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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
PRISCILA DE SOUZA CHISTÉ
O PROCESSO CATÁRTICO NO ENSINO DA ARTE: UMA
PARCERIA ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO
VITÓRIA - ES
2007
PRISCILA DE SOUZA CHISTÉ
O PROCESSO CATÁRTICO NO ENSINO DA ARTE: UMA PARCERIA
ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, na área de concentração Educação e Linguagens. Orientadora: Profª. Drª. Gerda Margit Schütz Foerste.
VITÓRIA 2007
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Chisté, Priscila de Souza, 1973- C542p O processo catártico no ensino da arte : uma parceria entre
escola e espaço expositivo / Priscila de Souza Chisté. – 2007. 234 f. : il. Orientadora: Gerda Margit Schultz Foerste. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Educação. 1. Artes. 2. Escolas. 3. Catarse. 4. Museus de arte. 5. Pesquisa
– Ação. I. Foerste, Gerda Margit Schultz. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.
CDU: 37
PRISCILA DE SOUZA CHISTÉ
O PROCESSO CATÁRTICO NO ENSINO DA ARTE: UMA PARCERIA
ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação na área de concentração Educação e Linguagens.
Aprovada em 26 de março de 2007. COMISSÃO EXAMINADORA _________________________________________ Profª. Drª. Gerda Margit Schutz Foerste Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora _________________________________________ Profª. Drª. Denise Meyrelles de Jesus Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Prof. Dr. João Francisco Duarte Jr. Universidade Estadual de Campinas _________________________________________ Profª. Drª. Moema Martins Rebouças Universidade Federal do Espírito Santo _________________________________________ Prof. Dr. Sebastião Pimentel Franco Universidade Federal do Espírito Santo
AGRADECIMENTOS
Quero deixar meus agradecimentos a todas as pessoas que tornaram possível a
realização desta pesquisa. Agradeço aos meus pais, Carlos Alberto e Jerusa, por
terem iniciado meu contato com a Arte.
À professora Gerda pela acolhida especial, paciência e considerações fundamentais
durante os momentos de orientação.
À professora Denise pela gentileza de ter acompanhado de perto minhas
dificuldades.
Aos meus amigos Érika, Gilson, Luciene e Marinete por estarem incansavelmente
iluminando minha caminhada durante essa trajetória.
Agradeço também aos meus familiares e a meu marido que, mesmo sem entender o
motivo das minhas madrugadas estudando e das minhas angústias, me ajudaram a
não me sentir tão só.
Agradeço a Denis e a Fabíola por terem carinhosamente tratado as imagens que
integram esta dissertação.
Muito obrigada.
“Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos dos outros, sempre
regressamos a nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que nos
parece resumir o todo, realiza-se sempre nas categorias de nossa própria
vida”.
(Bakhtin)
RESUMO
Analisa o Ensino da Arte, discutindo o processo catártico vivenciado por alunos, no
encontro com a obra de arte. A discussão localiza-se na aproximação das práticas
de ensino na sala de aula e em espaços expositivos. Fundamenta-se na abordagem
histórico-cultural de Vigotski e Lukács para reflexão sobre o conceito de catarse,
como experiência estética e educativa que ocorre dentro de um processo de
encontros entre sujeitos em contextos socioculturais específicos, de convívio com a
obra de arte e de interação social. A partir da parceria entre duas Arte-educadoras,
atuantes em espaços expositivos e na escola, planeja e executa uma proposta de
Ensino da Arte, como pesquisa-ação, a partir da qual investiga como alunos de 8ª
série podem vivenciar/compartilhar/construir o processo catártico, tanto no espaço
expositivo quanto na sala de aula. Na dinâmica de investigação, foram utilizados,
como procedimentos para a coleta de dados, videogravações, fotografias, diário de
bordo, entrevistas semi-estruturadas, questionário e análise das produções artísticas
dos alunos. Para a análise dos dados, procede à reflexão crítica dos momentos da
intervenção à luz do referencial teórico. O estudo possibilita reafirmar a importância
da Arte na formação humana, percebendo que o contato dos alunos com os objetos
artísticos, em espaços expositivos, permite desencadear um processo reflexivo
fundamental na construção social do sujeito. Dessa forma, a catarse, como
experiência estética, pode provocar reflexões transformadoras sobre estruturas
alienantes. Contudo, essa situação não se dá de forma imediata e em um só tempo,
mas se constitui e se constrói no processo. Neste, os espaços escolar e expositivo
são os locais que podem estimular a capacidade criadora do jovem, sendo essencial
reconhecer e efetivar a participação do monitor e do professor como mediadores do
processo de significação dos conteúdos, estimulando o desenvolvimento das
percepções, interpretações e reflexões relativas às produções dos alunos e às suas
falas. Nesse processo, é preciso considerar que os indivíduos estão carregados de
impressões e vivências que colaboram com a sua forma singular de entender as
imagens artísticas. A interação que se estabelece entre os sujeitos, a partir da obra
de arte, pode favorecer uma troca qualitativa de informações e uma ampliação dos
horizontes interpretativos. Dessa maneira, o presente estudo busca contribuir para a
construção de uma proposta de Ensino da Arte que propicie ao indivíduo a vivência
de processos catárticos capazes de desconstruir a realidade reificada,
proporcionando trocas de saberes e afetividades entre os sujeitos.
Palavras-chave: Arte. Catarse. Escola. Espaço expositivo. Pesquisa-ação.
ABSTRACT
The research analyses the Art Teaching, discussing the cathartic process
experienced by students, together with the work of art. The discussion is guided by
the teaching practices approximation in the classroom and expositive spaces. It is
based on the historical-cultural approach of Vigotski and Lukács for the reflection
about the concept of catharses, as esthetic and educative experience that occurs
inside a process of meetings among subjects in specific socio cultural contexts, living
with the work of art and social interaction. From the partnership between two Art-
educators working at expositive spaces and at schools, it plans and performs a
proposal of teaching Arts, as research-action, which investigates how eighth-grade
students live/share/build the cathartic process, in both, the expositive and space and
classroom. In the investigation dynamic, it was used as data collection the
videotaping, photography, journal, semi-structured interviews, questionnaire and the
students’ artistic production analysis. To analyze data, precedes the critical reflection
of intervention moments to the light of theoretical referential. The study makes
possible the reaffirmation of the Art importance in the human formation, noticing that
the contact of students with artistic objects, in expositive spaces, permits unchaining
a reflexive process fundamental for the social construction of the subject. This way,
the catharses, as esthetic experience, is able to provoke changing reflections about
alienating structure. However, this situation is not immediate and in just only one
time, but is constituted and built in the process. The school and expositive spaces are
place that may stimulate the creating capacity of young people, considering essential
acknowledging and putting into effect the participation of monitors and teachers as
mediators of the process of content meaning, motivating the development of
perception, interpretations and reflections related to the students productions and
their speeches. In this process, it is necessary to consider people are loaded of
impressions and experiences that collaborate with its singular form of understanding
the artistic images. The interaction established among subjects, from the work of art,
can favor a qualitative change of information and an enlargement of interpretative
horizons. This way, the present study aims at contributing for the construction of Art
Teaching proposal that provides the subject an experience of cathartic processes
able to eliminate the reality treated as anything, providing the share of knowledge
and affection among people.
Keywords: Arts. Catharses. School. Expositive space. Research-action.
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1– Formação dos monitores......................................................................98
Fotografia 2 – Atividade em sala de aula.................................................................101
Fotografia 3 – Atividade utilizando modelo retirado do livro de Língua
Portuguesa........................................................................................101
Fotografia 4 – Atividade utilizando modelo...............................................................102
Fotografia 5 – Atividade que não aderiu ao esboço.................................................103
Fotografia 6 – Atividade representando princípio da xilogravura.............................104
Fotografia 7 – Alunos desenhando na mesma mesa...............................................105
Fotografia 8 – Desenho de detalhe..........................................................................107
Fotografia 9 – Interferência em fotocópia.................................................................108
Fotografia 10 – Aluno contribuindo com desenho do outro......................................109
Fotografia 11 – Seqüência de produções dos alunos..............................................110
Fotografia 12 – Vista interna da Exposição “Metal Madeira”....................................111
Fotografia 13 – Chegada dos alunos ao espaço expositivo.....................................112
Fotografia 14 – Alunos observando instrumentos para realização de gravuras......114
Fotografia 15 – Atividade em grupo no espaço expositivo.......................................118
Fotografia 16 – Gravuras em isopor realizadas por alunos no espaço expositivo...133
Fotografia 17 – Desenho relacionado com a visita à exposição utilizando o folder
da exposição...................................................................................135
Fotografia 18 – Desenho relacionado com a visita à exposição..............................136
Fotografia 19 – Desenho enfatizando oposições.....................................................137
Fotografia 20 – Desenho a partir da temática das gravuras de Gian Shimada........138
Fotografia 21 – Momento de apreciação musical.....................................................141
Fotografia 22 – Alunos reunidos para produção em grupo......................................142
Fotografia 23 – Desenho sobre a canção “Epitáfio”.................................................143
Fotografia 24 – Desenho inspirado na gravura de Gian Shimada...........................145
Fotografia 25 – Produção de gravura em isopor em sala de aula............................146
Fotografia 26 – Alunos observando imagens...........................................................148
Fotografia 27 – Produção de colagens em grupo....................................................149
Fotografia 28 – Produção de colagem.....................................................................150
Fotografia 29 – Alunos no laboratório de informática avaliando o processo............152
Fotografia 30 – Alunos em dupla avaliando o processo vivenciado.........................153
LISTA DE FIGURAS
Figura 1– VIEIRA, Gabriel. Cão, 2004. Xilogravura de topo, 6,7x6,5cm...................90
Figura 2 – VIEIRA, Gabriel. Auto-consumo, 2005. Xilogravura de topo,
8,0x7,5cm..................................................................................................91
Figura 3 – SHIMADA, Gian. Caçadores de cabeças I, 2004. Gravura em
metal, xilogravura, 50x60cm.....................................................................92
Figura 4 – SHIMADA, Gian. 7 Casas do Sol, Xilogravura e relevo, 60x90cm...........92
Figura 5 – SAMÚ, Raphael. Sem Título, 1970. Xilografia de topo, Ø 36,5cm............99
Figura 6 – VIEIRA, Gabriel. Auto-consumo, 2005. Xilogravura de topo,
8,0x7,5cm................................................................................................120
Figura 7 – VIEIRA, Gabriel. 1º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm............121
Figura 8 – VIEIRA, Gabriel. 2º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm............122
Figura 9 – VIEIRA, Gabriel. 3º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm............122
Figura 10 – SHIMADA, Gian. Em nome do pai. Xilogravura, 60x30cm;
SHIMADA, Gian. Em Nome da mãe. Xilogravura, 60x30cm................128
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................16
1 O ENSINO DA ARTE.............................................................................................24
1.1 O ENSINO DA ARTE NO BRASIL......................................................................24
1.2 O ENSINO DA ARTE EM ESPAÇOS EXPOSITIVOS........................................36
2 CATARSE: UM CONCEITO NECESSÁRIO À FORMAÇÃO CRÍTICA
DO INDIVÍDUO.......................................................................................................49
2.1 A CATARSE, DEFININDO O CONCEITO: UMA APROXIMAÇÃO.....................50
2.1.1 Uma Aproximação Aristotélica à Catarse....................................................50
2.1.2 Uma Aproximação Vigotskiana à Catarse e Outras Contribuições...........52
2.1.3 Uma Aproximação Jaussiana à Catarse......................................................58
2.1.4 Uma Aproximação Lukacsiana à Catarse....................................................62
2.2 A CATARSE NA EDUCAÇÃO.............................................................................71
2.3 A PARCERIA ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO:...............................74
3 CAMINHOS INVESTIGATIVOS..............................................................................81
3.1. A METODOLOGIA..............................................................................................81
3.1.1 A Escola...........................................................................................................85
3.1.2 O Espaço Expositivo e a Exposição Escolhida............................................87
3.1.2.1 Sobre o Espaço Expositivo.............................................................................87
3.1.2.2 Sobre a Exposição.........................................................................................88
3.1.3 A Intervenção: Projeto em Parceria...............................................................93
3.1.3.1 A Elaboração do Material Educativo..............................................................93
3.1.3.2 A Construção da Parceria do Espaço Expositivo com a Escola....................93
4 O PROCESSO CATÁRTICO NO ENSINO DA ARTE: UMA PARCERIA
ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO.........................................................95
4.1 OS MOMENTOS DA INTERVENÇÃO.................................................................95
4.1.1 Pensando a Formação dos Monitores...........................................................96
4.1.2 Ouvindo Imagens: a Sensibilização do Olhar...............................................98
4.1.3 As Obras de Arte como Objetos da Vivência Estética: o Início de
um Processo Catártico.................................................................................111
4.1.3.1 O episódio....................................................................................................113
4.1.4 A Continuidade do Processo Catártico em Sala de Aula:
o Aprofundamento das Propostas Iniciadas no Espaço Expositivo........134
4.1.5 Avaliando o Processo Catártico..................................................................152
CONSIDERAÇÕES .................................................................................................159
REFERÊNCIAS........................................................................................................165
APÊNDICES ............................................................................................................170
APÊNDICE A – ENTREVISTA COM GABRIEL VIEIRA E
GIAN SHIMADA.............................................................................170
APÊNDICE B – CADERNO DA ARTE.....................................................................181
APÊNDICE C – FORMAÇÃO DOS MONITORES...................................................211
APÊNDICE D – APRESENTAÇÃO UTILIZADA PARA AVALIAÇÃO DO
PROCESSO...................................................................................217
APÊNDICE E – TABULAÇÃO DO QUESTIONÁRIO...............................................230
16
INTRODUÇÃO
Para iniciar a apresentação deste trabalho, optamos por fazer um relato de nosso
percurso, desde os primeiros interesses pelo tema aqui tratado até a concretização
da investigação, que resultou nestas páginas. Trata-se de um percurso carregado de
pesquisa, experimentações, conquistas e inquietações.
Nossa busca conceitual nos permitiu entender que o Ensino da Arte constitui-se
como fundamental integrante no processo de formação do indivíduo. Nossas leituras
e as reflexões geradas pela prática em sala de aula nos possibilitaram acreditar que
a relação entre obra de arte e o sujeito permite o desencadeamento de um processo
reflexivo fundamental na construção social do indivíduo, possibilitando que o sujeito
participe de vivências estéticas que o estimule a repensar seu cotidiano,
colaborando com a ampliação de seu conhecimento de mundo, do outro e de si. No
mundo contemporâneo, onde o poder é exercido pela mídia e pela publicidade,
somos desafiados a ler imagens que se colocam como reconstituições simbólicas do
real fetichizado. Portanto, nesse contexto, consideramos que o processo reflexivo
originado pela relação do sujeito com a obra de arte é fundamental para colaborar
com a transformação das estruturas alienantes, proporcionando uma nova atitude
diante dos acontecimentos cotidianos.
Com esse pensamento, iniciamos nossa caminhada na área do Ensino da Arte em
espaços expositivos, quando ainda estudante do curso de Educação Artística do
Centro de Artes da Ufes. Percebemos que as dificuldades encontradas no Ensino da
Arte localizavam-se tanto na sala de aula quanto nos espaços expositivos. Além
disso, identificamos a ausência de materiais educativos de qualidade e de obras de
arte na mediação da construção do conhecimento artístico em espaços educativos,
discussão que é corroborada pelos estudos de Barbosa (1991), Pillar (1999), Fusari
e Ferraz (1992).
17
Em nossos estudos sobre o tema, notamos, também, que existia uma carência de
propostas pedagógicas pensadas para os espaços expositivos. Em alguns desses
locais, os visitantes observavam livremente as obras e, como suporte contextual,
tinham apenas os pequenos e rebuscados textos dos folderes ou aqueles
adesivados nas paredes. Em outros, os visitantes, em sua maioria estudantes da
escola básica, recebiam uma monitoria que falava sobre a vida do artista e a técnica
utilizada por ele, transformando a visita em uma grande aula expositiva, em que as
obras de arte eram vistas como ilustrações do percurso profissional do artista e os
visitantes como receptores passivos das informações oferecidas pelo monitor.
Insatisfeita com essa orientação, resolvemos iniciar um estudo sobre essa temática,
com a pretensão de melhor dimensionar os problemas observados e aprofundar o
tema.
Instigada pelas abordagens contemporâneas de Ensino da Arte, o grupo de estudo
do qual fazíamos parte elaborou um projeto de extensão pela Universidade Federal
do Espírito Santo, chamado “Arte-Escola”. Esse projeto aconteceu no Museu de Arte
do Espírito Santo (MAES), em 2001, e teve, como objetivo geral, transformar a
excursão ao museu numa visita previamente preparada, com objetivos pedagógicos
definidos que pudessem gerar novos projetos em sala de aula. Para tanto,
preparamos um material de apoio ao professor e aos monitores do museu focado
especificamente na exposição “Essência e Fragmentos” de Raphael Samú, realizada
no MAES, entre os dias 25 de setembro de 2001 e 27 de janeiro de 2002.
Tínhamos, nesse momento, como referencial teórico, Ana Mae Barbosa e Robert
Willian Ott. Barbosa (1991) com a Proposta Triangular de leitura de imagens
elaborada para as visitas a museus de Arte. Trazia, como eixo fundamentador, a
leitura da imagem, a contextualização da obra e a produção artística do visitante. Ott
(1997) propunha uma seqüência de duas etapas para a leitura da imagem: o
aquecimento, que é visto como um período de preparação do olhar, e, na seqüência,
a leitura de imagens no espaço do museu que se desdobra nos seguintes passos:
descrevendo, analisando, interpretando, fundamentando e revelando.
Além desse referencial teórico, para elaborar este trabalho, analisamos materiais
pedagógicos produzidos por alguns museus e galerias brasileiros. Pudemos
18
perceber que existiam poucas propostas de elaboração de materiais educativos para
o Ensino da Arte em espaços expositivos. A partir dos nossos estudos, optamos por
elaborar um “Caderno do Professor”, um Livro de Literatura Infantil, que chamamos
de “Os Bichos da Noite”, e dois roteiros de leitura de obras de arte, esses últimos,
divididos em faixas etárias.
Tanto o livro “Os Bichos da Noite” quanto o “Caderno do Professor” deveriam ser
entregues aos professores antes das visitas. Assim, possibilitávamos a execução do
projeto sugerido no livro, preparando e motivando os alunos para visitar a exposição.
A partir de observações prévias à elaboração do projeto, percebemos que os alunos
que recebiam informações sobre a exposição, antes da ida ao museu, participavam
mais ativamente do que aqueles que não as recebiam. Então, para esse projeto,
propusemos que a visita estivesse dividida em três momentos: a preparação, o
momento da visita e a continuidade do projeto em sala de aula. No final do projeto
de extensão, concluímos que parte do material apresentava falhas e que nossa
prática deveria ser repensada.
Buscando referencial teórico que norteasse uma prática dinâmica de visitas à
espaços expositivos e a museus, ainda nessa época, deparamo-nos com a
dissertação de mestrado de Sebastião Pimentel Franco. Nessa pesquisa, Franco
(1994) explorava as relações existentes entre o museu e a escola, definindo esses
espaços também como espaços de transformação. A partir dela, pudemos entender
quais conceitos alunos, professores e funcionários que visitavam ou trabalhavam no
Museu Solar Monjardim possuíam sobre esse espaço. Além disso, encontramos em
Franco considerações que faziam parte da nossa reflexão sobre as práticas
educativas em espaços expositivos e em museus, principalmente as relativas à falta
de objetivos pedagógicos, por parte da escola, para a visita. Esse autor percebeu
também que muitos professores não realizavam trabalhos sistematizados com os
alunos, de preparação, avaliação e aprofundamento das visitas. Quanto ao museu,
Franco criticava a ausência do planejamento e avaliação das atividades
desenvolvidas nesse espaço, privilegiando a transmissão de informações,
freqüentemente fragmentadas. Essas reflexões corroboravam nossas inquietações,
fazendo-nos buscar mais aprofundamentos nessa área.
19
Outro levantamento sobre a questão trouxe à superfície a obra de Martim
Goissmann (1988). Nela encontramos apontamentos e reflexões sobre a questão
educativa no Museu de Arte Contemporânea da Universidade Federal de São Paulo.
O que mais chamava a atenção nesse trabalho eram as descrições das monitorias e,
por conseguinte, as experiências educativas no museu. Buscando tornar a visita ao
espaço expositivo algo que ultrapassasse a idéia de um passeio rápido e efêmero,
Grossmann propunha que a visita deveria ser uma experiência inquietante,
prazerosa, que provocasse e estimulasse, como ele mesmo sugere, “[...] um estar
crítico e sensível do visitante, uma experiência passível de aquisição de
conhecimento” (1988, p. 52). Para que isso acontecesse, Grossmann dividia a
permanência do grupo no museu em dois momentos: a visita em si pelo espaço
expositivo e a atividade prático-plástica no atelier. Grossmann, no entanto, não se
preocupava com a escola ou com as aulas de Arte que sucederiam a visita ao
museu de Arte.
Tendo conosco toda essa vivência, angústias, resignação e uma grande
preocupação relativa às metodologias do Ensino da Arte, após o término do projeto
de extensão, em 2002, o grupo do qual fazíamos parte foi convidado a formar a
equipe de Arte-Educação do Espaço Cultural “Egydio Antônio Coser”, no Palácio do
Café, em Vitória. Acreditávamos na necessidade da aproximação poética e crítica
entre os visitantes da galeria e o objeto artístico exposto. Buscávamos proporcionar,
entre eles, um diálogo estimulante, instigante e produtivo. Para isso, pensávamos
para cada exposição um material pedagógico que, na época, chamávamos de
“Caderno de Recursos Educativos em Arte-Educação” e hoje, tendo em vista que
continuamos atuando nessa instituição, chamamos de “Caderno de Arte”. Esse
material continha informações sobre os artistas, suas obras, suas idéias e também
textos sobre a história da linguagem artística utilizada por eles e suas
particularidades, além de sugestões de projetos e informações pedagógicas para
auxiliar o professor em sala de aula. Baseada em nossa experiência no Projeto
“Arte-Escola”, continuamos acreditando que os alunos deviam ser preparados e
estimulados para a visita à galeria. No projeto “Educarte”, ampliamos as
possibilidades de sensibilização dos visitantes. Além da criação de textos literários,
utilizamos, quando possível, as produções literárias do próprio artista e sugerimos
dinâmicas, debates e produções artísticas relacionadas com a exposição, sempre
20
com a inquietação de estar ou não direcionando o olhar. Consideramos que a
experiência que tivemos com o projeto anterior gerou uma grande preocupação no
que diz respeito à preparação para a visita, o que nos fez buscar opções diferentes
das propostas sugeridas no projeto “Arte-Escola”.
O modo como deviam ser conduzidas as leituras das imagens encontradas na
galeria foi outro fator que gerou inquietações, desde o projeto “Arte-Escola”. A
experiência vivenciada no Espaço Cultural “Egydio Antônio Coser” nos direcionou a
criar propostas de leitura diferentes das que foram sugeridas. Buscamos a
participação oral dos alunos pois, por meio de suas falas, conhecemos suas
observações e seus questionamentos construídos a partir das imagens e, conforme
os posicionamentos e questionamentos levantados por eles, contextualizamos as
informações sobre os artistas e suas obras. Assim, procuramos deixar que o olhar
do aluno também participasse do percurso da exposição, permitindo que ele
trouxesse sua vivência e suas histórias para dentro do espaço expositivo,
proporcionando uma interação mais significativa entre as imagens artísticas e o
receptor. Além disso, começamos a perceber que era muito importante a
aproximação entre o Espaço Cultural e as escolas visitantes, tendo em vista que, na
medida em que as escolas retornavam à galeria, buscávamos estreitar os laços com
as professoras responsáveis pelos alunos visitantes. Muitas vezes, solicitamos suas
opiniões sobre o percurso da visita, acolhendo-as, tendo-as como fonte de reflexão e
replanejamento dos modos de conduzir as monitorias.
Concomitante a esse trabalho, em 2003, fizemos o Curso de Especialização em
Artes Visuais, pela Universidade Federal do Espírito Santo. Nele, além de
ampliarmos nossos conhecimentos sobre a nossa área de atuação, pudemos
desenvolver um estudo que culminou na monografia “A Arte-Educação em galerias
de arte: uma proposta educativa para a exposição ‘Esculturas’, do artista plástico
José Carlos Vilar”. Como o próprio título sugere, nela elaboramos tanto uma
pesquisa sobre o artista quanto um percurso de visitação para alunos da primeira
fase do ensino fundamental. Além disso, sugerimos projetos que poderiam ser
elaborados antes e depois da visita ao espaço expositivo. Com essa monografia,
conseguimos atenuar um pouco nossas angústias relativas à questão metodológica,
tendo em vista que a maior preocupação deste trabalho foi pesquisar os aspectos
21
concernentes ao artista, à linguagem utilizada por ele, sua técnica e referências,
para que tudo isso fosse norteador de nossa proposta educativa para a exposição.
A experiência acumulada na prática trazia muitas inquietações e questionamentos,
alguns referentes ao campo metodológico, outros às questões epistemológicas e
outros ainda à historicidade. Contudo, desde o início, uma preocupação com a
experiência estética esteve presente, sobretudo, na pergunta: como se realiza o
processo catártico entre a obra de arte e o jovem da 8ª série do ensino
fundamental, na parceria escola e espaço expositivo? Percebemos que, em todo
nosso percurso, estivemos atenta às questões que diziam respeito à experiência
catártica, entendendo-a como um processo que envolve o convívio com a Arte,
possibilitando uma reflexão sobre o mundo, fazendo com que o indivíduo repense
seu cotidiano e não deixando também de se apropriar da linguagem artística.
Norteada por essa preocupação, iniciamos nossos estudos em mestrado, o que
possibilitou uma maior aproximação com o objeto, compreendendo-o na sua
construção histórico-social, resgatando o estado da Arte dos estudos desenvolvidos
sobre essa temática e, especialmente, compreendendo-a no bojo da discussão
sobre o Ensino da Arte, como processo educativo. Realizamos muitas leituras sobre
o assunto e muitas delas resultaram em partes desta dissertação. Foi um momento
de pensar e sistematizar nossa experiência, percebendo que essa sempre esteve
ligada à pesquisa-ação, de maneira que, em todos os nossos projetos, fomos
participante do processo, buscando elaborar propostas relacionadas com o Ensino
da Arte, que colaborassem com a formação de um cidadão crítico capaz de entender
e transformar sua realidade. Além disso, o mestrado possibilitou que nos
deixássemos fecundar pelas trocas que esse momento nos proporcionava.
Participamos de seminários, conhecemos novos parceiros teóricos, repensamos
nossa prática, visto que, nesse momento, estivemos envolvida, com nosso trabalho,
atuando na escola e no espaço expositivo.
Tendo transformado nossas inquietações e experiências em projeto de pesquisa,
partimos para a escolha de uma professora que, em uma perspectiva de
colaboração, nos ajudasse a desenvolver nossa pesquisa, planejando momentos de
aprendizagem que resultassem em experiências catárticas, utilizando, como
22
espaços de pesquisa, tanto a sala de aula quanto o espaço expositivo, além de
buscar evidenciar a parceria entre essas instituições. Nossos principais objetivos
foram:
a) investigar o percurso da história do Ensino da Arte no Brasil, observando o seu
desenvolvimento tanto na escola quanto em espaços expositivos;
b) dimensionar, conceitual e empiricamente, a catarse como experiência estética e
educativa, a partir do Ensino da Arte na parceria entre escola e espaços expositivos;
c) planejar e executar uma proposta de Ensino da Arte em parceria, na vivência e na
construção do conhecimento em espaços expositivos e na escola, que promova
momentos que colaborem com o processo catártico dos jovens da 8ª série do ensino
fundamental;
d) identificar e analisar processos catárticos entre os sujeitos (professores e alunos)
e a obra de arte, a partir do trabalho em parceira entre escola e espaço expositivo,
no município de Vitória-ES.
Nossa pesquisa foi iluminada principalmente por teorias de pensadores como Lev
Semenovith Vigotski e George Lukács. Vigotski tem como postulado fundamental a
crença de que o ser humano se constitui nas relações sociais, considerando que a
cultura se torna parte da humanidade num processo histórico que, ao longo do
desenvolvimento da espécie e do sujeito, molda o funcionamento psicológico do
homem. Não discordando dessa teoria, Lukács entende a Arte como um modo de os
homens se apropriarem do mundo. Sendo assim, o encontro com a obra de arte
torna possível que o indivíduo reconheça sua própria essência, sua história no
processo de desenvolvimento do ser humano. A Arte leva o homem à catarse, que é
tratada por Lukács como uma sacudida na subjetividade do receptor, levando-o a
tomar consciência de si e do mundo em que está inserido.
Tendo isso em vista, a reflexão gerada por este trabalho foi organizada em quatro
capítulos: no primeiro capítulo, buscamos fazer uma investigação acerca da história
do Ensino da Arte no Brasil, observando o seu desenvolvimento tanto na escola
23
quanto em espaços expositivos; no segundo capítulo, dimensionamos, conceitual e
empiricamente, a catarse como experiência estética e educativa, a partir do Ensino
da Arte na parceria entre escola e espaços expositivos; no terceiro capítulo, tratamos
da metodologia e dos procedimentos recomendados para a investigação, segundo o
referencial adotado; apresentamos, no quarto capítulo, a análise dos dados relativos
à pesquisa, enfocando os processos interativos ligados à catarse na sala de aula e
no espaço expositivo.
Enfim, nossa preocupação com o Ensino da Arte, como integrante do processo de
formação e transformação do sujeito, gerou uma série de questões e reflexões sobre
o assunto. Questões que tentamos trazer à tona nas páginas desta pesquisa.
24
CAPÍTULO I
O ENSINO DA ARTE
O homem, que se tornou homem pelo trabalho, que superou os limites da animalidade transformando o natural em artificial, o homem, que se tornou um mágico criador da realidade social, será sempre o mágico supremo, será sempre Prometeu trazendo o fogo do céu para a terra, será sempre Orfeu enfeitiçando a natureza com a sua música. Enquanto a própria humanidade não morrer, a Arte não morrerá.
(Ernst Fischer)
1.1 O ENSINO DA ARTE NO BRASIL
No desenvolvimento do Ensino da Arte no Brasil, nem sempre se priorizou uma
educação que proporcionasse um contato com obras de arte; pelo contrário, o
acesso era restrito e extremamente elitizado. O conceito de Arte, como símbolo de
educação refinada, tem origem no Brasil colônia, período em que a Arte era
considerada erudita, ou seja, era vista como uma linguagem fechada e afastada das
vivências e possibilidades de acesso do povo.
A vinda da Missão Francesa1 trouxe a institucionalização do Ensino da Arte no
Brasil, dentro de um padrão acadêmico. Nessa época, eram valorizadas as cópias
de obras européias. O Ensino da Arte se manteve assim até a Revolução Industrial,
que trouxe consigo grandes modificações nas cidades e nas pessoas. Isso refletiu 1 “Missão Artística Francesa” foi a denominação dada a um grupo de artistas que chegaram ao Brasil em 1816 encarregados de fundar da Academia Brasileira de Belas-Artes.
25
também no desenvolvimento da Arte-Educação, que se voltou para a
profissionalização, principalmente por meio do ensino do desenho geométrico.
Entre os anos 20 e 70, do século XX, muitas escolas brasileiras viveram outras
experiências no âmbito do ensino e aprendizagem da Arte, fortemente sustentadas
pela estética modernista e com base na tendência escolanovista.2 O Ensino da Arte
volta-se, então, para o desenvolvimento natural da criança centrado no respeito às
suas necessidades e aspirações, valorizando suas formas de expressão e de
compreensão do mundo. Evitava-se, assim, expor os alunos a imagens artísticas,
para que essas não pudessem interferir em sua criatividade. As práticas
pedagógicas são redimensionadas, deslocando-se a ênfase para os processos de
desenvolvimento do sujeito e sua criação.
Em 1971, com a Lei n° 5.692,3 fica determinada a obrigatoriedade do Ensino da Arte
nas escolas, por meio da disciplina de Educação Artística, que deveria contemplar
os conteúdos relativos à música, dança, teatro e Artes Plásticas, tendo, para tanto,
somente um professor, visto como polivalente e detentor de todos os saberes
concernentes a essa área do conhecimento. Essa polivalência acarretou uma
profunda superficialidade nos conteúdos artísticos, principalmente porque esse
profissional recebia uma curta formação para atuar na área. Tendo em vista esses
problemas, foi surgindo uma série de insatisfações que gerou importantes reflexões
na área, permeando toda a década de 70, e que culminou, nos anos 80, no
movimento de Arte-Educação.
O movimento de Arte-Educação, inicialmente com a finalidade de conscientizar e
organizar os profissionais, resultou na mobilização de grupos de professores de Arte,
tanto de educação formal como da informal.4 Esse movimento permitiu que se
2 A tendência escolanovista tem suas origens no final do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, seus reflexos começam a chegar por volta de 1930. Ferraz e Fusari (1992) colocam que, do ponto de vista da Escola Nova, os conhecimentos obtidos pela ciência e acumulados pela humanidade não precisam ser transmitidos aos alunos, pois acreditava-se que, passando por esse método, eles seriam naturalmente encontrados e organizados. 3 Observa-se que a Educação Artística nessa Lei é tratada de modo indefinido, o que fica patente na redação de um dos documentos explicativos da Lei, ou seja, o Parecer nº 540/77: "[...] não é uma matéria, mas uma área bastante generosa e sem contornos fixos, flutuando ao sabor das tendências e dos interesses" (FUSARI; FERRAZ, 1992, p. 37-38). 4 A educação informal em Arte, nesse momento, era realizada principalmente nas Escolinhas de Arte, que foram idealizadas por Augusto Rodrigues, Margareth Spence e Lúcia Alencastro Valentim. Nas Escolinhas, também eram oferecidos curso de formação para Arte-educadores e artistas.
26
ampliassem as discussões sobre a valorização e o aprimoramento do professor,
reconhecendo que, em alguns casos, esse profissional apresentava-se isolado e
necessitado de conhecimentos relativos à Arte e seu ensino, preocupação que se
mostra presente ainda nos debates contemporâneos.
Em 1988, com a promulgação da Constituição, iniciam-se as discussões sobre a
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nesse documento, a Arte é
considerada obrigatória na Educação Básica. Dos anos 90 em diante, temos aqui,
no Brasil, sistematizada por Ana Mae Barbosa, uma concepção de Ensino da Arte
denominada “Proposta Triangular do Ensino da Arte”, que tem como objetivo fazer
com que aconteça um inter-relacionamento entre a Arte e o público. Nasceu
justamente para atender aos objetivos educativos de um museu de Arte. Nela,
acredita-se que a apropriação do conhecimento acontece quando há união entre os
três pilares da Arte: o fazer, a leitura da obra e a contextualização. Para elaborar
essa proposta, Ana Mae Barbosa utiliza elementos propostos pelo DBAE. Essa sigla
quer dizer Discipliend – Based – Art – Education. Trata-se de uma proposta
americana teórico-prática criada pelo Getty Center for Educational in the Arts,
composta por estudiosos da Arte-Educação, como Elliot Eisner, Brent Wilson e
Ralph Smith.
Cabe, então, explicitarmos as questões que envolvem os três pilares da Proposta
Triangular. A leitura da obra de arte envolve o questionamento, a busca, a
descoberta e o despertar da capacidade crítica dos alunos, pensando no aluno como
indivíduo participante do processo educativo. As interpretações que nascem nesse
processo não são passíveis da redução de certo/errado; podem ser julgadas por
critérios como a pertinência, coerência, possibilidade, esclarecimento, entre outros.
Porém, o mais importante é que a leitura ressalte a obra de arte e não somente o
artista.
Outro pilar da Proposta Triangular é o fazer artístico, que envolve a construção de
formas artísticas em espaços diversos, bi e tridimensionais. Nas Artes Plásticas, é
também experimentar várias possibilidades, como desenhar, pintar colar, gravar,
fotografar, etc. Dentro dessas possibilidades, a proposta sugere a pesquisa e
utilização dos mais diversos materiais e instrumentos, como giz de cera, tinta, lápis
27
de cor, argila, goivas, máquinas fotográficas, fotocópias, etc. Além disso, é
importante saber reconhecer os elementos básicos da linguagem visual: como o
ponto, as linhas, as cores, os planos, as formas, os volumes e o equilíbrio. Dessa
maneira, os alunos aprendem a sintaxe da Arte e passam a operar melhor a
linguagem artística, podendo fazer e reconhecer as formas da e na Arte. Sobre esse
assunto, Foerste (2004, p. 97) esclarece:
O fazer artístico é parte integrante do processo de construção do conhecimento em Arte, mas não é o único. A experimentação é um aspecto de grande relevância na exploração dos materiais, formas e possibilidades expressivas, devendo estar associada à reflexão crítica, à teoria da Arte, à história da Arte e à estética. O processo percorrido na feitura da Arte é importante, e o produto, igualmente importante, contém elementos de um pensamento não traduzível em palavras, mas com características próprias que podem constituir um corpo teórico capaz de fundamentar as discussões sobre sua própria prática.
Além da leitura da obra de arte e do fazer artístico, a metodologia triangular propõe o
entendimento da História da Arte. Compreender as obras de arte diz respeito ao
conhecimento do porquê, quando e onde elas foram produzidas. Para isso, é
necessário pesquisar para contextualizar. Ao fazermos isso, estamos operando no
domínio da História da Arte e em outras áreas do conhecimento necessárias para
determinado programa de ensino. Assim, estabelecem-se relações que permitem a
interdisciplinaridade no processo de ensino-aprendizagem, cria-se, então, além de
uma interação dinâmica entre as parte e o todo, uma possibilidade de trabalhar junto
com outras áreas do saber, propiciando ao aluno um conhecimento mais amplo e,
por isso, mais completo.
Apesar da grande difusão que essa proposta teve e tem no Brasil, surgem algumas
críticas sobre ela, sobretudo no que se refere à utilização inadequada por parte de
alguns professores, que desenvolvem práticas de leitura pouco fundamentadas e
livres, suscetíveis a deturpações, principalmente nos momentos de produção
artística, muitas vezes presos a releituras que visam, acima de tudo, à cópia da
imagem artística. A partir dessa abordagem problematizadora, muitos estudos vêm
sendo realizados, demonstrando a necessidade de estarmos atentos a essa
situação.
28
Ainda na década de 1990, são sistematizados os PCNs, parâmetros diretivos
elaborados para a educação nacional. Neles a disciplina de Educação Artística
passa a se chamar Arte, incluindo-a como área de conhecimento ligada à produção,
fruição e reflexão artística. Nesse contexto, surgem também outros estudos e
propostas para o Ensino da Arte.
Um desses estudos foi o de Pillar (1999) que propõe um desafio para o Ensino da
Arte: a educação estética. A autora sugere que a Arte na educação estabeleça uma
relação entre os aspectos artísticos e estéticos do conhecimento. Para ela, a
educação estética busca “[...] expressar o modo de ver o mundo nas linguagens
artísticas, dando forma e colorido ao que, até então, se encontrava no domínio da
imaginação, da percepção [...]” (PILLAR, 1999, p.71).
Pillar (1999) coloca que a educação estética tem como lugar privilegiado o Ensino de
Arte, entendendo-a também como forma de leitura, de fruição que pode ser
possibilitada aos alunos, tanto do seu cotidiano como das imagens artísticas.
Segundo a autora, a Arte não é só um fazer; é preciso compreender o contexto dos
materiais utilizados, das propostas, das pesquisas dos artistas, ou seja, é necessário
conceber a Arte também como uma forma de pensar.
Relacionando-se com a Proposta Triangular, Pillar coloca que, ao ver, precisamos
interpretar os signos de uma cultura e compreender o sentido que criam a partir do
modo como estão organizados. O sentido vai ser dado pelo contexto e pelas
informações que o leitor possui. Compreendendo as imagens artísticas,
entrelaçamos informações do contexto sociocultural às informações do leitor, seus
conhecimentos, suas inferências e sua imaginação. A autora argumenta que essa
leitura vai ser feita por um sujeito que tem uma determinada história de vida, ou seja,
o olhar de cada um está impregnado com experiências anteriores, associações,
lembranças, fantasias e interpretações.
Seria injusto falar que, na década de 90, a reflexão sobre o Ensino da Arte tenha
sido feita somente por esses teóricos. Sem dúvida, existiram outras contribuições,
mas, em nosso texto, sistematizamos as reflexões que conseguem, de uma forma
ou de outra, abarcar as contribuições concomitantes.
29
Nesse contexto,5 Foerste (2004) sistematiza um estudo sobre leitura de imagem
originado de sua tese de doutorado. Nele a autora dimensiona o debate sobre a
leitura de imagens para o campo da educação, buscando localizar o espaço do
professor de Arte, bem como do Ensino da Arte na construção dos modos de utilizar
as imagens em sala de aula. Tendo em vista essa discussão, apresentaremos, a
seguir, algumas idéias da autora sobre esse assunto.
Para Foerste (2004), a escola tem como tarefa construir com os alunos
conhecimentos gerais vinculados às especificidades e interesses dos grupos que a
compõem, sem perder a perspectiva que remete à construção da cidadania. Sendo
assim, “[...] cabe aos profissionais que nela trabalham estabelecer essa relação
entre o singular e o universal, ampliando a visão do cidadão, mas não perdendo de
vista a particularidade que o define enquanto individualidade” (FOERSTE, 2004, p.
88). Para tanto, o professor precisa realizar com os alunos um estudo sobre as
imagens, uma proposta que se coloque como um modo de romper com a alienação
do mundo reificado.
Segundo a autora, a realidade, marcada pela estrutura capitalista, tornou-se
profundamente visual. Nela o poder é exercido claramente pela mídia e pela
publicidade que, utilizando imagens para reconstruções simbólicas do real
fetichizado, garantem o consumo e construção de uma subjetividade alienada.
Portanto, torna-se fundamental o estudo da imagem, tendo em vista que o
conhecimento da Arte leva o homem a desenvolver sua autoconsciência,
possibilitando que ele, além de entender sua inserção no mundo, perceba-se como
criador de uma realidade humana. É também pela via da leitura crítica das imagens
que se pode promover a formação do sujeito na direção da cidadania.
A autonomia e a emancipação, em relação às formas de manipulação e obliteração
da realidade, a partir de imagens, é condição necessária à construção da cidadania.
O sujeito, assim, não é mais passivo; pode ser compreendido como agente que
5 Além das produções acadêmicas, norteadas em especializações, mestrados e doutorados, outros espaços de discussão sobre o Ensino da Arte estão colocados. Encontros entre pesquisadores, congressos sobre a Arte e seu ensino e seminários ampliam a discussão no Brasil inteiro.
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interfere e quebra a falsa familiaridade que as imagens querem veicular (FOERSTE,
2004).
Nesse estudo, percebemos que Foerste (2004) amplia o conceito de leitura,
propondo que a reflexão do indivíduo estenda-se para dimensões que não envolvem
somente a Arte, mas que promovam uma crítica sobre a sociedade contemporânea.
Tendo isso em vista, a autora propõe que se ofereçam aos alunos os fundamentos
necessários para uma leitura abrangente de mundo, na qual seja possível
compreender o objeto artístico relacionado com as questões postas em cada
momento histórico, em especial, àquelas de nosso próprio tempo e lugar (questões
de gênero, etnia, economia, classe social, etc.) (FOERSTE, 2004). Complementa a
autora dizendo que
[...] é necessário analisar a produção, assim como a distribuição e o consumo das imagens, para que se tenha condições de compreendê-las de forma abrangente. Essa necessidade se impõe, principalmente, na atualidade, pela grande força com que as imagens penetram em nosso cotidiano e pela sua produção massiva na sociedade capitalista, na propaganda, no cinema, em out doors e outras formas (FOERSTE, 2004, p.130).
Outra contribuição importante de seu estudo são os apontamentos que faz sobre as
ênfases a serem dadas ao momento da leitura da imagem. A autora considera
fundamental buscar a gênese da imagem, compreendendo-a como produto do
trabalho humano, como produto artístico, localizado no tempo e no espaço. Outro
ponto fundamental é buscar identificar no cotidiano as possíveis missões sociais,
relacionadas com valores ético-valorativos, que o tempo e o local sugerem,
percebendo as relações sociais que determinam arranjos de interesses, poder e
dominação. É preciso também identificar nas imagens traços e elementos que
possibilitem ao homem colocar-se em frente à causa da humanidade, percebendo a
imagem como representação do artista, inserido no conjunto da evolução da
humanidade. Outro fator importante é identificar a imagem como expressão de um
mundo exterior e interior, do universal e do singular.
Além desses aspectos, é preciso que tanto o professor quanto o aluno estejam em
posição de analista e intérprete, dedicando tempo para a leitura, assim como
definindo objetivos e metodologia para a análise.
31
Outra perspectiva contemporânea para o Ensino da Arte vem sendo sistematizada a
partir dos Estudos Críticos. Essa perspectiva propõe que os trabalhos de Arte sejam
transformados em percepção precisa e não casual, analisando sua presença
estética, seus processos formativos, suas causas espirituais, sociais, econômicas e
políticas e seus efeitos culturais. No Brasil, esses estudos foram discutidos por Franz
(2003), que propõe que as obras de arte sejam estudadas dentro do seu contexto,
pois, fora dele, elas perdem seus sentidos: “A compreensão toma o lugar da
experiência estética e, considerá-la assim supõe relacionar a biografia de cada um
com os Artefatos visuais, com os objetos artísticos em cuja relação se colocam”
(FRANZ, 2003, p.129).
Embasada pela perspectiva cultural,6 a autora coloca que, diante da cultura visual,
não existem receptores, nem leitores, mas sim construtores e intérpretes, na medida
em que a apropriação não é passiva nem dependente, mas interativa e de acordo
com as experiências que cada indivíduo tenha experimentado fora da escola. Desse
modo, o olhar para a Arte, a partir da perspectiva cultural, leva em conta o mundo
pessoal de quem aprende, seus conhecimentos, idéias prévias e preconceitos.
“Significa valorizar a capacidade de relacionar os objetos artísticos com a vida das
pessoas com as quais as obras estão em relação” (FRANZ, 2003, p.132).
Segundo ela, para ocorrer a compreensão, é necessário que os professores e os
alunos não se detenham a observar o que vêem na obra apenas com rápidas
informações sobre a data, o estilo, o lugar e os dados bibliográficos do artista. É
necessário que aconteça uma reflexão sobre os aspectos culturais, sociais, políticos,
econômicos e religiosos, que estão além da obra e que favoreçam o alcance dos
níveis mais elevados de compreensão. Assim como Foerste (2004), Franz preocupa-
se em dar mais tempo e profundidade para olhar as obras de arte, conferindo ao
momento mais sustentação, visto que propõe mais profundidade e amplitude nas
explicações.
Franz (2003) pontua também que não fazer os devidos esclarecimentos sobre as
obras pode levar os alunos a pensar que as obras falam por si mesmas e que,
6 Adota as perspectivas sobre a “educação para a compreensão” de Fernando Hernández, Gardner, Efland, Perkins, dentre outros.
32
independente de uma intervenção educativa articulada, os estudantes poderão
entendê-la. Segundo ela, desenvolver estudos com as obras de arte, dentro de uma
perspectiva compreensiva, é uma forma de introduzir os alunos no tipo de
investigação que realizam os especialistas, isto é, examinar, observar atentamente,
buscar evidências sobre o contexto, envolvê-los em exposições de Arte, ensinando-
os a fazer perguntas sobre as obras, levando-os a refletir e a interpretar a Arte mais
seriamente. Ensinar a fazer perguntas e a problematizar em torno de uma questão
seria um caminho para a compreensão de uma determinada obra. Segundo ela, é
necessário que
[...] a escola instrumentalize os estudantes com os conhecimentos necessários para que eles próprios aprendam a buscar as estratégias adequadas para interpretar qualquer obra de Arte por si mesmos e que isso os motive para seguir aprendendo ao longo da vida. Desta maneira cremos que a educação artística estará contribuindo para formar o cidadão autônomo, consciente, crítico e senhor do seu próprio destino (FRANZ, 2003, p.153).
Reforçando sua abordagem, Franz (2003) orienta que uma leitura que objetive
apenas a identificação de elementos formais, acrescida de rápidos dados históricos,
não é suficiente para a compreensão da obra. É necessário incluir outras
informações históricas, textos, obras de outros artistas da época ou imagens atuais.
