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OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE PELA CRIANÇA E A
FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Eliza Maria BARBOSA, Unesp/FCL/Departamento de Psicologia da Educação
Francisco José Carvalho MAZZEU, Unesp/FCL/Departamento de Didática
Eixo 04 – Formação do Professor da Educação Infantil
eliza@fclar.unesp.br
Introdução
A disseminação das ideias de Vygotsky e outros autores da Psicologia
Histórico-Cultural no Brasil, tem trazido novos temas de investigação e debate, bem
como colocado novas formas de abordar questões que há muito vêm sendo discutidas
no campo do desenvolvimento da criança e dos processos de ensino-aprendizagem
na Educação Infantil.
Um dos temas recorrentes nesses debates refere-se à formação do
pensamento abstrato da criança, entendido esse pensamento como uma das funções
psicológicas superiores que se formam sob a direção de processos educativos e
constitui, portanto, um dos eixos da educação institucionalizada.
O propósito deste trabalho é discutir, à luz de uma experiência concreta de
formação continuada de educadores de creches e pré-escolas, desenvolvida junto à
rede de ensino de Educação Infantil de Araraquara/SP, como esses fundamentos
teóricos iluminam aspectos dessa prática, permitindo avançar na melhoria da
qualidade do trabalho dos profissionais que atuam nesse nível do ensino.
Há alguns anos um dos autores deste texto tem se dedicado a acompanhar o
trabalho pedagógico desenvolvido nos Centros de Educação e Recreação (CERs),
instituições que atendem as crianças menores de seis anos no município de
Araraquara/SP, não só no sentido de compreendê-lo, mas também oferecendo
subsídios teórico-práticos para a promoção de mudanças. Em 2006/2007, foi realizada
uma pesquisa empírica na rede de Educação Infantil deste município (BARBOSA,
2008), fornecendo à equipe da Secretaria de Educação um panorama extenso dos
elementos pedagógicos e teóricos que se encontravam legitimados pelas práticas dos
professores, indicando a adesão a uma perspectiva pedagógica que se assemelha
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àquela encontrada nas formulações curriculares nacionais que, orientada pelo critério
de idade ou por etapas do desenvolvimento, transforma este último no principal
condicionante das opções curriculares e consequentemente cria uma noção de
sociabilidade que prescinde da mediação do conhecimento (Miranda, 2005).
O que se percebeu claramente nessa pesquisa é a presença de um
psicologismo exacerbado que concebe o desenvolvimento muito mais como um clichê1
levando a uma fetichização da infância, pois essa etapa da vida é concebida quase
sempre a partir de um naturalismo, sem que se expresse conjuntamente a estreita
relação entre o desenvolvimento e aquilo que o promove, as relações de produção de
conhecimentos, saberes e técnicas culturais, sem as quais nenhum desenvolvimento
humano acontece de forma efetiva.
Diante daquela realidade constatada, a equipe técnica da secretaria municipal
de educação entendeu que era preciso pensar alternativas para as práticas
assistemáticas desenvolvidas na rede municipal de educação infantil. Fez-se, portanto,
imprescindível (re) pensar esta educação infantil, como a articulação entre uma tríade:
formação docente, práticas educativas intencionais e políticas públicas, dando um
papel central para o ensino na educação das crianças pequenas. Pensar a concepção
de infância, trabalho docente, aquisição de conhecimento e, consequentemente
desenvolvimento infantil considerando referenciais teóricos críticos no campo
educacional, como a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica,
demanda clareza do papel educacional da instituição de educação infantil; formação
docente e; interdisciplinaridade entre as diversas áreas do conhecimento, subsidiárias
do pensamento pedagógico.
