monitoramento, avaliaÇÃo e controle superando … · da visão técnico-burocrática prescrita...
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Centro de Convenções Ulysses Guimarães
Brasília/DF – 4, 5 e 6 de junho de 2012
MONITORAMENTO, AVALIAÇÃO E CONTROLE – SUPERANDO O DEBATE
TÉCNICO-BUROCRÁTICO
Elton Bernardo Bandeira de Melo Roberto Wagner Silva Rodrigues
Painel 39/143 O planejamento governamental brasileiro - atualidade e perspectivas
MONITORAMENTO, AVALIAÇÃO E CONTROLE – SUPERANDO O
DEBATE TÉCNICO-BUROCRÁTICO
Elton Bernardo Bandeira de Melo Roberto Wagner Silva Rodrigues
RESUMO Algumas características dominantes do debate acerca do monitoramento, avaliação e controle de políticas públicas são: a valorização do conhecimento inerente às metodologias em detrimento do conhecimento do conteúdo das políticas, gerencialismo, valorização da perspectiva do financiador das políticas em detrimento da perspectiva do beneficiário, positivismo, tecnicismo, racionalismo, busca de imparcialidade em detrimento da pluralidade e apropriação do universal. Isto é evidenciado a partir de uma diversidade de documentos públicos. Algumas explicações para a formação deste ideário técnico-burocrático possuem raízes na história, economia e sociologia, conforme se pode argumentar com base em referências bibliográficas. Com base na análise de experiências de monitoramento e avaliação na Administração Pública Federal mostra-se como a superação, mesmo que parcial, de tal ideário, aumentam seu potencial de contribuição para as decisões na esfera pública. Por fim o apontam-se possíveis caminhos que podem contribuir para tal superação, potencializando os mecanismos de gestão, e por fim, o próprio Estado enquanto produtor de bem-estar social.
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1 INTRODUÇÃO
Definições, taxonomias, classificações, tipologias, critérios e prescrições
têm consumido a maior parte do espaço dedicado à discussão acerca do
monitoramento, avaliação e controle de políticas. Consultores, acadêmicos e
especialistas têm travado um debate centrado majoritariamente em aspectos
técnicos, e assim disseminam um conhecimento restrito, que contribui somente
para que instrumentos técnico-burocráticos de prestação de contas,
responsabilização (em nome de accountability), acompanhamento de execução
físico-financeiro, produção de metas, indicadores e avaliações de desempenho da
administração pública constituam um arcabouço que, embora tenha sua
importância reconhecida, merecem um olhar mais crítico quanto à sua aplicação
para as políticas públicas em geral.
Esses instrumentos técnico-burocráticos são produtos de um ideário que
se pretende universal, objetivo, imparcial e independente de contexto, que acabou
por constituir um campo de conhecimento que se pretende aplicável a qualquer
política pública, a qualquer objetivo de governo e perspectiva política. Com isso,
obscurecem-se outras dimensões, também fundamentais para a análise, concepção
e aprimoramento de políticas, tais como aspectos políticos e sociológicos
específicos de cada campo de atuação estatal. Esta redução do debate aos seus
aspectos técnico-burocráticos encontra explicações justamente nas dimensões que
lhe foram suprimidas – história, política, sociologia – e reduz o potencial de
contribuição da gestão pública à sociedade.
É possível ampliar o debate acerca dos mecanismos de monitoramento,
avaliação e controle justamente a partir de uma leitura mais abrangente de cada
política, que considere os conhecimentos específicos e experiências locais,
perspectivas distintas dos atores relevantes, aspectos subjetivos, exercícios
dialógicos, circunstâncias histórica, política, econômica, social e ambiental. Ora,
estas dimensões necessariamente escapam ao rol de técnicas universais e
requerem um tipo de conhecimento e de reflexão local, caso a caso, que, na maioria
das vezes, escapa à literatura dita especializada em monitoramento e avaliação.
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Com o intuito de apontar possíveis explicações para a constituição do
ideário técnico-burocrático, são trazidas referências bibliográficas com argumentos
históricos, sociológicos, econômicos ou das ciências políticas. Algumas experiências
recentes do Governo Federal exemplificam como o tipo de conhecimento, o perfil
dos formuladores e as características dos atores envolvidos influenciam o tipo de
resposta obtida das intervenções governamentais, e como as tentativas de aplicação
da visão técnico-burocrática prescrita nos manuais podem limitar as práticas de
gestão, reduzindo seu potencial de produção de bem estar social. Por fim, apontam-
se caminhos para a superação deste ideário, bem como, exemplos de superação
parcial extraídos de experiências do Governo Federal.
2 OBJETIVO
Busca-se apontar características do ideário técnico-burocrático,
dominante no debate e nas práticas de monitoramento, avaliação e controle, bem
como suas explicações históricas, econômicas e sociológicas. A partir daí, e com
base em experiências do Governo Federal, é possível apontar caminhos para a
superação do debate convencional, contribuindo para a melhoria da gestão pública,
potencializando as intervenções estatais, fortalecendo a democracia e contribuindo
para o alcance dos objetivos fundamentais da república, conforme expressos na
Constituição Federal.
3 O IDEÁRIO TÉCNICO-BUROCRÁTICO DE MONITORAMENTO, AVALIAÇÃO E CONTROLE
Os mecanismos de realimentação desempenham papel central tanto na
gestão pública quanto em qualquer sistemas dinâmicos em geral, sejam eles
organismos vivos ou não, artefatos de engenharia ou organizações sociais (OGATA,
2009; ALBERTOS; MAREELS, 2010, FEY; POWERS, 1993).
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O diagrama da figura 1 representa um modelo básico de realimentação
com o qual é possível modelar e analisar sistemas complexos em várias áreas do
conhecimento, tais como Economia, Sociologia e gestão pública. Nestas análises, o
processo e sua realimentação estão tão intimamente relacionados que não é
possível estudar os primeiros dissociados dos últimos. Uma vez que o processo
influencia na sua própria realimentação e vice-versa, pensar tais sistemas a partir de
uma lógica causal é uma armadilha que leva a um argumento circular. O
comportamento destes sistemas realimentados são, em geral, contra-intuitivos
(ASTRÖM; MURRAY, 2008). Sua análise torna-se tão mais complexa e difícil quanto
mais sofisticados são os modelos, explicitando um maior número de variáveis, suas
interdependências e não linearidades. Se na engenharia normalmente é factível
modelar os aspectos centrais das tecnologias (sistemas) e desenvolver análises
satisfatórias, na biologia, ecologia ou sociologia, geralmente os modelos mais
simples e tratáveis analiticamente reduzem tanto a complexidade verificada nas
observações práticas que, via de regra, não permite qualquer tipo de inferência
sobre a realidade.
