
— O que houve? — perguntou Zimmermann.
— Es... esbarrei em alguma coisa, capitão.
Zimmermann franziu a testa.
— Onde?
— Aqui, capitão — gaguejou o sargento, apontando
para o nada.
Rhodan viu que se encontravam no fim do corredor.
A parede ficava a dois metros dos elevadores.
Comprimiu-se contra ela. Os guardas postados por ali se
aproximaram do elevador.
Zimmermann riu.
— Há quanto tempo está conosco, sargento?
— Há dois anos, capitão.
Este se mostrou compreensivo.
— Isso explica tudo. Quando eu estava aqui dois
anos, via pequeninos homens verdes marchando por estes
corredores.
Com um gesto de mão procurou mostrar o tamanho
dos homens, a fim de alegrar o sargento.
— De tanto segredo que se faz por aqui — disse em
tom benevolente — todo mundo acaba sofrendo de
alucinações. Isso só passa quando se está acostumado ao
movimento que há por aqui.
O sargento retesou o corpo.
— Sim, senhor.
Rhodan sentiu-se aliviado. Zimmermann afastou-se
em companhia do sargento. Os guardas sorriram.
Andando cautelosamente, Rhodan seguiu os dois.
— Aí vem o capitão Zimmermann, coronel —
avisou O’Healey ao abrir uma das portas de aço que
dividiam a galeria inferior em vários setores distintos.
— Ah! — disse Mercant. Zimmermann fez
continência.
— Este é o sargento Threash, coronel. Foi a primeira
pessoa que notou a ocorrência.
Mercant cumprimentou o sargento com um
movimento de cabeça.
— Deu instruções para que se procurassem
impressões na cabina do elevador? — perguntou,
dirigindo-se a Zimmermann.
— Sim, senhor. Não mandei examinar toda a cabina;
apenas o botão de comando para o décimo quinto andar.
— Foi uma medida muito inteligente — observou
162
Mercant em tom irônico. — Isso representa um tipo de
terapia ocupacional para o staff de especialistas, não
acha?
Ao ouvir a reprimenda, Zimmermann piscou os
olhos.
— Achei...
— Ora, capitão. O senhor não vai me dizer que o
homem — se é que esse homem existe — que foi bastante
inteligente para penetrar no posto de Umanaque, não se
valeu do velho recurso das luvas.
— É possível, coronel — concordou Zimmermann.
— É certo — disse Mercant em tom triunfante. —
Sargento, quem mais viu a cabina vazia?
— Todos os guardas que se encontravam diante dos
elevadores do décimo quinto pavimento, coronel —
respondeu Threash em posição de sentido.
— Já mandou chamar os técnicos em eletrônica? —
perguntou Mercant, dirigindo-se a Zimmermann. —
Talvez seja um defeito do elevador.
— Ainda não, coronel. Mas providenciarei...
Nesse instante o inferno irrompeu por ali. Um uivo
estridente superou todos os ruídos. A porta de aço sob a
qual Mercant e O’Healey se encontravam pôs-se em
movimento, deu um empurrão em Mercant, que arrastou
O’Healey consigo, e fechou-se com um ruído seco.
Zimmermann e Threash ficaram do outro lado.
— Alarma de radar! — disse Mercant com a voz
ofegante. — Venha, O’Healey.
Saiu correndo pelo corredor. Não poderia chegar ao
seu corredor. Durante o alarma, as portas de aço só se
abririam mediante uma ordem especial e Mercant não
pretendia transmitir essa ordem enquanto não soubesse de
que se tratava. De qualquer maneira podia dispor das salas
situadas no setor em que se encontrava.
Tomou lugar em uma mesa desocupada às pressas.
Através do aparelho de intercomunicação entrou em
contato com a central de vigilância.
— É Mercant! O que houve na galeria inferior?
— Alarma de radar no setor A, coronel.
— O que foi que desencadeou?
— Não sabemos coronel. Captei todo o setor na tela
de imagem que tenho diante de mim, mas não vejo nada
de anormal.
— Entrou em contato com as salas do setor?
— Sim, coronel. Mas ninguém viu nada de
extraordinário.
Mercant refletiu. O setor A era o primeiro a partir
dos elevadores. Se alguém tivesse vindo de cima...
— Está bem! — disse com a voz áspera. — Pode
suspender o alarma.
A sereia voltou a uivar no corredor. Mercant saiu em
companhia de O’Healey e abriu a porta na qual dois
minutos antes conversara com Zimmermann.
Este e o sargento Threash continuavam no mesmo
lugar.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Mercant
laconicamente.
— Nada, coronel. Permite que lhe pergunte...
— Há um fantasma por aí — respondeu Mercant
com um sorriso. — Um homem que sabe tornar-se
invisível.
Passando por Zimmermann, avançou cautelosamente
pela galeria. Zimmermann e os dois sargentos fizeram
menção de segui-lo, mas Mercant fez sinal para que
continuassem onde estavam.
Uma das portas do lado esquerdo abriu-se. Com um
gesto zangado, Mercant fez com que o homem que
pretendia sair para o corredor voltasse.
Subitamente parou como se tivesse encontrado
alguma coisa. Voltou o rosto para o chão, depois para
cima. Finalmente virou-se e voltou com um sorriso no
rosto.
— Acho que fizemos papel de palhaço — disse em
tom alegre. — Não há nada. Zimmermann!
— Sim, coronel!
— Mande esse pessoal das impressões digitais para
casa. Acho que o caso será esclarecido de outra forma.
— Sim, senhor.
— O’Healey e Threash, voltem aos seus postos.
O’Healey, o senhor me apresentará o relatório na hora de
costume.
Voltou ao seu gabinete, sem dar atenção aos rostos
espantados que deixou para trás.
Cautelosamente abriu a porta. Um sorriso de
contentamento passou pelo seu rosto. Foi até a mesa,
afundou na poltrona e abriu uma das gavetas. Tirou uma
pesada pistola.
Apontou a arma para um ponto situado entre a porta
e o armário mais próximo. Depois disse:
— Seja quem for o senhor, pode tirar seu disfarce.
Não sei o que pretende aqui. Se quiser matar o velho
Mercant, é bom que saiba que ainda terei forças para
apertar o gatilho desta pistola. Já deve ter visto que sei
perfeitamente onde está. Então?
Passaram-se alguns segundos. Subitamente uma
espécie de nuvem começou a formar-se no lugar para o
qual Mercant estava apontando sua arma. A nuvem
assumiu formas definidas e acabou transformando-se num
homem que envergava um traje estranho.
Mercant arregalou os olhos.
— Major Rhodan!
— Já não sou major! O major deu baixa. Meu Deus,
como foi que você descobriu?
Mercant sorriu.
— Dizem que descubro a presença de um homem
pelo faro. Nunca senti isso tanto como hoje. Sente-se,
Rhodan.
Rhodan sentou. Mercant ofereceu-lhe um cigarro.
Parecia inteiramente à vontade.
— Seu uniforme não o protege contra o radar, não é?
— disse depois de algum tempo.
— Não; e não sabia que aqui embaixo existem
detetores de radar.
— Assim mesmo é uma coisa extraordinária.
Rhodan descansou o cigarro no cinzeiro.
— Vamos logo ao que importa Mercant. A coisa é
muito mais séria do que você pensa.
— Muito bem; pode falar.
Rhodan relatou tudo que havia ocorrido na Lua.
Concluiu da seguinte forma:
— Procure compreender: o que virá por aí é uma
frota de naves robotizadas, e nenhuma delas estará
interessada em saber se tínhamos algum direito de destruir
o cruzador espacial dos arcônidas. Dispararão seus
mísseis e não temos como defender-nos.
Se Mercant ficou impressionado, não o deixou
163
perceber.
— E sua nave? Você não disse que está muito bem
equipada? Não pode repelir o ataque com ela?
— Está bem equipada sob os padrões terrenos —
respondeu Rhodan. — Mas as naves robotizadas que
estão a caminho têm um equipamento muito superior.
Faremos o que estiver ao nosso alcance, mas seria
conveniente que o planeta Terra se preparasse.
— E quem me garante que você não está blefando
para arrancar umas tantas vantagens para si e seus
comparsas? — retrucou Mercant.
