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UNIDADE 3 AMOR DE PERDIÇÃO, de CAMILO CASTELO BRANCO

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UNIDADE 4 OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS

OS MAIAS, de EÇA DE QUEIRÓS OS TEMAS D’OS MAIAS

• Osprincipaistemasd’Os Maiasassociam-seàideologiaeàspreocupaçõesnuclearesdoRealismoedoNaturalismo,quesãoasprincipaisreferênciasartís-ticasdoromance.

a) Oamoréumdostemascentraisd’Os Maias.Trata-sedaforçamotrizquedesencadeiaefazavançaraintrigaprincipal—arelaçãosentimentalentreCarloseMariaEduarda—,mastambémdoingredientequeprecipitaaspersonagensparaumdesfechodesditoso,infeliz:ofimdeumamorverda-deiroedeumprojetodevidaadois,mastambémamortedeAfonso.

Aligaçãoamorosaentreasduaspersonagenscentraisterminaquandosedescobrequesãoirmãoeirmãe,portanto,quevivememsituaçãodeincesto(outrotemadaobra),aindaqueinvoluntárioeinconsciente.Carlossobrevive,profundamentedesiludido,àfrustraçãosentimental.Dealgumamaneira,apossibilidadederealizaçãopessoalnoamoredeumaexistênciafeliznaufragacomaseparaçãodosdoisirmãos.

b) Temaprofundamenterealista,oadultérioassume,assim,umaexpressivi-dadeconsiderávelnesteromance.Ainfidelidadeamorosaestápresenteemlinhasnarrativassecundáriasdoromance,condicionandoavidadecertaspersonagens.N’Os Maiasestuda-seliterariamenteestefenómenosocial,revelandocomoeleseassociaàfutilidadeeàesterilidadedomododevidaedamentalidadedasclassesburguesaearistocráticabemcomoàeduca-çãoqueosseusmembrosreceberam.

Emprimeirolugar,éoamororesponsávelpelossobressaltosdavidadePedrodaMaia:asaída,emrutura,dolarpaterno,apaixãoinflamadaporMariaMonforteeoseusuicídio.Aquiemergeoutrotópicorelevantedanar-rativa:oadultério,queépraticadoporfigurasfemininascomoacondessadeGouvarinho,RaquelCohene,comovimos,MariaMonforte.

c) Aeducaçãoéoutrotemadaobra.Desdelogoporquecondicionaotrajetodevidadeváriaspersonagensdoromance,comoCarlos,PedrodaMaiaeEuse-biozinho,mastambém,pelaanálisequeoprocessonarrativoseencarregadefazer,MariaMonforteeDâmaso,entreoutras.Aolongodanarrativa,equa-ciona-seoproblemadeapurarqualomelhormodeloaseguirparaeducarumjovemportuguêsdoséculoXIX.(A educaçãoeraumtópicodereflexãodospensadoresdaGeraçãode70,queacreditavamqueelapodiaserapedrafilosofalqueresgatariaopovoportuguêsdoseuatrasoedasuadecadência.)Doismodelosdeeducaçãosãocolocadosemconfronto:omodelo tradicio-nal português,orientadopelosvaloresdafécatólica,baseadonoestudoteóricoelivrescoenaaprendizagemdolatim;eomodelo britânico,apolo-gistadoexercíciofísico,docontactocomanatureza,deumaformaçãomoralsólidaehumanistaedoestudodaslínguasvivas.

Omodelodeeducaçãoportuguêsproduzindivíduosdecarácterfraco,decondiçãodébilesemumaorientaçãopráticaparaavida;exemplosdissosãoPedrodaMaiaeEusebiozinho.Carloséeducadosegundoomodelobritânicomasfalhanavida,aindaquenãoporcausadestetipodeeduca-ção:sãoascircunstânciasdasuaexistênciaeoscondicionalismosdoPortugalemquevivequeotornarãoum«vencidodavida».(Destaforma, odiletantismo—deCarlos,deEgaedaclassedirigente—acabaporconstituiroutraquestãorelevantedaobra.)

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d) Doquefoiditosedepreendequeadecadênciaéoutrotemad’Os Maias (paraalgunsestudiososdaobra,otemaéaprópriaideiadePortugalnocontextodoséculoXIX).Istoporqueoromanceprocedeaumaanálisedosaspetosedascausasdadecadêncianacional.

Aanálisesocialempreendidaidentificaoproblemaemváriosdomíniosdasociedade,comoadegradaçãodoscostumesedamoral(porexemplo,afaltadecarácterdosportugueses),aincompetênciaeaindiferençadaclassedirigente(compolíticoscomoGouvarinho,banqueiroscomoCohen),afaltadecivismodasociedadeburguesa(recorde-seoepisódiodascorridasdecavalos),oprovincianismo,afutilidade,afaltadecultura(lembre-seoSaraunoTeatrodaTrindade),etc.

Adecadênciaépolítica,social,económica,culturalemoral.Easpersonagensdoromancetraduzemadescrençanumaregeneraçãodapátriaedasmenta-lidades,factoqueéilustradonaconversagalhofeiradojantarnoHotelCentral.

e) Outrotemad’Os Maias,queseassociaaodadecadência,éafamília,tópicoqueseráanalisadonasecção«Otítuloeosubtítulo»destasistematização.Leia-seestamesmasecçãoparacompreenderdequeformaopróprioRomantismo,enquantomentalidadedominante,étematizadonestaobra(cf.tambémReis,2000:40-42).

f) Poroutrolado,apróprialiteraturaeasideiasartísticasrealistas/naturalistas(mastambémasromânticas)constituemquestõestemáticasquesãoabor-dadasporpersonagensdoromanceeproblematizadasporEçadeQueirósnacomposiçãod’Os Maias,pelaformacomomostraafalênciadoRoman-tismo(sobretudonapersonagemdeAlencar)oucomoquestionaaideologiadoNaturalismo(demonstrandoqueahereditariedadeeaeducaçãonãosãofatoresquegarantamarealizaçãopessoal,ocarácterforteeaprosperidadedeumindivíduo).

• Podemosincluirnesteelencooutrostemas(ousubtemas)daobra,queocupa-rãoumaposiçãosecundáriaousubordinadaemrelaçãoaostemasprincipais:oprogresso,ojornalismo,odonjuanismoouotédio.