A autora incentiva que se proporcionem momentos de diálogo entre os alunos e a
obra de arte, em que, a partir do falar, o aluno argumente e interprete o objeto
artístico. Desse modo, o aluno manifesta seus pensamentos aos outros permitindo
que o torne consciente do que ele realmente sabe. “É mediante a verbalização que
nossos pensamentos convertem-se em reflexão” (FRANZ, 2003, p.183). Esse
incentivo é importante também para que o professor infira estratégias didáticas
adequadas para o avanço de tais compreensões. Sendo assim, o desafio do ensino
para a compreensão está em ajudar o aluno a transcender a simplificação,
estabelecendo outras relações que podem ser encontradas na vida do artista, no
contexto social, na cultura em que a obra foi produzida ou com outras obras. Para a
autora, quanto mais expusermos os alunos a idéias interconectadas, maior será a
possibilidade de eles interpretarem uma obra de arte de forma inter-relacionada.
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Franz (2003) critica as receitas para o entendimento da Arte, ou seja, os exercícios
de leitura que ensinam os alunos a usar métodos que partem da descrição e
avançam para a análise, interpretação e julgamento, realizados de forma mecânica,
sem buscar níveis mais complexos de reflexão. Aponta também, como problema
para a aprendizagem, a falta de domínio dos conteúdos por parte do professor.
Segundo a autora, alguns educadores perdem a oportunidade de aprofundar as
interpretações dos alunos, de descobrir suas idéias ingênuas ou incompletas, ou até
mesmo de detectar compreensões de alto nível, que permitam relacionar a obra em
estudo com seu tempo e lugar na história.
A autora adverte que ensinar para a compreensão requer uma modificação da
estrutura do local onde se ensina, seja ele a escola, seja o espaço expositivo.
Requer uma liberdade para que sejam trocadas idéias, requer uma negociação
aberta e explícita sobre o conhecimento, como é desenvolvido e defendido, que
valor possui e como é avaliado.
Outra abordagem que merece destaque é a trazida por Duarte Jr. (2000) que discute
a educação do sensível. Segundo ele, o tipo de conhecimento que se construiu com
a modernidade trouxe muitos progressos na história humana, mas agregou a essa
mesma história muitos problemas que vêm aumentando a cada dia. Duarte Jr.
(2000) alerta para o fato de que o mundo hodierno desestimula qualquer refinamento
dos sentidos humanos, contribuindo para a regressão sensível dos indivíduos que
fazem parte da sociedade atual dita “de consumo”. Para ele, essa regressão é “[...]
produzida e estimulada industrialmente em favor da ampliação do mercado de bens
tão dispensáveis quanto pobres esteticamente” (DUARTE JR., 2000, p. 23).
Contudo, é preciso contrapor-se à programação industrial da sociedade com um
projeto educativo que valorize a ligação do indivíduo com sua realidade mais
imediata, realidade cultural na qual ele aprende a sentir e a se expressar.
Tendo isso em vista, o autor propõe que o Ensino da Arte colabore com a educação
do sensível, levando os indivíduos a descobrirem formas inusitadas de sentir e
perceber o mundo, apurando seus sentimentos e percepções acerca da realidade
vivida. O autor pontua ainda que a educação dos sentidos é, sobretudo e
primeiramente, a educação perante os estímulos mais simples que a realidade do
34
mundo moderno nos oferece em grande quantidade. Sendo assim, é preciso iniciá-la
para depois apresentar e significar as obras de arte consagradas, discutindo-as
histórico e tecnicamente com os alunos. Nas palavras do autor: “É preciso educar o
seu olhar, a sua audição, seu tato, paladar e olfato para perceberem de modo
acurado a realidade em volta e aquelas outras não acessíveis em seu cotidiano. O
que se consegue de inúmeras maneiras, incluindo aí o contato com as obras de arte”
(DUARTE JR., 2000, p. 29).
Ligado a isso, cabe destacar a crítica de Duarte Jr. (2000) às tendências de Ensino
da Arte que priorizam interpretações e releituras em detrimento das vivências,
experiências e reflexões pessoais, prendendo-se
[...] muito mais ao discurso teórico e interpretativo do fenômeno estético do que valorizando a capacidade sensível dos educandos, capacidade que nunca poderá se reduzir a um encadeamento de conceitos e de reflexões teóricas. É preciso despertar e treinar a sensibilidade, a atuação dos sentidos, na vida que se vive. Obras de Arte, consagradas ou não, apenas ganham significação na medida em que podem ser vinculadas à vida e as experiências efetivamente vividas pelas pessoas. E tais experiências precisam ser estimuladas e desenvolvidas, num modo sobretudo sensível, antes de intelectual (DUARTE JR., 2000, p.192).
Sendo assim, para esse autor, é função do Ensino da Arte aprimorar e refinar a
educação dos sentidos iniciada e desenvolvida pela vida cotidiana. Segundo ele, os
sentidos aprimorados se reconhecem e se descobrem nos signos estéticos da Arte,
compondo um jogo circular, “[...] na medida em que os sentidos remetem à arte e
esta, de volta, apela aos sentidos. Educação do sensível e arte-educação
constituem, pois, duas instâncias do mesmo processo, as quais podem ser
efetivadas simultaneamente” (DUARTE JR., 2000, p. 220).
Acreditamos que a grande contribuição de Duarte (2000) reside na valorização e no
resgate da sensibilidade e de sua relação com a educação. Sabemos que, nos dias
de hoje, vivemos uma artificialização das sensações: comemos rápido, engolindo
alimentos que têm seu sabor original modificado pela indústria; vemos
superficialmente muitas imagens que pouco nos dizem respeito ou, quando muito,
nos emocionamos com estereótipos sociais lançados pelas novelas e filmes; mal
tocamos no outro e nas coisas, mantendo sempre um distanciamento de tudo o que
nos cerca; ouvimos muitos ruídos, mas pouco escutamos sons, músicas e o outro;
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falta-nos tempo para ver, para saborear, para ouvir, tocar, falta-nos tempo para
sentir.
Concordamos com Duarte (2000), quando afirma que o Ensino da Arte deve
privilegiar também a educação dos sentidos. Entendemos também a preocupação
desse autor quanto às novas tendências do Ensino da Arte. Sabemos da
importância de não dicotomizar a educação, ora apelando para o sensível ora para o
racional, e o quanto a educação vem sofrendo com isso. Porém, confortamo-nos em
perceber (apesar de saber que estamos caminhando a passos lentos para a
consolidação, valorização e a validação da Arte na escola) que as tendências,
teorias, abordagens ou propostas que norteiam o Ensino da Arte no Brasil
contemporâneo apontam um caminho singular: a formação de um cidadão sensível e
crítico, capaz de analisar, interpretar e refletir sobre o mundo a partir das produções
artísticas realizadas na história da humanidade. Sabemos, também, que precisamos
atentar para a necessidade do aprofundamento das propostas de Ensino da Arte, o
que significa, entre outras atitudes, dispor de mais tempo para esses momentos.
Tempo para o professor planejar, tempo para os alunos vivenciarem, refletirem e
sentirem a Arte.
Cabe colocar também que o Ensino da Arte, concebido nessas perspectivas, deve
percorrer os diferentes espaços, o escolar ou o expositivo. O importante é ter
consciência dos parâmetros que fundamentam esse ensino e adequá-los ao espaço
em que estarão inseridos, tendo também em mente a preocupação apontada por
Barbosa (1991), Pillar (1999), Foerste (2004) e Franz (2003) referente ao respeito
pelo contexto e pela individualidade do sujeito receptor.
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1.2 O ENSINO DA ARTE EM ESPAÇOS EXPOSITIVOS
Como foi dito, um viés do Ensino da Arte que vem sendo discutido com intensidade
é o que se refere ao Ensino da Arte em espaços expositivos.7 Esses locais vêm
sendo analisados tanto nas discussões sobre a Arte e seu ensino, quanto nas
reflexões relativas à educação em museus e à museologia. Cabe, então, iniciarmos
um estudo sobre os espaços expositivos, principalmente os museus e galerias de
Arte que, em sua história, abrigaram as obras de arte e deram início a uma
preocupação educativa. Iniciaremos com a trajetória histórica dos museus de Arte,
para depois, abordar algumas das diversas formas de ações educativas concebidas
para esses espaços.
Apesar da concepção de museu de Arte ser a da Idade Moderna, esses espaços
originam-se na Antiguidade clássica. O “Museion” grego era o templo das musas, a
famosa biblioteca da Alexandria. Com a destruição da biblioteca, em 640 a.C, a
palavra “museu” deixa de ser usada, até que, na Idade Média, surgem os Gabinetes
de Raridades e os Tesouros, ambos de propriedade dos reis e das ordens religiosas.
No Renascimento, alguns detentores do capital usam o dinheiro para o mecenato,
sustentando artistas (para a formação de suas coleções particulares) e
presenteando o clero com obras de arte, algumas vezes como forma de suborno.
Os museus, tais como os conhecemos, surgiram no século XVI, quando os objetos
estéticos começam a ser agrupados num sistema fechado, para o deleite das elites.
O povo não tinha acesso a esses espaços. Acreditava-se que eles não possuíam
condições de entender as “preciosidades”, visão que, infelizmente, mesmo que de
forma parcial, ainda perdura na atualidade.
Na Inglaterra, o fortalecimento da burguesia e a desestruturação do feudalismo,
colaboraram com o aparecimento, com certa independência, dos objetos artísticos.
Sendo assim, em 1753, o “British Museum” foi fundado e dirigido por cientistas que,
7 No presente estudo, será utilizado o termo “espaço expositivo” na perspectiva de abarcar, em nosso debate, locais diversos que se ocupam com a guarda, distribuição e exposição de obras de arte/ ou curadoria, exposição e divulgação de obras de arte, entre eles, os museus, centros culturais, galerias de arte, o atelier de artista e locais para exposições itinerantes.
37
esporadicamente, abriam suas portas para estudantes de diversas áreas do
conhecimento. Nessa época, muitos acervos particulares passaram a ser expostos
em museus públicos, mantendo-se ainda inacessíveis ao povo.
Essa situação se estendeu até o século XVIII, quando o museu foi reconhecido
como instituição cultural. Com esse reconhecimento, “[...] o museu foi tido como
campo de luta entre a concepção elitista da cultura, própria da aristocracia, e as
propostas democratizantes dos intelectuais orgânicos da burguesia” (SEGALL, 1991,
p.70).
Foi a França de Napoleão que transformou o museu em um depósito de objetos
trazidos dos países conquistados e colocados principalmente no Louvre. Segundo
Franco (1994), o “Louvre” é o primeiro museu de Arte aberto à visitação pública, em
1793. Nessa época, os museus da Europa e dos Estados Unidos abrem também
suas portas para o público, cobrando8 um preço elevado pelo ingresso.
Com a abertura ao público, fez-se necessário pensar também em mudanças
conceituais e estruturais desses espaços, surgindo os primeiros setores educativos.
Esses departamentos criavam catálogos e cursos educativos, preocupando-se com
o caráter educativo do museu.
Segundo Barbosa (1991), a função do professor de Arte em museus foi criada pelo
“Vitoria in Albert Museum” da Inglaterra, em 1852; no “Metropolitan” de Nova Iorque,
em 1872; e no “Museu de Belas Artes” de Boston, em 1876. Essa criação de
departamentos voltados para o Ensino da Arte deu-se pela necessidade de
desenvolver um trabalho para institucionalizar a Arte Moderna como “a boa Arte”.
Confirmando essa idéia, em 1929, foi fundado o “Museu de Arte Moderna” de Nova
Iorque tendo como o principal objetivo levar o público à compreensão da Arte
8 A cobrança para o acesso aos museus ainda é uma prática que ocorre na atualidade. Isso acontece em função da falta de apoio financeiro por parte do governo a essas instituições que, para se manterem, dependem dos recursos da cobrança dos ingressos. Apesar disso, percebemos que muitos espaços expositivos estão abrindo suas portas gratuitamente em algumas ocasiões, principalmente nos finais de semana. Isso vem ocorrendo sobretudo nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Como exemplo, podemos citar a XXVII Bienal de Arte que esteve sempre aberta ao público, gratuitamente. No Espírito Santo, os espaços expositivos de Arte não cobram pela entrada, porém ainda funcionam em horário comercial durante a semana, dificultando o acesso dos trabalhadores que estão ocupados nesse horário.
38
moderna. Um dos teóricos de referência nessas ações foi Jonh Dewey, que criou
programas nos museus para aproximar a Arte das classes populares.
Podemos justificar a busca por ações educativas nesses espaços, apropriando-nos
de algumas reflexões de Groissmann (1988) e Gonçalves (2004). De acordo com o
primeiro, é a partir da contemporaneidade que as instituições museológicas
perderam seu papel exclusivista na divulgação da produção artística, devido aos
avanços dos meios de comunicação. Esse fato propiciou uma reflexão acerca do
papel dos museus na sociedade contemporânea. Groissmann (1988) coloca que o
museu não pode se tornar um depósito, nem ser o lugar para a pura contemplação
prazerosa, mas, sob a concepção de Adorno (apud GROISSMANN, 1988), deve ser
o destino das obras de arte onde seus sentidos sofrerão mudanças pela ação do
pensamento do homem no tempo.
Já Gonçalves (2004) encontra outra explicação para as mudanças nos paradigmas
museológicos. Segundo ela, a busca por mudanças tem início em 1968, com a
revolução estudantil de Paris. Inicialmente, a revolução contava só com a
participação de estudantes, mas logo se juntaram a eles profissionais de diferentes
áreas, por exemplo, os artistas. O movimento reivindicava transformações nos
padrões de vida cotidiana, questionava a sociedade, protestava contra o
conservadorismo da realidade social, assim como criticava o comportamento
tradicionalista dos museus, ainda pouco abertos às diferenças sociais e às
expectativas de diferentes públicos. “Os museus são questionados como
instrumentos culturais e acusados de serem instituições passivas, voltadas para as
camadas sociais privilegiadas” (GONÇALVES, 2004, p. 62). Depois da repercussão
desse movimento no mundo, muitos questionamentos surgiram. Em 1971, com a
conferência do Internacional Council of Museums (ICOM), surge o lema: “O museu a
serviço do homem da atualidade, do futuro”. Em 1974, o ICOM propõe a definição de
museu como
[...] instituição permanente, sem finalidade lucrativa, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público; que adquire, conserva, investiga, comunica e exibe, para fins de estudo, de educação e de deleite, testemunhos materiais do homem do seu entorno (GONÇALVES, 2004, p. 62).
39
Dos anos 70 para cá, muitos governos investiram na construção e na remodelação
dos museus, que passaram a ser vistos como uma possibilidade de programa
cultural. Segundo Gonçalves (2004), a Pós-Modernidade apresenta o museu como
lugar diferenciado, destinado aos espetáculos da Arte, onde o visitante é o principal
protagonista.
No Brasil, os primeiros museus abertos à visitação foi o Museu da Escola Nacional
de Belas-Artes e o Museu Nacional, ambos no Rio de Janeiro. As duas instituições
surgiram com a vinda da Família Real Portuguesa, no início do século XIX, e foram
criadas segundo os moldes europeus.
Com a abertura dos museus no Brasil, surgiram preocupações com a educação
nesses locais. De acordo com Franco (1994), a primeira iniciativa de valorização do
museu como instrumento educativo foi em 1882. Rui Barbosa, então deputado pela
Bahia, elaborou um parecer sobre o ensino no Brasil, que contemplava também a
questão do museu a serviço da educação, mas o documento não chegou a ser
discutido, muito menos implementado.
De acordo com Franz (2001), no Brasil, a preocupação com a educação por meio da
Arte, a partir de exposições isoladas, teve como precursor Victor Meirelles. Esse
artista criou obras para a exposição “Panorama” e, além das pinturas, elaborou
também três folhetos explicativos, nos quais expunha tanto a história dos panoramas
do Rio de Janeiro quanto descrevia as paisagens por ele apresentadas. Essa
exposição foi realizada na Bélgica, em 1888, e visitada por 50.000 pessoas. Dentre
os visitantes, estavam vários escolares que recebiam uma monitoria baseada nas
informações concebidas por Victor Meirelles. Franz complementa dizendo que o
citado artista teve essa idéia inspirado no Museu do Louvre, que utilizava seu acervo
com fins didáticos desde 1880. Meirelles pôde presenciar isso a partir de suas
viagens à Europa.
Em 1905, inaugurou-se a Pinacoteca de São Paulo, cumprindo o ideário básico de
um museu: conservação e exibição de obras artísticas, núcleo de aprendizado para
estudantes de Arte e espaço destinado ao público interessado na fruição estética.
Por muito tempo, a Pinacoteca permaneceu longe das conquistas da museologia,
40
mantendo-se engessada em uma política cultural pautada no academicismo. Essa
situação se manteve até 1970, quando Aracy Amaral passou a dirigir a instituição,
transformando-a em um centro cultural.
Com a chegada do Modernismo, abriu-se a discussão sobre a necessidade de
romper com a influência européia na cultura brasileira. Nessa época, o movimento
escolanovista, liderado por Anísio Teixeira, preocupou-se com a educação em
museus, propondo a utilização dos acervos como recurso didático, na tentativa de
incrementar a rotina desses espaços. Outro intelectual que se preocupou com a
questão educativa dos museus foi Mário de Andrade que, na década de 30, com a
possibilidade de abertura de um museu de Arte em São Paulo, propôs para esse
espaço um cunho educativo. Nessa mesma linha, também atuou Sérgio Milliet,
crítico de Arte de influência internacional.
Dentro do histórico das iniciativas educativas que aconteceram no Brasil, é
necessário citar as propostas que ocorreram nas Bienais de Arte de São Paulo. Para
o crítico de Arte Mario Pedrosa, “[...] as Bienais ao se institucionalizarem, são como
as escolas de Arte, as academias, os museus, instrumentos de glorificação do
estado presente da Arte e do resto das superestruturas” (ALAMBERT; CANHÊTE,
2004, p. 235). Concordando com essa afirmação, cabe, neste estudo, abordar um
pouco sobre a história da educação nas Bienais.
A I Bienal do Museu de Arte Moderna (MAM) foi aberta em 1951 e, segundo os
críticos da época, constituiu-se no primeiro acontecimento artístico sério do Brasil.
Mas, apesar dessa importância, nessa ocasião, não existiu a preocupação em
orientar o público, ou seja, os organizadores não pensaram na questão educativa da
mostra. Já na II Bienal, foi formado o primeiro grupo de monitoria ao público. As
monitoras, além de entrarem em contato com os artistas participantes, realizaram de
um curso com o diretor do MAM na época, Wolfgang Pfeiffer. Porém, mesmo com
essa iniciativa, alguns críticos da época colocaram que a beleza das monitoras se
contrapunha à feiúra da Arte moderna, além de servir para conquistar o público
masculino.
41
Após várias Bienais desvinculadas de uma proposta educativa, o crítico de Arte
Mário Pedrosa retomou a discussão sobre o caráter educativo das Bienais. Segundo
ele, a partir da década de 60, necessitou-se, ainda mais, de uma atitude do público
com a obra de arte. Para ele, o público, sem a ajuda necessária, assimilou muito
pouco de tudo que lhe foi mostrado em anos de Bienal. De acordo com Pedrosa
(apud ALAMBERT; CANHÊTE, 2004), os projetos para as Bienais precisavam
caminhar para a educação e para a recriação do público, assim como oferecer
condições para que a Arte ensinasse o caminho da liberdade. A preocupação com o
fator educativo das Bienais estende-se até os anos 90, enfatizando o atendimento a
estudantes, mas sem a preocupação de manter um acompanhamento continuado.
Em 1998, o núcleo de educação produziu textos para iniciar o público não
especializado em Arte. Para isso, utilizou conceitos de Paulo Freire e Ana Mae
Barbosa. Elaborou também ciclos de debates sobre diferentes linguagens artísticas,
assim como construiu uma forma de atender ao público especial. As últimas edições
da Bienal procuraram enfatizar o aspecto educativo. Esse aspecto centrou-se em
uma postura voltada para estudantes orientados por monitores capacitados. Foram
criados, também pelo setor educativo, materiais didáticos impressos destinados ao
professor e aos alunos. Em 2006, o projeto educativo da Bienal adotou um novo
modo de se relacionar com o público afastado do circuito da Arte Contemporânea:
implementou o “Programa Centro-Periferia Como Viver Junto”. Esse programa
consistiu em levar uma equipe de educadores aos bairros periféricos da cidade de
São Paulo, com o objetivo de propiciar vivências e questionamentos em torno do
sistema de Arte. Além disso, o projeto também disponibilizou um ônibus para a
condução das pessoas participantes do programa até a Bienal.
Outra instituição importante da história brasileira dos espaços expositivos foi o
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC/USP), inaugurado em 1963.
Segundo Francoio (2000), na história dessa instituição, existiram preocupações com
a educação, por exemplo, a da gestão de Walter Zanini (1963-1977), que se ocupou
em desenvolver cursos de preparação para professores e visitas comentadas,
realizadas por professores da ECA/USP. Na gestão de Aracy Amaral (1982-1986),
houve a estruturação do setor de Arte-Educação, com a contratação de Arte-
educadores e a programação e realização de cursos.
42
Durante a direção de Ana Mae Barbosa (1987-1993), intensificou-se a programação
de cursos iniciada pela gestão anterior, com professores convidados do exterior.
Procurou-se também aproximar a Arte das classes populares relacionando os
objetivos da curadoria com os da educação, acreditando que “[...] tanto o educador
quanto o curador têm a função de facilitar a comunicação e a apreciação do público”
(BARBOSA, 1991, p. 87). Influenciada pelos pressupostos teóricos americanos, Ana
Mae Barbosa elaborou, para os museus de Arte, uma abordagem epistemológica do
ensino e aprendizagem da Arte: a Proposta Triangular. Como foi dito, no Capítulo I,
essa metodologia foi assim chamada por envolver três vertentes: o fazer artístico, a
leitura da imagem e a história da Arte. No fim da década de 90, o MAC passou a
desenvolver vários projetos educativos: atendendo ao público especial,
estabelecendo parcerias com escolas para a formação continuada de professores,
criando diferentes percursos visuais a partir de seu acervo e elaborando visitas
lúdicas com a utilização de vários jogos.
Muitos outros museus brasileiros aderiram a uma iniciativa educativa. Em 1978, o
Museu de Arte do Rio Grande do Sul iniciou a criação do setor de atividades e
extensão. Esse departamento teve como principal objetivo disponibilizar o acervo do
museu a vários públicos. Outra iniciativa que marcou a história da educação em
museus foi a do Museu de Arte de São Paulo que, em 1979, com a ajuda de um
grupo de alunos do curso de Museologia da Fundação Escola de Sociologia e
Políticas, organizou atividades para crianças e jovens, utilizando seu acervo.
No Espírito Santo, os museus de Arte começaram a surgir no fim da década de 80 e
ainda buscam escrever suas políticas educativas. Selecionamos, para esta pesquisa
espaços expositivos, voltados para Arte, principalmente na Grande Vitória. Como
critério para seleção, escolhemos pesquisar os espaços que possuíam setores
educativos. Então, constatamos que os principais espaços de Arte dessa região são:
o Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo (MAES), Museu Vale do Rio
Doce e o Espaço Cultural Egydio Antônio Coser. Portanto, realizamos juntamente
com os responsáveis pelo setor educativo dessas instituições, uma pesquisa sobre
suas propostas e ações educativas.
43
Percebemos que o Museu de Arte do Espírito Santo é o único museu do Estado
dedicado exclusivamente às Artes Visuais. Possui dupla atribuição: acolher o
patrimônio artístico estadual, responsabilizando-se por sua documentação, guarda,
preservação e divulgação; e viabilizar ao público o acesso às linguagens artísticas
contemporâneas, por meio de sua inserção no circuito nacional e internacional das
Artes Visuais.
O agenciamento desses objetivos possibilita desenvolver exposições e eventos que
suscitam o diálogo entre poéticas artísticas em construção e aquelas já
consagradas, bem como instiga o planejamento de atividades de Arte-Educação que
estimulem na comunidade uma recepção ativa e prazerosa da produção artística.
Inaugurado em dezembro de 1998, o museu funciona em um prédio em estilo
neoclássico construído em 1925, situado no Centro de Vitória. Conta com importante
acervo de consagrados artistas locais e nacionais, em sua maioria proveniente de
doações. Mas, apesar de ter esse acervo, o museu não possui sala de exposição
fixa, trabalha com exposições temporárias.
O MAES oferece também outros serviços à comunidade: uma biblioteca e uma
videoteca abertas à consulta pública. Em seu auditório, são realizados debates,
cursos, seminários e mostras de vídeo. O museu conta ainda com o projeto “A
escola vai ao museu”, com visitas guiadas e atividades educativas voltadas para
estudantes da Grande Vitória, estendendo o projeto às redes pública e particular de
ensino. Oferece também outras atividades, além das mostras realizadas no edifício
do MAES. São trabalhadas, principalmente, exposições itinerantes de Arte
contemporânea, incluindo curadorias de âmbito nacional. Um exemplo foi a
“Exposição de Gravuras de Dionisio Del Santo” que ocorreu no mês de abril de
2005, em diferentes cidades do interior, contemplando palestras e oficinas.
Em entrevista9 com a responsável pelo setor educativo do MAES, Célia Ribeiro,10
pudemos constatar algumas iniciativas comuns às tendências que vêm se
9 Entrevista realizada no dia 18-04-2005, no Museu de Arte do Espírito Santo. 10 Célia Ribeiro, pedagoga, licenciada em Educação Artística, pós-graduada em Sociologia, mestre em Estudos Literários, responsável pelo setor educativo.
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delineando no Brasil. Mas, apesar desse reconhecimento, não pudemos investigar a
fundo as propostas, pois a instituição não possui histórico das atividades educativas
que foram desenvolvidas em cada exposição. Não se criou ainda uma forma de
sistematização escrita. As pesquisas realizadas pelo setor de ação educativa são
arquivadas de forma pouco sistemática, em pastas de papel.
Segundo Célia Ribeiro (2005), antes da administração da secretária estadual de
Cultura Neusa Mendes,11 não houve preocupação em se criar uma política de ação
educativa para o museu: “[...] aconteceram coisas por conta da ação de pessoas
(funcionários da Secretaria de Cultura), ações individuais”, argumentou a
responsável pelo setor.
Atualmente, o quadro de pessoal do setor de ação educativa é composto por um
coordenador, quatro estagiários e um responsável pela área de circulação do
museu.12 A divulgação das exposições é feita pelos serviços dos Correios e, via
correio eletrônico, catálogos e convites são enviados às escolas da Grande Vitória e
aos visitantes cadastrados pelo museu.
As visitas de escolas ao museu normalmente são marcadas pelo telefone e a
maioria delas é feita por professores de Arte. No agendamento, pergunta-se a série
e o conteúdo que está sendo trabalhado pelo professor, para que o monitor possa,
de alguma forma, abordá-lo no momento da visita. Não existe trabalho de
preparação do professor antes da visita ao museu; ocorre somente essa conversa
informal. Para os professores, é disponibilizado um material de apoio no qual
constam informações sobre o artista, sua obra, as conexões desse artista com
outros na história da Arte, assim como a linguagem artística utilizada por ele e seu
processo de produção. A maioria dos educadores recebe esse material no momento
da visita.
11 Secretária Estadual de Cultura, inicio do mandato em 2002, no governo de Paulo Hartung. 12 Tanto os estagiários quanto o responsável pela área de circulação são estudantes de Educação Artística ou de Artes Plásticas.
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A cada exposição, é proposta uma mesa-redonda que contribua para discutir as
questões colocadas nas mostras. São curadores ou estudiosos sobre o assunto,
discutindo questões que se relacionam com as exposições.
Com relação ao público portador de necessidades especiais, o MAES, até o
presente momento, atendeu a alguns grupos de deficientes mentais. De acordo com
Célia Ribeiro (2005), a forma como vai ser apresentado o percurso da monitoria é
adaptada para tal público, tornando-se “um pouco mais conversada”, pois o grupo,
freqüentemente, não respeita o tempo do outro e todos os participantes falam ao
mesmo tempo, quando questionados sobre as obras. Apesar de já ter existido o
atendimento, constatamos que não houve preparo, nem formação da equipe para
recepção desse público. Foram ações que se basearam na experiência profissional
da coordenadora do setor de ação educativa e não em uma política construída pelo
museu. Fato também que se estende as demais ações educativas desse espaço.
Outra instituição que possui setor educativo é o Museu Vale do Rio Doce,
inaugurado em 1998. Localizado na antiga Estação Pedro Nolasco, no município de
Vila Velha, o museu tem três andares dedicados à história da ferrovia Vitória-Minas e
uma Sala de Exposições Temporárias, que fica à disposição para mostras locais,
nacionais e internacionais. O espaço foi inaugurado juntamente com a abertura do
museu, com a mostra do artista plástico capixaba Hilal Sami Hilal, e seguindo o
calendário de 1999, com “Os Múltiplos”, do renomado artista contemporâneo Joseph
Beuys.
Segundo o diretor13 da instituição, o museu privilegia a educação, dando prioridade
às visitas guiadas de estudantes. Por isso, desde 1999, a instituição possui setor de
Arte-Educação. A partir de uma entrevista14 com a responsável por essa subdivisão,
Ruth Guedes, pudemos entender alguns aspectos relativos ao funcionamento desse
setor que tem, no presente momento, em seu quadro profissional, quinze pessoas:
uma especialista em Arte-Educação, uma mestre em Museologia, duas artistas
plásticas, sete monitores com nível médio e quatro estagiários cursando Arte
Plásticas e Artes Visuais na UFES. O setor de Arte-Educação é responsável pelas
13 Ronaldo Barbosa é artista plástico e designer, diretor cultural do Museu Vale do Rio Doce. 14 Entrevista concedida no dia 26 de junho de 2006, por correio eletrônico.
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monitorias do museu como um todo, tendo em vista que o museu possui um acervo
fixo.
Segundo Ruth Guedes (2006), as propostas de monitoria são elaboradas sempre
visando à faixa etária dos grupos que estarão visitando a mostra e com monitores
específicos para cada público. Os textos são elaborados por ela em parceria com a
curadoria da exposição ou com o artista expositor. Buscando esclarecer a proposta,
Ruth, em sua entrevista, nos deu exemplo do seu procedimento:
Para a exposição que iniciará em Julho de 2006, nós temos tido contato direto com o artista Cildo Meireles que está trabalhando na montagem. Sendo assim, temos muitas informações de sua história e sua obra. Temos também alguns títulos de sua biografia que estamos pesquisando. Próximo à exposição, teremos um bate-papo mais especifico com o artista e com o curador da mostra Moacyr dos Anjos. A partir de então, traçamos o caminho da exposição e a forma de conduzir cada grupo adequando o vocabulário de acordo com a faixa etária (GUEDES, 2006).
Além da preocupação com a monitoria, o setor de Arte-Educação do Museu Vale do
Rio Doce trabalha com as comunidades contribuindo na formação de aprendizes
durante as montagens e desmontagens das exposições. Essa atividade acontece
também com os coordenadores do setor de iluminação, montagem e pintura. Como
foi colocado, a instituição oferece estágios para os universitários das áreas de Arte
(Arquitetura, Design, Arte Visuais, Arte Plásticas) e também nas áreas
administrativas para o ensino médio. No total, são cinco estagiários de nível superior
e três do ensino médio.
Sobre a trajetória da subdivisão de Arte-Educação, Ruth Guedes (2006) pontua em
sua entrevista:
Conforme o tempo foi passando, houve algumas mudanças no setor devido ao crescimento do espaço. Também os grupos visitantes tiveram maior contato com exposições de Arte e por isso a forma de conduzir o grupo foi se modificando, pois os próprios já sabem como é feita a visita em um espaço expositivo.
Além das alterações, o setor de Arte-Educação enfrenta o desafio de atender à
grande demanda de agendamento de visitas, que fica prejudicado devido ao seu
pequeno espaço físico. Segundo ela, a maior conquista do setor foi inserir a
47
comunidade dentro do museu: “Hoje o museu é visitado principalmente pelas
comunidades carentes (C, D e E) e isso é fantástico. É muito bacana vermos as
pessoas mais simples se interessando por Arte e, o que é melhor, Arte
contemporânea que é cercada por certo preconceito, de que é difícil entender e
etc.”.
Já o Espaço Cultural Egydio Antônio Coser,15 no qual trabalhamos como Arte-
educadora, foi criado em 1995. Funciona no térreo do prédio do Centro de Comércio
de Café, em Vitória. Somente em 2002, criou seu setor educativo que, além de
contar conosco, é composto por três estagiários,16 estudantes de Arte ou áreas
afins, outra Arte-educadora17 e uma coordenadora-geral.18 Com a criação dessa
subdivisão, passamos, a cada exposição, a criar um material pedagógico chamado
de “Caderno de Arte”, entregue aos professores que marcam a visita ao espaço.
Mantemos uma parceria com os professores da Prefeitura de Vitória, que, a cada
exposição realizada, participam do percurso criado para a mostra antes de trazerem
seus alunos. Dessa forma, buscamos preparar o professor para que o momento da
visita seja proveitoso tanto para ele, profissional da educação, quanto para os alunos
que estarão sendo assessorados pelo monitor e por esse professor. Atendemos
também a escolas particulares e públicas, instituições como: orfanatos, ONGs,
associações da terceira idade, associações de deficientes visuais e mentais, bem
como associações de crianças portadoras de doenças graves. Sistematizamos
cursos livres oferecidos à comunidade, assim como outros eventos culturais, por
exemplo, sarais, palestras, lançamentos de livros e exposições paralelas.
Ao esboçar o percurso educativo dos espaços expositivos de Arte, percebemos que,
na medida em que essas instituições foram evoluindo, passaram a reconhecer a
importância de seu papel na sociedade. Salvo algumas exceções, atualmente,
busca-se, nos setores educativos, tentar atenuar as fronteiras que isolam esses
espaços do mundo. Estuda-se também um novo conceito de museu no qual se
15 Aprofundaremos nossa discussão sobre esse espaço quando formos tratá-lo como objeto de estudo no Capítulo III. 16 No período em que se realizou a intervenção da pesquisa, os estagiários eram Fagner Chaves e Fernanda Polati. 17 Érika Sabino de Macedo é formada em Educação Artística e mestre em Literatura. 18 Fabíola Truci é bacharel em Artes Plásticas.
48
efetive sua função educativa, cultural e social. Apesar de entendermos as
especificidades desses espaços, é preciso que não percamos de vista sua relação
com a história do Ensino da Arte. Não se trata de considerar o Ensino da Arte, em
espaços expositivos, uma outra área ou uma suposta classe diferente daquela que
tem construído a história desse ensino no Brasil. Não acreditamos ser esse um novo
campo de atuação, não se trata de legitimar espaços. Temos claro que a
preocupação do Ensino da Arte nesses locais deve transcender a preocupação com
a formação de “público”, como sustentáculo institucional. O importante é promover a
cidadania e o acesso pleno aos bens culturais constituintes da nossa história, o que
implica desvelar discursos herméticos, proporcionando a experiência estética como
princípio libertador, exercitando a interpretação e o diálogo em processos interativos
e catárticos que se dão entre obra e receptor, sujeitos e sujeitos.
Portanto, inserindo-nos nesse debate, localizamos nossa pesquisa na aproximação
das práticas de Ensino da Arte na sala de aula e em espaços expositivos. Nesse
intervalo, optamos por discutir o processo catártico vivenciado por alunos, no
encontro com a obra de arte. Para tanto, investigaremos no próximo capítulo a
catarse e sua relação com a educação por meio da parceria entre escola e espaço
expositivo.
49
CAPÍTULO II
CATARSE: UM CONCEITO NECESSÁRIO À FORMAÇÃO
CRÍTICA DO INDIVÍDUO
Este capítulo tem como finalidade investigar a história do conceito de catarse, sua
relação com a educação, esclarecendo, também, a necessidade de estabelecer
parcerias entre escola e espaço expositivo para a participação do processo catártico.
Sabemos da importância desse estudo por entendermos que a Arte e, por
conseguinte, as reflexões que ela provoca contribuem para a formação crítica do
indivíduo. Entendemos que um encontro significativo com a obra de arte, elaborado
na escola e no espaço expositivo, torna possível que o indivíduo reconheça sua
própria essência, sua história no processo de desenvolvimento do ser humano. A
Arte provoca a catarse, que é vista por muitos autores como um “efeito” ligado a um
processo que leva à tomada de consciência. Que “efeito” é esse? Por quem foi
sistematizado? Quais abordagens foram construídas a partir desse conceito? Qual
sua relação com a educação e com os espaços escolar e expositivo?
Tendo esses questionamentos em mente, elegemos alguns autores que refletiram
sobre o assunto, para sintetizarmos suas idéias e fazermos delas nosso ponto de
partida para a análise e reflexão sobre o tema.
50
2.1 A CATARSE, DEFININDO O CONCEITO: AS APROXIMAÇÕES
Buscamos nos aproximar dos estudos desenvolvidos sobre a catarse a partir de
Aristóteles (1992), Vigotski (1999), Jauss (1979) e Lukács (1966). A escolha deve-se
ao fato de reincidentemente vê-los no bojo dessa discussão, muitas vezes sendo
citados por outros teóricos que se aproximaram desse tema. Com isso, não tivemos
a pretensão de construir uma trajetória histórica desse conceito, apenas elegemos
esses autores para que pudéssemos ampliar nossos estudos sobre as discussões
trazidas por eles sobre a catarse.
2.1.1 Uma Aproximação Aristotélica à Catarse
O conceito de catarse surgiu na cultura ocidental, na Antigüidade. Em alguns textos
gregos, ele aparece com o sentido fundamental de limpeza, purificação, purgação ou
depuração. Dentre os filósofos dessa época que escreveram sobre a catarse, está
Aristóteles que, a fim de definir o conceito de tragédia, refere-se à catarse, para
examinar o efeito da tragédia sobre o espectador. Sua definição de catarse constitui
a matriz sobre a qual se desenvolveram muitos estudos posteriores sobre esse
conceito, aparecendo no texto aristotélico intitulado como “Poética”, que data de
aproximadamente 350 a.C., quando o filósofo descreveu o passado de glória da
tragédia ateniense. Dentro desse contexto histórico, a tragédia foi vista como algo
extremamente útil para a política.
Ela funcionou como um canal emissor de problemas e de reflexões sobre eles; forneceu ao cidadão uma infra-estrutura mental que lhe permitiu uma atuação que se realizou não sobre o que fosse ou teria podido ser, mas sobre aquilo que, embora não sendo, poderia vir a ser (BARBOSA, 2002b, p. 29).
O teatro trouxe a possibilidade de o povo ateniense entrar em contato com
diferentes questões relativas à existência humana. Como conseqüência, o cidadão
poderia refletir sobre atos e situações que só poderiam ser vivenciados por
intermédio da tragédia.
51
Na tradução de Souza (1992), o trecho da “Poética” que trata do conceito de catarse
é o seguinte:
[...] a tragédia é uma mimésis de uma ação nobre, completa e de certa extensão, em linguagem embelezada separadamente pelas diversas formas de cada parte; é mimésis que se realiza por agentes e não por narrativa, e que conduz, através da piedade e do temor, para a purificação [catarse] de tais emoções (ARISTÓTELES, 1992, p. 24, grifo nosso).
O prazer trágico, então, seria uma conseqüência da participação emocional dos
espectadores ao se identificarem com os protagonistas do drama, sentindo por eles
piedade.
[...] é que esse prazer estaria assim diretamente associado ao modo mitigado de enfrentar situações terríveis, ou seja, ao alívio produzido em suas almas ao perceberem que o objeto de seu medo é apenas uma imitação e que, por conseguinte, não lhes poderá fazer mal ou a seus próximos. Em outras palavras: dessa experiência mimética, seja na Atenas do século IV a.C., seja em nossos dias, decorreria o prazer trágico propriamente dito. E, muito provavelmente, é exatamente esse tipo de prazer (de origem mimética), experimentado ante uma representação trágica, que Aristóteles considerou como tendo um efeito purificador sobre as emoções (PUENTE, 2002, p. 24).
Sendo assim, ao vivenciar a tragédia, o cidadão é levado a uma experiência
profunda, que se processa tanto na identificação, por meio da qual o espectador se
compadece do protagonista, quanto na rejeição, quando o espectador teme chegar a
tais atos realizados pelo mesmo protagonista. Tais sentimentos suscitados pela obra
são considerados por Aristóteles como o último movimento do espectador da
tragédia em sua participação no evento, caracterizando essa relação como uma
relação mais ética, de compaixão do espectador pelo sofrimento do herói, afastando-
se de um ato estético, de uma relação ativa e criativa do contemplador com a obra.
É importante ressaltar ainda que a edição da Poética só aconteceu em 1508 e sua
leitura ficou relegada a literatos que, segundo Veloso (2002), pouco ou nada
conheciam do resto das obras de Aristóteles ou que, ainda que conhecessem, não
as inseririam no contexto do pensamento aristotélico. Isso favoreceu o surgimento
de versões por vezes equivocadas.
52
2.1.3 Uma Aproximação Vigotskiana à Catarse e Outras
Contribuições
Muitos teóricos ocuparam-se em interpretar e ampliar o conceito de catarse criado
por Aristóteles, para o entendimento da tragédia. Um deles foi Vigotski, autor de
análises psicológicas profundas, capaz de contestar muitos estudos sobre a
Psicologia, realizados em sua época. Dentre suas produções acadêmicas, está o
livro “Psicologia da Arte”, concluído em 1925, quando o autor tinha 19 anos, e
somente publicado na Rússia em 1965.
Nesse livro, o autor escreve um capítulo chamado “A Arte como catarse”, no qual
busca entender os aspectos biológicos e sociais que envolvem a reação estética.
Para ele, a reação estética começa pela via da percepção sensorial, mas não se
restringe a ela, pois é preciso que a compreensão da Arte parta do sentimento e da
imaginação. Segundo o autor, “Nossa reação estética se nos revela antes de tudo
não como uma reação que economiza mas como reação que destrói a nossa
energia nervosa, lembrando mais uma explosão do que uma economia de centavos”
(VIGOTSKI, 1999, p. 257).
Vigotski (1999) procura desenvolver uma teoria que tenha condição de explicar a
relação interna que existe entre o sentimento e os objetos suscetíveis da percepção,
apoiado na relação existente entre a fantasia e o sentimento. Para tanto, propõe que
“[...] a emoção não se expressa nas reações químicas, pantomímicas, secretórias e
somatórias do organismo, mas precisa de certa expressão por meio de nossa
fantasia” (VIGOTSKI, 1999, p. 263). Toda a emoção serve-se da imaginação e se
reflete numa série de representações e imagens fantásticas, que fazem, às vezes,
uma segunda expressão, contudo toda expressão é fortemente referida à realidade,
às vivências dos sujeitos concretos.
Vigotski (1999) acredita, no entanto, ser fundamental diferenciar o sentimento
comum do sentimento artístico, sendo este último intensificado pela fantasia. Outro
aspecto importante é que as emoções suscitadas pela Arte não se manifestam em
53
nenhuma ação externa. O autor diz que toda obra de arte visa a suscitar certas
emoções que, entretanto, não podem se expressar diretamente pela ação da
emoção. “As emoções da Arte são emoções inteligentes. Em vez de se
manifestarem de punhos cerrados e tremendo, resolvem-se principalmente em
imagens da fantasia” (VIGOTSKI, 1999, 267). Complementa argumentando que a
Arte suscita, simultaneamente, emoções opostas, operando pelo princípio da
antítese. É como se a Arte despertasse uma série de sentimentos opostos entre si e
provocasse um curto-circuito e a destruição desses sentimentos. Podemos entender
isso como o verdadeiro efeito da obra de arte, a catarse, conceito compartilhado por
Vigotski com outros autores:
Entendemos com Lessing, a catarse como efeito moral da tragédia, a ‘conversão das paixões em inclinações virtuosas’ ou, com E. Muller, como passagem do desprazer para o prazer, e assim temos a interpretação de Bernays, segundo quem essa palavra significa cura e purificação no sentido médico, ou a opinião de Zeller, para quem a catarse representa uma tranqüilização da emoção. Seja como for, tudo isso traduzirá da forma mais incompleta possível, o sentido que queremos atribuir a essa palavra (VIGOTSKI, 1999, p. 269).
Apesar da imprecisão do significado e do conteúdo do conceito de catarse, o autor
não conhece outro termo que traduza, com tanta plenitude e clareza, a reação
estética, reação em que as emoções angustiantes e desagradáveis são submetidas
a certa descarga nervosa que as transformam em contrários, reduzindo a reação
estética à catarse, à complexa transformação dos sentimentos (VIGOTSKI,1999).
Preocupado em esclarecer suas ponderações sobre a catarse, o psicólogo russo
resume suas considerações sobre o assunto elaborando o seguinte texto, voltado
para a composição de uma fórmula estética:
Poderíamos dizer que a base da reação estética são as emoções suscitadas pela Arte e por nós vivenciadas com toda realidade e força, mas encontram a sua descarga naquela atividade da fantasia que sempre requer de nós a percepção da Arte. Graças a esta descarga central, retém-se e recalca-se extraordinariamente o aspecto motor externo da emoção, e começa a nos parecer que apenas experimentamos sentimentos ilusórios. É nessa unidade de sentimento e fantasia que se baseia qualquer Arte. Sua peculiaridade imediata consiste em que, ao nos suscitar emoções voltadas para sentidos opostos, só pelo princípio da antítese retém a expressão motora das emoções e, ao pôr em choque impulsos contrários, destrói as emoções do conteúdo, as emoções da forma, acarretando a explosão e a descarga da energia nervosa (VIGOTSKI, 1999, p. 272).
54
Tendo em vista o caráter inovador da discussão sobre a Psicologia da Arte,
acreditamos que, com esse texto, Vigotski (1999) contribui para o entendimento da
catarse, principalmente sobre a atuação desse processo na mente humana, mas
esboça, de forma incipiente, a vinculação desse conceito à dimensão sócio-histórica.
Percebemos que esse estudo privilegia exclusivamente a abordagem do conceito
sobre os processos psicológicos.
Cabe aqui, então, trazer as questões levantadas por Leóntiev19 (1997) sobre essa
discussão. Segundo ele, Vigotski (1999) buscou, com esse estudo, oferecer uma
análise objetivo-materialista das emoções humanas que surgem ao se interpretar a
obra de arte. Porém, ao tentar analisar objetivamente as emoções provocadas pelas
obras de arte, não obteve êxito, tendo em vista que, nos anos da década de 1920,
as ciências psicológicas ainda não tinham alcançado um nível satisfatório de
desenvolvimento. Sendo assim, Leóntiev (1997) considera inacabadas e unilaterais
as teorizações trazidas em “Psicologia da Arte”. Essa opinião vem confirmar o
motivo de essa obra não ter sido publicada em vida pelo próprio Vigotski, que
também a considerava inacabada. Para Leóntiev, os problemas que estavam postos
no campo da Psicologia da Arte e a impossibilidade de resolvê-los fizeram com que
Vigotski passasse a se dedicar à Psicologia geral. Valsiner e Veer (1996) concordam
que o desejo de Vigotski em aprofundar suas teorizações sobre os procedimentos
conscientes implicados na criação, apreciação artística e sobre a especificidade
psicológica da reação estética o conduziu ao estudo exaustivo da Psicologia geral.
Ao se mover da Arte para a psicologia, Vygotsky pôde testar suas construções teóricas derivadas de um domínio complexo em um outro domínio. Seu trabalho com a Arte capacitou-o a tratar de problemas psicológicos complexos [...] de forma muito mais rigorosa do que os investigadores com formação em psicologia propriamente dita, na sua época ou na nossa (VALSINER; VEER,1996, p. 47).
Dentro dessa linha de investigação, Vigotski (1989) preocupa-se com o estudo da
gênese dos processos psicológicos tipicamente humanos, em seu contexto histórico-
cultural. Considera o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como
um processo de apropriação pelo homem da experiência histórica e cultural. Para
ele, organismo e meio exercem influência recíproca, portanto o biológico e o social
19 Vigotski, juntamente com Luria e Leontiev, formou um grupo de trabalho com a tarefa de reformular a Psicologia científica.
55
estão sempre associados. Nessa perspectiva, a premissa é que o homem se
constitui como tal por meio das interações sociais. Sendo assim, é visto como
alguém que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma
determinada cultura. É na interação dialética do homem com seu meio que se
originam suas funções psicológicas superiores.20 Essa relação do homem com o
mundo não é uma relação direta, mas sim mediada por meios que se constituem nas
ferramentas auxiliares da atividade humana. É por intermédio desses instrumentos e
signos que os processos de funcionamento psicológico são fornecidos pela cultura.
