movimento monc3a1stico histc3b3ria desenvolvimento e proponentes
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O MOVIMENTO MONÁSTICO
História, desenvolvimento e proponentes
Prof.º Ms. Christian Medeiros
A experiência monástica da Idade Média é
fascinante pela sua riqueza, pela sua amplitude e
pelas suas contradições. Como é que homens – e
mulheres – enclausurados, fechados, emparedados,
votados à ascese e à pura busca de Deus puderam
ter uma tal influência sobre os seus
contemporâneos, exercer uma tal hegemonia
religiosa e cultural? Como conseguiram eles aliar
a fuga do mundo a um papel de primeiro plano na
vida económica e até política do seu tempo?
Como é que seres voluntariamente afastados do
mundo deram consigo a exprimi-lo, a querer
mudá-lo e a fazê-lo pender para o domínio do
divino? (Jacques Berlioz).1
Idade Média2, Idade das Trevas ou Idade das catedrais e de uma religiosidade ingênua
e “pura”? As nomenclaturas já são por si só problemáticas, por tanto, não há como escapar de
problemas e impropriedades, mas podemos pelo menos reduzi-los. A tradição do conceito das
trevas como característica essencial e definidora da Idade Média é provinda do poeta italiano
Francesco Petrarca (1304-1374) circunscrito ao humanismo e ao renascimento italianos.3 Já a
visão romântica e poética quanto ao período, surge a partir da obra O Gênio do Cristianismo
(1802) do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848)4 após a Revolução
1 Jacques Berlioz (org.), Monges e Religiosos na Idade Média, Lisboa, Terramar, 1994, p. 5; Jacques Berlioz
(org.), Moines et Religieux au Moyen Age, Paris, Seuil, 1994, p. 7. 2 “Cortar o tempo, segmentar a cronologia em etapas temporais fortemente individualizadas foi uma das
primeiras operações intelectuais destinadas a tornar inteligível o passado das sociedades humanas. Antiguidade,
Idade Média, Renascimento, Tempos Modernos, história contemporânea, essa taxinomia subdivide a história
numa periodização, verdadeira ótica de interpretação, que revela os pressupostos implícitos do historiador. Cada
um desses períodos nasce progressivamente nos livros de história, assim a Idade Média afirma a sua autonomia
histórica; seu próprio nome evoca o preconceito, desfavorável na origem, com relação a um período que separa a
civilização antiga perdida da civilização reencontrada no Renascimento”. Olivier Dumolin, verbete
“Periodização” in André Burguière (org.), Dicionário das Ciências Históricas, Rio de Janeiro, Imago, 1993, p.
590-591. Cp. Hilário Franco Júnior, A Idade Média: nascimento do Ocidente, 2.ª ed., São Paulo, Brasiliense,
1988, p. 17-24. 3 Vittore Branca, verbete “Pétrarque” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et moteur de
recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]. 4 Patrick Berthier, verbete “Chateaubriand” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et moteur
de recherche opti media, 2004 [DVD-ROM].
2 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Francesa (1789-1799).5 Estes estereótipos já foram a muito desmentidos e revogados.
6 O
monasticismo foi um dos grandes, senão o maior, dos movimentos da Idade Média que
contribuiu largamente para a supressão destes conceitos. O monasticismo foi responsável por
desenvolvimentos dos mais diversos, além da preservação cultural que em larga escala
fazemos uso na atualidade; além do mais, o protestantismo é devedor em certa medida a este
movimento, seja de um modo pessoal de alguns proponentes, seja como fonte teológica.
Observemos de mais perto este movimento que por vezes fazemos uso do produto dele, mas
nem sempre atribuímos o reconhecimento da fonte primária.
1 – DEFINIÇÃO TERMINOLÓGICA
Antes de nos aprofundarmos em qualquer aspecto relativo a este movimento, se faz
necessário estabelecer uma definição terminológica com vistas a uma compreensão mais
produtiva do objeto em estudo. Monasticismo “em sua aplicação mais geral, significa a
organização de homens que fizeram votos especiais de vida religiosa e vivem de acordo com
regras que determinam a conduta nos seus menores detalhes”.7 Desta feita tais homens
“pertencem ao clero chamado regular em oposição ao clero secular, cujos membros não
vivem sob regra especial e passam suas existências em contato íntimo com a vida do povo”.8
Em princípio este clero regular era constituído por “indivíduos que buscavam servir a Deus
vivendo em solidão, ascese e contemplação”9, os assim chamados monges, a partir do termo
grego monakhos, solitários.10
O seu programa de vida foi marcado pelo isolamento, um
desejo de distanciamento de um crescente número de cristãos meramente nominais e
incoerentes com o verdadeiro cristianismo, segundo pensavam os devotados ao monasticismo.
5 Maiores informações sobre a Revolução Francesa de um modo sucinto, no entanto, com acuidade vide Jean-
Clément Martin, verbete “Révolution Française” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et
moteur de recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]. 6 Cp. Jacques Le Goff, Em Busca da Idade Média, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006, p. 22-27.
“Hoje sabemos que o mito da Idade Média, como época de barbárie, era justamente, um mito, construído pela
cultura dos humanistas e pelos pais fundadores da modernidade”. Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência
Moderna na Europa, Bauru-SP, EDUSC, 2001, p. 15. 7 Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 102.
8 Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 102. “Todos concordam
que os monges eram ascéticos. Eles renunciavam aos confortos da sociedade e buscavam as recompensas
espirituais da autodisciplina. Sua teoria sustentava que a renúncia à carne liberta a alma para a comunhão com
Deus. A questão-chave é: Como a renúncia relaciona-se com o evangelho? Ela é uma forma de auto-salvação?
É uma expiação dos pecados baseada na negação do eu? Ou trata-se de uma forma legítima de arrependimento,
uma preparação essencial para a alegria das boas novas da Salvação?”. Bruce L. Shelley, História do
Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos, São
Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 132. 9 Hilário Franco Júnior, A Idade Média: nascimento do Ocidente, 2.ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 111.
10 “Com o termo grego monachos, documentado no Egito (papiros) a partir de 324 e designando os pertencentes
à classe (tagma) dos célibes, que abandonam a própria casa e (em parte) os seus bens, compartilhando em certa
medida da dignidade do clero, o movimento assuma uma forma bem definida”. Jean Gribomont, verbete
“Monaquismo” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ,
Vozes, 2002, p. 953.
3 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Paul Tillich assim descreve este movimento de um modo sucinto:
O monasticismo representava a negação do mundo sem quaisquer
concessões, embora não fosse um movimento quietista. Essa negação
vinha acoplada com certos atos destinados a transformar o mundo – no
trabalho, na ciência, em outras formas de cultura, na arquitetura
eclesiástica, na poesia e na música. Tratava-se de um fenômeno muito
positivo, sem relação alguma com o monasticismo deteriorado, que os
humanistas e os reformadores rejeitaram. De um lado, os monges se
retiravam radicalmente do mundo, deixando o controle da sociedade
nas mãos do clero secular, mas, de outro lado, não caíram numa forma
meramente mística de ascese, ou em simples forma ritualista tão
atraente à igreja oriental; dedicou-se à transformação da realidade.11
O educador americano Paul Monroe nos dá uma visão abrangente dos ideais e práticas
do monasticismo, vejamos:
A idéia primária do monaquismo é o ascetismo. Em sua significação
original, ascetismo era o treinamento do atleta para as disputas físicas.
No sentido figurado passou a significar o domínio ou disciplina de
todos os desejos corporais e afeições humanas, a fim de que a mente e
a alma possam ser consagradas aos interesses de uma vida superior.
Essa idéia, comum em certo grau, a todas as crenças, teve um destaque
especial em várias religiões, – na judaica, na persa, na egípcia, e em
diversas seitas filosóficas da Grécia – com as quais o cristianismo
cedo entrou em conflito. Em todas, o mais elevado pensamento ético
era o da ascensão à excelência espiritual, à contemplação, pela
eliminação de todos os pendentes naturais e materiais. Obtinha-se o
apaziguamento das solicitações físicas e corpóreas e a completa
extirpação dos desejos corporais, pelo jejum, pela penitência, pela
flagelação ou pelos exercícios físicos prolongados e exaustivos.
Assim, os ascetas cristãos reuniam as virtudes estóicas do desprezo
pela dor e pela morte e de indiferença pelas vicissitudes da fortuna, os
costumes pitagóricos de silêncio e de submissão da natureza física, e a
negligência cínica das obrigações e convenções da sociedade. A idéia
ascética encontrou apoio nos conselhos de Cristo, de não pensar no dia
de amanhã, de vender todos os bens e dar aos pobres, de abandonar
pai e mãe, esposa e filhos; e, acima de tudo, nas exortações freqüentes
à renúncia terrena e ao devotamento ao serviço da pregação do
Evangelho.12
Em Gribomont, historiador católico, temos:
Ao começar o séc. IV, no momento em que a Igreja se reconcilia com
o mundo, aparece um movimento de contestação que, por uma volta à
antiga oposição, renuncia ao mundo. São seus protagonistas os
chamados apotaktitai, apotaktikoi, apostolikoi. Verifica-se o
fenômeno sobretudo nos países onde a cultura helenística, da qual era
então evidente seu estrago contínuo, havia aos poucos sufocado uma
veneranda sabedoria indígena, na Síria e no Egito. O norte da Ásia
11
Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, 2ª. ed., São Paulo, ASTE, 2000, p. 155. 12
Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 102-103.
4 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Menor, ainda mal grecizado, ao contrário, sofre as influências
mesopotâmicas. Não se pode negar nisto a ação de fatores sociais e
até mesmo nacionalistas, bem como uma certa incidência das religiões
orientais ou da gnose. Na medida em que alguns santos imprimem
uma clara direção ao movimento, este liberta sua inspiração
evangélica e se torna uma das mais válidas forças da Igreja; muitas
vezes, no entanto, desvia e tende ao sectarismo. O movimento leva
avante uma exigentíssima concepção ascética do batismo, fundada na
continência, na pobreza, na vida de oração e numa tradição “profética”
judaico-cristã, que na Síria se concretiza na instituição dos “filhos da
aliança”.13
2 – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO MONASTICISMO
O historiador Mark Noll apresenta a importância do estudo deste movimento com as
seguintes palavras:
Depois da comissão de Cristo aos seus discípulos, o surgimento do
monasticismo foi o mais importante – e de muitas maneiras o mais
benéfico – acontecimento institucional da história do cristianismo.
Por mais de um milênio, nos séculos que transcorreram desde o
reinado de Constantino até a Reforma Protestante, quase tudo na igreja
que se aproximou dos ideais mais elevados, mais nobres e mais
verdadeiros do evangelho foi feito por aqueles que escolheram a vida
monástica ou por aqueles que foram inspirados pelos monges em sua
vida cristã. Se nos lembrarmos que “a vida monástica” incluía todos
os que se “separavam” do mundo e seguiam uma “regra” de disciplina
– tanto homens como mulheres – podemos dizer essencialmente o
mesmo quanto aos séculos mais recentes da história da igreja. (...)
O próprio protestantismo, podemos muito bem lembrar, começou com
as experiências monásticas de Martinho Lutero. Tão logo Lutero,
João Calvino, Thomas Cranmer, Menno Simons e outros líderes da
Reforma concluíram que era necessário romper com a Igreja Católica
Romana, eles receberam apoio para a sua teologia primeiro das
Escrituras e, logo em seguida, dos escritos de monges. Lutero e
Calvino, especialmente, voltaram-se repetidamente para a obra de
Agostinho (354-430), que havia sido não somente um teólogo erudito,
um bispo dinâmico e um polemista enérgico, mas também o fundador
de uma ordem monástica. De fato, Lutero começou os seus estudos
bíblicos e as suas reflexões teológicas como um monge agostiniano.14
13
Jean Gribomont, verbete “Monaquismo” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de
Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 953. 14
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 90-91. Já
Shelley diz que “A Reforma do século XVI desferiu um golpe pesado contra o monasticismo. Martinho Lutero,
que havia sido monge, declarou guerra à clausura. O monasticismo, diziam Lutero e outros reformistas, encoraja
a idéia de que existem dois caminhos até Deus, um superior e outro inferior. Mas o evangelho conhece apenas
um caminho para a salvação. E ele é exclusivamente pela fé em Jesus Cristo. Mas esta não é uma fé morta; é
5 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Alister E. McGrath assim defende a importância do movimento monástico:
O desenvolvimento dos mosteiros é de grande relevância para a
história da teologia cristã. Os mosteiros eram, com freqüência,
centros de atividade teológica e espiritual. Durante o período
patrístico e a Idade Média, quase todos os teólogos cristãos
importantes eram membros de comunidades monásticas ou tinham
uma relação muito próxima com elas. Anselmo de Canterbury, Hugo
de São Vítor, Tomás de Aquino e Bonaventura são exemplos de
escritores teológicos medievais ocidentais expressivos associados ao
monasticismo.15
3 – SURGIMENTO E PERÍODO DE ABRANGÊNCIA DO MOVIMENTO
MONÁSTICO
Não há um consenso geral entre os estudiosos para afirmar uma data específica para o
início do monasticismo, alguns advogam que ele inicia-se por volta do século III e/ou IV e
estende-se até o presente tempo, enquanto que outros afirmam que ele possui raízes em um
judaísmo asceta posterior e/ou concomitante ao período do Novo Testamento.16
Observemos a descrição feita por C.T. Marshall:
As origens do monasticismo cristão primitivo não são claramente
conhecidas e, portanto, estão sujeitas a controvérsia. Alguns
estudiosos crêem que o movimento monástico foi inspirado por ideais
comunitários e ascéticos judaicos posteriores, tais como os essênios.
Ainda outros especulam que a forma maniquéia e outras do dualismo
inspiraram extremos de ascetismo dentro da família cristã. No
entanto, os primeiros comentaristas cristãos sobre o monasticismo
ativa no amor a Deus e aos próximos”. Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma
narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 132. 15
Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à história do pensamento cristão, São Paulo, Cultura
Cristã, 2007, p. 113. Diz Shelley: “Nos séculos V e VI, praticamente todo líder de igreja ou era monge ou
encontrava-se intimamente relacionado ao monasticismo. A célula monástica tornou-se um gabinete de estudo e
os monges tornaram-se estudiosos”. Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma
narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 135. 16
Cp. Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 58. Para
uma visão mais detalhada quanto ao desenvolvimento do monasticismo tanto no âmbito cristão quanto em outros
âmbitos mais, vide verbete “Monasticism” in James Strong, John McClintock, Cyclopedia of Biblical,
Theological and Ecclesiastical Literature, vol. 6, The Ages Digital Library Reference, Ages Software Rio, WI –
USA, version 1.0 © 2000, p. 188-243 [CD-ROM]. Também é possível ler uma descrição sucinta e direta em
Henry Duméry, verbete “Monachisme” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et moteur de
recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]; “Monacato” in Microsoft Encarta 2007, Microsoft Corporation, 2006,
[DVD-ROM].
6 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
acreditam que o movimento teve origens verdadeiramente no
evangelho.17
Já Cairns assim apresenta o assunto:
Este movimento tem suas origens no século IV, quando leigos em
número cada vez maior começaram a se ausentar do mundo. Ao final
do século VI, o monasticismo tinham fundas raízes na Igreja ocidental
e oriental. Um segundo período de grandeza do monasticismo ocorreu
por ocasião das reformas monásticas dos séculos X e XI. A era dos
frades no século XIII constitui um terceiro período. O surgimento dos
jesuítas na Contra-Reforma do século XVI constitui o período final
em que o monasticismo atingiu profundamente a Igreja. O movimento
exerce até hoje um importante papel na vida da Igreja Católica
Romana.18
W. Walker advoga sua posição deste modo: “Começando no final do terceiro século e
desabrochando no decorrer do quarto, o movimento que a história rotulou “monástico” (do
grego monachos, “solitário”) contribuiu com uma nova dimensão, tanto institucional como
espiritual, para a vida das igrejas”.19
A tríade de autores na obra Dois Reinos segue também
esta datação: “Começando no final do 3° século, o movimento monástico...”.20
Ainda encontramos o historiador suíço Philip Schaff (1819-1893) dizer que os
essênios “são os precursores do monasticismo cristão”.21
O italiano Franco Cambi, historiador
da pedagogia, afirma explicitamente que “o movimento monástico teve início, já no tempo de
Cristo (pense-se na seita hebraica dos essênios, que pretendia realizar um judaísmo menos 17
C.T. Marshall, verbete “Monasticismo” in Walter A. Elwell, Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã, Vol. II, São Paulo, Vida Nova, 1990, p. 544. 18
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 122. 19
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 181. 20
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 102. 21
Philip Schaff, History of The Christian Church, vol. 1, The Ages Digital Library Reference, Ages Software
Albany, OR – USA, version 1.0 © 1997, p. 65 [CD-ROM]. Nas palavras de Noll: “É difícil especificar um
único ponto de transição em que o monasticismo tenha começado a influenciar a igreja de maneira decisiva. De
fato, existem vários excelentes candidatos para a título de personagem mais importante no desenvolvimento do
monasticismo. Poderia ser o primeiro monge de que se tem notícia, Antônio, que deixou a fazenda de sua
família no Egito por volta do ano 270 e retirou-se sozinho para o deserto a fim de encontrar a Deus. Poderia ser
o seu conterrâneo egípcio Pacômio, que por volta de 320 estabeleceu o primeiro mosteiro cenobítico
(comunitário) sob a orientação de uma “regra” (conjunto de regulamentos), para dedicar-se a uma vida de
oração. Ou poderia ser Basílio de Cesaréia, um dos pais capadócios, que tanto contribuiu para definir o Espírito
Santo como um membro pleno da Trindade. Por volta do ano 370, Basílio escreveu uma regra para os mosteiros
que estavam sob os seus cuidados na Capadócia (a região centro-leste da moderna Turquia), que serve até hoje
como o guia básico para a vida monástica na Igreja Ortodoxa. Atanásio, o grande defensor da divindade de
Cristo no quarto século, poderia ser escolhido como uma figura chave no surgimento do monasticismo, uma vez
que a sua biografia de Antônio ao mesmo tempo identificou firmemente o monasticismo com a ortodoxia
doutrinária e expandiu grandemente o conhecimento da vida monástica tanto no Oriente como no Ocidente.