Na gestão pública, a retroalimentação é imprescindível para qualificar as
decisões dos gestores públicos e da população, para promover o aperfeiçoamento
das políticas e contribuir para que o Estado cumpra seu papel. Estas
retroalimentações podem ocorrer antes, durante e/ou depois das intervenções
estatais, sendo mais ou menos aprofundadas, mais ou menos abrangentes,
participativas, desempenhadas por diversos atores, com diferentes focos.
Figura 1: Sistema básico com realimentação
5
Espera-se que as atividades que se classificam entre monitoramento,
avaliação e controle constituam mecanismos institucionalizados, e mais bem
estruturados de retroalimentação acerca das ações governamentais e são
entendidos enquanto centrais para o bom funcionamento dos governos em Estados
democráticos modernos1. Assim, constituiu-se um campo de conhecimento que vêm
demandando investimentos significativos, inclusive para a promoção, a produção e
disseminação de conhecimentos, para a formação e capacitação de novos agentes,
o desenvolvimento e consolidação de suas metodologias.
Em geral, a estruturação da produção dessas informações no universo
burocrático busca conferir maior previsibilidade, consistência metodológica,
padronização, normatização e sistematização. Com isso, surgiram classificações,
critérios, tipologias e receituários para estas atividades, que variam a depender de
seu escopo, finalidade, atores envolvidos, tempos, etc. Constituiu-se um ideário
técnico-burocrático, a partir do qual, muitas vezes não se produzem informações
úteis para suportar decisões do setor público. Verifica-se que, não raramente, os
„estpecialistas‟ desta área apegam-se a formalismos e tecnicismos dispensáveis,
assentam-se em pressupostos questionáveis e representações demasiadamente
simplificadas da realidade, e, assim, promovem o distanciamento entre a práxis e os
conceitos, entre as condições reais e as premissas, entre as informações desejadas
para tomada de decisões e aquelas produzidas.
3.1 Características do ideário técnico-burocrático
Apesar de reconhecer uma série de experiências da gestão pública
brasileira que superaram este ideário e inovaram na produção e tratamento das
informações, é possível listar algumas características que ainda marcam o debate
acerca do monitoramento, avaliação e controle de políticas e que constituem o
ideário técnico-burocrático2:
1 Matus [matus, ano], por exemplo, reconhece que “os sistemas de monitoramento têm importância
básica para acompanhar a situação, o andamento dos planos e os efeitos das ações de intervenção e correção. É um sistema que proporciona informação muito seletiva de sinais em tempo eficaz”, bem como defende o desenvolvimento de um “sistema de cobranças e prestação de contas por desempenho”, que pode ser visto como um sistema avaliativo das políticas de governo. 2 Isto pode ser verificado a partir de publicações disponíveis na Internet, a partir dos seguintes sites:
Escola Nacional de Administração Pública – www.enap.gov.br
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a) Valorização do conhecimento inerente às metodologias em detrimento
do conhecimento do conteúdo das políticas – Esta é uma das
características mais presentes no debate e na reprodução do
conhecimento dos ciclos de gestão pública, seja nos cursos de
formação e capacitação dos burocratas, na publicação de trabalhos
técnicos e guias metodológicos, ou na contratação de consultorias e
estudos, o conhecimento valorizado nessas iniciativas está ligado, em
geral, a metodologias genéricas tais como modelo lógico, marco lógico,
gerenciamento de projetos, avaliações exalte de investimentos e
projetos, planejamento estratégico, construção de indicadores,
orçamento por resultados, planejamento em base territorial etc. É
exceção a valorização do conhecimento das particularidades de um
tema, política pública, ou problema nacional, tais como a questão
carcerária, a formação das tarifas de energia elétrica, ou a fome no
semiárido, por mais que estes se apresentem como desafios reais e
carentes de debates.
b) Valorização da perspectiva do financiador das políticas em detrimento
da perspectiva dos beneficiários – A maior parte das metodologias de
retroalimentação da gestão pública é desenvolvida e debatida sob a
ótica dos financiadores (instituições financeiras, investidores,
contribuintes), e não dos beneficiários dos serviços públicos. Banco
Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Tribunais de
Contas, Organização das Nações Unidas, etc. ou por braços do Estado
que em geral põem-se numa perspectiva de cobrança de prestação de
contas mais que de prestação de serviços. Nesta perspectiva, avaliar
Tribunal de Contas da União – www.tcu.gov.br Ministério do Planejamento – www.planejamento.gov.br Conselho Nacional de Secretários de Estado da Administração – www.consad.org.br Rede Brasileira de Monitoramento e Avaliação – redebrasileirademea.ning.com Centro Latinoamericano de Administración para el Desarollo – www.clad.org Organisation for Economic Co-operation and Development – www.oecd.org Banco Mundial – www.worldbank.org Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas – www.ipea.gov.br
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as políticas públicas torna-se uma exigência econômica e contábil,
mais que um exercício para aprendizagem institucional e
aprimoramento de Estado enquanto provedor de bens e serviços
públicos. Tende-se a avaliar o value for money das ações
governamentais e não a garantia de direitos à população, sobretudo
sua parcela mais carente;
c) Gerencialismo – A partir da influência do New Public Management, e
com o intuito de substituição do modelo burocrático pelo modelo
gerencial, a administração pública passa a pautar-se a redução da
discricionaridade das burocracias, com a instituição de metas e
indicadores, em geral quantitativos, objetivos e auditáveis para a
mensuração de resultados das organizações, além de incentivos
específicos em base pecuniária por desempenho (PIRES et al, 2010;
GAETANI, 2003). Influenciada pela perspectiva do setor privado, onde
dirigentes são pressionados a gerarem valor aos acionistas no curto
prazo sem maiores preocupações com a sociedade e o meio ambiente,
a tendência gerencialista é de ressignificar a gestão enquanto
capacidade de acompanhar processos objetivamente através de
painéis de indicadores, intervindo a partir da perspectiva da eficiência,
do value for money. Isto tende a concentrar esforços em setores
avaliados como mais produtivos e a pressionar ou eliminar setores
deficientes, muitas vezes com cortes de recursos. Também entre as
manifestações do gerencialismo está a noção de Accountability
enquanto responsabilização dos gestores. Não basta acompanhar
metas e indicadores, é necessário apontar, se possível nominalmente,
qual gestores públicos não obtiveram sucesso em suas empreitadas,
imputando-lhes, se possível, punições.
