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I Seminário Internacional de Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul | Porto Alegre | Set. 2015
O Grande Lar Argentino: A cidadania feminina segundo Eva Perón
Jéssica Mayara de Melo Carvalho1
Resumo
O objetivo dessa pesquisa repousou-se na realização de uma análise teórica do discurso dirigido às mulheres argentinas
sobre um ideal de feminilidade promovido por Eva Perón e pelo Peronismo Clássico. A delimitação da postura adotada
pelo peronismo ocorreu após uma reconstrução da disputa pela conquista da Lei 13.010 de sufrágio feminino na
Argentina. No discurso peronista, se via em Evita, uma diretriz a ser seguida pelas argentinas como exemplo idealizado
de feminilidade por possuir uma ‘’moralidade feminina’’ e que justificaria a participação das mulheres no Estado pelo
cuidado com o Outro, ou seja, por uma ‘’ética do cuidado’’. Nesse sentido, o Estado argentino ao longo do primeiro e
segundo governo de Juan Perón, estaria organizado como uma extensão dos lares à esfera pública como se fosse um
‘’Grande Lar’’ e as mulheres, ainda que estivessem inseridas na esfera pública, não deixariam de exercer suas
atividades de cuidadoras, reforçando seus papéis socialmente naturalizados de gênero.
Palavras-chave: Teoria Feminista; Eva Perón; Ética do cuidado; Direito das Mulheres.
‘’A primeira coisa a se fazer no movimento feminino da minha Pátria, foi resolver o velho
problema dos direitos políticos da mulher’’ essa conhecida passagem de Eva Perón2 (1995, p.213)
revela o posicionamento que ela e o peronismo assumiram frente à sanção da Lei 13.010 de sufrágio
feminino na Argentina. O ícone feminino levantou a bandeira desse direito, à medida que teve
participação efetiva na etapa final de aprovação da lei. E a partir da promoção de sua imagem,
ocorreu um ocultamento dos movimentos de luta pró-sufrágio anteriores, à medida que não eram
mencionados em seus discursos. A aprovação do sufrágio feminino implicou somar quatro milhões
de pessoas às práticas políticas asseguradas constitucionalmente. Essa transformação das mulheres
em eleitoras decorreu de uma série de debates desenvolvidos ao longo da década de 1930 a 1940,
período esse em que foi apresentada ao Congresso mais de uma dezena de projetos que, embora não
tenham sido aprovados, foi importante no sentido de trazer ao espaço público a discussão sobre a
cidadania feminina argentina3.
1 Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. E-mail: jemmelo@live.com. Agência de
fomento: CAPES. 2 Ao longo do texto, será nomeada indistintamente Eva Duarte, Eva Duarte de Perón, Eva Perón, Evita ou Eva, sem ter
em conta que tais nomes dizem respeito a distintos momentos históricos cuja análise excede a profundidade deste
trabalho. 3 É necessário pontuar que antes de 1947, o voto feminino já tinha sido sancionado na província de San Juan. Em 1864
no governo de Sarmiento, as mulheres votaram pela primeira vez no país, para eleger prefeitos dos distritos sanjuaninos.
Então, no ano de 1927, a Constituição da província outorgou as mulheres os mesmos direitos e obrigações eleitorais que
os homens. (Disponível em: <http://www.diariodecuyo.com.ar/home/new_noticia.php?noticia_id=275429>. Acesso:
18. nov. 2013).
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A Lei 13.010 de Direitos Políticos Femininos, sancionada no dia 09 de setembro de 1947 e
promulgada em 23 de setembro do mesmo ano pelo decreto do Poder Executivo Nº 29.465,
constituiu o primeiro passo para a incorporação formal das mulheres no âmbito político do país4. A
partir da promulgação da lei, as mulheres passaram a ter os mesmos direitos e deveres políticos que
a reforma eleitoral de 1912 havia garantido apenas aos homens, com a promulgação da Lei Saénz
Peña5.
O governo peronista6 teve um interesse especial na ampliação da cidadania no processo de
eleição dos governantes, já que incorporação das mulheres à esfera política formava parte da
estratégia de ampliação das bases de sustentação do peronismo, visando à inclusão de setores
historicamente excluídos. Valobra (2010) afirma que há uma série de conflitos sobre a cidadania
argentina e as condições essenciais para que esse direito fosse logrado nos diversos governos do
país. Para ela, o peronismo representou ‘’[...] um momento de amplitude da cidadania política tanto
para as mulheres, como para outros sujeitos históricos. (tradução livre) 7’’
A campanha a favor do voto feminino foi um dos fatores que serviram como instrumento a
Eva Perón para lograr na construção de uma posição de liderança feminina8. Entretanto, quando se
analisa a campanha, é necessário retomar a história de lutas dos grupos feministas e sufragistas
antecedentes a ela. Porque suas integrantes realizaram uma luta histórica ao exercer pressão sobre o
Estado e ajudaram a manter o tema sempre em debate no espaço público. Porém, na imaginação
popular tanto de simpatizantes peronistas como antiperonistas, reside à crença de que Eva Perón foi
a grande propulsora da aprovação do sufrágio feminino. O que é problemático porque se vê um
ocultamento dos antecedentes dessa luta histórica (BARRY, 2011, p. 125).