Também poderia ser Martinho de Tours, que fundou em 360 o primeiro mosteiro no que é hoje a França e assim
começou a importante carreira do monasticismo como o principal introdutor do cristianismo no norte da Europa.
Ou poderia ser João Cassiano, que, tendo vivido no sul da França no início do quinto século, escreveu um livro
influente que condensou grande parte da sabedoria monástica do Oriente com vistas a sua divulgação no
Ocidente”. Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p.
92. Cp. Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 2ª. ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 181-187.
7 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
formalista e mais espiritualizado), com a escolha de uma vida eremítica por parte de homens e
mulheres que se afastavam das cidades para levar uma vida solitária de oração”.22
Assim podemos claramente perceber a falta de concordância quanto ao assunto em
pauta para o momento, no entanto, é necessário estabelecer um ponto de partida para um
melhor resultado didático. Desta feita, iremos nos concentrar em uma ordem monástica que
ocorre em dado momento histórico onde temos certa medida de consenso quanto à sua
importância decisiva para o movimento monástico no Ocidente, estudaremos a Regra de São
Bento (Século VI). Antes, no entanto, consideremos sobre as causas do monasticismo, além
de rapidamente observarmos seu desenvolvimento até este período.
4 – FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA O SURGIMENTO DO
MONASTICISMO
Fundamentalmente observamos como fator de primordial importância a influência
filosófica que produziu a estrutura de pensamento propícia ao desenvolvimento dos ideais
monásticos. “A doutrina dualista de carne e espírito, com sua tendência a considerar má a
carne e bom o espírito – tão característica do Oriente – influenciou o cristianismo através dos
movimentos gnósticos23
e neoplatonistas.24
A saída do mundo, pensava-se, ajudava a pessoa
a crucificar a carne e desenvolver a vida espiritual pela meditação e pela ascese”.25
22
Franco Cambi, História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 131. Vd. também “Monacato” in
Microsoft Encarta 2007, Microsoft Corporation, 2006, [DVD-ROM]. 23
“O gnosticismo, a maior das ameaças filosóficas, chegou ao máximo de sua influência ao redor do ano 150.
O gnosticismo surgiu do desejo humano natural de criar uma teodicéia, isto é, uma explicação para a
origem do mal. Os gnósticos, que identificavam a matéria com o mal, procuravam uma forma de criar um
sistema filosófico em que Deus como espírito seria livre da influência do mal e no qual o homem seria
identificado, no lado espiritual de sua natureza, com a divindade. Era também um sistema lógico ou racional que
ilustrou a tendência humana de procurar respostas às grandes questões da origem do homem. Queria com isto,
fazer uma síntese entre o cristianismo e a filosofia helênica.
O dualismo era um dos principais fundamentos do gnosticismo. Os gnósticos defendiam uma separação
entre os mundos material e espiritual, porque para eles a matéria estava sempre identificada com o mal e o
espírito com o bem. Por isto, Deus não poderia ter criado este mundo material.
O vazio entre Deus e o mundo da matéria era preenchido pela idéia de um demiurgo que era uma de
uma série de emanações do bem supremo do gnosticismo. Estas emanações eram seres com pouco espírito e
muita matéria. O demiurgo, como uma destas emanações, tinha bastante de espírito em si para ter um poder
criativo e o bastante de matéria para criar o mundo material. Os gnósticos identificavam o demiurgo com o Javé
do Velho Testamento, por quem nutriam antipatia.
Para interpretar Cristo, eles adotaram a doutrina conhecida como Docetismo. A palavra veio de um
termo grego, dokeo, que significa parecer. Como a matéria era má, Cristo não podia ter um corpo humano
apesar de a Bíblia dizer o contrário. Como bem espiritual absoluto, Cristo não se misturava com a matéria. O
homem Jesus era ou um fantasma com a aparência de corpo material (docetismo) ou Cristo tomou o corpo
humano de Jesus apenas por pouco tempo, entre o batismo do homem Jesus e o começo de seu sofrimento na
cruz. Cristo deixou, pois, o homem Jesus morrer na Cruz. A tarefa de Cristo era ensinar uma gnosis ou
conhecimento especial que ajudaria o homem a se salvar por um processo intelectual.
A salvação, que era apenas para a alma ou parte da alma espiritual do homem, viria não com a fé mas
com a gnosis especial que Cristo comunicaria à elite, que seria a mais beneficiada, segundo os gnósticos, no
8 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
A influência e presença do dualismo platônico no cristianismo do período possuem
uma comprovação claramente evidente na arte cristã, como o historiador social da arte Arnold
Hauser nos apresenta:
Nas obras do fim do Império, sobretudo nas que dizem respeito à
época de Constantino, antecipam-se já as características essenciais da
primitiva arte cristã, o seu impulso para a espiritualização e abstração,
a sua preferência pelas formas lisas, sem volume e sombrias, o seu
pendor para a frontalidade, a solenidade e a hierarquia, a sua
indiferença pela vida orgânica da carne e do sangue, a falta de
interesse pelo característico, pelo individual e pelo gênero humano.
Em resumo: há a mesma predisposição não clássica para representar o
espiritual em vez do sensível que se encontra nas pinturas das
Catacumbas, nos mosaicos das igrejas romanas e nos primeiros
manuscritos cristãos.26
Outro fator que contribuiu com o surgimento do monasticismo foi a interpretação que
alguns cristãos fizeram de passagens do Novo Testamento julgando encontrar nelas a idéia de
completa separação do mundo e uma exortação para tal prática. Já em passagens como 1
Coríntios 7, entenderam alguns que o apóstolo Paulo teria feito uma apologia ao celibato, por
exemplo, Orígenes (185-253?), Cipriano (250-304?), Tertuliano (155-222) e Jerônimo (347-
420?).27
Cairns propõem como um destes fatores uma espécie de fuga da realidade presente
como fator motivacional ao movimento monástico que ele chama de tendência psicológica.
processo da salvação de sua alma. Já que o corpo era material e estava destinado a desaparecer, era necessário
seguir práticas ascéticas rígidas ou entregar-se ao libertinismo. Só os gnósticos pneumáticos, que possuíam a
gnosis esotérica, chegavam aos céus”. Earle E. Cairns, O Cristianismo através dos séculos: Uma história da
igreja cristã, 2.ª ed., São Paulo, Vida Nova, 1995, p. 79-80. 24
“Os neoplatonistas viam o Ser absoluto como a fonte transcendental de tudo e achavam que tudo foi criado por
um processo de emanação. Este transbordamento ou emanação resultou na criação final do homem como alma e
corpo pensantes. O objetivo do universo era a reabsorção na essência divina de onde tudo viera. Os sentidos
podem ser liberados do presente físico pela contemplação das obras naturais e artísticas; a razão alcança a
liberdade pela manifestação do amor. A filosofia muito contribui neste processo quando se participa da vida de
contemplação e se procuro, pela intuição mística, conhecer a Deus e ser absorvido nAquele de onde tudo veio.
A experiência de êxtase era o estado mais elevado a que se podia chegar nesta vida. ”Earle E. Cairns, O
Cristianismo através dos séculos: Uma história da igreja cristã, 2.ª ed., São Paulo, Vida Nova, 1995, p. 82. 25
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 122. Há um artigo muito interessante sobre os fatores que contribuíram para o surgimento do
monasticismo no Egito em http://www.geocities.com/pjchronos/cris/pacomio.htm. 26
Arnold Hauser, História Social da Literatura e da Arte, Tomo I, 2ª. ed., São Paulo, Mestre Jou, 1972, p. 183. 27
A título de informação observemos o que Shelley afirma: “Certamente notas ascéticas ressoavam nos
comentários dos pregadores da era apostólica. João Batista, vagando no deserto judaico em trajes grosseiros e
com gritos de arrependimento, era uma figura ascética. O próprio Jesus exortou pelo menos a um jovem para
que abandonasse suas posses se quisesse ter a vida eterna. E o apóstolo Paulo afirmou que: “pois a carne deseja
o que é contrário ao Espírito, e o Espírito o que é contrário à carne. Estes se opõem um ao outro” (Gl 5.17)”.
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 132. E também: “Os monges cristãos
obtinham suas forças espirituais da ênfase que Cristo deu à pobreza (mc 10.21) e ao “caminho estreito” para a
salvação (Mt 7.14). Os primeiros monges acreditavam que Paulo preferia o celibato ao casamento (1 Co 7.8).
Realmente, as primeiras freiras parecem ter sido viúvas do periodo romano posterior que resolveram não se casar
de novo”. C.T. Marshall, verbete “Monasticismo” in Walter A. Elwell, Enciclopédia Histórico-Teológica da
Igreja Cristã, Vol. II, São Paulo, Vida Nova, 1990, p. 544.
9 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Eis sua opinião: “Em momentos de crise há sempre uma tendência para o retiro das adversas
condições da vida. A última parte do século II e o século III viram o começo da desordem
civil que se tornaria comum na história final do Império. Muitos trocaram a sociedade pelo
mosteiro como forma de fugir desta realidade adversa e da contaminação moral de então.
Com a união da Igreja com o Estado, a possibilidade do martírio desapareceu, mas aqueles
que almejavam o martírio como garantia de sua fé, poderiam encontrar um substituto
psicológico nas práticas ascéticas do monasticismo. O monasticismo também oferecia uma
aproximação mais individualista com Deus do que a adoração coletiva e formal da época”.28
Shelley expõe acerca da prática dos monásticos: “as tentações do mundo eram substituídas
pelas tentações do mundo interior: orgulho, rivalidade, excentricidade. Vários monges do
Egito e da Síria foram a extremos ao suportar adversidades. Alguns comiam apenas capim,
enquanto outros viviam em árvores. Outros ainda jamais se banhavam”.29
Ao relacionar-se com o Estado a Igreja tornou-se frágil no que concerne à sua pureza,
pois muitas práticas pagãs acabaram por adentrar às suas portas através de bárbaros que
julgavam ser proveitoso dizer-se cristão, e isto, desde o tempo do Imperador Constantino
(272-337) que aboliu a perseguição aos cristãos dando-lhes uma situação favorável para suas
práticas, além de regalias das mais diversas chegando ao seu ápice promulgação do decreto do
Imperador Teodósio I (379-395) em 380 que tornou o Cristianismo a religião oficial e todos
os demais praticantes de outras religiões passiveis de perseguição, punição e a alcunha de
hereges.30
“O movimento monástico trouxe uma nova dimensão à vida cristã. Foi uma reação
à crescente corrupção e institucionalização da Igreja. Já no tempo de Constantino,
aproximadamente dez por cento da população do império era cristã e um século mais tarde o
número daqueles que professavam a fé chegava perto dos noventa por cento. Como o
crescimento extraordinário levou a um declínio no zelo, muitos crentes sinceros decidiram
deixar a sociedade e dedicar-se a exercícios espirituais e à preparação para o outro mundo.
Esses monges e freiras, que abriam mão de todos os confortos físicos, rejeitavam o sexo e
casamento e comiam e dormiam pouco tomaram o lugar dos mártires como novos heróis dos
fiéis”.31
A interpretação de Cairns é veraz: “O monasticismo tornou-se um refúgio para os
28
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 122-123. 29
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 134. 30
Eis o decreto: “Queremos que as diversas nações à nossa Clemência e Moderação continuem professando a
religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente
observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De
conformidade com a doutrina dos apóstolos e o ensino dos Evangelhos, creiamos, pois, na única divindade do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei
a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos e cheios de tolices,
queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus
conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em
segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes”. Henry
Bettenson (ed.), Documentos da Igreja Cristã, 5ª. ed., São Paulo, ASTE, 2007, p. 58. 31
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 102-103. Diz o historiador católico Franco Pierini: “A
nota mais característica do período histórico entre 284 e 361 – de Diocleciano ao advento de Juliano – é
certamente o duplo fenômeno pelo qual, de um lado, a Igreja adquire ares de oficialidade, por parte do Império
constantiniano, e, por outro, sai do mundo e se retira para a solidão, por meio do movimento monástico. Não por
10 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
que se revoltavam contra a galopante decadência dos tempos. Era uma espécie de crítica viva
da sociedade de então”.32
Nas palavras de Shelley:
Quaisquer que tenham sido as razões que levaram Constantino a
adotar a fé cristã, o resultado foi um declínio no compromisso cristão.
Os cristãos resolutos mortos por Diocleciano deram lugar a uma
multidão desigual de pagãos em parte convertidos. Antes os cristãos
entregavam sua vida pela verdade; agora lutavam entre si para garantir
os privilégios da igreja. Gregório de Nazianzus queixou-se: “Os
postos principais são obtidos pela prática do mal, não pela virtude; e a
posição de bispo não pertence ao mais digno, mas ao mais
poderoso”.33
Paul Monroe assim descreve: “O surto do monaquismo no Oriente proveio da relação
íntima do cristianismo com outras religiões orientais. A causa particular da sua disseminação
no Ocidente foi o desenvolvimento do caráter secular da Igreja e a vida mundana dos seus
adeptos, em virtude da inclusão geral da população romana dentro dos antigos limites formais
do cristianismo”.34
Tim Dowley resume bem o tópico em questão:
Quando o cristianismo começou a ser tolerado e reconhecido
oficialmente, pouco antes da ascensão do imperador Constantino, a
acaso a luta teológica cruza continuamente – nas grandes personagens e na massa cristã – com os problemas das
relações entre Igreja e Estado e com as questões de nível espiritual da vida cotidiana”. Franco Pierini, A Idade
Antiga: curso de história da Igreja – I, São Paulo, Paulus, 1998, p.158. 32
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 123. Observemos as palavras de Luzuriaga: “Com a irrupção dos povos bárbaros, germânicos, no
Império romano, no século V, submerge a cultura clássica e o mundo ocidental fica rodeado de trevas, uma
“idade escura”, como lhe chamam os ingleses. Só resta o débil lucilar das escolas e mosteiros da educação cristã
primitiva, que vão adquirindo, sem embargo, cada vez maior desenvolvimento e riqueza, até converterem-se,
durante os primeiros séculos medievais nos únicos centros de cultura e educação”. Lorenzo Luzuriaga, História
da Educação e da Pedagogia, 11ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 79. Schaeffer traça o quadro
intelectual mais abrangente neste período, vejamos: “Mesmo depois que o imperador Constantino pôs fim à
perseguição dos cristãos e que o Cristianismo passou a ser considerado primeiro (em 313) um religião legalizada,
e depois (em 381) a religião oficial do Império, a maioria das pessoas continuou em seu antigos hábitos. A
apatia tornara-se a marca registrada do final do Império. Uma das formas pelas quais a apatia se manifestou foi a
falta de criatividade nas artes. Um exemplo da decadência da arte facilmente observável e oficialmente
fomentada é a obra do século quarto que se encontra no Arco de Constantino em Roma, que empalidece diante
da riqueza das esculturas do segundo século, tomadas de monumentos da época do Império de Trajano. A elite
abandonara suas buscas intelectuais pela vida social. A arte oficialmente fomentada era decadente, e a música
tornava-se cada vez mais extravagante. Até mesmo as faces cunhadas nas moedas passaram a ser de qualidade
lamentável. A vida toda passou a ser marcada pela apatia predominante”. Francis A. Schaeffer, Como
Viveremos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 17. 33
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 133. À frente continua dizendo que “o
eremita, então, freqüentemente se afastava, não tanto do mundo mas do mundo da igreja. Seu protesto contra
uma instituição corrupta levava-o aos perigos do individualismo exacerbado. Contra a grande instituição
imperial, canal da graça divina, os primeiros monges estabeleceram a vida da alma, face a face com Deus”.
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 133-134. 34
Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 103.
11 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Igreja passou a atrair um grande número de novos fiéis. Nesse caso,
entretanto, mais era menos: os padrões de vida moral e espiritual
decaíam manifestamente nas igrejas à medida que o número de
membros aumentava e as exigências que lhes eram impostas
diminuíam. Diante disso, os fiéis que aspiravam a um cristianismo
mais puro começaram a afastar-se das igrejas e da própria sociedade.