A REPRESENTAÇÃO DE ESPAÇOS SOCIAIS E A CRÍTICA DE COSTUMES

• Aaçãod’Os Maiasdecorre,emgrandeparte,emvárioslugaresdeLisboaedosseusarredores,comoemSintra;noentanto,nainfânciaenajuventude deCarlosdaMaia,oleitorvaiencontrarapersonagemeoseuavônaquintadefamíliadeSanta OláviaeemCoimbra.

• Esseslugares,queconstituemoespaço físicodoenredodoromance,sãoolha-dosdeoutraformaquandocriamambientespovoadoscompersonagens danarrativa—váriasdelaspersonagens-tipo—eproporcionammomentosdecaracterizaçãodegrupossociais,defigurasindividuaise,sobretudo,decríticadecostumes.Aestescenáriosqueconvidamàanálisedecomportamentos edepersonagensdá-seonomedeespaço social.

• Lisboaéograndepalcoondesedesenrolaoenredod’Os Maiasporqueénacapitalportuguesaquesemovimentaasociedadenacional,queéestudadaecriticadanoromance.Énosepisódiosquetêmlugaremváriosespaçoslisboe-tasedosarredoresdacidadequeassistimosaovícioseàdecadênciadasocie-dadeburguesadasegundametadedoséculoXIX.Subtilmente,estabelecem-secontrastesentreLisboaeoutrascapitaiseuropeias—sobretudoPariseLondres—paramelhordaraconhecerosvícioscívicosecivilizacionaisdonossopaís.

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GeorgeLeonardLewis,Palácio da Pena(1883).

• Entreváriosespaçosdacapitalondeaaçãodo romancesedesenrola,destaca-seoRamalhete,acasadosMaiasemLisboa,quealbergaafamíliaaolongodeváriasgeraçõeseque,porisso,assisteaosseusreveseseaosmomen-tostrágicos.Éelaquecorrespondeànoçãodelardafamílianacapital.Poroutrolado,aquintadeSanta Olávia,propriedadedosMaiasnoDouro,repre-sentaasorigensruraisdafamília,oquelheconfereumaligaçãoaocampo,ànaturezaeaoquehádemaisgenuinamenteportuguêsenãofoicorrompidopelacidade.FuncionatambémcomoumsantuárioondeCarloscresceeoavôAfonsoserefugia.

• JáaToca,vivendadosOlivaiscomumnomesimbólicoequeservedeninhoaoamordeCarloseMariaEduarda,éumlugarafastadoeresguardadodoepicen-trodavidasocialdeLisboae,atécertaaltura,dosrumoresedamaledicência.Porfim,aVila BalzacéacasaqueacolheosamoresdeEgaedeRaquelCohen.Ambasascasasestãomarcadaspelosignodossentimentosimpuros: aprimeira,porqueestáassociadaaoadultério,easegunda,aoincesto.

• Porseulado,Coimbra,ondeCarlosestuda,éacidadequeformaafuturaclassedirigentedoreino.AíchegamasideiasfilosóficasecientíficasdefilósofosecientistasdaEuropa,comoHegel,Proudhon,Comte,Darwin,etc.Mas,navidaboémiaestudantilcoimbrã,encontramosjáoembriãodavidadiletanteeestérilqueminarápersonagenscentraisdoromancecomoCarlosdaMaiaeEga.

• JáSintraéavilapitorescaaondeCarlossedesloca,noCapítuloVIII,naesperançadeencontrarMariaEduarda.PelasuabelezanaturalepelaproximidadedeLisboa,estelocalafigura-secomoumcenárioquecon-vida,comalgumrecato,aosamores…tantoaospuroscomoaosimpuros.

• NoHotel Central,ondejantamCarlos,Egaeoutraspersonagensdanarrativa(CapítuloVI),oleitorassisteaumadiscussãoliterária(queencenaapolémicaentreoUltrarromantismoeoRealismo/Naturalismo)eàsreflexõestro-cistassobreasituaçãopolíticaeeconómicadePortugal.Nestaconfraternizaçãoentrepersonagenscomformaçãoecomrelevonavidanacional(Cohenéumbanqueiroeumhomeminfluente;Alencar,otipodopoetaultrarromântico),nãosóobservamosaindife-rençaeainsensibilidadeperanteadecadên-ciadoPaíscomoaincapacidadedealgunsmembrosdaelitelisboetasecomportaremcomcivismoedignidade.

• Noepisódiodascorridasdecavalos(capítuloX),quedecorrenohipódromo,édenunciadoocultodaaparênciadasociedadeburguesaeasuaaspiraçãodesemostrarrequintadaecos-mopolita,imitandoarealidadedascorridasinglesas.Noentanto,oeventorevela-semonótonoeentediante,eoscomporta-mentos,artificiais.Maisainda,oambienteapenasanimaquandooprovincia-nismolusitanovemàsuperfícienumacenadediscussãoepugilatoquepõeanuagenuínafaltadecivismodoportuguês.

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• Nojantaremcasa dos condes de Gouvarinho(CapítuloXII),éaclassedirigentedanação—representadapelocondedeGouvarinho,políticoproeminente,eporSousaNeto,altofuncionáriodaInstruçãoPública—querevelaasuafaltadeculturabemcomoamediocridadedassuasideiasedaspropostasquetemparaoPaís.Talfactoénotórioquandoestaspersonagensabordamtópicosrelacionadoscomaeducação(dasmulheres),afilosofiaealiteratura.

• Poroutrolado,osvíciosdojornalismoeaaspiraçãodaburguesiasãotratadosnosepisódiosquedecorremnasredações dos jornais A Corneta do Diaboe A Tarde(CapítuloXV).

• NosarauartísticonoTeatro da Trindade(CapítuloXVI)critica-seafutilidadedasociedadeburguesa.Aculturadasclassesprivilegiadasépobreefalta-lhes ogostoeasensibilidadepelaartemaisexigente.

OS ESPAÇOS E O SEU VALOR SIMBÓLICO E EMOTIVO

1. O jardim do Ramalhete

• AntesdeAfonsoeCarlosdecidiremhabitaroRamalhete,esteespaço«possuíaapenas,aofundodeumterraçodetijolo,umpobrequintalinculto,abando-nadoàservasbravas,comumcipreste,umcedro,umacascatazinhaseca,umtanqueentulhado,eumaestátuademármore([…]VénusCitereia)enegre-cendoaumcantonalentahumidadedasramagenssilvestres.»(CapítuloI).