Em resposta a essas demandas foi criado o programa Cresça e Apareça que
entre outros objetivos visa a revisar e reescrever a proposta curricular da rede
municipal de Educação Infantil. Ainda como parte dessas ações foi criado o LAPEI –
Laboratório Pedagógico da Educação Infantil. O LAPEI reúne aproximadamente 18
educadores sendo: oito educadores de pré-escola, três de creche, três de recreação
(período integral), duas diretoras de instituições de educação infantil, seis supervisoras
da secretaria municipal, docentes do ensino superior e uma bolsistas PIBID da
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Sob a responsabilidade deste
laboratório ficam as seguintes ações:
1 O uso de clichês é discutido no seguinte trabalho: MAZZEU, F. J. C. Os “clichês” na prática de
ensino: o que há por trás desse problema? Tese (Doutorado) - UFSCar : São Carlos, 1999.
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Estudo das principais obras dos autores da Psicologia Histórico-Cultural
e da Pedagogia Histórico Crítica;
Levantamento e avaliação das práticas educativas desenvolvidas nas
instituições de Educação Infantil;
Desenvolvimento e elaboração de atividades a serem trabalhadas com
as crianças nas instituições educativas tomando como pressuposto as
contribuições das teorias acima descritas;
Desenvolver junto aos educadores de novas práticas orientadas pelo
princípio da intencionalidade;
Produzir e distribuir um boletim mensal constituindo-se numa
ferramenta de formação continuada dos professores da rede.
Nesse intuito de pensar novas bases curriculares para o trabalho com as
crianças da educação infantil, temos sistematizado atividades que têm como eixo as
principais formas de representação utilizadas por elas, antes e depois da aquisição da
linguagem oral, pois entendemos que a atividade que se apoia em uma representação
mais abstrata da realidade constitui uma das características tipicamente humanas,
capazes de assegurar às crianças um amplo desenvolvimento em todos os aspectos
do seu psiquismo.
As ações empreendidas no programa Cresça e Apareça, bem como as
atividades realizadas pelo LAPEI, articulam-se com os objetivos estabelecidos pelo
grupo de pesquisa: Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil e Teoria
Histórico-Cultural que é constituído por duas linhas convergentes entre si e que
servem ao propósito de aproximar as atividades de ensino, pesquisa e extensão. A
primeira linha investiga a construção de conceitos não-cotidianos pelas crianças que
frequentam as creches e pré-escola, buscando identificar ações e mediações
pedagógicas que favorecem a produção desses conceitos. Partindo de uma
metodologia dialética de ensino revelamos os tipos de atividade, ações e mediações
que são mobilizadas pelas professoras para ensinar os conteúdos previstos. A
segunda linha é composta por estudos sobre a Teoria Sócio-Histórica da atividade
humana, suas relações com a Pedagogia Histórico-Crítica e suas implicações na
pesquisa sobre o trabalho docente na Alfabetização e na Educação Infantil. No âmbito
dessa linha de pesquisa diversos estudos têm sido realizados no intuito de
compreender os processos de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, bem
como elaborar e aplicar procedimentos metodológicos e materiais didáticos.
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O presente texto procura apresentar algumas considerações teóricas que vêm
fundamentando essas atividades de pesquisa e de formação de professores, partindo
do pressuposto de que é necessário aos professores (tanto os que já atuam na rede
quanto os que estão se formando na universidade) ter um conhecimento mais
profundo do processo de formação do pensamento da criança, a sua forma de
compreender e representar a realidade, para que possa intervir de modo mais
qualificado nesse processo, com vistas a atingir os objetivos do trabalho pedagógico.
O processo de conhecimento e a representação da realidade
Um dos pressupostos básicos da concepção histórico-cultural refere-se à teoria
do conhecimento do materialismo histórico-dialético. Nessa corrente teórica, parte-se
do princípio de que a realidade existe fora e de modo independente da consciência
humana, mas de um modo dialético, portanto não como uma “coisa” ou objeto a ser
apreendido por meio de um ato de contemplação que parte da captação das
características exteriores por meio dos sentidos e caminha por abstrações mentais até
chegar ao conceito. Essa visão linear, embora às vezes chegue a ser apresentada
como sendo baseada na abordagem marxiana, está longe de expressar seus
elementos essenciais.