— Ninguém lhe garante — respondeu Rhodan em
tom indiferente. — Acredite se quiser. Quando chegar o
momento, verá que não estou blefando.
Mercant abanou a cabeça. Ainda não se mostrava
impressionado. Parecia refletir. Na verdade, esforçou-se
por captar tudo que era possível dos pensamentos de
Rhodan. Mercant sabia perfeitamente que possuía um
princípio do dom da telepatia. Podia perceber um
pensamento muito intenso, desde que o indivíduo não
estivesse muito distante dele. Às vezes conseguia captar a
concepção geral de um fluxo de pensamentos, para saber
se era verdadeiro ou falso.
O cérebro de Rhodan tinha algo de muito especial.
Mercant conseguira perceber onde ele se encontrava; foi
assim que pôde localizá-lo no corredor e no escritório.
Mas Rhodan parecia ter posto uma tranca nos seus
pensamentos. Mercant não conseguiu captar nenhum
deles; mas percebeu que ele dizia a verdade.
Levantou-se.
— Esqueça-se disso. O que sugere?
— Divulgue o assunto entre as pessoas responsáveis
— respondeu Rhodan. — Diga-lhes o que nos espera e
faça-os compreender que só através da cooperação de
todos conseguiremos montar uma defesa eficiente. Mais
uma coisa: faça com que seja suspenso esse ridículo
bloqueio de suprimentos decretado contra nós. Ainda que
consigamos repelir o primeiro ataque, outros se seguirão.
Para manter-nos, precisaremos de pelo menos uma nave
de grande capacidade. Mesmo que as indústrias sejam
autorizadas imediatamente a iniciar os fornecimentos,
levaremos alguns meses para montar uma nave com as
matérias-primas e os produtos semiacabados que
recebermos. Se tivermos de arranjar o material às
escondidas, levaremos dois anos. Mercant olhou para o
chão.
— Farei o possível, Rhodan. Sabe o que está
pedindo de mim? Imagine só! Chego a Washington e digo
ao pessoal: Escutem, Rhodan encontrou na Lua um
hiperemissor que emite sinais de emergência. Dentro de
quinze dias o mais tardar chegará uma frota de naves
robotizadas e bombardeará a Terra. Rhodan quer que
suspendam todo e qualquer embargo contra seu grupo. Já
pensou no que dirá essa gente?
Como um movimento discreto Rhodan ativou o
hipnorradiador oculto sob seu traje.
— Mercant, você tem uma influência pessoal
extraordinária — disse com a voz baixa, mas em tom
penetrante, fitando os olhos de seu interlocutor. — Usará
essa influência para convencer aquela gente. Tomará
todas as providências para que os preparativos de defesa
sejam iniciados sem a menor demora. Compreendeu
Mercant? Não se dirija ao Senado, mas ao Presidente.
Fale com as pessoas que confiam em você pelas suas
qualidades pessoais, não por ser chefe do Serviço Secreto.
Entendido?
Mercant confirmou com um movimento dócil da
cabeça. Nem se deu conta de que, até então, ninguém se
atrevera a falar-lhe nesse tom, isso porque a incumbência
transmitida por Rhodan era de natureza pós-hipnótica.
Mercant não poderia deixar de cumpri-la à risca.
Rhodan descontraiu-se.
Libertou Mercant da constrição mental a que o
submetera.
— Ficarei muito grato se puder conduzir-me em
segurança até lá em cima.
Mercant abriu a porta.
— Enquanto estiver comigo, ninguém o deterá.
Enquanto passavam pela galeria, Mercant disse:
— Terei de manter contato com você, Rhodan.
Instrua o capitão Klein a transmitir qualquer comunicação
dirigida a você pelo código ANP. Não se esquecerá?
Rhodan estacou. Mercant sorriu quando notou sua
surpresa.
— A quem devo instruir? — perguntou Rhodan. —
Klein? O capitão Klein?
— Isso mesmo.
— Como sabe que trabalha conosco?
— Não sei — respondeu Mercant. — Apenas
suponho. É como lhe digo: farejo uma porção de coisas
nas pessoas.
Rhodan dominou o espanto.
— Klein ficará satisfeito em saber disso. Anda com
um medo terrível de uma lavagem cerebral.
Mercant riu.
— Não deve ter medo. Continuo a considerá-lo um
dos melhores elementos de que disponho.
Quando chegaram ao elevador, os guardas,
espantados, fizeram continência. Rhodan perguntou em
voz baixa:
— Você poderia explicar isso, Mercant? Quero
dizer, sua atitude para com Klein.
Mercant hesitou, mas acabou dando uma resposta
franca e singela:
— Estou convencido de que a humanidade devia
colaborar com você. Acredito que não quer nada de
condenável, e que seria de vantagem para todo mundo se
fizéssemos as pazes com a Terceira Potência.
Rhodan encarou-o estupefato. Quando o elevador
chegou ao décimo quinto andar, disse:
— Obrigado, Mercant!
VII
Allan D. Mercant era uma das pessoas que o
Presidente dos Estados Unidos recebia a qualquer hora.
Quanto à soma dos poderes que enfeixavam em suas
mãos, nenhum dos dois ficava devendo nada ao outro.
Desta vez, porém, Mercant via-se diante de um caso
especial, no qual precisava do auxílio do Presidente. Só
este tinha o privilégio de desencadear um alarma nuclear.
O Presidente convocara seu conselheiro pessoal para
a conferência. Tal qual Mercant, Wildinger era um dos
homens do mundo livre dotados de maior dose de sangue-
frio.
164
Mercant ainda não conseguira convencer o
Presidente.
— Ninguém há de exigir que eu dê o alarma nuclear
com base numa simples suspeita, atirando o dinheiro do
povo pela janela — protestou o Presidente. — Sabe que
um ato desses nos custa um bilhão de dólares?
Mercant sacudiu a cabeça.
— Não sabia. Mas também não sabia que em um
caso desses, isso é tão importante — disse em tom
indiferente.
— Wildinger! Abra a boca!
Até então, Wildinger se mantivera confortavelmente
reclinado na sua poltrona. Agora deslocou o corpo para
frente, apoiando os cotovelos na mesa.
— É difícil dar um conselho — disse. — É bem
possível que economizemos um bilhão de dólares, para
sacrificar a vida dentro de poucos dias. Mas também é
possível que o mais acertado seja não desencadear o
alarma. Enquanto Mercant não nos fornecer informações
mais precisas, nada podemos aventurar com uma
probabilidade razoável, muito menos com um mínimo de
certeza.
Acendeu um cigarro e prosseguiu:
— Poderíamos adotar uma solução conciliatória.
Deixaríamos tudo preparado, para que o alarma pudesse
ser desencadeado num tempo muito breve. Dessa forma
só gastamos a décima parte e conservamos nossa
liberdade de movimentos.
Mercant suspirou aliviado. Desde o início não
esperara conseguir mais que isso. Insistira no alarma, para
obter, ao menos, os preparativos.
O Presidente concordou com a sugestão que acabara
de ser formulada. Mercant parecia indeciso; consentiu
com uma expressão preocupada no rosto.
— Informarei os demais interessados — disse ao
levantar-se. — Não quero que acreditem que estamos
preparando uma guerra às escondidas.
Os “demais interessados” eram os homens de
Pequim e Moscou. Johnston nada objetou contra as
intenções de Mercant.
* * * Em Pequim e Moscou o aviso de Mercant provocou
o mesmo espanto que em Washington. Todavia, os
agentes informaram que realmente o mundo ocidental se
preparava para um alarma nuclear.
Para a manutenção do equilíbrio das forças tornava-
se indispensável que as duas outras grandes potências
seguissem o exemplo. Fizeram-no sem saber o que estava
acontecendo.
A população não foi informada. Na Terra reinava a
calma.
* * *
A nave dos arcônidas voltou à base, onde os robôs
estavam concluindo seu trabalho.
Tako Kakuta regressara um dia antes. Trouxera a
notícia do hiperemissor, que estava prestes a fazer desabar
a desgraça sobre a Terra. Manoli e Haggard, isolados de
outras notícias, tinham chegado ao auge do nervosismo
quando a nave pousou junto à Stardust.