O martírio já não era um objetivo plausível para a maioria, pois a fé
passara a ser lícita. Assim, enquanto os bispos batiam-se contra os
soberanos temporais pelo controle da Igreja e um cristianismo
puramente nominal e formal tornava-se a regra, para muitas almas
devotas a vida monástica substituiu a coroa do martírio como forma
última de sacrifício.35
A mesma temática pode ser claramente observada em um testemunho de um sujeito
presente na época, João Cassiano (c. 360-435 d.C.):
Muitos combinavam sua fé em Cristo com uma vida de riquezas; mas
os que conservavam o ardor dos apóstolos, retiraram-se de suas
cidades e afastaram-se do convívio daqueles que consideravam essa
vida relaxada aceitável para si e para a Igreja como um todo; e foram
praticar, sozinhos ou em grupos, aquilo que, segundo se lembravam,
os apóstolos haviam instituído para a Igreja inteira.36
O historiador da igreja Robert Hastings Nichols apresenta três causas da degradação
moral dos cristãos, onde todas elas contribuíram para a incursão do paganismo dentro da
própria igreja, que sejam: a ação imperial inicial, um decreto imperial e os métodos
missionários. Vejamos:
Devemos ter sempre em mente que a Igreja, durante esse período que
estamos considerando, tinha no seu seio muita gente sem a conversão
cristã; eram cristãos-pagãos. Vejamos, resumidamente, as causas
dessa situação alarmante. Uma delas foi a atitude dos imperadores
romanos, que tornaram o Cristianismo a religião da moda, cujo
patrono era o governo imperial e à qual aderiram grandes multidões.
Outra causa foi o decreto do imperador Teodósio, que obrigava os
súditos a professarem o Cristianismo na forma ortodoxa. Desse modo,
surgiu a política imperial do uso do poder para reprimir a idolatria e
forçar o povo a se filiar à Igreja. E também, os métodos missionários
medievais tiveram como resultado a entrada para a Igreja de multidões
de germanos e de outros povos que nunca experimentaram a
conversão cristã. O mal agravou-se quando certos governos e
conquistadores passaram a obrigar os seus povos a aceitar o
Cristianismo. Prevalecia, assim, na Igreja, grande massa de pagãos,
imbuídos das idéias pagãs a respeito da religião e da moral, gente que
de cristã tinha apenas o nome.37
O Cristianismo ao estar intimamente ligado ao Império Romano o ideal da
possibilidade de sofrer por amor ao evangelho através das perseguições e morte pelo
35
Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 58-59. 36
Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 59. 37
Robert Hastings Nichols, História da Igreja Cristã, 11ª. ed., São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 83.
12 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
confessar a Cristo Jesus como Senhor já não existia mais. Desta feita o monasticismo passou
a ser uma opção substituta para este ideal que enfatizava alguma espécie de sofrimento e
privação por parte do crente. Como defende Shelley: “Eles transformaram o espírito de
martírio no pleno e definitivo compromisso com Deus e na iniciação ascética de Cristo”.38
A
morte por causa do evangelho era entendida como uma oportunidade de imitar a Cristo, como
já não era possível então estes resolveram fazer votos de pobreza, castidade e total obediência.
Cairns também apresenta um elemento de suma importância: a geografia. Vejamos:
“Teria sido difícil chegar-se à vida monástica em regiões onde o clima fosse mais duro que no
Egito, onde a vida monástica começou. O clima quente seco e a variedade de cavernas nas
colinas ao longo dos aterros do Nilo eram ótimos para o isolamento do indivíduo da
sociedade. Pequenos jardins, junto com as fontes de alimento fornecidas pelo Nilo próximo,
tornavam fácil para as pessoas a obtenção de alimento. A proximidade do cenário desolado e
inóspito do deserto estimulava a meditação”.39
5 – DESENVOLVIMENTO DO MOVIMENTO MONÁSTICO
O desenvolvimento do movimento monástico percorreu basicamente quatro estágios
distintos: 1) o ascetismo como prática de vida de membros da Igreja cristã; 2) o período
anacoreta onde muitos membros da Igreja tornaram-se eremitas vivendo em cavernas e
influenciando outros mais; 3) a construção de claustros para a prática de exercícios espirituais
coletivos; 4) a organização de mosteiros possibilitando uma vida comum aos monges.40
W.Walker descreve o surgimento do monasticismo:
O monasticismo surgiu originalmente entre o campesinato, uma classe
de pessoas que o cristianismo, até então um movimento
essencialmente urbano, havia apenas começado a alcançar. Seu
crescimento inicial acompanhou a conversão das populações não-
helenizadas do interior do Egito e da Síria. Ao mesmo tempo, o
38
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 135. 39
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 123. 40
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 123. Vejamos também: “De certo ponto de vista, a decisão de alguns cristãos de viverem
separados da comunidade, tanto física quanto espiritualmente, era lastimável. Doutro ponto de vista, a dedicação
e o serviço dos monges fizeram deles as pessoas mais estimadas na sociedade medieval antiga. Os primeiros
monges a respeito dos quais temos um histórico claro representam uma fase extrema da evolução do
monasticismo. São os chamados pais do deserto, que viveram como eremitas nos desertos do Egito, Síria e
Palestina. Horrorizados pelo pecado e temerosos da condenação eterna, deixavam as cidades para enfrentar a
luta solitária contra a tentação. (...) A palavra “monge” deriva de uma palavra grega que significa “sozinho”. A
questão para os pais do deserto era de luta solitária e individual contra o diabo, em contraste com o apoio óbvio
resultante da vida em algum tipo de comunidade”. C.T. Marshall, verbete “Monasticismo” in Walter A. Elwell,
Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. II, São Paulo, Vida Nova, 1990, p. 544.
13 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
monasticismo foi um movimento de afastamento e retirada. Ele
instintivamente buscou o deserto: isto é, procurou separação física e
social das cidades e vilas, e portanto também da vida normal das
igrejas. Tal afastamento (grego anachorêsis, daí o português
“anacoreta”) não tinha um significado único ou simples. Em parte,
refletia uma busca pela solidão; em parte, era um gesto que
dramatizava a rejeição da mundanidade e mesmo desprezo para com a
civilização e a cultura. Mas ele também foi, pelo menos em algumas
áreas, uma manifestação da fuga permanente de um campesinato
sobrecarregado pelas demandas dos capatazes dos latifúndios e dos
coletores de impostos. Uma vez que, ao mesmo tempo, esse
movimento de afastamento representava um impulso simultaneamente
leigo e popular e personificava uma revolta irresistível de entusiasmo
religioso, o monasticismo criava um problema para as igrejas e seus
líderes, os bispos. Ele ameaçava, de fato, criar uma organização
separada e paralela da vida cristã. Esse problema foi resolvido
somente quando os próprios líderes das igrejas se tornaram
patrocinadores, organizadores e, no final, produtos desse
movimento.41
Ao que nos interessa podemos dividir o movimento monástico cristão em dois
momentos distinto temporal e espacialmente falando quanto ao seu desenvolvimento com
vistas didáticas com respeito à exposição do assunto. Iremos considerá-lo primeiramente no
momento de seu surgimento no Oriente e em seguida o seu aparecimento no Ocidente, para
tanto observaremos os principais proponentes deste ideal de vida.
5.1 – O MOVIMENTO MONÁSTICO NO ORIENTE
Antônio do Egito (251-356)
41
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 181-182. Observe o que diz
Cambi: “O movimento monástico teve início, já no tempo de Cristo (pense-se na seita hebraica dos essênios, que
pretendia realizar um judaísmo menos formalista e mais espiritualizado), com a escolha de uma vida eremítica
por parte de homens e mulheres que se afastavam das cidades para levar uma vida solitária de oração. No Egito,
na Síria, na Palestina, difundiu-se essa escolha de vida que continuou nos séculos seguintes, fixando com
algumas figuras exemplares o modelo de vida do eremita: com Paulo de Tebe, figura semilegendária do século
III, com Santo Antonio Abade (ca. 250-356), cuja vida foi narrada por Atanásio de Alexandria (Vita Antonii) e
que se tornou exemplar na cultura do monasticismo ocidental. Entretanto, vinha-se constituindo também outro
tipo de escolha monástica, não eremítica, mas comunitária, agregando monges isolados e organizando lugares de
vida em comum. Já com Pancômio (282-346), no Egito, a estrutura conventual (um “edifício defendido por
muros e dividido internamente em celas individuais”) (Bowen) se consolida e se difunde, como atesta a Historia
monachorum (traduzida por Rufino de Aquiléia). Nessas comunidades, “encoraja-se a instrução”, copiam-se
livros antigos, estuda-se a Bíblia. Do Egito, o monasticismo difunde-se depois no Ocidente, aumentando
também o empenho cultural dos monges (com São Basílio, São Jerônimo, Santo Agostinho), e no Oriente, onde
atinge a maturação máxima nos séculos da Idade Média (IV-VII) e cultiva “a conservação do saber”, que se
prolonga até por volta do Ano Mil, por exemplo, com o mosteiro do Monte Athos na Grécia”. Franco Cambi,
História da Pedagogia, São Paulo, UNESP, 1999, p. 131.
14 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Freqüentemente reconhecido como o fundador do monasticismo cristão ou o primeiro
monge cristão que se tem notícia, no entanto, alguns outros historiadores o apresentam como
apenas um dos primeiros monásticos da história.42
Há outros que o consideram como apenas
uma figura de ficção que visava apenas à instrução com respeito ao monasticismo.43
À parte
de tal discussão importa-nos o fato geralmente concorde que ele foi um dos principais
proponentes do movimento em sua fase inicial. A história da sua vida nos apresenta algumas
surpresas. Vejamo-las: ao deparar-se com a palavra de Jesus ao jovem rico, relatado em
Mateus 19.21 (“Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres
e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me.”), que ordenou ao jovem que deveria
vender tudo que possuía, dar o dinheiro aos pobres e segui-lo, Antônio com cerca de 20 anos
de idade, torna-se convicto de que deveria ele mesmo obedecer tal ordem e faz conforme
Jesus ordenou ao jovem rico. Desta feita, sendo ele de rica família copta, vende todos os seus
bens, doa o dinheiro aos pobres e parte para uma vida de solidão residindo então numa
caverna e dedicando-se exclusivamente a uma vida de meditação como um eremita asceta.
Antônio passava por diversas privações: sono e comida, principalmente. Comia apenas uma
vez por dia, depois do pôr do sol, e por vezes passava dois a quatro dias sem alimento algum.
Passava longos períodos de tempo sem dormir de pé em oração. Este estilo de vida provou
algumas alucinações, “algumas com forte conteúdo sexual”; o diabo “às vezes lhe parecia
como um menino negro com olhos faiscantes e hálito de fogo, chifres na cabeça, meio
homem, meio jumento”.44
Seu modo de vida acabou por influenciar outros tantos mais, que
agindo da mesma maneira que Antônio, praticavam seu ascetismo em suas próprias cavernas.
“À medida em que progrediu em sua vida solitária, foi cada vez mais para dentro do deserto e
por fim passou vinte anos nas ruínas de um forte próximo ao Mar Vermelho”.45
Estes anos
que Antonio passou no deserto foram cruciais para a sua formação, temos relatos de mais um
fato interessante sobre sua vida, pois é dito que ele “esteve engajado em uma luta heróica,
como aquela dos próprios mártires, contra os poderes demoníacos, aos quais desafiava nos
42
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 182; Robert G. Clouse,
Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao longo dos séculos,
São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 103; Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma
narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 133,
etc... Monroe assim afirma: “Foi Santo Antão quem primeiro deu relevo à idéia do monaquismo, fugindo em
305 para o deserto na costa do Mar Vermelho, e submetendo-se ali a uma série de penitências físicas que se
tornaram modelo para uma longa série de práticas rigorosas, engenhosamente arquitetadas e heroicamente
suportadas para a mortificação da carne”. Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora
Nacional, 1979, p. 103. “Os primeiros monges foram São Paulo de Tebas (falecido com mais de 100 anos de
idade, em 350 d.C.) e Santo Antônio, ou Antão (251-356 d.C.), chamado Pai dos Monges, cujas famosas
tentações forneceram um dos temas iconográficos mais conhecidos da História da Arte, tendo inspirado obras-
primas como as telas de Hieronymus Bosch, Breughel e outros pintores. Camponês de origem, quase iletrado,
Antônio retirou-se para o deserto (daí a expressão anacoreta, que significa “retirada para o deserto”, ou eremita,
cujo significado é afim: “pessoa que vive no ermo”). Viveu uma vida de penitência com o propósito de atingir o
perfeito domínio das paixões. Sua biografia, escrita pelo bispo Santo Atanásio por volta de 36 d.C., suscitou
discípulos em toda parte”. Armindo Trevisan, O Rosto de Cristo: a formação do imaginário e da arte cristã, 2ª.
ed., Porto Alegre, AGE, 2003, p. 61-62. 43
Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 59-60. 44
Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 60-61. 45
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 103. Vd. também: Bruce L. Shelley, História do
Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos séculos, São
Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 133.
15 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
mesmos lugares desérticos onde eles habitavam. No nome de Cristo, através de constante
esforço, jejum e vigília, e por meio de ininterruptas orações e recitações das Escrituras, ele
derrotou essas forças do mal. Quando, nos primeiros anos do quarto século, Antônio emergiu
de seu retiro, ele pareceu aos outros não simplesmente um herói e um homem imbuído de
santidade, mas alguém que representava a natureza humana restaurada à sua glória
apropriada. Ele curou os doentes, reconciliou inimigos, e por exemplo e palavra ensinou a
sabedoria que havia aprendido. Outros se juntaram ao seu redor, e assim surgiu uma frouxa
comunidade de eremitas, em treinamento sob Antônio para a salvação de suas almas. Durante
esses mesmo anos após a abertura do quarto século, outros líderes e comunidades semelhantes
apareceram, primeiro no deserto de Nítria, sudoeste de Alexandria e delta do Nilo, e depois,
conforme seu número aumentava, mais para o interior do deserto de Cétis e na área conhecida
como “as Celas”. Na época em que Antônio morreu, em 356, havia provavelmente alguns
milhares de ascetas praticando o evangelho de Cristo no deserto”, afirma Walker.46
Pacômio (290-346)47
Um contemporâneo de Antônio, também do Egito, que liderou uma nova forma de
monasticismo de cunho comunitário (também chamado cenobítico) e não solitário como o do
seu antecessor. Pacômio durante algum tempo serviu ao exército romano no período de
Constantino, após sua deserção apresentou-se para ser batizado e logo em seguida dedicou-se
a viver como um eremita debaixo da supervisão de um asceta mais velho de nome Palamon.
Depois de doze anos vivendo como um eremita Pacômio organizou o primeiro mosteiro, ou
comunidade monástica que se tem notícia, em uma pequena vila chamada Tabenísi à margem
do rio Nilo. Não optou por um rigor excessivo e extremado na ascese tão característica de
46
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 182-183. 47
“(apr. 292-347). Fundador do cenobitismo. De família pagã do extremo sul do Egito, converteu-se à vista da
caridade dos cristãos para com os recrutas imperiais. Desde o batismo (313), sentiu-se atraído para uma vida
monástica a serviço de seus irmãos, e entrou na escola austera do solitário Palamão. Depois de uma experiência
infrutífera de vida comum, entendeu que era preciso impor aos seus uma estrita pobreza e rígida disciplina.
Possuía o dom de julgar os homens, de conquistar sua fidelidade, de organizar sua colaboração. Por vezes tinha
a mão bem pesada; isto não agradava igualmente a todos. Alguns o tachavam de agir com base em visões e em
intuições espirituais, já que não era certamente uma inteligência abstrata. Reuniu em vários mosteiros,
especialmente em Tabennesi e em Pbou, milhares de monge e de irmãs, mantidos por uma vigorosa economia.
Pouco antes da morte, em 345, foi submetido ao juízo de um sínodo de bispos locais, reunidos em Latópolis, mas
a energia de seus discípulos o salvou. Seu constante defensor foi também Atanásio de Alexandria. Se bem que
no último momento tenha afastado o discípulo Teodoro, que parecia destinado a sucedê-lo, este dele conservou
por longo tempo as recordações mais vivas, mais respeitosas, mas também as mais humanas; justamente por isto
estão na base das Vidas coptas e da Vita prima grega (redigida talvez antes que o texto copta fosse posto por
escrito, já que os irmãos intérpretes se encontravam mais à vontade com o grego, mas com base nas recordações
mais bem conservadas em copta; a recensão grega pensa no público distante, omite diversas particularidades,
atenua as visões e a autoridade carismática do fundador). As outras Vidas gregas, e a Vida latina que delas
depende, já se afastam da segura autenticidade dos documentos antigos. Quanto às Regras, é difícil saber se
foram postas por escrito antes da morte do fundador. Na tradução de Jerônimo, elas se apresentam em quatro
coleções não concordes, e justamente este texto latino exerceu grande influência no Ocidente. Em copta
somente se encontram fragmentos delas (o mesmo se diga das Vidas); em grego há apenas extratos. P. é também
o autor de cartas em linguagem críptica, traduzidas por Jerônimo, descobertas recentemente em copta e em
grego. Foram também descobertas algumas catequeses coptas”. Jean Gribomont, verbete “Pacômio” in Angelo
Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 1058.
