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O MUNDO DO TRABALHO E A PROPRIEDADE RURAL: DEBATES E
REFLEXÕES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Reynaldo de Oliveira Pessôa
Mestre em história política- PPGH UERJ
Bolsista de extensão- Rede Proprietas
naldo-rey30@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho consiste numa reflexão sobre a História Social das Propriedades e sua
relação com o mundo do trabalho, mais especificamente os choques da legislação agrária e do trabalho com a mentalidade construída historicamente no país em torno da propriedade fundiária. Em síntese,
objetiva-se encontrar nas áreas do Direito, Economia e Política a justa medida em que se encontram os
elementos balizadores da relação capital e trabalho com fulcro na propriedade em sua concepção sócio
histórica, entendendo tal processo como fruto de uma dinâmica social sedimentada na longa duração,
congregando, a partir dessas premissas aventadas, uma miríade de valores, cosmovisões e movimentos
complexos que, em seu conjunto, figuram como elementos patentes na sociedade brasileira e, com efeito,
de central relevância social e acadêmica. No corrente ano completam-se 100 anos de constituição da
Organização Internacional do Trabalho, cujo primado se assenta em argumentos humanitários, políticos e
econômicos sobre o mundo do trabalho com vistas a congregar eficiência econômica e equidade social.
Saliente-se que apesar de seu centenário, se cristaliza hodiernamente a existência dos elementos sobre os
quais a instituição direcionou o direto combate desde os seus primórdios, como o trabalho escravo e precarizado, ambos diretamente ligados à temática que nos compete de duas maneiras: em primeiro lugar,
pela concepção da propriedade fundiária no país e sua especificidade no processo produtivo de
hiperexploração; em segundo lugar, pela própria relação de propriedade direcionada à força de trabalho,
portanto a propriedade de pessoas. De posse de algumas fontes oriundas dos órgãos de regulação do
trabalho, se proporão reflexões à luz dos pressupostos supracitados.
Introdução
O estudo do fenômeno social chamado propriedade não é novo no âmbito das
ciências sociais, remontando a larga tradição historiográfica, conforme é possível
observar num simples exame das produções afetas ao tema. O mesmo se direciona aos
estudos dos “mundos do trabalho”, dada a sua importância na produção do mundo tal
como o conhecemos. Demais disso, sendo a sociedade um organismo dinâmico e vivo e
o historiador parte integrante deste movimento, novas perguntas devem ser feitas e
velhas questões reformuladas. Em face de um ambiente de forte aceleração do tempo,
de reestruturação produtiva, de flexibilização do trabalho, e da fluidez como marca do
desenvolvimento social, dentre outros fatores constitutivos da história do tempo
presente, a propriedade e o trabalho ainda se assentam como as vigas mestras de toda a
estrutura social, bem como elementos condicionantes dos demais quadrantes da vida
social, cultural e política dos diversos e variados sujeitos históricos.
Neste breve resumo de comunicação, que traz considerações sobre uma pesquisa
em seu processo ainda bastante incipiente, buscaremos refletir sobre o choque entre o
capital e o trabalho, sinonimizado na relação propriedade x trabalhador, com ênfase na
precarização do trabalho, sobretudo o rural, que desvela ainda nos anos correntes a triste
existência de condições de trabalho análogas à escravidão com uma recorrência gritante
para os padrões de salubridade e dignidade construídos, ao menos enquanto ideal, no
transcorrer do século XX. Partindo do pressuposto de que o Brasil de fins deste século e
inícios do XXI se caracteriza primordialmente por seu hibridismo (DINIZ, 1997)
trazemos à baila as especificidades do Brasil quanto à temática dos dois termos eleitos
para esta singela explanação. De posse dessa premissa, buscaremos tratar da
incongruência da legislação social do trabalho, com ênfase no trabalho rural,
relativamente à mentalidade de raiz escravista no brasil. Em última instância, se busca
questionar qual é o papel do Direito neste processo, além de como a propriedade
privada exclusiva da terra molda, condiciona e perpetua semelhanças muito claras à
propriedade de vidas humanas dentro do processo de trabalho ainda nos dias correntes.