Embora esse termo seja muitas vezes traduzido como responsabilização, Oszlak (2005) observa que ele se refere a um processo de prestação de contas; no entanto, o termo accountability conota a própria obrigação de se prestar contas, assumida voluntariamente pelo sujeito, sem necessidade da intervenção de um terceiro para exigi-la. (VAITSMAN; PAES-SOUSA, 2011).
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d) Positivismo, tecnicismo, racionalismo – Ênfase à natureza
eminentemente técnica dos problemas e soluções no âmbito da
gestão pública e valorização das estruturas racionais-compreensivas
para a análise e formulação de políticas e negação de seus aspectos
políticos, institucionais, históricos e sociológicos. Surge daí
metodologias como o Quadro Lógico, o Modelo Lógico e as estruturas
de monitoramento e avaliação governamentais fundadas em
pressupostos tais como a separação de ações em níveis estratégico,
tático e operacional. Schneider defende a incorporação dos aspectos
históricos, políticos e institucionais enquanto centrais para os
avaliadores (SCHNEIDER, 2006).
As avaliações de resultado, por exemplo, são comumente realizadas com pouco ou nenhum conhecimento das necessidades inicialmente apuradas (se é que alguma foi apurada) ou das propostas de políticas que foram consideradas durante o processo de sua formulação. Raramente os condutores de avaliação estudam background ou a história política de uma política, que poderiam prover informações valiosas a respeito das consequências desejadas – segundo a ótica dos proponentes – bem como sobre os temores e as potenciais consequências negativas, consoante à percepção de seus oponentes. (SCHNEIDER, 2006).
e) Busca de imparcialidade em detrimento da pluralidade – Baseada na
ideia de que a técnica é politicamente neutra, desprovida de ideologia, a
burocracia coloca-se como observadora imparcial responsável pela
aplicação dos métodos, pela interpretação objetiva dos dados e por
decisões e condutas que se põem em defesa “do bem público”. Com
isto, afasta-se a ideia de construção de um ambiente plural para a
gestão, não há espaços para o debate de perspectivas distintas. A
percepção do „técnico‟ é imparcial, e, portanto, mais justa ou verdadeira;
f) Apropriação do universal - a partir da demarcação do significado de
conceitos como “resultados”, “desempenho”, “estratégico” e “retorno de
investimentos”, trava-se uma diputa para a conversão de perspectivas
particulares em “representações do bem comum”, inscrevendo acentos
avaliativos em práticas institucionais que são definidos a partir de
valores objetivos e quantitativos e, assim, dificultando o
reconhecimento de aspectos subjetivos e qualitativos, que não
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encontram espaço dentro dos instrumentos apresentados como
universais. Por exemplo, quando o uso de “custos unitários” é exigido
em todas as ações orçamentárias, contratos e licitações, a avaliação
da aquisição de tijolos, unidades habitacionais, ou quilômetros de
rodovia é facilitada, mas deixa-se de reconhecer como avaliáveis
aspectos como discriminações ou sensação de segurança. Estas
últimas são tidas como incômodas particularidades, incompatíveis com
o arcabouço validado para as categorias “gestão por resultados” ou
“avaliação do desempenho”, possuem falhas intrínsecas que as
impedem de se adequar às metodologias “universais”. Ademais, há um
grave efeito retórico nesta apropriação do universal, uma vez que se
opor a tais metodologias induz a pensar que se deseja uma gestão
sem resultados, ou uma avaliação que ignora o desempenho
(VAITSMAN, 1994).
Estas características reduzem a capacidade dos mecanismos de
monitoramento, avaliação e controle de produzir informações úteis à tomada de
decisões no setor público e assim cumprirem suas funções precípuas. Com isso,
cada vez mais as metodologias tornam-se sofisticadas, incrementam sua
complexidade técnica e a precisão terminológica, seguem-se pesquisas criteriosas,
em geral financiadas com recursos públicos, que acabam por figurar em estantes e
prateleiras dos órgãos, sem maiores consequências na prática da gestão. Outras
vezes são conduzidas para suportar escolhas que já foram dadas pela política.
“Na prática, esses “tipos” tradicionais de avaliação não passam de um
conjunto de técnicas para a solução de um problema ou para a escolha de uma
proposta e, por isso, acabam por conduzir à inconsistência do próprio processo
avaliativo” (CRUZ JÚNIOR; 2006). São publicados e divulgados, promovendo o
amplo reconhecimento da capacidade técnica de seus autores e instituições, mas
não servem às deliberações das autoridades que conduzem os governos. Em geral,
os “especialistas” conseguem confortavelmente atribuir a nulidade dos efeitos de
seus estudos a fatores externos: diferenças entre tempos das avaliações e tempos
das políticas, insensibilidade dos gestores, fatores políticos, dificuldades de
mobilização, incompreensão dos benefícios das ações sugeridas etc.
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É possível apontar uma série de fatores históricos que culminaram na
ascensão do ideário técnico-burocrático tal como caracterizado acima. Tais razões
vão desde a valorização das ciências modernas,“do modelo de racionalidade que se
constituiu a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos
séculos seguintes basicamente no domínio das ciências naturais”, constituindo um
modelo tanto hegemônico quanto totalitário, que se projeta sobre as ciências
sociais”. (SANTOS; 1998, p. 48). “A consciência filosófica da ciência moderna, que
tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras
formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista.” (SANTOS; 1998, p.
52). O que, por sua vez, influenciou o pensamento dos precursores do Estado
Moderno e suas ideias de justiça que estão como plano de fundo do pensamento
institucional e burocrático.
É a racionalidade derivada deste movimento que impulsiona o pensamento
Thomas Hobbes e mais tarde de John Rawls, e sua teoria da justiça como equidade.