Rhodan chamou-os e informou-os de todos os
detalhes. Para Manoli e o australiano, que não dispunham
dos conhecimentos admiráveis de Rhodan e Bell, a notícia
do perigo que os ameaçava foi um choque. Participaram
calados e cabisbaixos da conferência dos membros da
Terceira Potência, que Rhodan fez realizar
imediatamente.
Também Thora manteve-se calada, mas não
cabisbaixa. O triunfo continuava a brilhar nos seus olhos.
Rhodan a compreendia. Estava para chegar o dia em que
não dependeria mais da Terra. A nave decolaria para
escapar ao ataque iminente, e uma das naves robotizadas
colocaria a bordo o único remanescente aproveitável do
cruzador dos arcônidas, garantindo a todos o regresso a
Árcon.
Rhodan abriu a conferência com as seguintes
palavras:
— Sabemos perfeitamente que não podemos exercer
qualquer influência sobre as naves robotizadas. Em outras
palavras, não temos nenhuma possibilidade de impedir
que desencadeiem o ataque contra a Terra. A reação das
naves robotizadas a um sinal de emergência processa-se
de tal maneira que o inimigo cujo ataque deu origem à
mensagem não tem a menor possibilidade de subtrair-se
às medidas punitivas. Portanto, não devemos quebrar a
cabeça com isso. A pergunta que tem de ser respondida é
esta: temos alguma possibilidade de atacar os robôs antes
que transformem a Terra num montão de cinzas?
A pergunta ficou no ar. Só Thora, Crest, Bell e
Rhodan estavam em condições de conceber qualquer ideia
a respeito. Tako, Haggard e Manoli não possuíam a
capacidade necessária para isso. Uma das quatro pessoas
que possuía essa capacidade — Thora — encerrou-se num
obstinado mutismo. Um segundo, Crest, estava com a
capacidade de raciocínio perturbada em virtude de ideias
preconcebidas sobre a fatalidade da situação. Bell e
Rhodan eram os únicos que podiam empenhar toda a
capacidade intelectual na solução do problema.
— Vamos encarar a situação sob o ponto de vista
tático — sugeriu Bell. — Segundo o código de
emergência, devemos contar com a presença de cinco
naves. O que nos interessa saber é como se comporta uma
nave robotizada.
“Se ficarmos aqui sem fazer nada, aguardando os
acontecimentos, se dirigirão em primeiro lugar ao
cruzador destroçado, descobrirão a causa de sua
destruição, verificarão que essa causa se localiza na Terra
e atacarão nosso planeta. As naves robotizadas do Império
Galático pensam em termos de mundos. Não devemos
esperar que procurassem saber se três foguetes provêm da
China, da Rússia ou do Ocidente. Destruirão a Terra, não
esta ou aquela nação.
“E se interferirmos com os robôs? O que farão as
cinco naves robotizadas ao constatarem que o inimigo
ainda se encontra nas proximidades do alvo destruído? O
atacarão. Sabemos, ou melhor, quatro de nós sabem que
os robôs possuem elevada habilidade tática. Não se
lançarão todos de vez na perseguição de uma navezinha
como a nossa. Calcularão que uma das suas naves será
suficiente para nos destruir.”
“Acho que aí está nossa única chance. Seria uma
temeridade lutar contra cinco naves ao mesmo tempo.
Mas se conseguirmos separá-las, para lidar com uma de
cada vez, a situação mudará de figura”.
Rhodan concordou. A ideia até chegou a despertar
Crest da sua letargia. Via-se que recobrava as esperanças.
Thora continuou calada. Mas parecia que já não se
165
sentia tão segura.
Continuaram a discutir o plano de Reginald Bell.
Rhodan acrescentou alguns detalhes. Assim surgiu um
projeto, que poderia ser introduzido nos computadores
para ser interpretado. Rhodan traduziu-o em impulsos
registrados em fitas que foram colocadas nos autômatos.
Dessa forma seria informado sobre qualquer erro e
poderia realizar as correções que se tornassem
necessárias.
* * *
Na noite daquele dia, Rhodan teve uma palestra
muito estranha. De tarde, o capitão Klein transmitira a
informação de que nos três blocos de superpotências da
Terra estavam sendo realizados preparativos para um
alarma nuclear, a fim de que as áreas sujeitas a ataque
pudessem ser evacuadas em poucas horas. Rhodan ficou
satisfeito ao saber disso. A partir da localização ótica das
naves robotizadas, que sem dúvida estariam imunes à
localização pelo radar, tal qual a nave auxiliar, ainda
passariam algumas horas até que descobrissem o que
havia acontecido na Lua e iniciassem o ataque à Terra.
À noite, recebeu a visita de Thora. Era a primeira
vez que ela entrava em seu camarote.
Rhodan ficou perplexo, tão perplexo que ela notou.
— É de admirar, não é? — disse Thora com uma
ponta de ironia.
— É verdade! — confirmou Rhodan. — O que a traz
aqui?
— Quero fazer-lhe uma proposta.
Rhodan apontou para uma poltrona.
— Queria sentar. Não imagina que prazer eu sinto,
ao ouvi-la.
Thora entesou o corpo, mas não havia o menor tom
de zombaria nas palavras que ouvira. Sentou na poltrona
que Rhodan lhe oferecera e reclinou-se profundamente.
— Dentro de cinco ou seis dias — principiou Thora
— seu belo sonho da humanidade unida e da herança do
Império Galático terá chegado ao fim.
Rhodan não a interrompeu, embora não concordasse
com ela.
— Dentro de poucos dias — prosseguiu — nossos
cruzadores robotizados chegarão, descobrirão as causas
da destruição de nossa nave e transformarão a Terra num
montão de rochas altamente radioativas — a Terra e todos
que vivem nela. Existem algumas pessoas que merecem
ser salvas da catástrofe. Você é uma dessas pessoas.
Rhodan sobressaltou-se. Inclinou o corpo para
frente, como se pudesse perseguir as palavras para voltar
a introduzem-las no ouvido.
— Eu?
Thora confirmou com um gesto enfático.
— Sim, você. Talvez ainda seu companheiro Bell,
que também recebeu nosso treinamento, e Haggard, que
sabe curar a leucemia, e finalmente Tako Kakuta, por
causa de suas faculdades extraordinárias. Ofereço-lhes a
salvação. Minha posição de comandante de uma nave
exploradora me dá esse direito. Irão a Árcon conosco e lá
encontraremos uma maneira de aproveitá-los.
Rhodan começou a desconfiar do que havia atrás
disso.
— Por que acha que justamente nós merecemos ser
salvos? — perguntou.
— É por causa das faculdades que possuem —
respondeu Thora prontamente. — Representariam uma
aquisição valiosa para o Império. Poderiam ser utilizados
em setores nos quais é necessária uma boa dose de
energia. Dispõem dos conhecimentos necessários. Ainda
poderíamos transmitir esses conhecimentos a Tako e
Haggard.
Rhodan ficou em silêncio.
— Será que não pensa em utilizar-nos para criar uma
nova raça?
Thora não percebeu o tom de sua voz.
— Não acredito — respondeu Thora com voz mais
fria que antes — que qualquer mulher arcônida se
prestasse a manter relações com um ser terreno.
Rhodan confirmou com um movimento de cabeça e
esperou.
Thora dispunha de uma extraordinária reserva de
paciência. Ela levou uns quinze minutos para perguntar:
— Então?
Rhodan levantou-se. Foi para junto da tela que
substituía a janela e olhou para a imensidão de areia do
deserto de Gobi. As estrelas espalhavam um brilho
mortiço e produziam sombras difusas, que faziam os
sulcos feitos pelo vento parecerem mais fundos do que
realmente eram.
— Ouça Thora! — disse depois de algum tempo. —
Para mim, uma mão de areia deste deserto vale mais que
todo o seu império podre. Não tenho o menor interesse
em ocupar um cargo mais ou menos importante nele. A
única coisa que me preocupa é a Terra. Quer saber por
quê?
Girou sobre os saltos dos sapatos.