16 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
outros em sua época. Em pouco tempo tal comunidade já contava com cerca de sete mil
monges no Egito e na Síria, e, tendo Pacômio como o líder de todos eles. “Os membros dessa
comunidade viviam uma vida comum estrita (koinos bios, daí o português “cenobita”): isto é,
eles seguiam um programa comum de trabalho, oração e meditação (i.e., na prática, recitação
de memória de passagens das Escrituras); eles comiam juntos e consideravam toda
propriedade como comum; e praticavam obediência estrita aos seus superiores, os quais
governavam o mosteiro como um todo e suas moradias constituintes de acordo com a Regra
que Pacômio, sem dúvida gradualmente, desenvolveu. Com o tempo, a koinonia pacomiana,
como ela era chamada, passou a incluir um número de tais centros monásticos (incluindo
comunidades de mulheres) e assim constituíram a primeira “ordem” monástica. Estas
comunidades sustentavam-se através de seu trabalho (agricultura e tecelagem, por exemplo) e
eram dedicadas à assistência e encorajamento mútuo na prática do caminho da salvação”.48
As mudanças que Pacômio realizou no movimento monásticos produziu resultados
importantes para o desenvolvimento das estruturas do movimento, além do aumento
exponencial do número de praticantes. “Essas modificações melhoraram muito a vida de
eremita com seus perigos de ociosidade e excentricidade. Tornaram a vida monástica fácil
para as mulheres, para quem a vida em isolamento era completamente impossível. E
colocaram o monasticismo dentro de parâmetros de moderação. Pacômio entendeu
claramente que “para salvar almas deve-se mantê-las juntas””.49
Deste modo o movimento
monástico estende-se para além das fronteiras do Egito, atingindo a Síria, a Ásia Menor e em
pouco tempo o oeste da Europa.50
48
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 183. “Enquanto a
popularidade dos eremitas continuava no Egito, o movimento monástico deu um importante passo quando, por
volta do ano 320, um ex-soldado chamado Pacômio instituiu o primeiro monastério cristão. Em vez de permitir
que os monges vivessem sozinhos ou em grupos de ermitões, cada um determinando suas próprias leis, Pacômio
estabeleceu uma vida em comum regrada, na qual os monges comiam, trabalhavam e adoravam. Seu programa
determinava horários, trabalho manual, vestimenta uniformizada e disciplina rígida. Ele recebe o nome de
monasticismo cenobítico, das palavras gregas koinos bios que significam “vida comunitária”.” Bruce L. Shelley,
História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja Cristã através dos
séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 134. “[Pacômio] fundou o cenobitismo, ou seja, a vida
monástica em comum, que deu origem aos primeiros conventos: um grupo de monges, cada um vivendo em suas
respectivas celas, reunindo-se, em determinadas horas, para a celebração dos ofícios divinos. Um recinto
murado impedia aos leigos, sobretudo às mulheres, o acesso ao local. A fórmula monástica básica era “oração e
trabalho”, donde provém o lema: “Ora et labora””. Armindo Trevisan, O Rosto de Cristo: a formação do
imaginário e da arte cristã, 2ª. ed., Porto Alegre, AGE, 2003, p. 62. 49
Bruce L. Shelley, História do Cristianismo ao alcance de todos: uma narrativa do desenvolvimento da Igreja
Cristã através dos séculos, São Paulo, Shedd Publicações, 2004, p. 134. 50
“Um mosteiro antigo importante foi fundado por Pacômio no período de 320-325. O ethos desenvolvido nesse
mosteiro veio a ser normativo para o monasticismo posterior. Os membros da comunidade concordavam em se
sujeitar a uma vida comum regulada por uma Regra, sob a direção de um superior. A estrutura física do
mosteiro é expressiva: o complexo era cercado por um muro, ressaltando a idéia de separação e afastamento do
mundo. O termo grego koinonia (traduzido com freqüência como “comunhão”) usado em várias ocasiões ao
longo do Novo Testamento, passou a se referir à idéia de uma vida corporativa comunitária caracterizada pela
semelhança das roupas, refeições e mobília das celas (como eram conhecidos os quartos dos monges) e pelo
trabalho manual em benefício da comunidade”. Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à
história do pensamento cristão, São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 112. “Outro líder dos primórdios do
monasticismo, o egípcio Pacômio (cerca de 292-346) deu origem ao monasticismo cenobita ou comunal. Depois
de tornar-se cristão, primeiro ele passou seis anos vivendo como um eremita. Então, em 323 ele recebeu uma
visão para fundar um mosteiro no remoto vilarejo de Tabenesi na região sul do Egito. Quando chegou ao fim de
sua vida, havia fundado mais oito mosteiros e dois conventos na mesma região, com um total de sete mil
17 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Hilário (291-371)
O movimento monástico não ficou circunscrito somente ao Egito, mas chegou em
pouco tempo à Palestina, tendo Hilário organizado em Gaza um monasticismo ancoreta.
Nasceu na Palestina perto de Gaza. Freqüentou a escola de Alexandria, onde após uma vida
pagã, foi batizado em 306. No ano seguinte resolveu retornar para casa e doar todas as suas
posses para os pobres e levar uma vida asceta em um deserto perto de Magum, nas
proximidades de Gaza. Os seus longos jejuns, além dos seus exercícios religiosos lhes
concederam a reputação de santo, deste modo atraindo um grande número de discípulos.
Tendo crescido muito o número dos seus discípulos tomou a decisão de formar colônias em
várias partes da Palestina e da Síria, estabelecendo diversos mosteiros que continuavam a
receber visitas constantes suas e permaneciam sob o seu governo.51
“Os eremitas, que viviam
no deserto da Judéia em celas ou cavernas separadas chamadas de lauras, sujeitavam-se a um
abade e reuniam-se aos sábados à noite para realizar a vigília e Santa Ceia”.52
Basílio de Cesaréia (328-379)
Também como conhecido como “o Grande” e um dos mais proeminentes pais gregos.
Teve uma imponente educação em Atenas e Constantinopla. Aos 27 anos de idade resolveu
dedicar à vida monástica. Foi designado como Bispo da Capadócia em 370, cargo que
ocupou até a sua morte. Por volta de 355 viajou pela Líbia para visitar os mosteiros
estabelecidos neste país.53
Foi o responsável pela introdução, disseminação e organização do
monasticismo na Capadócia, no Ponto e também posteriormente culminando na chegada deste
na Ásia Menor. Para Basílio a verdadeira vida cristã exigia tanto o amor a Deus quanto o
amor ao próximo. Desta forma era ele contrário aos extremismos próprios da prática do
ascetismo em seu tempo e que levavam os seus praticantes à solidão excessiva e fuga das
realidades e necessidades do mundo que pertenciam. “Ele deu um sentido mais útil e social
ao espírito monástico, ao solicitar que os membros sob sua regra trabalhassem, orassem,
membros. Moradores de suas comunidades dedicavam-se às castidade, pobreza e obediência. Oravam até doze
vezes por dia, mas a austeridade praticada por eles não era tão severa quanto a dos ancoretas. Por causa do
trabalho de homens como Antônio e Pacômio, o monasticismo egípcio cresceu nos séculos 5º e 6º chegando a ter
cinqüenta mil monges vivendo como eremitas ou em comunidades”. Robert G. Clouse, Richard V. Pierard,
Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao longo dos séculos, São Paulo, Cultura
Cristã, 2003, p. 103. 51
“Hilarion, St.” in James Strong, John McClintock, Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical
Literature, vol. 4, The Ages Digital Library Reference, Ages Software Rio, WI – USA, version 1.0 © 2000, p.
160 [CD-ROM]. 52
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 103-104. 53
“Basil.” in James Strong, John McClintock, Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical Literature,
vol. 2, The Ages Digital Library Reference, Ages Software Rio, WI – USA, version 1.0 © 2000, p. 72 [CD-
ROM].
18 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
lessem a Bíblia e praticassem boas obras”.54
Defendia uma espécie de organização
hierárquica dentro dos mosteiros, pois “o monge deveria não apenas viver em comunidade,
praticando caridade para com o próximo, mas também renunciar à vontade própria
submetendo-se ao governo da comunidade, representado na pessoa do abade”.55
Uma das
contribuições mais importantes de Basílio diz respeito à ênfase que dava no trabalho dos
monges em prol do povo em geral, “Basílio encorajou os mosteiros a se situarem nos limites
das cidades, onde eles poderiam ser úteis à população, oferecendo exemplo e instrução como
também hospitalidade aos viajantes além de cuidado aos doentes e necessitados. Estes
princípios e outros Basílio encorajou enunciava quando visitava grupos de ascetas para lidar
com seus problemas e responder seus pedidos de aconselhamento. Suas instruções foram
distribuídas como suas Regras Maiores e Regras Menores – as bases do monasticismo grego
e russo até o presente”.56
“A atividade ascética e caritativa intensificou-se, graças aos
recursos que Basílio tinha à disposição, com a construção da Basilíades, a cidade hospitaleira
que devia tornar-se o centro da atual Cesaréia”.57
Basílio foi um dos grandes responsáveis
pelo crescimento e aumento da influência do monasticismo no Oriente, pois suas regras
serviram para nortear as práticas ascetas dos monges, além de torná-los um movimento
organizado estruturalmente, teologicamente e filosoficamente. A grande prova disto é que
mais e mais pessoas foram se agregando ao movimento que chegou a compreender quase 100
mosteiros nos séculos V e VI.58
Simeão Estilista (390-459)
Um dos primeiros anacoretas, ou seja, alguém que vive em solidão e contemplação
afastado do convívio social. Nasceu aproximadamente no ano de 390, em Susan, na fronteira
entre a Cilícia e a Síria. Era filho de um pastor de ovelhas e seguiu a mesma profissão até os
seus trezes anos de idade, quando resolveu ingressar em um mosteiro e consagrar-se às
práticas monásticas. Dedicou-se de um modo tão austero aos seus votos que se sobressaiu a
54
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 124. 55
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 184. 56
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 184. “Não foi apenas
institucionalmente, entretanto, que Basílio e sua escola (incluindo Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa)
influenciaram o futuro do monasticismo. Simultaneamente, adeptos e críticos da tradição da teologia platônica
oriunda de Clemente de Alexandria e Orígenes, eles forneceram ao movimento asceta uma moldura de operação
teórica – uma base teológica e antropológica que poderia ser empregada para mapear o progresso da alma desde
o início de sua vida em Cristo no batismo até a fruição daquela vida em conhecimento contemplativo de Deus”.
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 184 57
Jean Gribomont, verbete “Basílio de Cesaréia da Capadócia” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário
Patrístico e de Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 214. 58
Cp. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo,
Vida Nova, 1988, p. 124. “O monasticismo chegou a Capadócia no 4º século e os teólogos Basílio de Cesaréia (o
Grande) e Gregório de Nazianzo foram figuras de destaque no movimento. Basílio é especialmente importante
porque pedia aos seus monges que cuidassem das necessidades físicas dos pobres e enfermos e sua Regra, que os
orientava a viver em comunidades e não como eremitas, influenciou profundamente o desenvolvimento do
monasticismo na igreja oriental”. Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a
igreja e a cultura interagindo ao longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 104-105.
19 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
todos no rigor da mortificação dos seus desejos, e, produziu medo no seu superior por causa
do exemplo de vida que ele instigava e influenciava aos outros membros do mosteiro, sendo
então expulso do mosteiro por este motivo. Depois do ocorrido ficou por cerca de três anos
em completa solidão como um eremita no monte Selenisissa, lugar e ocasião onde alguns
afirmam ter ele passado quarenta dias em jejum.59
Um dos aspectos mais curiosos da vida de
Simeão diz respeito exatamente à alcunha que vem junto ao seu nome, ou seja, “estilista”
(stylos, pilar), que designava a sua prática e de muitos outros mais, que de um modo incomum
não fugiam para cavernas, mas sim para o alto de pilares isolados. Simeão após ficar
enterrado até o pescoço por vários meses “em 423 construiu um pilar e foi subindo cada vez
mais”. 60
Conforme a descrição feita por Jacque Dubois primeiramente a coluna contava
cerca de 2,70m, crescendo na seguinte seqüência: 5,40m 10m e finalmente chegando a
18m; Dubois também nos informa que Simeão falava apenas duas vezes por mês com o
intuito de incentivar os seus seguidos e curiosos à prática das virtudes.61
Sabemos que
“durante trinta anos ele sentou-se numa coluna com apenas um metro de diâmetro com uma
corrente ao redor do pescoço e dedicou-se à meditação e conflito com os demônios”.62
5.2 – O Movimento Monástico no Ocidente
O grande responsável pela introdução do monasticismo no Ocidente foi Atanásio
(295-373).63
Em meio ao contexto da discussão a respeito do uso da expressão homoousios64
59
“Simeon, St., Surnamed Stylites” in James Strong, John McClintock, Cyclopedia of Biblical, Theological and
Ecclesiastical Literature, vol. 9, The Ages Digital Library Reference, Ages Software Rio, WI – USA, version
1.0 © 2000, p. 161 [CD-ROM]; Philip Schaff, History of The Christian Church, vol. 3, The Ages Digital Library
Reference, Ages Software Albany, OR – USA, version 1.0 © 1997, p. 160-163 [CD-ROM]; Jean Gribomont,
verbete “Simeão Estilista, o Velho” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de Antigüidades
Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 1292. 60
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 104. Cairns diz que o pilar tinha cerca de dezoito metros
de altura vd. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São
Paulo, Vida Nova, 1988, p. 123. 61
Jacques Dubois, verbete “Siméon Le Stylite” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et
moteur de recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]; Tim Dowley, Os Cristãos: uma história ilustrada, São
Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 60. 62
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 104. Cairns diz que o pilar tinha cerca de dezoito metros
de altura vd. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São
Paulo, Vida Nova, 1988, p. 123. 63
Vd. Pierre Hadot, verbete “Athanase D’Alexandrie” in Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel
et moteur de recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]. 64
“... os teólogos cristãos acabaram traçando uma rígida distinção entre homoousios, “da mesma substância”, e
homoiousios, “de substância semelhante” (...)O próprio Concílio de Nicéia foi, é claro, objeto de discussões sem
fim. É difícil apurar os fatos, já que não foram conservadas atas oficiais. Por que foi o homoousios introduzido
no Credo, e qual se supunha ser o seu significado? No momento, nenhuma resposta segura pode ser dada.
Costumava-se pensar que Constantino, ou Osio, o tivesse imposto como um termo “ocidentalizante”, destinado a
enfatizar a unidade divina antes que a distinção das Pessoas (...). Mas nós temos pouca indicação do seu real uso
no Ocidente; e uma importante objeção contra essa teoria é o fato de o posterior Concílio de Sérdica (342-3), que
favorecia uma teologia monarquianista, não ter feito menção do homoousios, mas ter antes falado de “uma
hipóstase”. É mais provável que, em Nicéia, vários diferentes motivos estiveram em ação. Uma razão para
introduzir homoousios foi o simples fato de que o próprio Ario o tinha rejeitado (...); e o próprio Constantino
20 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
entre os partidos de Atanásio e Ário é que nos encontramos no momento. O imperador
Constantino no ano de 332 restaurou Ário ao cargo de presbítero em Alexandria e determinou
que Atanásio, o bispo de Alexandria, deveria recebê-lo, aceitá-lo e confirmar o seu retorno à
comunhão da Igreja. Entretanto, Atanásio estava disposto a obedecer às ordens do imperador
somente se Ário admitisse que o termo homoousios era o correto para descrever o
relacionamento o Deus Pai e o Filho, Jesus Cristo. Obviamente Ário se recusou a fazê-lo;
então, Atanásio desconsiderou veementemente as ordens do imperador. Como conseqüência
de sua atitude foi exilado por Constantino sendo então mandado para o posto avançado mais
distante do Império Romano no Ocidente, a cidade de Tréveris (atual Alemanha), no ano de
335; tendo permanecido nesta condição até o ano da morte de Constantino em 337. Atanásio
continuou a ser reconhecido como Bispo de Alexandria e desfrutar do reconhecimento e do
amor dos presbíteros e do povo de Alexandria, mesmo a despeito do exílio, pois Constantino
conseguiu afastá-lo fisicamente de seu povo, mas este continuava a considerá-lo como o seu
guia espiritual. Durante o período em que foi obrigado a viajar para Tréveris, ida e volta,
aproveitou a oportunidade para fazer contatos com os principais líderes cristãos do Ocidente
que o receberam de braços abertos. Desta feita, Atanásio passou a ter, então, influência com
os líderes do Ocidente, portanto, aproveitando a oportunidade para conquistar defensores que
amparassem a fórmula nicena. Nesta ocasião é que Atanásio apresentou a obra A Vida de
Antônio, o monge eremita do Egito, para estes líderes, tornando-se este o fator primordial para
a introdução, aceitação e futuro desenvolvimento do monasticismo no Ocidente.65
“A Vida de
Antônio é uma biografia idealizada que apresentava de forma poderosa o desenvolvimento do
monaquismo”.66
Antes de iniciarmos nosso estudo do movimento monástico no Ocidente, propriamente
dito, se faz importante atentarmos para a descrição deste feita por Cairns com respeito às suas
características mais básicas: “O monasticismo no Ocidente diferiu consideravelmente do
oriental. O clima mais frio tornou a organização comunal inevitável para que as construções
pudessem ser cálidas e os alimentos pudessem ser providenciados para a chegada do inverno.