E ao longo do primeiro mandato de Juan Perón (1946-1952), María Eva passa a liderar a
diretriz do movimento de mulheres do partido Justicialista, como o Partido Peronista Feminino
(1949). Além de assumir uma postura política enquanto primeira-dama, ela desenvolverá projetos
assistencialistas e de inclusão das minorias e que, no entanto, o público feminino e os trabalhadores
4 O primeiro projeto de Lei foi enviado para Câmara dos Deputados no ano de 1919 por R. Anaya. Ver mais em:
CASTIÑEIRAS, Noemí. Sufragio Femenino: Algo más que un trámite legal. (Org.) Instituto Nacional de
Investigaciones Históricas Eva Perón. Buenos Aires: Cooperativa Chilavert, 2007. 5Também conhecida como Lei 8.871, sancionada pelo Congresso da Nação Argentina no dia 10 de fevereiro de 1912.
Estabelecendo o voto universal (lê-se, apenas para homens), secreto e obrigatório para os cidadãos argentinos, nativos
ou naturalizados, maiores de 18 anos de idade e que fossem portadores de título eleitoral. 6 Neste trabalho, trataremos do período chamado de Peronismo Clássico que será de 1946 a 1955.
7 [...] un momento de amplitud de la ciudadanía política tanto para las mujeres como para otros sujetos históricos.
(VALOBRA, 2010, p. 173) 8 Segundo Barry (2011, p.141) ‘’Evita [...] se transformou em porta-bandeira da libertação feminina’’.
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(que serão chamados por ela de descamisados) serão o foco central de suas ações. A característica
fundamental da performance desenvolvida por Evita será a de incorporação do ‘’ideal’’ ressaltado
pelo peronismo e reiterado por um caráter sagrado da função maternal nas esferas público e privada
e que será chamada de ‘’obrigações sagradas’’9.
Cada mulher deve pensar que é obrigação na nossa terra, dar filhos sãos e formar homens
virtuosos que saibam sacrificar e lutar pelos verdadeiros interesses da Nação. Cada mulher
deve pensar que suas obrigações aumentaram porque o Estado, ao outorgar direitos, tem
paralelamente à necessidade de exigir que toda mãe seja uma professora para seus filhos,
que na sua casa construa um altar de virtude e de respeito, [...] o lar, há de ser sagrado.
Cada mulher deve saber que enquanto o homem gasta suas energias para alimentar o lar, ela
deve ser a alma que inspira respeito e virtude. [...] Cada uma das mulheres que interferirão
na vida pública irão representar um modelo de esforços espirituais que complemente a ação
dos homens, para que nessa abençoada terra argentina, possamos construir uma sociedade
que seja afirmada nos cimentos da virtude. (tradução livre) 10
O título do trabalho ‘’O grande lar argentino [...]’’ refere-se ao peronismo, que vê o Estado
como uma espécie de lar, onde suas bases estariam arraigadas em cada lar individualmente e à
medida que fossem fortificados, o país também seria por ser essencialmente constituído pelas
famílias argentinas. Para elucidar ainda mais a analogia peronista aos lares, Eva Perón vai
desenvolver uma política de reafirmação dos papeis socialmente naturalizados das donas de casa,
afirmando a importância que exerceriam uma função primordial de zelar pelos lares e,
consequentemente, pela formação dos cidadãos e sustentação da Nação argentina, pois ‘’vive o seu
lar, vivendo o país’’ (PERÓN, 1996, p. 39). Biroli (2013) afirma que o pensamento maternal tem
como um dos pontos centrais, enquanto crítica ao feminismo, resgatar vozes femininas no sentido
de compreender uma ‘’ética diferenciada’’ por meio de um acesso às esferas da vida,
fundamentando em uma sensibilidade feminina.
Para Marysa Navarro (1981), a líder feminina havia atribuído um sentido especial ao Partido
Peronista Feminino que tinha como fundamento central ampliar e popularizar as benfeitorias do
presidente Perón. A autora cita uma passagem de Perón: ‘’o partido é um grande lar e cada unidade
9 Ver mais em: GIUVANT, J. La visible Eva Perón y el invisible rol político femenino: 1946-1952. In: Cadernos de
Ciências Sociais, v 5, n 1. (Org.) Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 1985. 10
Cada mujer debe pensar que en nuestra tierra es obligación dar hijos sanos y formar hombres virtuosos que sepan
sacrificar y luchar por los verdaderos intereses de la Nación. Cada mujer debe pensar que sus obligaciones han
aumentado porque el Estado, al otorgar derechos, tiene paralelamente la necesidad de exigir que toda madre sea una
maestra para sus hijos, que en su casa construya un altar de virtud y de respecto, […] el hogar, que ha de ser sagrado.
Cada mujer debe saber que mientras el hombre gasta sus energías para alimentar al hogar, ella ha de constituir el alma
que infunde el respecto y la virtud. […] Cada una de las mujeres que intervendrá en la vida pública ha de representar un
modelo de esfuerzos espirituales que complemente la acción de los hombres, para que en esta bendita tierra argentina
podamos construir una sociedad que se afirme en los cimientos de la virtud. (PERÓN, 1996, p. 70-1)
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básica, uma família’’. Assim, é importante compreender como o movimento peronista e seus
simpatizantes vão se relacionar com Eva, que além de uma figura sagrada dentro do partido, se
converte em um símbolo de feminilidade e maternalidade, que serão elementos complementares a
sua consagração. Ainda é necessário pontuar que ainda que a memória de Eva possua um caráter
sagrado segundo alguns simpatizantes, ela em seus discursos e em principal, no livro La Razón de
Mí Vida (1995) produz um olhar sobre si mesma dizendo que se vê a partir de Perón, como se fosse
uma extensão ou reflexo de sua imagem11
.