— Não teremos de esperar muito; apenas uns
trezentos ou quatrocentos anos, que afinal não
representam nada em comparação com o longo caminho
que trilhamos desde a Idade da Pedra, para que o monturo
do seu império nos caia nas mãos em troca de nada. Não
serei eu quem vai ensinar aos arcônidas os truques através
dos quais poderão perturbar o progresso da humanidade
terrena. Perturbar, não impedir.
Deu dois passos em sua direção.
Thora sentiu-se tomada por uma fúria cruel. Quis
sair para deixá-lo falando só, mas aquela voz a prendia.
Foi a primeira vez que Rhodan, sem que o soubesse,
colocou nas palavras dirigidas à mulher toda a força de
persuasão que lhe fora conferida pelo treinamento
hipnótico.
— Preste atenção — prosseguiu. — O que
acontecerá se não conseguirmos rechaçar suas naves
robotizadas? Atacarão a Terra e a destruirão. Mas sempre
sobrarão alguns homens — cem, mil, dez mil ou um
milhão, pouco importa. Esses homens nunca se
esquecerão do que aconteceu aos demais. Cuidarão para
que nada de semelhante aconteça a eles ou aos seus
descendentes. Acho que você ainda não conhece a energia
que possuímos. Dentro de dois mil anos a Terra voltará a
ser o que é hoje. E o Império Galáctico, que já está podre
até a medula dos ossos, terá um inimigo encarniçado
nessa Terra. E não haverá a menor dúvida de como
terminará essa inimizade. Até onde atingem nossas
recordações, sempre combatemos nossos inimigos até
matá-los. Nesse caso acontecerá à mesma coisa, e o
controle da Galáxia passará às nossas mãos.
166
Thora reuniu todas as forças para sair. Mas antes que
atingisse a escotilha, Rhodan voltou a falar, deixando-a
como que pregada ao solo.
— As coisas ainda não chegaram a este ponto. Você
sabe perfeitamente que temos uma possibilidade real de
destruir as naves robotizadas. No início, pensarão que
somos sobreviventes inofensivos da expedição espacial.
Talvez até nos recebam a bordo antes de atacar a Terra.
Assim teremos a chance de que precisamos. A Terra ainda
não está perdida; falta muito para isso.
Thora deu mais dois passos. Já se encontrava perto
da escotilha, quando Rhodan deu um grito:
— Pare!
A energia brutal da voz do terreno, que quase
chegava a exercer uma constrição física, causou-lhe dor
de cabeça. Virou-se rapidamente.
Ficou espantada ao ver que Rhodan sorria.
— Aqui na Terra conhecemos casos semelhantes aos
seus. Certas mocinhas criadas em casas ricas e bem
cuidadas ficam apavoradas ao saberem que nem todos
vivem como elas e seus pais; há muita gente pobre que
tem de lutar pela vida.
“Você é igualzinha a essas moças. Acha que deve
desprezar-nos só por sermos mais jovens que sua raça. No
dia em que você chegar perto de mim para confessar que
nestas últimas semanas tem sido muito tola, eu lhe direi
quanto a amo”.
Thora ficou perplexa. Perdeu alguns segundos
preciosos antes de decidir se devia responder ou não.
Finalmente o orgulho venceu. Virou-se
abruptamente e saiu.
A insinuação chocara-a mais do que ela mesma
gostaria de admitir. No planeta de Árcon as regras do jogo
do amor haviam sido adaptadas no curso dos milênios aos
ditames da inteligência. Se em Árcon um homem fizesse
uma declaração de amor a uma mulher que pouco antes
insultara, isso seria encarado como sintoma de doença
mental.
Apesar da raiva que a dominava, Thora não deixou
de reconhecer que na Terra não se podiam aplicar os
mesmos padrões. Compreendeu que a declaração que
Rhodan proferira naquele instante constituía parte da
manobra que engendrara. Sentiu-se impotente diante
desse tipo de ilogismo programado.
Pela primeira vez reconheceu com toda a clareza —
e com todo o pavor que esse conhecimento lhe despertava
— a juventude incrível da raça terrena e as forças
espantosas e assustadoras que se ocultavam detrás dessa
juventude.
* * * A sensação surgiu dali a dois dias. Rhodan não
tivera mais notícias de Mercant. Isso significava que na
Terra não havia maiores novidades. Os dirigentes
aguardavam a concretização das ameaças vindas de fora.
Manoli operava o rádio. Os robôs tinham concluído
seu trabalho, e voltaram para os depósitos onde Crest os
desativou.
Thora aparecia raras vezes. Evitava Rhodan. Este
compreendia.
Bell e Haggard dedicavam-se ao jogo de xadrez.
Geralmente Manoli não sabia o que fazer. A nave
auxiliar possuía receptores excelentes. Captava tudo sem
a menor dificuldade, desde a emissora da polícia de
Pequim até as notícias transmitidas pela estação espacial
Freedom I e os programas de ondas longas das emissoras
inter-regionais. E, como nas últimas semanas as notícias
sensacionais fossem uma raridade, o cargo de
radioperador não oferecia maiores atrativos.
Mas, nesse dia, as coisas mudaram por completo.
Manoli estava ouvindo um programa da estação espacial
na faixa de 305 megahertz. Subitamente o mesmo foi
interrompido para a transmissão de um comunicado
urgente:
— Esquilo para raposa, esquilo para raposa.
Localizamos objeto não identificável na direção Pi dois-
um-zero. Teta zero-nove-cinco. Distância duas vezes dez
na sexta potência metros, velocidade cerca de duas vezes
dez na quarta potência metros por segundo, forma
indefinível. Objeto prossegue em direção à Lua. Fim.
Raposa confirmou imediatamente e deu a seguinte
indicação:
— Pedimos que comunicados subsequentes sejam
transmitidos em código.
Manoli taquigrafara o comunicado. Arrancou a folha
do bloco e saiu correndo. Percorreu o corredor às
escorregadelas. Mal a escotilha do camarote de Rhodan se
abriu, precipitou-se para dentro e leu a notícia para
Rhodan. Este ficou muito mais exaltado do que Manoli
esperava.
— É inacreditável!
Sem dar a menor atenção a Manoli, que nada
entendia do assunto, ligou para Crest. Só após isso voltou
a falar com o médico para dar-lhe uma incumbência:
— Avise Tako para que preste atenção aos sinais de
Klein. Daqui a pouco receberemos informações mais
detalhadas.
Manoli confirmou com um movimento de cabeça e
saiu correndo. Depois de algum tempo Crest chegou.
— A estação espacial anuncia um corpo estranho
vindo da órbita de Marte, que se dirige à Lua — explicou
Rhodan com a voz tranquila. — Gostaria de saber o que
acha disso.
Crest mostrou-se interessado.
— Dispõe de outras informações?
— A velocidade é de 2 vezes 104 m/seg.
— Qual é a forma do objeto?
— Desconhecida.
Crest olhou-o.
— Face ao treinamento que recebeu, deve supor a
mesma coisa que eu.
Rhodan fez que sim.
— Qual é a sua suposição?
— A base situada em Mira-4 não se encontra mais
em poder do Império. O que vem por aí não é nenhum
cruzador robotizado, mas uma nave pertencente a alguma
unidade rebelde da frota colonial, pilotada por uma
tripulação inexperiente.
Crest confirmou.
— Tomara que seja só essa — acrescentou Rhodan.
Dali a meia hora, Klein forneceu outras informações.
O objeto estranho aproximara-se mais da estação espacial,
que pôde identificar sua forma. Enquanto Klein
conversava com Tako Kakuta no limite da cúpula
energética, as notícias chegavam constantemente e eram
logo decifradas por Klein, que trouxera a chave de
decodificação, e transmitidas à nave.
167
O objeto estranho tinha a forma de um fuso. Era
parecido com dois torpedos cortados ao meio e ligados
pelas extremidades pontudas.
À medida que Klein decifrava as mensagens,
Rhodan ouvia. Sabia que as naves em forma de fuso
pertenciam aos tipos mais antigos da frota do Império,
usados quase exclusivamente nos mundos coloniais. Isso
confirmava a suposição de que o objeto que fora
localizado não podia ser um cruzador robotizado.