Assim “a caracterização de instituições perfeitamente justas transformou-se no
exercício central das teorias da justiça modernas.” (SEN, 2011, p. 38). A teoria
rawlsiana é ancorada justamente na busca pela imparcialidade (“posição original”)
para concepção monocrática de instituições capazes de promover uma sociedade
perfeitamente justa. Analogamente, burocratas e acadêmicos pretendem-se
objetivos e imparciais para aplicar modelos racionais aos problemas sociais e
solucioná-los.
4 CONSTITUIÇÃO DO IDEÁRIO TÉCNICO-BUROCRÁTICO
O campo de conhecimento da avaliação de políticas públicas foi
constituído “como tributário de uma tradição de pensamento sobre políticas públicas
que enfatizava a natureza eminentemente técnica dos problemas a serem
abordados e das soluções a serem executadas.” (PIRES; CARDOSO JR., 2011).
Assim, surgiram especialistas em monitoramento, avaliação e controle, tanto na
burocracia quanto na academia, que não necessariamente conhecem os objetos aos
quais se aplicam suas prescrições teóricas, ou seja, as políticas públicas e seus
conteúdos políticos, econômicos, históricos e sociológicos.
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De acordo com Friedman (1987, p.79), “analistas e avaliadores de políticas públicas são como engenheiros sociais, os quais acreditam que, por meio da utilização de teorias científicas e técnicas matemáticas apropriadas, possa, pelo menos em princípio, identificar e calcular de forma precisa as melhores soluções possíveis (tradução livre) (PIRES, 2010).
Estes especialistas orientam-se para a concepção de conceitos e
fórmulas essencialmente técnicas, desconsiderando uma enormidade de variáveis
que escapam a este universo. Pretendem fazer recomendações aplicáveis a
qualquer política, em qualquer contexto, e, com isso, apenas excepcionalmente
influenciam no curso das decisões afeitas às políticas públicas, que são
essencialmente políticas e repletas de especificidades. É como se os “engenheiros
sociais” dos mecanismos de realimentação insistissem em ignorar os sistemas
dinâmicos aos quais estes servirão, e, ao buscarem um mecanismo universalmente
aplicável, ou pelo menos replicável, encontrassem seus próprios limites e minassem
suas possibilidades de contribuição para o aprimoramento das políticas.
Ainda sobre as atividades de avaliação Roberto Pires (PIRES, 2010)
aponta que “esta área foi guiada por dois pressupostos-chave: a ideia de um fluxo
linear no ciclo de atividades envolvidas na produção de políticas públicas e o foco
no binômio objetivo-resultado enquanto orientador dos esforços de análise”.
Acredita-se na distinção racional entre os trabalhos (e trabalhadores) em níveis
operacional, tático e estratégico, cada um com suas informações de interesse, e
seus tempos compatíveis com a formulação, análise, monitoramento e avaliação
das políticas. Há ainda a crença “na ideia de que decisões e resultados se situam
em momentos e etapas marcadamente distintas em um ciclo de produção de
políticas públicas que flui linearmente” (PIRES, 2010). Ignoram-se as assimetrias
de informações envolvidas.
Ainda sob o efeito deste ideário racional, há a tendência de detalhamento
excessivo dos procedimentos em regras, com a redução da discricionaridade da
própria gestão. Valorizam-se interpretações não sistêmicas dos textos normativos e
das atribuições formais dos órgãos e cargos. Subjacente a estas práticas está a
concepção de que bastaria aos componentes do sistema cumprirem seus papéis
específicos para trazerem sucesso ao funcionamento da máquina estatal como um
todo. Conforme Schneider:
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Embora as avaliações tenham se tornado importantes na administração pública, sua contribuição para melhorar a formulação de políticas continua sendo dificultada, por um lado por que os deliberadores acham estas avaliações irrelevantes, por outro lado, carecem de informações que dificilmente provêm destes estudos. Isto se dá porque o esquema conceitual que orienta a avaliação não tem dado atenção suficiente aos sistemas de tomada de decisão a que devem servir. (SCHNEIDER, 2006).
A partir do século XX, as práticas de organização dos governos passam
pelas ideias de Max Weber, que deixa como legado os benefícios e riscos dos tipos
ideais burocráticos. Posteriormente são influenciadas pelas inovações do pós-
guerra, sobretudo com a associação de planos, programas e orçamentos, que
buscavam racionalizar os meios para o cumprimento dos planos do governo,
aumentando as possibilidades de avaliações e diagnósticos para a correção de
rumos. Essa racionalidade, potencializada pelo desenvolvimento de modelos
matemáticos e influenciadas pelo sucesso da Pesquisa Operacional como
instrumento de otimização de processos e alocação de recursos durante e após a
segunda guerra mundial. Esse movimento apenas corrobora com a valorização cada
vez mais exacerbada de análises quantitativas, objetivas e de viés econométrico,
enquanto, em nome do bem comum (apropriação do universal), argumentos
subjetivos, políticos e ideológicos são praticamente relegados à condição de
inválidos para a tomada de decisões.
Com o advento do New Public Management (NPM) e a ascensão do
gerencialismo, com suas metas e indicadores de processos e resultados, avaliações
de desempenho associadas a bônus e ônus, e accountability.
As dificuldades experimentadas pelos funcionários públicos, no sentido de obterem avaliações úteis, advêm, pelo menos em parte, do fato de a avaliação, a análise de políticas e outras pesquisas sobre políticas terem tido sua origem em várias disciplinas e pontos de vista diferentes. Essa evolução produziu uma massa confusa de “tipos” de avaliação em vez de um quadro referencial coerente. (SCHNEIDER, 2006).
Os moldes atuais do debate acerca de mecanimos de monitoramento e
avaliação também são resultado das circunstâncias econômicas que levaram à
ascensão do NPM. Pode-se afirmar que é a crise econômica dos anos 80 e 90 que
pôs em xeque o modelo de Estado de bem-estar social e promoveu o
neoliberalismo, ao reduzir as competências do Estado e focar em ajustes fiscais,
desloca o foco das atividades dos governos para a contabilidade, para o controle
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dos gastos e não para a produção de bem-estar ou a promoção de direitos. É ainda
este movimento econômico que eleva instituições financeiras e agências de
cooperação a financiadores das políticas públicas, que, com suas prerrogativas de
credores, exigiram o desenvolvimento de avaliações centradas na eficiência do
capital (value for money), nas avaliações ex-ante para investimentos, com ênfase na
sustentabilidade econômica e no retorno dos investimentos.