O monasticismo tomou uma direção mais prática, recusando o ócio e deplorando os atos
pode ter preferido não definir seu significado de modo muito preciso (...); seu objetivo era não fazer vítimas, mas
isolar Ario de seus defensores, e atrair o maior número possível deles para o lado vencedor”. Christopher Stead,
A Filosofia na Antiguidade Cristã, São Paulo, Paulus, 1999, p. 151, 158. 65
Roger Olson, História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas, São Paulo, Editora Vida, 2001,
p. 167. Diz Gonzalez: “o livro Vida de Santo Antônio que ele escreveu, embora não relacionado primariamente a
temas doutrinários, influenciou grandemente o desenvolvimento posterior e a popularidade do movimento
monástico, pois foi por meio dessa obra que os grandes feitos ascéticos de Antônio se tornaram amplamente
conhecidos”. Justo L. Gonzalez, Uma História do Pensamento Cristão: do início até o Concílio de Calcedônia,
vol. 1, São Paulo, Cultura Cristã, 2004, p. 284. Esta obra também influenciou de um modo indireto Agostinho à
conversão, Gonzalez cita-a como uma das duas obras que inspiraram ao Bispo de Hipona: “A outra foi a história
de dois homens que, após lerem sobre A Vida de Santo Antônio, decidiram abandonar o mundo e devotar suas
vidas para o serviço de Deus. Estas histórias tocaram tanto o coração de Agostinho que, desesperando-se da sua
incapacidade de dar o passo final, ele fugiu para um jardim e se lançou debaixo de uma figueira enquanto
chorava”. Justo L. Gonzalez, Uma História do Pensamento Cristão: de Agostinho às vésperas da Reforma, vol.
2, São Paulo, Cultura Cristã, 2004, p. 22. 66
Cristopher George Stead, verbete “Atanásio” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de
Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 190.
21 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
meramente ascéticos. Tanto o trabalho como a devoção eram enfatizados”.67
Gribomont
mostra que uma das “notas distintivas do [monasticismo] ocidental, como sua dependência
cultural em relação ao Oriente, é seu caráter eclesiástico, seu laço com as basílicas e o culto.
Os cônegos regulares serão sua manifestação mais nova”.68
De um modo sucinto, claro e direto, o historiador Justo L. Gonzalez descreve as
diferenças existentes entre o monasticismo Oriental e o monasticismo Ocidental, vejamos:
Além das diferenças de clima, que impediam que os monges
ocidentais levassem a mesma vida que levavam os do Egito, havia
diferenças significativas na maneira de encarar a vida cristã e a função
do monasticismo nela.
A primeira destas diferenças provinha do espírito prático que os
romanos tinham deixado como seu legado à igreja ocidental. O
cristianismo latino não via com bons olhos os excessos de vida
ascética dos anacoretas do Oriente. O propósito da vida ascetica,
assim como de qualquer exercício atlético, não é destruir o corpo,
porém fazer com que ele seja cada vez mais capaz de enfrentar todo
tipo de provas. Por isso o Ocidente não via com aprovação o jejum
até o desfalecimento ou a falta de dormir só para castigar o corpo.
Além disto, como parte deste espírito prático, boa parte do
monasticismo ocidental tinha o propósito de levar a cabo a obra de
Deus, e não só de conseguir a própria salvação. Muitos monges do
Ocidente usaram a disciplina monástica como um modo de se preparar
para a obra missionária.(...) Outros monges ocidentais lutavam contra
as injustiças e crimes do seu tempo. (...)
Outra diferença entre o monasticismo grego e o latino é que este
último nunca sentiu a enorme atração pela vida solitária que dominou
boa parte do monasticismo oriental. (...)
Por último, o monasticismo ocidental poucas vezes viveu a tensão
constante com a igreja hierárquica que caracterizou o monasticismo
oriental, principalmente nos primeiros tempos. (...) No Ocidente (...) a
relação entre o monasticismo e a igreja hierárquica sempre tem sido
estreita.69
Wiliston Walker nos apresenta um esboço do desenvolvimento do monasticismo no
Ocidente, o que nos serve como compreensão de estruturas até o estabelecimento da
comunidade monástica mais importante do Ocidente, que em um momento posterior tornar-
se-á o padrão para os demais, estamos nos referindo ao monasticismo beneditino, mas antes
disto vejamos:
A indicação mais antiga de instituições monásticas no Ocidente está
ligada ao nome de Martinho de Tours (ca. 335-397), um eremita ao
redor do qual uma comunidade de anacoretas reuniu-se em Ligugé e
quem levou esse modo de vida com ele quando se tornou bispo de
67
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 124-125. 68
Jean Gribomont, verbete “Monaquismo” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de
Antigüidades Cristãs, Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 954. 69
Justo L. Gonzalez, Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era das trevas, São Paulo, Vida Nova, 1995, p.
39-41.
22 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Tours. Aproximadamente no mesmo tempo, Eusébio, bispo de
Vercelli (340-371)70
, introduziu uma nova forma de comunidade
monástica organizando o clero de sua igreja sob uma regra ascética –
uma prática posteriormente seguida por Agostinho de Hipona. Em
Milão, na década de 380, havia um mosteiro de homens bem no
extremo da cidade, cuja comunidade era patrocinada e supervisionada
pelo bispo, Ambrosio; e a vida asceta, senão instituições monásticas
como tais, foi bastante popularizada por Jerônimo durante sua
permanência em Roma, 381-384. Quando das últimas décadas do
quarto século, comunidades monásticas parecem estar se
multiplicando na Itália. Na Gália, o movimento monástico recebeu
encorajamento pelo crescimento gradual, depois de 410, de uma
comunidade na ilha de Lérins no litoral de Cannes, e então, após 415,
de uma outra fundada por João Cassiano (ca. 360-435), um discípulo
de Evrágio Pôntico, em Marselha. As Institutas e Conferências de
Cassiano, projetadas para familiarizar os ascetas ocidentais com a
tradição de monasticismo egípcia, tornaram-se documentos
fundamentais para o monasticismo ocidental.71
Bento ou Benedito de Núrsia72
(480-550)
Bento nasceu em uma aldeia chamada de Núrsia, pertencia a uma importante família
aristocrata romana, sendo então educado em Roma onde deparou-se com os padrões
geralmente degenerados que os cidadãos desta cidade viviam, tal impacto o levou a retirar-se
para dedicar-se por completo a uma vida de integral devoção solitária em Subiaco numa
70
Mais informações em http://www.newadvent.org/cathen/05614b.htm. 71
Wiliston Walker, História da Igreja Cristã, 3ª. Ed., São Paulo, ASTE, 2006, p. 185. “O ideal do
monasticismo espalhou-se rapidamente para a igreja ocidental. O trabalho de Martinho de Tours foi
especialmente importante. Soldado da Panônia (Hungria), ele deixou o exército, tornou-se um monge e fundou o
primeiro mosteiro na Gália em Ligugé, próximo a Poitiers por volta de 360. Depois de sua eleição como bispo
de Tours em 372 ele continuou vivendo como monge numa fundação que abriu em Marmontier. Um biógrafo e
admirador, Sulpício Severo, escreveu sobre Martinho pouco depois da morte dele: “Pois apesar do caráter de
nosso tempo ser tal que não ofereceu a oportunidade do martírio, ainda assim ele irá compartilhar da glória do
mártir”. Martinho foi a primeira pessoa que não havia sido mártir a ser elevada à posição de santo
(“canonizada”) pela Igreja. Outra figura importante do Ocidente foi Joao Cassiano (cerca de 360-433). Depois
de passar dezessete anos em mosteiros na Palestina e no Egito, foi para Marselha por volta de 415 e fundou
mosteiros tanto para homens como mulheres. Suas obras Conferências – um relato de suas discussões com
líderes do monasticismo oriental – e Institutas – um conjunto de regras para a vida monástica – popularizaram a
experiência oriental no Ocidente. Posteriormente, elas foram usadas por escritores monásticos e continuam até
hoje a ser clássicos da devoção e misticismo cristãos”. Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M.
Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003,
p. 105. Sobre o relacionamento de Agostinho com o monasticismo informa-nos Gonzalez: “Em Tagaste,
Agostinho vendeu as propriedades que ele herdara de seus pais, deu para os pobres a maioria do dinheiro que ele
recebeu por elas e decidiu levar uma vida serena e retirada junto com seu filho e alguns amigos, combinando um
pouco da disciplina de um monastério com estudo, meditação e discussão”. Justo L. Gonzalez, Uma História do
Pensamento Cristão: de Agostinho às vésperas da Reforma, vol. 2, São Paulo, Cultura Cristã, 2004, p. 24. 72
A principal fonte de conhecimento sobre a vida de Bento de Núrsia que possuímos é a obra Vida de São Bento
no Segundo Livro dos Diálogos de Gregório Magno, esta obra completa está disponível para download em:
http://www.microbookstudio.com/vidasaobento.htm; também podemos encontrar uma apresentação da vida e
obra de Bento de Núrsia em Jean Leclerq, The Love of Learning and The Desire for God: study of monastic
culture, New York, Mentor Omega Books, 1962, p.19-32; H. Daniel-Rops, A Igreja dos Tempos Bárbaros, São
Paulo, Quadrante, 1991.
23 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
caverna, vivendo como um asceta. Comumente é apresentado como o fundador do
monasticismo Ocidental.73
Passou cerca de três anos estudando as Escrituras em total
abnegação, de onde saiu após ter sido convidado por monges de um mosteiro próximo para
ser seu líder ou abade.74
Relata Gonzalez:
Quando tinha mais ou menos vinte anos de idade Benedito se retirou
para viver sozinho em uma caverna, onde se dedicou a um tipo de vida
extremamente ascético. Levava ali uma luta contínua contra as
tentações. Seu biógrafo Gregório, o Grande, nos conta que nesta
época o futuro criador do monasticismo beneditino se sentiu dominado
por uma grande tentação carnal. Uma mulher formosa, que ele tinha
visto anteriormente, se apresentou em sua imaginação com tanta
nitidez que Benedito não conseguia conter sua paixão, e chegou a
pensar em abandonar a vida monástica. Então, nos diz Gregório,
“...ele recebeu uma repentina iluminação do alto, recobrou os sentidos,
e ao ver uma moita de espinheiros e urtigas tirou toda a roupa e se
lançou aos espinhos e ao fogo das urtigas. Depois de se revolver ali
durante muito tempo, saiu todo ferido... A partir de então nunca voltou
a ser tentado de maneira igual.”
Excessos como este, entretanto, não eram característicos do jovem
monge, para quem a vida monástica não consistia em destruir o corpo,
mas em fazê-lo apto para ser um instrumento no serviço a Deus.75
A fama de Bento quanto as suas práticas firmes em cumprir os votos tornaram-no
reconhecido em vários locais. Assim vários monges o instigaram a tornar-se seu líder, no
entanto, com o passar do tempo julgaram estes que o regime monástico imposto por Bento era
73
“No 4° século, a famosa regra beneditina foi organizada por Bento de Núrsia, na Itália. Em pouco tempo, em
todo o Ocidente, ela tornou-se praticamente a lei geral da vida monástica. Bento verificou que a vida dos
monges precisava de direção e pureza, e tentou alcançar esses elementos por meio da sua regra ou sistema
monástico. Nela, o voto feito pelo monge era por toda a vida, de modo que a pessoa morria para o mundo.
Requeria-se o abandono de todas as propriedades. Eram prescritas as virtudes que deveriam cultivar:
abstinência, obediência aos superiores, silêncio, humildade, etc. Os deveres eram também prescritos
detalhadamente, dividindo-se o tempo entre o culto, os trabalhos manuais em casa, trabalhos nos campos e
estudos. A reforma produzida pelas regras disciplinares deu grande popularidade à vida monástica, ensejando o
aparecimento de muitos novos mosteiros que se enchiam, tão logo estivessem prontas as novas edificações. O
monasquismo estava pronto para realizar a sal grande obra no início da Idade Média”. Robert Hastings Nichols,
História da Igreja Cristã, 11ª. ed., São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 58-59; “De certo modo o monasticismo
ocidental encontrou seu fundador em Benedito de Núrsia. Antes dele houve muitos monges da igreja ocidental,
porém somente ele conseguiu dar ao monasticismo latino o seu próprio sabor, de tal modo que depois dele o
monasticismo não foi mais algo importado do Oriente grego, mas uma planta autóctone”, Justo L. Gonzalez,
Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era das trevas, São Paulo, Vida Nova, 1995, p. 43; “Bento de Núrsia
(480-543) cria e organiza o monacato no Ocidente”, Francisco Larroyo, História Geral da Pedagogia, Tomo I,
São Paulo, Mestre Jou, 1970, p. 272; “O grande organizador do monasticismo Ocidental”, “Benedict of Nursia”
in James Strong, John McClintock, Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical Literature, vol. 1, The
Ages Digital Library Reference, Ages Software Rio, WI – USA, version 1.0 © 2000, p. 258 [CD-ROM];
“…considerado o “pai dos monges do Ocidente””, Dominique Iogna-Prat, “São Bento: pai dos monges do
Ocidente” in Alain Corbin (org.), História do Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo, São Paulo,
WMF Martins Fontes, 2009, p. 145. 74
Cp. Jacques Dubois, tópico “Saint Benoît et la diffusion de sa règle” no verbete “Bénédictins” in
Encyclopædia Universalis Version 10, Paris, Logiciel et moteur de recherche opti media, 2004 [DVD-ROM]. 75
Justo L. Gonzalez, Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era das trevas, São Paulo, Vida Nova, 1995, p.
43.
24 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
por demais excessivos, visto serem completamente indisciplinados, e desta feita desejaram
envenená-lo. Após escapar de uma tentativa de envenenamento, Bento decide retirar-se do
mosteiro em Subiaco e fundar o seu próprio mosteiro em Monte Cassino a cerca de 130 km ao
sudeste de Roma, por volta do ano de 529, onde também escreveu a regra para o seu
mosteiro.76
Observemos um pronunciamento do papa Paulo VI (1897-1978) em 24 de outubro de
1964 sobre Bento de Núrsia:
Mensageiro da paz, artífice de união, mestre de civilização e, antes de
tudo, arauto da religião de Cristo e fundador da vida monástica no
Ocidente, tais são os títulos que justificam a glorificação de S. Bento,
abade. Quando desabava o Império Romano já agonizante, quando
algumas regiões da Europa se afundavam nas trevas, enquanto outras
não conheciam a civilização e os valores espirituais, foi ele que, por
seu esforço constante e assíduo, fez erguer-se sobre o nosso continente
a aurora de uma nova era. Foi ele sobretudo e seus filhos que, com a
cruz, o livro e a charrua, levaram o progresso cristão às populações
que se estendem desde o Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda até
as planícies da Polônia.
Com a cruz, quer dizer, com a lei de Cristo, ele consolidou e
desenvolveu a organização da vida pública e particular. Convém
lembrar que foi ele que ensinou aos homens a primazia do culto divino
com o Opus Dei, isto é, a prece litúrgica e assídua. E foi assim que ele
cimentou esta unidade espiritual da Europa, graças à qual povos de
línguas, raças e culturas muito diversas tomaram consciência de
constituir a insígnia de povo de Deus; unidade essa que, graças ao
esforço constante destes monges que se colocavam no seguimento de
um mestre tão notável, se tornou característica da Idade Média. Essa
unidade, como o diz Santo Agostinho, é “o modelo de toda beleza”.
Essa mesma unidade foi infelizmente quebrada pelas vicissitudes da
história, e, hoje em dia, todos os homens de boa vontade trabalham
para restabelecê-la.77
76
Cp. “Por causa de sua crescente reputação de discernimento espiritual, vários outros homens juntaram-se a ele.
Eventualmente, consta que Bento fundou doze mosteiros separados, com doze monges em cada um, mas também
registra-se que nesses primeiros anos ele foi objeto de ataques ciumentos por parte de alguns indivíduos que
inicialmente tinham se associado a ele em busca de uma vida de oração”. Mark A. Noll, Momentos Decisivos na
História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 93. “Bento de Núrsia (c. 480 – c. 550) fundou seu
mosteiro em Monte Cassino por volta de 525. A comunidade beneditina seguia uma regra na qual predominava
a idéia de seguir a Cristo incondicionalmente e manter uma disciplina de oração comunitária e particular e de
leitura das Escrituras”. Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à história do pensamento
cristão, São Paulo, Cultura Cristã, 2007, p. 113. “Grande figura de santo, e de importância capital para a
civilização da Idade Média, bem como para a história do monaquismo e, indiretamente, da cultura, Bento nasceu
em Núrsia por volta de 480. Após os estudos iniciados em Roma, abandonou todo interesse pela cultura e se
retirou para conduzir vida monástica, primeiro perto de Subiaco, onde fundou um mosteiro, e depois em
Montecassino, onde foi ainda mais famosa a análoga fundação. Sua vida e narrada detalhadamente por Gregório
Magno, no segundo livro de seus Diálogos (...). De Bento devemos mencionar somente a Regra dos monges
(Regula monachorum), uma das primeiras regras ocidentais, fortemente inspirada também na rica cultura
monástica grega, sobretudo em Basílio. Ela nos chegou em duas redações, das quais a primeira, mais
popularizante, destina-se a ser imediatamente compreendida, enquanto a segunda, reelaborada, é mais correta no
plano gramatical e literário”. Claudio Morechini, Enrico Norelli, História da Literatura Cristã Antiga Grega e
Latina, vol. II, tomo 2, São Paulo, Loyola, 2000, p. 171-172. 77
Michel Spanneut, Os Padres da Igreja: séculos IV-VIII, vol. 2, São Paulo, Loyola, 2002, p. 317.