Crest acrescentou:
— Os habitantes de Fantan possuem várias naves em
forma de fuso, porque não estão em condições de adquirir
veículos mais dispendiosos. Aposto — sorriu para
Rhodan e procurou descobrir se este ficara satisfeito com
a expressão tomada de empréstimo à fala dos terrenos —
aposto que é uma nave de Fantan. O grupo de Fantan não
fica muito distante da base de Mira. É bem possível que
tenham conquistado Mira-4 e captado o sinal de
emergência.
O que mais reforçava essa suposição era o fato de
que a nave em forma de fuso não se resguardava contra o
radar, nem contra a localização ótica. Além disso,
aproximava-se da Lua com uma lentidão incrível, como
se estivesse só no mundo e não precisasse recear coisa
alguma.
Nenhum outro objeto foi localizado.
Thora pusera-se em comunicação com o circuito e
ouvira tudo que o capitão Klein informara lá de fora.
Assim que Tako voltou, Rhodan pediu-lhe que fosse ao
camarote de Thora para solicitar uma entrevista destinada
a esclarecer a situação. O japonês encontrou a
comandante caída ao solo. Estava inconsciente.
A decepção fora um golpe pesado demais para ela.
VIII
Os acontecimentos começaram a precipitar-se. Dali
à uma hora o capitão Klein voltou a chamar:
— Os chefes do Serviço de Defesa pedem uma
conferência com o senhor Rhodan.
Rhodan estava estupefato.
— Os chefes? — perguntou. — Que chefes são
estes?
Klein parecia divertir-se com o espanto de Rhodan.
— Há alguns minutos existe um comitê de
segurança internacional. Os dirigentes são Ivan Kosselov,
do Serviço Secreto do Bloco Oriental, Mao Tsen, do
Serviço Secreto da Federação Asiática, e Allan D.
Mercant.
Rhodan compreendeu a situação.
— Estou pronto para receber os cavalheiros a
qualquer momento. A que hora poderão estar aqui?
— Todos eles são de opinião que o assunto é muito
urgente. Mercant já se encontra em Pequim. Ele e Mao
Tsen não levarão mais que quarenta e cinco minutos na
viagem até aqui. E Kosselov também não demorará mais
que isso.
Rhodan refletiu.
— Ouça capitão! Anuncie essa gente assim que
tiverem chegado. Se necessário deixarei que entrem, um
por um.
Dali à uma hora os chefes dos serviços secretos
terrenos compareceram à nave auxiliar dos arcônidas.
Rhodan pediu que Crest participasse da conferência.
Soube que a evacuação da população e dos
equipamentos industriais mais importantes estava sendo
levada avante a todo vapor.
— Gostaríamos de saber — disse Mercant — para
que sirvirá todas essas providências. Será que o ataque
das naves robotizadas não transformará a Terra num
reator superativado?
Rhodan expôs as suposições a que ele e Crest
haviam chegado em relação à nave.
— Mostro-lhes as coisas como realmente são —
acrescentou. — Temos uma boa chance de rechaçar esse
atacante com um único tiro bem dirigido. Mas nem por
isso acho que seria aconselhável suspender o alarma. Em
primeiro lugar, apesar de tudo existe a possibilidade de
uma falha. Depois, não teremos de lidar apenas com essa
nave. Mesmo que consigamos destruí-la, outras, que
também captaram o sinal de emergência, surgirão. Se
conseguirmos nos livrar do primeiro atacante teremos
uma pausa de algumas semanas, no máximo alguns
meses. E nesse intervalo teremos de preparar-nos para
enfrentar o novo ataque sem o menor risco.
Olhou para Mercant.
— O senhor sabe a que me refiro. A Terra não está
em condições de manter o embargo que pesa sobre nós.
Somos a única coisa que pode fazer alguma coisa pela
defesa da Terra. Precisamos ter plena liberdade de ação;
só assim poderemos explorar todas as possibilidades que
se oferecem.
Mercant olhou para os seus acompanhantes. Depois
voltou a encarar Rhodan.
— No setor da OTAN, consideramos findo o
embargo. Depositamos nossa confiança irrestrita no
senhor em tudo aquilo que diz respeito às medidas de
defesa contra um ataque vindo de fora.
Rhodan encarou-o; parecia surpreso. Kosselov falou
em seguida:
— Nosso governo coloca-se na mesma posição no
que diz respeito ao senhor.
Mao Tsen concordou com um sorriso:
— A Federação Asiática assume a mesma posição,
senhor Rhodan.
Rhodan oferecia o quadro de uma estupefação
incontida. Finalmente um sorriso esboçou-se nos cantos
da sua boca. Com um ligeiro tom de ironia na voz disse:
— Cavalheiros! No instante em que seus governos
estiverem dispostos a estender sua confiança para além
dos preparativos de defesa contra um ataque vindo de
fora, no instante em que depositarem confiança plena em
nós, em todos os setores, a Terceira Potência deixará de
manter-se isolada. Estaremos dispostos a abrir nossa base
e a colocar aquilo que temos à disposição de toda a
Humanidade.
Passaram a discutir os detalhes. Rhodan explicou de
que maneira pretendia rechaçar lá fora, no espaço, o
ataque da nave em forma de fuso. Deu instruções sobre as
medidas de proteção à população, que deveriam ser
adotadas se não conseguisse seu intento. Mercant,
Kosselov e Mao Tsen faziam anotações.
Ao concluir, disse:
— Não sei se já se deram conta de que não poderão
contar mais com o apoio da Terceira Potência caso falhe
168
nossa tentativa de destruir a nave no espaço ou sobre a
Lua. Estaremos empenhados numa luta de vida e morte.
De qualquer maneira, temos de encarar essa possibilidade.
Por isso anotei várias coisas que julgo importantes para a
Humanidade. O documento será depositado num lugar
adequado a fim de que possa resistir ao eventual ataque a
Terra. Acho que minhas informações lhes serão úteis. Se
a Terra for destroçada, as anotações representarão um
bom ponto de partida para os sobreviventes. Nunca mais
devemos esquecer que não estamos sós no universo.
Temos de conformar-nos com a existência de outras raças
e devemos preparar-nos para a eventualidade de que
algumas delas nos sejam hostis.
“Peço que os acontecimentos que lhes transmito
através das minhas anotações sejam encarados nesta
perspectiva.”
* * *
As anotações representaram um trabalho extenso,
cuja confecção consumiu horas preciosas de Rhodan. A
nave atingira a órbita lunar e realizava evoluções a uma
distância constante de dez mil quilômetros do satélite da
Terra.
Rhodan teve uma ligeira palestra com seus
companheiros. Thora manteve-se afastada. Precisava de
sossego. A sugestão de Rhodan, de que Tako Kakuta e o
Dr. Manoli permanecessem na Terra, mereceu apoio de
todos. Na cúpula energética ficariam protegidos contra
qualquer agressão, e contra as consequências de uma
eventual contaminação radioativa. Tako guardou as
anotações de Rhodan, prometendo entregá-las à
humanidade — ou aos seus remanescentes — somente
quando não restasse a menor dúvida de que a nave dos
arcônidas fora destruída na luta contra os seres estranhos.
Tako e Manoli instalaram-se na Stardust. Rhodan
decolou imediatamente.
Subiu a cem quilômetros. O cumprimento dos seus
objetivos não poderia ficar a cargo dos dispositivos
automáticos. Bell serviu de copiloto. Haggard e Crest
permaneceram na sala de comando.
A nave permaneceu imóvel. Os bulbos das lâmpadas
de controle automático emitiam um brilho negro. Uma
pequena imagem projetada numa tela embutida no painel
indicava a posição da nave em relação à superfície da
Terra. Todos os instrumentos, com exceção do altímetro,
indicavam o valor zero.
Só no painel de Bell se via a luz de cinco lâmpadas
verdes. Bell virou a cabeça e disse tranquilo:
— Reatores a plena potência, chefe!
Rhodan confirmou com um movimento de cabeça,
sem se voltar. Nos compartimentos de máquinas, cinco
reatores de fusão, que eram verdadeiros gigantes na sua
classe, forneciam energia a um depósito, que a liberaria
no momento adequado.
A energia armazenada seria suficiente para envolver
a nave num campo hipergravitacional que a isolaria do
ambiente exterior e — para utilizarmos uma imagem — a
retiraria do complexo quadridimensional tempo-espaço.