Outro fator que não se pode deixar de lado é que a constituição das
burocracias estatais e acadêmicas e suas capturas pelos detentores de capital
financeiro. Ao advirem das camadas mais ricas da sociedade, estas pessoas mais
facilmente assumem a perspectiva do “contribuinte”, ou seja, do financiador das
políticas que a perspectiva do usuário/beneficiário. No Brasil, sobretudo, há uma alta
correlação entre a faixa de renda e o grau de escolaridade, o que, juntando-se ao
advento dos concursos públicos e dos critérios “meritocráticos” em voga, mantiveram
a ocupação dos melhores cargos do setor público concentradas nas classes mais
abastadas, com grandes prejuízos à democracia. Estas pessoas, em geral, não
conhecem a realidade da maioria dos brasileiros, tampouco das minorias excluídas.
Assim, tornam-se muito mais vulneráveis ao discurso, em geral conservador, dos
seus pares nas instituições financeiras e agências de cooperação que ao pleito
dos marginalizados.
O fenômeno de construção e propagação do ideário técnico-burocrático
ao longo do tempo encontra ainda explicações na sociologia. O comportamento
coletivo de milhares de burocratas, acadêmicos, jornalistas e consultores, dentre
outros que se mantêm em zona de conforto, propicia a repetição dos mesmos
discursos e experiências, a mesma pobreza criativa e falta de capacidade inovadora
para diagnosticar e solucionar os problemas da gestão pública.
Na aquisição de sua concepção de mundo, cada um sempre pertence a um grupo particular, que é o de todos os elementos sociais que compartilham o mesmo modo de pensar e agir. Nós todos somos conformistas de um ou outro tipo, sempre homem-massa ou homem-coletivo”. (GRAMSCI, citado por SEN, 2011, p. 149).
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Cabe ressaltar que este comportamento não decorre da má fé destas
pessoas, e nem mesmo se dá como fruto de ações conscientemente calculadas.
Chama a atenção como os estudos de Pierre Bourdieu e seus conceitos de campo,
habitus, doxa e trocas simbólicas fazem sentido ao se analisar o comportamento
destes agentes envolvidos no debate do monitoramento, avaliação e controle da
gestão pública no Brasil (SANTOS, 2011).
Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2009, p.87).
Este habitus, na prática e do discurso acerca das atividades de
monitoramento e avaliação, ao se manifestar estruturante, permite apenas que
ideias compatíveis com a estrutura existente sejam reconhecidas e vocalizadas.
Diagnósticos, falhas, soluções e inovações serão sempre compatíveis com esta
estrutura. Por outro lado, os indivíduos não reconhecem esta estrutura, nem
precisam refletir e deliberar para manterem-se nela.
Porque o habitus é uma capacidade infinita de engendrar em toda a liberdade (controlada) produtos – pensamentos, percepções, expressões, ações – que sempre têm como limites as condições historicamente e socialmente situadas de sua produção, a liberdade condicionada e condicional que ele garante está tão distante de uma criação de imprevisível novidade quanto de uma simples reprodução mecânica dos condicionamentos iniciais (BOURDIEU, 2009, p. 91).
E justamente por gerar conforto (recompensações financeiras e
simbólicas por cursos, publicações, consultorias, falas, indicações, influências), o
habitus estimula-os a protegê-lo. No caso em tela, não importa o quão inútil para a
sociedade sejam os produtos das avaliações e controles feitos, o habitus resistirá.
Pela “escolha” sistemática que ele opera entre os lugares, os acontecimentos, as pessoas suscetíveis de ser frequentadas, o habitus tende a se proteger das crises e dos questionamentos críticos garantindo-se um meio ao qual está tão pré-adaptado quanto possível, ou seja, um universo relativamente constante de situações apropriadas para reforçar suas disposições oferecendo o mercado mais favorável aos seus produtos. (BOURDIEU, 2009, p. 100).
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Uma explicação adicional para o fenômeno de propagação do ideário
técnico-burocrático se dá a partir da do conceito de “sabedoria convencional” [], que
diagnostica a preferência de qualquer grupo por ideias simplesmente aceitáveis,
confortáveis e que se reproduzem, mesmo a partir de ideias vazias e discursos
repetidos, ao passo que inibe ideias originais ou questionadoras do senso comum.
É evidente que, em grande parte, associamos verdade a conveniência – com aquilo que está mais de acordo com o interesse próprio ou com o bem-estar pessoal ou com o que mais promete evitar esforço ou uma perturbação indesejável na vida. Também achamos altamente aceitável aquilo que mais contribui para autoestima.
Como a familiaridade constitui um teste de aceitabilidade tão importante, as idéias aceitáveis têm grande estabilidade. Elas são altamente previsíveis.
De um alto funcionário público espera-se – até certo ponto é-lhe exigido – que exponha sabedoria convencional. Seu caso é, sob muitos aspectos, o mais elementar. Antes de ser nomeado, normalmente ele desperta pouca atenção. Mas ao assumir sua posição, parte-se logo do princípio de que é dotado de profunda visão das coisas. (GALBRAITH, 1987).
5 SUPERANDO O IDEÁRIO TÉCNICO-BUROCRÁTICO
A superação do ideário técnico-burocrático arraigado no modus operandi
das instituições tanto responsáveis pela teoria quanto prática de avaliação e
monitoramento de políticas públicas, demanda uma ampla revisão dos pressupostos
comumente adotados, passa pela ressignificação de conceitos e alteração dos
protagonistas, pela auto-avaliação de sua utilidade para os deliberadores da esfera
pública dentro e fora dos governos e atenção às parcelas mais carentes da sociedade.
Isto requer mudança metodológica, instrumental e cultural, sempre custosas às
organizações e indivíduos que as puxam. Com base nesta percepção, seguem abaixo
os fatores tidos como fundamentais para essa superação:
a) Conhecer o conteúdo da política, inclusive suas dimensões políticas
históricas e sociológicas – É necessário conhecer bem o objeto que se
deseja avaliar, acompanhar, controlar. É a partir deste conhecimento
mais detido, voltado às especificidades, do jogo de interesses por trás
das decisões em questão que será possível pensar e estruturar alguma
metodologia de avaliação.
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Ora, as políticas públicas não surgem do nada, emergem de uma
conturbada formação de agenda política deflagrada a partir de problemas ou fatos
sociais relevantes. Possuem uma história, possuem grupos de interesse, conflitos
políticos, aspectos institucionais não revelados em normas e procedimentos. Enfim,
acredita-se que é a partir do conhecimento destes aspectos que se podem aumentar
as chances de tornar as atividades de monitoramento e avaliação úteis à tomada de
decisões na esfera pública.