25 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
A Regra Monástica de Bento
Movido Bento pelo ardente desejo de reformar e estabelecer diretrizes para a prática
monástica em seu mosteiro, redige uma regula, ou conjunto de regras com o intuito de
orientar e reger os monges. Este conjunto de regras rapidamente se tornou sinônimo do
modus operandi do monasticismo do Ocidente, sendo, portanto, aprovado e utilizado quase
que totalmente pelos mosteiros ocidentais. A assim conhecida e denominada “Regra de São
Bento” não foi influente tão somente no Ocidente, mas também alcançou grande grau de
influência no Oriente, onde encontrou respaldo em vários mosteiros. “Fazendo uso de idéias
de Basílio, João Cassiano e de uma regra anônima, ela retratava o mosteiro como uma
comunidade estável, auto-sustentável e devotada a Cristo. Seus membros renunciavam todos
os bens pessoais, eram celibatários e permaneciam lá para o resto da vida. O líder da
comunidade era o abade que deveria ser obedecido sem questionamentos, mas em troca era
exigido que ele consultasse os membros sobre questões que afetavam a todos. As tarefas dos
monges eram divididas em três tipos: eles adoravam a Deus, trabalhavam nos campos e
estudavam a Bíblia. Benedito não via com bons olhos o ascetismo extremo e sua Regra não
era tão rígida quanto as da tradição monástica do Oriente”.78
A regra monástica de Bento é
uma marco na história do monasticismo, pois “às promessas antigas de pobreza, castidade e
obediência a Cristo os beneditinos acrescentaram a estabilidade. Os monges já não podiam
perambular de mosteiro em mosteiro, mas eram ligados a um só deles durante toda sua vida.
A essência da regra de Benedito é seu enfoque sensato do viver cristão. Ele proibiu excessos
e forneceu conselhos práticos para todos os aspectos da vida monástica; ofereceu uma
descrição detalhada do papel de cada pessoa na comunidade, desde o abade, que representava
Cristo na comunidade, até o postulante de categoria inferior. Por essa razão, a regra
beneditina veio a ser o padrão na Europa ocidental. Devido à sua devoção à regra os monges
vieram a ser conhecidos como clérigos “regulares”, com base na palavra latina regula,
“regra””.79
A análise de Noll é aqui pertinente devendo ser inserida, observemos sua análise e
conseqüente interpretação desta regra monástica:
A Regra de São Bento desempenhou um papel decisivo na história do
monasticismo e, portanto, na história do cristianismo, porque
combinou o zelo dos pioneiros monásticos anteriores com uma bem
equilibrada preocupação com a estabilidade. A Regra de São Bento é
famosa por codificar os votos de obediência, estabilidade e conversio
morum (conversão contínua), o que levou aos votos mais gerais de
pobreza, castidade e obediência. No entanto, ela foi igualmente
notável por sua sagaz preocupação com aquilo que seria necessário
para manter os monges individuais e comunidades monásticas inteiras
numa trajetória correta. Embora seja um documento relativamente
longo (...), a Regra também era intencionalmente flexível. Ela sugeria
como as suas próprias normas podiam ser adaptadas às condições
78
Robert G. Clouse, Richard V. Pierard, Edwin M. Yamauchi, Dois Reinos: a igreja e a cultura interagindo ao
longo dos séculos, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 106. 79
C.T. Marshall, verbete “Monasticismo” in Walter A. Elwell, Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã, Vol. II, São Paulo, Vida Nova, 1990, p. 545.
26 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
locais determinadas pelos diferentes estágios do ano eclesiástico,
diferentes climas e diferentes quantidades de alimento e bebida
disponíveis, dependendo da saúde, da idade e até mesmo do grau de
maturidade espiritual dos monges.80
Os monges sob a regra beneditina possuíam características singulares quanto à sua
vida monástica. Estes viviam nas comunidades monásticas comprometidos com a obediência
completa ao abade, o líder dos monges, escolhido pelos demais para exercer tal cargo. A vida
do monge era caracterizada fundamentalmente pela oração e pelo trabalho. Cuidavam do
plantio, da administração do mosteiro, trabalhavam como cozinheiros, porteiros e tocadores
de sinos. O fator motivacional de suas ações, conforme declarava a regra, além de ser
também o seu objetivo primordial: a busca da glória de Deus em todas as suas tarefas sem
distinção.
A descrição de Dominique Iogna-Prat é aqui importante, pois descreve a mentalidade
formadora das práticas de Bento em consonância com seu ambiente contextual, vejamos:
Para ele como para seu modelo, trata-se de estabelecer da melhor
maneira possível o modo de vida dos “irmãos” que, à imitação dos
apóstolos, optam por romper com os vínculos mundanos (o parentesco
carnal, o casamento, a rede de amigos e relações) para unir-se a uma
parentela espiritual antecipadora da comunidade dos santos no além.
Num mundo que se retrai economicamente, com a dissolução do
império romano, a regra de são Bento prescreve o trabalho manual,
que permite que o mosteiro viva em autarquia dos frutos da terra;
outra tarefa manual, a cópia de manuscritos, proporciona à
comunidade todo acesso necessário às “Letras”, em especial à Sagrada
Escritura e a seus comentários. O mosteiro beneditino é, assim, ao
mesmo tempo, uma unidade de vida econômica (muitas vezes, até um
ator dinâmico e de vanguarda na vida dos campos) e um órgão cultural
de importância essencial para a sobrevivência e a renovação
intelectuais do Ocidente durante a alta Idade Média. O segundo
objeto da regra é proporcionar aos irmãos uma imagem viva dos graus
da escala de perfeição que se estende até o Céu. Ela prescreve a cada
um humildade e obediência. Impõe a todos uma estrita organização
do tempo repartido entre o trabalho (cerca de seis horas); a prece,
solitária ou coletiva no âmbito do ofício divino – recitação dos salmos
e leituras (Vidas de santos, textos dos Padres) em horas fixas, das
vigílias às completas –; a prática da lectio divina (leitura e meditação
na Bíblia).81
Dedicavam-se a oração constante, onde classificavam tal prática usual como oração
particular e oração comunitária. A oração comunitária era normatizada pela Opus Dei
(trabalho de Deus), também chamado de Ofício Divino ou Ofício das Horas, que determinava
quais hinos deveriam ser cantados, quais orações entoadas e quais textos bíblicos deveriam
ser lidos em cada hora pré-estabelecida em cada dia. No entanto, durante as horas de oração
particular o monge os escolhiam livremente segundo seu gosto e vontade.
80
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 100. 81
Dominique Iogna-Prat, “São Bento: pai dos monges do Ocidente” in Alain Corbin (org.), História do
Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 146.
27 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Observemos a descrição do historiador Paul Johnson:
O grande mérito do sistema de Benedito é o senso comum. Ele optou
por um habilidoso meio-termo entre a severidade e a decência. Os
monges teriam camas separadas, com exceção dos mais jovens, a
serem “espalhados entre os veteranos”. Seriam vestidos e aquecidos
de maneira adequada, com duas túnicas e dois hábitos cada um; e ser-
lhes-iam distribuídos um colchão, um cobertor de lã, um lençol com
travesseiro, sapatos, meias, cinturão, faca, caneta e tabletes de
escrever, agulha e lenços. Fora, isso, nenhuma propriedade seria
mantida individualmente, “nem um livro, nem tabletes, nem uma
caneta (...), nada”; e as camas seriam revistadas com freqüência em
busca de pertences particulares. Os monges deveriam ser alimentados
de modo apropriado, mas simples: dois pratos cozidos por dia, meio
quilo de pão, meio litro de vinho e frutas e verduras a estação, mas
nada de carne, ao menos não de animais de quatro patas. Por outro
lado, os monges que caíssem doentes desfrutariam de uma dieta
especial; tinham de ser mantidos com saúde. “Antes e acima de tudo,
deve-se tomar conta dos doentes.” “[Como] todos os hóspedes têm de
ser recebidos como se fossem o próprio Cristo”, para eles haveria uma
cozinha especial à parte (também utilizada pelo abade). Os monges
gastariam seu tempo com trabalhos manuais e leituras sagradas,
quando não estivessem assistindo aos serviços religiosos. Teriam de
“praticar o silêncio todo o tempo, sobretudo à noite”. Resmungar era
o “maior dos pecados”, e “o ócio é o inimigo da alma”. Infrações das
regras seriam punidas com a retirada da comunhão; o abade e os
irmãos mais velhos e sábios tentariam reconciliar os excomungados;
no entanto, “o castigo do chicote” seria utilizado se necessário, e “a
faca do cirurgião” (expulsão), em último caso; os meninos seriam
“punidos com jejuns adicionais ou coagidos com surras”.82
Miller e Huber nos apresentam maiores detalhes destes usos e costumes seguidos pelos
monges beneditinos, observemos:
Cada uma das “horas” incluía orações e leituras das Escrituras,
especialmente os Salmos. Geralmente, os monges entoavam todos os
150 Salmos em apenas uma semana. Havia também orações pela
82
Paul Johnson, História do Cristianismo, Rio de Janeiro, Imago, 2001, p. 176-177. “Dispomos da regra
beneditina no estado original. Na época de Carlos Magno, o então abade de Monte Cassino, Teodemar, possuía
uma cópia feita diretamente do hológrafo de Benedito, e enviou-a para ele em Aix; lá, foi feita uma bela cópia,
que ainda existe. Trata-se, talvez, de caso único em textos antigos; uma cópia separada do original por apenas
um intermediário. Foi redigida em latim vulgar – o vernáculo da época na Itália central –, para homens
relativamente simples. Não tenciona fazer do monastério um grande centro de aprendizagem nem, tampouco, de
qualquer coisa que não piedade e trabalho árduo. Porém, pode-se ver exatamente por que atraiu o pragmático
Gregório. É totalmente desprovido de excentricidades. Não espera virtudes heróicas. Há muitas provisões para
exceções, mudanças e relaxamentos de suas regras; mas, ao mesmo tempo, insiste-se em que estas, uma vez
estabelecidas, sejam cumpridas. O monge tem de viver de acordo com um horário, e de estar fazendo algo todo
o tempo, ainda que, com isso, só lhe restem os momentos de comer e dormir antes de poder recomeçar o
trabalho. “O ócio é o inimigo da alma”: essa é a tônica, ecoando a admoestação de Paulo aos primeiros cristãos,
enquanto aguardavam a parusia. Além disso, a regra exsudava a universalidade que sempre fora a meta do
cristianismo católico, de Roma, e, acima de tudo, do próprio Gregório, como um Papa missionário, desejoso de
converter o mundo e a sociedade. A regra é independente de classe social ou época; não se baseia em nenhuma
cultura ou região geográfica particular e servirá a qualquer sociedade que lhe permita ser posta em operação”.
Paul Johnson, História do Cristianismo, Rio de Janeiro, Imago, 2001, p. 177-178.
28 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Igreja, pela comunidade e pelas necessidades da vizinhança em redor.
Inclusive, em certo momento, os monges passaram a assumir a
obrigação de orar e penitenciar-se, o que era negligenciado pela
maioria dos cristãos.
Um total de oito “horas” era separado para o Ofício Divino. Muito
antes do amanhecer, os monges levantavam, iam para a capela e
entoavam as orações e ouviam as leituras designadas para a hora
chamada de matinas (ou vigílias). Então, eles dormiam novamente e
retornavam pouco antes do amanhecer para as laudes (em latim,
louvor). Depois das laudes, os monges dedicavam algum tempo ao
estudo dos Salmos e das leituras usadas no Ofício Divino. Eles, então,
retornavam à capela para entoar a prima (considerada a primeira hora
do dia). Os monges, então, tomavam seu café da manhã e começavam
os trabalhos do dia. Eles paravam de trabalhar para orar na hora da
terça (meio da manhã) e, então, dedicavam mais tempo à leitura. Eles,
então, retornavam à capela para a hora da sexta (meio-dia), seguida
por uma refeição, depois da qual eles tinham permissão para descansar
ou ler em silêncio até a hora da nona (meio da tarde). Outro período
de trabalho era realizado terminando com as vésperas (entardecer).
Antes de descansar, os monges entoavam a hora final, as completas.
Depois de terminar as completas, eles eram proibidos de falar,
começando o período diário chamado de grande silêncio. O grande
silêncio durava até as laudes antes do amanhecer do dia seguinte.83
O historiador eclesiástico contemporâneo Mark Noll que trabalha com o conceito de
pontos de transição ao analisar “momentos decisivos na história do Cristianismo” apresenta
uma breve exposição das formulações conceituais e normativas da regra de Bento,
observemos: era uma regra rígida com justificativas teológicas; concentrada na realidade
espiritual que o mosteiro deveria expressar; o abade deveria ser escolhido unanimemente
segundo o termo do Senhor, devendo ter este bondade de vida e sabedoria no ensino;
enfatizava a separação entre vida de oração e outras atividades, principalmente o trabalho; era
equilibrada e centralizada em Deus; promovia a esperança no progresso de uma vida cristã
disciplinada.84
O Desenvolvimento do Movimento Monástico Beneditino
Além das práticas devocionais e dos afazeres manuais descritos e normatizados por
Bento como regra para o seu mosteiro, encontramos pouco tempo depois os monges
dedicados ao estudo constante das Escrituras e do mesmo modo a análise de textos teológicos
clássicos antigos. Como os monges não viviam na era da imprensa com todas as suas
facilidades intrínsecas, era então necessário trabalhar na atividade de reproduzir estes
83
Stephen M. Miller, Robert V. Huber, A Bíblia e sua História: o surgimento e o impacto da Bíblia, Barueri-SP,
Sociedade Bíblica do Brasil, 2006, p. 122-123. Cp. Com Monroe: “As Regras Beneditinas dispunham também
que duas horas de cada dia deveriam ser devotadas à leitura; indicavam as partes da Bíblia e dos padres da Igreja
a serem lidas; ordenavam a leitura da Bíblia durante as horas da refeição; e por meio de regras minuciosas
velavam para que as horas de leitura não fossem desperdiçadas na indolência, no sono ou na conversa”. Paul
Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 105. 84
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 100-103.
29 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
documentos e a Escritura para que pudessem ser utilizados nos estudos e orações particulares,
e também nas orações comunitárias no exercício do Ofício Divino diário dos monges.
Enquanto a Europa após a decadência e queda do Império Romano85
em 476 sucumbiu ao
desprezo abrangente, mas não total, aos textos da antiguidade, os mosteiros desenvolveram-se
como centros de estudo, preservação e reprodução destes textos “clássicos”.
É importante observar com atenção a exposição que Cairns faz do assunto, vejamos:
Os mosteiros ajudaram a manter viva a erudição na Idade Média, entre
500 e 1000, quando a vida urbana praticamente desapareceu com a
tomada do Império Romano pelos bárbaros. As escolas dos mosteiros
davam educação de nível superior para os vizinhos desejosos de
aprender. Os monges também se ocupavam em copiar manuscritos
preciosos que preservaram para a posteridade. Em meados do século
VI, Cassiodoro (478-573), um alto oficial do governo ostrogodo,
retirou-se do serviço estatal para se dedicar à tarefa de coletar, traduzir
e copiar obras literárias em grego. Neste mister, foi ajudado pelos
monges de um mosteiro fundado por ele. O Livro de Kells, um
fascinante e revelador manuscrito dos Evangelhos em latim, elaborado
no sec. VII por monges irlandeses, é um exemplo da beleza da obra
monástica. Monges como Beda (c. 672-735), Einhard (c. 770-840) e
Mateus Paris (c. 1200-1259) escreveram relatos históricos, hoje fontes
primarias acerca da história do período.86
Outro aspecto de extrema relevância quando se considera o desenvolvimento ou
expansão de influência e campo de ação do movimento monástico beneditino diz respeito ao
impacto cultural produzido por meio da educação. Muitos pais entregavam seus filhos à vida
monástica por razões diversas. A despeito das razões pelas quais as crianças lá chegavam, o
fato é que elas precisavam ser instruídas para que pudessem participar ativamente de todas as
práticas da vida monástica beneditina. Rapidamente os mosteiros se converteram em escolas
onde as crianças aprendiam a ler e escrever tendo os monges como professores. Em várias
regiões da Europa na Idade Média os mosteiros foram as únicas instituições de ensino
existentes. 87
Desta feita, o monasticismo beneditino é fator de primordial valor para a
preservação e desenvolvimento da intelectualidade e da educação na “Idade das Trevas”.88
85
“No governo de Teodósio [378-395], um novo problema agravou a situação já caótica de Roma: a
intensificação da penetração dos bárbaros. Inicialmente recebidos no império como trabalhadores agrícolas,
muitas vezes arrendando vastas extensões de terras antes cultivadas por escravos, a entrada dos bárbaros no
império logo se transformou em invasão. De fato, no ano de 476, os hérulos invadiram e saquearam a cidade de
Roma, derrubando o último imperador, Rômulo Augusto, e decretando o fim do Império Romano, ao menos em
sua parte ocidental”. Cláudio Vicentino, Gianpaolo Dorigo, História para o ensino médio: história geral e do
Brasil, São Paulo, Scipione, 2005, p. 75. 86
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 125-16. 87
Cp. “Do IV ao VI séculos, a cultura antiga desapareceu praticamente do mundo ocidental. Na Gália as escolas
públicas da época romana mal foram substituídas, aqui e ali, por pobres escolas eclesiásticas destinadas à
formação de clérigos. Esvaeceu qualquer interesse pelos estudos gerais. Corrompeu-se a língua latina,
sumiram-se os livros, e “as raras pessoas que se entregavam ao estudo restringiam em geral a ambição a pôr-se
em condições de ler a Bíblia e de redigir, assim-assim, com auxílio de um formulário, um ato oficial”. (Halphen,
Les barbares, 258)
30 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
O filósofo mexicano Francisco Larroyo apresenta detalhes com respeito ao modo,
método e prática de ensino dos monges beneditinos:
Visto como a Regra (que constava de 73 prescrições) exigia dos
monges algumas horas de estudo e, por outro lado, era necessário dar
formação ascética aos noviços, com o tempo se foi organizando um
tipo característico de ensino. Além disso, numerosas famílias cristãs
pediram que o próprio mosteiro se encarregasse da educação de seus
filhos; o que fêz com solicitude, respeitando a tradição da Igreja de
amparar a instrução dos filhos dos servos e dos homens livres. Assim
se formaram nos conventos duas escolas: uma interna para os oblatos
e noviços, e outra externa para outros meninos. As congregações dos
beneditinos adotaram em suas escolas esta organização.