Dessa forma, pontua que só ocorre o processo de desenvolvimento das funções
psicológicas superiores quando o aprendizado se efetiva. Esse aprendizado se dá a
partir da interação dos indivíduos e também no âmbito da educação escolar. Para
Vigotski (1987a), a escola21 oferece conteúdos e desenvolve modalidades de
pensamento bastante específicas, tem papel insubstituível na apropriação pelo
sujeito da experiência culturalmente acumulada. A escola é um elemento
imprescindível para a realização plena do desenvolvimento dos indivíduos, já que
promove um modo mais sofisticado de analisar e generalizar os elementos da
realidade. Nela ocorrem atividades educativas22 sistematizadas intencionadas em
tornar acessível o conhecimento formalmente organizado.
Dentre os vários conhecimentos que foram construídos no decorrer da evolução
humana, está a Arte que, por ser produto do trabalho humano, também está ligada à
história da humanidade. Para Vigotski (1999), a Arte é o social em nós. Seu efeito se
processa em um indivíduo isolado, mas, apesar disso, ela não é individual.
O social existe até onde há apenas um homem e suas emoções pessoais. Por isto quando a Arte realiza catarse e arrasta para esse fogo purificador
20As funções psicológicas superiores consistem no modo de funcionamento psicológico tipicamente humano, como a capacidade de planejamento, memória voluntária e imaginação. Esses processos mentais são considerados superiores, porque se referem a mecanismos intencionais, ações conscientemente controladas, processos voluntários que dão ao indivíduo a possibilidade de independência em relação às características do momento e do espaço presente. Vigotski (1987a) e seus colaboradores buscaram a comprovação dessas idéias por meio de experimentos com crianças e de investigações das formas de organização dos processos mentais em indivíduos de diferentes culturas. Esse estudo permitiu a definição de diversas linhas de pesquisa. 21 Sabemos que a presença na escola não é garantia de que o indivíduo se aproprie dos conhecimentos. O acesso ao saber dependerá de fatores sociais, políticos, econômicos, tendo em vista que a escola não é uma instituição independente, ela está inserida em uma trama social. 22 Em uma sociedade complexa como a nossa, a exclusão, o fracasso e a evasão escolar, por parte do aluno, impedem a apropriação do saber sistematizado, da construção de funções psicológicas mais sofisticadas, de instrumentos de atuação e transformação de seu meio social e de condições para a construção de novos conhecimentos (REGO, 1995).
56
as comoções mais íntimas e mais vitalmente importantes de uma alma individual, o seu efeito é um efeito social (VIGOTSKI, 1999, p. 315).
Sendo assim, o sentimento do artista não contagia a todos, mas torna-se social.
Esse sentimento é externado, materializado e fixado nos objetos de Arte. Portanto,
esses objetos tornam-se instrumentos da sociedade. Esse sentimento torna-se
pessoal, sem deixar de continuar social, quando cada um vivencia a obra de arte. Ao
participarmos dessa vivência ou experiência estética, estamos exercendo uma “[...]
atitude tipicamente humana que auxilia o entendimento da condição sociocultural,
determinada pela história (em processo permanente de constituição), característica
de todos e de cada um de nós - seres de natureza criadora, transformadora e
simbólica” (JAPIASSU, 2001, p. 58).
Tomando o ato artístico como um ato criador, Vigotski (1987b) considera ser esse
um processo capaz de ampliar e enriquecer a personalidade com novas
possibilidades, predispõe um comportamento que tem por natureza um sentido
educativo. Segundo ele, a imaginação23 está na base de toda a atividade criadora
que produza cultura. Assim, a imaginação é compreendida como uma forma
especificamente humana de atividade consciente que, como base de toda atividade
criadora,24 manifesta-se em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a
criação artística, científica e técnica (VIGOTSKI, 1987b). Então, todo o mundo da
cultura é concebido como produto da imaginação e da criação humana. Ao
possibilitar a reordenação dos elementos extraídos da realidade, organizando-os de
maneiras novas, a imaginação caracteriza-se como uma atividade que integra o
mundo exterior, sendo ambas de natureza fundamentalmente social. Para ele, em
cada período do desenvolvimento infantil, a imaginação criadora atua de modo
peculiar, dependendo da experiência que o indivíduo vai acumulando e aumentando
paulatinamente na medida em que vai se desenvolvendo.
23 Percebemos que, em “Psicologia da Arte”, são pouco esclarecedoras as considerações feitas sobre o sentimento e a imaginação. Tendo isso em vista, pesquisamos as produções posteriores de Vigotski, em que suas reflexões anteriores são superadas na retomada da discussão sobre a arte e seus processos de criação/recepção. Essas reflexões encontram-se principalmente no livro “La Imaginación y el Arte en la Infancia”, publicado em 1930, quando o autor dimensiona a discussão no âmbito da sua produção histórico-social e estabelece parâmetros de relação entre o imaginário e o contexto vivido. 24 Atividade criadora ou criatividade é conceituada por Vigotski como “[...] toda realização humana criadora de algo novo, quer se trate de reflexos de algum objeto do mundo exterior, quer de determinadas construções do cérebro ou do sentimento, que vivem e se manifestam apenas no próprio ser humano” (VIGOTSKI, 1987b).
57
Vigotski (1987b) coloca que a atividade imaginadora é uma função fundamental para
o desenvolvimento do homem e que quatro formas básicas ligam-na à realidade. A
primeira forma de vinculação da fantasia à realidade consiste em que toda forma
criativa se elabora a partir de elementos tomados da realidade e da experiência
anterior do indivíduo, ou seja, quanto mais rica a experiência humana, tanto maior
será o material disponível para a imaginação.
A segunda refere-se ao poder associativo do homem que recria imagens mentais
sem nunca as ter vivenciado. Para ele, determinados produtos da imaginação
podem ser elaborados de tal forma que dão origem a algo novo e não
necessariamente presente na experiência prévia das pessoas. Esses artefatos
culturais de natureza imaterial em sua origem podem se converter em objetos reais e
influir concretamente sobre outros objetos, como é o caso da criação artística.
A terceira forma de vinculação da fantasia à realidade está ligada ao aspecto
emocional, quando a emoção tende a se manifestar em imagens que concordam
com ela. Portanto, quando estamos tristes, expressamos nossa tristeza fazendo
emergir impressões, idéias e imagens que concordam com essa emoção. Isso revela
que a manifestação criadora traz consigo uma dimensão afetiva.
Já a quarta forma relaciona-se com o ponto em que o objeto criado pela atividade
imaginativa do homem pode representar algo totalmente novo, que não encontra
semelhança em nenhum objeto real.
Segundo Vigotski (1987b), o potencial imaginativo da criança se desenvolverá
conforme a variedade de associações estabelecidas em diferentes espaços. Sendo
assim, na escola, torna-se necessário estimular a capacidade criadora da criança,
evidenciada tanto na produção artística quanto na vivência estética, no sentido de
proporcionar ao indivíduo experiências qualitativamente distintas do cotidiano vivido
por ele. É no espaço escolar que o indivíduo é colocado diante da tarefa particular
de “entender” as bases dos sistemas de concepções científicas, que se diferenciam
das elaborações conceituais espontâneas. Portanto, o entendimento e a apropriação
do conhecimento ocorrem no processo de interação entre sujeitos. Assim, na escola,
a interação professor/aluno é uma relação de ensino que tem como finalidade
58
ensinar/aprender, e é explícita aos seus participantes, que ocupam lugares sociais
diferenciados. Além da interação com o professor, existe também a interação com os
outros alunos, mediadas ou não por produções culturais, como textos literários,
obras de arte, etc. Nessa perspectiva Vigotski defende a tese de que o ensino
precede o desenvolvimento, ou seja, as funções psicológicas básicas para o
aprendizado se desenvolvem numa interação contínua com as contribuições e
solicitações do aprendizado.
Sendo assim, reconhecemos que a contribuição de Vigotski (1987a, 1987b, 1989)
para o presente trabalho ultrapassa as concepções acerca da catarse, por ele
estabelecidas. Utilizaremos principalmente as suas considerações relacionadas com
a imaginação, criação, interação e formação de conceitos, durante as análises dos
dados empíricos, acreditando que essas sejam contribuições ímpares nessa área de
estudo.
2.1.4 Uma Aproximação Jaussiana à Catarse
Dando continuidade à nossa pesquisa sobre a catarse, observamos que os estudos
que envolvem esse conceito intensificam-se no século XX, amparados
principalmente em filósofos, como Kant e Hegel. Uma importante contribuição para a
reflexão sobre os processos receptivos na abordagem estética é feita pelos teóricos
da Escola de Konstanz, na Alemanha, em pesquisas realizadas entre 1967 e 1970.
Esses estudos colocam-se como resposta ao estruturalismo e propõem uma Estética
da Recepção. Seus principais precurssores foram Wolfgang Iser e Hans Robert
Jauss. Para eles, a Estética da Recepção deveria ser entendida como
[...] o tipo de indagação em torno da obra de Arte que tematiza o receptor, o leitor, o observador como parte fundamental da práxis da Arte; estética da recepção é o trabalho de estudo teórico que indaga sobre o papel ativo desse integrante da práxis artística (GOLÇALVES, 2004, p. 83).
Hans Robert Jauss pontua que, durante um longo período, a teoria estética se
preocupou pouco com a experiência estética. As reflexões filosóficas sobre a Arte
tratavam de assuntos polares, como a Arte e a natureza; o belo, a verdade e o bem;
59
a forma e o conteúdo; a imitação e a criação; entre outras. Para esse autor, ao
assumirmos a Arte como atividade humana produtora, receptiva e comunicativa, é
de suma importância esclarecer a questão da experiência estética. Segundo ele,
Aristóteles, na Antigüidade, e Kant, na Idade Moderna, foram um dos poucos que se
detiveram a essa questão, mas não foram capazes de formar uma tradição acerca
da experiência estética. Com Hegel ficou definido que o belo era o aparecimento
sensível da idéia, e esse pressuposto abriu caminho para as teorias histórico-
filosóficas da Arte. Mas, mesmo assim, as teorias se fundamentavam em entender a
Arte como a história das obras e de seus autores, ou seja, “[...] passou-se a
considerar somente o lado produtivo da experiência estética, raramente o receptivo e
quase nunca o comunicativo” (JAUSS, 1979a, p. 44).
Embasado na hermenêutica,25 Jauss afirma ser fundamental diferenciar os dois
modos de recepção: “[...] aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e
o significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir o processo
histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado diferentemente, por
leitores de tempos diversos” (JAUSS, 1979a, p. 46). O fundamental, então, é
comparar o efeito atual de uma obra de arte com o desenvolvimento histórico de sua
experiência, formando o juízo estético com base nas duas instâncias de efeito e
recepção. Para ele, somente a hermenêutica da pergunta e da resposta daria conta
do processo dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica entre o autor,
a obra e o público. Sobre esse assunto, Jauss (1979a, p. 49) complementa
afirmando que,
[...] para a análise da experiência do leitor ou da ‘sociedade de leitores’ de um tempo histórico determinado, necessita-se diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre dois lados da relação texto e leitor. Ou seja, entre o efeito, como momento condicionado pelo texto, e a recepção, como momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido como duplo horizonte – interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial, trazido pelo leitor de uma determinada sociedade. Isso é necessário a fim de se discernir como a expectativa e a experiência se desencadeiam e para saber se, nisso, se produz um momento de nova significação.
25 A palavra hermenêutica é derivada do termo grego hermeneutike. É a ciência que estabelece os princípios, leis e métodos de interpretação. Em sua abrangência, trata da teoria da interpretação de sinais, símbolos de uma cultura e leis. A divisão da hermenêutica é reconhecida como geral e específica: a geral é aquela que se aplica à interpretação de qualquer obra escrita; a específica é aquela que se aplica a determinados tipos de produção literais, tais como: leis, histórias, profecias e textos literários.
60
Como foi visto, Jauss (1979a) explicita que a experiência estética é resultado do
relacionamento da obra de arte e com o leitor. Essa experiência acontece quando
estão envolvidas, concomitantemente, três funções da ação humana na atividade
estética: a poiésis, a aisthésis e a kátharsis. Tendo em vista o foco do estudo em
questão, vamos nos concentrar em um dos três aspectos centrais da teoria da
experiência estética desse autor: a kátharsis.26
Ao estudar esse conceito, Jauss (1979a), apesar de recorrer aos estudos clássicos
sobre a kátharsis, atribui-lhe um sentido novo. Ele a define como a função
comunicativa da expressão estética. Para o autor, a função comunicativa da Arte
ocorre quando existe um processo de identificação do leitor com a obra. Segundo
Jauss (1979a), é justamente na dinâmica de identificação que se processam as
ações, como se, ao se identificar, o sujeito receptor se aliviasse das pressões vindas
da ordem jurídica e das instituições sociais. Esse efeito é um libertar-se de e para
alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, o processo de identificação pode ocasionar a
assimilação de valores e convenções dominantes, que colaboram com as
conservações das normas impostas. Mesmo sabendo disso, Jauss interessa-se pelo
potencial emancipatório da experiência estética. Preocupa-se em propor uma teoria
da experiência estética que problematize as questões que se relacionam com o
contexto. Sendo assim, Jauss questiona como a experiência estética pode recobrar
sua importância em uma época em que a Arte é tida como expressão de uma elite,
além de estar envolta pela indústria cultural. Problematiza a questão perguntando:
como valorizar tal experiência tendo em vista que esta é percebida como algo pobre
em frente a métodos mais em voga, como a semiótica, a teoria da informação, entre
outros?
Buscando uma teoria que desse suporte aos seus questionamentos, Jauss (1979a)
posiciona-se em frente a Kant,27 em sua Teoria do Juízo do Gosto, encontrando
26 Optamos por utilizar a grafia escolhida pelo autor atribuída à catarse. 27 A base do pensamento kantiano está firmada em uma concepção filosófica idealista, com viés metafísico. Essa teoria resolve o problema fundamental da relação entre o ser e o pensar, fazendo da consciência, do espírito, o dado primário, original. O Idealismo considera o mundo como encarnação da consciência, da "Idéia Absoluta", do "Espírito Universal". Somente a consciência teria existência real e o mundo material, o ser e a natureza seriam apenas reflexo da idéia, das sensações, das representações e dos conceitos. O Idealismo está, de modo geral, estreitamente ligado à religião e leva, de uma ou de outra forma, à pressuposição de um Criador, portanto, da relação Criador–Criatura.
61
também nela alguns elementos que permitem conceber a função comunicativa da
experiência estética, a kátharsis.
De acordo com Rego (2006), na terceira crítica, Kant define o juízo como a
faculdade de pensar um particular contido sob um universal. Isso significa que, se
conhecemos, se avaliamos moralmente, se experimentamos agradabilidade e se
contemplamos esteticamente a obra de arte, a cada uma dessas realizações
corresponde um modo possível de referir um particular, dado à unidade de um
princípio pertencente ao sujeito. Isso significa que um princípio universal contém em
si uma pluralidade de particulares.
Kant (apud REGO, 2006) procura, em sua crítica, chegar a um fundamento de
determinação da avaliação estética pertencente ao que todos os sujeitos têm em
comum: “Somente se isso existir temos direito de, diante de algo que julgamos belo,
aventar a possibilidade de estarmos julgando universalmente e não
idiossincraticamente” (REGO, 2006, p. 179).
Em síntese, chega-se à conclusão de que é no ato do juízo reflexivo, que é técnico,
que é Arte, que é criativo, que a liberdade pode vir a atuar na natureza. É pelo poder
criativo que o sujeito encontra a unidade do mundo em que vive, garantindo que a
sua liberdade seja atuante. Pode-se dizer que é pela criação que a liberdade atua, é
por ser criativo que o homem é livre, ou seja, atua com sua liberdade no mundo.
Valendo-se dessa teoria, Jauss (1979b) conceitua a kátharsis como “[...] aquele
prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o
ouvinte e o expectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à
libertação de sua psique” (JAUSS, 1979b, p. 80-81). O autor ainda coloca que, como
experiência estética comunicativa básica, a kátharsis corresponde tanto à tarefa
prática da Arte como função social, pois serve como mediadora, inauguradora e
legitimadora de normas de ação, quanto à determinação ideal de toda Arte
autônoma, que busca libertar o expectador dos interesses práticos e das implicações
de seu cotidiano, a fim de levá-lo, pelo prazer do outro, para a liberdade estética de
sua capacidade de julgar (JAUSS, 1979b, p. 81).
62
Sobre essa conceituação, pode-se pensar que a kátharsis abarca o efeito ético e
moral da experiência estética, pois, quando interpretamos nossas necessidades
recorrendo à mediação das obras de arte, mobilizamos toda a esfera do “prático”,
numa dinâmica em que normas de ação e normas de avaliação remetem umas às
outras. Sendo assim, o efeito ético da experiência estética, então, é capaz de
promover em cada um de nós uma universalização individualizante, uma percepção
de si mesmo na integração com o todo. “Trata-se daquele momento em que
experimentamos uma espécie de elevação da nossa singularidade à humanidade
como um universal concreto, na medida em que gozamos no nosso íntimo o que
coube em sorte a toda humanidade” (BARBOSA, 2002b, p. 99). Por outro lado, a
experiência estética é capaz de suscitar a kátharsis moral, nutrindo discursos
prático-morais que dizem respeito a cada um e, ao mesmo tempo, a todos. Portanto,
a experiência estética pode fomentar, ou nos educar, para esse efeito de
distanciamento ou de estranhamento, pelo qual visamos ao que diz respeito a cada
um, mas na medida de todos.
Em Kant (apud REGO, 2006) e também em Jauss (1979a, 1979b), a relação
obra/receptor se dá pela razão. A racionalidade e, nessa perspectiva, o domínio
sobre a moral (ética) são premissas dessas abordagens, são as bases
epistemológicas sobre as quais se assenta a reflexão sobre o mundo. O indivíduo,
como vivenciador de um processo único, e a hermenêutica, como experiência
existencial, são as bases dessa abordagem. Isso significa que trazem contribuições
ao debate, quando dimensionam o sujeito como uma parte importante no processo.
Concordamos com essa última colocação e a utilizamos principalmente durante a
análise dos dados empíricos. Contudo, o limite de Kant é o princípio da contradição.
Questões de conflito não são resolvidas unicamente no âmbito do indivíduo, da
racionalidade e do juízo moral, mas implicam também sua articulação com o coletivo
de seu tempo, seu contexto.
2.1.5 Uma Aproximação Lukacsiana à Catarse
Em nosso estudo sobre catarse, pudemos perceber que esse conceito se apresenta
63
de forma recorrente entre várias abordagens: médicas, estéticas, psicológicas,
antropológicas, ligadas ou não à metafísica. Porém, a categoria catarse toma uma
dimensão particular na perspectiva do materialismo histórico, trazendo contribuições
fundamentais para a presente pesquisa.
O materialismo histórico considera a matéria como a base do desenvolvimento do
mundo, e o pensamento como o reflexo filosófico28 da relação do ser com o mundo.
Ao colocar na base do mundo diversos elementos materiais, consideram-no como
um todo unido, como um processo de mudanças e transformações permanentes.
Marx foi um dos estudiosos que contribuíram para a fundamentação dessa
concepção de mundo, a partir do pensamento de que a matéria em perpétuo
movimento é o princípio de todas as coisas. Com essa preocupação, Marx dá a essa
teoria um caráter material, considerando que os homens se organizam na sociedade
para a produção e a reprodução da vida, e também um caráter histórico, tendo em
vista que eles se organizam conforme a sua história. Essa materialidade histórica
pode ser compreendida a partir das análises realizadas sobre uma categoria
considerada central: o trabalho. Segundo essa concepção, o trabalho é o elemento
que impulsiona o desenvolvimento humano, “[...] é a atividade pela qual o homem
domina a natureza; é a atividade pela qual o homem se cria a si mesmo” (KONDER,
1998, p. 29).
Dentre outras tantas produções do homem, está a Arte, que é entendida, por essa
teoria, também como produto do trabalho humano. Portanto, o materialismo histórico
representa uma possibilidade de compreensão mais ampla do conhecimento
histórico e artístico. Muitos estudiosos apropriaram-se desse referencial para
aprofundar seus conhecimentos sobre o mundo. Um deles foi o filósofo Georg
Lukács que, a partir dessa perspectiva, se inicia na criação de uma estética
marxista, visando a esclarecer alguns problemas concernentes ao campo da Arte.
28 Muitas críticas relativas à teoria do reflexo colocaram-se contra esse conceito, tendo em vista que elas consideraram o reflexo amparado em fenômeno físico, de via única, refletindo a realidade sem modificá-la. Mas, a partir de outros estudos que ampararam esse conceito, fala-se hoje de um reflexo filosófico, considerando todas as interações que envolvem o fenômeno.
64
Dentre os livros escritos pelo autor húngaro, está “Estética”. Essa obra foi elaborada
em meados dos anos 50 e concluída em 1961, sendo publicada, pela primeira vez,
na Alemanha, em 1963. Nela o autor busca uma aplicação do marxismo aos
problemas estéticos, tendo como principal objetivo buscar a explicitação dos
aspectos essenciais e específicos do reflexo estético da realidade. Segundo Duayer
(2003), seu ponto de partida para esclarecer o lugar do comportamento estético na
totalidade das formas, das atividades humanas e de suas reações espirituais ao
mundo externo, à realidade objetiva, será sempre a conduta do homem na vida
cotidiana, que considera o começo e o fim de toda atividade humana.
Cabe, então, trazermos para o estudo em tela algumas considerações sobre o
conceito de vida cotidiana, pensadas por Agnes Heller, grande estudiosa das idéias
de Lukács. Heller (apud DUARTE, 1996) conceitua vida cotidiana como o conjunto
de atividades que caracteriza a reprodução dos indivíduos. São atividades voltadas
diretamente para a reprodução do indivíduo, por meio das quais, indiretamente,
contribuem para a reprodução da sociedade, reproduzidas por seres humanos, sem
que, necessariamente, eles mantenham uma relação consciente com essas
atividades e com o processo de sua produção. São, por exemplo, constituídas pelos
objetos, pela linguagem e pelos usos e costumes, ou seja, os homens produzem a
linguagem, os objetos, os usos e costumes de uma forma “natural”, “espontânea”,
por meio de processos que não exigem a reflexão sobre a origem e sobre o
significado dessas produções. Segundo Heller, esse significado é dado naturalmente
pelo contexto social.
Em contrapartida, as esferas não cotidianas referem-se àquelas atividades que
estão diretamente voltadas à reprodução da sociedade, expressando a realidade
produzida historicamente pelos homens, ainda que, indiretamente, contribuam para
a reprodução do indivíduo, como a Arte e a ciência. Ligado a isso, é importante
colocar que, nessa concepção, a reprodução da sociedade é considerada também
como a reprodução das contradições que permeiam a sociedade. Segundo a autora,
uma das contradições é a existente entre o fato de que, por um lado, a sociedade
capitalista forma o indivíduo, reduzindo-o a alguém que ocupa um lugar na divisão
social do trabalho e, por outro lado, essa mesma sociedade produz,
contraditoriamente, no indivíduo, necessidades de ordem superior, que apontam a
65
formação de um indivíduo que, pela sua inserção consciente nos sujeitos coletivos,
mantém uma relação consciente com sua vida cotidiana, mediatizada pela relação
também consciente com a Arte, ciência, filosofia, moral e política (DUARTE, 1996).
Heller (apud DUARTE, 1996) mostra também que não há, necessariamente,
alienação no fato de a vida possuir, como uma das características, a unidade
imediata entre pensamento e ação, o pragmatismo. Segundo ela, não podemos
fundamentar teoricamente a grande heterogeneidade de tarefas que temos diante de
nós na vida cotidiana. Ocorre que isso não é obrigatoriamente alienado e alienante;
assim se torna quando os homens se mostram incapazes de reconhecer as
situações em que é necessário suspender o pragmatismo da vida cotidiana
(DUARTE, 1996). É fundamental também esclarecer que não existe uma separação
rígida entre o cotidiano e o não cotidiano. Segundo Heller (apud DUARTE, 1996),
algumas atividades que envolvem o gênero humano relacionam-se, ao mesmo
tempo, com as atividades ligadas à vida cotidiana e às esferas não cotidianas.
Tendo posto isso, retornamos a Lukács (1966) e a seus apontamentos sobre a
cotidianidade e suas relações com as produções humanas. Segundo ele, é na vida
cotidiana que se originam a Arte e a ciência, formas superiores de recepção e
reprodução da realidade. Para ele, a Arte é uma atividade que parte da vida
cotidiana para, em seguida, a ela retornar, produzindo, nesse movimento reiterativo,
uma elevação da consciência dos homens. É um modo de os homens se
apropriarem do mundo,
[...] um peculiar modo de manifestar-se o reflexo da realidade, modo que não é mais que um gênero das universais relações do homem com a realidade, nas quais esta é refletida por aquele. Uma das idéias básicas decisivas desta obra é a tese de que todas as formas de reflexo – das que analisamos antes de tudo a da vida cotidiana, a da ciência e da Arte – reproduzem sempre a mesma realidade objetiva (LUKÁCS, apud DUAYER, 2003, p.14).
O reflexo estético é a expressão do homem em frente à realidade. É, segundo
Foerste (2004, p.37), “[...] o reflexo da realidade social e histórica de que o artista é
parte” (FOERSTE,). Ele precisa ser visto não como simples rebatimento da
realidade, mas como expressão da sensibilidade do artista, que sofre influências,
age e transforma o contexto que integra.
66
A Arte, portanto, reflete a realidade: realidade complexa e multifacetada,
compreendida a partir das diferentes esferas que a compõem; realidade referida ao
homem inserido em um tempo e espaço concreto; realidade social, uma totalidade
viva, na qual se fundem essência e aparência, onde o artista representa o real por
meio de sua sensibilidade e das condições que o seu tempo histórico impõe
(FOERSTE, 2004).
O próprio Lukács esclarece dizendo que
[...] o reflexo estético parte do mundo humano e se orienta a ele. Isto não significa nenhum subjetivismo puro e simples. Pelo contrário, a objetividade dos objetos fica preservada de tal modo que contenha todas as referências típicas à vida humana: de tal modo que a objetividade apareça como correspondente ao estágio da evolução humana, externa e interna, que é cada desenvolvimento social (apud DUAYER, 2003, p.16).
Nessa visão, o artista é o sujeito capaz de fazer aparecer uma interpretação mais
ampla e profunda da realidade. “Capaz de sínteses substantivas sobre a relação
dialética entre subjetivo e o objetivo, entre o homem e o mundo” (FOERSTE, 2004,
p. 40). O artista inicia sua criação partindo da realidade, mas, no processo, chega a
descobertas mais abrangentes do que as observações medianas oferecidas pela
cotidianidade; ele transcende o mundo das aparências.
Ao criar a obra de arte, o artista cria um mundo de leis específicas. O objeto artístico,
então, faz-se uma particularidade capaz de dialogar e interferir nos modos de
percepção do seu criador e, consecutivamente, do seu receptor. A Arte expressa
uma realidade humana em um contexto particular: “É uma representação estruturada
da realidade, na qual estão presentes o fenômeno, enquanto manifestação aparente,
e a essência, como processo implícito e manifestação das forças sociais atuantes
em um dado momento histórico” (FOERSTE, 2004, p.43).
Assim sendo, a Arte abre a possibilidade de o homem encontrar-se com um meio
homogêneo, depurado de impurezas e acidentes da heterogeneidade próprios do
cotidiano. Na fruição estética, o indivíduo depara-se com a figuração
homogeneizadora, mobilizando toda a sua atenção para se adentrar nesse mundo,
despojado dos acidentes e variáveis que geram as descontinuidades do cotidiano.
67
Essa concentração de atenção produz uma elevação do cotidiano, na qual o
indivíduo supera a sua singularidade e é posto em contato com o gênero humano.
Ou seja, o encontro com a obra de arte torna possível a cada indivíduo reconhecer
sua própria essência, sua história no processo de desenvolvimento do ser humano.
Como aponta Lukács, ocorre um processo que possibilita aos homens “[...] a síntese
ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero
humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si” (LUKÁCS, apud
FOERSTE, 2004, p. 33).
Em sentido mais amplo, podemos considerar, sob a luz do referencial lukcasiano,
que o processo de homogeneização envolve a passagem da heterogeneidade da
vida cotidiana para a homogeneidade das esferas não cotidianas do gênero
humano. Não se trata, portanto, de homogeneizar os indivíduos, anulando suas
individualidades. A homogeneização é abordada por Lukács como um processo
necessário à relação do indivíduo com as esferas não cotidianas, como a Arte e a
ciência. Segundo ele, sem a superação da heterogeneidade, que caracteriza as
atividades da vida cotidiana, o indivíduo não pode elevar-se, em seu processo de
formação, às esferas mais altas da atividade social. Trata-se de um processo que,
segundo Heller,
[...] é o critério que indica a saída da cotidianidade porém, há que sublinhar, não é um critério subjetivo. Do mesmo modo que a vida individual sem as necessárias formas de atividade heterogêneas não seria uma vida cotidiana que se reproduz, assim as objetivações29 genéricas não são reproduzíveis por si mesmas, sem o processo de homogeneização. É precisamente o processo de reprodução das esferas e objetivações homogêneas que exige categoricamente a homogeneização. Se uma sociedade necessita do Estado e do direito, não poderá subsistir nem sequer um dia se não existem pessoas que, por um certo período de sua vida ou durante toda ela, estejam imersas no trabalho sobre a estrutura homogênea do direito e tenham aprendido a pensar sobre tal base. Se uma sociedade necessita das ciências naturais, deve ter um certo número de pessoas que dominem os sistemas homogêneos das disciplinas particulares e aprendam a mover-se neste âmbito, situando-se assim à margem da vida e do pensamento cotidianos [...]. Se estas homogeneizações não se verificam no número e na medida necessários, as necessidades objetivas da sociedade permanecem insatisfeitas e as objetivações não chegam a reproduzir-se. Eis aqui por que a homogeneização não é um critério subjetivo, e não o seria nem sequer se observássemos esse fenômeno – que agora consideramos em comparação
29 As objetivações são o resultado do desenvolvimento histórico-social. Os indivíduos, ao longo do seu desenvolvimento ontogenético, apropriam-se das objetivações por intermédio da relação com outras pessoas e nelas se objetivam.
68
com a vida cotidiana – sob a perspectiva do homem singular (apud DUARTE, 1996, p. 63, grifos no original).
Podemos entender, com a passagem de Heller (apud DUARTE, 1996), que o
processo de homogeneização é uma exigência da própria vida e do pensamento
cotidiano, pois as esferas não cotidianas da vida social não podem existir sem o
processo de homogeneização, assim como a vida cotidiana e com ela a reprodução
dos indivíduos não podem existir sem a heterogeneidade das atividades que a
compõem.
Lukács (1966) nos esclarece que o poder orientador e evocador do meio
homogêneo penetra na vida do receptor, subjugando seu modo habitual de
contemplar o mundo, e chamando a atenção para o mundo, cheio de conteúdos
novos ou visto de modos novos, fazendo com que o indivíduo receba esse mundo
com sentidos e pensamentos rejuvenescidos, renovados (LUKÁCS, 1966). Esse
poder da Arte, considerado um meio homogêneo, é o que leva o homem à catarse,
compreendida pelo filósofo como “[...] efeito que desencadeia o choque entre o
mundo objetivo esteticamente refletido com a mera subjetividade cotidiana”
(LUKÁCS,1966, p. 517, tradução nossa).
É nesse momento catártico que ocorre a transformação do homem inteiro (imerso na
cotidianidade) em homem inteiramente receptível à Arte, que amplia e enriquece
conteúdos e formas, efetivos e potenciais da psique do homem. Traz novos
conteúdos que aumentam seu tesouro vivencial, desenvolvendo sua capacidade
receptiva e sua capacidade de reconhecer e gozar novas formas objetivas, novas
relações, etc.
A transformação do homem inteiro da cotidianidade no homem inteiramente tomado que é o receptor em cada caso, em frente a cada concreta obra de arte, move-se precisamente na direção de uma tal catarse, extremamente individualizada e, a mesmo tempo, de suma generalidade (LUKÁCS,1966, p. 501, tradução nossa).
Sobre esse efeito individualizado, o autor coloca que o participante de uma
experiência estética não pode ser visto como uma tábua rasa, como um disco
gramofônico ainda não gravado em que qualquer coisa poderia imprimir seu efeito.
69
Pelo contrário, Lukács respeita as vivências anteriores do indivíduo, como mostra a
citação que segue.
[...] jamais o receptor é uma folha em branco em frente a obra de arte, de tal modo que possa escrever nele cifras quaisquer. O receptor, inclusive quando é criança, chega sempre da vida, carregado de impressões, vivências, pensamentos e experiências que arraigaram mais ou menos firmemente nele a conseqüência dos efeitos do tempo, da natureza, da classe, etc., e que, às vezes, prontamente, podem se encontrar num estado crítico de transição individual ou social. Pensamos que é correta a nossa expressão anterior segundo a qual o meio homogêneo invade a vida anímica do homem inteiro situado como receptor, e que essa invasão é necessária se tal homem tem que se tornar realmente um receptor estético, um homem que suspende todo outro esforço concreto, se entregando totalmente ao efeito da obra (LUKÁCS, 1966, p. 496-497, tradução nossa).
Com relação ao efeito da obra no receptor, Lukács, a partir de idéias goethinianas,
propõe que, assim como a relação do homem com os objetos naturais – e seu
conjunto – é uma relação ética, o efeito artístico também pode sê-lo, pois, ao se
comover pela obra de arte verdadeira, o receptor desencadeia um sentimento
negativo, um pesar por não ter percebido nunca, na realidade, na própria vida, o que
tão “naturalmente” se oferece na conformação artística. “[...] nessa comoção contém
uma anterior contemplação enfeitiçadora do mundo, a sua destruição pela sua
própria imagem desenfeitiçada na obra de arte e a autocrítica da subjetividade”
(LUKÁCS,1966, p. 507, tradução nossa). Essa relação ética, submetida ao efeito
catártico, é “[...] uma sacudida tal da subjetividade do receptor que as suas paixões
vitalmente ativas cobrem novos conteúdos, uma nova direção e, assim, purificadas,
se transformem em embasamento anímico de ‘disposições virtuosas’”
(LUKÁCS,1966, p. 508, tradução nossa). Sendo assim, a Arte possibilita ao homem
transcender à fragmentação produzida pelo fetichismo da sociedade capitalista. Ela
produz uma elevação, uma suspensão da cotidianidade, uma elevação da
subjetividade do plano meramente singular para o campo mediador da
particularidade que a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a
operação de retorno à vida, de olhos mais abertos.
Portanto, cada catarse estética é um reflexo concentrado e consciente produzido de
comoções contidas na vida. A “crise” catártica desencadeada no receptor reflete os
traços mais essenciais dessas constelações vitais. Segundo o autor húngaro,
70
[...] a vida trata sempre de um problema ético, o qual, portanto, tem que constituir também o conteúdo central da vivência estética. Mas é claro que, na regulação da vida humana pela ética, a conversão catártica não constitui mais do que um específico caso-limite no sistema das decisões éticas possíveis; junto a ela – por não destacar mais do que uma questão importante – são possíveis resoluções sem emotividade que produzem atitudes éticas tão fortes, duradouras e firmes como as comoções catárticas e, em muitos casos, mais do que estas. É essencial ao ético que a tenacidade conseqüente seja hierarquicamente superior a todo o entusiasmo, por apaixonado, sincero e profundamente sentido de que este seja (LUKÁCS, 1966, p. 509, tradução nossa).
Em síntese, pode-se concluir que, para Lukács (1966), o efeito catártico
desencadeado pela obra de arte é conseqüência de uma universalidade já
plenamente conformada, pois o objeto artístico produz um mundo que não só é
particular, ele contém a totalidade das relações sócio-históricas da humanidade.
Após a catarse, como diz o autor, no Depois de cada vivência receptiva, o homem é
reconstituído, enriquecido, ampliado. Todos os efeitos transformadores se convertem
em elemento da vida. Ou seja, a invasão do meio homogêneo converte o homem em
receptor propriamente dito, orientando sua capacidade receptiva, proporcionando a
esse homem o encantamento do mundo novo, é nesse momento que ele elabora o
que adquiriu.
O adquirido é imediatamente conteúdo e, por isso, apresenta ao homem a tarefa de inserir esse conteúdo em sua imagem anterior do mundo, a transformar essa imagem de modo correspondente para adaptá-la a àquele. Mas, somente no sentido imediato, trata-se de conteúdo; como este constitui o lado orientado ao receptor de uma identidade forma-conteúdo, o componente formal dessa identidade se manifesta na grande tensão e intensidade do todo, como já sabemos, além do qual a novidade da obra de arte atua também formalmente, na medida em que todo o conteúdo comunica ao receptor algo do método de sua percepção, de sua acessibilidade; por isso a percepção dos novos conteúdos é, ao mesmo tempo, um estímulo e uma orientação para reconhecer também na vida o que lhes é análogo e assim poder apropriar-se do mesmo conteúdo. Desse modo, tem lugar a passagem do homem inteiramente receptivo ao homem inteiro da cotidianidade. É claro que essas comoções e transições são extraordinariamente diversas nos distintos homens, com relação as diversas obras de arte; e a diversidade refere-se ao conteúdo, ao alcance, à profundidade, à duração, etc. O pluralismo da esfera estética desprende-se precisamente nessa multiplicidade. Freqüentemente, o efeito de uma obra sobre o Depois do homem é totalmente imperceptível, e faz falta toda uma série de tais agregações para mostrar uma mudança apreciável quanto ao comportamento, cultura, etc.; outras muitas vezes, desde já, basta somente uma obra para provocar uma transformação completa na vida do homem (LUKÁCS, 1966, p. 536-537, tradução nossa).
Em contrapartida, Lukács (1966) alerta para a questão de que até os produtos sem
valor artístico, pseudo-estéticos, podem ter esses “efeitos”, quando saem ao
71
encontro de uma tarefa social de suma importância. Mas seus efeitos não se
efetivam, pois eles fixam o indivíduo na imediatez cotidiana. Cumprem a função de
entretenimento. Dirigindo-se à esfera privada dos indivíduos, eles não generalizam,
não colocam o indivíduo como gênero e, por isso, o caráter social da personalidade
humana não se desenvolve.
Tendo esse referencial teórico em vista, podemos concluir que o contato com a Arte
possibilita uma reflexão sobre o mundo, faz com que o homem repense seu
cotidiano. Como Lukács (1966) coloca, o homem torna-se inteiro na cotidianidade.
Essa contribuição dada pela Arte pode ser mediada e aprofundada com o trabalho
educativo. A escola pode contribuir para que os momentos com a Arte sejam mais
freqüentes e significativos. Vigotski (1999) coloca que o encontro freqüente com a
Arte organiza nosso comportamento para ações futuras e nos faz aspirar ao que
está incutido nela. A partir do contato com a obra de arte, são desencadeados
processos de reflexão, interação, ação, análise, experiências e interpretação.
Mas, para que isso ocorra, é preciso que a Arte seja entendida em sua dimensão
mais ampla. Por isso o trabalho educativo deve propiciar que o indivíduo conheça a
obra de arte em sua totalidade, vista como uma particularidade, em que o momento
de catarse está atrelado ao conhecimento de todas as dimensões que a envolvem.
Segundo Barbosa (1991, 1997, 2002a), Pillar (1999), Foerste (2004) e Franz (2003),
esse conhecimento deve ser iniciado na escola. Então, tendo em vista a relação
que liga a catarse ao trabalho educativo, iremos, a seguir, aprofundar nossa
pesquisa procurando entender a categoria catarse na prática pedagógica escolar.
2.2 A CATARSE NA EDUCAÇÃO
Em nossos estudos, acreditamos que o conceito de catarse seja fundamental para a
reflexão sobre o Ensino da Arte, principalmente no que se refere aos momentos de
experiência estética. Retornando a Lukács (1966), podemos presumir que, no
momento da catarse, acontece uma sacudida na subjetividade do receptor. É a
tomada de consciência por parte do indivíduo, do mundo fetichizado. Em outras
72
palavras, a Arte, também chamada por Lukács de meio homogêneo ou esfera não
cotidiana, converte o homem em receptor propriamente dito, orientando sua
capacidade receptiva, proporcionando a esse homem o encantamento de um mundo
novo, o mundo da Arte, e é nesse momento que o indivíduo elabora o que adquiriu,
toma consciência de sua realidade, buscando transformá-la. É importante colocar
que essa transformação não ocorre instantaneamente; ela é gradual e variável, pois
acontece dentro de um processo de encontros e de convívio com a obra de arte. A
transformação não é uniforme para todos os indivíduos que participam de uma
experiência estética, pois depende de fatores subjetivos que estão relacionados com
o contexto histórico-cultural de cada pessoa.
Como foi dito, podemos entender a catarse como parte do processo de
homogeneização, no qual ocorre a superação da heterogeneidade da vida cotidiana.
Nesse contexto, entendemos que a esfera cotidiana é uma esfera heterogênea, ou
seja, a vida cotidiana é um conjunto de atividades necessárias à reprodução do
homem singular, enquanto as esferas não cotidianas, como a ciência e a Arte, são
esferas homogêneas, dependem da prática social, apesar de não estarem
imediatamente ligadas a ela.
Se pensarmos que a educação escolar forma os indivíduos para a vida social como
um todo, desde a vida cotidiana até as esferas não cotidianas, cabe a ela dar
condições para que os indivíduos se apropriem das produções científicas e artísticas
elaboradas pelo homem. Sabemos que utilizamos, em nosso cotidiano,
pragmaticamente, essas construções de saberes e fazeres, mas acreditamos que
seja também função da escola proporcionar momentos em que os indivíduos
possam se apropriar dessas produções para se reconhecerem como integrantes do
gênero humano (LUKÁCS, 1966).
Duarte30 (1996) coloca que a categoria de gênero humano não se reduz àquilo que é
comum a todos os homens, não é uma mera generalização das características
empiricamente verificáveis em todo e em qualquer ser humano, não se trata de
desrespeitar a diversidade do indivíduo. Gênero humano é uma característica que
30 Compartilhamos com as idéias desse autor tendo em vista sua aproximação com a perspectiva histórico-social, bem como com as teorias desenvolvidas por Vigotski.
73
expressa a síntese, em cada momento histórico, de toda produção humana até
aquele momento. Tomemos as palavras desse autor sobre o assunto.
[...] para se formar como um ser humano, um ser genérico, o indivíduo tem que se tornar um ser social, mas essa socialidade, sendo formada no interior das relações de dominação, implica também o fenômeno da alienação. Lutar contra a alienação é lutar por reais condições para todos os homens de se desenvolverem à altura das máximas possibilidades objetivamente existentes para o gênero humano (DUARTE, 1996, p. 27).
É no trabalho educativo que se realiza o processo de homogeneização. É nele que o
indivíduo entende as produções do homem e, por conseguinte, reconhece-se como
um ser social. Nesse processo, ele passa a entender sua vida de forma menos
alienada e, quanto menos alienada for a vida cotidiana, mais ela fornecerá as
condições para os momentos em que ocorrem o processo de homogeneização. Isso
não quer dizer que, no processo educativo, aconteça a homogeneização de forma
espontânea e natural, é preciso que, por meio de mediações, os educandos possam
assimilar formas de pensar e agir necessárias a esse processo.
Compartilhamos com Fontana (2005) suas proposições sobre as mediações que
ocorrem no contexto escolar, quando ela diz: “Na mediação do/pelo outro revestida
de gestos, atos e palavras a criança vai integrando-se, ativamente, às formas de
atividade consolidadas (e emergentes) de sua cultura, num processo em que
pensamento e linguagem articulam-se dinamicamente” (FONTANA, 2005, p.15).
Nesse contexto, é preciso que o professor assuma seu papel de mediador,
intencional e explícito, estabelecendo uma relação de co-autoria entre os sujeitos,
em que os saberes de alunos e professor interligam-se, criando um espaço em que
as “zonas de desenvolvimento proximal” sejam trabalhadas pelos dizeres e fazeres
de todos. Desse modo, é preciso que as outras pessoas que já adquiriram esse
conhecimento atuem sobre o indivíduo no sentido de ajudá-lo a se apropriar
conscientemente da Arte.
Para tanto, o processo educativo deve colocar o indivíduo em contato com as
produções artísticas, científicas, filosóficas, morais, políticas, etc., realizadas pelo
homem ao longo de sua trajetória histórica. Segundo Duarte (1996), na atividade
educativa, a relação com o conhecimento científico e sua apropriação por parte do
74
indivíduo é um resultado perseguido de forma intencional e direta. Usando as
palavras de Saviani: trabalho educativo é “[...] o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 1991, p.49). Então, o
trabalho educativo ensina o indivíduo a estabelecer uma relação direta, consciente e
ativa com o saber científico, proporcionando também o desenvolvimento do
pensamento desse indivíduo.
Sendo assim, podemos acreditar que o processo catártico, provocado por uma obra
de arte, pode e deve ser proporcionado dentro do trabalho educativo. Atividades que
proporcionem o contato e, por conseguinte, a experiência estética a partir de obras
de arte, devem acontecer também na escola. Mas, para que isso ocorra, devemos
estar atentos ao fato de que propiciar essas experiências utilizando reproduções de
obras de arte não possuem o mesmo efeito que o convívio com originais de Arte. A
realidade das escolas brasileiras não proporciona condições de aquisições de
originais de Arte, ou de terem espaços para exposições de artistas. Salvo algumas
exceções, que ocorrem principalmente na iniciativa privada, estamos longe de ter
originais de Arte nas escolas brasileiras.
Cabe, então, pensar em quais possibilidades teríamos para tornar possível o contato
com originais de Arte. Sabemos que os setores educativos de museus e espaços
expositivos têm-se efetivado em muitas cidades brasileiras, inclusive em nosso
Estado. Mas percebemos que o simples contato com esses setores que agendam as
visitas e definem percursos de visita previamente, monitorando os alunos, sem
conhecer suas peculiaridades, não colabora para que o contato com as obras de
arte se converta em um processo catártico. É preciso que ocorra entre esses
espaços – escola e espaço expositivo – uma parceria.
2.3 A PARCERIA ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO
De acordo com Foerste (2005), a parceira é uma prática adotada crescentemente no
campo da educação, principalmente no que se refere à formação de professores.
75
Essa prática intensificou-se na década de 1990, no Brasil, devido às grandes
transformações econômicas e políticas desse período, possibilitando inovações
consideráveis que estimularam a introdução de novos sujeitos, espaços e saberes
nesse domínio. Sendo assim, a parceria apresenta-se na atualidade com uma
configuração complexa, fortemente associada às reformas em educação promovidas
pelos órgãos do governo. Isso tem gerado questionamentos por parte dos
profissionais de ensino sobre as possíveis contribuições da parceria educacional
para a valorização do trabalho docente, visto que muito se tem debatido sobre a
qualidade da escola básica e a pouca relevância dada a ela por parte do governo.
Além disso, a parceria entre a universidade e a escola básica está sendo
questionada, principalmente, porque a integração pretendida entre essas instituições
é pensada, sobretudo, com o objetivo de resolver problemas para o professor, dando
respostas a pontos críticos verificados no cotidiano escolar. Apesar disso, muitos
pesquisadores da universidade e professores ensejam por uma proposta que
valorize processos reflexivos e compartilhados, a partir das experiências docentes,
centradas nos saberes dos professores do ensino básico e construídas nos embates
teórico-práticos no cotidiano escolar, demonstrando que existe disposição, por parte
dos sujeitos envolvidos, para partilhar poderes, estabelecendo metas e alternativas
de trabalho.
Nesse contexto, Foerste (2005) aponta que existem três perspectivas de trabalho de
parceria na formação de professores. A mais tradicional é a chamada parceria
dirigida que, apesar de existir há muito tempo, só recebeu essa denominação a partir
dos anos 1980. Esse autor coloca que a parceria dirigida pode ser compreendida
como uma estratégia da racionalidade técnica que compõe as universidades,
tratando as escolas como recursos a serem utilizados no processo de formação
inicial de professores.
Nessa modalidade de relação, a instituição formadora – a universidade – detém todo poder de decisão, do que fazer e como fazer, principalmente nos chamados estágios curriculares. O estabelecimento escolar é tomado como um meio de aprendizagem daquele conjunto de aspectos práticos exigidos nos currículos dos cursos de formação inicial (FOERSTE, 2005, p.114).