• Depoisdeavôenetosetereminstaladonesteespaço,ojardimédescritodaseguinteforma:«tinhaoarsimpático,comosseusgirassóisperfiladosaopédosdegrausdoterraço,ocipresteeocedroenvelhecendojuntoscomoamigostristeseaVénusCitereiaparecendoagora,noseutomclarodeestátuadepar-que,terchegadodeVersalhes,dofundodograndeséculo…edesdequeaáguaabundava,acascatazinhaeradeliciosa,dentrodonichodeconchas,comosseuspedregulhosarranjadosemdespenhadeirobucólico,melancolizandoaquelefundodequintalsoalheirocomumprantodenáiadedomésticaesfiadogotaagotanabaciademármore.»(CapítuloI).

• Finalmente,quandoEgaeCarlosvisitamoRamalhete,dezanosdepois,depa-ramcomestecenário:«Embaixoojardim,bemareado,limpoefrionasuanudezdeinverno,tinhaamelancoliadeumretiroesquecido,quejáninguémama:umaferrugemverde,dehumidade,cobriaosgrossosmembrosdaVénusCitereia;ocipresteeocedroenvelheciamjuntos,comodoisamigosnumermo;emaislentocorriaoprantozinhodacascata,esfiadosaudosamentegotaagota,nabaciademármore.»(CapítuloXVIII).

• DadoqueMariaMonfortesurgeaosolhosdePedrocomoumadeusa,épossí-velassociá-laàestátuadeVénusCitereianasuaprimeirafase.ÉcomoseapresençadestafigurafemininafossesugeridaobscuramentenoquintaldoRamalhete,simbolizandoapossibilidadedeumanovatragédia.

• ComavindadeAfonsoedeCarlosparaLisboa,aestátuarenova-se,passandoasimbolizarumanovadeusaquesurgeemLisboa:MariaEduarda.Denotar,noentanto,que,apesardanotadealegriaproporcionadapelareferênciaaorenasci-mentodaestátuaeà«cascatazinhadeliciosa»,averdadeéqueoambientedemelancoliasemantémparcialmente,sendosugeridopelacomparaçãodocipresteedocedroadois«amigostristes»epelaalusãoao«prantodenáiadedoméstica».Épossível,pois,considerarqueseapontadestaformaparaapresençadeumdestinofunesto,cujaameaça,mesmoemmomentosfelizes,pareceestarlatente.

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• Quandopraticaoincesto,CarloscomeçaasentiralteraçõesnaformacomoviaocorpodeMariaEduarda:foraaquelecorpodela,adoradosemprecomoummármoreideal,quederepentelheaparecera,comoeranarealidade,fortedemais,musculoso,degrossosmembrosdeamazonabárbara,comtodasassuasbelezascopiosasdoanimaldeprazer.»(Capítulo XVII).EstaimagempodeserassociadaàqueaestátuatemnomomentoemqueCarlosregressaaocasarãoapósoseuabandono:«umaferrugemverde,dehumidade,cobriaosgrossosmembrosdaVénusCitereia»(Capítulo XVIII).

2. O interior do Ramalhete no epílogo

• Noepílogo(istoé,noCapítuloXVIII),CarloseEgavisitamoRama-lhete,espaçoapropósitodoqualoprimeiroafirma:«—Écurioso! Sóvividoisanosnestacasaeénelaquemepareceestarmetida aminhavidainteira!»OseuamigoreferequetalseficaaodeveraofactodetersidonaqueleespaçoqueCarlosviveu«aquiloquedásaborerelevoàvida—apaixão.»Comefeito,oprotagonistatemumaintensarelaçãoemotivacomesteespaçonãosópelofactodeeleestarassociadoàvivênciadoseuamorcomMariaEduarda,mastambémpelasrecordaçõesquelheproporcionadoseuavô,AfonsodaMaia.

• Nestamedida,areduçãodoRamalheteàcondiçãodeumdepósitoderecorda-çõesdopassadotorna-semuitopungente,sendopossívelinterpretaradestrui-çãoquenesteespaçoseoperoucomoumsímbolodaefemeridadedavida:«Derepente,deucomopénumacaixadechapéusemtampa,atulhadadecoisasvelhas—umvéu,luvasdesirmanadas,umameiadeseda,fitas,floresartifi-ciais.EramobjetosdeMaria,achadosnalgumcantodaToca,paraaliatiradosnomomentodeesvaziaracasa!E,coisalamentável,entreestesrestosdela,misturadoscomonapromiscuidadedeumlixo,apareciaumachineladeveludobordadaamatiz,umavelhachineladeAfonsodaMaia!»(Capítulo XVIII).

• AmorteétambémsimbolicamenterepresentadanestepassopelospanosbrancosquecobremosmóveisdoescritóriodeAfonsodaMaia—equesãodesignadoscomo«sudáriosbrancos»(Capítulo XVIII).

3. A Toca

• Onome«Toca»apontaparaumespaçodeproteção,imuneàsperturbaçõesdoexterior.OpróprioCarlossugerequeselheponha«Umadivisadebichoegoístanasuafelicidadeenoseuburaco:Nãomemexam!»(CapítuloXIII).Comefeito,oselementosperturbadoresdarelação(oartigodifamatóriodaCorneta do Diabo eoencontrodeGuimarãescomMariaEduardaesubsequentesrevelações)pro-vêmdeLisboaoudecorremapósMariaEduardaregressaràRuadeS.Francisco.Noentanto,podemosaindaconsiderarqueestadesignaçãopodereferir-sesim-bolicamenteumarelaçãodecarácteranimalesco,porqueincestuosa.

• OfactodeCarlosintroduzir«achavedevagarecominútilcautelanafechaduradaquelamorada»,oque«foi[…]umprazer»(CapítuloXIII),podeserentendidocomoumsímbolodarelaçãosexualentreosdoisamantes.

• QuantoaoquartodeMariaEduarda,estácarregadodesímbolosqueseassu-memcomopresságiosdodesfechotrágicodestarelaçãoamorosa.Emprimeirolugar,temosareferênciaaofactodeaalcovaseassemelharao«interiordeumtabernáculoprofanado,convertidoemretirolascivodeserralho»(CapítuloXIII).

VénusCitereia(BertelThorvaldsen,Vénus com uma maçã,1813-1816).