Entende-se a propriedade lato sensu, em sua concepção sócio histórica, compreendendo
tal processo como fruto de uma dinâmica social sedimentada na longa duração e que
congrega, a partir dessas premissas aventadas, uma miríade de valores, cosmovisões e
movimentos complexos que, em seu conjunto, figuram como elementos patentes na
sociedade brasileira. Numa palavra, como se dá o choque, no interior do mundo do
trabalho destas duas perspectivas jurídicas conflitantes, qual seja, o direito ao trabalho e
o direito à propriedade, espraiando-se em direitos fundamentais, positivados e
sedimentados há muito enquanto norte civilizatório.
Propriedade, direitos e conflitos
Passado o entendimento dos pressupostos gerais acima colocados e o processo
que lhe ensejou e que ainda lhe movimenta, resta-nos proceder à análise, de forma
preliminar, do conceito basilar na presente reflexão: o de Direito. Sendo este instituição
reguladora da sociedade, cimento construtor da ordem social e parâmetro de dupla via,
de legitimação do poder e de luta entre desiguais, fruto, pois, de um movimento
contínuo.
De início, como já foi dada alguma pista ao longo da introdução, devemos
dessacralizá-lo, sobretudo na sociedade brasileira, em que firmou-se a tradição do
bacharelismo e que traduziu na instituição jurídica diversas formas de domínio, dentre
as quais a posse de propriedades, sejam elas físicas ou humanas, como foi o caso da
escravidão negra. Tal processo histórico se assentou de tal forma, que passou pelo
processo duro de naturalização, e cumpre a nós, que refletimos o mundo social,
questioná-lo e pô-lo à prova.
Conforme assinala Paolo Grossi (2006), devemos nos fitar na recuperação da
história jurídica e na relativização histórica, aqui entendida como a inserção de outros
prismas para avaliar seu conteúdo, historicizando cada fenômeno social. No atinente à
letra de lei, o autor afirma, numa frase-síntese, que o juiz não é o produtor do Direito,
valorando o aspecto consuetudinário da lei, no caso a própria noção de propriedade
moderna, a qual é fruto de uma densa mentalidade, forjada em movimentos da
sociedade no horizonte na longa duração, mas que ainda assim é situada no tempo, no
espaço, e numa mentalidade não fixa. Instituição esta em que se assenta todo o sistema
econômico atual.
Numa crítica às abordagens que tratam com fixidez a noção de direito de
propriedade, o autor assinala que não necessariamente foi hegemônica a cultura do
pertencimento individual, da relação homens-bens, sobre a qual nos assentamos hoje.
Houve outras formas de se ter, que não o modo individualista e prestativo “Tentação
rudemente positivista que identifica a propriedade com um mecanismo organizativo e a
reduz àquela que é somente sua projeção no nível dos bens; (...).” (GROSSI, 2006,
p.18). No entanto, há casos históricos de uso comum da propriedade, mas que não
negam a existência de regulação, organização e limitações de uso. Quanto a essa
questão, Grossi assinala:
[...] o historiador, que não nutre repugnâncias e que, ao contrário, faz da
compreensão sua atitude profissional, não pode certamente unir-se ao coro
dos lógicos e dos ideólogos, mas tem o dever de assinalar que nessas
estruturas coletivas, a noção do ‘meu’ jurídico chega a tornar-se de tal modo
vã a ponto de colocar em dúvida e legitimidade de um único recipiente
‘propriedade’ tão grande e laceado que chega a novamente compreendê-los.
(GROSSI, 2006, p.9).
