luiz carlos falconi - o uso inadequado das Áreas de
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
PROGRAMA DE DOUTORADO EM CINCIAS AMBIENTAIS
LUIZ CARLOS FALCONI
O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA
RURAL NO BRASIL
Goinia 2005
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LUIZ CARLOS FALCONI
O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA
RURAL NO BRASIL
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Cincias Ambientais da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da Universidade Federal de Gois, para obteno do ttulo de Doutor em Cincias Ambientais. rea de Concentrao: Estrutura e Dinmica Ambiental Orientador: Prof. Dr. Jos Nicolau Heck
Goinia 2005
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
(GPT/BC/UFG)
Falconi, Luiz Carlos. F181u O uso inadequado das reas de preservao permanente e reserva legal como causa de desapropriao da proprieda- de imobiliria rural no Brasil / Luiz Carlos Falconi. Goi- nia, 2005. 261 f. : il. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Gois, Pr- Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao, Programa de Dou- torado em Cincias Ambientais,2005. Orientador : Jos Nicolau Heck Bibliografia : f. 249-261. 1. Propriedade rural Desapropriao Brasil 2. - reas de preservao permanente Brasil 3. Reserva legal Desapropriao Brasil I. Heck, Jos Nicolau II. Uni- versidade Federal de Gois. Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps- Graduao. III. Ttulo.
CDU: 347.243(81)
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LUIZ CARLOS FALCONI
O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA
RURAL NO BRASIL
Tese defendida no Curso de Doutorado em Cincias Ambientais da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da Universidade Federal de Gois, para obteno do Ttulo de Doutor, aprovada em ___de __________de 2005, pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:
Prof. Dr.______________________________ Jos Nicolau Heck Presidente da Banca Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________
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Aos colegas do Doutorado em Cincias
Ambientais pelo convvio fraterno e a troca de experincias enriquecedoras durante trs anos.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor e orientador desta tese, Doutor Jos Nicolau Heck, pela confiana e estmulo nas horas difceis.
Aos Professores do Programa de Doutorado pelas lcidas observaes durante as aulas e seminrios.
Aos Professores Divino Brando, Jos Alexandre Diniz Filho e Nivaldo dos Santos pelas sugestes sobre os artigos publicados.
Ao Professor Doutor Luiz dson Fachin, da Universidade Federal do Paran, pelas sugestes sobre o projeto de tese.
Professora Vera Maria T. Silva, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Gois, pela oportuna reviso da tese.
Aos Doutores Airton Batista de Andrade (veterinrio), Maurcio Rosado (zootecnista), Pricles Antunes Barreira e Raquel Boaventura (agrnomo/advogado e engenheira-florestal do IBAMA), Luiz Clio Pereira de Azevedo e Jos Maria de S (agrnomos do INCRA), pelas informaes e esclarecimentos sobre o tema.
Aos meus pais, aos meus irmos e, muito especialmente, minha esposa, Consuelo e aos meus filhos Ana Carolina, Ana Rita e Lus Augusto pelo apoio irrestrito ao longo da redao do trabalho.
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A herana mais memorvel do sculo XXI ser a era da Solido que aguarda a humanidade. O testamento que deixaremos a este mundo (em 2100) poderia ser escrito mais ou menos assim:
Ns vos deixamos as selvas sintticas do Hava e algumas rvores raquticas onde outrora existiu a prodigiosa floresta Amaznica, juntamente com pequenas ilhas de vegetao nativa que no chegamos a destruir totalmente. Vosso desafio ser criar novas formas de plantas e animais por engenharia gentica e de alguma forma integr-las em ecossistemas artificiais auto-sustentveis. Compreendemos que talvez isto se revele impossvel. Estamos certos de que, para alguns de vs, a simples idia de fazer algo semelhante causar repugnncia. Desejamos-lhes boa sorte. Se conseguirem sucesso, lamentamos que vossa obra jamais possa ser to satisfatria quanto a criao original. Aceitai nossas desculpas e esta biblioteca audiovisual que mostra quo maravilhoso costumava ser o nosso mundo.