Os oblatos (pueri oblati) eram meninos que os pais consagravam a
Deus. Permaneciam em mosteiros tôda a vida (o que prova o pouco
respeito que se tinha então pela livre decisão do indivíduo). Os
noviços eram os jovens já a ponto de professar; uns e outros vestiam o
hábito do mosteiro e se iam incorporando aos poucos ao regime
monástico.
Um monge dirigia a escola e se chamava magister principalis; o
bibliotecário tinha o nome de armarius; os monges destinados a vigiar
estritamente os alunos eram os custodes.
Em muitas escolas monásticas o seu chefe recebia o nome de abade
(nome de origem semítica que significa pai). Por isso, em tais casos,
as escolas monásticas eram chamadas escolas abaciais.
A disciplina era rígida, sobretudo na schola interior; o látego, o jejum,
o calabouço eram os meios punitivos. A primeira etapa da instrução
se reduzia ao aprendizado do latim, o idioma da Igreja e da literatura.
Em seguida vinha o estudo das “sete artes liberais”, das quais eram
preferidas as disciplinas do trivium (Gramática, Dialética, Retórica).
Serviam de texto, para os rudimentos de latim, a Ars minor (pequena
gramática), de Aélio Donato (de meados do século IV); para os
Foi na Itália, na Espanha, na Irlanda, depois na Inglaterra, que se produziram as primeiras
revivescências das belas-letras: na Itália, porque a Antigüidade nunca deixou de estar presente e vívida e porque
a ordem dos beneditinos, lá estabelecida desde o século VI, aplicou-se em reatar a tradição; na Espanha, onde a
Igreja, bem cedo poderosa, tentou criar um ensino capaz de substituir o das escolas romanas, mas onde seu
esforço foi interrompido pela anarquia política, depois pela invasão muçulmana; na Irlanda, enfim, cujos
monastérios se beneficiaram da segurança que lhes deu a situação insular. Foi entre os escotos da Irlanda que o
antigo ensino latino de humanidades pôde conservar-se quase puro de qualquer liga, com a hierarquia das sete
artes liberais, que a teologia não fez senão coroar. Os clérigos irlandeses, tornados missionários, conduziram
consigo o gosto da cultura clássica. Na Escócia e principalmente na Inglaterra, criaram escolas que, no fim do
século VII, rivalizavam com as da Irlanda”. René Hubert, História da Pedagogia, 2ª. ed., São Paulo, Editora
Nacional, 1967, p. 28. 88
“No século XX, essa forma pejorativa de identificar a Idade Média foi aos poucos sendo revertida por um
movimento conhecido como Romantismo, que, das artes às ciências, se contrapôs ao racionalismo até então
vigente, revalorizando alguns elementos medievais.
Já no século XX, estudiosos como Henri Pirenne e Marc Bloch mostraram que esse período europeu foi
tudo, menos primitivo. Eles evidenciaram a complexa organização social das novas aldeias ou burgos, com a
instalação planejada de castelos e fortificações a casas de camponeses, bem como os efeitos de longo alcance de
uma nova classe de mercadores. Esses aventureiros estavam preparados para viajar longas distâncias e cruzar os
limites locais, ligando terras cristãs com culturas pagãs do norte e leste da Europa e da Ásia.
Marc Bloch mostrou em suas obras que, mesmo em termos de tecnologia, a Idade Média não foi inerte,
pois nesse período houve algumas invenções importantes para a época, e muitas técnicas rurais e artesanais
foram difundidas”. Cláudio Vicentino, Gianpaolo Dorigo, História para o ensino médio: história geral e do
Brasil, São Paulo, Scipione, 2005, p. 87-88.
31 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
adiantados, a Ars grammaticae (tratado de gramática), de Prisciano
(fins do século V). Depois recorriam a uma obra de Santo Isidro de
Sevilha (morto em 636), intitulada Origens ou Etimologias, que era
uma verdadeira enciclopédia de todo o saber de seu tempo, e às obras
filosóficas (Lógica, Ética), de Boécio (470-524), autor igualmente do
livro Consolos da Filosofia, tão lido na Idade Média.
O processo de aprendizagem era lento. A falta de livros exigia que os
textos fôssem escritos pelos alunos, em ditado. Depois se
comentavam e, finalmente, se aplicavam as regras em exercícios
(dictamina).89
Devemos também recordar o benefício promovido pelos beneditinos quanto ao
restabelecimento do conceito de trabalho na Idade Média. Para aqueles das classes
socialmente mais abastadas, o trabalho era tão somente apropriado aos menos providos de
recursos financeiros, e pelo fato de serem ignorantes e incapazes de alçarem ao nível elevado
que ocupavam. O conceito vigente da época era que o trabalho é coisa somente para os
pobres. Os monges restauraram a dignidade do trabalho, pois muitos destes que se lançaram à
vida monástica eram provenientes de famílias ricas e abastadas. Por meio do trabalho os
monges produziram alterações de ordem econômica nas sociedades onde estavam inseridos
quando começaram a cultivar terras dantes abandonadas. “O mosteiro local servia geralmente
como o equivalente medieval de uma fazenda experimental moderna na demonstração de
métodos melhores de agricultura. Os monges limpavam as florestas, drenavam os pântanos,
abriam estradas e cultivavam sementes e viveiros. Fazendeiros vizinhos adotavam as
melhores técnicas que viam os monges usar”.90
Sobre o tema expõe Henri Pirenne em sua História Econômica e Social da Idade
Média enfatizando o ideal econômico da Igreja:
A terra foi, com efeito, dada por Deus aos homens para que pudessem
viver neste mundo, pensando na salvação eterna. A finalidade do
trabalho não é enriquecer, mas conservar-se na condição em que cada
um nasceu, até que, desta vida mortal, passe à vida eterna. A renúncia
do monge é o ideal a que tôda a sociedade deve aspirar. Procurar
riqueza é cair no pecado de avareza. A pobreza é de origem divina e
de ordem providencial. Compete, porém, aos ricos, aliviá-la por meio
da caridade, de que os mosteiros dão exemplo. O excedente das
colheitas deve-se, por conseguinte, armazenar em granjas para que se
possa repartir gratuitamente, da mesma maneira como as abadias
distribuem, de graça, os adiantamentos que se lhes pedem, em caso de
necessidade.91
Trouxeram estabilidade social a uma região tomada pelo caos e desordem promovidos
pelas guerras no período do desmantelamento do Império Romano. As guerras produziram
grande necessidade de alimento aos menos providos de condições, e geralmente, os mais
atingidos por adulterações da ordem social vigorante em sua época. Neste quadro deplorável,
89
Francisco Larroyo, História Geral da Pedagogia, Tomo I, São Paulo, Mestre Jou, 1970, p. 273. 90
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 125. 91
Henri Pirenne, História Econômica e Social da Idade Média, São Paulo, Mestre Jou, 1963, p. 19.
32 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
os monges acolheram e alimentaram os necessitados e os viajantes que pelos mosteiros
passaram com o produto do seu próprio trabalho. O trabalho para os monges era o meio
utilizado e indispensável para suprir todas as necessidades da vida em seus vários âmbitos,
deste modo eles teciam e confeccionavam suas próprias roupas, faziam reformas e
construções nos mosteiros aplicando seus conhecimentos de carpintaria e alvenaria.
Os mosteiros beneditinos contribuíram avidamente com as ações missionárias da
igreja cristã na Idade Média, Agostinho de Cantuária (†604)92
e Bonifácio (680-754)93
, o mais
claro exemplo da importância dos beneditinos na expansão missionária e evangelizadora da
igreja”94
, são os melhores exemplos desta cooperação. “Os monges, particularmente da
Bretanha, foram os missionários da Igreja medieval. Foram enviados como intimoratos
soldados da Cruz para fundar novos mosteiros, que acabaram se tornando centros através dos
92
“Prior do Mosteiro de Santo André, no monte Célio, foi escolhido por Gregório, em 596, como chefe da
missão destinada a evangelizar os anglo-saxões da Inglaterra. Chegados à Provença, os missionários tiveram
uma crise de desanimo e voltaram a Roma, mas Gregório os reanimou no propósito e fê-los empreenderam de
novo a viagem. Agostinho desembarcou, por volta da Páscoa de 597, na foz do Tâmisa, no Kent, cujo rei
Etelberto desposara a princesa franca Berta, que era cristã. esta circunstância favoreceu a obra de A. que, depois
de pouco tempo, pôde anunciar a Gregório o batismo de 10.000 anglos. Beda (HE 1,33) também nos informa
sobre o batismo do rei após poucos meses da chegada de A., mas a notícia não parece ser de todo segura.
Informado desses sucessos, Gregório enviou a A., junto com novas disposições e reforço, o pálio arquiepiscopal.
Sua intenção era, futuramente, desdobrar em duas, com centro em Londres e York, a província eclesiástica que
se estava formando. Mas passará muito tempo antes que este projeto se realize. No entanto, A., tornado
arcebispo de Cantuária, perto de Londres, estendia o raio de sua ação até a Inglaterra meridional, onde introduziu
a regra beneditina, e também além do Tâmisa, entre os saxões orientais. Ao contrário, foi infrutífera a tentativa
de contato em 602 ou 603, com os bretões do País de Gales, já largamente cristianizados, mas que seguiam os
usos célticos em vários pontos, contrastando com os costumes romanos. Alguns bispos chegaram a discutir com
A., mas desconfiados também, porque este trabalhava com os anglo-saxões, acérrimos inimigos dos bretões
celtas, não quiseram reconhecê-lo como primaz da Inglaterra e muito menos aceitaram o rito romano para a
celebração da Páscoa e do batismo. Morreu pouco depois, a 26 de maio de 604”. Manlio Simonetti, verbete
“Agostinho de Cantuária” in Angelo Di Berardino (org.), Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs,
Petrópolis-RJ, Vozes, 2002, p. 54. 93
“Os ingleses enviaram a outros povos alguns dos seus mais nobres missionários. O maior deles, e de todos os
missionários desse período, foi Bonifácio (680-755). Nasceu em Devonshire, de pais ricos. Tornou-se famoso
por sua cultura, eloqüência e piedade. Ainda moço, sentiu-se chamado para evangelizar os germanos, não
obstante os amigos preverem para ele outra notável carreira em sua terra. De lá saiu e conseguiu permissão do
papa para trabalhar como missionário na Turíngia. Ali trabalhou de maneira assombrosa, pregando, batizando,
fundando escolas e mosteiros, instituindo uma organização eclesiástica no sul da Alemanha, país que ele
conquistou para o Cristianismo. Como a maioria dos missionários medievais, deu combate tremendo ao culto
pagão, provando que seus deuses nada eram. Derrubou o carvalho sagrado de Odin, em Geismar, na presença de
uma multidão aterrorizada de pagãos que lhe tinham dado permissão para fazê-lo, julgando que o veriam cair
morto ao cometer o sacrilégio. Hábil, conseguiu auxiliares ingleses, de ambos os sexos. Além de seu pesado
encargo como arcebispo de Mainz e chefe da igreja germânica, o papa Zacarias o encarregou de reformar e
organizar a igreja corrompida da França, objetivo que alcançou. Bonifácio coroou sua obra, despojando-se de
todos os seus altos ofícios, aos 74 anos, e, como simples pregador, foi evangelizar os frísios, povo selvagem que
habitava a foz do Reno. Dois anos depois, um bando deles o assassinou. Foi ele quem tornou, em caráter
duradouro, o sul da Alemanha uma terra cristianizada, e é difícil encontrar homem que tenha feito mais para
Cristo”. Robert Hastings Nichols, História da Igreja Cristã, 11ª. ed., São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 72-73;
“Bonifácio (680-754), que é freqüentemente chamado o apóstolo da Alemanha, viveu até a idade de 40 anos
como um monge na Inglaterra, e depois viajou extensamente no que hoje é a França, a Alemanha e os Países
Baixos, numa série de turnês missionárias desbravadoras. Um dos mais duradouros de seus muitos legados ao
cristianismo do norte da Europa foi o estabelecimento de um mosteiro beneditino em Fulda (a nordeste de
Frankfurt, na Alemanha), que por muito tempo foi um centro de novos esforços missionários”. Mark A. Noll,
Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 107. 94
Martin N. Dreher, A Igreja no Mundo Medieval, Coleção História da Igreja vol. 2, 6.ª ed., São Leopoldo-RS,
Sinodal, 1994, p. 23.
33 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
quais tribos inteiras se converteram ao cristianismo. Columba, monge da Irlanda, converteu
os escoceses, e um dos seus seguidores, Adriano, converteu os povos do norte da
Inglaterra”.95
Diz Noll sobre as missões dos monges entre os anos 500 a 1000: “Em primeiro
lugar, a expansão missionária do cristianismo seria impossível sem a atividade dos monges.
(...) A eficiência missionária dos monges dependia tanto de suas virtudes comuns quanto de
seus esforços mais claramente visíveis na pregação ou no ensino. O estabelecimento de um
mosteiro numa região pagã permitia que a população local visse a aplicação do cristianismo à
vida diária, enquanto os monges lavravam a terra, recebiam visitantes e se dedicavam ao
estudo e à oração diária. Assim, surgiu a afirmação de que os monges civilizaram a Europa
cruce, libro et atro – com a cruz, o livro e o arado”.96
Vejamos mais uma vez o que Noll diz sobre o monasticismo em sua utilidade e
abrangência:
Um historiador, mesmo um historiador protestante de inclinação
reformada que acha que a vida comum na sociedade e a sexualidade
conjugal são dons de Deus a serem grandemente valorizados, irá
hesitar em levantar questões quanto à justificação teológica do
monasticismo. O que um historiador vê ao olhar para o passado é que,
quase sozinhos, os monges por mais de mil anos sustentaram o que
havia de mais nobre e mais cristão na igreja. O historiador também
deve reconhecer que a santidade da vida monástica – embora nunca
perfeita, sempre em necessidade de reforma e ocasionalmente
mergulhada em corrupção – continua a ser hoje, mais de mil e
setecentos anos depois que Antônio foi para o deserto, um guia e uma
inspiração para amplos setores da igreja cristã.97
O historiador e especialista em Idade Média Dominique Iogna-Prat nos apresente de
modo claro e direto o desenvolvimento e o aumento da influência da regra beneditina na
Europa medieval:
De início, a regra de são Bento nada mais é que um texto entre outros
numa profusão de regras que, no seio das “microcristandades” do
Ocidente (Peter Brown), ensinam diversos modos de renúncia.
Levando-se em conta esse início modesto, como explicar o prodigioso
sucesso do modelo beneditino? Deve-se ver nele, no essencial, um
efeito indireto da lenta política de unificação da Igreja latina. O papa
Gregório I, o Grande, ele próprio ex-monge e devoto de Bento, envia
uma pequena equipe de discípulos para evangelizar a Inglaterra. É por
intermédio desses missionários que a regra de são Bento é adotada nos
mosteiros anglo-saxões; no início do século VIII, outros missionários,
insulares dessa vez, retornam ao continente para evangelizar a
Germânia e implantar aí o monaquismo beneditino. Os discípulos de
são Bento ocupam, a partir de então, uma posição de primeiro plano
na frente pioneira de uma Igreja latina conquistadora. E isso tanto
mais que os soberanos carolíngios decidem, no âmbito do seu grande
95
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 126. 96
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 106, 107. 97
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 111-112.
34 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
projeto de Império cristão, impor o tipo beneditino como modo de
vida universal dos monges. Bento de Aniano († 821), conselheiro do
imperador Luís, o Piedoso, em matéria religiosa, promove um
verdadeiro aggiornamento em matéria monástica, ao cabo do qual os
irmãos reunidos em comunidade optam por “uma só regra e um só
costume”: a regra de são Bento, mais ou menos adaptada em função
das necessidades do tempo com base em “costumes”, isto é,
disposições (modos de vida, usos litúrgicos) não previstas por são
Bento.98
Influência Social do Monasticismo Beneditino
O historiador da educação americano Paul Monroe descreve sucintamente a Regra de
São Bento, suas diretrizes e o seu poder de influência social na educação, na tecnologia, na
economia e na assistência social, entre outros, promovidos por estes cristãos do passado com
um depoimento comovente que vale a pena ser lido e repetido, mutatis mutandis obviamente:
As regras originais de São Bento compreendiam 73 disposições. Nove
referiam-se aos deveres gerais dos abades e monges, 13 ao culto, 29 à
disciplina, erros e penalidades, 10 à administração do mosteiro, e 12 a
tópicos diversos tais como a recepção de hóspedes, conduta dos
monges quando em viagem, etc. O traço característico da Regra
Beneditina era a insistência sobre o trabalho manual de qualquer
espécie, a obediência implícita que o monge deveria prestar ao abade
na execução desse trabalho. Em vivo contraste com as idéias e os
hábitos dos monges do Oriente, a indolência era considerada a inimiga
da alma. Para precaver-se contra ela, pelo menos sete horas diárias
deviam ser devotadas a alguma espécie de trabalho manual. Assim
foram extirpados muitos dos males que tinham entrado na vida
monástica, como resultado de indolência. Eliminaram-se também, os
males mais sutis, de natureza subjetiva, que, fatalmente, – para
espíritos pouco aptos a aproveitar-se de semelhante curso de vida –
haviam de decorrer da existência obrigatoriamente solitária e do
hábito de tediosos devaneios sobre males imaginários. A Regra
Beneditina é o primeiro reconhecimento do valor do trabalho manual
na educação. Embora o conceito de educação e o valor dado às
atividades manuais desse treino mal fossem diferentes dos que
adotamos hoje, representaram um grande passo, adiante dos gregos e
romanos. Desta disposição veio a maior parte dos benefícios sociais
do monaquismo no Ocidente, – porque o monaquismo era uma
educação no mais amplo sentido social do termo. No cultivo do solo
os monges se fizeram modelos para os camponeses. Introduziram
novos processos para os artífices de madeira, metal, couro e tecidos.