Nesse quadro de referências, o acesso à propriedade exclusiva é vendido como
sonhos, numa falsa ideia que todos, a partir de um ideal meritocrático reducionista,
podem alcançar. Reside aí, nas palavras do autor, a pedra filosofal da civilização
capitalista, ou seja, uma desigualdade que se apresenta como igualdade. Veja-se que
“Aqui a propriedade se torna jurídica congenial ao homo oeconomicus de uma
sociedade capitalista evoluída: um instrumento ágil, conciso, funcionalíssimo,
caracterizado por simplicidade e abstração.” (GROSSI, 2006, p 81). Além disso, afirma:
É nessa transcrição ao sujeito que ela reclama a sua unidade e a sua
indivisibilidade: uma e indivisível como ele [indivíduo], porque como ele é
síntese de virtude, capacidade e poderes. Uma transcrição tão aderente a
ponto de parecer quase uma fusão: a propriedade é somente o sujeito em ação, o sujeito à conquista do mundo. Idealmente as barreiras entre meu e
mim caem.” (GROSSI, 2006, p. 82).
Para Congost (2007), na mesma linha do autor supramencionado, a noção
contemporânea de propriedade foi congelada, sacralizada, mas o mundo viveu e ainda
vive outras formas de possuir. Segundo a autora, a concepção rígida de direito de
propriedade- absoluto, irrestrito e que devem ser protegido passa por cima de outros
direitos e nega a propriedade como fruto de uma relação social.
(...) Desde mi punto de vista, la abstración es uno de los problemas más
inquietantes em nuestra profesión de historiadores, de científicos sociales
que em nuestros trabajos tenemos que poner nombres a las relaciones
humanas. La única receta que se me ocurre es um estado de alerta
permanente: perguntarse siempre ¿de quié? ¿ Para qué? ¿ Para quién?
(CONGOST, 2007, p. 31).
A despeito da cristalização do “meu jurídico” como eixo sobre o qual se alicerça
todo o padrão societário hodierno, há inevitavelmente dentro do corpus jurídico
elementos complexos e “indômitos à classe dominante” de determinada época. Veja-se
que por ser fruto de uma dinâmica social, tem o Direito múltiplas implicações sociais.
Se a um lado, cumpre o papel de instituição garantidora do status quo, ou outro, tem seu
viés ideológico, como assevera Thompson. Para o autor:
A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas
que mantêm uma relação ativa e definida (muitas vezes um campo de
conflito) com as normas sociais; e, por fim, pode ser vista simplesmente em
termos de sua lógica, regras e procedimentos próprios- isto é, simplesmente
enquanto lei. E não é possível conceber nenhuma sociedade complexa sem
lei.” (THOMPSON, 1987, p. 351).
Diante do desenvolvimento capitalista atual, vemos um amplo processo de
desregulação, findando a trajetória de lutas e conquistas de direitos sociais, como as
reformas previdenciárias e trabalhistas, denominada invariavelmente por
“flexibilização”. Nessa lógica, opera-se um baque de grande envergadura na história do
tempo presente, conforme se pretende discutir na pesquisa em curso, a qual entende que
não obstante o fim da opressão política operada pelo regime militar brasileiro, a nova
conjuntura logrou aumentar a opressão econômica, em face das perdas trabalhistas do
período e da redução do Estado com foco na redução de direitos sociais. Apesar do
salto argumentativo do presente texto: propriedade e o neoliberalismo, verificamos aqui
a centralidade do direito de propriedade e direito ao trabalho enquanto foco fundamental
de tensões. Sobre tal questão, o jurista Costa Neto nos preceitua que:
O projeto neoliberal, em síntese, proclama uma estrutura jurídica
fragmentada e policêntrica, debilmente sancionadora e providencial,
incentivadora da formação de espaços de auto-regulação (v.g. negociação e arbitragem), distante do ‘espaço a cidadania’ e inserida no ‘espaço da
produção’”. (COSTA NETO, 2003, p. 207).