76
Portanto, a crítica que se faz a essa perspectiva de trabalho em parceria
fundamenta-se no argumento de que esse tipo de relação da academia com a
escola básica apresenta, em sua base, uma motivação essencialmente pragmática e
reprodutiva, pois “[...] a universidade pensa e à escola resta a função de executar
tarefas” (FOERSTE, 2005, p.115). É necessário propor mudanças significativas,
implementando políticas de formação docente que introduzam “[...] outras formas de
relação entre as instituições envolvidas no processo e saberes produzidos e
valorizados no seu interior” (FOERSTE, 2005, p. 116).
A segunda perspectiva de trabalho de parceria na formação de professores é a
parceria oficial, que se constitui em uma prática recente derivada da burocracia
governamental, oficializada por decreto. Segundo os órgãos governamentais, com
ela, buscam-se soluções mais adequadas para a execução dos propósitos de
reformas educacionais e públicas, garantindo “[...] superar problemas que remetem
aos debates do distanciamento dos currículos dos cursos da área de educação da
universidade em relação aos estabelecimentos de ensino básico” (FOERSTE, 2005,
p. 116). Além disso, o discurso oficial critica o papel da universidade, mostrando
insatisfação quanto ao projeto de formação de professores realizado por ela. Utiliza,
como argumento, o fato de tal projeto não atender às necessidades de
profissionalização docentes requeridas num quadro de mudanças sociais e
econômicas. Segundo o governo, as instituições de ensino superior “[...] estariam
preocupadas em validar de forma acadêmica a formação dos docentes da escola
básica, em detrimento de um contato maior com a prática escolar e o
desenvolvimento de estudos sobre os processos envolvidos na atividade de ensino”
(FOERSTE, 2005, p.117).
Todavia, Foerste aponta que os pesquisadores das universidades e professores do
ensino básico afirmam que a integração da academia com as escolas se faz
necessária, precisando ser construída a partir de uma efetiva articulação entre teoria
e prática. Os embates entre os parceiros e as perspectivas de trabalho de parceria
na formação de professores que vêm sendo proposta demonstram que tanto a
parceria dirigida quanto a oficial não conseguem construir e implementar mudanças.
É preciso, então, pensar em uma outra perspectiva: a parceria colaborativa.
77
A parceria colaborativa constitui-se, assim, como uma das reações dos profissionais
do ensino à ação do Poder Público na área de formação de professores. Nesse
movimento, os profissionais da educação passaram a empreender esforços para a
introdução nos currículos de diferentes tipos de conhecimento na formação inicial e
continuada, abarcando tanto os conhecimentos acadêmicos quanto os da prática
docente.
A identidade profissional do professor configura-se na interface entre saberes, que são construídos e/ou adquiridos num processo multifacetado e complexo de formação e de prática profissional. São diferentes conhecimentos educacionais a que esse profissional deve ter acesso, a partir de instituições com papéis diferenciados entre si, são decisivos na formação teórico-prática do professor, qualificando-o para uma ação mais autônoma diante dos problemas vividos pela profissão, no interior e mesmo fora de um estabelecimento escolar (FOERSTE, 2005, p. 119).
Importante é colocar que, segundo Foerste (2005), na parceria colaborativa, podem
ser identificados alguns princípios norteadores como, currículo integrado; acesso e
complementaridade entre diferentes tipos de saberes; inexistência da necessidade
de consensos sobre o que é uma boa prática; valorização do crescimento individual
dos estudantes; e a criação de uma rede de formadores de campo para desenvolver
um trabalho colaborativo entre a universidade e a escola.
Sendo assim, a parceria colaborativa cria condições para serem estabelecidas
negociações concretas que identificam objetivos comuns e respeitam interesses
específicos de cada instituição, considerando tanto a universidade quanto a escola.
Nesse contexto, muitas pesquisas acadêmicas sobre a parceria educacional vêm se
constituindo. A maioria delas sinaliza que as interfaces entre formação, ação e
pesquisa colocam a tarefa de se compreender complexidades e ambigüidades
envolvidas nessa modalidade de trabalho.
Sabemos que, cada vez mais, se ampliam as parcerias que objetivam a formação
profissional na educação por meio da colaboração entre professores da universidade
e instituições que se ocupam em formar os profissionais de ensino. Porém, outras
situações de parceria colaborativa vêm sendo desenvolvidas. Compartilhamos com
as idéias de Foerste (2005, p. 120) quando diz:
78
A formação profissional do professor está experimentando a construção de um novo paradigma, com a definição de espaços inovadores de qualificação, em que se observa a partilha de alguns compromissos e responsabilidades entre diferentes segmentos institucionais interessados hoje no magistério.
Percebemos que instituições educativas, como espaços expositivos e museus de
Arte, começam a participar do processo de formação de professores. Como
exemplo, podemos citar o Museu Vale do Rio Doce que, a cada abertura de mostra
de Arte, convida, em média, 50 professores para vivenciar o percurso da visita e
participar de uma oficina de Arte concernente à exposição. Contudo, segundo a
responsável pelo setor de Arte-Educação, não foi firmada oficialmente parceria entre
instituições. Cabe colocar ainda que outras iniciativas voltadas para o Ensino da Arte
buscam estabelecer parcerias. Um exemplo é o material educativo arte br que foi
elaborado pelas professoras doutoras Anamélia B. Buoro, Lucimar Bello P. Frange,
Moema Rebouças, contando com a participação de Eliane Althié, Bia Costa e Beth
Kok.
O arte br é composto por um conjunto de pranchas com reproduções de obras de
Arte acompanhado por propostas de produção artística e de leitura de imagem,
colocado à disposição dos professores como auxiliar no planejamento de suas
aulas. Foi distribuído gratuitamente pelo Instituto Arte na Escola, em parceria com a
BR Distribuidora, com vários museus brasileiros, com os Pólos de Arte na Escola
espalhados na maioria dos Estados brasileiros e Secretarias de Educação. Essas
instituições mobilizaram-se para compor uma rede entre parceiros que
colaborativamente, se preocuparam tanto em distribuir o material educativo
elaborado quanto em propiciar momentos de formação dos professores de Arte que
se interessaram em receber tal material.
É dentro dessa perspectiva colaborativa que nossa experiência com a parceria se
constrói. Como Arte-educadora do setor educativo do Espaço Cultural Egydio
Antônio Coser, vivenciamos e participamos da instituição (extra-oficial) de uma
parceria colaborativa entre duas instituições: a Secretaria de Educação de Vitória e o
referido espaço expositivo. Cabe, então, descrevermos como se constituiu essa
prática social em nosso espaço de trabalho.
79
O Espaço Cultural Egydio Antônio Coser foi criado em 1995. Após um curto período
desativado, voltou, em 2002, a integrar o cenário cultural de Vitória. Nessa ocasião,
passamos a fazer parte do quadro de profissionais dessa instituição. Nossa função
era elaborar propostas educativas que ocorreriam nesse espaço: as chamadas
monitorias ou percursos de visitação mediados por monitores que, na maioria das
vezes, eram estudantes da área de Arte. Tínhamos também que, a cada exposição,
criar situações de aprendizagem com esse grupo, incentivando os seus
componentes a participar da elaboração da monitoria e fornecendo informações que
os ajudassem a ampliar seus conhecimentos sobre a Arte. Além dessas duas
funções, convidávamos31 professores de Arte para a abertura da exposição e, por
conseguinte, eles agendavam visitas ao espaço. Foi um trabalho que exigiu muitas
horas de conversa ao telefone, até que tivemos a idéia de firmar um acordo com
uma professora de Arte que já freqüentava o Espaço Cultural e que exercia, naquele
momento, a função de coordenadora de Arte. Ela era a responsável por organizar a
formação continuada dos professores de Arte da Rede Municipal de Vitória. Fizemos
o convite para que a coordenadora e o grupo de educadores fossem ao Espaço
Cultural, para, além de realizar sua reunião quinzenal no auditório anexo à galeria,
participar do percurso artístico elaborado para aquela determinada mostra de Arte.
Para tanto, planejamos que o percurso oferecido seria diferenciado. Com ele
estaríamos demonstrando como seriam os momentos de que esses professores
poderiam usufruir, se levassem seus alunos até o referido espaço. Essa foi a
maneira que encontramos, na época, de mostrar nossa proposta de trabalho. Nossa
idéia foi firmar uma parceria, mesmo extra-oficial, tanto com a Secretaria de
Educação, representada pela coordenadora, quanto com os professores de Arte da
rede. Com isso, muitos educadores agendaram suas visitas e, a partir daí, tínhamos
que, a cada abertura de exposição, preparar o momento de encontro com esses
professores, para que essa reunião pudesse colaborar tanto com a formação desses
profissionais quanto com o trabalho que estávamos realizando no Espaço Cultural.
Nesses encontros, podíamos conversar com os professores sobre nossas propostas
de monitoria bem como sobre o “Caderno de Arte” destinado ao suporte pedagógico,
31 Recorremos a escolas, instituições filantrópicas, centros comunitários e associações com o intuito de convidá-los a visitar nosso espaço.
80
acolhendo suas sugestões, vivências e críticas. Percebemos que os sujeitos da
parceria, nesse caso, a coordenadora e os professores, foram determinantes no
processo, pois apresentavam disposição e envolvimento com a proposta de trabalho.
Isso favoreceu a construção de uma parceria colaborativa, no sentido de que
buscávamos, juntos, alternativas para melhorar nossas práticas, ou seja, estávamos
pensando, na escola e no Espaço Cultural, no Ensino da Arte.
Foi preciso que se firmasse essa parceria para que entendêssemos a importância do
aprofundamento das reflexões e questionamentos suscitados pelas obras de arte
originais na escola. Já tínhamos pensado na continuidade das atividades iniciadas
no espaço cultural, mas achamos, naquela época, que somente sugerindo projetos
para sala de aula no “Caderno do Professor” poderíamos colaborar com essa
formação. Após nossos encontros com os referidos professores, começamos a
vislumbrar novas possibilidades de intervenção. Foi, então, que propusemos, em
nosso projeto para esta pesquisa, que fosse realizada uma pesquisa-ação,
justamente para que, ao lado de uma professora freqüentadora do Espaço Cultural,
pudéssemos estreitar ainda mais nossos laços, por meio da parceria colaborativa,
visando a contribuir com o Ensino da Arte na escola e no espaço expositivo,
proporcionando aos alunos visitantes possibilidades sistematizadas de participarem
de experiências catárticas.
81
CAPÍTULO III
CAMINHOS INVESTIGATIVOS
Como se aproximar de um saber digno de credibilidade quando o ator está em situação de juiz e de parte integrante?
André Morin
3.1 A METODOLOGIA
O que nos motivou a este estudo foi o interesse em investigar como se realiza o
processo catártico entre a obra de arte e o receptor (aluno da 8ª série do ensino
fundamental), na parceria escola/espaço expositivo. Para a realização deste estudo,
como metodologia de pesquisa, optamos pela pesquisa-ação, na medida em que
investigamos e interferimos em nossa própria prática e na realidade em que
estávamos inserida. Isso se deve ao fato de estarmos ligada ao trabalho em espaços
expositivos, pois somos integrante da equipe que elabora propostas para o Ensino
da Arte no Espaço Cultural Egydio Antônio Coser.
Por se tratar de uma pesquisa-ação, estivemos implicada no processo, inserida tanto
na escola quanto no espaço expositivo, comprometida com os outros por meio do
nosso olhar e de nossa ação singular sobre esse objeto de estudo. Compreendemos
que, para a pesquisa-ação, as ciências humanas são, essencialmente, ciências de
interações entre sujeito e objeto de pesquisa, por isso não existiu exclusão dos
sujeitos da pesquisa, pelo contrário, intensificamos nossas relações, tanto com
integrantes da equipe do espaço expositivo, quanto com a professora convidada
82
para colaborar com a pesquisa, tendo em vista que esses já faziam parte de nosso
contexto de trabalho.
Sendo assim, tivemos como objetivos planejar e executar uma proposta de Ensino
da Arte em parceria, na vivência e na construção do conhecimento em espaços
expositivos e na escola, que colaborasse com a investigação do processo catártico
dos jovens da 8ª série do ensino fundamental. Uma proposta educativa em Arte que
se deu na parceria entre Arte-educadores atuantes em espaços expositivos e na
escola, com o propósito de promover momentos que ajudassem o processo catártico
no espaço expositivo e na sala de aula.
Buscamos colaborar com a transformação da realidade social em que estivemos
inseridas, planejando e executando uma proposta de Ensino da Arte em parceria,
pois sabemos que poucos materiais didáticos relacionados com a produção artística
capixaba estão disponíveis aos professores. Além disso, existe, por parte desses
profissionais, uma grande dificuldade em trabalhar a Arte, pois muitas reproduções
que chegam até a escola são de péssima qualidade. Entendemos ser necessário
possibilitar o contato do aluno com a obra de arte em espaço/tempo real, pois, dessa
forma, a experiência se torna muito mais significativa, ensejando momentos que
envolvem a catarse, ou seja, a tomada de consciência, pela via da Arte, do mundo
fetichizado. Pensamos também que, com nossa pesquisa, constituiríamos uma
possibilidade de colaborar com os profissionais do Ensino da Arte que, presos à
rotina de seu cotidiano, apresentam dificuldades em aprofundar seus conhecimentos
e, ligado a isso, propor novos modos de conhecer a Arte por parte de seus alunos.
Sobre essa discussão, Barbier (2002) nos ajuda a entender que “Toda pesquisa-
ação é singular e define-se por uma situação precisa concernente a um lugar, a
pessoas, a um tempo, a práticas e a valores sociais e à esperança de uma mudança
possível” (2002, p.119).
Nesse processo, foi preciso que acontecesse uma relação entre teoria e prática. Por
isso, estivemos atenta a todos os eventos que indicavam que ações deveríamos
empreender para superar os problemas e eliminar as dificuldades. Percebemos que
a relação teoria/prática não poderia se limitar meramente à descrição de uma prática
com base na teoria, ou seja, em informar o juízo prático (ALMEIDA, 2004).
83
Procuramos, com esta pesquisa, possibilitar situações sociais, em que professor,
aluno, monitor e pesquisador pudessem apresentar suas opiniões e desempenhos,
buscando a compreensão de nossas práticas e das situações em que estivemos
inserida. Dessa forma, nossa temática de investigação passou a ser um tema da
prática social, um processo reflexivo que exigiu a participação de todos: escola,
professora, alunos, pesquisadora e equipe do espaço expositivo.
Tendo isso em vista, planejamos o primeiro momento da intervenção, baseado
principalmente na proposta do “Caderno de Arte” elaborado por nós (equipe de Arte-
Educação do espaço expositivo). Conforme nossa avaliação (pesquisadora e
professora), fomos planejando o momento seguinte, entendendo que não
poderíamos executar um projeto predefinido, mas sabendo que esse deveria ser
construído durante o processo. Sendo assim, em nossa pesquisa, procuramos não
separar o pensamento da ação. Estivemos implicada no planejamento, na ação, na
observação, na reflexão, depois, em constante planejamento e avaliação da
experiência em curso. Ao todo, foram nove momentos que ocorreram
sucessivamente.
Iniciamos com a elaboração do material educativo para a exposição, preparamos e
executamos a formação dos monitores do espaço expositivo, planejamos a atividade
em sala de aula antes da visita ao espaço expositivo, vivenciamos a proposta da
monitoria para a exposição no espaço expositivo. Em seguida, em sala de aula,
refletimos sobre a vivência no espaço expositivo, para, em outro momento,
relacionarmos nossas experiências com uma canção. Dando continuidade ao
aprofundamento das questões, fizemos uma retrospectiva do processo expondo as
produções artísticas dos alunos, o que culminou em um trabalho com gravura em
isopor. Na etapa seguinte, enfatizamos o aspecto formal das gravuras vistas no
espaço expositivo, relacionando-as com produções de outros artistas, sintetizando
as reflexões por meio da elaboração de colagens individuais. Finalizando o
processo, avaliamos com os alunos todas as vivências experimentadas nos dois
espaços da pesquisa: escola e espaço expositivo.
84
Com relação à coleta de dados, utilizamos, principalmente, a videogravação,32
gravação em áudio,33 fotografias, diário de bordo, entrevista34 semi-estruturada, o
questionário e as produções artísticas dos alunos. Durante as observações, que
ocorreram entre os dias 29-09-2006 e 05-12-2006, além de estarmos atenta à
complexidade, mantivemos nossa escuta sensível. Procuramos sentir o universo
afetivo, imaginário e cognitivo do outro para compreender as atitudes, os
comportamentos e os sistemas que o envolvem. Buscamos nos manter implicada,
engajada pessoal e coletivamente, reconhecendo que estar implicado é manter-se
em uma interação, pois, ao mesmo tempo em que implicamos o outro, somos
implicados por ele.
Nos momentos em que elaboramos as entrevistas semi-estruturadas e dela
participamos, consideramos que o caráter de interação social da entrevista
proporcionou tanto ao entrevistador quanto ao entrevistado a possibilidade de
mudança durante o processo. Nesse momento, estiveram em jogo as percepções do
outro e de si, expectativas, sentimentos, preconceitos e interpretações dos
participantes. É como nos fala Szymanski (2004, p. 14)
Há algo que o entrevistador está querendo conhecer, utilizando-se de um tipo de interação com quem é entrevistado, possuidor de um conhecimento, mas que irá dispô-lo de uma forma única, naquele momento, para aquele interlocutor. Muitas vezes, esse conhecimento nunca foi exposto numa narrativa, nunca foi tematizado. O movimento reflexivo que a narração exige acaba por colocar o entrevistado diante de um pensamento organizado de uma forma inédita até para ele mesmo.
O instrumental para a análise utilizado na presente pesquisa foi a reflexão crítica,
abordada por Morin (2004). Segundo o autor, na pesquisa-ação, o pesquisador se
compromete a viver os aspectos acerca do objeto de pesquisa participando na
solução ou na descoberta das múltiplas variáveis que estão em jogo. Por isso, as
análises prosseguem durante toda ação de pesquisa e coleta de informações até a
redação final, enunciando as conclusões.
32 Filmamos com duas câmeras o momento da visita ao espaço expositivo totalizando três horas de videogravação. 33 Ao todo, foram realizadas 20 horas de gravação. 34 Realizamos duas entrevistas por e-mail com os artistas expositores que constam no Apêndice A, uma entrevista com a professora e várias com os alunos em sala de aula.
85
Sendo assim, para analisarmos os dados do estudo em tela, partimos das reflexões
sobre os momentos da intervenção, durante o processo e, principalmente, no
momento da redação final. Como nosso objetivo geral foi investigar como se realiza
o processo catártico entre a obra de arte e o receptor na parceria escola/espaço
expositivo, preferimos esmiuçar cada momento ocorrido nesses espaços, para
encontrar indicativos desse processo, principalmente nas falas, nas interações e nas
produções artísticas dos sujeitos da pesquisa. Para melhor organização dessa
etapa, dividimos a intervenção em cinco momentos que, durante as análises dos
dados empíricos (integrantes do quarto capítulo), foram estudados minuciosamente.
Nesses momentos, refletimos sobre algumas falas, interações e produções artísticas
dos sujeitos da pesquisa que se relacionavam com as questões que estivemos
investigando, sob a luz de nosso referencial teórico.
Como a pesquisa ocorreu tanto no espaço expositivo quanto na escola,
apresentaremos, a seguir, as instituições envolvidas, a exposição escolhida, bem
como os participantes que colaboraram conosco.
3.1.1 A Escola
A pesquisa desenvolveu-se a partir do trabalho educativo em espaços expositivos,
na parceria entre o Espaço Cultural Egydio Antônio Coser e a Escola de Ensino
Fundamental Zilda Andrade, pertencente ao Sistema Municipal de Ensino de Vitória.
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Zilda Andrade está localizada na Av.
Hermínio Blackman, 778, no Bairro da Penha, periferia do município de Vitória.
Antigo Grupo Escolar Hermínia Wanderley, no dia 1º de março de 1968, passou a se
chamar Ginásio Municipal Zilda Andrade. Nessa época, a escola funcionava com
cinco salas de aula em três turnos, sendo municipal só o turno noturno. Em 1973,
passou integralmente para o regime municipal, funcionando de 1ª a 8ª série, no
diurno, e o ensino médio e supletivo no noturno.
86
No período em que desenvolvemos a pesquisa, a escola atendia a oito turmas por
turno, com uma média de 35 alunos por sala. Pela manhã, acontecia o atendimento
aos alunos de 5ª a 8ª séries e à tarde aos de 1ª a 4ª série do ensino fundamental.
Seu novo diretor chama-se Daltônio Humberto Moreira e assumiu esse cargo em
2005. A escola não possui sala de Arte. Os encontros entre professor de Arte e
alunos aconteceram uma vez por semana, em duas horas/aula geminadas.
Os alunos envolvidos na pesquisa foram os da 8ª série, do turno matutino. Essa
turma era composta por 34 jovens, 18 do sexo feminino e 16 do sexo masculino,
tendo em média de 14 a 16 anos. A maioria deles residia no bairro onde se localiza
a escola.
A professora convidada possui formação em Letras, com habilitação em Português e
Inglês pela FAFIC, situada em Colatina. Também possui formação em Educação
Artística, com habilitação em Artes Plásticas, pela UFES. Fez duas pós-graduações:
em História da Pintura no Brasil, no século XX, e Infância e Educação Inclusiva,
ambas na UFES. Começou a lecionar como professora de Arte em 1995, no Lar São
Batista, escola particular que atende crianças em risco social. Trabalha na escola
Zilda Andrade como Arte-educadora há quatro anos.
Além dessa função, é artista plástica e coordenadora da Área de Arte da Prefeitura
de Vitória. Foi convidada a integrar a pesquisa por fazer parte da equipe de
professores de Arte que, junto com os alunos, tem marcado seu trabalho com
visitações a museus e galerias de Arte, inclusive com freqüência assídua no espaço
expositivo envolvido nesta pesquisa.
Convidamos a professora a participar da pesquisa em setembro de 2005. Ela
prontamente nos atendeu e iniciamos nossa proposta com os alunos, no dia 10 de
outubro de 2005. Como dissemos, planejamos os momentos de interação com os
alunos, que ocorreram uma vez por semana com a duração de 1h40min. Sete deles
aconteceram na escola e um no espaço expositivo.
Entregamos para a professora, na abertura da exposição, o “Caderno de Arte”
elaborado para a exposição escolhida chamada “Metal Madeira”. Em outra
87
oportunidade, pudemos conversar sobre os pontos principais abordados nesse
caderno, preocupando-nos em planejar e refletir sobre as propostas que iríamos
realizar e refletir sobre elas.
3.1.2 O Espaço Expositivo e a Exposição Escolhida
3.1.2.1 Sobre o Espaço Expositivo
Tendo em vista nosso trabalho como Arte-educadora do Espaço Cultural Egydio
Antônio Coser,35 propusemos que esse fosse o espaço expositivo participante de
nossa pesquisa. O Espaço Cultural, inaugurado em 1995, localiza-se no Edifício
Palácio do Café,36 na Avenida Nossa Senhora dos Navegantes, 675, no bairro37
Enseada do Suá, em Vitória, Espírito Santo.
Desde 2003, com a implementação do Projeto Educarte,38 a galeria vem
desenvolvendo um trabalho sistemático de produção de material educativo. Como
integrante da equipe responsável pelo setor educativo do Espaço Cultural,
produzimos materiais e elaboramos propostas educativas voltadas para alunos da
escola básica e o público em geral que visita as exposições. Estabelecemos parceria
com escolas, assim como oferecemos acompanhamento monitorado às exposições.
Em 2006, reformulamos o “Caderno de Arte”, dando-lhe uma nova diagramação, e
incluímos reproduções coloridas das obras expostas. Outra contribuição para o
visitante deu-se na elaboração de pranchas de papel que continham a reprodução
de uma obra da exposição e, no verso, uma proposta de leitura de imagem.
Criamos, também, para o visitante “avulso”, uma proposta de leitura em forma de
caderno, que propunha questionamentos sobre as obras expostas criando uma
possibilidade de percurso do olhar. Além disso, preocupamo-nos em adequar as
35 Egydio Antônio Coser foi um produtor e comerciante de café do Espírito Santo. 36 O prédio foi inaugurado em 9 de outubro de 1987. 37 Esse bairro é composto por residências e prédios comerciais destinados à classe média alta. 38 O Projeto Educarte foi coordenado por Fabíola Trucci e executado pela equipe de Arte-educadores: Priscila de Souza Chisté, Érica Sabino de Macedo, contando ainda com monitores auxiliares que, na ocasião da exposição em questão, eram Fagner Chaves e Fernanda Polati.
88
propostas educativas para os diferentes visitantes, por exemplo, as crianças e
adultos com necessidades especiais, os deficientes visuais e mentais, o grupo de
idosos, os adolescentes em risco social integrantes de projetos, entre outros grupos.
3.1.2.2 Sobre a Exposição
Dentro das exposições integrantes do calendário de 2005, escolhemos “Metal
Madeira”, que ocorreu entre os dias 22 de setembro e 4 de novembro de 2005. O
motivo da escolha se justifica pelo fato de a exposição ter ocorrido no mesmo
período da intervenção. Dois artistas participaram dessa mostra: Gian Shimada e
Gabriel Vieira. Ambos moram no Rio de Janeiro e foram selecionados39 para expor
suas gravuras nessa galeria de arte.
Gabriel Vieira40 é bacharel em Gravura pela Escola de Belas-Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participante ativo de mostras coletivas e salões
no Brasil e no exterior, o artista só começou a se interessar pela Arte na
adolescência. Algumas visitas em exposições de Arte realizadas pela escola
também podem ter contribuído para que Gabriel optasse pelo curso de Belas-Artes,
quando prestou vestibular, mas, segundo o artista, essa decisão foi tomada,
principalmente, devido ao “apoio familiar incondicional” que recebeu nesse momento
tão cheio de dúvidas. A opção pela gravura não foi decidida por Gabriel e sim pelo
acaso: um equívoco no preenchimento da inscrição do vestibular. Apesar disso, a
gravura fez com que o artista ampliasse sua área de atuação, buscando, além do
desenvolvimento de seu trabalho artístico, a difusão e a propagação do seu
conhecimento. Atualmente, Gabriel Vieira é professor de Gravura e responsável,
com de Gian Shimada, pela reestruturação e abertura da Oficina de Gravura Carlos
Oswald no Liceu de Arte e Ofícios do Rio de Janeiro.41
39 Todos os anos, em um determinado período, o Espaço Cultural recebe propostas de artistas que desejam expor seus trabalhos nessa galeria de arte. Para a seleção, são convidados professores da Arte da UFES que, após a análise das propostas, indicam os artistas que irão expor durante o ano. 40 Os artistas concederam uma entrevista por e-mail que foi transformada no texto relativo à exposição. A entrevista, na íntegra, está no Apêndice A. 41 O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, fundado em 1856, pretendia constituir, por meio do ensino, um mercado de trabalho com base na educação da estética. Escola noturna, gratuita e filantrópica, mantinha, como espinha dorsal de seu currículo, o ensino do desenho. Porém, diferente da Academia Imperial de Belas-Artes, o Liceu desprezou o desenho neoclássico adotando o eclético. O seu método de ensino de desenho dava
89
Gian Shimada, nascido em São Paulo, Capital, mora, desde pequeno, no Rio de
Janeiro. A possibilidade de permanecer em contínuo exercício de imaginação foi um
dos motivos de Gian ter optado pelas Artes Plásticas. Além disso, outros fatores
colocaram a Arte no caminho de Gian Shimada: da sua infância no Rio de Janeiro,
Gian lembra com prazer das aulas de Arte. Em uma delas, produziu, pela primeira
vez, uma xilogravura. Lembra-se também das visitas com a família ao Museu de Arte
Moderna (MAM); dos passatempos em casa desenhando, recortando e colando; das
leitura de gibis e também de assistir a desenhos animados, além do desejo de copiar
o que via e imaginava. Acrescido a isso, um aspecto subjetivo foi adicionado aos
demais: Gian valorizava as possibilidades ilimitadas oferecidas pela Arte. Em outras
palavras, o gosto pela liberdade criativa falou mais alto na hora de decidir sua
profissão. Atualmente o artista é professor substituto no curso de Gravura da Escola
de Belas-Artes da UFRJ e ministra um curso livre de gravura no SESC e no Liceu de
Arte e Ofícios.
Os dois artistas gravadores têm como local de formação a mesma instituição, a
Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2004, Gabriel
Vieira recebeu uma proposta para reabrir a Oficina de Gravura do Liceu de Arte e
Ofícios do Rio de Janeiro. O desafio, embora tentador e instigante, era um trabalho
de grande responsabilidade. Nessa busca por alguém que pudesse compartilhar dos
mesmos ideais, Gabriel pediu conselho aos seus mestres Marcos Varela e Kazuo
Iha. Estes indicaram o nome de Gian Shimada, então professor do Atelier de
Gravura do Sesc da Tijuca, que aceitou prontamente o pedido de apoio.
Encontraram inúmeras dificuldades nesse processo de reabertura que exigiu dos
artistas empenho e dedicação na coordenação das mudanças e reformas do atelier.
Essas adversidades são, na verdade, motivo de orgulho de Gabriel e Gian, pois
aproximam suas ações do mestre Carlos Oswald,42 nome escolhido para batizar o
atelier reaberto.
liberdade para que o aluno misturasse estilos e criasse novas formas a partir de sua imaginação. Não pretendia formar artistas, assim como a Academia de Belas-Artes, mas sim trabalhadores para a construção civil. Atualmente, o Liceu funciona na Praça XI, no centro do Rio de Janeiro e mantém o seu compromisso com a educação e formação profissional dos seus alunos. 42 Carlos Oswald foi o pioneiro no ensino da gravura artística no Brasil, nas oficinas do Liceu de Artes e Ofícios.
90
Com a exposição “Metal Madeira”, Gabriel Vieira e Gian Shimada mostram, pela
primeira vez, seus trabalhos no Espírito Santo. Os artistas apresentam gravuras
produzidas em metal, em madeira e litografia. Mas o que aproxima a produção dos
dois artistas ultrapassa o aspecto técnico e avança na direção do tema e de como
ele é representado.
As imagens possuem, como temática principal, figuras humanas e de animais
pertencentes a uma realidade fantástica. Eles parecem sair de histórias macabras e
noturnas. As formas são apresentadas de maneira sintetizada. A importância recai
no efeito expressivo e singular das figuras representadas e na sua composição no
espaço.
Figura 1- VIEIRA, Gabriel. Cão, 2004. Xilogravura de topo, 6,7x6,5cm
91
Figura 2 - VIEIRA, Gabriel. Auto-consumo, 2005. Xilogravura de topo, 8,0x7,5cm
As gravuras de Gabriel Vieira (Figura 1 e Figura 2) se destacam e atraem o olhar
pelo dinamismo de suas linhas. Por meio desse valioso recurso, o artista cria o
espaço, as formas, as texturas, a luz e, principalmente, o movimento em suas
imagens. Suas figuras geralmente são únicas, ocupando sozinhas o espaço
imagético. O aspecto cromático coloca em foco o contraste entre o preto e o branco.
A ausência de cores em suas obras direciona o olhar do observador para a forma:
sua rica textura, seu intenso movimento e para a expressividade gestual e corporal
das figuras.
Ao contrário, Gian Shimada utiliza, em suas gravuras, o recurso da cor, mas trabalha
na busca da expressão, contribuindo para enriquecer um aspecto dominante em
suas imagens: as oposições. As figuras de Shimada apresentam-se quase sempre
acompanhadas e estabelecem relações com outros elementos: a transparência das
cores, os esquemas geométricos ou outras figuras que geralmente apresentam uma
oposição em relação à outra.
Observando suas gravuras (Figura 3 e Figura 4), podemos destacar vários pares
antagônicos: figura humana (carne) x caveira (osso); transparência x opacidade;
92
aberto x fechado; vazado x não vazado; fundo claro x fundo escuro; pequeno x
grande; esquerdo x direito; confronto x oposição.
Figura 3 - SHIMADA, Gian. Caçadores de cabeças I, 2004. Gravura em metal, xilogravura, 50x60cm
Todas essas oposições formais talvez sugiram um antagonismo simbólico ou, de
acordo com as palavras do próprio artista, um complemento indissociável: a vida e a
morte.
Figura 4 - SHIMADA, Gian. 7 Casas do Sol, Xilogravura e relevo, 60x90cm
93
3.1.3 A Intervenção: Projeto em Parceria
3.1.3.1 A Elaboração do Material Educativo
Em setembro de 2005, a equipe do setor de Arte-Educação do espaço expositivo em
questão do qual fazemos parte iniciou a elaboração da proposta educativa para a
exposição “Metal Madeira”. Essa proposta foi composta principalmente pela
elaboração do “Caderno de Arte”43 – destinado ao professor, assim como pela
idealização do percurso de visita realizado pelos monitores do Espaço Cultural
juntamente com os visitantes – professores e alunos. Dessa forma, acreditamos
estar colaborando para que os visitantes participem de experiências catárticas
mediadas pelo monitor/professor.
Iniciamos a elaboração do “Caderno de Arte” com uma entrevista44 com os artistas,
fizemos perguntas relativas ao encontro deles com a Arte, suas propostas artísticas,
suas referências artísticas, o diálogo entre os trabalhos por eles produzidos, o papel
da Arte na sociedade, entre outras questões.
Após essa conversa, ampliamos a pesquisa. Estudamos os artistas que os
influenciaram, as técnicas por eles utilizadas, para, a seguir, elaborarmos um texto
sobre eles, sobre a exposição. Pensamos também em propostas de trabalhos para
serem realizados pelo professor antes e depois da visita à exposição. Todo esse
estudo compõe o que chamamos “Caderno de Arte”.
3.1.3.2 A Construção da Parceria do Espaço Expositivo com a Escola
A construção da proposta de ensino deu-se ao longo do percurso da intervenção, de
setembro a dezembro de 2005, na interação com os sujeitos do processo, sobretudo
no trabalho colaborativo com a professora da escola. Inicialmente foi estabelecido
43 Como trabalhamos no setor educativo do referido espaço cultural, a cada exposição elaboramos um “Caderno de Arte” destinado ao professor. Até a data deste estudo, elaboramos quatorze “Cadernos de Arte”. O texto sem imagens do Caderno de Arte da exposição “Metal Madeira” está no Apêndice B. 44 A entrevista com Gian Shimada e Gabriel Vieira está no Apêndice A.
94
contato com a Arte-educadora. Como já foi apresentado, trata-se de um profissional
que tem pautado seu trabalho no Ensino de Arte pela regularidade na visita a
espaços expositivos.
Nosso primeiro contato teve como objetivo convidá-la a participar da pesquisa. Feito
isso, escolhemos a turma que faria parte do processo. Tivemos, como critérios de
escolha, o dia do atendimento às turmas, na segunda-feira, tendo em vista que esse
era o dia determinado por nós para a intervenção, além do horário, que deveria ser
norteado pela aula de Educação Física. Preferimos um horário em que a quadra de
esportes estivesse sendo parcialmente utilizada, pois o barulho atrapalhava muito.
Além disso, a professora optou por essa turma pelas reflexões que os alunos
estavam tendo a partir dos originais de Arte. No mês anterior ao início da pesquisa,
eles desenvolveram um projeto entre Arte e Língua Portuguesa que envolveu, entre
outras atividades, a visita à exposição do artista Attílio Colnago no Espaço Cultural
Egydio Antônio Coser.
Dando continuidade ao processo, fomos apresentada aos alunos como uma
pesquisadora da UFES que estaria junto com o grupo, por um período, para
desenvolver atividades artísticas com a professora. Durante a ocasião, a educadora
achou melhor não explicitarmos o projeto. Por conhecer bem o perfil da turma, ela
sugeriu que não apresentássemos a proposta detalhadamente, mas que, na medida
em que acontecessem as aulas, fortalecêssemos nossas relações conversando com
os alunos. Como o projeto se deu em parceria, acolhemos a sugestão explicitando
as dúvidas dos alunos quanto à nossa participação nas aulas durante o processo.
95
CAPÍTULO IV
O PROCESSO CATÁRTICO NO ENSINO DA ARTE: UMA
PARCERIA ENTRE ESCOLA E ESPAÇO EXPOSITIVO
Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós, continuam a agir dentro de nós – frequentemente sem que as percebamos – e de repente vêm à superfície e começam a nos falar, tal como falaram a Ulisses no Hades as sombras que ele alimentava com o seu sangue.
Ernst Fischer
4.1 OS MOMENTOS DA INTERVENÇÃO
Escolhemos expor as reflexões relativas à intervenção, dividindo-as em cinco
momentos que ocorreram sucessivamente. Iniciamos com a elaboração do percurso
da monitoria, a seguir sensibilizamos os jovens para questões relativas à gravura.
Dando continuidade a esse momento, visitamos o espaço expositivo, aprofundando,
em sala de aula, as discussões iniciadas na galeria de arte, finalizando-as com uma
avaliação do processo vivenciado pelos sujeitos da pesquisa.
Numeramos as falas dos sujeitos chamando-as de turnos.45 Portanto, na
apresentação dos turnos de fala, a professora será referida como P, a investigadora
45 Segundo Chraudeau e Mainguenau (2004), turno de fala é a contribuição de um locutor dada em um certo momento da conversação. Portanto, em nosso estudo, consideraremos que cada "tomada de palavra", por um determinado sujeito falante, corresponde a um turno de fala. Optamos por utilizar esse termo por encontrá-lo reincidentemente em pesquisas norteadas pela perspectiva histórico-cultural.
96
como I, a monitora como M, os grupos como G1, G2 e G3 e, para preservar a
identidade dos alunos, os nomes apresentados serão fictícios.
Optamos por analisar, em alguns momentos, as interações relativas ao Grupo 1.
Essa escolha deve-se ao fato de esse grupo ter tido o maior número de
componentes e também por ter ficado com o gravador de áudio durante as
atividades no espaço expositivo, ampliando, por conseguinte, a coleta de dados. No
momento da avaliação do projeto, propusemos que os jovens respondessem, em
dupla, a questões por escrito, portanto nomearemos cada dupla por D1, D2 e assim
sucessivamente.
4.1.1 Pensando a Formação dos Monitores
Para pensar coletivamente a formação46 dos dois estagiários (Fotografia 1), tivemos
como parceiros teóricos Leite (2001), Leite e Ostetto (2005), assim como Kramer e
Leite (1998). Portanto, dividimos o momento em duas partes: monitoria/desenho
infantil47 e percurso da visita.
Iniciamos a primeira parte da formação com a análise de um poema de Arnaldo
Antunes.48 Com isso quisemos mostrar que o exercício do ver está ligado a uma
continuidade, uma construção e desconstrução por toda a vida que, como colocam
Leite e Ostetto (2005, p. 107), “[...] arte de experiências estéticas que somadas,
trazem novas camadas de significações e sentidos, associando e modificando
informações. Ver é trazer junto de si todo repertório pessoal existente e também
estar disposto a receber novos sentidos de olhar”. O objetivo era que eles
percebessem sua importância no acompanhamento das visitas, como um mediador
que não possuía respostas definitivas, alguém cujo olhar dialogava com o do
visitante. Além disso, precisavam motivar o olhar das pessoas que visitavam a
mostra, pois eles seriam responsáveis por estabelecer uma relação reflexiva e
prazerosa do público com as imagens.
46 Esse momento ocorreu no dia 20-09-05 com, a duração de duas horas. 47 Preparamos, para esse momento, um pequeno material que está no Apêndice C. 48 O poema era composto por um verso e dizia “O seu olhar melhora o meu” (ANTUNES, 2002, p.15).
97
Outro ponto importante foi mostrar aos monitores a necessidade de manter o
professor próximo ao grupo durante o trabalho de monitoria, tornando o diálogo
entre educador, alunos, imagens e monitor o mais dinâmico possível, “[...] sugerindo
olhares questionadores diante das imagens e favorecendo mais perguntas,
indagações e hipóteses do que respostas diretivas sobre o significado das imagens
das obras” (LEITE; OSTETTO, 2005, p.108).
Durante essa formação, falamos também sobre o desenho infantil. Foi importante
tratar disso, pois, em quase todas as exposições, os visitantes desenham, sendo
eles, em sua maioria, crianças. A idéia foi mostrar o desenho não como uma
atividade rotineira, sem sentido ou, então, a demonstração de uma aptidão pessoal
para as Artes Plásticas. Assim como Kramer e Leite (1998), acreditamos que o
desenho é um diálogo permanente entre as crianças e o mundo, uma constante
busca de inteligibilidade e comunicabilidade (1998). Quando a criança desenha e se
expressa, ela traz consigo os diversos auditórios sociais aos quais pertence; traz a
história de sua família, de sua comunidade, da humanidade. “Os fatos e a
experiência são sua matéria-prima bruta de criação – são fragmentos que dão estofo
ao entendimento, a sua compreensão de vida” (KRAMER; LEITE, 1998, p.143).
Mostramos aos monitores o desenho como processo de criação e recriação, fruto de
um desenvolvimento biológico, mas também ligado a uma rede de relações
socioculturais que vai sendo tecida ao longo da vida de cada sujeito.
Feito isso, iniciamos a construção de uma proposta de percurso49 de monitoria. A
idéia foi elaborar esse percurso junto com os monitores. Para tanto, discutimos50 o
texto sobre a exposição “Metal Madeira”, integrante do “Caderno de Arte”, para, a
seguir, dividirmos o percurso da monitoria nos seguintes momentos: a apresentação
do espaço expositivo e da exposição, a observação das obras, as atividades
sistematizadas para a compreensão das gravuras, a proposta de produção
artística dos visitantes e, finalizando, a discussão sobre a experiência vivenciada.
49 A sugestão do percurso da visita elaborado pela equipe de Arte-Educação está no Apêndice C. Colocamos nesse apêndice a última versão do percurso da visita, após todas as discussões e reelaborações. 50 É preciso ressaltar também que o fato de trabalharmos nesse espaço cultural foi um grande elemento facilitador do processo, pois já tínhamos proposto momentos de formação para esses monitores. Sendo assim, possuíamos pontos a nosso favor: o contato freqüente com a equipe, além de sermos integrante desse grupo.
98
É importante lembrar que esse momento de formação dos monitores não ocorreu
somente para atender aos alunos da Escola Zilda Andrade, integrantes da pesquisa
de mestrado em questão. Ele ocorreu porque faz parte da nossa atribuição
profissional nesse espaço expositivo. Antes mesmo de visitarmos a exposição “Metal
Madeira” com os sujeitos desta pesquisa, outros alunos, com os seus professores, já
tinham participado da proposta da exposição. Isso revela que a pesquisa estava
inserida em um movimento, em uma dinâmica que impulsionava tanto a escola
quanto o espaço expositivo.
Fotografia 1 - Formação dos monitores
4.1.2 Ouvindo Imagens: a Sensibilização do Olhar
Esse momento ocorreu na sala de aula.51 Participaram dele a pesquisadora, a
professora de Arte e os alunos da 8ª série. Nosso objetivo principal foi propor uma
atividade que estimulasse a percepção dos jovens, mas que também se
relacionasse com a gravura e a linguagem utilizada pelos artistas criadores das
obras que seriam conhecidas no espaço expositivo. A preocupação em sensibilizar o
olhar antes do contato com a obra de arte tem sido uma das questões que nos
51 Os momentos da intervenção que aconteceram antes da visita ao espaço expositivo foram divididos em duas etapas que aconteceram nos dias 10 e 17-10-2005 com a duração de 01h40min cada um.
99
acompanham em todos os projetos que participamos. No caso dessa atividade,
especificamente, consideramos que foi um meio de motivarmos os olhares para as
questões relativas à gravura, tendo em vista que essas seriam as aulas prévias à
visita ao espaço expositivo. Para tanto, utilizamos a proposta sugerida pelo
“Caderno de Arte” da exposição “Metal Madeira”: um ditado da obra de arte, que
chamamos de “Ouvindo Imagens”. A idéia foi descrever a imagem oralmente, de
forma detalhada, mencionando o título, forma das figuras encontradas, tipo e
variação de linha e cor, composição, textura, fundo, sem que os jovens a vissem.
Para essa atividade, selecionamos uma xilogravura do artista plástico Raphael Samú
(Figura 5), que tem sua trajetória artística marcada por uma grande produção de
gravuras e mosaicos.
Figura 5 - SAMÚ, Raphael. Sem Título, 1970. Xilografia de topo, Ø 36,5cm
Ao iniciar a aula, sem muitos detalhes, a professora nos apresentou como uma
pesquisadora da UFES que estaria desenvolvendo um projeto sobre exposições de
Arte. A seguir, falou sobre a técnica utilizada para a elaboração da obra de Raphael
Samú, ressaltando que ela não foi feita nem com pincel, nem com ponta de metal,
100
como os alunos haviam visto na exposição do artista Attílio Colnago.52 A linguagem
era gravura, cuja matriz de trabalho era, no caso dessa obra, a madeira. Explicou
que, ao registrar a imagem, o artista utilizou um instrumento chamado goiva, que
retira da matriz o que não faz parte do desenho projetado e depois, para carimbar,
passa tinta na superfície da matriz.
Após essa explicação, iniciou o ditado pela parte formal da gravura: “É redondo e o
espaço da gravura está dividido em dois, de um lado animais, do outro, pessoas.
Parece um selo, o sol está em cima”. Nesse momento, a professora utilizou gestos
para representar a construção do espaço composicional da obra. Falou sobre as
cores da obra: “A gravura é feita com tons entre o preto e o branco, e tem muitos
riscos finos e longos. Cada um de vocês vai fazer do jeito que imaginar, não tem
certo e nem errado”.
Apesar de os alunos estarem concentrados na explicação da professora, o barulho
que vinha da quadra de esportes, onde acontecia aula de Educação Física
incomodava um pouco. Acreditamos que eles já estavam habituados com isso, mas,
realmente, era uma situação desagradável. Pensamos em como seria ficar ali com
aquele barulho por quadro horas seguidas, tentando entender as diversas propostas
de estudo que se sobrepõem em todas as disciplinas curriculares. Seria necessária
uma quadra de esportes que fosse um pouco mais afastada, uma quadra que não
estivesse “dentro” da aula. Fizemos esse comentário com a professora, que nos
disse que esse problema estava sendo resolvido com a compra de um terreno
próximo à escola para a construção de outra quadra de esportes.
Depois disso, distribuímos folhas de papel sulfite branco e os alunos começaram
seus exercícios. Alguns se levantavam, outros conversavam com o colega do lado
ou pegavam o lápis de cor trazido pela professora. Percebemos a necessidade de
interação, de perguntar como será o desenho do outro, de pedir sugestão... Então,
começamos uma seção de fotos. Buscamos registrar como iniciaram e realizaram
seus processos de produção.
52 Os alunos e a professora tinham visitado no mês anterior a exposição “Confidências para uma terceira pessoa”, do artista Attílio Colnago, que utilizou como técnica para elaboração das obras a ponta de metal.
101
Fotografia 2 - Atividade em sala de aula
A Fotografia 2 foi uma panorâmica. Registrou o momento em que eles iniciaram a
atividade. Eles tinham acabado de receber as folhas e começavam a se organizar
para o trabalho. Alguns se reuniram em grupos, outros preferiram manter-se em
seus lugares.
Para iniciar, a maioria dos alunos utilizou como gabarito o recipiente redondo usado
para guardar os lápis de cor.
Fotografia 3 - Atividade utilizando modelo retirado do livro de Língua Portuguesa
102
Como a professora falou, a gravura de Samú possuía animais e pessoas. Para
desenhá-los, muitos alunos começaram a procurar modelos nos livros de Língua
Portuguesa. A Fotografia 3 mostra isso. Buscar modelos e referências oferece ao
aluno uma segurança. Partir do que já está pronto para criar o seu trabalho facilita o
processo criativo. Eles tinham visto isso quando participaram da visita à exposição
de Attilio Colnago. Esse era o processo de criação que ele utiliza. Parte sempre de
obras consagradas para criar as suas. Utiliza essas imagens como referências que
sempre estão presentes em seus trabalhos. Como negar ou interferir na busca por
modelos, se os alunos, há algumas semanas, tiveram contato com essa
possibilidade de criação?
Fotografia 4 - Atividade utilizando modelo
Percebemos também que alguns jovens já traziam em suas pastas desenhos
prontos, alguns feitos de observação, outros de memória. O desenho feito em folha
de caderno, na Fotografia 4, foi realizado pelo aluno que, segundo seus colegas,
desenha bem. Esse desenho foi emprestado para um outro colega que acredita ter
dificuldades para desenhar. A apropriação foi feita, e o desenho do cavalo foi
copiado, colocando-o embaixo da folha em branco e passando lápis por cima.