O ponto de partida da teoria materialista dialética do conhecimento não é o
objeto ao qual se conecta um sujeito cognoscente. O ponto de partida é a prática e a
atividade histórico-social dos homens na qual tanto os objetos quanto os sujeitos se
constituem e atuam. O próprio surgimento do ser humano como uma espécie
diferenciada, a chamada filogênese, se explica pelo papel desempenhado pela
atividade vital dessa nova espécie, que é o trabalho. É em função do trabalho e por
meio dele que o ser humano vai percebendo a realidade exterior e percebendo a si
mesmo nessa realidade, o que permite transformar o meio circundante e criar aquilo
que ainda não existe, mas é essencial para a sobrevivência dos indivíduos e da
espécie.
Portanto, do ponto de vista histórico-cultural, o ato de conhecer nunca se dá no
vácuo, como uma abstrata relação sujeito-objeto, já que esse tipo de abstração elimina
os traços essenciais da atividade humana, que é ao mesmo tempo teórica e prática,
abstrata e concreta, individual e coletiva e que permite captar a realidade e, ao mesmo
tempo, transformá-la a partir de objetivos elaborados na consciência humana.
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Sendo o contato do ser humano com a realidade uma relação inicialmente
prática, a realidade se apresenta com um desafio ou um problema e não como um
objeto estático. A relação do indivíduo humano com essa realidade é sempre mediada
direta e indiretamente pela sociedade e pelos outros sujeitos envolvidos nessas
atividades.
Assim expressou Marx esse caráter prático do conhecimento, não por acaso,
na primeira das suas “Teses” sobre Feuerbach
“O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o
de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade,
o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da
contemplação, mas não como atividade humana sensível, como
prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao
materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo
– que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como
tal.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 533)
Essa abordagem pode parecer distinta daquela feita pelo mesmo autor, ao
expor o seu método (MARX, 1976), em que situa o primeiro passo do conhecimento
como sendo o terreno do empírico e da síncrese (visão caótica do todo). No entanto,
trata-se do mesmo processo visto por ângulos diferentes, já que a prática, a atividade
é que possibilita o contato com os objetos, mas o único meio de conhecer a realidade
é através dos sentidos (ver, ouvir, apalpar). Nesse contato inicial, prático-sensorial,
formam-se as primeiras representações dessa realidade, ainda fragmentárias e
caóticas, ainda impregnada dos desejos, das memórias e de toda a subjetividade dos
indivíduos. Mas a representação da realidade na consciência humana seria pouco
diferente daquela elaborada pelos animais se ficasse somente nesse estágio
perceptivo e reativo. O aspecto essencial do conhecimento humano é a capacidade de
transcender esse momento e captar a realidade em seu movimento interior, que não
se manifesta imediatamente aos sentidos, expressando no pensamento as leis e os
conceitos que explicam o movimento dos objetos, as relações mais íntimas entre os
fenômenos, permitindo prever seu desenvolvimento e interferir na sua dinâmica. Para
chegar a esse resultado é preciso agir sobre o objeto explorando suas características,
decompondo seus elementos e manipulando esses elementos, o que se faz por meio
das análises e abstrações.
O processo de análise, embora esteja presente em qualquer ato de decompor,
no ser humano adquire uma característica qualitativamente nova, pois não se baseia
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apenas nos aspectos que a realidade revela por si mesma, mas se apoia no
conhecimento historicamente acumulado pelo grupo social, que orienta a atividade
individual para a identificação de dimensões e relações que foram sendo descobertas
por meio da atividade de outros indivíduos e incorporadas à cultura. Esse processo de
análise se faz, portanto, através de conceitos que são assimilados socialmente e
revelam os objetos em seus aspectos concretos, reais, independentes da forma como
cada um percebe ou se relaciona com eles.