Num esforço de legitimação, as instituições jurídicas dão margem a ganhos
sociais importantes, que mesmo limitados dão movimento ao processo social, gerando,
assim, uma barreira contra impactos lesivos aos direitos sociais, de uma forma geral.
Prescindir da instituição jurídica no quadro atual é abandonar a luta, conforme afirma
Thompson.
Negar ou minimizar esse bem, neste século perigoso em que continuam a se ampliar os recursos e as pretensões do poder é um erro temerário de
abstração intelectual. Mais que isso, é um erro que se reproduz e aumenta por
si mesmo, estimulando-nos a desistir da luta contra as más leis e
procedimentos classistas e a nos desarmar perante o poder. (THOMPSON,
1987, p. 357-358).
Na nova configuração dos embates sociais, em muitos casos, a judicialização da
política adentra nos meios mais populares, como a Justiça do Trabalho, criando uma
cultura de embate jurídico importante nos tempos atuais. Fernando Teixeira aponta que
“os empresários de Santos, ao tentar levar os conflitos para a Justiça do Trabalho, em
vez de conciliar, potencializavam-nos” (SILVA, F.T., 2013, p.11). Sendo o ambiente
jurídico palco histórico da luta entre capital trabalho, nem sempre atuando como “mola”
entre estes.
Os tribunais são, então, palco das disputas entre representantes de capital e
trabalho pela interpretação da norma legal. São palco de luta de classes tanto
quanto o Parlamento, o balcão ministerial ou os restaurantes de Brasília, locais de pressões de toda ordem de agentes interessados. (CARDOSO;
LAGE, (2007, p. 19).
Dessa constatação emergem alguns pontos a serem colocados em busca de uma
reflexão sobre a temática que nos ocupa, deslindando um ambiente repleto de debates e
lutas relativas ao mundo do trabalho e a sanha do neoliberalismo em secundá-lo. Por
outro lado, a última barreira ao trabalho decente está escudada na lei. Processo esse que
conseguiu barrar as investidas liberalizantes por longo período, reforçando que o campo
do direito é um campo de conflito e que é duramente atacado pelo projeto neoliberal em
tudo o que envolve a organização coletiva, o crivo da lei e a luta por direitos sociais. Em
síntese, uma vez que nossa última Constituição brasileira foi engendrada em meio ao
Estado providencial, ainda restam caminhos jurídicos para refrear o processo de retirada
de direitos que se irrompe no desenrolar da nossa história do tempo presente.
O neoliberalismo e o avesso do trabalho
O conjunto de anos aqui tratados contém um movimento histórico de grande
envergadura, que por sua vez produziu a fisionomia social e política do Brasil de hoje. A
partir da gênese do neoliberalismo no Brasil, operam-se mudanças profundas cujo
impacto principal se dá de modo mais cabal no mundo do trabalho, caracterizado pela
maior exploração da força de trabalho pelo capital, na sanha de retirar crescentemente a
mais-valia e reorganizar seus lucros. Caio Antunes assinala nesse sentido que:
Atualmente, vivemos um contexto de acumulação predominantemente
financeira, que advém da crise estrutural do capital e que se assevera
fortemente nos anos 2000. Três movimentos se destacam como centrais na
busca capitalista para a retomada dos níveis de taxa de lucro dos anos pós-
Segunda Guerra Mundial, os quais denominamos ‘tripé vilipendiador do trabalho’: neoliberalismo, reestruturação produtiva e financeirização.”
(ANTUNES et al., 2017, p. 433).
Tal ambiente, contraditoriamente, traz no seu âmago um processo de exclusão
social e, do outro lado, de integração global a um só tempo. Note-se que a crise global é
congênita à globalização e o modo como os países periféricos a conheceram primeiro.
No limite, os discursos em favor do trabalho flexível e da primazia do mercado
enquanto instância reguladora da sociedade trazem consigo a naturalização do trabalho
precário, da subserviência do capital produtivo ao capital financeiro (em muitos casos,
fictício), escondendo a mais-valia e a centralidade do trabalho socialmente constituído.