Essa personagem emblemática declarava que suas ações eram impulsionadas pelos
sentimentos que levava consigo e que, sobretudo, o amor era o que definia a natureza da mulher e o
que a faria ‘’simplesmente mulher’’, afirmando que as mulheres não poderiam viver para si
mesmas, assim como os homens, por possuir uma ‘’dependência afetiva’’(CALVERA, 1990, p. 28-
9). Evita, líder política, imagem sacralizada e sob a áurea maternal, encarnando a sensibilidade
feminina, irá servir de diretriz ao comportamento a ser seguido pelas mulheres argentinas. Como
diria Beauvoir (1970, p. 59) ‘’não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando
a natureza em sua afetividade’’, o fator biológico apontado por Evita não deve ser compreendida a
forma de se definir o ‘’ser mulher’’.
Nesse sentido, a líder feminina implicaria em uma proteção, através da organização e da
experiência de uma cultura política, que não se vincularia necessariamente ao acesso a espaços de
decisão. Em todo caso, as Unidades Básicas que serao mecanismos do Partido Peronista Feminino,
serviriam como espaços de criação de uma nova identidade feminina (mulheres peronistas), onde
sua forma de fazer política seria sintetizada por ‘’fazer o bem’’. Onde suas atividades seriam uma
ampliação da maternidade (como cozinheiras, professoras, enfermeiras e outras) definindo-se como
‘’obra social’’.
Havendo uma valorização das ações naturalizadas ao gênero feminino como vocação específica ao
serviço social e que foram interpretados por Bianchi e Sanchís (1988) como um discurso de
11
A imagem de santificação de Evita é compreendida por alguns historiadores como uma construção que ocorreu ao
longo do governo peronista e em principal, com uma intensificação após sua morte em 1952. Em que se associava ela,
uma áurea de benevolência que tenha como razão de vida realizar o ‘’bem comum’’ através de ações assistencialistas e
de ajuda social, minimizando a injustiça social. E havia uma oposição ao imaginário desse mito santificado por uma
população mais conservadora do país que a viam como uma figura profana por sua trajetória de atriz e assim, não
estaria capacitada para um suposto prestigio social que a posição de esposa do presidente possuía. É necessário
esclarecer que aqui, não me refiro às tensões políticas que estarão arraigadas nos discursos políticos de oposição
associados ao governo peronista, se não, a figura de Eva em quanto uma líder feminina. Ver más en: DA SILVA, P.
‘’Memória e História de Eva Perón’’. En: Revista de História. São Paulo, n. 170, p. 143-173, jan-jun., 2014.
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inserção das mulheres na esfera pública pelo movimento peronista como um apelo essencialista da
identidade de gênero feminino.
A construção de um ideal de feminilidade associado à concepção de uma natureza própria
das mulheres, a adesão do gênero feminino às tarefas de reprodução social e ao mesmo
tempo, a abertura para as mulheres do campo político – através do sufrágio e as estruturas
partidárias-, criam uma imagem peculiar de ‘’se fazer política’’ pelas mulheres. [...] a
existência de uma política ‘’feminina’’ carregada de conteúdos e moralidades que encontra
seu fundamento último na natureza específica das mulheres. (tradução livre) 12
Redesenhando a política peronista a partir do deslocamento na compreensão do sujeito e das
identidades políticas, vê-se que mesmo com a aprovação da Lei 13.010 de direitos políticos
femininos no inicio do primeiro governo de Juan Perón, há uma exaltação e valorização do
altruísmo, da dedicação e do amor enquanto virtudes características femininas. O apoio do Partido
Justicialista as mulheres à categoria de cidadãs era baseada na crença de que se essas virtudes
fossem levadas aos espaços de decisões políticas, promoveriam uma moralização através de uma
‘’boa política’’, transformando-se em forte de harmonia e unidade do Estado (BIANCHI;
SANCHIS, 1988b, p. 198).
Será discorrido a seguir um debate teórico entre as autoras Carol Gilligan e Nancy Fraser para
compreender melhor o discurso mobilizado pelo Peronismo e que será direcionado as mulheres
argentinas no intuito de buscarmos uma resposta se haveria um reconhecimento sem ética dos
direitos femininos a partir da aprovação da Lei 13.010. Sobre a questão da maternalidade e de uma
sustentação da identidade feminina, segundo Auad (2012-2013), irá aparecer em estudos de
correntes diferencialistas, assim como o trabalho de Carol Gilligan em Uma voz diferente (1982).
Em que a característica fundamental dessa diretriz de pensamento dá-se pelo caráter apologético das
diferenças, na sustentação de uma possível essência feminina, sem que ocorra uma problematização
referente à distinção com base na categoria de gênero.
[...] o cuidado e interesse por outros que infundem a psicologia do desenvolvimento das
mulheres, são responsáveis pelo que é tido em geral por problemático em sua natureza. [...]
as mulheres não apenas se definem num contexto de relacionamento humano, mas também
se julgam em termos da sua capacidade de cuidar. O lugar das mulheres na vida dos
homens tem sido aquele de alimentadora, cuidadora, e companheira, a tecelã daquelas redes
de relacionamentos nas quais ela por sua vez confia. (GILLIGAN, 1982, p.27)
12
La construcción de un ideal de femineidad asociado a la concepción de una naturaleza propia de las mujeres, la
adscripción del género femenino a las tareas de reproducción social y al mismo tiempo a la apertura para las mujeres del
campo político – a través del sufragio y las estructuras partidarias-, crean una peculiar imagen del ‘’hacer política’’
desde las mujeres. […] la existencia de una política ‘’femenina’’ cargada de contenidos y moralidades que encuentra su
fundamentación última en la naturaleza específica de las mujeres’’ (Idem: p. 194).