Na assimilação dos conceitos a linguagem exerce um papel essencial, já que
permite não somente a transmissão de conceitos já elaborados, mas também permite
que cada indivíduo opere com esses conceitos como se fossem seus, como parte da
organização do seu pensamento. O desenvolvimento dessas formas mais elaboradas
de pensamento altera a própria percepção e vai “educando” os sentidos para que seja
possível perceber dimensões insuspeitas da realidade. Com o desenvolvimento de
instrumentos que melhoram a percepção dos objetos e ampliam a capacidade de
modificá-los, surgem mais e mais conceitos e relações que vão sendo sistematizadas
e organizadas na forma do saber acumulado.
Nota-se, portanto, a necessidade de possibilitar a cada indivíduo humano o
acesso a esse saber acumulado como uma condição indispensável para elevar o
pensamento ao nível conceitual e, consequentemente, possibilitar que a sua prática
avance para o nível de uma atividade que se baseia em um conhecimento mais
profundo da realidade, isto é, ao nível da práxis. Essa é, na perspectiva Histórico-
Cultural, uma tarefa precípua da educação e, em especial, da educação sistemática,
escolar e pré-escolar.
A formação das representações pela criança
O processo de assimilação, pela criança, desse conhecimento acumulado pela
sociedade não ocorre de uma forma direta, pela simples reprodução do discurso ou
imitação da atividade dos adultos. O processo de desenvolvimento do pensamento
conceitual na criança segue uma trajetória peculiar, no qual a linguagem ocupa um
papel estratégico.
Na perspectiva dos autores soviéticos, a linguagem em seu sentido geral e a
linguagem oral de modo específico, qualificam todas as funções psicológicas e a
atividade da criança, que no primeiro ano de vida, ainda se apresenta involuntária e
sem intencionalidade. O aparecimento da linguagem oral, em torno dos 14 meses de
vida, cria a base para o pensamento abstrato e, portanto, para a representação da
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realidade na consciência. A fala, os gestos, o desenho e depois a escrita, constituem
formas de representação do pensamento que vão se desenvolvendo de modo
acelerado durante os anos da educação infantil.
Com a emergência da fala, processos como a memória, atenção, percepção,
etc. começam a funcionar de modo mediado. As crianças conseguem se referir a
objetos, fatos, acontecimentos e fenômenos do passado, do futuro, ausentes e
presentes. Aqui os gestos desempenham um complemento muito importante que pode
ser facilmente observado nas crianças de que têm entre 14 e 24 meses de vida2, visto
que elas têm grande necessidade de usar os gestos como forma complementar à fala.
É por essa razão que atividades de simulação de expressões faciais e sons
correspondentes, imitações simples de “vozes” de animais ou ações e ruídos
produzidos por e com objetos, deixar a criança manipular objetos de diferentes
formatos e texturas, intencionalmente escolhidos pelos educadores, são atividades
importantes, pois estimulam os sentidos da criança levando-a a realizar algo que ainda
não é capaz de fazer sozinha, que é construir suas primeiras formas de representação
da realidade como algo separado do seu próprio pensamento, ou seja, os bebês
começam a operar sobre os objetos mediados pelos adultos, o que lhes possibilita agir
não apenas em função dos seus desejos, mas em função das ideias e conhecimentos
que os adultos possuem e que pode ser compartilhada, demonstrada e interpretada
pelo outro, dando início a uma nova forma de comunicação e de elaboração do
pensamento.