Observamos que uma folha de rascunho passeava pela sala. Nela estava o esboço
do que seria a gravura ditada. Esse desenho foi feito por um aluno que, por achar
103
que estava certo, criou um modelo e passou para os colegas que ainda estavam em
dúvida. O curioso é que na folha estavam dois desenhos, um riscado com um x para
caracterizar que estava errado, apontando o outro como certo. Como poderiam
saber qual desenho se aproximava mais da descrição feita, se nem conheciam a
imagem? Pelo discurso convincente do colega, os alunos passaram a atribuir
confiança em um esboço que acreditavam assemelhar-se ao descrito.
Alguns alunos (Fotografia 5) não aderiram ao esboço e preferiram ir além da
descrição feita pela professora, criando duas formas circulares que se encostavam,
complementando-se.
Fotografia 5 - Atividade que não aderiu ao esboço
Outra aluna (Fotografia 6) compreendeu o princípio da xilogravura e buscou
representar as áreas escavadas na madeira, deixando-as em branco e preenchendo
as áreas elevadas da matriz de preto. Esse desenho deixa claro que existiu a
compreensão do que a professora havia explicado. O desenho, então, funcionou
como uma síntese do aprendizado.
104
Fotografia 6 - Atividade representando princípio da xilogravura
Alguns jovens (Fotografia 7) preferiam ficar em pé, desenhando na carteira do
colega para poder interagir mais intensamente com ele.
Fotografia 7 - Alunos desenhando na mesma mesa
Enquanto os alunos desenhavam, a professora registrava no diário de classe os
conteúdos abordados na aula. Em alguns momentos, a professora percorreu a sala
para acompanhar o trabalho dos alunos. Aconteceram situações também em que os
105
jovens mostraram o desenho para a professora para lhe pedir sugestões sobre o
exercício.
Essa atividade durou aproximadamente uma hora. Quando todos terminaram seus
desenhos, a educadora mostrou a gravura propondo a leitura da imagem da
xilogravura de Raphael Samú a partir dos seguintes questionamentos: o que é
freqüente na imagem? Qual é a impressão que a imagem dá? O que está bem
nítido? O que tem muito? O que está delimitando, formando as imagens? Quantas
direções de linhas vocês estão vendo? Quem foi o artista? Homem ou mulher?
Demorou muito fazendo a gravura? Quem imaginou a gravura de Samú de forma
diferente?
Transcreveremos, a seguir, alguns diálogos53 integrantes do momento da leitura de
imagem.
(1) P: O que é freqüente na imagem?
(2) Carlos: O preto, branco, as cores.
(3) P: Qual é a impressão que a imagem dá?
(4) Alexandre: Parece um círculo, um furacão levando as pessoas. É o Katrina. A impressão
de um sol, fim do mundo, terremoto!
(5) Alice: Parece que eles estão na igreja, corrida de cavalo.
(6) P: O que está bem nítido?
(7) Emanuel: A cor escura do fundo.
(8) P: O que tem muito?
(9) Jaqueline: Pessoas, preto, círculo, sombra.
(10) P: O que está delimitando, formando as imagens?
(11) Sandro: As linhas.
(12) P: Quantas direções de linhas vocês estão vendo?
(13) Contribuição de vários alunos: Em várias direções, reta, transversal, curva...
(14) P: Quem foi o artista? Homem ou mulher?
(15) Contribuição de vários alunos: Homem, mulher. (resposta dividida)
(16) P: Quem fez esse trabalho foi Raphael Samú. Ele é paulista, mas mora em Vila Velha.
Ele faz serigrafia, gravura, mas também muito mosaico. Foi ele que fez aquele painel grande
da entrada da Ufes. Vocês lembram?
(17) Augusto: Demorou muito?
53 As falas dos entrevistados foram destacadas em itálico tendo em vista a melhor organização do texto.
106
(18) P: Não muito, porque teve uma equipe com ele. Nós vamos ter a oportunidade de ver
dois artistas que fazem gravura. Vamos ver outros tipos de trabalho. Quem imaginou a
gravura de Samú de forma diferente?
(19) Carlos: Eu! Eu desenhei o cavalo de corpo inteiro (disse o aluno que utilizou o modelo já
pronto para fazer o cavalo).
Bate o sinal, fim da aula.
(20) P: Na próxima aula, vamos continuar o trabalho com a gravura, ok?
A proposta de leitura da imagem transcrita nos turnos 1 a 20 está dividida em fases.
Na seqüência, a professora ressaltou as similaridades e diferenças relativas à forma,
propondo que os alunos percebessem as cores, as linhas e as figuras. Relacionado
com isso, introduziu uma breve explicação sobre o artista, apresentando a gravura,
para, a seguir, saber dos alunos quais foram suas interpretações do ditado.
Nesse diálogo, os alunos recorreram aos fatos relacionados com seu cotidiano para
subsidiar suas leituras. Isso fica explícito quando disseram que a imagem mostrada
pela professora parece o Katrina, o furacão que, dias antes, tinha devastado regiões
dos EUA. Esse fato também pode ser reafirmado quando citaram que as figuras da
gravura parecem estar na igreja, pois muitos alunos são evangélicos. Sobre esse
assunto, Lukács (1966) coloca que o indivíduo, diante de uma obra de arte, nesse
caso uma reprodução, não pode ser considerado uma folha em branco, ele traz
sempre sua vida, suas experiências, ou seja, ele está sempre carregado de
impressões e de vivências que colaboram com a sua forma singular de entender as
imagens artísticas.
Continuando a proposta, na semana seguinte, sugerimos que os alunos fizessem
uma interferência na fotocópia em preto e branco da obra do Raphael Samú utilizada
para o ditado da obra de arte no momento anterior. Após a elaboração da
interferência, foi pedido que os alunos escolhessem um detalhe da obra (Fotografia
8) para ser ampliado em outra folha de papel sulfite.
107
Fotografia 8 - Desenho de detalhe
Observamos que a maioria dos alunos não interferiu na imagem, apenas criou uma
moldura para ela (Fotografia 9). Segundo a professora, os alunos já tinham realizado
trabalhos de interferência em outras ocasiões, o que a levou a tecer o seguinte
comentário sobre as produções dos alunos: “Acho que a imagem é muito fechada, a
forma dela é muito centrada, tensa, então a complementação para eles ficou mais
fácil de ser feita, apesar de uns terem interferido”.
Isso mostra que a proposta de interferir, transformar a imagem de Raphael Samú, foi
ressignificada pelos alunos, devido, principalmente, à forma da imagem escolhida.
Como existia pouca possibilidade de interferência, criaram, então, a condição de
complementar os espaços em branco com desenhos que se relacionavam com as
figuras contidas na imagem. Essa atividade possibilitou que os alunos reordenassem
a solicitação da professora, dando-lhes condições para organizar a atividade de
outras maneiras, complementando a imagem, não mais interferindo. Isso mostrou
que o processo criativo caracteriza-se como uma atividade fundamentalmente social,
elaborada a partir de elementos tomados da realidade e da experiência anterior do
indivíduo.
108
Fotografia 9 - Interferência em fotocópia
Além disso, percebemos que um aluno recorreu ao outro para a elaboração de seu
desenho, ficando evidenciada a necessidade da interação no processo de
aprendizagem. A ajuda, nesse caso, é fazer para o outro, o que é visto como forma
de ensinar a superar a falta de habilidade para realizar tal tarefa. Acreditamos que a
execução pelo outro deve ser encarada não como algo sempre necessário, mas
como um suporte que se tornará desnecessário com os progressos do sujeito em
suas produções. Ajudar o outro incide na zona de desenvolvimento proximal, ou
seja, incide em considerar que o ensino precede o desenvolvimento, cujas funções
psicológicas básicas para o aprendizado se desenvolvem numa interação contínua
com as contribuições e solicitações do aprendizado, realizados tanto pelo professor
quanto pelos outros alunos.
Enquanto os jovens realizavam a interferência (Fotografia 10), olhavam, criticavam e
avaliavam as produções dos outros colegas. Assim, o outro contribuiu para a
ampliação do conhecimento, para a sofisticação das produções, fazendo com que os
trabalhos sofressem modificações em função das produções e idéias que vinham
dos colegas e também da professora. Fica evidente, então, que o indivíduo se
constitui como tal por meio de interações sociais. Sendo assim, é visto como alguém
109
que transforma e é transformado nas relações produzidas em determinado contexto
histórico-cultural.
Fotografia 10 – Aluno contribuindo com o desenho do outro
Para mostrar o processo das atividades, a professora sugeriu que os alunos
observassem seus trabalhos em seqüência (Fotografia 11). Nesse momento, eles
foram estimulados a falar rapidamente sobre suas produções. Em seguida,
recolhemos as autorizações dos responsáveis pelos alunos para a visita ao espaço
expositivo e nos encaminhamos para o ônibus54 que esperava em frente à escola.
54 O ônibus foi cedido pela Prefeitura a partir do projeto “Escola fora da escola”, que disponibiliza, para cada escola da rede, em determinado período pré-agendado, um ônibus, desde que a saída faça parte de um projeto justificado e com objetivos definidos.
110
Fotografia 11 – Seqüência de produções dos alunos
Cabe colocar que a proposta de estimulação para a visita à galeria de arte
proporcionou também uma reflexão da professora que sobre esse momento
comentou:
(21) O que eu destaco do trabalho que a gente está fazendo, por exemplo, quando a gente
começou, colocando eles para imaginar aquele trabalho do Samú, eu falei como era, que era
circular, que tinha linhas, que tinha um cavalo, pessoas, então o que eu reparei que a maioria
conseguiu entender sem ter visto o trabalho, conseguiu idealizar um que tinha ligação com a
forma da imagem que o Samú produziu. Então eu vejo que a capacidade deles de percepção,
de imaginação está sacudida. Depois, quando eles viram a imagem do Samú, era familiar. A
maioria, quando viu o trabalho já tinha chegado nele sem ver. Eles estão com olhar educado
para isso, a sensibilidade deles está aguçada. Toda a criança desta idade pode, basta ter a
oportunidade, basta ser trabalhado.
Esse comentário da professora nos mostra a necessidade da realização de
propostas que coloquem os alunos em uma situação que estimule a imaginação, a
111
criação. Corroborando esse pensamento, Vigotski (1987) aponta o fato de que toda
forma de criação se elabora a partir de elementos tomados da realidade e da
experiência anterior do indivíduo. Então, é necessário possibilitar momentos que
enriqueçam a experiência do indivíduo, para que assim ampliemos o material
disponível para sua a imaginação. Ao mesmo tempo, podemos supor que são essas
experiências que estarão presentes nos momentos em que os alunos farão suas
leituras das diversas produções humanas. Nesse sentido, estimular, sistematizar
atividades que incitem a imaginação, a leitura e a produção artística dos alunos
colaborará com a ampliação das experiências desses indivíduos, experiências
fundamentais tanto para as atividades imaginativas, quanto para a sofisticação de
suas leituras de imagens.
Estimulados por essas atividades, encaminhamo-nos para o espaço expositivo
carregados de experiências individuais e coletivas que contribuiriam para a formação
e transformação de nossa consciência estética, social, histórica e sensível.
4.1.3 As Obras de Arte como Objetos da Vivência Estética: o
Processo Catártico
Fotografia 12 - Vista interna da Exposição “Metal Madeira”
112
Nem todos os alunos da turma vieram para escola nesse dia, mesmo sabendo que
iríamos a uma galeria de arte (Fotografia 12). Isso ocorreu porque, devido à
comemoração da “Semana da Criança”, outras turmas da escola foram “passear” em
parques aquáticos, então, eles queriam ir para outro lugar, com mais diversão, “sem
aula”. E aí fizeram uma espécie de boicote à saída.
Fotografia 13 - Chegada dos alunos ao espaço expositivo
A visita55 se iniciou com a apresentação da monitora que, por conseguinte,
apresentou a exposição e o espaço cultural (Fotografia 13). Os alunos observaram
as obras por 15 minutos e depois se sentaram para conversar com a monitora
Fernanda. Conforme dissemos no início deste capítulo, analisaremos, a seguir, o
percurso da monitoria, enfocando as interações que se estabeleceram entre alunos
do Grupo 1, professor, monitor, investigador e obras de arte no decorrer da visita ao
espaço expositivo.
55 A visita ao espaço expositivo teve duas horas de duração e ocorreu no dia 17-10-2005. O tempo de deslocamento da escola até a galeria foi de 30 minutos para a ida e 30 minutos para a volta.
113
4.1.3.1 O episódio
(22) M: Vocês sabem como surgiu a gravura? (Sem resposta)
A gravura começou com a invenção da imprensa quando foram popularizados os livros,
quando todo mundo começou a ler,56 na Idade Média. Para substituir o desenho à mão, eles
inventaram a gravura, que possibilitava um número maior de cópias. Não é sempre que o que
tem no livro é uma gravura de verdade, às vezes é uma outra coisa e a gente denomina
gravura. A gente tá acostumado a chamar assim, vem de uma tradição. A técnica da gravura
artística é um pouco diferente. Alguém sabe como é que faz? (Sem resposta)
Nós temos os materiais, depois a gente vai olhar. São quatro tipos de gravura: Xilogravura
que é gravura em madeira; gravura em metal; serigrafia, que é no tecido e a litografia, que é
na pedra.
A que a gente tá apresentando é a metal, do Gian e a Xilo com Gabriel. O processo das duas
é um pouco invertido. Na madeira, ele pega um pedaço de madeira, faz os sulcos com os
instrumentos. Vocês querem levantar para dar uma olhada? Vem, gente! (Os alunos se
levantam e a acompanham)
Aqui tem a madeira (aponta). O Gabriel normalmente usa uma madeira muito pequena,
porque é madeira de topo, cortada transversal ao tronco. Ela tem uma dureza maior, um
desenho mais definido. Eles riscam a madeira com lápis dermatográfico ou com outra coisa.
Usam goivas, o buril e a ponta seca para cavar, sulcando a madeira. Depois ele vem com
esse rolinho e com a tinta e passa. Pega o papel e imprime. Aqui estão algumas provas que
eles fazem. O que está em cima, em alto relevo, é o que vai sair no papel. O metal é
diferente, a tinta entra nos sulcos, com a goiva e com o buril, mas só que é diferente, a tinta
entra nos sulcos que ele faz, daí ele passa um tecido para limpar isso e, quando ele passa
para o papel a tinta que estava no fundo, no buraquinho, é que vai sair no papel. Aí o
processo é inverso.
(23) Fran: Ele usa sempre lixa?
(24) M: É para dar uma nivelada na madeira. Essas aqui são as provas, para ver se ficou do
jeito que eles gostam. Essas são as matrizes das obras que estão aqui.
(25) Tati: São peixes, não é um peixe? (Falando com os outros alunos)
(26) M: E esse aqui, tá aonde?
(Os alunos apontam para a parede).
(27) M: Esses são em metal. São do Gabriel, apesar dele fazer xilo também.
(Os alunos começam a relacionar as matrizes com as gravuras expostas).
56 Sabemos que, durante a Idade Média, poucos sabiam ler. Somente algumas pessoas, como religiosos e alguns nobres detinham esse conhecimento. Portanto, essa informação de que “[...] todo mundo começou a ler na Idade Média” está equivocada, e foi oferecida aos alunos de maneira incorreta.
114
Fotografia 14 - Alunos observando instrumentos para realização de gravuras
Percebemos no turno 22 que, mesmo estimulados a refletir sobre as questões,
nenhum aluno se prontificou a responder às perguntas elaboradas pela monitora.
Antes da visita, tínhamos proposto, em sala de aula, atividades que se relacionavam
com a gravura. Acreditamos que eles poderiam ter respondido. Mas, por que isso
não ocorreu? Talvez por timidez? Por não saber? Supomos que os jovens não
estavam se sentindo envolvidos pela atividade, eles mesmos tinham dito que
queriam estar em outro lugar, “passeando e não estudando”. Por isso, acreditamos
que ocorreu essa resistência inicial.
Nessa seqüência de falas, observamos que o momento que desencadeia o processo
interativo ocorre quando a monitora, de modo envolvente, chama os adolescentes
para verem os instrumentos utilizados na gravura (Fotografia 14). Esse é o marco
que dá inicio à participação dos alunos na visita. Até então, estavam pouco
envolvidos, não respondiam às questões propostas pela monitora.
Isso fica mais evidente quando Fran pergunta, no turno 23: “Ele usa sempre lixa?”
Percebemos que, dentre todos aqueles objetos novos utilizados para fazer a
gravura, um era familiar, fazia parte do cotidiano dessa jovem, por isso a aluna
transformou a identificação em uma pergunta. Essa pergunta chama a atenção de
115
outros jovens que começam a reconhecer os elementos expostos no display,
relacionando as matrizes das gravuras com as obras nas paredes. A monitora
percebe a intenção dos alunos e propõe um jogo de relações entre as matrizes e as
obras. Podemos supor que, se não houvesse a preocupação da monitora em
estabelecer uma relação mais próxima com os alunos, utilizando as percepções
deles para propor esse jogo, eles, possivelmente, não se envolveriam com as
atividades sugeridas. Tendo isso em vista, é interessante ressaltar a importância de
o monitor assumir o papel de mediador e não de transmissor de informações. É
preciso que ele crie uma relação de co-autoria entre os sujeitos, em que seus
saberes e os dos visitantes estejam interligados e valorizados, criando espaço para
que o aprendizado aconteça dentro do processo de interação. Dessa maneira, a
relação entre monitor-aluno é estreitada, dando condições para que ambos se
desenvolvam nesse processo.
Após aproximadamente quinze minutos com a atividade de relacionar as matrizes às
gravuras expostas, a monitora retoma:
(28) M: Alguma pergunta? (Silêncio) Tão sabendo tudo? (Risos) Então agora a gente vai fazer
um exercício, com perguntas. Vocês se dividam em quatro grupos...
(29) André: Ah, pára! (Expressando-se contra a atividade)
(A monitora continua sem dar importância)
(30) M: Escolham uma pessoa para escrever, daí os outros vão observando e ele vai
escrevendo.
(Os alunos se sentam em grupo e a professora ajuda a organizar os alunos).
(31) P: Pode ser três grupos?
(32) M: Pode.
Ao analisarmos esses turnos, percebemos que, quando a monitora, no turno 28, diz:
“Tão sabendo tudo!”, ela ironiza o silêncio dos alunos. A ausência de respostas para
suas perguntas a fez questionar se o que ela estava dizendo aos alunos estava
sendo realmente aprendido, embora utilizasse para isso a ironia. Cabe-nos
questionar, apesar de não podermos ter acesso a uma resposta: por que os alunos
não respondiam as questões? Por que André, no turno 29, se expressa contra a
possibilidade de participar da atividade? Que atividades propostas na escola estão
causando ao aluno de 8ª série tanta apatia? Esse processo está sendo refletido
116
também nos espaços expositivos de arte? Os espaços de arte estão incorporando
práticas escolares pouco desafiadoras e por isso desestimulantes? Impor atividades
dizendo “agora se dividam e pensem sobre” é o caminho para um Ensino da Arte
que busca a reflexão do indivíduo sobre questões humanas?
Quando dissemos, no Capítulo II, que devemos produzir, direta e intencionalmente,
em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente
pelo conjunto dos homens, estávamos pensando em criar propostas de atividades
para serem realizadas no espaço expositivo, que possibilitassem essa humanização.
Cabe agora refletirmos principalmente quanto à formação dos monitores, estudantes
de Arte, que estão se constituindo como artistas e/ou professores. Que tipo de
formação estamos oferecendo para essas pessoas? Quando participamos da
elaboração conjunta do percurso da visita (Arte-educadoras, monitores e
coordenadora), argumentamos sobre a importância do monitor/mediador que não
possuía respostas definitivas, alguém cujo olhar dialogava com o do visitante.
Falávamos da necessidade de motivar o olhar das pessoas, da co-responsabilidade
por uma relação prazerosa do público com as imagens. Mas, quando vemos o
discurso direcionando a atividade, percebemos que devemos, ainda mais,
possibilitar momentos de reflexão com os monitores. Momentos que favoreçam a
análise de suas práticas interventivas, possibilitando que eles se percebam como co-
participantes do processo.
Cabe ressaltar, ainda, que, antes de os alunos começarem a atividade em grupo, a
professora percebeu que alguns jovens descobriram a existência de números nas
laterais da gravura e, para suprir as dúvidas, interrompe dizendo:
(33) P: Gente, só um momento, me deixe responder uma coisa aqui que eu vi vocês
perguntando. Na maioria dos trabalhos tem no cantinho, por exemplo 1/3, 2/5. Eu vi vocês
perguntando o que era. Por que tem isso? A gravura funciona como um carimbo. Como vocês
viram, o artista faz a matriz ou na madeira ou no metal, e aí ele não faz a impressão só uma
vez, primeiro porque ele tem que ter a prova. Às vezes ele faz cinco, aí ele vai colocando na
gravura, esse é o primeiro de cinco, 1/5, 2/5. Nesse aí tem escrito 1/10, então esse é o
primeiro de uma série de dez. Ele fez dez vezes, um vai sendo diferente do outro porque a
tinta vai ficando mais fraca, ou passa mais tinta e aí fica mais forte. Então, esse número
117
significa quantas cópias ele tirou com aquela matriz que ele fez de metal ou madeira. Essa
técnica da camisa de vocês é feita assim, é feita uma tela que é carimbada no tecido.
Percebemos, no turno 33, a preocupação da professora em responder aos
questionamentos dos alunos. Ela aproveitou essa dúvida para propor um novo
aprendizado. Possibilitou o acesso à informação que eles estavam buscando. Com
isso, observamos a necessidade de o professor integrar o processo, colaborando
com os alunos e os estimulando durante a visita ao espaço expositivo. Retornando a
Franco (1994), temos que pensar que a visita ao espaço expositivo não é um
passeio onde o professor “entrega” os alunos aos monitores. Nossa participação tem
que ir além da repreensão aos alunos dispersivos ou “conversadores”. Temos que
participar integralmente desse momento, colocando-nos como mediadores atentos
às questões suscitadas pelos jovens, intervindo, interagindo sempre que julgarmos
necessário.
Dando continuidade à visita, a monitora solicitou que os jovens se dividissem em
grupos57 (Fotografia 15) para perceberem aspectos relativos às características
comuns entre as obras e suas diferenças.
(34) M: Bem, agora vou colocar umas questões para vocês. Vocês vão olhar e vão falar quais
as características comuns entre as obras e as diferenças. E o que vocês estão vendo nas
gravuras do Gian e do Gabriel?
(35) P: Entendido o que tem que fazer?
(36) M: Se quiserem podem olhar de novo.
Pensamos nessa atividade58 para que os alunos tivessem mais tempo com a obra.
Esse momento requeria deles um olhar minucioso sobre as gravuras. Além disso,
buscando as semelhanças e diferenças entre as obras, os jovens estariam
ampliando seus horizontes interpretativos, estabelecendo ligações dos seus
conhecimentos com os dos outros, trabalhando suas capacidades de síntese,
análise e generalização de conceitos. Conceitos trazidos por eles, como nos diz
Lukács (1966), receptores carregados de impressões, de vivências, pensamentos e
57 Os alunos dividiram-se em três grupos para discutir as questões: GRUPO 1: formado por cinco meninas e dois meninos (aluna que respondeu pelo grupo foi a Raya); GRUPO 2: formado por cinco meninas; GRUPO 3: formado por quatro meninos. 58 Essa atividade foi elaborada com a equipe do espaço expositivo, no momento da formação dos monitores.
118
experiências. Jovens invadidos pelo meio homogêneo, convertidos em receptores
estéticos, entregues aos primeiros efeitos da obra de arte. Conseguimos perceber o
começo do diálogo entre alunos e obras nesse momento de análise da forma,
quando eles observaram as semelhanças e as diferenças entre as gravuras. Como
nas falas que seguem:
(37) M: Então, vamos começar? Quais são as características comuns entre as obras de
Gian Shimada e Gabriel Vieira?
(38) G1: Eles usaram materiais iguais, mas os traços diferentes, como você explicou, não os
instrumentos, porém com processo inverso. Como você explicou, as coisas são parecidas,
mas o Gian usa mais cores que o Gabriel que prefere preto e branco e ele já...
(39) Monitora interfere: Características comuns vocês colocaram quais?
(40) G1: Materiais iguais (gesticula)
(41) M: Materiais não, instrumentos.
(42) G1: É (faz o gesto de cavar a matriz) instrumentos iguais.
(43) M: E o desenho? É igual?
(44) G1: É diferente.
Fotografia 15 - Atividade em grupo no espaço expositivo
Nos turnos 37 a 44, pudemos observar que, apesar da dificuldade em encontrarem
as semelhanças entre os trabalhos dos artistas, os alunos, acompanhados pela
monitora, chegaram à conclusão de que os instrumentos utilizados pelos artistas são
coincidentes. Inicialmente, utilizaram um termo incorreto, “materiais”, que foi
119
“corrigido” pela monitora. Percebemos que o grupo se apropriou do conceito de
instrumento, fazendo uso desse em outras situações. Processo similar ocorreu
quanto às diferenças, possibilitando que os alunos percebessem vários aspectos
formais das obras.
(45) M: Quais as diferenças entre as gravuras dos dois artistas?
(46) G1: O Gian usa cores em suas gravuras, o preto e branco também, o Gabriel não gosta
de colocar cor, usa preto e branco. Um usa madeira, o outro metal.
No turno 46, observamos que os alunos criam suas conclusões sobre as
preferências do artista: “Gabriel não gosta de usar cor”. Criam essa resposta para
justificar o fato de não existirem muitas cores no trabalho desse artista. Apesar
disso, o grupo não consegue perceber, nesse momento, que a utilização das cores
na arte vai além da preferência do artista. São escolhas conscientes que evidenciam
aspectos relacionados com a sensação de espaço e distância, revelam estados de
espírito ou sentimentos que o artista quer representar.
Em um outro momento, propusemos a análise e interpretação dos trabalhos de
Gabriel Vieira.
(47) M: O que você vê nas figuras do Gabriel.
(48) G1: O Gabriel desenha coisas reais, o movimento das pessoas, ele vê e desenha.
(referindo-se às gravuras da Série Passos).
(49) M: Vocês acham que só a realidade ele aborda?
(50) G1: Reais e atuais.
(51) M: Tipo o que, é atual?
(52) G1: O autoconsumo.
(53) M: O que vocês entendem por autoconsumo?
Os alunos ficam pensando.
(54) M: O mundo de hoje, as pessoas?
(55) G1: As pessoas são muito consumistas.
(56) M: Consumistas de coisas fora delas. Mas com elas mesmas? Autoconsumo é se
consumir.
(57) I.: Qual é a obra que vocês acham que está presente isso aí, do autoconsumo?
(58) G1: 1º , 2º e 3º Passos.
(59) I.: Mostra para mim?
(60) Luis: Essas aqui, olha. (Levanta e aponta para as obras)
120
(61) I.: Mas o que tem nelas que mostra isso?
(62) Luis: Eu sei, mas não sei explicar.
(63) I.: Só consegue sentir, não consegue explicar?
(64) Luis: É. (Senta de novo com o grupo)
(65) G1: Parece que ele está trabalhando, esforço físico.
(66) A professora interfere: No começo da visita, o Luis tinha comentado comigo o seguinte
(sobre a série Passos) que parece que na primeira estava abraçando, na segunda soltando e
na terceira parece que ele estava procurando alguma coisa. Foi o que ele falou que viu
nessas três obras.
Figura 6 - VIEIRA, Gabriel. Auto-consumo, 2005. Xilogravura de topo, 8,0x7,5cm
Nos turnos 47 a 66, percebemos que os alunos buscam entender as gravuras de
Gabriel Vieira. Observam a figuração e a sensação de movimento presentes nos
trabalhos. Relacionam o título “Auto-consumo” (Figura 6) com o fato de, na
atualidade, as pessoas estarem voltadas para o consumo compulsivo de produtos.
Porém, quando perguntamos qual obra se relaciona com esse título, o grupo não
aponta a gravura intitulada “Auto-consumo”, mostra-nos a série “Passos” (Figura 7,
Figura 8 e Figura 9). Quando perguntamos, no turno 61, “Mas o que tem nelas que
mostra isso?”, eles não conseguem responder. Tentamos interferir dizendo: “Só
consegue sentir, não consegue explicar?”. Como não tinham uma resposta
elaborada, assumem nossa condução de resposta e se calam novamente. Um dos
alunos do grupo tenta responder dizendo: “Parece que ele está trabalhando, esforço
físico”, mas a questão ainda permanece centrada no aspecto formal das obras.
121
Mesmo com a intervenção da professora, retomando os aspectos evidenciados por
um aluno desse grupo, não percebemos uma elaboração que remetesse ao
conteúdo das obras de Gabriel Vieira. Perdemos a oportunidade de aprofundar as
análises iniciadas pelos alunos. Descobrimos suas idéias ingênuas, mas não
proporcionamos momentos que buscassem avançar para um nível interpretativo. É
preciso estar mais atento, disponibilizando mais tempo para as situações
relacionadas com a experiência estética. É necessário propor intervenções que
transcendam a simplificação, estabelecendo outras relações com as obras, relações
que desafiem e instiguem os alunos a alcançar elaborações mentais mais
complexas.
Figura 7 - VIEIRA, Gabriel. 1º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm
122
Figura 8 - VIEIRA, Gabriel. 2º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm
Figura 9 - VIEIRA, Gabriel. 3º Passo, 2005. Gravura em metal, 8,0x12cm
Além disso, é importante entender que muitas coisas podem ser sentidas,
percebidas, mas nem todas as sensações conseguem ser verbalizadas. Duarte Jr.
(2000) nos faz pensar sobre essa questão, quando coloca que a racionalidade
moderna privilegia o conceito, o discurso e a palavra em detrimento do sentir, do
experienciar. Por conseguinte, avaliamos o entendimento da Arte verificando como
123
são as explicações e interpretações verbalizadas sobre as obras de arte.
Precisamos relativizar essas questões para que não esqueçamos do lado sensível
que reside na Arte e em seu ensino. É preciso reconhecer a importância tanto da
abordagem mais intelectualizada da Arte, visando às problematizações, ao
entendimento dos conceitos e à ampliação das interpretações, quanto valorizar o
saber sentido, ligado às experiências sensoriais, aos sentimentos, ou seja, o que
perpassa o corpo. Precisamos nos afastar da dicotomia corpo e mente, aproximando
o inteligível com o sensível. Isso requer de nós, educadores, também um
aprendizado. É necessário saber/sentir e conhecer para depois ensinar, o que nos
remete à nossa formação na graduação e também à nossa formação continuada.
Nesse sentido, quando sugerimos a parceria entre escola e espaço expositivo,
estamos pensando também nas possibilidades de ampliar o conhecimento dos
professores. É preciso que se firmem parcerias entre esses espaços para que
possamos pensar e propor uma abordagem de Ensino da Arte que não esteja em
pólos extremos. Como dissemos, temos que contribuir com o Ensino da Arte, na
escola e no espaço expositivo, proporcionando aos nossos alunos/visitantes
possibilidades sistematizadas de participarem de experiências catárticas.
Possibilidades que contribuam com sua formação sensível e intelectual.
Dando continuidade à atividade proposta, notamos que muitas questões foram
aprofundadas e sentidas junto às obras de Gian Shimada. Percebemos isso nos
turnos 67 a 74.
(67) M: Então, agora, as características do Gian.
(68) G1: Ele vê o interior das pessoas. Para ele não tem diferença, ele desenha esqueleto
das pessoas. Para ele homem e mulher são iguais, dependendo das partes (referindo-se ao
sexo), né? Entre aspas. Ele gosta de mexer com essas coisas porque, para ele, todo mundo
é igual. Não tem diferença.
(69) Jonas: Todo mundo tem o esqueleto igual, assim. É como se ele visse as pessoas sem
diferenças, sem a cor da pessoa.
(70) M: Ele coloca esqueleto, ele acha que todo mundo é igual porque tem esqueleto. Quando
a gente vira esqueleto? Quando morre. Vocês acham que ele quer dizer que todo mundo é
igual nesse sentido?
(71) Tati: Ninguém é melhor do que ninguém.
124
(72) Amanda: Ninguém é melhor do que ninguém, todo mundo é igual e vai acabar como
esqueleto.
(73) Raya: Um dia a pessoa vai morrer. Não vai durar toda vida, infinito.
(74) Amanda: Apesar das maldades, de tudo que a pessoa faz, um dia ela vai morrer. Por
isso ele está falando que todo mundo é igual, porque todo mundo morre, faz as mesmas
coisas.
Nesse diálogo, a temática do artista foi valorizada pelos alunos. Por meio da forma,
principalmente dos esqueletos, os alunos interpretaram as discussões propostas
pelo artista. Sabemos que está presente na vida dos jovens a preocupação relativa
ao preconceito. Eles vivenciam situações de preconceito constantemente. São
marcados por um sistema em que poucos alcançam uma posição social relevante,
além disso, são, em sua maioria, jovens negros ou pardos, moradores de uma
região cercada pela pobreza, criminalidade e desemprego. Como coloca Pillar
(1999), são sujeitos com uma história de vida, impregnados por experiências
anteriores, associações, lembranças, fantasias e interpretações. Por isso, quando,
no turno 68, o grupo coloca que “[...] ele gosta de mexer com essas coisas porque,
para ele, todo mundo é igual”, estamos presenciando uma tomada de consciência
dos alunos a partir das gravuras de Gian Shimada, assumindo-as como expressão
de um mundo exterior e interior. Um mundo em que eles reconhecem os problemas
colocando-se como sujeitos capazes de pensar sobre essas questões.
Participar dessa experiência estética possibilitou que esses jovens concentrassem
suas atenções nos objetos artísticos e tivessem contato com o gênero humano,
reconhecendo que, apesar dos preconceitos que todos estão sujeitos a sofrer, a vida
é efêmera, é transitória: “Todo mundo é igual e vai acabar como esqueleto” (Turno
72). Nesse momento, esses jovens conscientizam-se de sua condição humana,
conscientizando-se de si mesmos, sujeitos singulares, mas que vivenciam
problemas universais.
Podemos supor que as discussões suscitadas pelas obras de Gian Shimada deram
início a um processo catártico marcado por intervenções e interações, possibilitando
que esses jovens se apropriassem de novos conteúdos culturais e históricos,
ampliando suas experiências estéticas, desenvolvendo suas capacidades
receptivas, possibilitando-lhes reconhecer novas relações entre pessoas, entre a
125
vida e os objetos artísticos. É interessante pensar que, se não tivesse sido oferecida
essa vivência estética no espaço expositivo, esses alunos não teriam tido a
possibilidade de pensar sobre questões relativas ao gênero humano pela via da
Arte.
Por que privar os alunos de participarem dessas experiências? Dizemos privar
porque percebemos, em nossa prática, tanto no espaço expositivo quanto na escola,
que alguns professores, apesar de serem convidados a visitar as exposições
realizadas no espaço expositivo em questão, argumentam que tal visita se apresenta
inviável, devido à falta de ônibus para o transporte dos alunos. Sabemos que, nas
redes de ensino de Cariacica e Vitória, existem transporte para esse fim, apesar de
funcionarem com certa precariedade devido à grande demanda, mas outras
possibilidades de fornecimento de transporte podem ser conseguidas.
Em nossa prática em sala de aula como professora de Arte, já organizamos saídas
para espaços expositivos com ajuda de ônibus cedidos pelo Batalhão da Polícia
Militar, já solicitamos que o dinheiro para o pagamento do transporte fosse retirado
da caixa escolar e também pedimos doações às empresas que atendiam ao sistema
Transcol. O que estamos querendo dizer é que, com algum esforço, conseguimos
realizar tais saídas. Alguns professores argumentam também que não realizam
visitas ao espaço expositivo pela necessidade de organizá-la, tendo que solicitar
autorização dos pais, responsabilizar-se pela integridade física dos alunos e, muitas
vezes, aborrecer-se com o comportamento pouco adequado de alguns jovens.
Porém, acreditamos que, se houver colaboração de todos os profissionais da escola,
a saída não se torna um fardo pesado a ser carregado somente pelo professor de
Arte. Se houver a sistematização de um projeto integrado, com objetivos definidos,
que envolvam outras áreas do conhecimento, valerá o esforço e a dedicação de
todos.
Argumentamos desse modo porque entendemos que a convivência com os objetos
artísticos e a constância em visitar tais espaços compõem a formação do indivíduo,
dando-lhe a contribuição de uma reflexão crítica pela via da Arte, fomentando
momentos sensíveis que proporcionam um contato direto com produções artísticas
originais. As aulas de Arte na escola que rotineiramente utilizam reproduções
126
imagéticas tornam-se, muitas vezes, pouco atrativas pela pequena dimensão das
imagens, pela baixa definição de impressão e pela ausência da textura e da marca
do gesto do artista. Não estamos querendo dizer que toda aula com reprodução é
pouca atrativa, existem muitas pesquisas que avaliam positivamente tais práticas;
trata-se de proporcionar ao aluno outras vivências, experiências diferentes e
fundamentais em sua formação.
Seguindo o percurso da visita, após as análises e interpretações das gravuras de
Gian Shimada e Gabriel Vieira, a monitora propôs que cada grupo discutisse um
poema-frase de Arnaldo Antunes. A tarefa era relacionar um poema com uma ou
mais obras expostas, argumentando as razões pelas quais foram feitas tais
escolhas. Pensamos nessa atividade como uma maneira de estimular a imaginação
criadora dos alunos. Por meio das relações entre texto escrito e imagens,
possibilitaríamos o diálogo entre essas linguagens, estimulando, nos jovens,
elaborações mentais que envolviam processos criativos. Novamente nos remetemos
a Vigotski (1987), quando nos mostra que a atividade criadora da imaginação se
encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada
pelo homem.
Sendo assim, é preciso ampliar a experiência do indivíduo para construir a base de
sua atividade criadora. É importante também colocar que, quanto mais rica for a
experiência, mais abundante será a fantasia. Por conseguinte, a fantasia se apóia na
memória, utilizando seus dados para criar novas combinações, ou seja, ela se apóia
nas experiências partindo delas para criar novas situações. É curioso ressaltar que,
segundo Vigotski (1987), tanto a imaginação se apóia na experiência, quanto a
experiência se apóia na fantasia. Além disso, todas as formas de representação
criadora encerram em si elementos afetivos. Esse autor coloca que, do mesmo
modo que o indivíduo se manifesta, com expressões externas, seu estado interior de
ânimo, também as imagens da fantasia servem de expressão interna para nossos
sentimentos. Portanto, o processo de criação não resulta apenas do campo da
influência prática, mas também da representação emocional, subjetiva.
Pudemos perceber esse processo durante o percurso da monitoria, principalmente
quando os jovens do Grupo 1 discutiram e relacionaram com outras obras o poema-
127
frase “O monstro é um exagero”. Ao iniciarem a análise, leram em voz alta várias
vezes o poema. Após essa etapa, começaram a conversar sobre a atividade:
(75) Amanda: Essa pessoa é um monstro, é um jeito de xingar a pessoa.
(76) Raya: Monstro quer dizer que não tem nada a ver, todo mundo é igual.
(77) Gabi dá um exemplo: Raiane é feia que nem um monstro, é para dizer que eu não acho
ela bonita. Monstro é um exagero, ela é feinha, mas não é um monstro.
(78) Gabi: O que é um monstro? É uma coisa feia. Monstro é uma pessoa feia, não pode ser
geral , que todos vão achar feia.
(79) Luis: A beleza não importa, o que importa é o interior da pessoa.
(80) Fran: Não estou entendendo uma coisa. ‘O monstro é um exagero’, esse ‘o’ tem alguma
coisa, senão seria ‘Monstro é um exagero’. Mas tem ‘o’.
(81) Jonas: O monstro é uma pessoa.
(82) Luis: O que tem que fazer é pegar o poema e jogar em um quadro.
Os alunos percorrem a galeria tentando definir qual quadro se relaciona com o poema.
(83) Gabi: A imagem é o cavaleiro, chamar isso aqui de monstro é um exagero, ele não é um
monstro.
(84) Raya: Esse aqui dá, porque ele é feio, e quer matar a pessoa.
(85) Luis: Eu acho que monstro é uma coisa exagerada, a fome, miséria, desemprego.
(86) Raya: É só a gente falar que nos chegamos a várias conclusões. Que a gente não
conseguiu direito imaginar o que era. O monstro para uma pessoa é uma coisa, para outra o
monstro é a violência, para ela pode ser a fome. E o que é o monstro?
(87) Jonas: É uma coisa assustadora.
(88) Amanda: Vai ter que falar um quadro?
(89) Tati: Eu vou escolher a mãe.
(90) Luis: Escolhe dois, a mãe e o pai.
Nos turnos 75 a 90, percebemos que o grupo discutiu o poema-frase antes de
elaborar uma resposta para compartilhar com os demais grupos. A situação de
interação proporcionou a elaboração do conceito de “monstro” que cada aluno trazia
consigo. Compartilhar esse conceito fez com que os alunos percebessem o sentido
figurado dessa palavra. Inicialmente, eles remeteram a figura do monstro a situações
concretas, como no turno 78, quando Gabi coloca que “o monstro é uma pessoa
feia”. Conforme foram surgindo as opiniões (Turno 86), eles decidiram não entrar em
um consenso, mas relatar a opinião dos integrantes do grupo. No final, definiram
escolher os quadros que se relacionavam com o poema. É interessante perceber
que Tati e Luis deram título aos quadros dizendo: “Eu vou escolher a mãe”,
128
referindo-se à Figura 10; Luis interfere sugerindo: “Escolhe dois, a mãe e o pai”.
Recorrendo a Vigotski (1987), podemos supor que, ao intitularem os quadros como
pai e mãe, os jovens trouxeram sua experiência de vida, marcadas principalmente
pela dificuldade de relacionamento com seus pais. Eles sabiam que o título das
referidas gravuras não era “o pai e a mãe”, mas, mesmo assim, deram-lhes a elas
esse título vinculando suas vidas à resolução da atividade sugerida. Cabe colocar
que o processo criativo relativo à elaboração da resposta para a atividade proposta
envolveu, além das experiências anteriores (divergências entre pais e filhos,
problemas sociais), uma representação subjetiva, emocional, originada
principalmente pela fantasia desses jovens, pois foi necessário recorrer a ela para
elaborar novos títulos para os quadros já nomeados pelo artista. Esse fato só
reforça a teoria de Vigotski sobre o processo de criação, sendo esse não apenas
originado pela experiência, mas também a partir da subjetividade, evidenciada pela
fantasia.
Figura 10 - SHIMADA, Gian. Em nome do pai. Xilogravura, 60x30cm; SHIMADA, Gian. Em Nome da mãe.
Xilogravura, 60x30cm
Após a discussão, os grupos organizaram-se em um grande círculo para coletivizar
suas discussões sobre a atividade proposta. A redatora do grupo, Raya, lê o
consenso a que eles chegaram.
129
(91) Raya: ‘O monstro é um exagero’. O monstro quer dizer a fome, que nós chegamos à
conclusão que monstro é a fome, a miséria, desemprego, a dor, a morte – é tudo! É que tudo,
a vida é um exagero, que não precisa encarar as coisas assim. Pai e mãe, esses quadros
significam o monstro.
(92) I: Então vocês relacionaram o poema a dois quadros? O pai e a mãe têm a ver com essa
questão do monstro?
(93) Raya: O filho sempre fala: ‘A minha mãe é um monstro, ela não me deixa ir para lugar
nenhum, ela exagera demais nas coisas que eu faço’, mas a gente sempre tá errado mesmo.
Por que ela sempre tá fazendo isso para o nosso bem.
(94) I: Vocês escolheram essas imagens por que tem a ver com a vida de vocês? A questão
de às vezes não poder ir aonde vocês querem, desse controle que os pais têm sobre vocês,
então vocês relacionaram que ‘O monstro é um exagero’, exatamente o exagero que os pais
têm com a relação ao cuidado...
(95) Raya: O cuidado deles para gente é um tipo de exagero, entendeu? Eles são os nossos
monstros. Nas pinturas é a mesma coisa. Foi o que o Luis falou. O rosto do personagem está
bem acabado, tá com a pele toda borrada, ele pode tá chorando a falta de emprego, a fome,
a miséria, a falta de dinheiro, a miséria.
(96) I: Então o artista está querendo representar uma outra coisa, não é porque ele está
querendo fazer uma pessoa feia, ele quer representar uma outra coisa com esse trabalho?
(97) Raya: A doença, o monstro e a violência.
Ao relacionarem o poema às gravuras, principalmente no turno 93, o grupo justificou
suas escolhas pelos quadros que retratam a “mãe e o pai”, argumentando que,
apesar de sentirem que existe um exagero por parte dos pais em cercear a liberdade
deles, o grupo reconhece que tal preocupação visa ao seu bem-estar. Como nos
mostra Lukács (1966), o conteúdo adquirido na vivência estética conduz o indivíduo
a confrontá-lo com a sua imagem de mundo, transformando-a. Logicamente não se
deve menosprezar a forma, na medida em que esta atua junto à percepção do
receptor, levando-o a alcançar novos conteúdos. Portanto, conteúdo e forma
estimulam e orientam o receptor a reconhecer também na vida o que é análogo à
Arte, dando condições para o sujeito se aproprie desses conhecimentos artísticos.
Desse modo, podemos pensar que, ao estabelecer a relação entre poema, gravuras
e vida, os jovens estavam interligando forma e conteúdo a questões relativas às
suas vivências, reiterando, ampliando ou até mesmo transformando suas relações
com a cotidianidade. É preciso destacar que são diversos os entendimentos que
130
acontecem a partir das vivências estéticas. Não podemos afirmar que ocorrerá uma
transformação do indivíduo após essa experiência. Muitas vezes, “o efeito da obra”
será imperceptível ou, quem sabe, a partir de encontros freqüentes ocorram as
transformações como as que Lukács (1966) coloca.
Nessa discussão, não podemos pensar em nivelar as reações ou até mesmo
esperar que todos os jovens modifiquem totalmente seu comportamento a partir das
experiências estéticas. Seria insuficiente não entender os contextos de cada
indivíduo, sem perder de vista que cabe à escola e ao espaço expositivo criar
situações de parceria que possibilitem aos jovens se deparar com momentos de
encontro com originais de Arte, instigando-os a pensar sobre suas vidas, sobre Arte,
revendo suas proposições, seus comportamentos, sua visão de mundo, buscando
uma conscientização ou, como coloca Lukács (1966), uma tomada de consciência
norteada pela obra de arte, uma tomada de consciência em que os efeitos da
experiência estética se transformem em elemento de vida.
Consideramos que nossa intervenção, tanto no turno 94 quanto no 96, colaborou
pouco no aprofundamento das questões discutidas. Serviram somente de síntese
colaboradora para o entendimento dessas questões. Nossa intervenção,
principalmente no turno 96, poderia ter buscado ampliar as discussões sobre a
linguagem artística, principalmente com relação ao estilo do artista analisado. Gian
Shimada exibe em seus trabalhos uma visão fortemente individual do real e de seu
imaginário. Encontramos, em suas gravuras, influências expressionistas, marcadas
pela utilização de elementos figurativos do mundo real e irreal, apresentando a vida
oriunda da morte e vice-versa, discutindo a criação e a destruição. Para tanto, o
artista distorce a forma figurativa e, em alguns momentos, exagera para dar lugar
aos sentimentos, às expressões faciais. Utiliza-se de linhas e cores para evidenciar
tanto seu gesto quanto os sentimentos dos personagens apresentados em suas
gravuras. Quando os alunos disseram, no turno 95, que “O rosto do personagem
está bem acabado, tá com a pele toda borrada, ele pode tá chorando a falta de
emprego, a fome, a miséria, a falta de dinheiro, a miséria”, percebemos que eles
iniciaram uma análise baseada na possibilidade de o artista utilizar a distorção da
forma para evidenciar um sentimento. Apesar disso, não propusemos um
131
aprofundamento relativo ao estilo artístico de Shimada e a relação desse com a
forma de suas gravuras.
Outro ponto observado no turno 95 foi a relação estabelecida pelos jovens entre o
monstro, seus pais e os problemas enfrentados por eles e por todos nós. Essa
relação não foi explicitada e torna-se ambígua porque, ao mesmo tempo em que
podemos pensar que seus pais são seus monstros, pelo exagero de cuidado,
podemos refletir sobre a possibilidade de as figuras, consideradas por eles borradas,
serem seus próprios pais chorando a falta de emprego, a fome, a miséria e a falta de
dinheiro. Essa discussão remete novamente à falta de esclarecimento das questões
estilísticas do artista. O fato de a figura estar “borrada” e com as feições “acabadas”
levou os jovens a relacioná-las com um indivíduo chorando, pois, para eles, ao
chorar, as pessoas ficam parecidas com monstros, figuras feias. Feias por serem
seus pais monstros exagerados ou por serem a representação dos que sofrem,
choram e por isso ficam feios? Ou pelo fato de a feiúra expressar a fome ou a falta
de emprego?