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Gilligan (1982) procura expor o processo de formação da identidade das mulheres e a
transformação da trajetória moral na adolescência à vida adulta, dessa forma, resalta a distinção
entre as vozes femininas e masculinas para tornar compreensíveis esses dois modos de pensar. Em
que a forma de apreender os problemas pelas mulheres, dar-se-ia ao relacionar ‘’a bondade (...), seu
cuidado e sensibilidade às necessidades dos outros’’ (Idem: p.29) e que interferirá diretamente na
deficiência de seu desenvolvimento moral.
A construção do problema moral está diretamente ligada à transição das mulheres à vida
adulta, de modo que suas decisões estarão pautadas sempre na tentativa de manter os
relacionamentos, pois, parte dessa moralidade deve-se a necessidade de se preocupar com si e com
o mundo, devido à existência de uma ‘’importância por toda a vida da conexão entre o eu e o outro,
a universalidade da compaixão e cuidado’’. No sentido de que ao seguir uma diretriz moral, busca-
se a melhor forma de não prejudicar o outro, pois há uma questão intrínseca referente à
responsabilidade, baseada em princípios formuladores de uma concepção de justiça (GILLIGAN,
1982, p.106-8). Nesse sentido, as mulheres assumem um papel naturalizado ao longo da história de
tornarem-se responsáveis por cuidar dos outros, fazendo com que vozes para além da sua própria,
sejam consideradas por elas.
Para o peronismo, essa responsabilidade moral das mulheres aparecerá como uma orientação
do movimento, como base de sustentação e dedicação das mulheres para com a Nação, de modo que
se torna evidente esse papel ‘’moral’’ a ser exercido, a partir de análises do discurso de Evita Perón
e de uma observação das diretrizes que regulavam as instituições respaldadas pelo governo, assim
como os Lares de Transição e a Fundação de Ajuda Social Eva Perón.
A Fundação Eva Perón articulou um olhar específico à condição das mulheres com o fim de
harmonizar vários aspectos nos quais elas haviam sido deixadas de lado. […] pretendia-se
levar adiante o trabalho de ‘’justiça social’’ a uma população vulnerável às adversidades do
meio, [...] por outro lado, as mulheres já possuíam um reconhecimento de um status político
depois de terem alcançado seus direitos políticos pela lei 13.010 em 1947. (tradução livre) 13
As intervenções da Fundação Eva Perón não tiveram como efeito uma mobilização feminina
que tenha ultrapassado qualquer pretensão de consenso passivo ou domestificação. Era reivindicada
13
La Fundación Eva Perón articuló una mirada específica a la condición de las mujeres con el fin de aunar varios
aspectos en los que ellas habían sido dejadas de lado. […] se pretendía llevar adelante la labor de ‘’justicia social’’ entre
una población vulnerable a las adversidades del medio, […] por otro lado, las mujeres ya tenían reconocimiento de un
estatus político novel luego de haber logrado sus derechos políticos por la Ley 13.10 en 1947. (VALOBRA, 2008, p.16)
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às mulheres uma postura de altruísmo, dedicação e amor frente a questões sociopolíticas e que uma
política feminina peronista poderia ‘’se definir como verdadeira na medida em que coincide com a
realidade [...] mediante o exercício ampliado dessa nova maternalidade, de acordo com o modelo de
Eva Perón, as mulheres podem – como Eva – se transformarem na consciência ética da
virtude’’(BIANCHI; SANCHÍS, 1988b, p. 202). Nesse sentido, Evita servia como uma orientação
de postura a ser seguida pelas mulheres, como forma de exercer uma ‘’boa política’’ de acordo com
os princípios de moralidade e exercendo a missão sublime de feminilidade, ao zelar por uma Pátria
ainda que fosse um lar comum, estaria protegida pela maternidade feminina que atua como ‘’fonte
de harmonia e unidade’’(Ibidem).
Para analisar a questão da feminilidade com o caso do peronismo na Argentina, utilizaremos a
corrente diferencialista adotada epistemologicamente por Carol Gilligan (1982) a fim de verificar as
sustentações estruturais que legitimarão a obrigação feminina a uma ética do cuidado. A autora para
tentar compreender os conceitos de self e moralidade, realizará uma série de entrevistas com
mulheres que estão prestes a realizar aborto e, posteriormente, com a ação efetuada. Ela utiliza-se
dessa metodologia como forma de análise às questões que irão permear as ações das mulheres ao
longo dessa decisão de cunho ‘’moral’’. As problematizações que surgirão serão relacionadas
dificuldade de realização de um auto-sacrificio para a proteção ao outro, exigindo a abdicação da
sua própria voz a partir de sua responsabilidade de escolha (GILLIGAN, 1982, p. 93).
Esse auto-sacrificio só ocorrerá a partir de uma autonomização do individuo à medida que precisa
reconhecer que outras pessoas também influenciarão em seu destino, e isso, demanda uma limitação
das responsabilidades sem que ocorra um abandono com a preocupação moral. Caso não exista uma
limitação de prioridades frente às decisões, o individuo passará a ter uma sensação de ‘’ser
responsável pelo mundo’’ (Idem, p. 31). Em distinção ao auto-sacrificio, a responsabilidade
relaciona-se ao entendimento das causas do sofrimento e a capacidade de prever quais ações
provavelmente poderão causar dano a alguém. Assim, inclui tanto a dimensão do self como do
outro, visto que independente do sentido ideal de moralidade ao buscar não afetar outra pessoa,
qualquer decisão que seja tomada, terá implicações e com isso, torna-se necessário a partir de uma
lista de prioridades, tomar a decisão mais apropriada e justa de acordo com a circunstância existente
(GILLIGAN, 1982, p.104).