É essencial que aqueles que conduzem avaliações e outros tipos de pesquisa relativas a políticas compreendam a situação política na qual se conduz o estudo e direcionam sua atenção para aqueles aspectos particulares da política e respectivos impactos que podem aperfeiçoar políticas públicas (SCHNEIDER, 2006).
Este conhecimento dos aspectos humanos das políticas, aliados ao
desejo por parte dos avaliadores e monitores de intervirem no sentido de melhorar
os produtos e serviços do Estado à população devem vir acompanhados de atenção
à maneira de colher informações, de interpretar e apresentar resultados. É
necessário sensibilidade para com todas as dimensões envolvidas, de modo a
maximizar a absorção positiva das realimentações.
ao integrar e ampliar o conteúdo político da pesquisa avaliativa e da tomada de decisão, ele faz o avaliador de políticas dar-se conta de que a capacidade de argumentar, explicar, orientar e defender é tão indispensável quanto o próprio conhecimento técnico, principalmente nas situações em que aquilo que possa ser considerado ótimo é inatingível, ou mesmo desconhecido (CRUZ JÚNIOR, 2006).
Ao analisar SCHNEIDER (2006), que corrobora com o rompimento da
visão estritamente tecnicista dos mecanismos de formulação e análise de políticas,
CRUZ JÚNIOR (2006) afirma:
O que Schneider permite vislumbrar, com base nessa visão, é que, num sistema social multicêntrico e num regime verdadeiramente pluralista, a avaliação de políticas não deve limitar-se ao domínio discricionário do agente técnico. Ou seja, não deve ocorrer dissociada da ação de outros atores políticos, nem das expectativas do público em geral. Em outras palavras, a partir da aceitação da crítica aos chamados tipos tradicionais de avaliação, o leitor acaba por perguntar-se:
Por que não aceitar e praticar o processo de formulação e análise de políticas públicas como um verdadeiro processo de “deliberação pública”?
Por que insistir na prática de um tipo de pesquisa avaliativa que procura levantar apenas informações quantificáveis?
Por que desconsiderar a natureza institucional e política da avaliação, ou, em suma, por que não trabalhar a avaliação de políticas públicas com base numa perspectiva política?
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Se for para tornar as avaliações em mecanismos de aprendizagem
organizacional de fato, e usá-las para melhorar as decisões e processos dos
governos e instituições públicas, há que se investir nas competências que os
avaliadores e demandantes das avaliações devem possuir para tal. Mudanças
institucionais são extremamente complexas e exigem uma série de cuidados para
que de fato ocorram na direção desejada.
Por essa razão, nenhum modelo de avaliação de políticas públicas,
prescritivo ou descritivo, deverá ser considerado completo se não
contemplar estratégias de mudança político-institucional. Obviamente, não
se deve esperar que essas estratégias sejam capazes, por si sós, de
produzir mudança política propriamente dita. Mas é preciso considerá-las
importantes ao ponto de aceitar-se que as ignorar, como ignorar o conceito
de viabilidade política, significa despir o processo avaliativo de qualquer
conteúdo de significado político-institucional. (CRUZ JÚNIOR, 2006).
Compreender os mecanismos sociológicos que reforçam estruturas e
práticas inócuas na administração pública pode ajudar a estabelecer estratégias
para as mudanças político-institucionais acima citadas. Neste aspecto ressalta-se a
importância, muitas vezes negligenciada, da gestão de pessoas nas repartições
públicas, pois o simples confrontamento de servidores com carreiras, gerações,
experiências pregressas e formações profissionais distintas pode contribuir para
mudanças nos habitus ou na aceitabilidade da sabedoria convencional,
possivelmente com ganhos na capacidade de reflexão e inovação para melhoria dos
serviços prestados.
Da análise da proposta de Schneider depreende-se que um modelo de
avaliação de políticas públicas só fará sentido se, efetivamente, for capaz
de permitir a melhoria da decisão política. Um modelo útil, que realmente
contribua para a melhoria da decisão política, contemplará,
obrigatoriamente, como propõe a autora, as idéias, as ideologias e os
argumentos e contra-argumentos que consubstanciam o debate e a
deliberação política
Os caminhos possíveis? Schneider concebe uma proposta, sensata e
criteriosa, que convida à reflexão sobre a superação da miopia conceitual e
do reducionismo tecnicista atualmente em vigor, que são excessivos e
socialmente diruptivos” (CRUZ JÚNIOR, 2006).
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b) Assumir a parcialidade dos métodos e promovendo a pluralidade de
perspectivas – Outro ponto central para a superação do ideário técnico-
burocrático é o entendimento de que toda forma porta conteúdo[], de
que não há metodologia neutra, não há perspectiva imparcial. O Estado
é essencialmente uma arena de disputa por recursos materiais e
simbólicos e, neste universo, qualquer nível de discricionaridade, a qual
está sempre presente, defende uma perspectiva, uma visão de mundo,
uma ideologia em detrimento de outra. A busca incessante por
neutralidade, por uma perspectiva imparcial e um discurso universal,
técnico, é, por si, ideológica, e se contrapõe à pluralidade e ao
reconhecimento de que há sempre perspectivas distintas que ao serem
consideradas influenciariam nas formas, nos processos e valores
praticados pela burocracia.
Ideologia pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse.
Quando um processo é denunciado como “ideológico por excelência”, pode-se ter certeza de que seu inverso é não menos ideológico. (ZIZEK, S. (1996), p. 9).
Há que se questionar o conforto em que parte dos consultores, burocratas
e até agentes políticos pertencentes ao mesmo habitus, portadores da mesma
sabedoria convencional e do mesmo ideário técnico-burocrático mantêm-se
enquanto vultosos recursos públicos são aplicados em instrumentos avaliativos sem
a requerida contrapartida às decisões da esfera pública.
Estamos dentro do aspecto ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo - “verdadeiro” ou “falso”(se verdadeiro tanto melhor para o efeito ideológico) – é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração”) de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade. (ZIZEK, S. (1996), p. 13).