Um corpo circundado por um campo hipergravitacional
deixava de existir no espaço normal; era trasladado para
uma ordem espacial superior, onde prevaleciam as
mesmas leis do espaço ao qual acabava de subtrair-se,
mas os princípios da Física estavam sujeitos a uma
interpretação totalmente diversa. Depois de ter adquirido
os conhecimentos dos arcônidas através do treinamento
hipnótico, Rhodan passou a designar esse superespaço
como “o caminho situado atrás da curva espacial”. O
problema do hipervôo encontrava sua explicação nesse
contexto. Um corpo, como, por exemplo, uma nave,
rompia a superfície convexa do conjunto tempo-espaço,
prosseguia em trajetória reta e, uma vez atingido o
destino, voltava a ingressar no citado conjunto.
Até então, ninguém tentara vencer um trajeto de
pouco mais de um segundo-luz num hipersalto dessa
espécie. No presente caso havia uma dificuldade. A nave
auxiliar, pequena e dotada de pouca energia em
comparação com a nave principal, levaria algum tempo
para acumular energia depois de terminado o salto. Os
depósitos haviam sido dimensionados de tal forma que
apenas eram suficientes à dupla travessia da superfície do
conjunto tempo-espaço. Terminado o salto, teria de haver
uma pausa antes que a nave pudesse reencetar a viagem.
Se o salto não atingisse o lugar programado, essa pausa
seria aproveitada pelo inimigo, que estaria em condições
de localizar a nave e colocar-se em posição favorável para
o combate.
Pelos cálculos de Rhodan, o salto terminaria na
sombra projetada pela Lua. A nave dos habitantes de
Fantan prosseguia na mesma trajetória. Continuaria em
órbita lunar, dez mil quilômetros atrás da Lua. A nave
auxiliar surgiria à frente da Lua.
Rhodan moveu a mão em direção à tecla vermelha
que faria a nave dar o salto.
Apertou-a. A tecla deu um estalo e as telas de
imagem apagaram-se imediatamente.
Dali a um segundo voltaram a entrar em atividade. A
imagem era totalmente diferente. Diante da nave surgiu a
foice lunar, iluminada pelo sol que acabava de surgir
detrás da Terra.
— Alguma localização? — perguntou Rhodan.
— Nada! — respondeu Bell.
— Intensidade do salto?
— Correta.
Rhodan reclinou-se na poltrona. Dali a pouco se
virou e olhou para Crest, que estava radiante.
— Excelente! — disse.
Rhodan não descansou. Assim que terminaram os
cinco minutos de que os reatores precisavam para
reabastecer o depósito com a quantidade mínima de
energia, pôs a nave em movimento; em direção à Lua.
O resto foi brincadeira. Rhodan conduziu a nave
para um vale profundo, cheio de sombras. No centro deste
vale encontravam-se os destroços da nave dos arcônidas.
Estava convencido de que um dia os homens de Fantan se
arriscariam a aproximar-se do cruzador espacial. A nave
por ele tripulada correria um risco menor se aguardasse
esse momento.
Crest pedira que não fosse obrigado a desempenhar
qualquer papel nesse empreendimento. Rhodan
concordara por conhecer a mentalidade de um cientista,
de Árcon. A época em que os arcônidas eram uma raça
guerreira como os homens e construíram seu império,
ficava muito longe. A luta passara a ser uma coisa
terrível.
Rhodan manteve Haggard ocupado nos aparelhos de
localização, fáceis de operar, enquanto Bell permanecia a
postos nos instrumentos de pontaria. Ele mesmo manteve-
169
se no assento do piloto, pois era perfeitamente possível
que surgisse a necessidade de manobrar a nave.
O armamento da nave podia ser dividido em duas
categorias.
Havia as armas de grande alcance, isto é, até um
minuto-luz, e as de pequeno raio de ação. Face às suas
características as armas de longo alcance estavam
rigidamente fixadas ao corpo da nave; os projéteis
dispunham de dispositivos direcionais automáticos. Já as
armas de pequeno raio de ação eram móveis. Possuíam
um dispositivo de pontaria automático, mas também
podiam ser orientadas oticamente.
Rhodan não estava disposto a lançar mão dos
foguetes de grande alcance. Embora a nave de Fantan
fosse um veículo antiquado, equipado com campos
defensivos de reduzida potência era de todo provável, que
nesse exemplar, destinado a uma viagem tão arriscada,
tivessem sido introduzidos alguns aperfeiçoamentos. Um
foguete teleguiado podia ser localizado antes do tempo. E,
face à mentalidade de sua tripulação, a nave de Fantan
provavelmente se poria em fuga. Acontece que Rhodan
estava interessado numa vitória decisiva, não num triunfo
passageiro que deixasse em aberto o risco do retorno do
inimigo.
Passaram-se algumas horas. Crest deitara-se e
fechara os olhos.
Ninguém proferiu uma única palavra. Haggard
estava sentado diante dos instrumentos, mas estes não
revelavam coisa alguma. Bell permanecia no lugar que
poderia ser designado como o posto de combate, mas que
na verdade não passava de um painel com uma série de
botões e manivelas.
Bell abriu a boca uma única vez:
— Não estou gostando disso, chefe! Devíamos
decolar e atacá-los. Não gosto de atirar à traição em
alguém.
— Silêncio! — interrompeu Rhodan. — Não
podemos assumir qualquer risco. Você conhece essa gente
de Fantan, não conhece?
Depois disso não houve mais discussão. Algumas
horas se passaram. Rhodan teve vontade de levantar-se
para cuidar de Thora. Mas sabia perfeitamente que a
calma de um segundo não lhe permitiria tirar conclusões
sobre o caráter dos outros, ao menos nessa expedição.
* * *
— Localização! — anunciou Haggard com a voz
embaraçada.
Não disse mais nada.
— Quem sabe se você não quer nos dizer onde? Que
diabo! — resmungou Bell.
— Pi zero-um-cinco, Teta zero-três-zero. Distância
oitocentos mil metros.
Bell manipulou os instrumentos do painel.
— Velocidade?
— Cinquenta metros por segundo na direção Pi-
zero. Seguem em direção ao cruzador.
Rhodan virou-se.
— Que tal nossa posição, Bell?
— Favorável. Mas poderíamos subir mais alguns
metros em direção à beira do vale, para qualquer
eventualidade.
— Combinado!
A nave obedeceu ao comando. Deslizando rente ao
solo negro, subiu em direção ao cume das montanhas que
cercavam o vale.
— Pare! — disse Bell. — Assim está bom.
No mesmo instante a nave de Fantan surgiu na tela.
Rhodan examinou-a; parecia pensativo. Ainda se
encontrava a uma distância de cerca de oitocentos
quilômetros e a velocidade com que se aproximava não
era muito superior à de um automóvel. O pessoal de
Fantan estava desconfiado e, ao que parecia, achava que
devia aproximar-se sorrateiramente para não assumir um
risco excessivo.
A nave foi deslizando na altura do cume das
montanhas. Teriam de levantá-la um pouco para
ultrapassá-las. Embora a manobra pudesse ser completada
com alguns movimentos das chaves de comando, ela
exigiria um pouco de sua atenção. Seria, portanto, o
momento adequado de atacar.
Face à reduzida velocidade da nave de Fantan,
algumas horas poderiam passar-se até que isso
acontecesse. A cadeia de montanhas em que se
encontravam era uma das menores; a área por ela cercada
tinha um diâmetro de cem quilômetros.
Rhodan fazia votos de que dedicassem toda sua
atenção à cratera, não lançando os olhos para mais longe.
Não havia dúvida de que a parte superior da nave auxiliar
ultrapassava a cumeeira das montanhas por cerca de dois
metros. Era pouco em comparação com aquele complexo
de rochas, mas poderia ser o suficiente para um inimigo
atento.
Virou-se.
— O que pretende fazer? — perguntou a Bell.
Este apontou para um botão amarelo e uma
manivela.
— Usarei a neutralização do campo cristalino —
respondeu. — A única coisa que sobrará será uma névoa
turbilhonante de átomos de hidrogênio, carbono e alguns
metais.
Rhodan concordou com um movimento de cabeça.