A disparidade entre o egoísmo (encontrado no self) e a responsabilidade, que decorre de um
conflito permanente entre o eu e os outros, onde há a possibilidade de se optar pelas prioridades,
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contudo, deve-se ser atenta a responsabilidade das implicações de sua escolha às decorrentes
experiências (Idem: p. 32). Gilligan (1982) aponta que as mulheres tenderiam a uma passividade da
dependência por absterem das consequências que suas escolhas implicariam e dessa forma, estariam
mais aptas a desenvolver o exercício de atividades relacionadas ao cuidado. Entretanto, ‘’ o cuidado
transforma-se em uma injunção universal, uma ética pessoal que, liberta de sua interpretação
convencional, leva à reformulação do dilema de um modo que permite a presunção de
responsabilidade por opção’’. Ao fim da exposição argumentativa, Gilligan conclui que a
perspectiva das mulheres em relação ao desenvolvimento moral:
A moralidade é uma prescrição, uma coisa a obedecer, e a ideia de ter um conceito de
moralidade é tentar imaginar o que as pessoas podem fazer para tornar a vida uns com os
outros vivíveis, uma espécie de equilíbrio, uma harmonia em que todos sintam que têm
lugar e uma participação igual nas coisas. (NED, apud GILLIGAN, 1982, p.109).
Para a diferencialista Carol Gilligan, a noção de direito será compreendida a partir de uma
ideia de justiça em que se acredita ser igual o self com os demais. A implicação dessa ideia estaria
um desafio ao auto-sacrificio e a autonegação de si mesmo, em que a inocência pressuposta nesse
último, demandaria uma consciência de escolha (originando uma consideração sobre a própria
escolha do individuo, para que houvesse uma legitimação das categorias de self e do outro a partir
da noção de direito). Em relação aos relacionamentos, que é a crença de ser o eixo norteador das
ações femininas, surge uma ampliação da noção de cuidado à medida que se busca não prejudicar o
outro e, apenas através de uma consciência de responsabilidade, é possível ter controle e encontrar
uma estabilização relacional de modo que se compreenda a então dinâmica de um entendimento
moral. Aqui, a ética surge como uma associação ‘’da atividade do pensamento à atividade do
cuidado’’, tornando-se uma noção ampliada ao intentar manter o controle dessa dinâmica
(GILLIGAN, 1982, p. 160-1).
Nesse sentido, a questão moral situa-se na possibilidade de ação em que é demandado certo
cuidado quanto às consequências das escolhas, acarretando na busca do ideal de responsabilidade
onde são tensionadas as questões referentes ao egoísmo e ao auto-sacrificio. De modo que para as
mulheres, diferentemente dos homens, com a passagem da infância a vida adulta, há uma
redefinição dessa noção de cuidado em que surge uma maior preocupação quanto à ética de
responsabilidade e essa, está sempre em zelo quanto à aprovação do outro.
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A principal distinção entre os dois gêneros, masculino e feminino, se encontra nas diferentes
experiências que terão ao longo da vida, conforme aponta Gilligan (1982, p.185): ‘’Minha pesquisa
sugere que homens e mulheres podem falar linguagens diferentes que presumem ser a mesma,
utilizando palavras semelhantes para codificar experiências dispares do self e dos relacionamentos
sociais’’. Então, é possível concluir que a voz diferente, será entoada pelas mulheres a partir de suas
experiências sociais adquiridas ao longo de sua vida, onde seu desenvolvimento será de articulação
frequente da tensão entre a responsabilidade e os direitos e, uma compreensão diferencialista estaria
pautada no reconhecimento dessas diferenças de experiências que implicaria em uma visão
ampliada da maturidade feminina.
Depois de observar o entendimento de uma teoria baseada na concessão das diferenças
exercidas nas esferas pública e privada, como uma justificativa da naturalização social das
identidades de gênero, é necessária realizar uma contraposição teórica para um debate mais crítico e
profundo. Desse modo, a teoria da justiça por Nancy Fraser aparece como uma boa forma de se
contrastar a questão de distribuição de papéis sociais abordados anteriormente. Fraser buscará
desenvolver um projeto que pense a justiça justificada por um principio de igualdade ao invés, de
uma reafirmação das diferenças dadas por visões de mundo específicas, incluindo a dimensão
feminina como foi abordada por Carol Gilligan.
Em referência as lutas sociais14
sobre reconhecimento de gênero, são necessárias apontar sua
orientação de ação no sentido de buscar uma equidade ao problematizar a cultura como local de
disputas por reajustes de definições simbólicas. Para realização de uma reflexão nesse sentido,
Nancy Fraser partirá de duas diretrizes principais: de um lado, a Teoria Crítica como fonte para se
pensar em questões de justiça, participação e outras relevantes a esfera pública e do outro, a Teoria
Política Feminista com enfoque em questões pós-estruturalistas de gênero. A questão fundamental
de Fraser (1987 [1985]) com a Teoria Crítica será evidenciada a partir do artigo O que é Crítico na
Teoria Crítica? O argumento de Habermas e gênero, em que se traça uma crítica à teoria
habermasiana apontando os traços conservadores devido à presença de um discurso androcêntrico e
insensível em relação às questões de gênero (MATOS; CYPRIANO, 2008). A partir disso, serão
traçado três principais críticas e seriam as seguintes:
14
Para Patrícia Mattos em O reconhecimento, entre a Justiça e a Identidade, In: Lua Nova, n. 63, pág. 143-161, 2004;
Fraser vai apontar a necessidade de uma intercomunicação entre distribuição e reconhecimento a partir de um
diagnóstico referente às novas demandas dos movimentos sociais. O maior desafio da teórica será o de conceitualizar
reconhecimento cultural com a igualdade civil, de modo que ambos se sustentem e não se enfraqueçam mutuamente.