19
Ademais, é importante ter em mente que a busca por soluções ideais,
seja do ponto de vista jurídico, institucional, ou metodológico, pode inibir soluções
parciais que poderiam amenizar problemas urgentes. A busca da imparcialidade e
da consideração de todos os pressupostos metodológico pode ser demasiado
custosa. Avaliações parciais, locais e menos consistentes podem resultar em
melhores decisões que avaliações perfeitas, a depender de como, quando e a quem
são apresentadas. Trata-se aqui de questionar as influências do institucionalismo
tradicional, conforme alertado por Amartya Sen.
É claro que existe um contraste radical entre uma concepção de justiça
focada em arranjos e uma concepção focada em realizações: esta
necessita, por exemplo, concentrar-se no comportamento real das
pessoas, em vez de supor que todas sigam o comportamento ideal. (SEN,
2011, p. 37).
[...] podemos razoavelmente buscar por comparações, e não pelo objetivo
utópico da transcendência. A ampliação comparativa faz parte do
persistente interesse no trabalho inovador na epistemologia, ética e
política, e produziu um grande número de recompensas na história
intelectual do mundo. O “nirvana” da total independência de características
pessoais não é a única questão na qual temos razão para nos interessar.
(SEN, 2011, p. 202).
No caso das metodologias de avaliação, monitoramento e controle de
políticas, cabe reforçar em seus aspectos dialógicos, no uso irrestrito do
contraditório, na abertura de espaço para que novas perspectivas se manifestem.
Na verdade a autora remete o leitor à constatação de que o debate político
e o embate de ideias (ou de ideologias) são inerentes ao processo
democrático de formulação e avaliação de políticas públicas, e exatamente
por isso, regimes verdadeiramente democráticos podem ser corretamente
vistos como sistemas que exercem o poder por meio do debate e da
intermediação de conflitos políticos” (CRUZ JÚNIOR, 2006).
A abertura para novas perspectivas contribui também para considerar os
interesses dos beneficiários das políticas, ao invés de restringir-se à posição dos
financiadores. O que é relevante para indivíduos que desejam ter seus direitos
concretizados é diferente do que importa para os que desejam a prestação de
contas pela aplicação de seus recursos (financiadores externos e contribuintes), e
não é democrático ater-se a apenas uma das perspectivas.
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c) Superar a visão estritamente racional universalizante, incorporando
aspectos individualizados, qualitativos e subjetivos – Uma metodologia
de avaliação adequada à produção de tijolos dificilmente atenderá à
produção de discriminação. Se em algumas circunstâncias são as
informações contábeis, ou o acompanhamento de metas físico-
financeiras que produzirão decisões adequadas, em inúmeras outras
situações as informações importantes à tomada de decisão não são
comportadas em planilhas, quadros ou diagramas. É importante
conhecer os objetos sob análise para deliberar acerca de quais
técnicas são mais apropriadas, desde séries temporais a relatos não
estruturados, de gráficos e estatísticas a entrevistas e debates, de
diagramas de Gantt e Ishikawa a observações comportamentais. O
importante é não se submeter à ditadura da objetividade, do preciso,
quantitativo. PIRES et al, (2010) apontam, com base em estudos de
casos, como “a aplicação de métodos e técnicas qualitativas de
avaliação podem gerar compreensões mais profundas sobre o
funcionamento de uma política, bem como conhecimentos e
percepções que podem ser úteis para o seu aprimoramentoe para a
disseminação de lições. Para compreender as razões do êxito ou
fracasso de políticas e ações governamentais (e seus mecanismos e
processos causadores), o levantamento e análise dos aspectos
contextuais, simbólico-valorativos e institucionais apresentam-se como
relevante e produtivo exercício de reflexão sobre a organização e
atuação do Estado para a solução de demandas coletivas.”. Ademais,
não somente as técnicas em si, mas o uso errôneo delas é causa de
uma série de conclusões equivocadas. Técnicas comprovadas
cientificamente dão à avaliação e ao monitoramento um caráter formal
que aparentemente legitima os resultados. Porém, mesmo técnicas
longamente testadas não podem ser admitidas como um padrão para
todos os casos. É recorrente a insistência em aplicar técnicas
genéricas, impedindo a formulação de estratégias adequadas em
consonância com o arcabouço político e institucional brasileiro, e com
as políticas públicas envolvidas.
21
d) Compreender aspectos teleológicos das avaliações e das intervenções
estatais que se pretende avaliar – Isto corresponde à compreensão da
finalidade da intervenção (programas e políticas), bem como das
avaliações. Deve-se questionar o que se deseja a partir de tais
avaliações, algumas opções são: evitar a má aplicação dos recursos;
melhorar a alocação de recursos; cobrar o alcance de metas aos
executores; conhecer o panorama das execuções; prestar contas aos
órgãos de controle; comunicar à sociedade como andam as ações do
Governo; elaborar cenários para subsidiar as políticas econômicas;
aumentar ou reduzir o espaço de discricionariedade burocrática;
aprimorar a carteira de investimentos estratégicos; articular e
coordenar a execução de políticas multissetoriais ou transversais;
produzir análises de políticas mais ou menos teóricas, que ajudem
mais ou menos no aprimoramento das ações do governo; cumprir
determinações legais de maneira a simplesmente não atrapalhar
órgãos executores com o excesso de burocracias, ou; potencializar as
entregas de produtos e serviços públicos à sociedade. Enfim, são
muitas as possibilidades, e cada arranjo político, cada contexto local e
circunstâncias históricas tenderá a se enquadrar dando maior peso a
esta ou aquela finalidade. Observemos que o é o conhecimento
teleológico do problema ou fenômeno a ser analisado que deve o
desenho dos instrumentos de gestão.
Por fim, a melhor medida de sucesso para a produção de informações de
realimentação acerca de políticas públicas é sua utilidade na prática das decisões na
esfera pública.
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6 EXEMPLOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL
a) O Caso da Avaliação do Bolsa Família
O programa Bolsa Família sem dúvida tem sido uma das mais
controversas iniciativas governamentais por sua escala, o público que alcança e
dúvidas quanto à capacidade do Estado garantir a aplicação isonômica dos criterios
estabelecidos no programa. Além disso, no cerne de toda a discussão está o fato de
ser uma ação administrativa de um governo ideologicamente de esquerda que
entende que o Estado é responsável e determinante para a consecução do êxito de
políticas sociais em contraponto ao governo caracteristicamente neoliberal que
entendia que as organizações não governamentais ou provadas eram mais legítimas
e capazes de executá-lo.