Após esse momento, ainda no espaço expositivo, os alunos elaboraram gravuras
usando como matriz o isopor. A produção podia ser livre ou criada a partir das
gravuras e temas expostos. Não tivemos a preocupação de conduzir a produção dos
jovens. Oferecemos materiais, como ponta seca, tinta e matriz em isopor,
comentamos sobre a necessidade do espelhamento das palavras, caso eles fossem
escrever, para, a seguir, deixá-los experimentar algumas possibilidades da gravura.
Quanto ao desenho desses jovens (Fotografia 16), pudemos perceber que, mesmo
após a vivência estética, em que prevaleceram momentos de sensibilização,
discussão, análise e interpretação das gravuras, os alunos utilizaram estereótipos59
em suas produções. Esse assunto foi discutido por nós, principalmente durante a
avaliação dos momentos da intervenção, como traz o diálogo que segue:
59 Etimologicamente, a palavra estereotipia vem do grego stéreos, que quer dizer firme, compacto, imóvel, constante, e de typos, que significa sinal, molde, representação. Estereotipia – molde usado no século XVIII; adjetivo dado a desenhos prontos, repetidos, copiados, modelo.
132
(98) I: E o que você acha dessa repetição que eles fazem do sol, do mar, dos corações?
Mesmo depois de ter vivido todo processo de ver uma obra original... ainda tem uma
presença muito forte do estereótipo...
(99) P: Isso é aquela imagem que você carrega, e que você vai carregar. Mesmo na hora que
você tem uma visão maior, mesmo na hora que você já vivenciou outras coisas que outros
artistas fizeram, não só artistas, como amigos. Mas na hora que você tem que se expressar, o
seu repertório é aquele que está incutido em você, então é difícil você conseguir se liberar
desse repertório. Por exemplo, Alice é evangélica, então normalmente as imagens produzidas
por ela têm a ver com religião, o contexto dela é esse. Cada um tem o seu estilo, o seu jeito
de ser, cada um vai expressar o seu jeito. Agora, o que dá pra reparar é que têm aqueles que
chegam bem perto, que vão, vivenciam a obra de arte e conseguem se expressar não
copiando, mas fazendo a expressão dele, saindo daquele solzinho... e já tem outro que é
mais difícil, é a dificuldade individual mesmo, ele desenha o que já sabe, a gente tem que
respeitar.
Na fala da professora, percebemos o seu entendimento sobre a presença dos
estereótipos. Seu modo de pensar essa questão vem ao encontro das reflexões
trazidas por Leite (2001) sobre as produções artísticas realizadas no espaço
expositivo que aparentemente se deslocam das temáticas tratadas pela mostra.
Conforme essa autora, os estereótipos são representações de símbolos
padronizados que normalmente os alunos desenham. Assim como a professora,
Leite (2001) coloca que, ao se utilizarem do estereótipo, os indivíduos se sentem
seguros. Copiando o desenho que foi instituído como certo, não correm o risco de
exporem suas produções à apreciação dos demais colegas. Desse modo, esses
alunos encobrem suas fragilidades relativas à técnica artística. Como apontou a
educadora, podemos relacionar esse fato também com a presença de símbolos
religiosos nas gravuras realizadas pelos jovens. Em um dos trabalhos (Fotografia
16), a cruz aparece em evidência, dando novamente ênfase às experiências
anteriores em detrimento da vivência estética no espaço expositivo.
133
Fotografia 16 - Gravuras em isopor realizadas por alunos no espaço expositivo
Além dos estereótipos, reconhecemos também os desenhos de logomarcas que
representam produtos instituídos, como os que mais dão “status” aos seus
consumidores. Viver em uma sociedade consumista, que valoriza a aquisição de
objetos tidos como de qualidade, também colabora para que esses sonhos de
consumo apareçam nas produções artísticas dos jovens. Isso nos faz pensar que o
processo de criação é resultado de inúmeros fatores. O meio social e cultural que
envolve os indivíduos interfere em suas experiências, em suas histórias de vida, nos
seus modos de interação com o mundo, e também em seus modos de expressão. A
Arte pode colaborar na formação de uma consciência crítica. A vivência estética
também pode contribuir para que o indivíduo incorpore novos modos de expressão,
ampliando suas experiências, mas isso não ocorre instantaneamente; trata-se de
uma processualidade, gradual e variável, pois acontece dentro de encontros e de
convívio com a obra de arte.
134
4.1.4 A Continuidade60 do Processo Catártico em Sala de Aula: o
Aprofundamento das Propostas Iniciadas no Espaço Expositivo
Como nem todos os jovens dessa turma participaram da visita ao espaço expositivo,
elaboramos uma proposta que lhes desse a possibilidade de entenderem o que
havia ocorrido no espaço expositivo.
Para tanto, a professora retomou o que aconteceu na galeria, pedindo que
recordassem o nome dos artistas, a técnica, as semelhanças dos trabalhos e as
diferenças. Para sistematizar a discussão, a professora listou no quadro-negro essas
considerações.
Os alunos pontuaram, no trabalho de Gian, que todo mundo é igual. Identificaram
também representações de morte e vida, realidade do desenho, cores e monstro. Já
no trabalho de Gabriel, lembraram mais os traços, figuras geométricas, preto e
branco, consumo, força do trabalho, realidade do desenho.
Após essa etapa, a professora solicitou que os alunos se sentassem em duplas:
alunos que foram à galeria de arte com alunos que não foram. As duplas fizeram a
leitura do texto que acompanhava o folder da exposição e depois o aluno que
participou da visita tirava as dúvidas do outro.
A seguir, a professora entregou meia folha de papel sulfite A4 e pediu que eles
desenhassem o que as discussões suscitaram neles (Fotografia 17). Eles poderiam
desenhar o que sentiram. Para isso usaram os folderes que trouxeram da exposição.
60 Esses momentos ocorreram nos dias 24-10-2005, 07-11-2005, 28-11-2005 e 05-12-2005, com a duração de 01h40min cada encontro.
135
Fotografia 17 - Desenho relacionado com a visita à exposição utilizando o folder da exposição
Enquanto os alunos realizavam suas produções, interferíamos perguntando: o que te
levou a fazer esse desenho? Existe alguma relação com a obra dos artistas vistos?
Notamos que as respostas permearam as discussões realizadas a partir da temática
proposta pelos trabalhos de Gian Shimada, principalmente no que se refere às
relações entre vida e morte. A maioria dos jovens elegeu esse tema para realizar
suas produções artísticas.
(100) I: O que você pensou quando fez o seu desenho?
(101) Jaqueline: Na amizade.
(102) I: Você acha que tinha essa discussão nas obras dos artistas?
(103) Jaqueline: Quando a gente entende que todo mundo é igual, acaba formando laços de
amizade.
136
Fotografia 18 - Desenho relacionado com a visita à exposição
Com essa conclusão, percebemos que a aluna avançou, buscou ir além dos temas
tratados pelas obras observadas, passou, então, a criar relações que aprofundavam
o tema discutido (Fotografia 18). Essa reflexão de Fran está de acordo com o que
Lukács aponta sobre o “Depois da vivência receptiva”, quando o indivíduo é
reconstituído, ampliado, enriquecido. É quando todos os efeitos transformadores se
convertem em elementos de vida, possibilitando que a pessoa estabeleça relações
entre essa vivência e sua vida, repensando suas relações com o mundo e com as
pessoas.
Observamos também que outros jovens, pela discussões e produção artística,
aprofundaram-se na temática escolhida. Por exemplo, Van, que conseguiu entender
o que foi visto na galeria a partir das discussões que estavam acontecendo na sala
de aula. Ela não foi à galeria. Quando fala do seu desenho, diz “Temos uma parte
em nós escura, e não sabemos por que temos esta parte escura”.
137
Fotografia 19 - Desenho enfatizando oposições
Para tratar essa discussão em seu desenho, Van criou quatro figuras organizadas
em pares, um par masculino e outro feminino (Fotografia 19). Cada par representa o
lado claro e o lado escuro do homem. Como essa jovem não participou da vivência
estética, ela se apropriou das discussões realizadas em sala de aula, além de
utilizar, como base de sua produção, as gravuras de Gian Shimada que estavam no
folder da exposição.
Andrei também optou pela temática proposta nos trabalhos de Gian: a morte e a vida
(Fotografia 20). Sobre o seu desenho, coloca:
(104) I: O que você pensou quando fez o seu desenho?
(105) Andrei: Desenhei um ninho com a mãe que caiu do ninho e morreu, ela acabou de dar a
vida e morreu. Esse desenho simboliza a questão da vida e da morte, e eu quis fazer da
minha cabeça.
138
Fotografia 20 - Desenho a partir da temática das gravuras de Gian Shimada
A questão da originalidade marcou a produção desse jovem. Ele se apropriou das
discussões, mas optou em criar um desenho seu. Como escreveu no seu desenho,
ele se inspirou no trabalho de Gian Shimada, mas construiu sua própria metáfora
para a temática vida e morte. O processo catártico que penetra no indivíduo durante
a experiência estética faz com que se renovem os modos habituais de pensar o
mundo, fazendo-o refletir sobre conteúdos novos, vistos de maneiras novas.
Novamente constatamos que a participação de vivências receptivas, como nos diz
Lukács (1966), amplia e enriquece conteúdos e formas, efetivos e potenciais da
psique humana. Traz novos conteúdos que aumentam o “tesouro vivencial” do
indivíduo, desenvolvendo sua capacidade de entender novas relações, ampliando
seus modos de pensar e de se expressar.
É importante colocar também a reflexão da professora sobre as propostas
desenvolvidas nesse momento, pontuando aspectos que foram relevantes:
(106) Na hora da produção em sala de aula é que a gente vê: eles foram, olharam,
perguntaram, responderam e depois conseguiram colocar no papel, expressar o que eles
viram, sentiram e entenderam, porque a obra de arte é uma coisa inacabada, é aquela
incógnita que fica o tempo todo, e que cada um vai olhar e vai dar sua interpretação, mas que
tem que ter um elo, não é uma coisa tão solta assim.
139
Então, na hora de colocar no papel, na hora da expressão individual que cada um vai falar por
si, eu acho que o retorno é bem interessante. É isso que eu sinto falta, da nossa falta de
tempo, sabe? Eu acho que o trabalho acaba ficando fragmentado, por esse tempo curto que
você tem, porque o legal seria você conseguir... você (referindo-se à pesquisadora), por
exemplo, estava ouvindo as coisas que eu não tenho como ouvir, mas porque você não
estava com a turma. Quando eu tenho tempo de parar perto de um e de outro e perguntar: o
que está fazendo? Por que está fazendo? Fazer essas perguntas, aí você vê a riqueza de
dados, mas normalmente, na nossa realidade de cinqüenta minutos de aula, de sair correndo
de uma sala para outra, você acaba ficando com seu trabalho e seu questionamento
fragmentado, por que o ideal seria isso, você parar, ouvir, partir de um trabalho e vir
conversando o tempo inteiro, depois deixá-los falar.
[...] Como é que eu costumo agir: tem galeria que eu não falo sobre o trabalho antes de ir,
propositadamente. Tem galeria que eu falo do trabalho antes de ir, também
propositadamente. E quando retorno, eu levanto aqueles dados que foram falados lá, futuco
de novo: o que nós vimos? O que tinha lá? O que vocês acharam? Para depois partir para
produção. Ai, depois, a partir da produção deles, que eu gostaria de ouvi-los e que não é
possível, eu costumo colocar os trabalhos deles, para ouvi-los falar, um falar do outro, mas às
vezes a gente se vê muito atropelada, com reunião, feriados, saídas com outros professores,
então você não faz e a coisa vai se perdendo.
Ao considerarmos a fala da professora, podemos olhá-la em dois momentos:
primeiro, percebemos o desabafo de uma educadora atropelada por um cotidiano
que muitas vezes se coloca como obstáculo, ocasionando principalmente a ausência
de momentos de interação com os alunos durante suas reflexões sobre a Arte; em
um segundo momento, a professora revela seu método de trabalho relativo às
visitas, às exposições, ou seja, descreve sua prática pedagógica nessas ocasiões.
Porém, em ambos, a Arte-educadora sinaliza uma problemática que não envolve
somente o Ensino da Arte: a fragmentação do conhecimento. Sabemos que essa
discussão vem sendo pensada por muitos educadores. Temos consciência também
da luta que nós, professores de Arte, travamos para ter mais tempo de aula. Na rede
pública, normalmente, são duas aulas de 50 minutos por semana, porém essa não é
a prática das escolas particulares que, em sua maioria, tem uma aula de Arte por
semana em cada turma. Cabe, então, pontuarmos a seguinte questão: o tempo da
sala de aula na escola muitas vezes não abarca a proposta que se pretende
desenvolver. Por que, então, não aproveitarmos as visitas aos espaços expositivos
para ampliarmos nossos momentos de interação com os alunos e obras de arte?
140
Sabemos que o tempo na galeria é um tempo diferente do tempo da sala de aula.
Ele “rende” mais. Percebemos que isso ocorre quando o educador se envolve com a
visita, estimulando os alunos para esse momento. Notamos também que o
engajamento desse profissional, durante a visita, reflete no modo com que os alunos
se relacionam com as obras e com seus pares. O que estamos querendo dizer é que
esses fatores colaboram para que as duas horas que normalmente dura uma visita
ao espaço expositivo proporcionem aos alunos momentos de intensa reflexão e
produção artística.
Como nos coloca Lukács (1966), a invasão do meio homogêneo, ou seja, a invasão
da Arte no mundo do receptor produz um movimento reiterativo, um diálogo, uma
elevação da consciência dos homens a partir dos objetos artísticos. É um modo de
os jovens se apropriarem do mundo e essa apropriação se torna muito mais intensa
quando escola (principalmente na figura do professor auxiliado pela equipe de
pedagogos) e espaço expositivo se tornam parceiros que almejam o mesmo
objetivo: proporcionar momentos de encontro com a Arte que integrem um processo
catártico. Esse processo é reiterativo, se inicia na escola, passa pelo espaço
expositivo, retorna à escola onde é reiterado, dando continuidade a um ciclo de
vivências estéticas que participam da formação crítica do jovem.
Preocupada com esse ciclo de vivências e com a continuidade do aprofundamento
das questões experimentadas no espaço expositivo, em um outro momento, em sala
de aula, colocamos várias reproduções das gravuras vistas na galeria no quadro-
negro. Retomamos os temas entendidos sobre as obras vistas: monstro, morte,
tristeza. A seguir, solicitamos que os alunos dessem exemplos de músicas ou filmes
que se relacionavam com o que foi visto e discutido na galeria de arte. Um aluno
deu sua opinião:
(107) Andrei: Tem a ver com o filme ‘Sexto Sentido’. Lá tinha um menino que via mortos e
depois ajudava as pessoas.
(108) P: Será que a vida é feita só de tristeza? Será que podemos fazer alguma coisa para
amenizar isso? Tem algum jeito?
Agora nos vamos ouvir uma música, vamos refletir, depois vamos ver se tem alguma coisa
que relaciona a música às imagens, vamos ver se a letra da música tem relação com os
trabalhos do Gian e do Gabriel.
141
Fotografia 21 - Momento de apreciação musical
Distribuímos a letra da canção “Epitáfio”61 do grupo de rock Titãs, iniciando o
momento de reflexão (Fotografia 21). Quando a música terminou, os alunos foram
instigados a relacionar a letra da canção com as gravuras de Gian Shimada e
Gabriel Vieira, porém, como já dissemos, essa sala de aula é muito próxima da
quadra de esportes da escola. O barulho que vinha do jogo de futebol tornou
impossível entender tais diálogos gravados em áudio, sendo esse o único recurso
que utilizamos nessa ocasião.
Dando continuidade à atividade, a professora solicitou que os alunos formassem
grupos para fazer um desenho relacionado com o que eles vivenciaram (Fotografia
22).
61 A canção “Epitáfio” foi composta por João Ubaldo Vieira e possui a letra que segue: “Devia ter amado mais/ Ter chorado mais/ Ter visto o sol nascer/ Devia ter arriscado mais/ E até errado mais/ Ter feito o que eu queria fazer/ Queria ter aceitado as pessoas como elas são/ Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração/ O acaso vai me proteger/ Enquanto eu andar distraído/ O acaso vai me proteger/ Enquanto eu andar.../ Devia ter complicado menos/ Trabalhado menos/ ter visto o sol se pôr/ Devia ter me importado menos/ Com problemas pequenos/ Ter morrido de amor/ Queria ter aceitado a vida como ela é/ A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier/ O acaso vai me proteger/ Enquanto eu andar distraído/ O acaso vai me proteger/ Enquanto eu andar.../ Devia ter complicado menos/ Trabalhado menos/ Ter visto o sol se pôr”.
142
Fotografia 22 - Alunos reunidos para produção em grupo sobre a canção “Epitáfio”
Enquanto os alunos desenhavam, fizemos os seguintes questionamentos: falem
sobre o seu desenho, o que você fez? Qual a relação da música, com o que você viu
na galeria? Você acha que sua produção tem mas a ver com a música que a gente
ouviu, dos Titãs, ou com o trabalho da galeria, do Gabriel e do Gian? Selecionamos
algumas dessas falas no trecho que segue:
(109) I.: Me fala sobre o seu desenho o que você fez? Qual a relação do seu trabalho com a
música, com o que você viu na galeria?
(110) Andrei: Porque tem muita gente que tem tudo e não aproveita nada, mas tem gente que
falta algum órgão do corpo dele e aproveita a vida dele, ele não deixa se abater por causa
disso.
(111) I.: E você acha que isso tem mas a ver com a música que a gente ouviu, dos Titãs, ou
com o trabalho da galeria, do Gabriel e do Gian?
(112) Andrei: Acho que com a música.
(113) I.: Tem alguma relação com o trabalho do Gabriel?
(114) Andrei: Eu não sei porque não entendi muito bem o trabalho. Eu não fui lá, aí eu não
entendi muito, não.
É importante notar que, nos turnos 109 a 114, estimulamos Andrei a falar sobre a
sua produção. No turno 112, ele revela que seu trabalho se relaciona mais com a
canção. Esse aspecto fica evidenciado pela apropriação que fez da letra da música.
Em um balão de pensamento, o aluno escreveu: “É preciso saber viver”, associando
143
essa frase a um desenho de um cadeirante que encarou sua deficiência, tornando-
se um atleta que venceu uma Paraolimpíada (Fotografia 23). São inúmeras as
associações que Andrei estabeleceu para compor esse desenho: sua experiência de
vida, suas vivências estéticas, sua imaginação, seus desenhos anteriores, as
notícias oferecidas pelos veículos de comunicação na ocasião, até mesmo as “lições
de moral”, muitas vezes estereotipadas que sobrecarregam os jovens na escola. Ou
seja, múltiplos aspectos colaboraram para que a produção artística, acompanhada
pela fala, ajudasse o processo catártico a continuar ocorrendo.
Fotografia 23 - Desenho sobre a canção “Epitáfio”
Outro ponto importante foi estimular Andrei a relacionar sua produção com as
gravuras vistas no espaço expositivo. Como ele não foi à galeria, sentiu dificuldades
em estabelecer essa relação. Lidar com esse tipo de situação faz parte do cotidiano
da escola. Os alunos faltam às aulas, mas os projetos continuam, estão em
andamento. Muitas vezes não temos tempo de parar e perguntar individualmente:
você está com dúvida? Entendeu a proposta? Por que escolheu fazê-la dessa
forma? Percebemos que momentos como esses estão cada vez mais difíceis de
acontecer. E se tivéssemos perguntado? Como explicar a experiência vivenciada no
espaço expositivo? Logo depois da visita, elaboramos uma atividade em que o aluno
que foi à galeria explicava para aquele que não foi. Pelo que observamos na fala de
144
André, isso não foi suficiente. Acreditamos que seja difícil reconstituir uma vivência
estética, porém percebemos que o próprio aluno busca alternativas para vencer suas
dificuldades.
Nessa atividade, Andrei baseou-se principalmente na canção para elaborar sua
produção. Após nossa interferência, ele continuou sem entender bem o que ocorreu
no espaço expositivo. Conversamos com o aluno, percebemos sua falta de
conhecimento sobre tal assunto, deveríamos iniciar uma explicação sobre o tema,
mas não o fizemos e tudo ficou por isso mesmo. Uma atividade que poderia ser mais
significativa (apesar de ter um significado considerável pelo aluno), não foi
esmiuçada e Andrei continuou “sem entender muito bem o trabalho”. Somente ao
analisarmos essas falas é que conseguimos perceber nossa desatenção com o
aluno. Fomos mediadores?
Ao mesmo tempo em que percebemos a atitude de Andrei perante essa atividade,
observamos que Maicon estabeleceu uma outra relação com a tarefa, conforme os
turnos 115 a 119:
(115) Maicon: Eu fiz os dois lados: o lado ruim, de quando tá vivo, e o lado morto, porque lá,
na galeria, tinha um trabalho mais ou menos assim. De um lado, um cara vivo e, do outro
lado, uma cara de caveira.
(116) I: A vida e a morte? É a sua vida?
(117) Maicon: É.
(118) I: Você acha que a morte está tão presente assim na sua vida?
(119) Maicom: Creio que sim.
Fizemos a Maicon o mesmo questionamento do turno 109 e percebemos que, por ter
participado de todos os momentos do processo, ao criar seu desenho, relacionou-o
tanto com a canção “Epitáfio” quanto com as gravuras vistas no espaço expositivo.
Além disso, o jovem refletiu sobre a atividade, associando-a a fatos que marcaram
sua vida (Fotografia 24). Isso nos faz novamente relembrar Vigotski (1987), quando
nos fala que devemos ampliar as experiências dos indivíduos para que essas sirvam
de material disponível para a imaginação. Segundo esse autor, o potencial
imaginativo do indivíduo desenvolve-se a partir das associações que possa vir a
estabelecer em diferentes espaços. Isso confirma a importância da escola como um
145
lugar que busca estimular a capacidade criadora dos jovens, evidenciando a criação
tanto na produção artística quanto na vivência estética, no sentido de proporcionar
ao aluno experiências qualitativamente distintas do cotidiano vivido por ele. No
processo catártico, de vivência, reflexão e aprofundamento das experiências
estéticas, o jovem desenvolve modos mais sofisticados de sentir, analisar e
generalizar os elementos da realidade, ampliando sua visão de si e do mundo.
Fotografia 24 - Desenho inspirado na gravura de Gian Shimada
Como dissemos no Capítulo II, o processo de encontros com a arte e as atividades
destinadas ao conhecimento e ao aprofundamento das questões relativas a ela
orientam a capacidade receptiva do indivíduo, proporcionando momentos em que
ele elabora o que adquiriu, tomando consciência de sua realidade, buscando
transformá-la. É importante colocar novamente que essa transformação não ocorre
instantaneamente, ela é gradual e variável, pois acontece dentro de um processo de
encontros e de convívio com a obra de arte, na interação entre os sujeitos. Além
disso, conforme coloca Duarte (1996), esse é um modo de o indivíduo se formar
como ser humano, um ser sensível, genérico e social, capaz de lutar contra a
alienação. Capaz de lutar por reais condições de os homens se desenvolverem à
altura das máximas possibilidades objetivamente existentes para o gênero humano
(DUARTE, 1996, p. 27).
146
Dando continuidade ao processo, na aula seguinte, expusemos, no quadro e nas
paredes, todas as produções dos alunos até aquele momento.
A partir disso, fizemos uma retrospectiva dos momentos do projeto: os alunos se
lembraram das propostas, fizeram observações e depois foi sugerida uma produção
de gravura com matriz em isopor (Fotografia 25), síntese das suas produções e
reflexões.
Fotografia 25 - Produção de gravura em isopor em sala de aula
Sobre esse momento, fizemos as reflexões que seguem após os turnos 120 a 127:
(120) P: No trabalho com a gravura, nós pegamos os trabalhos deles e colocamos todos para
serem vistos, perguntamos o que foi feito, o que eles viram... Foi a hora que eles mesmos
ficaram admirados com seus trabalhos, fazendo a leitura das próprias imagens. Foi muito
interessante porque eles recordaram as coisas, nós fizemos um retrocesso, todas as etapas...
Depois disso, foi oferecido a eles o modo alternativo de fazer o carimbo. Pedimos que
continuassem abordando os sentimentos, aí foi oferecida a técnica.
(121) I: Você achou que conforme as propostas foram avançando elas foram se distanciando
do que eles vivenciaram na galeria?
(122) P: Eu acho que não. Até porque pela idade deles, se você está tratando de um mesmo
assunto, eles não vão ficar repetindo a mesma expressão.
(123) I: Mas aparece tantos estereótipos na produção deles, o que você acha?
(125) P: É o sentimento. É amor, coração, estrela, Jesus...
(126) I: É porque a gente está falando de sentimento, repetindo?
147
(127) P: Nessa aula, eles estavam mais interessados em desenvolver a técnica que para eles
era uma coisa mais nova. A novidade da técnica era mais forte do que aprimorar a expressão,
então fazer o desenho do coração era mais rápido.
No turno 120, a professora relembra os passos dados para a elaboração da gravura
em isopor. Nessa ocasião, a partir da descrição da aula, refletimos novamente sobre
as atividades propostas. No turno 121, percebemos a possibilidade de estarmos nos
distanciando dos questionamentos iniciados no espaço expositivo. A professora nos
ajudou a entender que os alunos estavam engajados com a proposta, mas que,
pelos aprofundamentos sugeridos por nós, eles buscavam, em cada atividade,
novos modos de elaborar suas produções. A preocupação com a presença dos
estereótipos nos desenhos e gravuras desses jovens marcou nossa conversa
novamente. Isso nos leva a pensar que muitas vezes nos fixamos muito no produto.
No caso da Arte nos prendemos à produção artística do aluno. Espelhada nela,
ancoramos nossa avaliação sobre o processo. Acreditamos que seja relevante essa
abordagem de avaliação, mas ela não pode ser a única, nem mais importante. É
fundamental que analisemos as falas durante a produção, as conversas que são
estabelecidas entre professor e aluno, os gestos, ou seja, é importante avaliar o
processo interativo, multifacetado, permeado por individualidades, subjetividades e
coletividades.
Em outra oportunidade, na semana seguinte, pensando no aprofundamento das
questões, a professora propôs passar um filme “A vida é Bela”. Ela gostaria que eles
conhecessem o filme para associá-lo aos sentimentos que foram suscitados pelas
obras de Gian Shimada e Gabriel Vieira. Como tínhamos em mente uma proposta
aberta que se desenvolveria ao longo do percurso, começamos a refletir sobre essa
intenção. Percebemos que iríamos nos distanciar muito do que foi vivenciado no
espaço expositivo, então propusemos que retomássemos a questão formal das
gravuras vistas nesse local, relacionando-as com outras obras realizadas por artistas
que de alguma maneira deixaram suas marcas na História da Arte. Escolhemos
enfatizar a questão formal, principalmente as linhas que compõem os trabalhos
artísticos.
148
Para tanto, escolhemos imagens que enfatizavam esse aspecto, dentre elas
estavam: “Os girassóis”, “Auto-retrato em Arles”, ambas de Vincent Van Gogh, além
de “O grito” de Edward Munch. Essas imagens eram conhecidas dos alunos. Nesse
momento, disponibilizamos também reproduções dos trabalhos de Gabriel Vieira e
Gian Shimada.
Fotografia 26 - Alunos observando imagens
Inicialmente, pedimos que os alunos olhassem com atenção as imagens e
percebessem a relação entre elas (Fotografia 26). Algumas perguntas foram feitas: o
que vocês viram? O que tem em comum entre todas as imagens? Muitas respostas
sobrepostas surgiram, porém, rapidamente, um aluno percebeu que todas as
imagens tinham em comum muitas linhas. A seguir, a professora lançou outros
questionamentos: que tipo de linhas existe nas imagens? Vocês já conheciam
algumas dessas imagens? Quais? Percebemos que as imagens eram familiares aos
alunos. Eles reconheciam nelas vários tipos de linhas, nomeando-as. Isso se deve
às outras propostas desenvolvidas com esses jovens, ao longo dos anos, que
estiveram juntos com essa professora.
A Arte-educadora realçou também que, apesar de os artistas não terem vivido em
uma mesma época, eles buscaram enfatizar as linhas em suas obras. Além disso,
ela orientou que os alunos, ao invés de desenhar com lápis, criassem um trabalho
utilizando linhas de papel e barbante, colando-as em uma prancha de papel
(Fotografia 27).
149
No momento da produção, entrevistamos os alunos norteados pelas seguintes
questões: por que escolheu fazer o desenho assim? O que seu trabalho representa?
O seu trabalho tem alguma coisa a ver com as imagens que foram apresentadas
nessa aula?
Fotografia 27 - Produção de colagens em grupo
Dentre os diálogos que estabelecemos com a maioria dos alunos durante essa
atividade, destacamos o que segue, nos turnos 128 a 145. Nele percebemos
questões importantes para a discussão do processo catártico:
(128) I: Por que você escolheu fazer esse desenho assim?
(129) Nayara: Sei lá.
(130) I: O que o seu trabalho está representando?
(131) Nayara: As folhas e eu coloquei árvores sem nada, como se a natureza tivesse
acabando.
(132) I: Mas, quando você fez esse desenho, você pensou em fazer a natureza se acabando?
(133) Nayara: Não.
(134) I: Mas, então, porque você fez esse desenho da natureza se acabando?
(135) Nayara: É porque lá, na minha casa, o meu pai cortou as árvores e eu não gostei, não.
(136) I: E tinha muita árvore na sua casa?
(137) Nayara: Tinha.
(138) I: Ele cortou todas?
(139) Nayara: Cortou.
150
(140) I: Por que ele quis cortar?
(141) Nayara: Porque estava atrapalhando a vista da praia, aí ele foi lá e cortou. E eu chorei.
(142) I: E você acha que o seu trabalho tem alguma coisa a ver com as outras imagens que
você viu?
(143) Nayara: Não.
(144) I: Tem só a ver com o que você está vivendo?
(145) Nayara: É.
Fotografia 28 - Produção de colagem
No diálogo com Nayara, percebemos duas questões importantes: a resistência dela
para justificar sua produção e a revelação de sua experiência de vida como
conteúdo de sua colagem (Fotografia 28). Esse primeiro aspecto relaciona-se
inicialmente com o turno 129, quando Nayara diz não saber o motivo que a levou a
realizar tal produção. Somente após quatro perguntas, ela revelou a origem da
inspiração para realizar a colagem. Isso nos ajuda a pensar novamente sobre a
necessidade de nós, professores de Arte, nos reconhecermos como mediadores.
Somos responsáveis em auxiliar os processos de significação dos conteúdos, em
subsidiar o desenvolvimento das percepções, sensações, interpretações e reflexões
relativas às produções artísticas dos jovens, interagindo e construindo significados.
É fundamental nos colocarmos nessa posição, pois, desse modo, colaboraremos
com o desenvolvimento das percepções e interpretações individuais, das
informações e conhecimentos, das relações com o mundo em que vivemos, num
151
todo articulado e significante, que transforma o conhecimento em fluxo dinâmico da
vida.
Dessa transformação também nos fala Lukács (1966), quando coloca que a catarse
que a obra de arte produz no receptor não se reduz a mostrar novos fatos da vida,
ou a iluminar com luz nova fatos já conhecidos pelo receptor. Ele pontua que, a partir
da catarse, nasce uma visão qualitativa que altera a percepção e a capacidade do
indivíduo. Proporciona que o jovem perceba, nos objetos habituais, coisas jamais
vistas, coisas que durante esse processo sofrem uma nova iluminação, originando
novas conexões que relacionam tudo ao próprio indivíduo (LUKÁCS, 1966, p. 528).
Quando refletimos sobre os turnos 135 a 145, percebemos que o jovem que vivencia
o processo catártico reconhece na sua vida o que é análogo, a experiência vivida,
apropriando-se de conteúdos que dizem respeito a si mesmo. O processo catártico
afeta a pessoa, sua relação e seu comportamento com o mundo, com a vida e com a
sociedade.
Poderíamos pensar essa vivência como uma transformação catártica do indivíduo de
antes da experiência estética, para homem inteiramente tomado pela receptividade,
como nos coloca Lukács? Talvez fosse mais assertivo pensar que, na medida em
que participamos de tais experiências, somos sacudidos no que existe de mais
essencial em nós. Observamos que, para Nayara, integrar esse processo
possibilitou sua reflexão sobre um fato que a incomodava, mesmo que isso não
estivesse diretamente ligado às imagens e às atividades sugeridas por nós. É
fundamental pensar que a Arte amplia o âmbito dos pensamentos e os sentimentos
dos indivíduos, arranca-os da superfície das experiências individuais, traz à tona o
que está objetivamente contido em uma situação histórica (LUKÁCS, 1966).
152
4.1.5 Avaliando o Processo Catártico
O último momento62 da intervenção aconteceu no laboratório de informática e teve
como objetivo relembrar e avaliar todo o processo por meio de fotos e
questionamentos (Fotografia 29). Elaboramos uma apresentação63 para computador
que continha as seguintes questões: quando começamos, o que fizemos? Antes da
exposição, o que nós pensamos? Como foi a visita à galeria? O que nós fizemos?
Quando voltamos da galeria, o que produzimos? Por que ouvimos a música? Nossos
trabalhos... O que fizemos? Nós olhamos... O que criamos? Depois de tudo... O que
pensar? Para que pensar? Para que fazer?
Os alunos responderam a esses questionamentos oralmente, organizados em
duplas. Solicitamos que os slides da apresentação fossem passados somente após
a discussão de cada tópico. As colocações dos alunos foram ouvidas por todo o
grupo.
Fotografia 29 - Alunos no laboratório de informática avaliando o processo
62 Esse momento ocorreu no dia 05-12-2006, com duração de 01h40min. 63 Essa apresentação está no Apêndice D.
153
Outras questões elaboradas por nós foram respondidas em dupla,64 por escrito
(Fotografia 30), e encontram-se tabuladas no Apêndice E. Os questionamentos
foram os seguintes: você acha importante visitar espaços onde ocorrem exposições
de Arte? Por quê? Do que você achou mais interessante? Do que mais gostou? Do
que não gostou? Você modificaria alguma coisa realizada no projeto? Você tem
alguma sugestão para dar continuidade às atividades na aula de Arte?
Fotografia 30 - Alunos em dupla avaliando o processo vivenciado
Os dados coletados, a partir da primeira pergunta do questionário, expressaram que
a grande maioria dos jovens concordou com a importância de visitar espaços
expositivos. Muitas respostas foram interessantes. Escolhemos algumas delas para
analisarmos, principalmente as mais elaboradas e que dialogavam com a presente
pesquisa.
(145) Você acha importante visitar espaços onde ocorrem exposições de Arte? Por
quê?
(146) D1: Sim. Para ter conhecimento sobre a Arte, estar por dentro das novidades artísticas,
e cada vez mais mergulhar no mundo da Arte humana.
(147) D2: Sim, por que nós podemos, através das obras de artes, descobrir novos ideais para
nossas vidas, saber como é feita a obra, os materiais, utensílios e saber mais sobre a vida
dos artistas, se há muita dificuldade em fazer as suas obras.
64 Nomeamos as duplas de D1, D2, D3 e assim sucessivamente.
154
(148) D3: Sim, porque é interessante fixar novas idéias, ou seja, adquirir novos
conhecimentos, conhecer Artes diferentes feitas com materiais diferentes, então é
interessante entrar em espaços como esses.
(149) D4: Sim, porque é importante pra gente conhecer o que as pessoas pensam através da
Arte. Isso, de alguma forma, amplia os nossos conhecimentos, pois o que eles fizeram não foi
um simples desenho, eles passavam sentimentos e outras coisas.
(150) D5: Sim, porque teremos mais conhecimentos das obras de vários artistas e também é
importante porque estaremos vivendo no mundo das Artes. Estaremos criando um mundo
melhor, porque a maioria das vezes a Arte expressa o que sentimos, a realidade, o modo de
ser, etc.
A maioria das respostas à pergunta do turno 145 foi recorrente. Expressou o modo
como esses jovens perceberam a importância da visita ao espaço expositivo. Eles
entenderam o sentido da visita à galeria e, além disso, nos trouxeram conceitos
relativos à Arte que nos surpreenderam. Esses conceitos dialogaram com toda a
proposta que permeou as atividades propiciadas a eles nos diversos momentos da
intervenção. Nos turnos 146 a 150, observamos que o entendimento da Arte, como
conhecimento, marca as respostas desses jovens. Segundo eles, o conhecimento
artístico é conquistado quando entendemos como a obra de arte foi criada, o
material utilizado para sua elaboração, o entendimento da vida do artista, a
descoberta de que a Arte “[...] expressa o que sentimos, a realidade, o modo de ser,
etc.”, conforme se expressou um aluno.
Aliado a isso, no turno 147, a dupla colocou que a Arte pode colaborar com a
formação deles como sujeitos, ajudando-os a descobrir novos ideais para suas
vidas. Podemos pensar que, para a Arte colaborar com a formação do sujeito, é
preciso que esse tenha refletido sobre sua vida, a partir dos aspectos suscitados
pelo objeto artístico. Novamente confirmamos o que nos coloca Lukács sobre o
efeito catártico desencadeado pela obra. Segundo ele, esse efeito é conseqüência
de uma universalidade já plenamente conformada, pois a obra produz um mundo
que não só é particular, ele contém a totalidade das relações sócio-históricas da
humanidade. Após a catarse, como diz o autor no “Depois de cada vivência
receptiva”, o homem é reconstituído, enriquecido, ampliado. Os jovens participantes
do processo perceberam isso, quando disseram, no turno 149, que, por meio da
Arte, ampliamos nossos conhecimentos, porque o artista não é aquele que faz um
155
simples desenho, mas aquele que expressa, em suas produções, sentimentos e,
complementando com a fala de outra dupla no turno 150, a realidade.
Dando continuidade às análises, percebemos que as respostas à segunda questão
do questionário nos trouxeram uma variedade de opiniões. Diante dessas
abordagens diversas, selecionamos as que consideramos mais interessantes para
nossa reflexão:
(151) O que você achou mais interessante?
(152) D2: Eu achei mais interessante foi a facilidade dos artistas fazerem suas Artes e através
delas podermos até nos interessar a fazer Arte.
(153) D3: Além de tudo, a obra dos dois é bastante interessante, expressa sentimentos,
novas idéias.
(154) D4: Que eles fizeram suas obras em cima dos sentimentos e eu acho que pra fazer um
trabalho assim tem que ter muita imaginação, porque não é todo mundo que consegue passar
um sentimento pra o papel. Também achei interessante os tipos de trabalho que a professora
passou pra gente.
(155) D7: Pra falar a verdade, todos são interessantes e despertam o interesse de todos nós,
mas têm umas coisas que não dão para entender.
(156) D8: O jeito deles (Gabriel e Gian) de se expressar, de mostrar, através da sua Arte seu
modo de pensar sobre as pessoas e o mundo.
Nos turnos 152 e 154, os jovens demonstraram que entenderam o artista como
sujeito criativo, habilidoso, sensível e envolvente. Capaz de “passar um sentimento
para o papel”, “de mostrar através da sua Arte seu modo de pensar sobre as
pessoas e o mundo”. A reflexão desses jovens nos remete novamente a Lukács
(1966), principalmente quando esse autor reflete sobre a função do artista. Segundo
ele, o artista é capaz de fazer aparecer uma interpretação mais ampla e profunda da
realidade. Ele parte da realidade, mas, no processo, chega a descobertas mais
abrangentes, transcendendo o mundo das aparências. Ao criar a obra de arte, o
artista elabora um objeto capaz de dialogar e interferir tanto nos seus modos de
percepção quanto nos do receptor.
Com isso, podemos novamente supor, embasada nos dados, que o jovem
participante do processo catártico sensibilizou-se e refletiu sobre muitas questões
156
acerca da Arte. Questões que não seriam discutidas com essa profundidade sem a
presença da Arte e das atividades sistematizadas tanto no espaço expositivo quanto
na escola.
Outro ponto importante do questionário foram as respostas relativas à terceira,
quarta, quinta e sexta questões, apontadas nos turnos 157, 166, 173 e 176.
Observamos uma variedade de opiniões revelando que os sujeitos novamente
trouxeram suas preferências e experiências, indicando que as atividades vivenciadas
por eles, tanto no espaço expositivo quanto na sala de aula, suscitaram isso.
(157) Do que mais gostou?
(158) D1: Gostei mais de estar comparando os trabalhos de Gian e Gabriel.
(159) D2: De saber mais sobre Artes. Eu mesmo não sabia que a gravura eram aquelas
Artes.
(160) D3: Da forma dos dois trabalharem com instrumentos diferentes, um adquire cores,
outro não e se empenham no que fazem.
(161) D4: Gostei de quase tudo, principalmente do trabalho em equipe com tintas, colagem de
barbante e papel em forma de linha. Gostei, enfim, das técnicas que eles utilizaram para fazer
gravura.
(162) D5: De tudo, principalmente na hora que eles deram aqueles pincéis, aquelas tintas e a
vasilhinhas de isopor para nós desenharmos.
(163) D8: De imaginar primeiro e ver a obra depois.
(164) D9: Da imagem do pai e da mãe representando monstro.
(165) D10: Dos trabalhos em grupo.
(166) Do que você não gostou?
(167) D1: Na hora de ir embora.
(168) D2: Eu não gostei de falar na exposição, quando nos deram uma frase e tínhamos que
compará-la com os desenhos.
(169) D5: Eu não gostei muito da figura do Gabriel, por ser uma figura muito complicada para
entender.
(170) D9: Lá não tem cadeira para sentar, isso me deixou com muita raiva.
(171) D11: De fazer o trabalho sobre as pessoas e o cavalo.
(172) D12: Não teve merenda.
(173) Você modificaria algumas das coisas realizadas no projeto?
(174) D2: Eu preferiria que os desenhos ficassem todos em preto e branco.
(175) D4: Sabe, na hora de expressar os sentimentos, eu me enrolei um pouco e agora eu
entendi, queria voltar e fazer tudo de novo.
(176) Você tem alguma sugestão para dar continuidade às atividades na aula de Artes?
157
(177) D3: Não, as aulas que a professora projeta são bastante interessantes, mas tem dia
que é bastante chata.
(178) D9: Desenhar no papelão com aqueles materiais que o Gian Shimada e o Gabriel Vieira
usam.
(179) D10: Sim. Você e a professora continuarem esses projetos com a gente.
(180) D12: Falarmos sobre futebol e dos times rebaixados, exemplo atlético mineiro.
As questões levantadas pelo questionário possibilitaram que os alunos repensassem
o processo vivenciado, favorecendo a expressão de suas idéias sobre os momentos
em que se sentiram mais envolvidos ou não, dessem novas sugestões, além de ter
proporcionado também que eles sintetizassem seus conceitos relativos à Arte.
Sabemos que a quinta e a sexta questões, turnos 173 e 176, poderiam ter sido mais
bem elaboradas para dar margem a uma resposta que extravasasse o sim ou o não.
Apesar disso, percebemos que muitas duplas trouxeram contribuições interessantes
sobre essas questões, como a dupla quatro, que, no turno 175, colocou que se
sentiu confusa nos momentos que requeriam a expressão de seus sentimentos, mas
que sentia vontade de realizar novamente as atividades. Isso demonstra que
colaboramos para o entendimento das questões suscitadas pelas obras de arte, e
que despertamos, pelo menos nessa dupla, o desejo de participar de novas
experiências.
Em contrapartida, podemos perceber, no turno 180, a vontade de outra dupla de
abordar assuntos que não dizem respeito diretamente à escola, por exemplo,
campeonatos de futebol. De certo modo, a fala trazida por esses jovens é irônica,
pois, na medida em que estivemos juntos, percebemos que alguns alunos torciam
pelo time que estava sendo rebaixado para a segunda divisão do campeonato.
Talvez esse tenha sido o meio que encontraram de brincar com os colegas ou até
mesmo com o parceiro que ajudou a responder às perguntas do questionário.
Relacionado com isso, percebemos que a mesma dupla, no turno 172, sinaliza que
não gostou da visita à galeria porque lá não teve merenda. Sabemos que, em alguns
locais de visitação e diariamente na escola, são oferecidos lanches aos alunos.
Como no espaço expositivo visitado não foi oferecido nenhum alimento, essa dupla
imediatamente sentiu falta, revelando sua insatisfação no momento de avaliação.
158
As respostas indicam os diferentes olhares e interesses. Expressaram também
diferentes formas de sentir, de se relacionar com o outro e com o conhecimento, o
que reforça a idéia de que a educação é um espaço de trocas e de construção de
saberes. Nesse processo, a Arte é participante fundamental, visto que é uma forma
particular de perceber e expressar a realidade vivida. Nesse contexto, percebemos
que a catarse é um processo, é parte da experiência estética que se coloca como
uma possibilidade de destruição de formas reificadas e reificantes de perceber e
participar da realidade.
159
CONSIDERAÇÕES
As abordagens contemporâneas que orientam o Ensino da Arte no Brasil apontam
um caminho singular: a formação de cidadãos sensíveis e críticos capazes de refletir
sobre si e sobre o mundo, a partir das produções artísticas. Isso implica desvelar os
discursos fechados proporcionando, tanto na escola quanto no espaço expositivo, a
experiência estética como princípio libertador, exercitando a interpretação, o diálogo
em processos interativos e catárticos que se dão entre as obras de arte e os
sujeitos.
Inserimo-nos nesse debate, localizamos nossa pesquisa na aproximação das
práticas de ensino na sala de aula e em espaços expositivos. Portanto, optamos por
discutir o processo catártico vivenciado por alunos, no encontro com a obra de arte.
Nesse contexto, buscamos compreender como se realizou o processo catártico entre
a obra de arte e o jovem da 8ª série do ensino fundamental, na parceria entre escola
e espaço expositivo.
A partir de nossos estudos, chegamos à compreensão, assim como junto com
Lukács (1966), de que a obra de arte produz no indivíduo a catarse. Esse efeito
desencadeia um choque entre o mundo refletido esteticamente na obra de arte e o
cotidiano, colaborando com a transformação do homem, trazendo para o indivíduo
novos conteúdos que aumentam seu tesouro vivencial, sacudindo sua subjetividade,
suspendendo-o da cotidianidade, colocando-o em contato com o gênero humano.
Essa elevação faz com que o indivíduo reconheça sua própria essência, sua história
no processo de desenvolvimento do ser humano. Com isso, o receptor é
reconstituído, enriquecido, ampliado e transformado. Portanto, consideramos que,
“Depois da vivência receptiva”, os efeitos transformadores se convertem em
elemento de vida, possibilitando que o receptor estabeleça relações entre essa
experiência e sua vida, repensando suas relações com o mundo, consigo mesmo e
com as pessoas.
160
Contudo, quando iniciamos nossos estudos sobre a catarse, tínhamos a expectativa
de que a definição desse conceito fosse nos orientar para a constatação empírica
dos momentos pontuais em que ele ocorria. Porém, na medida em que as propostas
da intervenção foram acontecendo, percebemos que outros aspectos estavam
implicados no “momento” catártico. Inicialmente, observamos que não poderíamos
pensar em um momento pontual de catarse, um “insight”. Entendemos que a catarse
não é um momento de depuração, não é um ato de prazer ou dor intenso, não é a
emoção gratuita da novela das oito que faz chorar e sorrir, em que o sujeito se
identifica com o herói da história apresentada, abandonando-se em detrimento da
empatia pelo protagonista, transferindo para ele a criação que lhe cabe e abdicando
de seu próprio ponto de vista. Percebemos que a catarse se traduz num processo de
encontro entre sujeitos (obra e receptor), de quebra de uma realidade alienante,
proporcionando trocas de saberes e afetividades. Dentro desse processo,
constatamos que a transformação do indivíduo não ocorre instantaneamente.
Conforme percebemos durante a análise dos dados da pesquisa, ela é gradual e
variável, pois, como dissemos, acontece dentro de um processo de encontros e de
convívio com a obra de arte, que ocorre na interação social.