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(i) a manutenção da ideia de dois sistemas (permanecendo o filósofo na chave dos sistemas
duais); (ii) a perseverança na afirmação de uma relação dual entre instituições do mercado e
instituições políticas e (iii) a afirmação de uma concepção masculina, burguesa e elitista da
esfera pública. (Idem: p.15)
.Sinteticamente pode-se afirmar que Fraser à questão da dicotomia público e privado na
Teoria da Ação Comunicativa habermasiana, entenderá que essa visão proporcionaria uma
desvalorização do trabalho doméstico, restrito ao espaço doméstico e reproduzido pelo ‘’mundo da
vida’’. Em oposição ao espaço denominado por Habermas como ‘’sistema’’ que seria a esfera de
mercado caracterizada pela economia. Dessa forma, Fraser (2007) questiona a possibilidade de
existência de um cruzamento entre esses espaços e que será desconsiderado por ele, já que teria
concebido a esfera pública como ‘’exclusivamente masculina e burguesa’’ (MATOS; CYPRIANO,
2008, p.15).
A negligência quanto às questões de gênero em Habermas, verificadas por Fraser, poderia ser
solucionada ao se pensar em uma generificação da oposição dicotômica das esferas públicas e
privadas, no sentido de apurar os papéis de gênero como passo inicial a um projeto de emancipação,
como por exemplo, o trabalho doméstico das mulheres, comumente marginalizado e não
reconhecido. No sentido de que ao contrário do ocutamento habermasiano sobre os aspectos de
gênero na esfera pública e privada, há uma reivindicação das feministas pelo Estado como um
espaço em que deve ocorrer um debate sobre questões políticas e sociais e, fundamentalmente, uma
flexibilização entre diversos setores da vida, como o econômico, político e doméstico. Ao tratar das
categorias de redistribuição e reconhecimento, Fraser proporá um modelo que possibilita a
articulação da justiça redistributiva com a justiça de reconhecimento, sem que se transforme em um
projeto de ‘’esquizofrenia filosófica’’15
.
Para Nancy Fraser (2007a), as forças da política progressista dividiram-se em dois
seguimentos e no primeiro, encontram-se questões referentes à redistribuição16
dos atores políticos
frente a demandas relacionadas aos bens. Os indivíduos que constituem esse seguimento têm a
15
Fraser em seu texto aponta a dificuldade em alinhar as reivindicações por justiça referente à distribuição, que pertence
à moralidade e, ao reconhecimento que é pertencente à ética. Haveria uma complicada integração entre ambos, visto
que até então, àqueles que tentaram combiná-los sempre correram o risco de padecer ao que ela denominará de
‘’esquizofrenia filosófica’’, que se dá pela incompatibilidade dessas questões filosóficas. (Idem: p.105) 16
Em sua maioria, são abordadas as questões de orientação redistributiva com o objetivo de se produzir uma análise
teórica referente à justiça social.
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problemática direcionada a uma melhor distribuição17
dos bens de classes elevadas aos mais pobres.
Enquanto o reconhecimento estaria relacionado a questões que abrange a visão de uma sociedade
tolerante a diferenças por meio da assimilação da cultura dominante em relação aos demais. Essa
diretriz política, busca o reconhecimento das distintas perspectivas das minorias, sejam elas étnicas,
de gênero ou de classe.
O projeto de articulação dar-se-ia no sentido de romper com o modelo padrão de
reconhecimento da identidade, exigindo agora, a necessidade de uma identidade específica de
grupo, ao passo que caso não ocorra esse reconhecimento, a cultura majoritária apresentaria um
dano à subjetividade das minorias. Segundo Santos (2008, p.753), Fraser teria reportado ao
‘’conceito de identidade como problemático e busca desvincular reconhecimento de identidade’’,
com isso, propõe a cultura de um o modelo de identidade baseado na autoafirmação remodelando a
identidade coletiva. Desse modo, ‘’o modelo de reconhecimento da identidade, a política de
reconhecimento significa política de identidade’’ (FRASER, 2007ª, p.106) e submeteria os
indivíduos a uma coerção referente a necessidade de pertencimentos à cultura do grupo,
ocasionando em uma possível segregação daqueles que se encontram deslocados e acobertando uma
possível dominação interna.
[...] proporei uma análise alternativa do reconhecimento. A linha proposta é tratar o
reconhecimento como uma questão de status social. Dessa perspectiva – que eu chamarei
de modelo de status – o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um
grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na interação social.
O não reconhecimento, consequentemente, não significa depreciação e deformação na
identidade do grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser
privado de participar como igual na vida social. (FRASER, 2007a, 107)
Em uma tentativa de assegurar a igualdade política através de uma paridade de participação, a
partir do modelo de status, Fraser propõe implementar medidas de reconhecimento como forma de
superação das injustiças sofridas por aqueles que se encontram descompassados para interagir em
pé de igualdade com os demais, o que teria como consequência uma busca por ‘’desinstitucionalizar
padrões de valorização cultural que implementem a paridade de participação e substituí-los por
padrões que a promovam’’ (FRASER, 2007a, p.109).