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Talcomoestelugarsagrado,tambémarelaçãodeCarlosedeMariaEduardaacabaráporperderasuadimensãosublimeeconverter-se,apósadescobertadoseugraudeparentesco,numaligaçãomeramentesensual.Ocarácterilícitodesteamor(nãopelasuadimensãoadúltera,maspelofactodeosamantesseremirmãos)ésugeridopelareferênciaaos«amoresdeMarteedeVénus»(CapítuloXIII),bemcomoaLucréciaBórgia—figurahistóricaconhecidapelaluxúriaepelasrelaçõesincestuosas.AalusãoaRomeufuncionatambémcomoumindíciodeumarelaçãoamorosaqueculminarádeformatrágica.Final-mente,tambémareferênciaaS.JoãoBatistaapontaparaadenúnciadeumarelaçãoconsiderada,naépoca,incestuosa(dadoqueHerodescasaracomasuacunhada—graudeparentescoequivalente,nestafase,aodeirmã—edesejaaenteada,Salomé).Osindíciosdecatástrofesãotambémreiteradospeloolharagoirentodeumacorujaembalsamada.Finalmente,ainsistêncianascoresamarelaedouradapodeserentendidacomoumareferênciaàvitalidadeeaocarácterardentedoseuamor,mastambémàperversãoquemarcaestarelaçãoamorosa,dadoqueacoramarelapodetambémterestaconotaçãonegativa.

• NaToca,épostoemdestaqueumarmário«“divino”doCraft,obradetalhadotempodaLigaHanseática,luxuosoesombrio»eque«tinhaumamajestadearquitetural:nabasequatroguerreiros,armadoscomoMarte,flanqueavamasportas,mostrandocadaumembaixo-relevooassaltodeumacidadeouastendasdeumacampamento;apeçasuperioreraguardadaaosquatrocantospelosquatroevangelistas,João,Marcos,LucaseMateus,imagensrígidas,envolvidasnessasroupagensviolentasqueumventodeprofeciapareceagitar:depois,nacornija,erguia-seumtroféuagrícolacommolhosdeespigas,foices,cachosdeuvaserabiçasdearados;e,àsombradestascoisasdelaborefar-tura,doisfaunos,recostadosemsimetria,indiferentesaosheróiseaossantos,tocavam,numdesafiobucólico,afrautadequatrotubos.»(CapítuloXIII). ÉpossívelconsiderarosdoisfaunoscomoCarloseMariaEduarda,namedidaemqueosamantes,talcomoasfigurasmíticas,seentregamexclusivamenteàsensualidade,indiferentesavaloresfundamentaisrepresentadospelasrestan-tesfiguras:oheroísmo,areligiãoeotrabalho.

• Denotarquenoepílogo,quandoCarlosregressaaoRamalhete,verificaquehouvera«umdesastrenacornija,nosdoisfaunosqueentretroféusagrícolastocavamaodesafio.Umpartiraoseupédecabra,outroperderaasuafrautabucólica…»(CapítuloXVIII).

• Finalmente,destaca-seainda,como«géniotutelar»(CapítuloXIII)daToca,«umídolojaponêsdebronze,umdeusbestial,nu,pelado,obeso,depapeira,facetoebanhadoderiso,comoventreovante,distendidonaindigestãodetodoumuniverso—easduasperninhasbambas,moleseflácidascomopelesmor-tasdeumfeto.»(CapítuloXIII).Estafiguradecontornosgrotescospodeserconsideradacomoumsímbolodadimensãomonstruosadopróprioincestoqueserácometidonaquelelocal.

4. Os espaços de Lisboa percorridos no passeio final de Carlos e Ega

• CarloseEgacomeçamporpercorreroLoreto,espaçoemqueaestátuadeCamõesrepresentasimbolicamenteaépocaáureadosDescobrimentos,quecontrastacomaestagnação,inérciaedecadênciaquemarcamasociedadedoséculoXIX(daíacaracterizaçãodaestátuadeCamõescomo«triste»).

• Adecadênciadasociedadeestáassociadaàdegenerescênciadaprópriapopulaçãoportuguesa,queédescritacomo«feiéssima,encardida,molenga,reles,amarelada,acabrunhada»(CapítuloXVIII).

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• Deseguida,osdoisamigoschegamàAvenida da Liberdade,espaçoquerepre-sentasimbolicamenteumPortugalpretensamentemodernoecosmopolita.

• Noentanto,podemosverificarqueastentativasdemodernizaçãodoespaçourbanoseresumemaumazonamuitolimitada,terminandodeformaabruptanofimdaAvenida,nãopassando,portanto,deum«curtorompantedeluxobarato»(CapítuloXVIII).

• Nesteespaçoseconfirmatambémadegenerescênciadosportugueses—nestecaso,especificamente,atravésdadescriçãodajuventude.Comefeito,esta«mocidadepálida»(CapítuloXVIII)—cujafaltadevitalidadeé,provavel-mente,umaconsequênciadaeducaçãotradicionalportuguesa—limita-seapassearpelaAvenidadaLiberdadesempropósitoaparente.Assim—aocon-tráriodageraçãodeCarlosedeEga—,nemsequertemqualquerideiadetransformaçãodopaís,tendoapenasoobjetivodeostentarumluxoartificialcomoqualnãosesenteconfortável.Oabsurdodestasituaçãoéagravadopelasbotasqueestesjovenscalçam:nasuaânsiadepareceremmuitocivilizados,osportuguesescopiaramomodelodoestrangeiro,maslevaram-noaoexcesso,acabandoporcairnoridículo.DeacordocomEga,esteéoprocessoseguidoportodaasociedadeportuguesadaépocaque,noseuprovincianismo,julgaqueesteéocaminhoparaamodernização.

• Finalmente,Carlosapontaparaos«velhosouteirosdaGraçaedaPenha»,querepresentamsimbolicamenteahipótesedeorientaçãoparaaquiloqueégenui-namenteportuguês.Noentanto,comoEgarefere,estasoluçãotambémnãoésatisfatória,umavezqueimplicariaoregressoaoumpassadodecrépito,asso-ciadoaodomíniodocleroedanobreza.

A DESCRIÇÃO DO REAL E O PAPEL DAS SENSAÇÕES

• EçadeQueirósrevela-seexímioacompordescrições,tantodeespaçossociaisurbanoscomodecenárioscampestres.NoromanceOs Maias,onarradordes-crevearealidadesocialdoseutempoemvárioslugaresdeLisboaearredores:acasadosGouvarinho,oHotelCentral,oteatrodaTrindade,ohipódromo,etc.Poroutrolado,demora-setambémnacaracterizaçãodeambientesnaturais,comoSintraouaQuintadeSantaOlávia.

JoãoChristino,Lisboa, Avenida da Liberdade(litografiapublicadanaMala da Europa,n.o488,1905).