Tal polêmica soaria estranha até mesmo para o país berço do
capitalismo, a Inglaterra, que já no século 16 aprovou a Lei Speenhamland, que
garantia a todos um mínimo de subsistência independente de ter contribuído com
impostos para a sociedade. A lei estabelecia o valor com base no preço do pão e no
número de filhos de cada família. Muitos países ainda hoje subsidiam o pão (Egito)
ou trigo (o Brasil até recentemente). Podemos dizer que esta Lei foi precursora de
iniciativas de proporcionar bem-estar social pelo Estado. O fato é que havia uma
preocupação com as questões sociais gravíssimas geradas por uma industrialização
incipiente, que produziu muita pobreza em volta das cidades.
A avaliação do Bolsa Família não seguiu o ideário técnico-burocrático
como descrevemos neste trabalho, embora tenha usado modelo de quadro lógico
para uma primeira aproximação. Ao tempo da avaliação já havia um diagnóstico
consolidado das condições socioeconômico dos brasileiros que viviam em condições
fragilizadas de renda, pobreza e miséria. Por causa desse conhecimento prévio, não
houve uma escolha aleatória dos participantes do programa, pois a seleção dos
beneficiários inicia a partir de diagnósticos sociais remonta a geografia da Fome
(CASTRO, 1946). Naturalmente o semiárido nordestino se tornou prioridade para o
governo federal seguido do resto do país. Para que houvesse uma forma
comparável de beneficiários e não beneficiários, foi preciso usar um modelo
proagado pelo Banco Munidial, denominado “propensity score matching” que permite
identificar grupos comparáveis a partir de suas diferenças.
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A avaliação inova porque foca a atenção do avaliador para a situação real
ao tentar emitir um juízo sobre as condições alimentares, escolaridade, indicadores
de saúde e cobertura vacinal como fatores explicativos da probreza dessa grande
parte da sociedade brasileira.
b) Salas de Situação do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC)
Embora o monitoramento e gestão do PAC apresentem traços fortes do
que caracterizamos acima como gerencialismo, há um caráter inovador nas Salas de
Situação que rompe com alguns dos eixos do ideário técnico-burocrático.
Primeiramente porque as salas não seguem estritamente um receituário de
monitoramento, foram pensadas a partir do conhecimento da carteira de
investimentos e construídas dinamicamente com maior apego à consecução das
obras que aos métodos empregados. Em segundo lugar, por estimularem a
interação entre os atores relevantes às obras, propiciando o diálogo, a negociação, a
verbalização de entraves, perspectivas e propostas de soluções. Neste ambiente
valoriza-se o conhecimento específico de cada empreendimento, suas nuances
particulares, seus entraves técnicos, políticos e institucionais. Os responsáveis pela
retirada dos gargalos às obras e os gestores do PAC dificilmente podem abster-se
de se posicionar, as planilhas e números compõem apenas uma faceta do objeto
avaliado. Como resultado, as salas de situação têm produzido informações úteis e
necessárias à tomada de decisão. Segundo Janine, que analisou a gestão e
monitoramento do PAC a partir dos conceitos de campo e habitus de Bourdieu, as
salas de situação configuram
uma rede permeada por relações de poder que limitam ou expandem as possibilidades de ação e exercem influência significativa sobre os componentes avaliativos de seu funcionamento como questões de institucionalização, comunicação, cooperação, efetividade e sustentabilidade. (MELLO, 2009).
Mesmo com indicativos de casos de sucesso associados à superação
parcial da visão técnico-burocrática, não é possível, por analogia, disseminar as
metodologias de monitoramento, avaliação e controle desenvolvidas. A adequação
das formas dá-se pelo fato de seus desenhos advirem do conhecimento do conteúdo
histórico, político e institucional das políticas às quais se aplicam, envolvendo os
embates políticos na sua formulação.
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Deve-se deixar estabelecido que toda investigação tem seu método determinado e constrói uma ciência determinada, e que o método desenvolveu-se e foi elaborado conjuntamente com o desenvolvimento e a elaboração daquela determinada investigação e ciência, formando com ela um todo único. Acreditar que se pode fazer progredir uma investigação científica aplicando-lhe um método tipo, escolhido porque deu bons resultados em outra investigação ao qual estava relacionado, é um equívoco estranho que nada tem em comum com a ciência. (Antônio Gramsci) (SALES, 2003).
Mostra-se que é possível trazer perspectivas diferentes para o centro das
deliberações, capacidade de inovar o apego excessivo a receituários e com a
incorporação de dimensões que não estão presentes no ideário técnico-burocrático.
7 CONCLUSÃO
Uma vez percebida a limitação do debate acerca das práticas de
monitoramento, avaliação e controle ao ideário técnico-burocrático, e percebe-se
que estas práticas não estão suportando adequadamente as decisões da esfera
pública, a despeito dos crescentes investimentos realizados, é possível tomar alguns
caminhos no sentido de superação destes entraves à gestão pública:
Investir no conhecimento do conteúdo da política que se deseja avaliar,
inclusive suas dimensões políticas históricas e sociológicas.
Este conhecimento local e customizado permitirá medidas para a
mudança dos habitus e da sabedoria convencional, bem como
promoção das práticas de cooperação, confiança e convencimento
perante os deliberadores;
Assumir a parcialidade dos métodos e promover a pluralidade de
perspectivas, aspectos ideológicos estão sempre presentes e não há
porque demonizá-los, esta postura, aliás, é também ideológica;
Superar a visão estritamente racional universalizante é outra medida
importante. Isto implica abrir espaço nos métodos e instrumentos para
incorporar aspectos individualizados, qualitativos e subjetivos das
políticas;
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Por fim, devem-se compreender aspectos teleológicos das avaliações e
das intervenções estatais que se pretende avaliar, pois é a partir daí
que é a escolha da metodologia pode se dar mais apropriadamente.
Com base nos exemplos citados e experiências na Administração Pública,
vê-se um início de superação da visão técnico-burocrática, o que tem ampliado a
utilidade do monitoramento, avaliação e controle na gestão pública, e, assim,
contribuído para potencializar as intervenções do Estado, aproximando-o do alcance
de seus objetivos fundamentais.
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AUTORIA
Elton Bernardo Bandeira de Melo – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, em cessão à Casa Civil do Governo do Distrito Federal.
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Endereço eletrônico: robewagner@gmail.com
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