O modelo de status proposto pela autora busca evitar a diversos empecilhos apresentados por
um modelo de identidade, no sentido que: 1) evita uma possível essencialização das identidades; 2)
17
As políticas de distribuição possuem uma proximidade com questões articuladas à moral, ‘’conceito intrinsecamente
ligado ao de justiça’’ (SANTOS, 2008, p.751).
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resiste a uma criação de novas normas institucionais porque promoveria uma reformulação da
consciência; 3) contesta a uma possível reificação cultural; 4) promove a igualdade de status através
de uma paridade de participação na tentativa de manter uma interação dos indivíduos com o grupo.
Assim, para Fraser o modelo de status entende o reconhecimento de forma que esse não será
compreendido a partir do campo da ética, pois ao conhecer o reconhecimento como uma questão
de igualdade de status, ou seja, de paridade participativa18
, haveria uma abordagem deontológica do
reconhecimento (Ibidem).
O modo de interação igualitária entre os indivíduos através de uma concepção de justiça
ampliada e que através de uma proposta articulasse as dimensões de reconhecimento e
redistribuição como forma de correção das injustiças. Na tentativa de dialogar com Fraser e
Honneth, é possível verificar o reconhecimento para ambos, como uma questão de justiça
(moralidade) ou de boa vida (ética).
Segundo Axel Honneth, o reconhecimento pode ser compreendido como um problema de
ordem ética, porque somente ao ser reconhecido por outro sujeito, haveria a possibilidade de
formação completa da sua subjetividade. Em outras palavras, negar o reconhecimento a um
indivíduo é também, privá-lo dos pré-requisitos fundamentais para o seu pleno desenvolvimento
(Idem: p. 112-3). Ainda assim, Fraser ‘’diferentemente dele, (...) irá propor uma perspectiva dualista
de análise dos conflitos sociais com o objetivo de pensar um conceito de justiça social que agregue
essas duas dimensões, possibilitando, assim, uma teorização da cultura no capitalismo
contemporâneo’’ (MATTOS, 2004, p.149).
Honneth promove um diálogo com Taylor19
e nesse sentido, visualizará o reconhecimento
como uma forma de boa vida, pois a integridade humana seria dependente da aprovação ou do
reconhecimento das outras pessoas, ou seja, a “negação do reconhecimento é prejudicial porque
impede que as pessoas tenham uma visão positiva de si mesmas – uma visão que é adquirida
intersubjetivamente” (HONNETH, 1992, p.189). Assim, tanto um quanto o outro perceberão o não
reconhecimento como uma identidade fragmentada e como isso pode ocasionar um déficit de
18
‘’A norma da paridade participativa (...), pode justificar reivindicações por reconhecimento como normativamente
vinculantes para todos aqueles que concordem em seguir os termos justos da interação, sob condições do pluralismo
valorativo. ’’ (FRASER, 2007a, p. 113) 19
Charles Taylor é um autor relevante na produção da teoria do reconhecimento. Segundo ele, um “não reconhecimento
ou o falso reconhecimento pode ser uma forma de opressão, aprisionando sujeito em um modo de ser falso, distorcido e
reduzido. Além da simples falta de respeito, isso pode infligir uma grave ferida, submetendo as pessoas aos danos
resultantes do ódio por si próprias. O devido reconhecimento não é meramente uma cortesia, mas uma necessidade
humana vital” (TAYLOR, 1994, p. 25).
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reconhecimento da subjetividade humana. Portanto, os autores verificam que o não cumprimento
dos aspectos éticos pode constituir uma espécie de barreira para os indivíduos no sentido de
autorrespeito. Já Fraser, ao propor o modelo de status, se diferencia nos dois autores quanto ao
reconhecimento, pois para ela, seria uma questão relacionada à injustiça, tendo em vista que ‘’o
não reconhecimento é errado, já que constitui uma forma de subordinação institucionalizada – e,
portanto, uma séria violação da justiça” (FRASER, 2007a, p.112).
As vantagens de compreender o reconhecimento como uma questão de justiça, estariam em
recorrer a um padrão deontológico que permitiria a justificação de reivindicações por
reconhecimento como moralmente relacionada, sem que haja uma concepção universalmente
compartilhada referente à boa vida (FRASER, 2007a, p.113).
A representação das dimensões de justiça social em Nancy Fraser se apresentará como uma
possibilidade de transcender a determinadas questões relacionadas às ao gênero. O projeto
desenvolvido pela autora sugere um entrecruzamento das três dimensões do paradigma da justiça
social, que seria a redistribuição, reconhecimento e a representação (FRASER, 2007a), que pode ser
visualizado como uma possibilidade de trazer à tona a exclusão ocasionada em consequência de
uma identidade específica, de modo que a promoção da justiça implicaria a superação de uma
subordinação social, de desvalorização cultural e marginalização econômica. Por tanto, para a
autora, ‘’a teoria da justiça deve-se tornar tridimensional, incorporando a dimensão política da
representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do
reconhecimento’’(FRASER, 2009, p.17).
O impasse entre a autora e Gilligan, dar-se-ia por meio da justificativa dos direitos femininos
através de uma ética específica às mulheres por uma suposta visão de mundo própria a elas, cuja
propensão estaria em serem cuidadosas já que suas experiências de vida sempre seriam voltadas ao
outros. Em contraposição, Fraser evita essa eticidade específica ao pensar na questão do
reconhecimento, devido a caráter essencializante que é pressuposto na dimensão feminina segundo
a autora diferencialista. Pois, as minorias seriam ‘’falsamente’’ reconhecidas por ter negada sua
condição de interlocutores sociais integrais e estariam impedidos de participarem plenamente das
decisões da vida social, como consequência de modelos institucionalizados de valorização cultural
que estabelecem alguém como desmerecedor de respeito e estima, fruto de uma injustiça social,
pois segundo Fraser (2007a) o reconhecimento consiste em uma questão de justiça.