Além disso, a socióloga da USP, Vera Navarro, nos aponta que para além da
tendência de superexploração típica do sistema capitalista, no caso brasileiro somam-se
características ainda escravocratas presentes nas elites brasileiras. A autora aponta que:
O arrocho salarial, meio de ampliar a mais-valia- uma vez que reduz o
montante equivalente ao tempo de trabalho socialmente necessário,
ampliando o excedente-, sem a necessidade de alterar a jornada de trabalho
ou incorporar qualquer inovação tecnológica à produção, vem coexistindo há
décadas com outros meios de ampliação de trabalho excedente ou não pago.
(NAVARRO, 2003, p. 31).
Logo, para além de um processo de franca precarização do trabalho formal,
crescem e perpetuam-se formas de trabalho análogas à escravidão sem maiores
questionamentos por parte do Estado e da sociedade. Numa palavra, uniu-se
desgraçadamente o ideário neoliberal de legitimação da desigualdade às práticas de
segregação social e hiperexploração há muito sedimentadas. Para Ribeiro (2017), ao
tratar do Estado Democrático de Direito no Brasil do ponto de vista do mundo do
trabalho, vislumbra-se de igual modo que reside na mentalidade escravista a “raiz” do
problema social do país. Em suas palavras:
A burguesia brasileira que passou a existir desde o império veio de donatários
de terra e proprietários de escravos e no século XX foi acrescida de grupos imigrantes que se capitalizaram arrancando o couro dos trabalhadores, entre
os quais, patrícios seus. Nada a impediu que se apropriasse de ‘terras
devolutas’. Assim, o conteúdo social e revolucionário da industrialização
ocorrida no século XVII não chegou até aqui. Não seria a automação da
produção e a incorporação de inovações tecnológicas que o preservaria.
Afinal, substituição de trabalho vivo pelo morto ou maquinal e incorporações
tecnológicas são contingentes de qualquer modo de produção. (RIBEIRO,
2017, p. 253).
A partir dos ideais de flexibilização, verifica-se o crescimento de novas
modalidades de contrato de trabalho sem as características de antes, assentadas na
clássica relação patrão x empregado. Alves assevera que “a luta contra a terceirização é
uma luta pela manutenção viva da única política pública em prol do bem-estar social
adotada pelo Brasil no século XX, que é o contrato de trabalho direto pelo empregador,
com carteira de trabalho assinada.” (ALVES, 2017, p. 380). Nessa configuração emerge
o trabalho terceirizado, part time, e todos os demais tipos de mudança, cuja
característica comum é seu caráter de ataque aos direitos do trabalhador, só possível
dentro de uma ambiência de pouca organização, de extrema concentração de renda e
desigualdade excessiva, dentre outras maneiras diretas e indiretas de ação por parte dos
setores dominantes, causando uma atitude passiva do trabalhador diante deste cenário.
Sobre tal questão, Antunes et alii assinalam que:
Tal perfil configura-se como um assalto às consciências e amoldamento da
subjetividade daqueles que vivem da sua força de trabalho buscando, como
observa Dias (2012), o conjunto de relações que reordenam o mundo do
trabalho e que tem como premissa a desconstrução da subjetividade da classe
trabalhadora para impor a subjetividade do capital. (ANTUNES et al., 2017,
p. 444).
Como se pôde compreender, se soma à nova configuração do mercado de
trabalho, em escala internacional e local, um longo processo de sedimentação de uma
mentalidade escravista na sociedade brasileira, que para Silva e Boaventura (2012) é a
raiz da questão social, sendo a escravidão elemento constituinte a atual, transferindo-se
em muitos aspectos ao pós-abolição, espraiando-se aos nossos dias. Guardadas as
devidas proporções, ainda vige a dialética “senhor x escravo” na sociedade brasileira em
muitos aspectos. Para os autores, a ainda presente concentração agrária demonstra que
nesses espaços resiste a “pessoalização do poder” e diversos outros tipos de arcaísmos.