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• Asdescriçõesdelugares,personagensecomportamentosconcretizam-se emanotaçõesqueresultamsobretudodeobservaçõesdonarrador.Talsignificaqueoregistodescritivoassentaemperceções visuaisdesseselementos; ouseja,nestaobradeficção,simula-sequeonarradorcaracterizaosespaçoseasfigurasque,pretensamente,estariaaobservar.

• EncontramosumexemplodedescriçãopautadapelaperceçãovisualnoseguintepassodosaraudaTrindade:«Deambososladossecerravamfilasdecabeças,embebidas,enlevadas,atulhandoosbancosdepalhinhaatéjuntoaotablado,ondedominavamoschapéusdesenhoraspicadospormanchasclarasdeplumasouflores.»

• Estacaracterizaçãodosespaços,emquedominaatécnicadaverosimilhança,procurarepresentaroslugares«comoelessão».Elaserveosprincípiosartísti-coseosobjetivosdoRealismo,pois,aorepresentaromundosocial,analisa-otambémsocialmente.

• OutratécnicadescritivaimportanteusadaporEçaéatécnica impressionista.ComosucedenapinturadoImpressionismo,nestetipodedescriçãodelugares,figuraseelementosdá-semaiorrelevoàluzeàsmanchasdecordeumconjunto(umapaisagem,umpôrdoSol)doqueàformaexataouaoscontor-nosdesseselementos.Veja-secomoacoreosreflexosdeluzsobressaem narepresentaçãodamultidãoedeoutroselementosnoepisódiodascorridasdecavalos.

• Há,noentanto,momentosd’Os Maiasemqueasdescriçõessedestacamporreferênciasousugestõesasensações olfativas, auditivasetáteis.Assensa-çõesolfativasestãofrequentementeassociadasacenáriosnaturaisedecorremdasfragrânciasexaladaspelavegetação:«aschaminés[…]ornavam-sedebraçadasdeflores,comoumaltardoméstico;eraaindaaí,nessearomaenessafrescura,queelegozavamelhoroseucachimbo»(CapítuloI).

• Relativamenteaperceçõessensoriaisauditivasetáteis,tambémelaspodemsersugeridasnacaracterizaçãodecenárioscampestres,comoosdeSintra(CapítuloVII).EncontramosexemplosdetaiscaracterizaçõesquandoCarloseCrugesestãoachegaraSintra:«envolvia-ospoucoapoucoalentaeembala-dorasussurraçãodasramagenseodifusoevagomurmúriodaságuascorren-tes»(auditivo);e«oarsubtileaveludado»(tátil).Destaformasedácontadecomoocenárioenvolviaplenamenteefascinavaasduaspersonagens.

• Emalgumasdescriçõesirrompeasinestesia,ouseja,expressõesemquesecruzamousefundemdiferentesperceçõessensoriais:«transparentesnovosdumescarlate estridente»(visualesonoro);«luzmacia»(visualetátil).

REPRESENTAÇÕES DO SENTIMENTO E DA PAIXÃO

1. Diversificação da intriga amorosa

• N’Os Maias,adiversificaçãodaintrigaamorosaéconseguidaatravésdarefe-rênciaadiferentestiposderelação—entreosquaissedestacamasligaçõesPedrodaMaia/MariaMonforte,Ega/RaquelCoheneCarlosdaMaia/MariaEduarda.

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Pedro da Maia/Maria Monforte

• Pedro,personagemmarcadamentenaturalista,évítimadahereditariedade,daeducaçãoedomeioemqueviveu.Comefeito,alémdeser«pequeninoener-voso»(CapítuloI)comoasuamãe,acabaporsetornarumserapático,passivoenervoso,emconsequênciadaeducaçãotradicionalportuguesa.

• Apaixãoobsessivaquenutrepelamãe—equeolevaaroçaraloucuraaquandodasuamorte—acaba,naidadeadulta,porsertransferidaparaMaria Monforte,figurafemininabela,fútil,caprichosaemanipuladora.

• InfluenciadopeloRomantismo,Pedrorevolta-secontraopai,quenãoaprovaocasamentocomafilhadeumantigotraficantedeescravos,ecasacomMaria.

• Noentanto,aleviandadedeMariaMonforteleva-aafugircomTancredo.

• AfragilidadepsicológicadePedrotorna-oincapazdesobreviveràfugadamulher,suicidando-se.

Ega/Raquel Cohen

• ApaixãodavidadeEgaacabaporseroromanceadúlterocomRaquel Cohen,mulherdobanqueiroCohen.

• Ocarácterilícitodestarelação,bemcomoofactodeosamantesseencontra-remnaVilaBalzac,espaçocujadecoração—emtonsdevermelhoetendocomopontofulcraloleito—épropíciaàsensualidade,mostraque,talcomosucederacomPedroeMariaMonforte,tambémapaixãoentreEgaeRaquelCohenéinfluenciadapelosideaisdoamorromântico.

• EstarelaçãoterminanomomentoemqueCohen,descobrindooadultério,expulsaEga.Noentanto,esteepisódio—quepoderiatercontornostrágicos—acabaporserinvestidodeumtomgrotesco,umavezque,porquetudosucedeunumbailedemáscaras,CohenseencontravavestidodebeduínoeEga,deMefistófeles.Alémdisso,Raqueléespancadapelomarido,masacabaporsereconciliarcomele.

• Destemodo,oúnicoelementosublimequeacabaporrestardestarelaçãoamorosasãoasrecordaçõesdeEga,queesteevocajuntodeCarloseCraft,mascujodramatismoé,maisumavez,diluídopelofactodeaqueleseencon-trarprofundamenteébrio.

Carlos/Maria Eduarda

• ApósumarelaçãofugazcomacondessadeGouvarinho—quenutreporeleumaintensapaixãonãocorrespondida—,CarlosacabaporencontrarograndeamordasuavidaemMaria Eduarda.

• Todasasrelaçõesanteriormentereferidas(Pedro/MariaMonforte,Ega/RaquelCoheneCarlos/condessadeGouvarinho)contribuemparaexaltarocaráctersublimedestaúltimarelaçãoamorosa.