— Qual será o tempo de bombardeio?
— Até que não sobre nada.
— Isso será necessário?
Bell mostrou-se surpreso.
— Por que não? Não convém assumir qualquer
risco.
— Gostaria de mostrar uma coisa a Haggard —
disse Rhodan. — Basta demolir a nave. Depois disso a
tripulação não representará mais qualquer perigo para nós.
— Está bem — concordou Bell. — Regularei a
duração do bombardeio para vinte segundos.
Haggard anunciou com a voz um tanto apressada:
— Aumentaram a velocidade. Cem metros por
segundo. Distância de seiscentos e cinquenta mil metros.
No mesmo instante acrescentou:
— O que pretende mostrar-me, Rhodan?
— Alguma coisa que lhe interessa muito. Aguarde!
A tensão aumentou, e o tempo demorou mais a
passar. A nave estranha cresceu na tela de imagem,
revelando suas dimensões imponentes. Rhodan calculou
seu comprimento em trezentos ou trezentos e cinqüenta
metros. No centro, que era o lugar mais fino, havia um
diâmetro de cerca de trinta metros. Não havia dúvida de
que, embora fosse antiquada, dispunha de armamento
170
mais poderoso que a nave dos arcônidas. Se não
conseguissem destruir aquela nave, o destino da Terra
estaria selado. O próprio Rhodan não estava tão confiante
a respeito dos acontecimentos que viriam depois como
procurara aparentar diante de Thora.
— Quatrocentos mil! — anunciou Haggard depois
de um silêncio interminável.
A uma distância de cem mil, Bell começaria a atirar.
Rhodan não acreditava que sua nave já tivesse sido
localizada. O temperamento do povo de Fantan não lhes
permitira prosseguir calmamente na viagem depois de
terem localizado um inimigo.
Todavia...
— Trezentos mil. Estão acelerando. Alguns minutos
depois:
— Frearam. Estão parados.
A reação de Rhodan foi imediata.
— Fogo! — ordenou.
Bell bateu na tecla do desintegrador e gritou:
— Vamos sair daqui! Precisamos subir!
Rhodan deu partida imediatamente.
Com um forte solavanco a nave elevou-se algumas
centenas de metros acima da cumeeira das montanhas.
Enquanto isso Bell atirava ininterruptamente.
Não havia a menor dúvida de que estava acertando.
Na tela de direção de tiro surgiu a imagem da nave
inimiga que se desintegrava. Não conseguia sair do lugar.
A estrutura cristalina do envoltório externo dissolveu-se.
A proa transformou-se em pó que no vácuo caiu ao solo
com uma velocidade espantosa. A arma de Bell foi
penetrando cada vez mais na estrutura, até atingir o centro
da nave inimiga.
Subitamente viram um raio ofuscante. Rhodan
fechou os olhos; ao abri-los viu que o panorama da tela
começou a dançar.
Ainda estavam atirando. Acertaram no envoltório
energético da nave, fazendo-a oscilar.
— Mais rápido! — rosnou para Bell.
Este não reagiu. Com uma atenção obstinada
orientou o raio direcional de descristalização, fazendo-o
prosseguir pelo envoltório da nave-fuso.
Outro tiro foi disparado pelo inimigo. Ricocheteou
no envoltório energético e mais uma vez fez oscilar a
nave. Por um momento o raio direcional operado por Bell
perdeu o alvo. Mas logo voltou a encontrá-lo e desta vez
destruiu-o por completo.
Nada restou do envoltório da nave-fuso. Os
geradores também foram destruídos. Os remanescentes,
formados por peças de equipamento, paredes divisórias,
escotilhas, instrumentos e os cadáveres da tripulação,
caíram em espiral.
Bell respirou profundamente.
— Pronto!
Rhodan deu partida na nave. Passou a pouca altura
sobre a cratera com os restos do cruzador espacial dos
arcônidas e aproximou-se do lugar em que fora destruída
a nave inimiga.
O serviço de Haggard junto aos instrumentos de
localização estava concluído. Bastante tenso, contemplava
as telas de imagem.
— Daqui não conseguirá enxergar nada — disse
Rhodan. — É preferível esperar até que pousemos.
Fez descer a nave no limite da área circular em que
havia caído a poeira metálica e os destroços da nave.
Fechou o capacete do traje especial e disse a
Haggard:
— Venha comigo!
Haggard não esperou que Rhodan repetisse o
convite. Saíram e em saltos largos voaram em direção ao
lugar em que se amontoavam os destroços da nave de
Fantan.
Não havia muita coisa para ver. A tripulação da nave
de Fantan mantivera os trajes espaciais abertos durante a
luta. A descompressão explosiva que se verificara no
momento da dissolução da parede externa da nave
esfacelara seus corpos juntamente com os trajes.
Haggard encontrou alguma coisa que parecia ser um
retalho de pele.
— É só isto? — perguntou um pouco desapontado.
Rhodan deu de ombros.
— Acho que com isso você já poderá fazer muita
coisa.
Voltaram à nave. Rhodan poderia dar mais uma
busca no cruzador espacial, para silenciar o emissor
automático de emergência, ou retornar a Terra para
informar a humanidade sobre o desfecho da luta que não
puderam observar, já que a mesma se desenrolara na face
oculta da Lua.
Optou pela última alternativa. Levado por forte
motivo: no instante em que a nave-fuso foi atacada, por
certo emitiu um sinal de emergência igual ou semelhante
ao do cruzador espacial. E esse sinal seria tão bem
orientado que chegaria ao receptor a que se destinava. Em
face de quê, Rhodan não estaria em condições de evitar
novos ataques com a simples desativação do emissor que
se encontrava no cruzador espacial.
Um jogo fora iniciado, um jogo que dali por diante
estabeleceria suas próprias regras e não mais poderia ser
influenciado por quem quer que fosse.
Rhodan viu nisso mais um motivo de apressar seu
retorno a Terra. Cada segundo tornara-se ainda mais
precioso que antes. O próximo inimigo a lançar-se ao
ataque seria muito mais numeroso e sagaz que aquele que
acabara de ser destruído.
* * *
Durante a viagem de volta só houve um
acontecimento excitante. Através dos supermicroscópios
montados no laboratório de bordo, Haggard descobriu
quão estranho era o retalho de pele dos homens de Fantan.
— Até mesmo em condições normais a pele deles
tem a consistência do couro e está coberta de pequenas
escamas — disse com a voz exaltada. — Não existe a
menor dúvida. E os pedaços de carne presos à pele
apresentam uma estrutura muito menos definida que a do
homem ou de qualquer animal conhecido.
Rhodan sorriu.
— Isso lhe permite tirar alguma conclusão,
Haggard?
Haggard confirmou com um rápido movimento de
cabeça.
— Deve haver uma diferença considerável entre nós
e os habitantes de Fantan, isso no terreno biológico.
— Tem alguma ideia de como é essa gente?
Haggard sacudiu a cabeça.
171
— Não; uns farrapos de pele não são suficientes para
isso.
— Pois imagine um cilindro de extremidades
arredondadas — disse Rhodan em tom professoral. —
Esse cilindro possui certa elasticidade e é recoberto de
escamas finas em toda extensão. Na parte superior
apresenta várias aberturas que para nós não passariam de
buracos escuros, mas, na realidade desempenham funções
tão diferenciadas como as da boca, dos olhos, dos ouvidos
e do nariz. O cilindro apresenta, em lugares variáveis, seis
membros entre os quais não se nota diferença. Servem à
locomoção, ao suprimento de alimentos e aos outros fins
que os homens alcançam com a utilização das mãos e dos
pés. Só que, nos habitantes de Fantan, não existe a menor
diferença entre mãos e pés. Os seis membros são
equivalentes.
“Os habitantes de Fantan são assexuados, Dr.
Haggard. Reproduzem-se por meio de certo tipo de broto,
que nem as plantas de um vaso”.
“São esses os habitantes de Fantan. Será que você
pensava que todos os seres inteligentes da Galáxia se
parecem comigo ou com Crest? Quando chegar a hora,
veremos raças irmãs mais nojentas que vermes ou sapos
dos pântanos.”