Em suas palavras, assinala:
Reafirmando a necessidade do estudo da escravidão como expressão latente
das raízes da questão social do Brasil, estamos demonstrando a existência da base da cadeia produtiva da acumulação primitiva do capitalismo mercantil
para a ascensão do projeto da modernidade. (BOAVENTURA; SILVA, 2012,
p. 126).
Em face do flagrante uso do trabalho análogo à escravidão em escala global,
inclusive por grandes empresas, conforme demonstram os relatórios da OIT, pode-se
inferir que é este modelo de relação laboral parte integrante do sistema, conforme
assinala Mascarenhas, Dias e Baptista. Para eles, “Segundo a Organização Internacional
do Trabalho (OIT, 2009), a escravidão contemporânea é parte da economia mundial e
sustenta a produção de uma gama de produtos.” (MASCARENHAS et al., 2015, p.
176). Empresas do porte da MRV, e alcooleira J Pessoa e Cosan foram flagradas
fazendo uso dessa prática ilegítima no século XXI em nosso país, sem falar nos
inúmeros casos de abuso patronal encontrados pelos auditores fiscais do trabalho nos
últimos anos. (SALES; FILGUEIRAS, 2013). Tal situação infame e deprimente mascara
no fundo a pobreza extrema, a corrupção e a recusa aos direitos humanos de forma
corrente e sistemática.
No caso específico do campo, a reestruturação produtiva e sua face de
tecnificação não gerou necessariamente bem-estar para a classe trabalhadora. Dentre os
reveses, está a perda da identidade do trabalhador rural, agora diluído em várias
categorias sem organicidade, bem como a marginalização de alguns setores, largando-os
à completa indigência. Nesse contexto se afigura o papel do “gato”, um aliciador de
mão de obra. E o papel desse continua o mesmo: recrutar, transportar e vigiar. A partir
da aceitação por parte do trabalhador, verifica-se com muita recorrência a prática do
‘sistema de barracão’, cuja lógica se dá pelo endividamento e enraizamento do
trabalhador naquela condição de semi servidão. Para Kevin Bales, a escravidão
basicamente se dá por posse, dívida ou contrato, residindo neste último o modelo
vigente nos dias atuais. (apud BRISOLA et al., 2017, p. 70), o que descaracteriza a
prática, mitigando a sua definição e combate.
De outro lado, vemos atores sociais lutando contra tal mitigação do trabalho
análogo ao de escravo. Num esforço de detalhamento com vistas a dar maior eficácia ao
combate a tal prática, vemos a Instrução Normativa n. 91, de 5 de outubro de 2011, do
extinto Ministério do Trabalho e Emprego, arrematando o artigo 149 do Código Penal,
ao assinalar que os meios de restrição da locomoção empregado podem ocorrer
conjuntamente ou individualmente.
São eles: em razão de dívida contraída, cerceamento do uso de qualquer meio
de transporte por parte do trabalhador, ou de qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho. Valem como forma de restrição a vigilância
ostensiva no local de trabalho ou a posse de documentos ou objetos pessoais
do trabalhador, tanto por parte de seu empregador como pelo
preposto.”(BRISOLA et al., 2017, p. 72).
Logo, verificamos dentro de uma estrutura mais geral que objetivamente, a
globalização e a sociedade tecnológica não romperam com práticas arcaicas e
desumanas de desenvolvimento econômico e social. Em muitos aspectos as condições
eram tão ou mais degradantes que os negros escravizados do século XIX, o que faz com
que algumas fazendas tratem melhor seus animais, e tratem seu corpo de funcionários
sem a mínima segurança e salubridade.