Consideramos que o objeto estético constitui uma nova realidade, uma
particularidade, capaz de dialogar e interferir nos modos de percepção do seu
criador e, consecutivamente, do seu receptor. Portanto, a relação entre obra de arte
e receptor implica, necessariamente, uma relação social, uma troca entre sujeitos,
um diálogo tanto com o autor da obra quanto com as vozes sociais que ecoam na
obra, permitindo desencadear um processo reflexivo fundamental na construção
social do indivíduo, provocando reflexões transformadoras sobre estruturas
alienantes, manipuladoras e obliteradoras da realidade, proporcionando uma nova
atitude diante dos eventos cotidianos. Consideramos essa reflexão fundamental na
formação do indivíduo, pois sabemos que nossa sociedade está calcada na
espetacularidade dos acontecimentos, em que o espetáculo da realidade, por vezes,
substitui a própria realidade. Nesse contexto, um olhar aguçado, aliado a um senso
crítico apurado, colabora para o estabelecimento de novas relações com essa
realidade e com as diferentes manifestações espetaculares que buscam retratá-la.
161
Tendo em vista essas considerações, ao analisarmos os dados empíricos,
observamos que existem aspectos essenciais para que ocorra o processo catártico.
Não estamos querendo dizer que esses aspectos sejam passos que devam ser
seguidos para que ocorra esse processo. Não se trata de criar fórmulas para a
prática pedagógica. O que estamos falando é que esses aspectos ficaram em
evidência em muitos momentos da intervenção realizada, tanto no espaço expositivo
quanto na sala de aula.
Percebemos que é preciso considerar que os indivíduos estão sempre carregados
de impressões, de vivências que colaboram com a sua forma singular de entender
as imagens artísticas. São sujeitos com uma história de vida, impregnados por
experiências anteriores, associações, lembranças, fantasias, afetividades e
interpretações. Esse repertório vivencial influi diretamente nos modos como os
indivíduos realizam suas produções artísticas e experimentam esteticamente as
obras de arte. Portanto, o processo de criação que envolve produzir e vivenciar a
Arte não abarca apenas o campo da prática, mas também a representação
emocional e subjetiva. As relações entre os processos criativos e a realidade, a
emoção e a subjetividade ficaram evidentes em muitos momentos da intervenção,
reveladas pelas interações, produções e reflexões dos jovens. Além disso,
percebemos que o objeto artístico se complementa quando o receptor elabora a sua
compreensão da obra. Portanto, a totalidade da experiência estética inclui a criação
do sujeito, na relação entre autor, receptores e obra. Desse modo, a experiência
artística não está contida completamente no objeto, nem na vivência do artista, nem
na percepção do receptor, mas na relação entre esses aspectos. Isso reforça a idéia
de que a compreensão da obra de arte, além de ser um processo ativo, é também
um processo criativo, pois aquele que a compreende participa de um diálogo,
continuando a criação do artista.
Ligado a isso, é fundamental confirmar a importância dos espaços, escolar e
expositivo, como locais que buscam estimular a capacidade criadora do jovem, no
sentido de proporcionar a esse indivíduo experiências qualitativamente distintas das
vividas cotidianamente por ele. É preciso ter claro também que cabe a esses
espaços estarem engajados na elaboração de propostas pedagógicas que
possibilitem aos jovens o encontro com originais de Arte, instigando-os a pensar
162
sobre suas vidas, sobre a Arte, revendo suas proposições, seus comportamentos e
sua visão de mundo, buscando, dessa forma, além da conscientização, a
apropriação de modos mais sofisticados de analisar e refletir sobre os elementos da
realidade. Aliado a isso, é necessário que tais propostas colaborem com a educação
do sensível, levando os indivíduos a descobrirem formas inusitadas de sentir e
perceber o mundo, apurando seus sentimentos e percepções acerca da realidade
vivida.
Sabemos que é preciso também que a escola e o espaço expositivo reafirmem seus
papéis na sociedade. Cabe aos espaços expositivos buscar, em seus setores
educativos, aproximar os objetos artísticos do público, efetivando sua função
educativa, cultural e social, promovendo a cidadania e o acesso e à apropriação dos
bens culturais constituintes da nossa história. Do mesmo modo, é função da escola
dar condições para que os indivíduos se apropriem das produções científicas e
artísticas elaboradas pelo homem. É responsabilidade da escola proporcionar
momentos em que os indivíduos possam se apropriar dessas produções para se
reconhecerem como integrantes do gênero humano, capazes de transformar suas
realidades sociais, históricas e culturais.
Na busca pela efetivação dos papéis da escola e do espaço expositivo, algumas
aproximações entre esses locais vêm sendo realizadas, principalmente por meio
contato entre escola e os setores que agendam visitas aos espaços expositivos.
Porém, é preciso que ocorra uma parceria colaborativa entre essas instituições para
que sejam proporcionadas, nesses locais, vivências estéticas que busquem desde a
preparação até o aprofundamento de tais experiências. Isso implica proporcionar
momentos intensos de encontro com a Arte que integrem o processo catártico. A
reflexão gerada por esta pesquisa nos fez ver que esse processo é reiterativo. São
idas e vindas pelo espaço expositivo e pela escola, dando continuidade a um ciclo
de vivências estéticas que participam da formação sensível e crítica do jovem. Além
disso, estabelecer parceria entre a escola e o espaço expositivo implica também
firmar uma parceria entre as pessoas que integram tais instituições, buscando,
principalmente, alternativas para contribuir com suas práticas pedagógicas. No caso
da pesquisa em questão, a parceria colaborativa deu-se entre a Arte-educadora do
espaço expositivo e a professora de Arte da escola de ensino fundamental.
163
Sabemos que, nesse encontro de profissionais, não há igualdade absoluta, uma vez
que trazemos diferentes conhecimentos para a colaboração, mas procuramos que,
nas relações estabelecidas, nas propostas elaboradas em conjunto,
reconhecêssemos e respeitássemos a contribuição do outro. Desse modo,
partilhamos nossos pontos de vista, nossos valores e bases teóricas, buscando
planejar e executar propostas de Ensino da Arte que buscassem possibilitar aos
jovens da 8ª série a participação em processos catárticos, tendo esses processos
como uma contribuição para a possibilidade de destruição de formas alienantes de
perceber e participar da realidade.
É preciso, portanto, reconhecer e efetivar a participação do monitor e do professor
como mediadores e não como transmissores de informações. É necessário que
sejam estabelecidas relações de co-autoria entre os sujeitos, em que os saberes
estejam interligados e valorizados, criando espaço para que o aprendizado aconteça
dentro de um processo de interação, estreitando-se as relações, dando condições
para que todos se desenvolvam, se transformem e sejam transformados. É
fundamental também estarmos atentos às respostas e questionamentos trazidos
pelos jovens. Tanto o monitor quanto o professor devem participar dos processos de
significação dos conteúdos, estimulando o desenvolvimento das percepções,
interpretações e reflexões relativas às produções dos alunos, às suas falas,
interações com os outros e com os objetos artísticos, transformando esse
conhecimento em fluxo dinâmico de vida.
No decorrer dos momentos da intervenção, nossas propostas de aprofundamento
das questões vivenciadas no espaço expositivo permitiram que os alunos
repensassem a importância de estarem participando das atividades,
conscientizando-se da relevância das experiências vividas. Muitos indícios desse
fato vieram à superfície após a análise dos dados coletados, possibilitando-nos
entender que existiu, por parte de muitos alunos, a valorização da Arte, a
conscientização da sua importância na formação dos indivíduos e o repensar de
muitas questões relativas à vida cotidiana. Podemos chamar isso de transformação?
Acreditamos que essas reflexões fazem parte de um contínuo processo de formação
e de transformação vivenciado por todos nós. Procuramos estimular os jovens a
vivenciar experiências que os levassem à reflexão. Reflexões distintas, mas que
164
colaboraram com a construção das relações que envolveram o processo de ensinar
e aprender Arte, em uma proposta de nos desenvolvermos à altura das máximas
possibilidades existentes no gênero humano.
165
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170
APÊNDICE A – ENTREVISTA COM GABRIEL VIEIRA E GIAN
SHIMADA
ENTREVISTA COM GABRIEL VIEIRA
– Contem-nos um pouco sobre os ateliês de gravura da EBA - UFRJ e sobre o
encontro de vocês. Como e quando passaram a trabalhar juntos? O que os
mantém unidos?
– Conhecemo-nos em encontros casuais ligados à gravura, vernissages, talvez. O
primeiro contato mais direto para tratar de uma parceria de trabalho foi no Atelier de
Gravura do Sesc da Tijuca, onde Gian também leciona. Fui seguindo
recomendações dos responsáveis pelos ateliers de gravura da Escola de Belas-
Artes, Marcos Varela e Kazuo Iha, atrás de uma pessoa de boa índole e apta a
travar uma batalha a meu lado: a abertura da Oficina de Gravura Carlos Oswald, no
Liceu de Artes e Ofícios. O engraçado é que nosso trabalho não começou em uma
convivência diária na Escola de Belas-Artes, como seria de se esperar, visto que
Gian havia se formado há mais de dez anos. Não posso deixar de comentar que,
embora não fosse dentro do limite de prensas e amigos da Escola, foi sob sua
bênção.
– Falem-nos sobre o desafio de reabrir a Oficina do Liceu de Artes e Ofícios.
Que tipo de trabalho vocês desenvolvem e quais são os objetivos? Por que
resolveram homenagear Carlos Oswald? Vocês observam alguma conexão
entre o trabalho do mestre Carlos Oswald e o de vocês?
– Foi um longo, extenso e duradouro ano. O primeiro contato foi feito por mim. Fui
convidado a conhecer a oficina com pretensões de reabri-la. Como já disse, não era
algo tão simples de ser feito: era preciso alguém com igual entusiasmo e força de
171
vontade, mas, além disso, experiência. Era o que me faltava. Freqüentei a escola
durante poucos seis anos e meio, onde quatro e tantos passei dentro do atelier. Não
era tempo suficiente para adquirir experiência e conhecimentos necessários para
levar adiante uma tarefa como essas sozinho. Por sinal, era o que meus
“consultores” – Marcos Varela e Kazuo Iha – não recomendavam. Seguindo seus
conselhos, fui procurar o Gian e, pelo visto, deu tudo certo. As dificuldades de
abertura são inúmeras. O funcionamento é uma questão ainda mais delicada. É um
investimento tanto para a gente, quanto para o liceu. O trabalho ininterrupto tem
trazido aumento no número de alunos que vêem a oficina como um segundo lar. E
assim mantemos o atelier em ascensão. Carlos Oswald se orgulharia. Foi o primeiro
a ensinar gravura artística em nosso país, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de
Janeiro. Em 1914, era na avenida Rio Branco a sede da Sociedade Propagadora de
Belas-Artes, onde ficavam as instalações da oficina de Carlos Oswald. Apesar de ser
pintor, foi na gravura que se tornou renomado, tendo a responsabilidade de um
pioneiro. Adquiriu seus conhecimentos na Europa. Tomando em consideração seu
principal trabalho como sendo o ensino da gravura – não descartando sua qualidade
autoral, como gravador, pintor e desenhista – elevo-nos a um patamar próximo ao
dele: o de desbravadores. Em condições que não são ideais, assim como as do
mestre, vamos firmando a arte de gravar.
– Comentem o que representa, na trajetória de vocês, a gravura em metal (Gian
Shimada) e a xilogravura (Gabriel Vieira), e por que a escolha específica
dessas técnicas para essa exposição?
– A xilogravura exerce um enorme fascínio sobre mim. Às vezes me pergunto por
quê. Creio que devem ser os valores de branco permeando os negros ou a luz
trazida por uma lâmina bem afiada na superfície escura. Prefiro pensar que eu gosto
mesmo. E encaro cada matriz como um novo desafio à minha altura – admito que
algumas vezes não passo de uma pequena pedra diante de uma montanha. Tem
sido essa minha produção mais atual, mas ando fazendo também gravura em metal.
Tomei, inclusive, a liberdade de acrescentar na minha parte da mostra alguns metais
recentes, feitos no tempo que estivesse com a mão direita – a mão boa – engessada
em virtude de uma fratura.
172
– Vocês se consideram “filhos” de uma escola expressionista. Quais são as
referências que vocês buscam na história da gravura mundial e brasileira?
Quem são os seus mestres inspiradores?
– Questão difícil. Não sei se posso me considerar filho, sem trazer à tona alguns
traços paternos. Porém, a comparação com os mestres da escola expressionista é
um bocado exagerada. Continuo com meu pé no chão, fazendo meus trabalhos.
Deixo para aqueles que se dedicam ao trato crítico essas definições. Sinto-me mais
à vontade gravando. E gravar como Lívio Abramo não é pra qualquer um.... ou
Oswaldo Goeldi. Posso citar algumas boas dúzias de outros nomes, como Segall,
Kate Kolwitz ou Fayga Ostrower, sem ao menos encontrar traços deles em meu
trabalho. Prefiro usar uma realidade mais palpável e influenciar-me por gravadores
mais próximos, aqueles com quem convivo. O próprio Gian e uma das minhas
influências que geram bons frutos. Não posso deixar de citar Kazuo Iha, Adir Botelho
e, principalmente, Marcos Varela. Todos foram e ainda são mestres para mim.
– Como vocês vêem a produção atual da gravura no Brasil? E no Rio de
Janeiro? Citem artistas que vocês consideram importantes.
– Muito bem, obrigado. No Rio, melhor ainda – nada pessoal com os capixabas. A
nossa formação é muito boa. Neste quesito, enquadro também os autodidatas.
Posso usar, como ilustração, um salão do qual fiz parte na Suécia ano passado. A
maior cota de participantes era do Brasil. Fica muito difícil citar nomes no nosso
campo, pois seria ingrato deixar alguns de fora. Por isso, nomeio apenas alguns
poucos, já considerados mestres: Gilvan Samico, Anna Letícia, Renina Katz,
Marcelo Grasmman, Maria Bonomi, Evandro Carlos Jardim. Ainda existe a nova
geração na qual eu tento defender alguma página a duros golpes.
– Vocês têm alguma produção artística além da gravura? Comentem. Quais
são os elementos recorrentes no conjunto das obras?
– Atualmente, o que tenho produzido é gravura. Desenhos sempre, mas os tenho
como passos para uma nova gravura. Rabisco boa parte do tempo e em suportes
173
não muito agradáveis ao circuito comercial de obras de arte. Guardo esses farrapos
para mim.
– Comentem o projeto da exposição “Metal Madeira”. Escolhas técnicas,
temática, desenvolvimento prático e, especialmente, o processo de criação.
Detalhem cada momento nas etapas de produção dos trabalhos.
– O projeto nasceu da necessidade de mostrar nossa produção. A convivência e o
conhecimento do nosso trabalho nos levou a ver com bons olhos a reunião de
nossas obras num mesmo espaço expositivo. Deixamo-nos livres para escolher
nossos próprios trabalhos dentro de nossa produção atual. Não há mistério algum na
nossa produção. Seguimos o conceito de obra gravada e nos utilizamos das mais
diversas formas de interferência sobre cada matriz, sendo cada trabalho único
dentro de nossa produção. Por mais que ocorra correspondência de técnica como
de temática em meus trabalhos, não sigo nenhum conceito de “série de trabalhos”.
Apenas produzo o que passa pela minha cabeça e minha mão é capaz de realizar
com o auxílio de algum instrumento.
– Detalhem o ambiente de trabalho de vocês. O que é necessário para que
vocês iniciem um trabalho de gravura?
– Trabalhamos em um atelier coletivo, embora não seja exclusivamente esse meu
ambiente de produção. Gravo onde tiver tempo e vontade, ainda mais com a
praticidade do tamanho de minhas matrizes. Como atelier coletivo, há limites de
respeito ao gravador ao lado. Nada muito burocrático ou consensual demais, apenas
respeito. Afinal, para gravar, é necessária apenas uma boa matriz e meia dúzia de
ferramentas um tanto quanto práticas de transportar.
– Como vocês conheceram o Espaço Cultural Egydio A. Coser e por que
decidiram se inscrever para a seleção? O que esperam do público capixaba?
– Em 2003, estive em Vitória a trabalho. Procurava espaços expositivos e encontrei
o Espaço Cultural Egydio A. Coser. Achei a galeria intimista, própria para pequenos
formatos. Todavia, o que mais me chamou a atenção foi a atividade educacional
174
desenvolvida por vocês. Fiquei impressionado pelo formato das atividades, pois
tentava implantar, na época, sistema semelhante aqui no Rio de Janeiro, mas não
obtive sucesso. Acho realmente que, para que exista Arte, deve haver um público
fruidor de Arte. Essa atividade formadora é fundamental para a população de um
país como o nosso. Apenas por meio do conhecimento poderemos desenvolver
nossa terra. A Arte é um bom meio. Elevo ainda mais a gravura, como obra múltipla,
o que a torna mais acessível. Quanto ao público capixaba, espero que visitem nossa
exposição. Não tenho a pretensão de agradar a todos. Espero, sim, que
compreendam a necessidade do artista de produzir. Espero que conheçam a
gravura e que, assim como eu, apaixonem-se.
– Fale-nos sobre o seu passado.
– Nasci em uma família sem vínculos com a produção artística. Queria ser jogador
de futebol, como qualquer garoto do subúrbio do Rio de Janeiro, e flertava com a
pilotagem na aviação civil e militar. Na adolescência, fui tomando mais gosto por
papéis e lápis. Mais de uma vez, durante o ensino médio, minha entrada na
faculdade foi posta em questão, pois não parava de desenhar em sala de aula.
Passado o tempo de dúvida com relação ao que fazer da vida, encontrei-me
gravando. Meu irmão tem o costume de dizer que, se eu não vivesse disso – da
produção artística –, de outra coisa que não seria.
– Qual foi o primeiro contato de vocês com as Artes Plásticas? E com a
gravura especificamente? O que os seduziu para que se tornassem artistas
plásticos?
– Meus primeiros contatos foram em esparsas visitas a locais de exposições durante
o colégio. Muito pouco incentivo dentro da escola e apoio familiar incondicional
lançou-me diante das Artes. A gravura entrou por acaso, mas prefiro ter tal
acontecimento como sorte grande: um equívoco no preenchimento da inscrição do
vestibular e caí no melhor lugar que alguém em queda livre pode se manter de pé e
alçar vôos inimagináveis: um atelier. Logo que me defrontei com a gravura, comecei
a vida.
175
– O que vocês lêem (que tipo de texto e autores, e o que ouvem (que tipo de
música e nomes dos músicos) enquanto estão desenvolvendo os trabalhos de
gravura? Isso muda de acordo com o trabalho ou vice-versa?
– Com relação a leituras, ultimamente tenho lido livros sobre técnica de gravura.
Nada mais usual! Quanto à música, vou desde clássica, a um rock mais light,
daqueles que se ouve no rádio. Na maior parte do tempo que passo produzindo,
meu dial está na MPB, passando por Bossa, Chorinho e Samba.
– Vocês vivem da própria arte? Por quê? Comentem.
– De fato, vivo de Arte. Não apenas da minha produção, mas de ramificações da
produção artística e ensino de Arte. Faço apenas trabalhos gratificantes. Admito que
tenho um pouco de sorte neste ponto. Não que esteja acumulando riquezas, pelo
contrário, não é nada fácil viver de Arte. Até aqueles que ganham quantias
exorbitantes – sem discriminar qualquer direcionamento da produção artística –
começaram de algum ponto onde certamente ganhavam bem menos que depois da
consolidação de sua carreira. Porém, independente do fator financeiro, apesar da
impossibilidade de descartá-lo, existe o amor à Arte. Isso é incomensurável e
incalculável. E gostar do que se faz é um fator importante para o sucesso pessoal e
profissional.
ENTREVISTA COM GIAN SHIMADA
– Contem-nos um pouco sobre os ateliês de gravura da EBA - UFRJ e sobre o
encontro de vocês. Como e quando passaram a trabalhar juntos? O que os
mantêm unidos?
– Os ateliês do Curso de Gravura da Escola de Belas-Artes – UFRJ, pela excelência
de seus professores, artistas e gravadores atuantes e pela sua orientação didática,
vêm, ao longo dos anos, dando, além de uma formação técnica de alto nível, uma
verdadeira formação ética, graças a um convívio de mútuo companheirismo e
profissionalismo. Todo fim de ano, antigos e novos alunos reúnem-se para festejar o
176
dito “Natal dos Órfãos”, festa que remonta aos tempos de universitário longe de casa
do então professor de Litografia, Kazuo Iha. Acho que, em um desses encontros,
conheci o grande companheiro que é o Gabriel, sempre muito presente, atuante e
bem-humorado. Constato que, mesmo após a formatura, as amizades do “Clã da
Gravura” continuam e as boas lembranças são compartilhadas por alunos de
diferentes gerações. Como disse o Gabriel em sua entrevista, este foi me procurar
na Oficina de Gravura do SESC-Tijuca, em busca de apoio e orientação sobre a
reabertura da Oficina do Liceu de Artes e Ofícios. Ofereci pronto apoio e daí
começamos essa caminhada e luta ombro a ombro pela arte e sua divulgação.
Desde antes de formado, venho lecionando e atuando no campo da gravura, nos
mais diversos espaços; e, hoje em dia, poder continuar, junto a um artista de uma
nova geração, muito me estimula e alimenta, pois caminho que se trilha junto,
encurta e anima a estrada.
– Falem-nos sobre o desafio de reabrir a Oficina do Liceu de Artes e Ofícios.
Que tipo de trabalho vocês desenvolvem e quais são os objetivos? Por que
resolveram homenagear Carlos Oswald? Vocês observam alguma conexão
entre o trabalho do mestre Carlos Oswald e o de vocês?
– Durante quase um ano, fomos coordenando e realizando as mudanças e reformas
necessárias à reabertura da Oficina, mesmo sem nenhum contrato ou renumeração.
E, graças ao incondicional apoio e crédito da instituição do Liceu de Artes e Ofícios,
seus funcionários e o carinho e incentivo de sua vice-presidente, professora Myrian
Freire Dias Costa, e de seu pai, professor Sylvio Vianna Freire, presidente do Liceu,
inauguramos a oficina no final de 2004. Atualmente mantemos a Oficina aberta às
terças, quartas, quintas e sábados, aos que procuram orientação profissional,
oferecendo condições técnicas para desenvolvimento da criação de trabalhos em
xilogravura, gravura em metal e litografia, visando, assim, sua permanência,
desenvolvimento e divulgação em todos os campos. Como Carlos Oswald foi o
pioneiro no ensino da gravura artística no Brasil, e ainda nas oficinas do Liceu de
Artes e Ofícios, nada mais justo do que esta homenagem. Realmente, quanto à
conexão, sinto que somos os perpetradores dessa vocação, a de ensinar, praticar e
divulgar a gravura, sejam quais forem as adversidades.
177
– Comentem o que representa na trajetória de vocês a gravura em metal (Gian
Shimada) e a xilogravura (Gabriel Vieira), e por que a escolha específica
dessas técnicas para essa exposição?
– Estamos sempre produzindo tanto a gravura em metal quanto a xilogravura e,
graças à Oficina do Liceu de Artes e Ofícios, vamos retomando também a litografia.
Mas, dada a especificidade e valores dessa duas técnicas, decidimos priorizá-las,
para bem contrastá-las e expormos seus recursos e valores, visto serem inversas
tanto na gravação, quanto da impressão.
– Vocês se consideram “filhos” de uma escola expressionista. Quais são as
referências que vocês buscam na história da gravura mundial e brasileira?
Quem são os seus mestres inspiradores?
– Por sua forma e conteúdo, a gravura pode se considerar sempre expressionista,
pois exibe uma visão fortemente individual do real e/ou imaginário de seu realizador.
Não buscamos referências, mas sim revelamos influências que nos remetem a
experiências estético-visuais de nossa individualidade.
– Como vocês vêem a produção atual da gravura no Brasil? E no Rio de
Janeiro? Citem artistas que vocês consideram importantes.
– Incessante, mesmo quando em pequena escala de produção, e de grande
qualidade. No Rio, essa produção se mantém constante e inovadora graças à
dedicação de seus artistas e, principalmente, à Escola de Belas-Artes. São muitos, e
podemos começar a extensa lista com Marcelo Grassmann, Adir Botelho, Goeldi,
Gilvan Samico, Marcos Varela, Darel Valença, Roberto Magalhães, Kazuo Iha, Lívio
Abramo, Renina Katz, Fayga Ostower, Goya, Rembrandt, Escher, Pollock, Basquiat,
João Câmara, David Hockney, Berber, Modigliani, Francis Bacon...
– Vocês têm alguma produção artística além da gravura? Comentem. Quais
são os elementos recorrentes no conjunto das obras?
178
– Sim, alguns desenhos. Quase sempre a figura humana (rostos e bustos), crânios e
ossos, morte e vida. Nas outras questões, estou de acordo com o Gabriel, e acho
que ele responde bem por ambos.
– Fale-nos sobre seu passado.
– Nasci em São Paulo, capital, apesar de nesta época meus pais já residirem no Rio.
Mas, a cada novo neto que nascia, o apoio da família era fundamental. Considero de
suma importância minha família, amigos, professores e alunos, ou seja, toda essa
"cadeia" que formamos e que podemos contar, dar e receber. E mantenho as portas
abertas para ampliar essa corrente. Grande alegria tinha na casa de meus avós em
São Paulo, onde passava as férias de verão. Junto com meus irmãos e primos,
inventávamos de tudo: tínhamos esconderijos, planejávamos armadilhas,
"construíamos" naves espaciais e realizávamos as mais diversas transgressões. O
acesso ilimitado à TV era muito bem aproveitado e graças a ele pude assistir com
fidelidade aos mais diversos seriados da década de 1970, além da programação
noturna de filmes. Na minha infância, aqui no Rio, lembro-me com alegria das
freqüentes idas ao MAM – tanto nas exposições quanto na cinemateca – e aos
jardins do Aterro do Flamengo. Meus professores, no curso de gravura na UFRJ,
foram fundamentais para minha formação artística – Adir Botelho, Kazuo Iha e
Marcos Varela – e também outros ótimos professores da Escola de Belas-Artes –
Celeida Tostes, Lourdes Barreto, Lygia Pape – além dos grandes amigos que lá fiz.
A designer e artista plástica (aquarelista) Sonia Ota me deu um grande apoio tanto
no início do curso como no período pré-profissional. Apoio que se traduz em
empréstimo do seu ateliê para começar minhas aulas, trabalhos conjuntos de
impressões em serigrafia, além das freqüentes idas às vernissages e exposições da
década de 1980, pouco antes de prestar vestibular. Contam que meu bisavô
paterno, Luigi Brotto, pintava carroças, ou seja, as decorava com os grafismos e
imagens ao gosto da época. Dizem haver um catálogo dessas imagens por ele
executadas. Do meu avô materno, Yoshiharu Shimada, ficou gravada a constância,
a lealdade e o subentendido espírito poético. Mas minha escolha pela Arte foi
decidida bem antes de prestar vestibular. Acredito que a liberdade e o estímulo que
a Arte me acenava tenha formado o primeiro impulso nesta direção, apesar de
desenhar desde pequeno. E, junto a esse espírito artístico que permeava a minha
179
vida, o gosto por lidar com diversos elementos, o envolvimento em montar modelos
de aviões, a paixão incansável pela leitura, o prazer das viagens e passeios, com
toda aventura possível e imaginária, foram os elementos primordiais para essa
escolha profissional.
– Qual foi o primeiro contato de vocês com as Artes Plásticas? E com a
gravura especificamente? O que os seduziu para que se tornassem artistas
plásticos?
– Através das aulas de Artes no colégio e, primeiramente, nos passatempos em
casa: desenhar, recortar e colar; leitura de gibis e assistir a desenhos animados; o
desejo de copiar o que via e imaginava; idas à exposições, etc. O primeiro contato
com a gravura foi através de uma xilogravura que executei nas aulas de Artes na
quinta série do primeiro grau, no colégio Salesiano, em Niterói. Bem, depois de todo
esse percurso, formei-me, continuei acreditando e investindo no meu trabalho: na
Arte e no ensino dela.
– O que vocês lêem (que tipo de texto e autores, e o que ouvem (que tipo de
música e nomes dos músicos) enquanto estão desenvolvendo os trabalhos de
gravura? Isso muda de acordo com o trabalho ou vice-versa?
– Livros sobre artistas são sempre bem-vindos (Égon Schielle, David Hockney,
Francis Bacon, Gilvan Samico, Oswaldo Goeldi, Marcelo Grassmann, etc.) porque,
através de outros artistas, educo o meu olhar crítico e me estimulo à produção de
minha obra. Gosto de ler poesia, contos e romances tanto nacionais como
estrangeiros (Veríssimo, Kerouack, Drummond, Hermann Neville, Jorge Luis Borges,
Cortázar, Ítalo Calvino, Gaston Bachelard, Fernando Pessôa, Guy de Maupassant,
Alan Poe, Ray Bradbury, Jack London, Monteiro Lobato, Fernando Sabino, Mário
Prata, Loyola Brandão, Charles Dickens, Vinícius, etc. Ouço quase de tudo um
pouco: clássicos, MPB, rock (antigo e atual), jazz, instrumental, progressivo, pop.
Nesse universo, muitos artistas são importantes e fica difícil citar todos.
Ultimamente, tenho escutado Jack Jonhson e Zeca Baleiro. Geralmente deixo o
rádio ligado enquanto estou trabalhando. Em um clima mais expansivo, posso
180
passear pelas rádios sem que isso me atrapalhe. Mas, na hora da contemplação e
reflexão, o silêncio é fundamental.
– Quais são as correspondências que você vê nos seus trabalhos?
– Seriam da estética expressionista ou expressionista fantástica, com elementos
figurativos do mundo real e irreal: choque e devaneio, vida originando-se da morte e
vice-versa, Eros e Tânatos, criação e destruição, preto e branco.
– Vocês vivem da própria arte? Por quê? Comentem.
– Bem que tentamos. Não no sentido comercial, pois não pertencemos a nenhuma
galeria, protetor, investidor, marchand, crítico, acadêmico ou curador. Realizamos
nossas obras como processo criativo de construção de nossa linguagem, como,
aliás, penso ser o do artista comprometido com sua obra. Até meados do ano
passado, trabalhava como supervisor no Laboratório de Representação Gráfica
(oficina de serigrafia e gravura em metal) na PUC-RJ. Atualmente, sou professor
substituto, no curso de gravura da Escola de Belas-Artes da UFRJ. Ministro um
curso livre de gravura no SESC, no Liceu de Artes e Ofícios e às vezes faço
trabalhos de impressão para outros artistas. Mesmo assim, sempre fica faltando.
Não vivemos do fruto de nossa criação artística, mas sim de nossa formação e
experiência profissional. Temos esperança e planos de virar esse jogo, para, além
de nos manter, continuar produzindo, concorrendo, participando de salões, expondo
regularmente e divulgando ainda mais nosso trabalho.
181
APÊNDICE B – CADERNO DE ARTE
OS ARTISTAS
GABRIEL VIEIRA
Ainda criança, o artista sonhava em ser jogador de futebol ou piloto de avião. Hoje,
bacharel em Gravura pela Escola de Belas-Artes da UFRJ, Gabriel se considera
uma pessoa privilegiada: vive de seu trabalho artístico e, o melhor, encontra neste
ofício um enorme prazer: “Gostar do que se faz, é um fator importante para o
sucesso pessoal e profissional”.
Participante ativo de mostras coletivas e salões no Brasil e no exterior, o artista só
começou a se interessar pela arte na adolescência: “Fui tomando mais gosto por
papéis e lápis. Mais de uma vez durante o Ensino Médio, minha entrada na
faculdade foi posta em questão, pois não parava de desenhar em sala de aula”.
Algumas visitas em exposições de Arte realizadas pela escola também podem ter
contribuído para que Gabriel optasse pelo curso de Belas-Artes, quando prestou
vestibular, mas, segundo o artista, essa decisão foi tomada, principalmente, devido
ao “apoio familiar incondicional” que recebeu neste momento tão cheio de dúvidas.
Mas, escolhido o curso, ainda faltava decidir qual linguagem artística dentre as
inúmeras oferecidas. Pintura? Escultura? Desenho? Na verdade, a opção pela
gravura não foi decidida por Gabriel e sim pelo acaso:
Prefiro ter tal acontecimento como sorte grande: um equívoco no preenchimento da inscrição
do vestibular e caí no melhor lugar que alguém em queda livre pode se manter de pé e alçar
vôos inimagináveis: um atelier. Logo que me defrontei com a gravura, comecei a vida.
182
“Logo que me defrontei com a gravura, comecei a vida.”
(GABRIEL VIEIRA)
Esse amor declarado ao seu ofício fez com que o artista ampliasse sua área de
atuação, buscando, além do desenvolvimento de seu trabalho artístico, a difusão e a
propagação do seu conhecimento. Portanto, atualmente, Gabriel Vieira é professor
de Gravura e responsável, juntamente com Gian Shimada, pela reestruturação e
abertura da Oficina de Gravura Carlos Oswald no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de
Janeiro.65
O que toca no seu rádio?
“Clássicas, um rock mais light, MPB: Bossa, Chorinho e Samba.”
(GABRIEL VIEIRA)
Sobre o seu trabalho, o artista coloca:
A minha gravura reservo o direito de ser minha. Não a faço para mudar a sociedade, formar
opiniões ou causar impacto. Apenas tenho necessidade de fazê-la e ponto final. Produzo o
que tenho vontade e sou capaz, independente do que acontece ao meu redor. Por outro lado,
a própria gravura, por ser múltipla, é uma forma de dar acessibilidade à obra de arte. Tem seu
preço reduzido por haver mais de uma prova. Isso faz com que mais pessoas tenham acesso
à produção artística.
65 O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, fundado em 1856, pretendia constituir, por meio do ensino, um mercado de trabalho com base na educação da estética. Escola noturna, gratuita e filantrópica mantinha, como espinha dorsal de seu currículo, o ensino do desenho. Porém, diferente da Academia Imperial de Belas-Artes, o Liceu desprezou o desenho neoclássico adotando o eclético. O seu método de ensino de desenho dava liberdade para que o aluno misturasse estilos e criasse novas formas a partir de sua imaginação. Não pretendia formar artistas, assim como a Academia de Belas-Artes, mas sim trabalhadores para a construção civil. Atualmente, o Liceu funciona na Praça XI, no centro do Rio de Janeiro, e mantém o seu compromisso com a educação e a formação profissional dos seus alunos.
183
O que encontramos em suas estantes?
“Livros sobre a técnica de gravura. Nada mais usual!”
(GABRIEL VIEIRA)
GIAN SHIMADA
Nascido em São Paulo, Capital, Gian Shimada mora, desde pequeno, no Rio de
Janeiro. De sua cidade natal, o artista guarda as boas recordações das férias de
verão passadas na casa dos avós: invenções, fantasias e brincadeiras. A
possibilidade de permanecer em contínuo exercício de imaginação foi um dos
motivos de Gian ter optado pelas Artes Plásticas:
O gosto por lidar com diversos elementos, o envolvimento em montar modelos de aviões, a
paixão incansável pela leitura, o prazer das viagens e passeios, com toda aventura possível e
imaginária, foram os elementos primordiais para essa escolha profissional.
Além disso, outros fatores colocaram a Arte no caminho de Gian Shimada: da sua
infância no Rio de Janeiro Gian se lembra com prazer das aulas de Artes. Em uma
delas, produziu, pela primeira vez, uma xilogravura; lembra-se também das visitas
com a família ao Museu de Arte Moderna (MAM). E até mesmo dos passatempos
em casa: “Desenhar, recortar e colar; leitura de gibis e assistir a desenhos
animados; o desejo de copiar o que via e imaginava”.
Mesmo antes de entrar para a Escola de Belas-Artes da UFRJ, o artista já
freqüentava o atelier da designer e artista plástica Sonia Ota:
Ela me deu um grande apoio, tanto no início do curso como no período pré-profissional. Apoio
que se traduz em empréstimo do seu atelier para começar minhas aulas, trabalhos conjuntos
de impressões em serigrafia, além das freqüentes idas às vernissages e exposições da
década de 1980.
184
Ou seja, a opção de Gian pela Arte já estava feita antes mesmo de sua inscrição na
universidade e isso, segundo o artista, tem algumas causas: primeiro, o contato
estreito estabelecido com a criação e a produção artística desde a infância. Uma
outra possibilidade é uma herança familiar:
Contam que meu bisavô paterno, Luigi Brotto, pintava carroças, ou seja, as decorava com os
grafismos e imagens ao gosto da época. Dizem haver um catálogo dessas imagens por ele
executadas. Do meu avô materno, Yoshiharu Shimada, ficou gravada a constância, a
lealdade e o subentendido espírito poético.
Além de tudo isso, um aspecto subjetivo foi adicionado aos demais: Gian valorizava
as possibilidades ilimitadas oferecidas pela Arte. Em outras palavras, o gosto pela
liberdade criativa falou mais alto na hora de decidir sua profissão: “Acredito que a
liberdade e o estímulo que a arte me acenava tenha formado o primeiro impulso
nesta direção apesar de desenhar desde pequeno”.
O que toca no seu rádio?
“Clássicos, MPB, rock (antigo e atual), jazz, instrumental, progressivo, pop. Jack
Jonhson e Zeca Baleiro.”
(GIAN SHIMADA)
Atualmente, o artista é professor substituto, no curso de Gravura da Escola de
Belas-Artes da UFRJ, ministra um curso livre de Gravura no SESC e no Liceu de
Artes e Ofícios.
Não vivemos do fruto de nossa criação artística, mas sim de nossa formação e experiência
profissional. Temos esperança e planos de virar esse jogo, para, além de nos manter,
continuar produzindo, concorrendo, participando de salões, expondo regularmente e
divulgando ainda mais nosso trabalho.
185
O que encontramos em suas estantes?
“Veríssimo, Kerouack, Drummond, Hermann Neville, Jorge Luis Borges, Cortázar,
Ítalo Calvino, Gaston Bachelard, Fernando Pessôa, Guy de Maupassant, Alan Poe,
Ray Bradbury, Jack London, Monteiro Lobato, Fernando Sabino, Mário Prata, Loyola
Brandão, Charles Dickens, Vinícius.”
(GIAN SHIMADA)
O ENCONTRO
Os dois artistas gravadores têm como local de formação a mesma instituição: a
Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não dividiram a
mesma sala de aula ou, como diz Gabriel Vieira, as mesmas “prensas e amigos da
Escola”, pois Gian Shimada se graduou dez anos antes. Foram outros caminhos que
aproximaram os dois artistas: Em 2004, Gabriel Vieira recebeu uma proposta para
reabrir a Oficina de Gravura do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. O
desafio, embora tentador e instigante, era um trabalho de grande responsabilidade.
Eis as palavras do artista sobre esse assunto:
Não era algo tão simples de ser feito: era preciso alguém com igual entusiasmo e força de
vontade, mas, além disso, experiência. Era o que me faltava. Freqüentei a Escola durante
poucos seis anos e meio, onde quatro e tantos passei dentro do atelier. Não era tempo
suficiente para adquirir experiência e conhecimentos necessários para levar adiante uma
tarefa como essa sozinho.
Nessa busca por alguém que pudesse compartilhar dos mesmos ideais, Gabriel
pediu conselho aos seus mestres Marcos Varela e Kazuo Lha. Estes indicaram o
nome de Gian Shimada, então professor do atelier de Gravura do Sesc da Tijuca,
que aceitou prontamente o pedido de apoio. Encontraram inúmeras dificuldades
186
nesse processo de reabertura, o que exigiu dos artistas empenho e dedicação na
coordenação das mudanças e reformas do atelier. Essas adversidades são, na
verdade, motivo de orgulho de Gabriel e Gian, pois aproximam suas ações do
mestre Carlos Oswald, nome escolhido para batizar o Atelier reaberto. Sobre esse
momento, os artistas comentam:
Como Carlos Oswald foi o pioneiro no ensino da gravura artística no Brasil, nas oficinas do
Liceu de Artes e Ofícios, nada mais justo do que esta homenagem. Sinto que somos os
perpetuadores dessa vocação: ensinar, praticar e divulgar a gravura, sejam quais forem as
adversidades (GIAN SHIMADA).
“Sinto que somos os perpetuadores dessa vocação: ensinar, praticar e
divulgar a gravura, sejam quais forem as adversidades”.
(GIAN SHIMADA)
O funcionamento é uma questão ainda mais delicada. É um investimento tanto para a gente,
quanto para o liceu. O trabalho ininterrupto tem trazido aumento no número de alunos que
vêem a oficina como um segundo lar. E, assim, mantemos o atelier em ascensão. Carlos
Oswald se orgulharia. Tomando em consideração seu principal trabalho como sendo o ensino
da gravura – não descartando sua qualidade autoral, como gravador, pintor e desenhista –
elevamo-nos a um patamar próximo ao dele: o de desbravadores. Em condições que não são
ideais, assim como as do mestre, vamos firmando a arte de gravar (GABRIEL VIEIRA).
"Operário semeando as artes no Brasil", Carlos
Oswald. Água forte. Fonte: Barros A. P. O Liceu
de Artes e Ofícios e seu fundador, Rio de
Janeiro: L.A.O., 1956, p. VIII
187
Como podemos observar, o encontro dos dois artistas gravadores foi de grande
proveito para a Arte, seu ensino e divulgação. A troca de experiências e idéias foi
fundamental para a concretização dos objetivos em comum. Desse encontro com
Gabriel Vieira, Gian resume:
Desde antes de formado, venho lecionando e atuando no campo da gravura, nos mais
diversos espaços; e, hoje em dia, poder continuar, junto a um artista de uma nova geração,
muito me estimula e alimenta, pois caminho que se trilha junto, encurta e anima a estrada.
A trilha percorrida continua a oferecer desafios e prazeres aos dois artistas. A prova
disso é o Projeto da Exposição “Metal Madeira”, coletiva que apresenta, pela
primeira vez, o trabalho de Gabriel Vieira e Gian Shimada para o cenário artístico
capixaba. Novamente o espírito desbravador do mestre Carlos Oswald se faz notar
nas ações dos dois gravadores.
A EXPOSIÇÃO
A exposição “Metal Madeira” apresenta, pela primeira vez no Estado, o trabalho de
Gabriel Vieira e Gian Shimada. Os artistas expõem gravuras produzidas em metal,
em madeira e litografia. Mas, o que aproxima a produção dos dois ultrapassa o
aspecto técnico e avança na direção do tema e de como ele é representado. As
imagens possuem, como temática principal, figuras humanas e animais pertencentes
a uma realidade fantástica, figuras que parecem sair de histórias macabras e
noturnas. As formas são apresentadas de maneira sintetizada. A importância recai
sobre o efeito expressivo e singular das figuras representadas e de sua composição
no espaço.
Alguns distanciamentos entre os dois artistas gravadores são válidos para destacar
mais profundamente suas produções.
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As gravuras de Gabriel Vieira se destacam e atraem o olhar pelo dinamismo de suas
linhas. Por meio desse valioso recurso, o artista cria o espaço, as formas, as
texturas, a luz e, principalmente, o movimento em suas imagens. Suas figuras
geralmente são únicas, ocupando sozinhas o espaço imagético. O aspecto
cromático coloca em foco o contraste entre o preto e o branco. A ausência de cores
em suas obras direciona o olhar do observador para a forma: sua rica textura, seu
intenso movimento e a expressividade gestual e corporal das figuras.
Ao contrário, Gian Shimada utiliza, em suas gravuras, o recurso da cor, mas trabalha
na busca da expressão e contribui para enriquecer um aspecto dominante em suas
imagens: as oposições. As figuras de Shimada se apresentam quase sempre
acompanhadas e estabelecem relações com outros elementos: a transparência das
cores, os esquemas geométricos ou outras figuras que geralmente apresentam uma
oposição em relação à outra. Observando suas gravuras, podemos destacar vários
pares antagônicos: figura humana (carne) x caveira (osso); transparência x
opacidade; aberto x fechado; vazado x não vazado; fundo claro x fundo escuro;
pequeno x grande; esquerdo x direito; confronto x oposição. Todas essas oposições
formais talvez sugiram um antagonismo simbólico ou, de acordo com as palavras do
próprio artista, um complemento indissociável: a vida e a morte.
A LINGUAGEM
A exposição “Metal Madeira” apresenta a produção em gravura de Gabriel Vieira e
de Gian Shimada. Como o próprio nome da mostra sugere, serão encontradas,
nessa exposição, tanto imagens elaboradas com a técnica de gravura em metal,
bem como xilogravuras e litografias. Os dois artistas dominam e produzem seus
trabalhos em várias técnicas, mas, para a exposição, resolveram dividir as
atribuições: Gabriel Vieira apresenta obras em xilogravura e Gian Shimada em
metal. Gian apresenta também algumas litografias. O intuito dessa divisão tem uma
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explicação: “Dada a especificidade e valores dessas técnicas, decidimos priorizá-las,
para bem contrastá-las e expormos seus recursos e valores, visto serem inversas
tanto na gravação, quanto na impressão” (GIAN SHIMADA).
A fronteira entre as técnicas utilizadas nas obras em mostra não é de forma alguma
rígida, visto que Gabriel Vieira apresentará, misturadas aos seus trabalhos de
xilogravura, algumas obras recentes produzidas em metal, mas não esconde o
fascínio que a xilogravura exerce sobre ele:
Às vezes me pergunto o porquê. Creio que devem ser os valores de branco permeando os
negros ou a luz trazida por uma lâmina bem afiada na superfície escura. Prefiro pensar que
eu gosto mesmo. E encaro cada matriz como um novo desafio à minha altura, admito que
algumas vezes não passo de uma pequena pedra diante de uma montanha.
Gabriel utiliza diversos tipos de madeira como a maçaranduba, o pau-marfim, a
peroba do campo e a peroba rosa. Segundo ele, cada uma com suas
especificidades, provocando, conseqüentemente, resultados finais diferentes no
momento da produção artística. Nada melhor do que as palavras do próprio artista
para detalhar mais precisamente a sua técnica:
Não existem mistérios ou segredos na gravação. Madeira é o suporte para a maior parte dos
meus trabalhos. Na exposição “Metal Madeira”, apresento xilogravuras de topo. Este
processo foi revelado pelo gravador inglês Thomas Berwick, no final do século XVIII,
coincidindo com o grande desenvolvimento da imprensa. Por utilizar madeiras de corte
perpendicular ao tronco das árvores, esta técnica garante grandes tiragens, devido à dureza
da madeira usada como matriz. Em contraponto a esta dureza que pode revelar uma ligeira
dificuldade no ato de gravar, surge a riqueza de nuances e infinitos detalhes concernentes à
xilogravura de topo.
O gravador Marcos Varela,66 que foi professor e é amigo pessoal dos dois artistas,
quando instigado a falar sobre seus ex-alunos, comenta:
Foram brilhantes alunos que, além do aprendizado técnico da gravura, sempre procuraram
desenvolver suas linguagens pessoais, suas criatividades. São autores figurativos, diferentes
entre si no sentido do sentimento expresso em seus trabalhos, mais dramáticos em Gabriel,
66 Ver capítulo Referências.
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mais líricos nos do Gian, mas ambos com profundos conhecimentos da técnica. De certa
forma, eles mantêm uma tradição da gravura como meio de expressão dos mais importantes
na arte brasileira.
AS REFERÊNCIAS
Avessos a delimitações muito precisas e específicas de movimentos ou artistas que
possam ter influenciado o processo de criação das obras apresentadas nesta
exposição, Gabriel Vieira acredita que esta não é sua função:
Continuo com meu pé no chão fazendo meus trabalhos. Deixo para aqueles que se dedicam
ao trato crítico essas definições. Sinto-me mais à vontade gravando. Porém, não posso negar
que venho de uma escola expressionista e essa raiz tem forte influência no meu trabalho.
Mesmo assim, o artista aponta alguns nomes que são referência na história da Arte
e da gravura: Lívio Abramo, Oswaldo Goeldi, Segall, Käthe Kollwitz e Fayga
Ostrower, mas acredita que é possível não encontrar rastro das obras desses
artistas em seu trabalho, sem que isso o impeça de admirá-los e reconhecer a
importância de suas produções. Gabriel prefere acreditar que suas referências
estejam em uma “realidade mais palpável”, ou seja, gravadores que fazem parte de
seu convívio e de seu cotidiano. “O próprio Gian é uma das minhas influências que
geram bons frutos. Não posso deixar de citar Kazuo Iha, Adir Botelho e
principalmente Marcos Varela. Todos foram, e ainda são, mestres para mim”.
Segundo o mestre gravador Adir Botelho,67 o trabalho de Gabriel “[...] se dirige da
natureza ao espírito [...] alterna momentos de divagação com toques de realidade”.