Observando as crianças de dois a três anos, vemos que proporcionalmente à
ampliação do repertório linguístico há uma diminuição do uso de gestos; eles já não
são imprescindíveis para a comunicação. Esse franco desenvolvimento é
acompanhado da especialização do desenho observada entre o final do terceiro e
quinto ano de vida. A representação expressa sob a forma de desenhos cumpre uma
função concomitante: ao mesmo tempo em que dá sequência ao processo de
simbolização, formaliza-se como uma etapa fundamental para a próxima, na qual a
representação pictográfica vai convertendo-se em escrita, forma mais abstrata de
representação do pensamento. Por essa razão é essencial investir no trabalho
intencional com o desenho3, pois ele amplia as possibilidades de comunicação,
2 No município de Araraquara as crianças que têm essa idade são atendidas e ensinadas noagrupamento denominado Berçário II. Em torno do 25º ou 26º ano de vida, elas passam paraum novo agrupamento denominado Classe Intermediária (CI) , permanecendo até completaremtrês anos.3 Para sugestões de trabalho com o desenho ver: MARTINS, L. M. A alfabetização para oconstrutivismo e para a psicologia histórico-cultural/pedagogia histórico-crítica. In: MARTINS, L.M; MARSÍGLIA, A. C. G (Orgs). As perspectivas construtivistas e histórico-crítica sobre o
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desenvolve a percepção de traços mais gerais e comuns a vários objetos e ao mesmo
tempo prepara as crianças para o domínio da língua escrita. Isso quer dizer que
quando o desenho não é trabalhado intencionalmente como um precursor da
simbolização (como um signo) fica mais difícil para elas compreenderem que também
a escrita é um sistema de signos que servem para representar o pensamento, que por
sua vez captura a realidade (existente e imaginada, exterior e interior ao sujeito). O
trabalho com os desenhos enquanto precursores de uma escrita pictográfica pode
ajudar a criança a perceber que as letras nada mais são do que um conjunto de
desenhos aos quais atribuímos culturalmente a relação com determinados sons e
formam palavras que são portadoras de significado. Trabalhar a ideia de
representação, portanto, é essencial para a compreensão da natureza simbólica da
escrita, pois assim como as crianças quando desenham não estão desenhando os
objetos em si mesmos, mas registrando uma ideia que os representa e simboliza,
também a escrita não representa o objeto diretamente, mas faz isso pela mediação do
pensamento e da fala. Daí a natureza mais abstrata da escrita que Vygotsky (2001)
destacou.
Sendo assim, o processo de formação do pensamento mais abstrato é fundamental
não apenas para o desenvolvimento geral da criança, mas para a própria assimilação
da linguagem escrita.
Compreender esse percurso de formação do pensamento conceitual traz
grandes implicações para o trabalho que realizamos com as crianças na Educação
Infantil. Em qualquer idade a capacidade de representar a realidade estará em pleno
desenvolvimento e exigirá do educador tanto um conhecimento das especificidades da
etapa em que a criança se encontra quanto dos objetivos as serem atingidos ao longo
desse processo. Como o pensamento humano não se manifesta exceto por meio de
algum tipo de linguagem, que precisa ser assimilada pela criança, os gestos, a fala, o
desenho e a escrita devem ser pensados como objetos de conhecimento, e ao mesmo
tempo em que, o seu uso expressa as possibilidades alcançadas pelo pensamento
infantil.
Na abordagem Histórico-Cultural, quando as crianças observam um gesto para
em seguida reproduzi-lo, desenham ou ensaiam a escrita, inicialmente fazem isso de
forma sincrética, como uma “representação caótica do todo”; todos os âmbitos do
objeto podem ser representados da forma como a criança acredita que ele é a partir
de sua prática cotidiana e não necessariamente como o objeto se manifesta aos
sentidos. Por exemplo, a criança desenha uma casa com a pessoa dentro, como se as
desenvolvimento da escrita. Campinas: Autores Associados, 2015, p. 35-43.