Brisola, Moura e Baracho argumentam que tivemos dois movimentos
abolicionistas no Brasil: um na passagem do século XVIII para o XIX, consolidado com
a Lei Áurea em 1888, ou seja, uma abolição oficial e outra em fins do XX, mais
precisamente após a ditadura, com a emergência de articulações para o combate ao
trabalho análogo ao escravo no país, destacando-se como ator coletivo a Comissão
Pastoral da Terra, bem como medidas legislativa como a alteração do art. 149 do Código
Penal Brasileiro, alargando o conceito “que passou a abranger, na tipificação do crime, a
redução de alguém à condição análoga à de escravo, incluindo os requisitos para sua
caracterização e inserindo nas mesmas penas os partícipes.” (BRISOLA et al., 2017, p.
69). Tal movimento envolveu importantes atores na sua condução.
Em 1990, a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a sociedade civil começaram
a pressionar fortemente o Brasil para começar a reconhecer a existência do
trabalho escravo no país, mas foi somente em 1995 que isto aconteceu após
várias denúncias à OIT. No mesmo ano, o governo criou o Programa de
Erradicação do Trabalho Forçado e do Aliciamento de Trabalhadores
(Perfor), que, posteriormente extinto, foi substituído pelo Grupo Executivo de
Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf). Conforme relato do Instituto Pacto
Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO, 2015), mais de dez mil trabalhadores foram libertados de condições análogas à de escravo, no
Brasil, no período de 2011 a abril de 2015. (BRISOLA et al., 2017, p.
70).
Comparando-a de uma forma global, a legislação brasileira consolidou-se como
elemento de grande valor na luta contra estas formas deletérias de relação social. Em
2003 o artigo 149 do Código Penal Brasileiro definiu o crime de reduzir alguém ‘à
condição análoga à de escravo, identificando quatro condutas que, em conjunto ou
isoladas, caracterizavam o crime: i) submeter o trabalhador a trabalho forçado; ii) a
jornada exaustiva; iii) a condições degradantes de trabalho; e iv) restringir sua
locomoção. (OIT, 2011) (MASCARENHAS et al., 2015). Ressalte-se que não é
necessária a consciência dessa situação por parte do trabalhador, dado que, como já
ressaltamos, esta inserida no interior de práticas tradicionais. Além disso, o trabalhador
a que nos referimos não é propriedade tal como fora o negro escravizado outrora, mas,
por outro lado, não exerce e não pode exercer a plenitude de sua liberdade. No entanto,
as condições são igualmente degradantes e deletérias à sua própria vida. Tal tema tem
uma evolução jurídica de grande importância para a erradicação do trabalho desumano e
precarizado que é o trabalho análogo ao de escravo.
Em 1948, o Brasil ratificou a declaração dos Direitos Humanos, um dos mais
importantes dispositivos de combate a toda forma de tratamento desigual.
Seu art. 4º especifica claramente: Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as
suas formas. E, em 1957, ratificou a Convenção n. 29 da OIT, que trata sobre
o trabalho forçado. A partir de 1970 começaram as denúncias de trabalho
análogo ao de escravo no Brasil à OIT. (BRISOLA et al., 2017, p. 69).
Promulgada ainda dentro de um contexto de Estado Providencial, a Constituição
Federal de 1988 assevera em seu artigo 193 que a ordem social tem como base o
primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Disse segue-se
que:
A Constituição de 1988 traz, em seu corpo, 81 vezes a palavra trabalho, em
uma análise geral de todo o tema, conclui-se que a Carta Magna de 1988
considera trabalho como sendo fruto da relação de emprego que gere riqueza
não apenas para quem o realiza, mas também para a sociedade como um todo
(...). (MARTA & KUMAGAI, 2011, p. 18).
Alves assinala que:
A ação do Estado, fundamentalmente dos promotores públicos do trabalho,
vai se dar na direção do cumprimento da legislação trabalhista pelos
complexos agroindustriais. (...) O avanço do neoliberalismo provocará a crise
do mundo do trabalho e das relações de trabalho, impondo, por conta disso, a perda de poder político e de ação dos movimentos sociais, especialmente, do
movimento sindical dos trabalhadores. (ALVES, 2017, p. 385).