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Dessa maneira, se pode concluir que segundo a teoria da justiça de Nancy Fraser, o peronismo
clássico não desenvolveu medidas que pudessem efetivar uma ação transgressora ao papel feminino
socialmente naturalizado, pois, justificava a presença das mulheres na esfera política a partir de um
discurso essencialista que promovia a extensão do espaço doméstico ao público, sustentando suas
características populistas ao utilizar as mulheres para desenvolver atividades de cuidado como
medidas assistencialistas à população. Nesse movimento, Evita Perón tornou-se ícone de um ideal
de feminilidade a ser seguido pelas mulheres argentinas, e ainda que ela desenvolvesse atividades a
partir de um espaço de decisões políticas, manteve uma égide sacralizada por sua moralidade
feminina e discursos baseados em uma ética do cuidado com o Outro, convertendo-se em um ‘’anjo
tutelar’’ de toda a população e em especial, das mulheres (BIANCHI; SANCHÍS, 1988b, p. 157).
Esta pesquisa buscou problematizar a questão inicial de buscar desvendar se no seio do
discurso peronista haveria contradições referentes aos direitos das mulheres e se isso, possivelmente
haveria fomentado a tensão com movimento feminista na Argentina no período analisado. Nesse
sentido, o que denominamos como contradições, refere-se a uma ação voltada à política
essencialista que não questiona as possíveis rupturas e dominações dentro de certa lógica da maioria
em nome de uma estabilidade. Por fim, há uma continuidade na reprodução da lógica da estrutura já
existente sem haver uma oportunidade de contestação.
Sobre o discurso peronista, o ponto central de uma análise de gênero, se evidência em um
fomento da feminilidade acentuada ao exigir das mulheres, posturas de benevolência como
contribuição ao Estado através de uma participação das diretrizes femininas como na Escola de
Enfermeiras, nos Lares de Transição, na Fundação de Ajuda Social e outras instituições onde
exerceriam atividades relacionadas ao cuidado e demais ações esperadas as posições maternas. E a
maternalidade estendida dos lares ao Estado, estaria justificado por um discurso fundamentado na
ética do cuidado, em que há uma naturalização das mulheres em levar os princípios morais e a
virtude da sensibilidade a um espaço muito racionalista e desmoralizado como o público.
Nesse sentido, sobre o discurso de aprovação da Lei 13.010, segundo Fraser quando se tenta
lograr uma política de equidade entre os gêneros, seria necessário promover uma paridade
participativa e essa, não ocorreria através de justificação dos direitos por meio de uma identidade
feminina com base em uma visão específica de mundo, ou seja, em uma concepção de bem que
seja específica às mulheres. Em distinção, Carol Gilligan aponta que as experiências vividas das
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mulheres serão naturalizadas ao se direcionarem ao outro, tornando-se responsáveis por cuidar dos
outros e isso, demandaria uma ética do cuidado.
Sinteticamente, é possível afirmar a partir de uma perspectiva nos textos de Nancy Fraser
que na medida em que Eva Perón evoca a Nação como um grande lar, evocará uma mística
feminina sem questionar os tradicionais papeis de gênero designados cultural e historicamente. Ao
passo que reiterava uma visão de mundo específica às mulheres e que seria adquirida com a
experiência doméstica. Depois da aprovação da lei de direitos políticos, ainda que elas estivessem
inseridas a esfera pública, seguiriam exercendo a função de mães, só que agora, não somente no
espaço privado com a sua família, mas também, como responsáveis pela população enquanto
cidadãs. Por isso, a justificativa peronista de 1946 sobre o sufrágio feminino não pode ser
considerado uma conquista feminista em termos fraseanos. Já que o movimento feminista em geral,
ainda que seja heterogênero, tem em sua agenda a defesa da emancipação das mulheres, a liberdade
de ação na esfera pública a partir de uma crítica sobre a submissão feminina nas sociedades com
estruturas patriarcais, tanto no âmbito público quando no privado.
Contudo, é necessário recordar que ainda que a política de maternalidade estendida
fundamentasse o discurso peronista as mulheres, ao longo do governo de Juan Perón de 1946 a
1955, houve um maior questionamento sobre a inexistência de políticas direcionadas aos direitos
femininos no país. Assim, a figura de María Eva Duarte de Perón transcende a esfera privada e se
constitui com eximia projeção na esfera pública aonde irá encarna uma personagem responsável
pela Nação argentina, tornando-se a mãe de todos. Ao mesmo tempo em que estimulará um debate
referente aos direitos das mulheres que em outras épocas permaneceram ocultos por uma estrutura
tradicionalmente fundada conservadora.
[...] é incontestável que durante o peronismo, as mulheres acenderam a uma gama
diversificada de possibilidades de intervenção pública que, longe da reclusão dos lares de
outrora, as lançava na arena política, trabalhista, social, entre outras, e não só como reflexo
das políticas peronistas se não, também, como parte de um processo de longa data.
(tradução livre) 20
20
[...] es incontestable que durante el peronismo las mujeres accedieron a un variado abanico de posibilidades de
intervención pública que, lejos de la reclusión hogareña de otrora, las lanzaba a la arena política, laboral, social, entre
otras, y no sólo como reflejo de las políticas peronistas sino también como parte de un proceso de más larga data.
(BORDARAGAY, 2011, p.204)
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