67 Adir Botelho é gravador, pintor, ilustrador, diagramador, artista gráfico, desenhista e professor da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estudou desenho no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e arte da publicidade e do livro na ENBA-UFRJ, onde conviveu com Oswaldo Goeldi. Integrou o Conselho de Coordenação dos Cursos da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, antiga Enba, e estruturou o curso de graduação em Gravura, implantado em 1971. O artista carioca, muito conhecido pela interpretação da obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, na série de gravuras Canudos, apresentou suas gravuras individualmente no MNBA e em várias Bienais de São Paulo, além de participar de exposições coletivas pela Alemanha, Japão, Chile, Colômbia, Costa Rica, Finlândia e Bélgica.
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Gian sintetiza de forma clara essa relação com as obras e artistas que admira: “Não
buscamos referências, mas sim revelamos influências que nos remetem a
experiências estético-visuais de nossa individualidade”.
Ele acrescenta alguns nomes de referência para a produção da gravura: Marcelo
Grassmann, Gilvan Samico, Darel Valença, Roberto Magalhães, Renina Katz, Goya,
Rembrandt, Escher. Além de outros tantos vindos da pintura, como Pollock,
Basquiat, João Câmara, David Hockney, Berber, Modigliani e Francis Bacon.
Buscando entender melhor essas influências, pesquisamos sobre a vida e a obra de
Carlos Oswald, Lívio Abramo, Marcelo Gassmann e Marcos Varela. Dessa forma,
estaremos construindo subsídios que poderão nos ajudar a pensar uma proposta
educativa para a exposição “Metal Madeira” que abarque não só as obras dos
artistas em questão, mas também que mostre aos alunos as referências que o artista
utiliza para a construção do seu trabalho.
CARLOS OSWALD
Carlos Oswald nasce em Florença em 1882. Gradua-se como físico-matemático em
1902. No ano seguinte, ingressa na Academia de Bela-Artes de Florença. Viaja para
o Brasil em 1906, realizando sua primeira exposição de pinturas. Aprofunda seus
estudos sobre gravura em Florença e Munique. Inicia sua carreira como professor
em 1914 no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro.
Ao defender a gravura como linguagem, Oswald afirma:
Sei que, em todo o mundo, o despertar do interesse pela gravura nasceu e se desenvolveu
no nosso século pelas razões que todos conhecem: 'sintetismo', em oposição à exagerada
policromia dos pós-impressionistas; entusiasmo pela ressurreição desta arte que tinha sido
morta pelos processos mecânicos derivantes da fotografia; o misterioso de seus efeitos de
claro-escuro e sua técnica de feitio alquimista; sua prática que lhe facilitava a repetição em
muitos exemplares e que a tornava uma Arte mais harmoniosa com os nossos costumes
democráticos; uma Arte democrática, enfim; e, finalmente, seu caráter de novidade que fazia
arregalar os olhos não só ao público em geral, mas à maioria dos próprios artistas, quando se
lhes falava de água-forte, ponta-seca, água-tinta, mezzotinta, talho-doce, xilografia, etc.
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OSWALD, Carlos. Um Bosque, 1908. Água forte, 17,6 x 24cm. Acervo Banco Itaú S.A.
Na década de 20, com a chegada do Modernismo, suas encomendas começam a
cair. Mas, mesmo assim, Oswald mantém-se fiel às suas referências artísticas, não
acompanhando as novas tendências. Prossegue seu trabalho de cunho religioso,
criando painéis e vitrais para igrejas. Concomitante a essas atividades, continua seu
trabalho de professor e gravador.
Sobre a vida do artista, depõe sua filha, Maria Isabel Oswald Monteiro:
Nenhum gênero ele deixou de abordar, por vezes concomitantemente. Fez pintura mural e de
cavalete, gravura, desenho e ilustrações, foi vitralista, professor e articulista, tudo isso sem
deixar de manter uma intensa vida social freqüentando concertos, reuniões e exposições. E
esteve sempre presente, como pai, em nossas vidas, embora suas atividades mais ainda se
multiplicassem ao atender a qualquer chamado relativo a assunto de Arte. Fez parte de
comissões institucionais as mais diversas, interessando-se profundamente pelo que fazia,
dando-se todo a qualquer empreendimento com o qual resolvesse colaborar. Quem o
conhecesse socialmente não faria idéia da profundidade de sua vida religiosa. Dela não
falava. Falavam as obras.
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LÍVIO ABRAMO
Em 1903, em Araraquara, São Paulo, nasce Lívio Abramo. Inicia sua carreira
artística como ilustrador, trabalhando em pequenos jornais e revistas. Influenciado
por Goeldi e por outros gravadores expressionistas, realiza suas primeiras gravuras
em 1926. Sobre isso o próprio artista comenta:
Num salão enorme, vi uma exposição de gravadores alemães fabulosos, e da Bauhaus, na
primeira fase. Havia uma coleção magnífica de gravuras originais de todos os gravadores
alemães expressionistas – Heckel, Schmidt-Rottluff, Barlach, Lyonel Feininger, Käthe Kollwitz
–, só da Käthe Kollwitz havia mais de dez gravuras fabulosas. Todos os expressionistas
alemães estavam lá, e era uma gravura melhor que a outra. Bem, depois dessa exposição, eu
resolvi: 'É isso que eu quero fazer!'. As gravuras de Goeldi e as alemãs é que despertaram
em mim a vontade de fazer gravura. Saindo dessa exposição, fui para casa, peguei uma
gilete e um pedaço de madeira e fiz a minha primeira gravura; depois arranjei uma goiva,
depois duas, e assim foi que comecei a gravar.
ABRAMO, Lívio. Macumba, 1979. Litografia, 36,3 x 46,5cm. Acervo do Banco Itaú S.A.
Alguns anos depois, envolve-se com movimentos políticos de esquerda, o que
reflete em sua escolha temática que se torna voltada para o social. Aprofunda seus
estudos na Europa, aperfeiçoando-se em gravura em metal. De volta ao Brasil, em
1953, inicia sua carreira como professor de gravura. Engaja-se no programa
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modernista influenciado pela vertente não figurativa. Sobre seu trabalho, Tadeu
Chiarelli (2002, p.17) esclarece:
Esgotando, pouco a pouco, o compromisso explícito em denunciar as mazelas do capitalismo
e o sofrimento provocado pelas guerras, nota-se, na trajetória de Lívio Abramo, um conflito
muito grande, já mencionado: por um lado, um desejo de retomar a necessidade de criar uma
iconografia, ao mesmo tempo atual e tipicamente brasileira; por outro, abrir-se ou opor-se ao
desafio que as vertentes não figurativas internacionais colocavam para os artistas locais.
MARCELO GRASSMANN
Marcelo Grassmann nasce em São Simão, São Paulo, em 1925. Inicia-se na Arte
com 12 anos, quando descobre as histórias em quadrinhos e as ilustrações de
Gustave Duré. Sua carreira profissional começa em 1939, quando estudava fundição
mecânica e entalhe em madeira no Instituto Profissional Masculino de São Paulo.
Após esses estudos, dedica-se à xilogravura, aprofundando-os em Viena, na Áustria.
Suas primeiras xilogravuras seguem uma linha expressionista, na qual estão
presentes arabescos e pontilhados conseguidos por meio da gravura de topo. Após
essa fase, incorpora em sua temática figuras fantásticas, como sereias, monstros
fabulosos, demônios ou figuras antropozoomórficas. Nessa fase, aproxima-se de um
universo mágico, influenciado principalmente por Bosch:
[...] embora formalmente a Renascença tenha me dado muito mais que a Idade Média, a
Idade Média era mais carregada de coisas interiores, a meu ver, do que a Renascença, que
já começava com uma preocupação formalista, de estilo, maneira, de como encarar as
coisas, mais do que quais as coisas a serem encaradas. Os flamengos adoravam fazer o
inferno, porque, no inferno, havia a proposta de milhões de fantasias. Bosch, por exemplo,
parte para toda aquela loucura de figuras dentro de armaduras, meio peixe, meio gente, meio
cômico e, no fundo, eu sofri influências importantíssimas dele. O mundo de Bosch é cheio de
diabolismos, de fantasias, de coisas que não são de todo mundo. Já a China me deu duas
coisas: um dragão e alguns diabinhos. Os etruscos me deram pouca coisa, os egípcios me
deram muito mais, com suas zoomorfias religiosas (MARCELO GRASSMANN).
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GRASSMANN, Marcelo. Sem título, 1955. Xilogravura, 35,9 x 50cm. Acervo Banco Itaú S.A.
Seu processo criativo está ligado ao imprevisto. Segundo o artista, seu trabalho
inicia-se com uma idéia preexistente que se modifica devido às variações que o
próprio material provoca. Sobre suas investigações concernentes à calcogravura
coloca:
Às vezes, eu parto para outras coisas dentro daquilo que já estava pronto, acabo voltando ao
ponto de partida, isso é que é fascinante. Eu diria mesmo que esse é o fascínio da gravura
em metal. Eu sempre achei que o grande momento da criação da gravura em metal é aquele
em que você diz: 'Essa chapa está perdida!'. Porque daí você diz: 'O que é que eu posso
fazer?'. É alguma coisa como um desafio. É evidente que, se você pegar uma placa virgem, é
muito mais simples reelaborar tudo, mas já seria uma outra abordagem. O desafio,
exatamente, não é recuperar uma chapa, mas como fazer um insucesso se tornar uma obra
de arte [...].
De forma geral, seus trabalhos estão ligados a um conteúdo que revela o lado
escuro e misterioso da alma humana. Representa a crise do homem
contemporâneo, suas angústias e incertezas, frutos de uma sociedade consumista
em que os valores éticos estão sendo distorcidos pelo pensamento capitalista que
transforma o homem em máquina, que repete ações e pensamentos que lhe são
impostos.
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MARCOS VARELA
Marcos Varela, artista plástico e professor de gravura da Escola de Belas-Artes da
UFRJ, possui muitos prêmios de participação em exposições nacionais e
internacionais.
Em entrevista dada à equipe do Espaço Cultural, sobre o seu trabalho, o artista e
mestre em História da Arte coloca:
Meu trabalho é essencialmente de gravura – xilogravura e gravura em metal. Sou professor
na Escola de Belas-Artes – UFRJ, desde 1980, destas disciplinas e venho atuando como
professor e gravador paralelamente. Tenho procurado expor regularmente, na medida do
possível, em exposições individuais e coletivas e eventos, como salões de Arte, este é meu
contato maior com o circuito de Arte e, por motivos didáticos, priorizo exposições em circuitos
culturais, como universidades e centros culturais, ao invés de galerias de arte. Minha
linguagem artística insere-se no expressionismo, que tem bastante tradição na gravura de
modo geral. Parto sempre de um esboço inicial, mais ou menos definido para efetuar uma
gravura, sendo que esta idéia inicial é muitas vezes modificada no decorrer do trabalho até
dar por finalizado. Para mim, a Arte é uma atividade essencial, que envolve o aspecto criativo,
o mais importante, sendo o resto, divulgar, expor, vender, uma conseqüência posterior.
independente da feitura do trabalho em si.
Quanto instigado a falar sobre seus ex-alunos (Gian e Gabriel) Varela comenta:
Foram brilhantes alunos que, além do aprendizado técnico da gravura, sempre procuraram
desenvolver suas linguagens pessoais, suas criatividades. São autores figurativos, diferentes
entre si no sentido do sentimento expresso em seus trabalhos, mais dramáticos em Gabriel,
mais líricos nos do Gian, mas ambos com profundos conhecimentos da técnica. De certa
forma, eles mantêm uma tradição da gravura como meio de expressão dos mais importantes
na Arte brasileira.
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A GRAVURA
A gravura apresenta-se basicamente em quatro vertentes: xilogravura, calcografia
(gravura em metal), serigrafia e litografia, que se desenvolvem na história da
humanidade por razões distintas.
No fim da Idade Média, na Europa, surgiu a xilografia em conseqüência de uma
demanda cada vez maior do consumo de imagens e livros sacros a partir da
invenção da imprensa por Gutenberg, quando as iluminuras e códigos manuscritos
passaram a ser um luxo de poucos. A gravura em madeira seria um meio econômico
de substituir o desenho manual, imitando-o de forma ilusória e permitindo a
reprodução mecânica de originais consagrados. No século XX, artistas, como
Picasso, Matisse e os expressionistas alemães, utilizam-se dessa linguagem como
forma de expressão artística, abrindo caminho para as experimentações próprias da
Arte contemporânea.
Existem dois tipos de corte de madeira para xilogravura: madeira de fio – cortada
no sentido dos veios da madeira, caracterizando-se por relativa maciez e
sensibilidade às goivas do artista; e a madeira de topo – cortada no sentido
longitudinal da árvore. Extremamente dura, é trabalhada com o buril. O resultado é
uma gravura de traços mais precisos, rica em nuances.
Por volta do século XV, surgiu a gravura em metal, principalmente nos ateliês de
ourivesaria, onde era comum imprimir os desenhos das jóias e brasões em papel
para melhor visualização das imagens.
198
Gravura em metal consiste em gravar linhas finas, com diferentes profundidades,
(cortar diretamente) na chapa de metal – geralmente cobre ou latão. São nessas
linhas que ficará a tinta para a impressão. A lâmina de metal retém a tinta nos
sulcos, necessitando apenas limpar a superfície da matriz, para depois imprimi-la em
papel apropriado.
Já no século XVIII, surgiu a litografia, mais precisamente no ano de 1796, criada
por Alois Senefelder. Nesse processo, a gravação da imagem se realiza pela ação
de ácido nítrico diluído em goma arábica sobre a pedra litográfica. Tal fato torna a
pedra mais hidrófila, reforçando essa sua propriedade natural e estabilizando a
gordura em sua superfície, elemento constitutivo da imagem.
A matriz da litografia é uma qualidade hidrófila de pedra calcária, ou placas
granidas de alumínio e zinco. O desenho é feito com material litográfico, que contém
gordura em sua composição. Na gravação, espalha-se sobre o desenho uma
camada de goma arábica e ácido nítrico. Durante o processo de impressão, as áreas
sem imagem absorvem a água, repelindo a tinta, que adere apenas na imagem.
A serigrafia, por sua vez, remonta a vários séculos de uso por chineses e
japoneses, basicamente na pintura têxtil. As primeiras aplicações gráficas foram
americanas, no início do século XX. Seu princípio técnico básico é a utilização de
tela de seda como matriz, estendida sobre um bastidor de madeira. O
desenvolvimento de novos materiais sintéticos, como o nylon, trouxe grande salto de
qualidade gráfica.
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Buril, Goiva e Ponta Seca
São instrumentos específicos para o corte e incisão das matrizes de gravura. O buril
e a goiva são instrumentos pontiagudos com diferentes formas que cortam a matriz
abrindo linhas profundas e delgadas. A ponta seca é uma ponta metálica afiada que
risca a matriz de metal, traçando uma linha fina cujas rebarbas resultam na
impressão de uma linha aveludada.
A GRAVURA NO BRASIL
As primeiras gravuras feitas no Brasil surgem em meados de 1600, durante o
período de Maurício de Nassau. Artistas desconhecidos representam em xilogravura
a fauna, a flora e a sociedade da época. Com a chegada da família real em 1808,
cria-se a Imprensa Régia e também se inicia a fundação da Academia de Belas-
Artes, destinada a ensinar as Artes e os ofícios artísticos. O grupo responsável pela
abertura da Academia ficou conhecido como Missão Francesa. Eram pintores,
escultores, gravadores e arquitetos influenciados pelo Neoclassicismo europeu. João
Batista Debret e Rugendas fizeram parte da Missão e criaram gravuras que
retratavam as paisagens e costumes da colônia.
No começo do século XX, Carlos Oswald realiza suas primeiras águas-fortes em
Florença, expondo-as no Brasil, em 1913, no Rio de Janeiro. Influenciada pelo
expressionismo alemão, Anita Malfatti executa algumas gravuras em metal e, em
1914, faz uma mostra em São Paulo. Nos anos 20, Oswaldo Goeldi inicia-se na
gravura de madeira. Na década de 30, Lívio Abramo começa suas xilogravuras e
linoleogravuras relacionadas com o expressionismo.
200
Na década de 50, surgem os clubes de gravura que possuíam, como maior
característica, o regionalismo. Essa característica influenciava diretamente a
temática dos grupos. Como exemplo, podemos citar o Clube de Gravura de Porto
Alegre que procurava retratar, em suas obras, uma temática política e popular,
buscando uma identidade nacional.
É por meio das Bienais e também de exposições vinculadas pelos novos museus,
MASP e MAM, que chegam ao Brasil o construtivismo, o neoplasticismo e os
princípios da Bauhaus. Essas novas correntes artísticas também influenciam os
gravadores da época que iniciam um processo de abstração. Como participante do
abstracionismo como estilo artístico, em 1958, Fayga Ostrower recebe o prêmio de
gravura na XXIV Bienal de Veneza.
Ainda podemos citar o lado popular da gravura, por exemplo, a xilogravura de cordel
nordestina. Esse tipo de gravura objetivou ilustrar a literatura de cordel e consolidou-
se entre as décadas de 30 e 50. No início, os escritores rimavam as histórias, as
lendas e os exemplos de moral, que já vinham de uma longa tradição, modificados,
porém, pelas condições específicas da vida nordestina. Com o tempo, foram
escrevendo versos que refletiam a realidade do Nordeste: a seca, o cangaço, a
abertura de ferrovias e suas conseqüências, a crise e a guerra. Falavam ainda sobre
os acontecimentos locais, como eleições, enchentes e desastres Também faziam
referência a Padre Cícero e a Frei Damião. Nas décadas que se seguem, temos
múltiplas e diversificadas linguagens para a conhecida gravura. Alguns artistas
brasileiros contemporâneos, como Gilvan Samico, apropriam-se da linguagem do
cordel e fazem hoje uma gravura que enaltece os símbolos essenciais da cultura
popular.
No Espírito Santo, Dionísio Del Santo, mestre na serigrafia, pesquisa a técnica e o
lúdico, a cor e a interferência no jogo da impressão. Raphael Samú também
explorou a gravura. Na década de 60, realizou trabalhos que retratavam o município
de Vitória, em xilogravura. Com a serigrafia, trabalhou na criação tanto de cartazes
de divulgação de eventos, quanto na elaboração de um trabalho pessoal. O artista
colaborou de forma decisiva para a divulgação da gravura no Espírito Santo.
201
Dentro da Universidade Federal do Espírito Santo, surge, na década de 90, no
Atelier Livre de Gravura em Metal, coordenado pela professora e gravadora Maria
das Graças Rangel,68 o “Grupo Varal de Gravura”. Esse grupo, formado inicialmente
por Andressa Sily, Célia Ribeiro, Edelza Flor, Iliamara Cardoso, José Gomes, Joyce
Brandão, Márcio Luiz dos Santos, Mercedes Antoniazzi, Natália Branco, Nilza
Souza, Raquel Baelles, Samira Margotto, Sandra Gabler, Virgínia Collistet e Yara
Mattos, participa ativamente de exposições entre 1993 e 2000, desenvolvendo
workshops e palestras, quando discutiam as técnicas de gravura e as experiências
no ensino da gravura. Essas atividades chegaram até a Alemanha e aos Estados
Unidos. Os artistas integrantes do grupo seguiram trajetórias diferentes a partir da
dissolução do grupo em 2000.
Atualmente, a gravura no Espírito Santo tem sido representada, individualmente, por
Maria das Graças Rangel, José Gomes, Júlio Tigre, Raquel Baelles, Romilda Patez,
Lucy Aguirre, Vanda Ribeiro.
Hoje, não vejo mais a efervescência do movimento de gravura. São momentos esporádicos e
individuais.
Tivemos dois momentos importantes da Gravura no ES. A vinda de Raphael Samú para
Vitória propiciou a introdução, de maneira organizada, à Gravura no Centro de Artes da
UFES, naquele momento, Escola de Belas-Artes do Espírito Santo. Nos anos 60 e 70, Vitória,
ou propriamente o Centro de Artes, conheceu e desenvolveu as diversas modalidades da
gravura, com cursos especiais de serigrafia com Dionísio Del Santo, Antonio Grosso com a
litografia, quando da compra da prensa e de pedras litográficas. Samú, com o seu entusiasmo
pela gravura, envolveu alunos e professores no trabalho nas oficinas específicas do Centro
de Artes.
O segundo momento, também dentro do Centro de Artes, como uma herança de paixão pela
técnica, em horário extra-aulas, o Ateliê Livre de Gravura permitiu que professores, alunos e
comunidade desenvolvessem um trabalho que culminou com o Grupo Varal de Gravura.
Hoje, podemos apontar alguns nomes: José Gomes, que este ano fez oficina e exposição na
Alemanha; Yara Mattos, com a infogravura; Virgínia Collistet, Raquel Baelles e Maria das
Graças Rangel, que continuam no exercício da gravura. Penso que todos os que integraram o
68 Maria das Graças Rangel é gravadora e participa de exposições desde 1968, no Brasil e no exterior. É graduada em Arte Decorativa e em Gravura pela UFES, com especialização em Desenho pela UFMG, Metodologia em Arte Educação pela Escola Superior de Música do Paraná e em Administração Universitária pela UFES. Foi professora do Centro de Artes da UFES, entre 1978 e 1998. Durante esse período, concretizou projetos de grande importância para a difusão da gravura no Espírito Santo, tais como, o Atelier Livre de Gravura e o Grupo Varal de Gravura. Atualmente, é proprietária do Atelier Arte, onde ministra cursos de desenho e gravura.
202
grupo, por ter sido aqueles sete anos muito intensos, continuarão a pensar gravura (MARIA
DAS GRAÇAS RANGEL).
O ENSINO DA ARTE
Este capítulo tem como objetivo oferecer ao professor visitante do Espaço Cultural
informações que o ajude a trabalhar em sala de aula. Nessa exposição, tivemos o
prazer de ver nosso trabalho reconhecido e conhecido fora das fronteiras do nosso
Estado. Portanto, gostaríamos de iniciar esta parte utilizando as palavras do artista
expositor:
Seguir qualquer que seja a profissão sem ter amor pelo que faz deve ser, no mínimo,
frustrante. Creio que essa questão não me afligirá nos tempos que virão. Gosto muito do
Magistério e, através dele, construo novas visões de mundo. Para penetrar na sociedade e
utilizar minha capacidade criadora de forma construtiva, sou professor e me envolvo em
projetos sociais. Não necessariamente todas as atividades que faço são ligadas à gravura,
mas à Arte, com certeza. Quando conceitualizo uma exposição, a primeira coisa que incluo
no projeto é atividade pedagógica que reflete o tipo de produção dos artistas envolvidos. No
Espaço Cultural Egydio Antônio Coser, encontrei a reunião de toda essa estrutura: uma
galeria onde a obra e o público andam lado a lado, um trabalho consistente em Arte-
Educação digno de ser usado como referência. Fico feliz em realizar esse trabalho junto a
vocês (GIAN SHIMADA).
A EDUCAÇÃO EM ESPAÇOS EXPOSITIVOS
Na história do homem, é secular a mania de colecionar e guardar tesouros. As elites
governantes sempre se preocuparam em desfrutar, de forma privada, dos bens
artísticos. Somente a partir da Revolução Francesa, os museus e espaços
expositivos passaram a ser vistos como lugares públicos. Foi inovador para a época
dar acesso ao espaço, mas somente abrir as portas para o povo seria insuficiente.
203
Nesse sentido, foi necessário criar programas educativos que buscavam
desmistificar o caráter elitista da Arte. As primeiras instituições culturais a aderirem
essas idéias foram os museus de Arte da Inglaterra e os dos Estados Unidos, ambos
no final do século XIX.
No Brasil, algumas propostas isoladas apareceram nas décadas de 50, 60 e 70.
Estas estavam atreladas às idéias modernistas de livre expressão. Somente nos
anos 80, se iniciou a mudança no enfoque metodológico dessas instituições,
principalmente em 1987, quando passou a ser sistematizada a “Proposta
Triangular”, no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, sob a direção de Ana
Mae Barbosa. Essa proposta apresenta três vertentes: o fazer artístico, a leitura da
imagem e a história da Arte.
A leitura da obra de Arte envolve o questionamento, a busca, a descoberta e o
despertar da capacidade crítica dos alunos (pensando no aluno como indivíduo
participante do processo educativo, integrante ou não de instituições de ensino). As
interpretações que nascem nesse processo não são passíveis da redução de
certo/errado. Podem ser julgadas por critérios, como pertinência, coerência,
possibilidade, esclarecimento, entre outros. Porém, o mais importante é que a leitura
ressalte a obra de arte e não somente o artista.
Outro pilar da metodologia triangular é o fazer artístico. Fazer Arte é construir
formas em espaços diversos (bi e tridimensionais). Nas Artes Plásticas, é também
experimentar várias linguagens, como desenhar, pintar, colar, gravar, fotografar, etc.
Dentro dessa possibilidades, é preciso pesquisar e utilizar os mais diversos materiais
e instrumentos (giz de cera, tinta, lápis de cor, argila, goivas, máquinas fotográficas,
fotocópias, etc.). Além disso, é importante saber reconhecer os elementos básicos
da linguagem visual: os pontos, as linhas, as cores, os planos, as formas, os
volumes e o equilíbrio. Dessa forma, os alunos aprendem a sintaxe da Arte e
passam a operar melhor a linguagem artística, podendo fazer e reconhecer as
formas da e na Arte.
Além da leitura da obra de arte e do fazer artístico, a metodologia triangular propõe o
entendimento da História da Arte. Compreender as obras de arte diz respeito ao
204
conhecimento do porquê, quando e onde elas foram produzidas. Para isso, é
necessário pesquisar para contextualizar. Ao contextualizar, estamos operando no
domínio da História da Arte e em outras áreas do conhecimento necessárias para
determinado programa de ensino. Assim, estabelecem-se relações que permitem a
interdisciplinaridade no processo de ensino-aprendizagem, cria-se, então, além de
uma interação dinâmica entre as partes e o todo, uma possibilidade de trabalhar com
outras áreas do saber, construindo no aluno um conhecimento mais universal e, por
isso, completo.
O ACESSO À PRODUÇÃO ARTÍSTICA
Os espaços em que as imagens se apresentam hoje na sociedade são incontáveis.
Encontramos imagens artísticas na mídia, em livros, por meio de reproduções, e
também nos museus e espaços expositivos. É relevante citar a grande importância
que tiveram e têm as reproduções das obras de arte. Esse fator contribuiu para a
democratização da Arte, pois a tornou acessível à grande maioria das pessoas,
retirando da obra o aspecto sagrado e elitizado. As reproduções são recursos
importantes para a iniciação estética, mas, apesar disso, é importante ressaltar que
a possibilidade de ver a obra de arte ao vivo, em museus e em galerias, proporciona
relações mais intensas com o objeto artístico. Nesses momentos, somos convidados
a olhar as texturas, as cores reais (que são ofuscadas pelas reproduções), ver
também as proporções, além de poder girar em torno de obras tridimensionais.
Sobre esse assunto, Fayga Ostrower (1990, p. 222) argumenta:
[...] para se entender a mensagem de uma obra de arte, a presença física da obra é
indispensável. Temos que apreender suas formas assim como o artista elaborou, os
desdobramentos da matéria assim como ele a compreendeu. Por mais úteis que sejam as
fotografias e as reproduções, deve ficar claro que elas jamais poderão substituir as próprias
obras.
205
A PARCERIA ENTRE O ESPAÇO EXPOSITIVO E A INSTITUIÇÃO DE ENSINO
No mundo globalizado, as instituições de ensino (seja ela qual for, atendendo alunos
de diferentes vertentes ou instituições para idosos, deficientes, etc.) precisam
integrar-se a esse novo mundo e a seus novos saberes. Além disso, precisam
manter-se interessantes ao aluno. Aluno esse que está inserido num mundo onde
existem várias formas de divulgação da informação e do conhecimento, como os
meios de comunicação de massa e a Internet, que, na maioria das vezes, tornam-se
mais interessantes que os conhecimentos oferecidos pela instituição. Uma das
soluções para colocar a instituição inserida nesse “novo mundo” seria a integração
com diferentes instituições, como as galerias e os museus de Arte. Dessa forma, ela
sairia do isolamento em relação ao mundo exterior, desvinculando-se das suas
práticas tradicionais, propondo ao aluno adquirir conhecimentos utilizando outro
espaço e outros objetos. Ultrapassar os muros é muito importante porque possibilita
o acesso a pessoas que nunca estiveram em espaços alternativos para a educação,
como as galerias e museus de Arte. Assim, fica socializado um espaço que, por
muito tempo, foi e ainda é elitizado.
Se pensarmos no contexto histórico em que foram criadas as galerias, instituição
essa que se assemelha ao nosso Espaço Cultural, fica fácil entender o motivo de
serem vistas como um local para iniciados, estudiosos ou especialistas em Artes: a
proposta inicial de uma galeria era o comércio de obras de arte e a divulgação de
novos artistas, ambiente que apenas colecionadores e pessoas ligadas ao meio
artístico freqüentavam. A proposta de ensino foi uma nova possibilidade para esses
locais que passaram a oferecer cursos de Técnicas Artísticas e ou de História da
Arte. No entanto, a democratização ainda não era o objetivo desses locais, visto que
eram cursos, na maioria das vezes, pagos e, portanto, voltados para um público
restrito. Seguindo a filosofia dos museus que tiveram na base de sua criação uma
proposta educativa, algumas galerias e espaços culturais procuram, além de divulgar
e comercializar o trabalho dos artistas, fazer com que o contato com essas imagens
atingisse um público diferenciado que não visa a adquirir obras e sim conhecimento
por meio delas. Essa é a nossa proposta, quando estabelecemos contato com
instituições de ensino. Assim, tanto essas instituições como o Espaço Cultural
cumprem seu papel social.
206
É fundamental ressaltar a importância do papel do professor (ou de pessoas que
assumam dentro das variadas instituições essa função), como mediador das
relações entre o espaço expositivo e a escola, pois é ele quem estabelece os
primeiros contatos com a galeria ou museu. É seu interesse e sua disponibilidade
que criam a oportunidade de os alunos entrarem em contato com as obras de arte.
Para que o conhecimento se efetive, é papel desse profissional dar continuidade, na
sua instituição de origem, aos projetos, às idéias e às discussões iniciadas na
galeria/museu, criando, assim, novos questionamentos, novas possibilidades de
aprendizagem.
PROJETOS
PROJETO OUVINDO IMAGENS
Como sugestão de um projeto de preparação para ser realizado antes da visita à
exposição coletiva “Metal Madeira”, apresentamos o seguinte exercício de
percepção:
De posse das imagens encontradas no interior do “Caderno de Arte”, faça uma
descrição oral e detalhada das obras, mencionando o título, a forma da(s) figura(s)
encontrada(s), o tipo e a variação de linha e cor, a composição, a textura, o fundo,
etc. Enquanto acontece a descrição, os alunos irão desenhar ou pintar em um papel
o que estão escutando. As imagens descritas não serão mostradas em sala de aula,
somente no momento da visita, quando os alunos terão a oportunidade de observar
diretamente a obra descrita e comparar com as suas próprias produções.
207
PROJETO LINHAS
As xilogravuras de Gabriel Vieira despertam a atenção do observador pelo
dinamismo apresentado na composição de suas linhas que criam na imagem
formas, texturas e luz. A partir desses aspectos, sugerimos um projeto que
desenvolva a percepção dos alunos para o conceito de linha dentro da linguagem
artística: sua função, suas possibilidades e variedades. Seria interessante começar o
projeto pela observação e leitura de imagens, ou seja, estabeleçendo comparações
entre as linhas de Gabriel Vieira com outras imagens na História da Arte: as linhas
expressivas de O Grito, de Munch, e das telas de Van Gogh; as linhas frias de
Mondrian; as linhas livres e ambíguas de Pollock. Finalizando o projeto, proponha
uma produção de pintura, desenho ou gravura que privilegie a construção das
imagens a partir das linhas observadas no primeiro momento.
PROJETO OPOSIÇÕES
O artista Gian Shimada apresenta, em suas imagens, algumas oposições: figura
humana x caveira; transparência x opacidade; aberto x fechado; vazado x não
vazado, fundo claro x fundo escuro; pequeno x grande; esquerdo x direito; confronto
x oposição. Procure destacar, em sala de aula, esses aspectos nas obras do artista,
encontrados no “Caderno de Arte”. A partir dessa observação inicial, estimule a
turma a sugerir outras oposições e peça que produzam um desenho, gravura em
isopor ou até mesmo colagem em que o tema seja esses variados tipos de
oposições encontrados na obra do artista e nas sugestões apresentadas por eles.
208
O PERCURSO DA VISITA
1º Momento – Apresentação
Apresentação do Espaço Cultural e da exposição
2º Momento – Observação
Observação das obras expostas: os alunos circularão livremente pela galeria.
3º Momento – Lendo imagens
Com os alunos sentados em um grande círculo, o monitor irá lançar
questionamentos sobre as primeiras impressões da mostra: como foram feitas essas
obras? É desenho? Pintura? Aquarela?
- O monitor dará uma breve explicação sobre a técnica da gravura.
- Por meio de questões diretas, os alunos serão instigados a falar sobre os dois
artistas e questionar quais as diferenças entre as obras apresentadas por eles.
(quais as figuras observadas? Como são essas figuras?)
- O monitor irá pontuar as diferenças que não foram levantadas pelos alunos (quais
os sentimentos suscitados pelas imagens observadas?)
- Serão feitas as leituras de duas imagens, uma de cada artista, contextualizando-as
com os alunos.
4º Momento - Produção Artística: gravura com isopor
O monitor irá explicar a atividade relacionando com as técnicas de gravura utilizadas
pelos artistas.
5º Momento - Discussão final
Os alunos farão uma avaliação espontânea de todas as etapas da visita.
209
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
BATISTONI Filho, Duílio. Pequena história das artes no Brasil. Campinas, SP: Ed. Átomo, 2005.
BUORO, Anamélia Bueno. Olhos que pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretária do Ensino Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília, 1997. v.: Arte – Séries Iniciais.
CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira: São Paulo: Lemos Editorial, 2002.
FOERSTE, Gerda Margit Schutz. Leitura de imagens: um desafio à educação contemporânea. Vitória: EDUFES, 2004.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA M. Terezinha. Didática do ensino da arte: a língua do mundo; poetizar, fruir e conhecer. São Paulo: FTD, 1998.
JANSON, H. W . História da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GOMBRICH, J. A História da arte. Rio de Janeiro: LTC,1999.
OLIVEIRA, Jô. Explicando arte: uma iniciação para entender e apreciar as artes visuais. Rio de Janeiro : Ediouro, 2002.
OSTROWER, Fayga. Acasos e a criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
PARSONS, Michael J. Compreender a arte: uma abordagem à experiência do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo. Lisboa: Editora Presença, 1992.
210
ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003.
211
APÊNDICE C – FORMAÇÃO DOS MONITORES
Espaço Cultural Sala Egydio Antônio Coser Oficina de Formação de Monitores
Exposição “Metal Gravura”
1 Sobre a monitoria:
o seu olhar melhora o meu
(ARNALDO ANTUNES)
TONUCCI, Francesco. Os passeios instrutivos, 1979
212
Penso que para educar o olhar é preciso aprender a ver, e isso é um exercício continuo de
construção e desconstrução por toda a vida, que parte de experiências estéticas que
somadas, trazem novas camadas de significações e sentidos, associando e modificando
informações. Ver é trazer junto de si todo repertório pessoal existente e também estar
disposto a receber novos sentidos de olhar (LEITE; OSTETTO, 2005, p. 107).
Se inicialmente acreditava que a instrumentalização dos monitores passava por
conhecimentos técnicos de dados e datas sobre o artista, movimentos da história da arte e
contextualização histórica do período que ele viveu e produziu, foi com a prática da
coordenação da Ação Educativa que percebi a menor importância dessas informações
teóricas. Afinal, os monitores precisavam motivar o olhar das pessoas que visitavam a
mostra, pois eles seriam responsáveis por estabelecer uma relação prazerosa do público com
as imagens. Ou seja, para provocar prazer, o monitor tinha que sentir e ter prazer em buscar
conhecimento, associar dados sobre as obras, a vida e a produção de Segall, partindo de
uma ordenação pessoal e muitas vezes afetiva sobre o artista (LEITE; OSTETTO, 2005, p.
99).
[...] quanto maiores e mais amplas forem as experiências dos monitores nos meios da arte e
da cultura, melhor se sairão em seu trabalho com o público (LEITE; OSTETTO, 2005, p.102).
A importância do monitor no acompanhamento de sua visita, não como alguém que tem
respostas definitivas e conduz o olhar, mas como alguém cujo olhar dialoga com o seu
(LEITE; OSTETTO, 2005, p. 106).
[...] o seu olhar modifica, expande e transforma o meu. No olhar individual, o ser solitário pode
ter uma relação mais diversa de tempo e espaço, pode fazer sua própria seleção e percursos
na exposição, com escolhas mais pessoais. Já o olhar coletivo traz a percepção do grupo
com suas divergências e afinidades (LEITE; OSTETTO, 2005, p. 106).
[...] procurar manter o professor o mais próximo ao grupo durante o trabalho o trabalho de
monitoria, tornando o diálogo entre educador, alunos e imagens e monitor o mais dinâmico
possível, sugerindo olhares questionadores diante das imagens e favorecendo mais
perguntas, indagações e hipóteses do que respostas diretivas sobre o significado das
imagens das obras (LEITE; OSTETTO, 2005, p. 108).
213
2 Sobre o desenho:
Antes eu desenhava como Rafael, mas precisei de toda uma
Existência para aprender a desenhar como as crianças.
(PABLO PICASSO)
TONUCCI, Francesco. A criatividade, 1968
[...] o desenho da criança não pode ser visto como mera atividade escolar ou mesmo
resultado de aptidão pessoal para as artes plásticas, mas, sim, como diálogo permanente
entre a crianças e o mundo, uma constante busca de inteligibilidade e comunicabilidade
(KRAMER; LEITE, 1998 , p. 131).
A criança, ao expressar-se, traz consigo os diversos auditórios sociais aos quais pertence;
traz a história de sua família, de sua comunidade, da humanidade. Os fatos e a experiência
são sua matéria-prima bruta de criação – são fragmentos que dão estofo ao entendimento, a
sua compreensão de vida (KRAMER; LEITE, 1998, p. 143).
214
BOLLEN, Rog. Os bichos, 1975
Somos sempre provisórios, como sujeitos que criam e recriam constantemente,
incessantemente, portanto, esse processo não é fruto de um desenvolvimento apenas
biológico, mas de uma rede de relações socioculturais que vai sendo tecida ao longo da vida
de cada sujeito (KRAMER; LEITE, 1998, p. 142).
3 O Percurso da Visita
1º MOMENTO – Apresentação
Apresentação do Espaço Cultural, da exposição e dos artistas.
2º MOMENTO – Observação
Observação das obras expostas: os alunos circularão livremente pela galeria.
3º MOMENTO – Introdução ao debate
Com os alunos sentados em um grande círculo, o monitor irá falar sobre o trabalho
atual dos artistas, como professores, e como se deu o encontro deles.
4º MOMENTO – Debate
O monitor irá lançar questionamentos sobre as primeiras impressões da mostra:
como foram feitas essas obras? O que acharam dessa técnica? O que mais chamou
a atenção? E quais os sentimentos suscitados pelas imagens?
215
5º MOMENTO – Lendo imagens
Por meio de questões diretas, os alunos, divididos em seis grupos, serão instigados
a falar sobre os dois artistas e questionar as diferenças e semelhanças entre as
obras apresentadas por eles.
a) Quais as características comuns entre as obras do Gabriel?
b) Quais as características comuns entre as obras do Gian?
c) Quais as diferenças entre os trabalhos do Gabriel e do Gian?
d) O que existe em comum entre os dois?
Para crianças até a segunda série, essas questões serão discutidas oralmente com
a mediação do monitor e com a participação de todos em um grupo único.
6º MOMENTO
– Poemas
Serão distribuídos poemas do Arnaldo Antunes para cada um dos grupos e o
monitor pedirá que leiam esses poemas e escolham uma ou mais imagens que se
relacionam com eles e expliquem o porquê dessa relação.
– História Coletiva
Com crianças até a segunda série, será proposto um exercício de imaginação e
criatividade ao levantar perguntas sobre determinada obra, de acordo com as quais
será montada uma historinha.
Que figura é essa? É homem ou mulher? Quem é ele ou ela? O que está fazendo?
7º MOMENTO – Produção artística: gravura com isopor
O monitor irá explicar a atividade relacionando com as técnicas de gravura utilizadas
pelos artistas.
8º MOMENTO – Discussão final
Os alunos farão uma avaliação espontânea de todas as etapas da visita.
216
4 Referências
KRAMER, Sonia; LEITE, Maria Isabel (Org.). Infância e produção cultural. Campinas: Papirus, 1998.
LEITE, Maria Isabel; OSTETTO, Luciana Esmeralda. Museu, educação e cultura:
encontros de crianças e professores com a arte. Campinas: Papirus, 2005.
TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
217
APÊNDICE D – APRESENTAÇÃO UTILIZADA PARA AVALIAÇÃO DO PROCESSO69
69 Os quadros que constam no Apêndice D foram elaborados em Power point e apresentados aos alunos utilizando a sala de informática.
QUANDO COMEÇAMOS...
O QUE NÓS FIZEMOS?
228
Você acha importante visitar espaços onde
ocorrem exposições de arte? Por quê?
O que você achou mais interessante? Do que mais gostou?
230
APÊNDICE E – TABULAÇÃO DO QUESTIONÁRIO
Você acha importante
visitar espaços onde
ocorrem exposições de
Arte? Por quê?
O que você achou mais
interessante?
Do que mais gostou?
Do que você não gostou?
Você modificaria algumas
das atividades realizadas
no projeto?
Você tem alguma
sugestão para dar
continuidade às
atividades na aula de
Arte?
Lari fala: Não porque ela não se interessa por obras! Tati: Já eu gosto, pois conheço um pouco mais de alguns artistas
Tati: Os materiais usados
Da imagem do pai e da mãe representando
monstro
Lá não tem cadeira para sentar, isso me deixou com muita
raiva
Não
Desenhar no papelão com aquelas
materiais que o Gian
Shimada e o Gabriel Vieira
usam
Sim, porque é
sempre importante conhecer
coisas novas
As Artes do Gian Shimada
Das obras que são feitas por
linhas Dos quadros Não
Botaria mais instrumentos usados por
eles
Sim, porque é interessante conhecer vários
trabalhos para ter noção do que vamos
fazer
Quando nós ouvimos a música,
tivemos várias noções do mundo de
hoje
De ir no passeio
Que não teve
merenda Não
Falarmos sobre futebol e dos times rebaixados. Exemplo: Atlético Mineiro
Sim, para ter conhecimento sobre Arte, sobre o autor da Arte, estar por dentro das novidades artísticas e,
cada vez mais, mergulhar no mundo da Arte
humana
A parte das atividades feitas na
galeria de arte
Gostei mais de estar
comparando os trabalhos de Gian e Gabriel
Na hora de ir embora
Não, porque achei tudo muito
interessante
Acho que não
231
Sim, porque todos nós temos que conhecer o trabalho de
outras pessoas (artistas)
Pra falar a verdade, todos são
interessantes e despertam o interesse de todos nós, mas tem
umas coisas que não dão para entender
Das obras feitas de cordões
Das Artes que não dão
para entender
Não Não
Sim, porque é bom ver a arte por mais perto para ajudar
aprender, para fazer mais Arte, tentar fazer
como exemplo. Tentar pensar um artista melhor
Os desenhos dos artistas, porque eles só pegaram a realidade sobre o
desenho em linhas retas e
curvas
Tudo sobre os desenhos
Nada, porque
todos nós aprendemos
Não, porque não tem
necessidade de mudar nada
Não, porque todas as aulas são boas para aprender
Sim, porque assim a gente fica mais informado sobre as
pessoas e suas obras
As obras do Gabriel Vieira, porque ele usa preto e branco e,
como eu sou metaleira, eu gosto de preto
e branco
Dos trabalhos em grupo
Eu gostei de tudo
Não
Sim. Você e a professora continuarem
esses projetos com a gente
Sim, porque as exposições são legais e nós ficamos mais informados pelas obras dos artistas e conhecemos pessoas e muitas obras
legais
Eu achei mais interessante a
obra do Gabriel que é feita com
poucas cores, é feita mais com preto e branco e fala da vida e da
morte.
Eu gostei de tudo das
obras que são feitas por Gian
e Gabriel
Eu não gostei,
porque não tinha cadeira para sentar e tivemos que sentar no chão
Não, porque são todos muito
interessante
Não
232
Sim, porque é importante conhecer
vários estilos, formas, cores e interpretações
de Artes
O jeito deles (Gabriel e Gian) de se expressar, de mostrar, através da sua Arte, seu modo de
pensar sobre as pessoas e o mundo
De imaginar primeiro e ver a obra depois
Gostamos de tudo
Não, porque eu achei muito
interessante a forma que
eles realizaram tudo e acho que fica bom desse jeito
Não, porque estamos satisfeitos
com as aulas e o modo de ensino da professora
Sim, porque nós podemos, através das obras de arte, descobrir
novos ideais para nossas vidas, saber como é feita a
obra, os materiais, utensílios e saber mais sobre a vida
dos artistas, se há muita
dificuldade em fazer as suas
obras
Eu achei mais interessante foi a facilidade dos artistas fazerem suas
artes e, através delas, podermos até nos interessar a fazer arte
De saber mais sobre Artes, eu mesmo
não sabia que a gravura
eram aquelas Artes.
Eu não gostei de falar na
exposição, quando nos deram uma frase e tínhamos
que compará-la com os desenhos
Eu preferiria que os
desenhos ficassem todos em preto e branco
Não
Sim, porque nós podemos aprender mais sobre a Arte brasileira. Também
podendo se tornar um
grande artista indo a essas exposições
Sobre as Artes de Gian Shimada
Gostei de poder
participar de um trabalho que eles fazem
Tudo foi interessante, não tem como não gostar
Não, porque as obras de
Gian Shimada e Gabriel
Vieira são perfeitas
Produzir mais trabalhos
interessantes e participar de mais
exposições
Sim, porque senão nós não
íamos conhecer
novas obras e novos modos de se criar uma
nova obra
O modo que o Gian e o Gabriel
fizeram as suas obras
De fazer os trabalhos sobre as figuras
De fazer o trabalho sobre as
pessoas e o cavalo
Não, achei tudo legal
Não
233
Sim, porque é interessante fixar novas
idéias, ou seja, adquirir novos conhecimentos, conhecer Artes diferentes feitas com materiais diferentes, então é
interessante entrar em
espaços como esses
Além de tudo, a obra dos dois é bastante
interessante, expressa
sentimentos, novas idéias
Da forma dos dois
trabalharem com
instrumentos diferentes, um adquire cores outro não e se empenham no que fazem
Gostamos de tudo
Não, porque tudo está perfeito
Não, as aulas que a
professora Mirian projeta são bastante interessantes, mas tem dia
que é bastante chata
Sim, porque é importante pra gente conhecer
o que as pessoas pensam
através da arte. Isso, de
alguma forma, amplia os nossos
conhecimentos, pois o que eles fizeram não foi um simples desenho, ele passava
sentimentos e outras coisas
Que eles fizeram suas obras em cima dos
sentimentos e eu acho que pra fazer um trabalho assim tem que ter
muita imaginação, porque não é todo mundo que consegue passar um sentimento pra o papel. Também achei
interessante os tipos de
trabalho que a professora passou pra
gente
Gostei de quase tudo,
principalmente do trabalho em equipe com tintas, colagem de barbante e papel em forma de
linha. Gostei, enfim, das técnicas que eles utilizaram para fazer gravura
Não tenho nada do que reclamar, foi
tudo bastante
interessante
Sabe, na hora de
expressar os sentimentos,
eu me enrolei um pouco e agora eu entendi.
Queria voltar e fazer tudo de novo
Visitar outras galerias para conhecer outros
artistas que passam
idéias através de desenhos
Sim, porque teremos mais conhecimentos das obras de vários artistas e
também é importante, porque
estaremos vivendo no mundo das Artes.
Estaremos criando um
mundo melhor porque a
maioria das
As esculturas de madeira feitas pelo artista
De tudo, principalmente na hora que eles deram aqueles pincéis,
aquelas tintas e as
vasilhinhas de isopor para
nós desenharmos
Eu não gostei muito da figura do Gabriel, por ser uma
figura muito complicada
para entender
Não
Visitar mais lugares
aonde fala mais sobre a
Arte do Gabriel e Gian
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