Traçaram novos rumos para a arquitetura. De certo modo estimularam
e fomentaram o comércio entre a classe mercantil. Ofereceram asilo
ao pobre, ao doente, ao aleijado e ao aflito. Drenaram pântanos e
melhoraram a saúde e a vida pública, em quase todos os aspectos.99
98
Dominique Iogna-Prat, “São Bento: pai dos monges do Ocidente” in Alain Corbin (org.), História do
Cristianismo: para compreender melhor nosso tempo, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009, p. 147. 99
Paul Monroe, História da Educação, 14ª. ed., São Paulo, Editora Nacional, 1979, p. 104-105. Paul Tillich
corrobora a análise de Monroe: “Os monges produziram a mais refinada forma da cultura estética medieval e, até
hoje, algumas ordens monásticas representam ainda as mais altas formas culturais na Igreja Católica. Os
35 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Eis a análise e interpretação do historiador Hilário Franco Júnior, também especialista
em Idade Média, quanto à regra beneditina:
No Ocidente, a primeira grande experiência de um clero regular, isto
é, submetido a uma regra específica de vida, deu-se com São Bento
(480-547). Sua Regra, elaborada em 534, aproveitava muito de
similares anteriores, porém com clareza e simplicidade novas. Por ela,
a vida do monge beneditino transcorre em função do preceito ora et
labora. Oração e trabalho num duplo sentido, numa dupla forma de
alcançar Deus: rezar é combater as forças maléficas, contribuindo para
a salvação não apenas da alma do próprio monge, mas também de toda
a sociedade; trabalhar é afastar a alma de seus inimigos, a ociosidade e
o tédio, é alcançar através desta forma de ascese uma fonte de alegria.
Tanto quanto o trabalho manual, o intelectual, a leitura de textos
sagrados, prepara a alma para a oração. Enfim, orar é uma forma de
trabalhar, trabalhar é uma forma de orar.
A tradicional trilogia monástica de castidade, pobreza e obediência
estava presente de forma concreta e equilibrada no quotidiano dos
beneditinos. O abade eleito pelos monges recebe a obediência total
deles, de maneira a ela representar uma manifestação de pobreza, pois
não se pode dispor sequer da própria vontade. Tal pobreza não é
entendida como falta ou miséria, mas posse do estritamento
necessário, daí o monge não poder ter nada de seu, apesar de o
mosteiro possuir propriedades recebidas em doação. Assim, sendo a
castidade negação da posse do próprio corpo, é uma forma de pobreza.
Sendo negação do usufruto do próprio corpo, é uma forma de
obediência. Sendo obediência uma renúncia, ela é uma forma de
castidade.
Graças a essa espiritualidade vigorosa, a Ordem Beneditina conheceu
até o século XII imenso sucesso e cumpriu um papel de primeiríssima.
Por exemplo, na evangelização da zona rural. Desde fins do século III
ocorria forte expansão do Cristianismo nas cidades, onde a crise do
Império Romano era mais sentida e, portanto, as condições para a
cristianização mais favoráveis. O campo, sempre mais conservador,
mantinha-se preso às suas antigas crenças, mesmo pré-romanas, daí
paganus (“camponês”) ter sido identificado ao não-cristão. Contudo,
a decadência urbana e o êxodo correspondente levaram o Cristianismo
a penetrar no campo. Subsistiram, porém, ilhas de paganismo até o
século VI nas regiões romanas e bem mais tarde nas germânicas. No
processo de evangelização desses territórios, os mosteiros
desempenharam papel superior ao dos bispados, presos às cidades.
Em busca de isolamento, mas também de novas almas a converter
para sua fé, os beneditinos alargaram as fronteiras do Cristianismo
Ocidental.100
A influência do monasticismo de Bento atingiu todo o movimento monástico no
Ocidente, principalmente porque ensinou detalhadamente como o monge deveria se
comportar no mosteiro e quais deveriam ser seus exercícios diários em todos os âmbitos. “O
beneditinos, em particular, têm preservado essa tradição até nossos dias. Os monges eram também os
mantenedores da ciência teológica e, talvez, da ciência em geral”. Paul Tillich, História do Pensamento Cristão,
2ª. ed., São Paulo, ASTE, 2000, p. 155. 100
Hilário Franco Júnior, A Idade Média: nascimento do Ocidente, 2.ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 111-
112.
36 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
padrão estabelecido pela Regra de São Bento veio a ser aplicado amplamente e com grande
efeito. Para homens e mulheres, de todas as partes da Europa e de outras regiões, em períodos
de florescimento e de decadência monástica, ela foi um farol que apontava para o passado,
para a estabilidade disciplinada de um ideal espiritual, e para o futuro, em direção ao
crescimento para a bem-aventurança eterna”.101
Para Jacques Le Goff e Nicolas Truong, os mosteiros beneditinos foram importantes
também por se constituírem nos hospitais medievais. Observemos:
Numa época em que não é raro encontrar, em uma estrada, uma praça
ou uma igreja, homens doentes e pobres, a enfermidade e a assistência
não se reduzem à virtualidade, à teoria, ao conceito. A Regra de São
Bento prega assim a hospitalidade, “a assistência aos enfermos”, que
devem ser servidos exatamente como se serviria Cristo em pessoa.
Pois Jesus diz: “Eu estava doente e vós me visitastes.”
A caritas, primeira das virtudes teologais, assim como a infirmitas,
frequentemente associada À pobreza e à doença, vão se constituir em
poderosas alavancas para o nascimento do hospital medieval, lugar
público e gratuito da caridade. Bem organizados, sem dúvida alguma,
já que os hospitais distinguem “os verdadeiros e os falsos pobres, os
verdadeiros e os falsos doentes, os doentes moralmente aceitáveis e
aqueles que não o são”. Mas, na teoria, o hospital acolhe todos os
homens e de todas as condições, a exemplo dos domínios eclesiásticos
aos quais são frequentemente ligados. A distinção social, contudo,
escapa à Regra. De um lado, o espaço privado e doméstico do médico
“sábio”; de outro, o socorro ao pobre doente no hospital, que só mais
tarde se tornará um verdadeiro lugar de cuidados e curas.102
6 – DESVIOS NOS IDEAIS DO MONASTICISMO
A história nos mostra que no decorrer dos tempos que os mosteiros de um modo geral
começaram a declinar da sua austeridade própria na prática dos seus votos monásticos. Isto
ocorreu, dentre diversas óticas de análise possíveis, devido a duas causas básicas.
Os mosteiros passaram a receber inúmeros donativos, terras era o presente mais
comum, tornando-se centros de riquezas, enquanto os monges viviam segundo seus votos de
pobreza. Conforme defende Leo Huberman acerca da Igreja como um todo, no entanto, o
monasticismo foi em certa medida instrumento nestes feitos, observemos:
A Igreja foi a maior proprietária de terras no período feudal. Homens
preocupados com a espécie de vida que tinham levado, e desejosos de
passar para o lado direito de Deus antes morrer, doavam terras à
101
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 106. 102
Jacques Le Goff; Nicolas Truong, Uma História do Corpo na Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2006, p. 118-119.
37 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Igreja; outras pessoas, achando que a Igreja realizava uma grande obra
de assistência aos doentes e aos pobres, desejando ajudá-la nessa
tarefa, davam-lhe terras; alguns nobres e reis criaram o hábito de,
sempre que venciam uma guerra e se apoderavam das terras do
inimigo, doar parte delas à Igreja; por esse e por outros meios a Igreja
aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço
e metade de todas as terras da Europa ocidental.
Bispos e abades se situaram na estrutura feudal da mesma forma que
condes e duques.
E exatamente como recebia a terra de um senhor, também a Igreja
agia, ela própria, como senhor.
Enquanto os nobres dividiam suas propriedades, a fim de atrair
simpatizantes, a Igreja adquiria mais e mais terras. Uma das razões
por que se proibia o casamento aos padres era simplesmente porque os
chefes da Igreja não desejavam perder quaisquer terras da Igreja
mediante herança aos filhos de seus funcionários.
À medida que a Igreja crescia enormemente em riqueza, sua economia
apresentava tendências a superar sua importância espiritual. Muitos
historiadores argumentam que, como senhor feudal, não era melhor e,
em muitos casos, muito pior do que os feudatários leigos.
Alguns historiadores pensam até que se exagerava o valor de sua
caridade. Admitem o fato de que a Igreja realmente ajudava os pobres
e doentes. Mas ressaltam que ela era o mais rico e poderoso
proprietário de terras da Idade Média, e argumentam que, comparado
ao que poderia ter feito, com sua tremenda riqueza, não chegou a
realizar nem mesmo tanto quanto a nobreza. Ao mesmo tempo que
suplicava e exigia a ajuda dos ricos para fazer sua caridade, tomava o
maior cuidado em não sacar muito profundamente de seus próprios
recursos. Esses críticos da Igreja observam ainda que, se ela não
houvesse tratado tão mal a seus servos, não teria extorquido tanto do
campesinato, e haveria menos necessidade de caridade.103
Outra causa está relacionada à negação das atividades sociais mais comuns, porque
defendiam esta prática como sinônima da verdadeira vida cristã. Por ser a completa separação
do mundo uma prática não natural ao ser humano, as exigências monásticas que julgavam
uma completa separação dos pecados da sociedade mundana extramuros, passaram a conviver
com problemas dentro dos seus próprios muros.
Além destes fatores deploráveis de desvio, Cairns nos apresenta outros que devem ser
considerados:
Neste balanço do primitivo monasticismo medieval, há também um
débito a se considerar. Muitos dos melhores homens e mulheres do
Império foram desviados para dentro dos mosteiros, perdendo o
mundo, já tão necessitado, a possibilidade de contar com sua
contribuição. Ademais, o celibato impossibilitou a estes homens e
mulheres o casamento e, por conseguinte, a criação de crianças
melhores. Isto gerou um padrão de moralidade para os monges (o
celibato) e outro para o homem comum.
Em muitos casos também o monasticismo favoreceu o orgulho
espiritual, com os monges tornando-se orgulhosos de seus atos
103
Leo Huberman, História da Riqueza do Homem, 21.ª ed., Rio de Janeiro, Guanabara, 1986, p. 13, 14, 15.
38 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
ascéticos praticados em benefício de suas próprias almas. Como os
mosteiros tornaram-se ricos, devido à frugalidade e propriedade em
comum, o ócio, a avareza e a glutonaria campearam.
O monasticismo contribuiu para o rápido desenvolvimento de uma
organização hierárquica centralizada na Igreja, isto porque os monges
deviam obediência aos superiores que, por sua vez, obedeciam ao
papa. Podemos lamentar estes desvios mas temos também de admirar
as excelentes contribuições prestadas por esses monges à vida
medieval.104
Não podemos deixar de salientar em último lugar que o método missionário do
movimento monástico foi deveras deficiente. Trabalhavam com uma perspectiva de
conversão em massa. Para os monges missionários “se um rei aceitasse o cristianismo, ele e
seu povo eram batizados tivessem ou não compreendido plenamente o significado do ato ou o
sentido do Cristianismo para suas vidas”.105
Desta feita, em grande medida, o resultado de
sua suposta evangelização esteve circunscrito apenas ao âmbito meramente formal, quando
muito.
Todavia podemos olhar para estes desvios de uma perspectiva teológica, Noll nos
auxilia nesta tarefa de interpretar o movimento monástico por este viés:
A avaliação do monasticismo por parte de um protestante
naturalmente irá refletir princípios protestantes mais amplos. Assim,
as convicções protestantes acerca da centralidade da justificação pela
fé irão indagar se o monasticismo não incentivou noções danosas no
que diz respeito à salvação pelas obras. Obviamente, certos
momentos de renovação monástica foram tão plenamente inspirados
pela confiança na graça divina e pela dedicação à santidade única de
Deus quanto quaisquer momentos na história posterior do
protestantismo. Porém, se nas épocas monásticas ordinárias a ênfase
no que os monges se comprometiam a fazer não teria obscurecido a
realidade fundamental da graça de Deus é uma questão que qualquer
cristão poderia legitimamente levantar.
Aceitando-se o mandato cristão de fazer todas as coisas “com
decência e ordem” (1 Co 14.40) e a realidade do vínculo entre a carne
e o espírito acentuado pela encarnação, é possível sugerir que a
inclinação do coração, antes que a mera disposição do corpo, é a
questão-chave na vida de santidade.
Uma das passagens mais marcantes dos evangelhos é a afirmação de
João 2.11 de que Jesus revelou “a sua glória” através do seu primeiro
milagre, em Caná da Galiléia, quando transformou a água em vinho e
assim permitiu a continuação de uma festa de casamento. Se o Filho
de Deus fez tal coisa para promover uma alegre celebração com o
corpo (...) e uma alegre celebração do casamento (...), temos pelo
menos um indício de que a vida celibatária e ascética não é
intrinsecamente mais piedosa do que a vida conjugal e celebratória.106
104
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 126. 105
Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: uma história da igreja cristã, 2ª. Ed., São Paulo, Vida
Nova, 1988, p. 126. 106
Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo, Cultura Cristã, 2000, p. 110-111.
39 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
Segundo o “quadro pintado” por Gonzalez tempos mais tarde a situação dos mosteiros
era bem diferente dos ideais de vida religiosa pura e os elevados parâmetros de moralidade
ascética de tempos iniciais do monasticismo. Eis a situação presente deste tempo:
Muitos mosteiros foram saqueados e destruídos pelos invasores
normandos e húngaros. Os que estavam em lugares mais protegidos
se transformaram em joguete das ambições de abades e prelados. Os
nobres ou bispos que eram seus supostos protetores os utilizavam para
seus próprios fins. Assim como o papado e os bispados, as abadias
foram objeto de cobiça, e houve quem chegasse a elas mediante a
simonia ou ainda o homicídio, e logo elas foram usadas para gozar
uma vida acomodada e muito distante do ideal beneditino. Os monges
de vocação sincera se viam violentados pelas circunstancias da época.
A Regra de São Benedito apenas era cumprida. E quando algum
monge devoto fundava um novo mosteiro, mais tarde este também se
transformava em presa dos ricos e poderosos.107
Diante desta situação alguns foram movidos pelo desejo de uma reforma de
transformação e purificação dos ideais primevos do monasticismo. Assim surgem, dentre
outros, dois movimento de considerável importância: o monasticismo da ordem de Cluny
(cluniacense) e da ordem de Citeaux (cisterciense).
7 – MOVIMENTOS REFORMISTAS
7.1 – Ordem de Cluny
A história do mosteiro de Cluny tem início com o duque Guilherme da Aquitânia,
também chamado de o piedoso; senhor feudal fundador do mosteiro no ano de 910 quando
chamou o abade Bernon para ser o principal dirigente, o superior. Esta ordem religiosa se
tornaria uma das mais influentes nos anos que se seguiriam, pois o programa de prática do
monasticismo cluniacense era revigorar a influência monástica da regra beneditina. “Bernon
pediu a Guilherme que lhe concedesse, para sediar a fundação, um lugar chamado Cluny, que
era a região de caça preferida do duque. Este atendeu ao pedido, e concedeu ao novo
mosteiro as terras da aldeia necessária para o seu sustento. O caráter desta cessão foi de suma
importância, pois Guilherme, em vez de reter o título e os direitos de patrono do mosteiro,
doou as terras aos “santos Pedro e Paulo”, e colocou a nova comunidade sob a proteção direta
da Santa Sé. Como na época o papado passava por suas piores épocas, esta suposta proteção
não tinha outro propósito que proibir a ingerência dos senhores feudais ou bispos da
proximidades. Além disto, para evitar que o papado, corrupto como estava, utilizasse Cluny
107
Justo L. Gonzalez, Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos altos ideais, vol. 4, 2.ª ed., São Paulo,
Vida Nova, 1986, p. 8.
40 O MOVIMENTO MONÁSTICO: história, desenvolvimento e proponentes Prof.º Ms. Christian Medeiros
para seus próprios fins partidaristas, Guilherme proibiu explicitamente que o papa invadisse
ou de qualquer outro modo tomasse posse do que pertencia aos dois santos apóstolos”.108
108
Justo L. Gonzalez, Uma História Ilustrada do Cristianismo: a era dos altos ideais, vol. 4, 2.ª ed., São Paulo,
Vida Nova, 1986, p. 8-9.
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