• Comefeito,noamordeCarlosedeMariaEduarda,nãotemosumarelaçãomarcadapelamanipulação(comosucederacomPedroeMariaMonforte)nempelasuperficialidade(comoacontecianoscasosdeEgaeRaquelCohenedeCarlosedacondessadeGouvarinho).Apaixãoentreosprotagonistasdecorredeumasintoniadepersonalidades—jáqueambossãointeligentes,cultoserequintados—queoselevaacimadasociedademesquinhaemquevivemelhespermitesuperaremtodasascontrariedades—atéqueumdestinoimpie-dososeabatedefinitivamentesobreeles.

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Conteúdos literários

• NãodeixadesercuriosoofactodeCarlos,aquandodadescobertadoseugraudeparentescocomMariaEduarda,considerarquetantoelecomoasuaamadaeramseresprofundamenteracionaisqueconseguiriamfacilmentesufocarosseussentimentosagoraquesabiamserirmãos.OdesdémquemostrapelamentalidaderomânticarapidamentesedesfaznomomentoemqueserevelaincapazdecontaraverdadeaMariaEduarda,acabandoporcederàtentaçãoecometendoincestovoluntariamente.

• Assim,podemosverificarquetambémarelaçãoamorosaentreCarloseMariaEduardaéinfluenciadapelosideaisdoamorromântico—deformamaisdra-máticanomomentodoincesto,mastambémpelofactodeambosenfrentaremasconvençõessociaisedecidiremficarjuntos(numprimeiromomento,numasupostarelaçãodeadultério,numsegundomomento,numarelaçãodeaman-tes,quesetornamaiscontroversapelopassadodeMariaEduarda).

• Defacto,estarealidadeémagistralmentesintetizadanafaladeEga,aquandodasuaúltimavisitaaoRamalhete:«Quetemosnóssidodesdeocolégio,desdeoexamedelatim?Românticos:istoé,indivíduosinferioresquesegovernamnavidapelosentimentoenãopelarazão…»(CapítuloXVIII).

2. A intriga trágica

Peripécia/ Anagnórise

RevelaçãodarelaçãodeparentescoentreCarloseMariaEduardafeitaporGuimarãesaEga;revelaçãodestarelação deparentescofeitaporEgaaVilaça,poresteaCarlos eporCarlosaAfonso.

Hybris /ClímaxCarloséincapazderesistiràpaixãoquesenteporMariaEduardaecometeincestovoluntariamente.

CatástrofeAfonsomorreeCarloseMariaEduardaseparam-separasempre.

CARACTERÍSTICAS TRÁGICAS DOS PROTAGONISTAS

• NaPoética,Aristótelesafirmaqueaspersonagensdatragédiadeveriamterumacondiçãoelevada.

• Éisto,defacto,oquesuceden’Os Maias:Afonso da Maia,Carlos da MaiaeMaria Eduardasãopersonagensdecondiçãosuperiornãoapenaspeloseuestatutodefidalgos,mastambém(esobretudo)pelanobrezadoseucarácter.Aindaquenenhumadestasfigurassejaperfeita,averdadeéquetodastêmtraçosheroicos.

Afonso da Maia

• Apesardeteralgunstraçosdediletantismo(queolevarãoaesquecerfacil-menteaduralutatravadapelosseuscompanheiros liberaisemPortugalenquantoviviaumavidaluxuosaemInglaterraealimitar-seaaconselharCarloseosamigosafazeremalgoparamudarPortugal,aoinvésdeagir),Afonso da Maiaéumapersonagemadmirável.

• Comefeito,apesardeosprincípiosmoraisoteremlevadoadesaprovarocasa-mentodePedro,quandoesteregressa,humilhado,apósapartidadeMariaMonforte,oseuamorpaternalleva-oareconciliar-secomofilhoeaapoiá-lo,aoinvésdeorecriminar.

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• Alémdisso,asuaenormeforçainteriorédemonstradapelacapacidadedesobreviveràmortedofilhoedesededicarcomentusiasmoàeducaçãodoneto.

• Finalmente,éumapersonagemprofundamentedigna,quenãosedeixasedu- zirpeloluxoqueCarlostantoaprecia,vivendodeformasimpleseaustera. Àvirtudedasobriedadeacresceofactodeserinteligente,cultoecaridoso—tantocomaspessoas,comocomosanimais.

Carlos da Maia

• Apesardocarácterdiletante,queprejudicaosseusestudosuniversitáriose,apósoregressoaLisboa,oimpededeconcretizarosseusprojetosnocampodaMedicina,Carlosétambémumapersonagemnaqualressaltamcaracterís-ticaspositivas.

• Comefeito,aolongodaintriga,destaca-sepelasuainteligência,culturaesen-tidodehumor,assumindoumaatitudecríticaeirónicaemrelaçãoàsociedadeportuguesa.

Maria Eduarda

• ApesardeascircunstânciasdavidaateremforçadoavivercomMacGren semsecasare,posteriormente,atornar-seamantedeCastroGomes,Maria Eduardanuncaperdeasuadignidade.

• ÀsemelhançadeCarlosedeAfonsodaMaia,éinteligenteeculta.Alémdisso,herdadeAfonsodaMaiaacapacidadedesecompadecerdosmaisfracos.

Comoéapanágiodatragédia,anobrezadetodasestaspersonagenstornamaispungenteacatástrofequeseabatesobreelas.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

1. Os Maias enquanto romance

• AobraOs Maiasdeveserclassificadaliterariamentecomoumromance;istoporque,segundoasregrasdestegénero literário,setratadeumanarrativalonga(maisextensadoqueocontoeanovela)emqueexistemaisdoqueumalinhadeação—embora,porregra,domineumaprincipal—eumnúmeroconsideráveldepersonagens.Poressemotivo,multiplicam-seosespaçosemqueoenredosedesenvolveeaorganizaçãotemporaltorna-semaiscomplexa.

• ArelaçãoamorosaentreCarloseMariaEduardaconstituiaação principal d’Os Maias:estalinhanarrativafuncionacomomotordoromance,eéavida eodestinodestaspersonagenscentraisquedinamizamotexto.Poroutrolado,encontramosumalinhadeação secundária:ocasamentodePedrodaMaia eMariaMonforte.

• Numanarrativaextensa,deenredocomplexo,énaturalqueonúmerodeper-sonagensquesobeàcenasemultiplique.Alémdasfigurascentrais,Carlos eMariaEduarda,quesãocomplexas(modeladas),encontramosn’Os Maias personagensqueparticipamnaaçãocentral(AfonsodaMaia,Ega,CastroGomes),mastambémoutrasentidadesdeimportância.Assim,personagens-tipooucaricaturas,comoPalmaCavalão,SousaNeto,oNeves,estãosobretudoaoserviçodacrítica socialporquenelesseestudamvíciosetiquessociais.