* * *
A notícia da vitória foi recebida na Terra com um
júbilo indescritível. O alarma nuclear foi suspenso
imediatamente, providenciando-se a volta das populações
às cidades.
A interrupção das atividades econômicas custara à
Terra cerca de oitenta bilhões de dólares, mas, em
compensação, a humanidade deu um grande passo em
direção à união dos homens.
No dia em que pousou, Perry Rhodan recebeu os
embaixadores extraordinários das três superpotências.
Vieram para transmitir-lhe em palavras exaltadas a
gratidão da humanidade. Cada um conferiu-lhe uma alta
condecoração em nome de seu país.
Sorrindo, Rhodan aguardou tranquilamente até que
chegasse a hora de usar a palavra.
— Sinto muito, cavalheiros — disse em tom sério —
que não posso partilhar sua alegria imensa. Talvez não
saibam, mas o confronto que tivemos com uma
inteligência estranha e hostil foi apenas o primeiro de uma
série. Tivemos sorte em repelir o ataque; foi só. Da
próxima vez, só a sorte não será suficiente.
“Sinto-me feliz por notar que a opinião pública
mundial aprova a atuação da Terceira Potência e até lhe
confere uma recompensa através destas altas
condecorações. (Haveria uma ponta de ironia em sua
voz?) Mas convém que deixem bem claro aos seus
governos que vencemos apenas a primeira batalha de uma
guerra que poderá consistir em mil batalhas ou mais.
Gostaria de encaixar na cabeça dos senhores e dos
responsáveis pelos destinos da humanidade que nestes
dias começará uma fase da história que perdurará por
vários séculos, ou talvez milênios. As deliberações que
forem tomadas hoje decidirão todo o porvir da
Humanidade”.
“Transmitam esta mensagem aos seus governos.
Digam-lhes que nunca terão um aliado mais leal que a
Terceira Potência, sempre que se tratar do bem de toda a
Humanidade”.
“Pleiteamos o reconhecimento diplomático e plena
liberdade de movimentos. Por enquanto somos os únicos
que podem tomar medidas eficazes contra o novo ataque
que nos espera.”
Fez uma pausa. Depois, condescendeu num sorriso.
— Trombeteiem esta mensagem pelo mundo afora
cavalheiros! Façam com que a humanidade compreenda
que se encontra no limiar de uma era nova e grandiosa de
sua história. Temos de pensar em termos de milênios, se
não quisermos perecer.
* * *
No dia seguinte chegou à primeira remessa de
chapas de plástico metalizado de Petersburg. Foi
transportada sem o menor contratempo, pelo caminho que
teria sido utilizado por qualquer comerciante que quisesse
transportar um lote de mercadorias inofensivas dos
Estados Unidos ao deserto de Gobi.
Rhodan viu nisso um sinal de que os governos
terrenos haviam correspondido prontamente aos seus
desejos. Tal fato reforçou-o na esperança de que dentro de
pouco tempo a humanidade compreenderia de que
energias imensas poderia dispor desde que se unisse.
Viu-se mais próximo do seu objetivo; do objetivo
provisório de uma Terra unificada. Ficou surpreso ao dar-
se conta do progresso enorme alcançado num tempo tão
curto.
Compreendia perfeitamente que a energia e a
rapidez dessa evolução não fora gerada por ela mesma. O
hiperemissor automático e a nave de Fantan atraída pelo
mesmo haviam sido fatores ponderáveis do processo de
unificação. Nos próximos dias faria sua quarta viagem à
Lua, para silenciar o emissor.
Na noite do mesmo dia, os embaixadores
extraordinários com que falara no dia anterior
entregaram-lhe um convite para uma conferência das
grandes potências mundiais.
Rhodan aceitou o convite. Ficou satisfeito em
perceber que no cérebro daqueles homens sua alocução
representara algo como um comando. Sem que o
percebessem, ficaram tão impressionados com os
argumentos de Rhodan que passaram a trabalhar mais em
prol dos seus objetivos que dos de seus governos, se é que
ainda havia uma diferença entre uns e outros.
A Terceira Potência fora convidada não na qualidade
de simples observador, mas na de participante efetivo
com direito de voto.
* * * Pouco depois, teve uma palestra com Thora. Pela
primeira vez após a localização da nave-fuso pela estação
espacial Freedom-I ela saiu do camarote e entrou no
compartimento ocupado por Rhodan sem fazer-se
anunciar, tal qual fizera poucos dias antes.
Rhodan ofereceu-lhe uma cadeira. Thora agradeceu
com um sorriso gentil.
— Tive tempo para refletir sobre uma porção de
coisas — principiou ela. — Acho que em muitas ocasiões
não me comportei da forma que seria de esperar.
Rhodan ficou surpreso. Nunca esperara que Thora
pudesse levar a autoanalise a este ponto.
— Aos poucos começo a compreender qual é o
caminho que você trilha, e qual o objetivo que quer
172
atingir — prosseguiu Thora. — Confio plenamente em
você. Mas, no que diz respeito à humanidade, ainda não
formei nenhum juízo. Os conhecimentos que adquiri a
respeito dos homens são escassos e pouco animadores.
Até agora quase só se ocuparam em degolar-se
mutuamente. Desconfio de que as esperanças que deposita
nos seus irmãos de raça sejam exageradas.
“Vim para dizer-lhe o seguinte: daqui para diante
você não me deve considerar sua inimiga. Prefiro
aguardar o resultado dos seus planos. Esses planos são
bons. É possível que num futuro não muito distante a raça
humana assuma a herança dos arcônidas no Império
Galáctico. Mas prefiro adiar minha decisão até que
chegue esse dia.”
Rhodan levantou-se e estendeu-lhe a mão. Sorriu.
— É um gesto humano — disse. — Aperte minha
mão; ela lhe é oferecida em sinal de gratidão.
Num gesto hesitante Thora pegou a mão de Rhodan
e retribuiu o aperto.
— Respeito sua opinião — acrescentou Rhodan. —
Acredito que a atitude de Crest não será diferente.
Esperou uma palavra de protesto; por isso objetou.
— Não; não entretenha uma ideia errada sobre Crest.
Ele pertence à mesma raça que você. O que fez por nós
foi inspirado na gratidão pela cura, e talvez, em parte,
numa compreensão melhor que a sua. Mas ele nunca
deixará de ser um arcônida. Nunca se transformará num
ser terrano.
Piscou os olhos, para dar a entender que considerava
concluída a parte séria de sua palestra.
— Para você, ainda existe alguma esperança.
Pouco lhe importava que Thora se sentisse ofendida;
ela contorceu o rosto e saiu. Sabia que os dias de seu
orgulhoso isolamento estavam contados. Ao pensar nisso,
voltou a notar que amava aquela mulher.
Lá fora os robôs estavam ocupados em empilhar as
pesadas chapas de plástico metalizado.
“Tenho que pedir que apressem o fornecimento do
andaime. Não há nada de que precisemos tanto como uma
boa nave de combate”, disse Rhodan, para si mesmo.
A primeira invasão foi rechaçada. O alarma nuclear pôde ser suspenso, Mas é muito
provável que os sinais automáticos de emergência emitidos pelo cruzador destroçado dos
arcônidas sejam captados por outros invasores potenciais.
Perry Rhodan sabe disso e esta empenhado na formação de uma poderosa força de
combate, em:
O EXÉRCITO DE MUTANTES
173
Nº 06/07/08/09/10
De K. H. Scheer
Clark Darlton
Kurt Mahr
e W. W. Shols
A Terceira Potência, criada pela técnica dos arcônidas e pela energia de
Perry Rhodan, instalou-se na solidão do deserto de Gobi, onde estabeleceu
um centro de atividades capaz de desafiar os ataques concentrados das
superpotências terrenas.
Até mesmo a primeira luta travada contra inteligências extraterrenas ávidas
de conquista, que procuraram aproximar-se da Terra depois de terem
recebido notícia de sua existência através do sinal de socorro, emitido pela
nave destroçada dos arcônidas, pôde ser decidida a favor da Terceira
Potência e a bem da humanidade.
Mas Perry Rhodan sabe perfeitamente que precisará de mais gente para
resistir a novos ataques e levar avante os seus planos. Por isso cria o
EXÉRCITO DE MUTANTES.
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