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paredes fossem transparentes porque ela sabe que a tem alguém lá e não porque
pode ver essa pessoa. Entretanto, se queremos que as crianças cheguem às sínteses
mais elaboradas, devemos ensiná-las a analisar os objetos, mostrar-lhes as partes, os
aspectos, as características, as possibilidades de uso. No caso dos gestos, por
exemplo, as crianças precisam ter a oportunidade na escola de expressar-se por meio
de atividades que impliquem em gestos diferentes daqueles produzidos
espontaneamente em situações cotidianas de comunicação. As situações escolares
teriam que trabalhar a relação entre o gesto e seu significado, evidenciando o caráter
simbólico dessa relação. Representar situações e acontecimentos por meio de mímica
por ser uma atividade que possibilita esse trabalho.
As atividades de desenho, por sua vez, devem oferecer à criança técnicas e
recursos diversos para representar objetos observados, pois assim as crianças
começam a representar não somente o que acreditam estar percebendo, mas o que
realmente percebem num contato inicial com os objetos, pessoas ou fenômenos. A
partir daí abre-se o caminho para atribuir aos desenhos outros significados e sentidos,
que não têm relação direta com o objeto representado, mas podem então expressar o
novo, o extraordinário, aquilo que pode existir enquanto produto da atividade humana
criadora. Para que desenhem o novo, o não percebido, os educadores precisam
revelar os âmbitos, a contradição entre o que as crianças veem ou compreendem e a
forma especializada de representar.
A escrita por sua vez precisa ser discutida com as crianças. Quando elas
iniciam a experiência de escrita, representam signos que podem ou não guardar
alguma relação com a escrita convencional e, em qualquer uma dessas
circunstâncias, o trabalho do educador deve intensificar os momentos analíticos, tais
como: comparação entre letras, sílabas, posição que ocupam nas palavras, tamanho
das palavras; relações de simetria e assimetria entre o som da fala e a escrita. Por
exemplo, na palavra camaleão os dois primeiros A (s) estabelecem uma relação
simétrica entre o som da fala e a escrita. As crianças ouvem A e grafam A. Já o A que
se junta com o O e recebe um acento, não tem correspondência com a fala, ou seja,
as crianças ouvem ÃO e por isso, quando têm que grafar, em geral apresentam
dificuldade, pois o som que o A produz nesse encontro vocálico (AN) é muito diferente
da letra que irão escrever (A). Há aqui, portanto, uma assimetria.
Essas e outras tantas análises precisam ser feitas pela mediação dos
educadores porque são convencionalidades da língua que não são compreendidas
pelas crianças por processos espontâneos, já que não há um princípio lógico que
possa ser por elas deduzido. Nessas análises, a totalidade que se apresenta
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inicialmente, fragmenta-se: as crianças reconhecem os diversos âmbitos e têm, em
seguida, a possibilidade de produzir uma síntese nova, outra totalidade, só que agora
compreendendo a essência do que estão representando. Quando construímos com as
crianças um brinquedo usando materiais reciclados e vamos comparando passo a
passo os objetos originais e as novas formas que eles assumem, ou mesmo quando
“desconstruímos” com elas um brinquedo produzido, voltando-se à forma original dos
objetos, as crianças vão de uma totalidade à outra por meio das ações mediadas pelos
educadores.
Outro aspecto que deve ser considerado quando compreendemos essas
formas de representação como objetos de conhecimento é considerá-las como
produtos e criações humanas dependentes de uma reprodução antes que possam ser
modificados, inventados ou transformados. As crianças precisam de modelos, domínio
de técnicas, possibilidade de refletir sobre o que expressam. A reprodução é uma
exigência, visto que, representar é uma atividade simbólica produzida pelo
pensamento e em qualquer situação, o que será representado só faz sentido no
interior das relações criadas pelo homem; não se dão a conhecer pelas crianças de
modo literal ou assistemático. Será fruto das relações interpessoais que elas
estabelecem com os adultos.