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Conteúdos literários

• EssacrónicadecostumesqueanimaOs MaiasdecorresobretudoemvárioslugaresdeLisboaedosseusarredores.Assim,amultiplicidadedeespaços físicoslisboetas—comooHotelCentral,ohipódromo,oteatrodaTrindade—constróiumasériedepalcosondepodemosanalisaroscomportamentosdegruposefigurastípicasdasociedadeburguesaoitocentista:espaço social.

• Porseulado,aorganização temporaldanarrativaétambémcomplexanesteromance.Anarrativainicia-seem1875,quandoCarlosdaMaiasepreparaparavirviverparaLisboa;maslogoassistimosaumaretrospetiva(analepse)quelevaoleitoraconheceravidadoavôedopaidoprotagonista.Poroutrolado,oromanceencerracomumepílogoquetemlugardezanosapósodesfe-chodaintrigaprincipal.

2. O título e o subtítulo

• Otítulodoromance,Os Maias,éumareferênciadiretaàfamíliafidalga,oriundadoNortedoPaís,queocupaumaposiçãocentralnanarrativa.Defacto,seCarlosdaMaiaéapersonagemnucleardaaçãoprincipal,avidadoseupaiedoseuavôassumemrelevâncianoromance.Aliás,oenredod’Os Maias remontaaalgumasdécadasanterioresaonascimentodoprotagonista.Aperti-nênciadotítulomanifesta-setambémnofactodeosacontecimentosdaintrigaprincipal,arelação incestuosadeCarloseMariaEduarda,seremumaconse-quênciadosinfortúniosedosdesencontrosdosmembrosdafamíliaMaia.

• Nessesentido,aobraenquadra-senaclassificaçãode«romance de família»,porquefazdesfilarnosdoiscapítulosiniciais,deformaresumida,avidadequatrogeraçõesdeMaias,representandoosdiferentesperíodosdoséculoXIX português.Numafugazpresençananarrativa,CaetanodaMaia,adeptodoAbsolutismo,manteráumarelaçãotensa(porquestõesideológicas)comoseufilho,Afonso,quedefendeasideiasdoLiberalismo.JáPedrodaMaia,filhodeAfonso,representaasegundageraçãoliberaleamentalidaderomântica.Por fim,CarlosdaMaiaaparececomoumcontemporâneodaRegeneração(1851-1906).

• Assim,atravésdaspersonagensdestafamília,equacionam-sequestõesdaépoca:adecadência,oprogressomaterial,orotativismopolítico,etc.Assim,atécertoponto,afamíliaMaiarepresentametonimicamentePortugaleadecadên-ciadanaçãoaolongodoséculoXIX.

• Seotítuloapontaparaahistóriadeumafamília,osubtítulo—Episódios da vida romântica—abreolequedepossibilidadesdanarrativaparaatornarumestudodasociedadeportuguesa(sobretudo)dasegundametadedoséculoXIX.Nessamedida,estesubtítuloapontaparaacrónica de costumes,queatravessaoromanceesedesenvolveapardaintrigaprincipal.Nesseestudodasocie-dadeportuguesaanalisam-seoscomportamentos,oshábitos,aspráticasdeumpovo,afimdedenunciarecriticarosseusvícios,incongruênciasefalhas.

• Umafinalidademaiord’Os Maias,enquantoestudo social,étentarcompreen-deras«causasdadecadência»dopovoportuguêsnoséculoXIX.Aliás,EçadeQueirósplanearaescreverumconjuntodedozenovelasdecarizrealista/natu-ralista,quereceberiaotítulodeCenas da vida portuguesaouCrónicas da vida sentimental,masoprojetonãofoiconcluído.EstaobramultifacetadacomporiaumpainelderetratosdoPortugaldeentãoeversariatemascomooalcoolismo,oadultério,ojogo,osacerdócio,etc.

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João Abel Manta, As personagens de Eça (meados do século XX).

• Quanto ao método seguido na análise social, Eça concebe uma série de episódios em que as características dos portugueses se manifestam. Nestes episódios, desmascaram-se traços da identidade coletiva portuguesa, como o parasitismo, o oportunismo, a inércia, a falta de cultura e outros vícios que, pelo menos em parte, explicam a situação do Portugal da Regeneração.

• O subtítulo do romance sugere que no Portugal do fim do século XIX pulsa ainda uma «vida romântica»; Ega decifra o sentido da expressão: «— E que somos nós? […] Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão…». Românticos são Ega, Carlos e os restantes membros da sociedade burguesa aqui retratada, porque as personagens do romance, se, por um lado, extravasam paixão, emoção e espontaneidade (os amores, legítimos ou adúlteros, as amizades e as inimizades virulentas, a maledicência, a desorganização e a desordem), por outro, revelam-se parcas em seriedade, organização, equilíbrio, trabalho, disciplina e empenho (razão). Ou seja, faltam as qualidades necessárias para colocar o País na rota do desen-volvimento, do civismo e da justiça social.

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Conteúdos literários

• OPortugaldeCarloséromânticoporqueherdouasideias,osvaloreseascren-çasdasegundageraçãoliberaleromânticaenelessefossilizou.Tipicamenteromânticaétambémamentalidadepautadapelotédio,pelaociosidadeepelodiletantismo,queminamaexistênciadaspersonagensdestaobra.

• Decorrentedestaideiaestáasegundaexplicaçãoparaamentalidaderomânticadofimdeséculo.Asociedaderomânticaéasociedadeliberal,dominadapelaburguesiaepelosseusvalores:materialismo,mercantilismo,elitismo,(pseudo-)requinte,oluxo,amonarquia.Sãoestesvaloresdecadentes,liberais,burgueses—românticos!—queaindaconduzemasociedadeportuguesaeogrupodiri-gente,condenandooPaísaoatrasoeàpobreza(materialedeespírito).

3. Linguagem e estilo

• Emtermosderegistos de linguagem,aprosadeEçadeQueirósrevela-seadmiravelmenteversátilemaleável.Porumlado,nomelhorregisto literário e elevado,atingerasgosdegrandebelezacomaconstruçãofrásicaeleganteecuidada,asimagensplásticassugestivaseoléxicoerudito.Poroutrolado,sobretudonareproduçãodasfalasdaspersonagens,recorre-seaosregistosfamiliarecorrentee,ocasionalmente,aocalãoparareproduzircomnaturali-dadeehumorostiquesdelinguagemoraldoportuguêsdofimdeséculo.