Para Marta e Kumagai urge distribuir de forma equânime o que pelo trabalho de
todos foi e é conquistado, assim como reconhecer de uma vez por todas que é “o ser
humano a base e o topo do direito.” (ALARCÓN apud MARTA & kUMAGAI, 2011, p.
14.), sendo a dignidade um ‘supraprincípio” constitucional. O trabalho, que é um valor
social deve se orientar pelo alcance da liberdade, dignidade e socialização do indivíduo.
Nesse sentido,
O direito ao trabalho é um dos mais importantes – se não o mais- dos direitos
humanos, cujo valor social é inestimável. Ainda, pose-se dizer que o trabalho
participa da constituição pessoal, faz parte da vida material e psíquica, provê
subsistência e oportuniza o reconhecimento social do sujeito no mundo e o
seu. (MARTA & KUMAGAI, 2011, p. 29).
Desta feita, em que pese o primado da propriedade no status que se encontra a
sociedade atual, a dignidade humana, a vida e o direito ao trabalho digno e decente,
conforme conceitua a OIT, devem ter preponderância em relação àquele se quisermos
alcançar os níveis mínimos de uma sociedade livre, justa, igualitária e sustentável.
Considerações finais
Do que foi colocado acima, vemos o absurdo da “coisificação” da pessoa
humana coexistindo com o Estado Democrático de Direito, visto que o fruto do trabalho
é uma riqueza social e pessoal, e, em tese, deveria ser direcionado a todos, seja por parte
do Estado, seja por parte da sociedade civil, uma vez que o mercado não assume essa
responsabilidade nem a objetiva.
Retomando em termos sintéticos as principais ponderações de nosso resumo,
destaquemos, do ponto de vista nacional, o caráter híbrido do país, sendo esta a marca
do Brasil contemporâneo. Adentrando no mundo do trabalho, vimos que o país
consegue conciliar uma mentalidade escravista aos novos ditames da produção,
congregando, desta feita, um crescente tecnicismo, modernização e flexibilização com o
trabalho degradante e análogo ao de escravo em fins do século XX e inícios do XXI.
No plano externo, vemos que o neoliberalismo sob o signo da desregulação
assume uma postura de ataque aos direitos sociais há muito consolidados, com vistas a
dar cabo de sua produção veloz e flexível, descaracterizando a clássica relação capital x
trabalho, ao eximir os patrões de suas obrigações para com os trabalhadores, emergindo
novas formas de contratação e de precarização.
O Direito, conforme foi destacado, cumpre um papel fulcral diante da tímida
reação da classe trabalhadora em tempos de incertezas, crises e mudanças. Em termos
historiográficos, o tempo da lei ao não corresponder ao tempo dos negócios abre um
leque de conflitos importantes nessa virada de século, resguardando direitos como o
trabalhista. Nesse embate entre a propriedade e o trabalho, vemos que ainda se afigura o
Direito como elemento basilar de estruturação social.
Nesse contexto pouco promissor, algumas ações de embate ocorrem no Brasil e
no mundo. Por outro lado, há muito a ser conquistado, diante do regresso conservador
que se agigante em escala global e no Brasil, negando abertamente a cidadania e a
igualdade às minorias sociais. Urge estabelecer novas formas de organização da classe
trabalhadora, consolidando seu direito ao trabalho, o que passa necessariamente pela
revisão e reflexão sobre o conceito e a função social da propriedade privada exclusiva,
ponto nodal do sistema e vórtice do movimento histórico que todos estamos inseridos.
Referências
ALVES, Francisco. A terceirização na agricultura brasileira: impactos sobre os
trabalhadores assalariados rurais. In: NAVARRO, Vera Lúcia; LOURENÇO, Edvânia
Ângela de Souza. O avesso do trabalho IV: terceirização: precarização e
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