Finalmente, lembramos que, seja qual for a forma predominante de
representação das crianças em cada idade: gestos e expressões nos dois primeiros
anos de vida, o desenho entre os três e quatro anos e a escrita nos anos seguintes,
seu domínio será mais progressivo e sistemático se considerarmos a atividade
principal. Nas atividades de comunicação emocional, manipulação objetal e
brincadeiras e jogos de papéis sociais temos a relação motivo-ação articulada de
modo coerente, favorecendo as aprendizagens aí produzidas. Todos os objetos
representados pelas crianças, exceto os fenômenos naturais, são objetos culturais e
convertem-se em objetos de conhecimento dada à necessidade de domínio da
realidade humana que elas têm. Essa necessidade impõe-nos outra, a de que sejam
ensinados.
Nossa experiência com o LAPEI tem encaminhado esse desenvolvimento do
sistema de representação como eixo curricular das atividades que realizamos com as
crianças da Educação Infantil da rede municipal de Araraquara, pois entendemos que
a apropriação desse sistema cria as formas mais desenvolvidas de pensamento e
asseguram o seu processo de humanização.
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Considerações finais
Uma ideia bastante comum entre os professores da Educação Infantil,
reforçada fortemente pelas abordagens construtivistas, é de que a criança em idade
pré-escolar se encontra em uma fase de pensamento concreto, sendo incapaz de
“abstrair”. Dessa forma, os educadores deveriam “respeitar” essa fase e trabalhar
somente com o “concreto” evitando introduzir elementos simbólicos e abstratos na
atividade da criança. Existe uma crença de que basta promover o contato espontâneo
com os gestos, desenhos e escrita e, sobretudo, com as brincadeiras, para que o
desenvolvimento possa ocorrer naturalmente, já que o seu motor principal seria a
maturação biológica.
Na perspectiva Histórico-Cultural procura-se superar essas ideias e crenças, já
que se concebe o ensino como um motor da aprendizagem e do desenvolvimento da
criança. Essa abordagem coloca, portanto, uma grande ênfase na importância da
intencionalidade do educador no direcionamento das atividades das crianças, tanto na
brincadeira, quanto no contato com elementos simbólicos.
Uma ação intencional desse tipo exige dos educadores um sólido
embasamento teórico que ajude a compreender o processo de desenvolvimento da
criança em seus diversos aspectos (cognitivo, afetivo, motor) como um processo
educativo e formativo, com fases e etapas específicas cuja sucessão requer a
intervenção dos adultos. Saber identificar a forma mais adequada de atuar em cada
uma dessas fases para provocar esse avanço consiste em um elemento fundamental
da formação do professor da Educação Infantil e tem sido um eixo essencial das
atividades de formação continuada desenvolvidas na FCL/Unesp/Araraquara.
Referências
BARBOSA, E. M. Educar para o desenvolvimento: críticas a esse modelo em
consolidação da educação infantil. Tese de Doutorado em Educação, Programa de
Pós-Graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2008.
MARTINS, L. M. A alfabetização para o construtivismo e para a psicologia histórico-
cultural/pedagogia histórico-crítica. In: MARTINS, L. M; MARSÍGLIA, A. C. G (Orgs).
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As perspectivas construtivistas e histórico-crítica sobre o desenvolvimento da
escrita. Campinas: Autores Associados, 2015, p. 35-43.
MARX, K. O método da economia política. In: MARX, K. Manuscritos Econômico-
Filosóficos e Outros Textos Escolhidos. São Paulo : Abril Cultural. Os Pensadores.
1976, pp. 122-129.
_______. ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em
seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas (1845-1846), São Paulo : Boitempo, 2007
MAZZEU, F. J. C. Os “clichês” na prática de ensino: o que há por trás desse
problema? Tese (Doutorado) - UFSCar : São Carlos, 1999.
MIRANDA, M. G. de. Pedagogias psicológicas e reforma educacional. In: DUARTE, N
(Org.) Sobre o Construtivismo. 2º ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005, p.
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VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo :
Martins Fontes, 2001.
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