• Aindanoquedizrespeitoà«reproduçãododiscursonodiscurso»,odiscurso diretodosdiálogoseodiscurso indireto livre(técnicaemqueavozdeumapersonagemedonarradorsesobrepõem)revelam-seestratégiasaogostodaliteraturarealistanamedidaemquesecolocamaspersonagenseminteração,deformaaexporem-seatravésdoquedizemeadenunciaremoseucarácter,incongruênciasevícios,numprocessodecaracterizaçãoindiretaemqueapersonagemmostraoqueépeloqueafirmaepelaformacomoafirma:Dâmasoéboçal;Cohen,inculto;Ega,pedante;Palma«Cavalão»,hipócrita,etc.

• Poroutrolado,osrecursos expressivosconferemoriginalidadeeriquezaàprosaqueirosiana.AironiaéumrecursoexpressivocultivadoporEça,tantoporqueserveacríticasocialcomoporquesetratadeumafiguradeestiloqueconfereleveza,encantoehumorànarrativa.Esterecursoexpressivorevela-seadequadoparadenunciarascontradições,asincongruênciaseasfalhasdaspersonagensedoscomportamentossociais.

• Ahipálageéoutrorecursoexpressivoqueseassociaàprosaromanesca deEça,tendoemcontaaelegânciaeaexpressividadecomqueoromancistaausou.Ahipálage,recorde-se,consisteemassociarumapalavra(normal-menteumepíteto)nãoaotermoaqueestarianaturalmenteligadomasaumvocábulovizinho:«Egaespalhavatambémpeloquartoumolharpensativo»(eraEgaquemestavapensativo,nãooseuolhar).

• Acomparaçãoeametáforasãorecursosexpressivosdecapitalimportância nacaracterizaçãodecertaspersonagensedavidalisboeta.Emtomirónicooutrocista,nabocadealgumaspersonagensacomparaçãoeametáforasão formasdecaracterização insultuosa:porexemplo,«abestadoCohen». Facilmenteaironiaseassociaàmetáforanacaracterizaçãodealguém,nestecaso,ocondedeGouvarinho,acercadequemEgadiz:«—Temtodasascon-diçõesparaserministro:temvozsonora,leuMaurícioBlock,estáencalacrado,eé um asno!…».

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• Noutroscasos,acomparação,ametáforaeasimagenstomampartenasdes-criçõesartísticasdepaisagens:«Iamamboscaminhandoporumadasalame-daslaterais,verdeefresca,deumapaz religiosa, como um claustro feito de folhagem.»Ouentão,traduzem,deformaadmirável,osestadosdealmahumana,comonocasodametáfora:«osbigodesesvoaçandoaovendavaldaspaixões».ParacaracterizarovazioexistencialdePedrodaMaia,diz-seque,paraele,«dias[são]taciturnos,longoscomodesertos».

• Noseuperíododematuridadeliterária,EçadeQueiróstrabalhouoadjetivo eoadvérbiodeformaartísticaedisciplinada,demodoaobterumaexpressivi-dadeadmirável.Oadjetivopodeserusado,emEça,deformasurpreendente,associando-seaelementosaquenãoseligavasemanticamente:«sorrisomole»,«chiarlentodasrodas».Nessescasos,projetanafraseasubjetividadeeojuízodoenunciador(narradoroupersonagem).Oscasosdeadjetivaçãodupla revestem-sedeparticularsignificado,sobretudoquandoosadjetivoscontrastamentresi,associandooconcretoeoabstrato,ofísicoeopsicológico,etc.:«maciçoesilenciosopalácio»,«unssonsdepiano,dolenteevago».Algunsdosexem-plosrevelamqueoadjetivopodeestaraoserviçodacrítica.

• Igualfunçãopodeserdesempenhadapeloadvérbio,sobretudoquandotemumapresençainesperadaesurpreendentenafrase:«remexiadesoladamente oseucafé».Aíoadvérbiocorresponde,comooadjetivo,aumcomentárioouaumaconstataçãodoenunciador;noutrassituações,desencadeiaumefeitohumorístico.Significativossãooscasosemqueoadvérbiocontrastacomosignificadodoverbo,comoem«Dâmasosorriatambémlividamente».

• Overboéoutraclassedepalavrastrabalhadacriativamente,produzindoemváriospassoscombinaçõessugestivaseplenasdesignificado:«mordiaumsor-riso»,«vamo-nosgouvarinhar»,«Egatrovejou»,etc.Poroutrolado,tantoopre-téritoimperfeitodoindicativo,quealudeaaçõesrepetidas,comoogerúndioconferemdinamismoàsdescrições.Asformasverbaisdoimperfeitoegerúndiofuncionamtambémnormalmentecomomodosdedarcontadovaloraspetualhabitualoudurativodaação:«otédiolentoiapesandooutravez.»

• Aindanodomíniodovocabulário,otextod’Os Maiassurgepolvilhadode estrangeirismos,quesãocriteriosamenteusados.Assim,tantoo«anglicismo»(vocábulodeorigeminglesa)comoo«galicismo»ou«francesismo»traduzemfrequentementeapretensãodaspersonagensemexibirumrequinte,umamodernidadeeumcosmopolitismo,que,contudo,acabamporserartificiais.Vemosaquiojogodasaparênciasemqueasociedadeburguesatantosecom-praz.Porexemplo,noepisódiodascorridasdecavalos,ovocabuláriodesteespetáculotãopouconacionalérequisitadoàlínguainglesa:«jockey»,«sports-man»,«handicap»ou«dead-beat».Nãoraro,oestrangeirismoéusadodeformairónica,comoofamoso«chique»,deDâmaso,quedenunciaasuasub-missãopacóviaaofrancesismo,oqualtambémmarcapresençanoromanceparaaludiraquestõesdemodaesociedade.

• Porúltimo,odiminutivopodeassumirváriossignificados:seemalgunscasossetratadeumaexpressãodeafeto(«Carlinhos»,«olatinzinho»),maisinteres-santeéasuautilizaçãoirónicaparadepreciarouridicularizaralguém:«Dama-sozinho,flor,fiqueavisadodeque,deoraemdiante,cadavezquemesucederumacoisadesagradável,venhoaquieparto-lheumacostela[…].»Odiminutivoencarrega-sedeparticiparnaatitudetrocistadonarradoredealgumasperso-nagensnacríticadecomportamentosedecostumes.

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