E. Wilson, 2002 (O futuro da vida).
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RESUMO
Este trabalho afirma a tese da possibilidade desapropriatria por interesse social em sentido amplo ou para fins de reforma agrria dos imveis rurais que apresentem aproveitamento anti-social, considerando-se como tal a depredao da vegetao das reas de preservao permanente e de reserva legal, substitudas pela implantao de culturas e pastagens. Considera-se destrutiva, e no produtiva, a propriedade que ultrapassa o piso mximo da rea agricultvel, por caracterizar essa hiptese simultnea depredao dos espaos territoriais especialmente protegidos para fins ecolgicos, com ferimento a dispositivos constitucionais e infraconstitucionais da ordem econmica e social. Esta tese mostra a evoluo do direito motivada por fatores histricos e sociais, o seu elemento teleolgico que o aproxima das cincias sociais, estimula a interdisciplinaridade e engendra a funo social do direito e da propriedade, para incorporar-lhe a funo ambiental e exigir a converso de cada proprietrio, como membro da sociedade, num artfice da construo social e responsvel, em parte, pela manuteno do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Perquire a ocupao e explorao do Cerrado, do Distrito Federal e do Estado de Gois, levantando conceitos, caractersticas e dados econmicos, histricos, sociolgicos, geogrficos, botnicos e estatsticos das trs realidades, demonstrando o excessivo crescimento dos desmatamentos para fins agrcolas e pecurios, nos ltimos trinta anos do sculo XX e concluindo que essa questo est a exigir maior preocupao do Poder Pblico, da sociedade e da comunidade cientfica, em busca de frmulas que traduzam, na prtica, o verdadeiro desenvolvimento sustentvel, para que as reas estudadas no se transformem em reas de degradao permanente.
Palavras-chaves: funo social, funo ambiental, propriedade rural, meio ambiente, desenvolvimento sustentvel, desapropriao.
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ABSTRACT
This study affirms the thesis of potential expropriation due to social interest in its wide meaning or as means of agrarian reform of rural lands which are of non-social use, considering the damage to the vegetation in permanent preservation areas and of legal reservations which accompanies the implementation of agricultural usage. Also, this research considers destructive, therefore non-productive, any property which exceeds the maximum limit of farmable area, for this hypothesis is understood as a way of depredation of the territorial areas which are especially protected for ecological ends, with breaking of constitutional and infra-constitutional acts of the economic and social regulations. Additionally, in this study the evolution of the law, which has been motivated by historical and social aspects, its teleological element which makes it match the social sciences, is shown. The teleological element stimulates interdiciplinarity and enhances the social function of ownership rights and private property in order to add the environmental function to it and to demand the conversion of each landowner, as a member of society, into individuals of social construction, who are partially responsible for the maintenance of an ecologically balanced environment. Furthermore, the research examines the occupation and exploitation of the Cerrado, the Federal District, and Goias State, and raises some concepts, as well as economic, historic, sociologic, geographic, ecologic and statistical characteristics of these three areas, demonstrating the geometric growth of deforestation related to agriculture and livestock production in the last thirty years of the twentieth century. Finally, this study concludes that this issue demands a bigger commitment of Public Authorities, society, and the scientific community, which should aim to create practical measures that actually stimulate sustainable development, so that the studied areas do not turn into areas of permanent degradation.
Keywords: Social function, environmental function, rural property, environment, sustainable development, expropiation.
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LISTA DE FIGURA/TABELAS
Tabela 1 Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos de ecossistemas da regio dos Cerrados .......................................................................................................................... 143 Figura 1 Distribuio da rea nuclear dos cerrados no Brasil ............................................. 144 Tabela 2 Diferenas na composio botnica entre trs formas de vegetao savnica ...... 145 Tabela 3 Ocupao das reas do cerrado e projeo em milhes de hectares...................... 154 Tabela 4 Caractersticas hidrolgicas do Estado de Gois .................................................. 158 Tabela 5 Dados comparativos dos resultados dos censos 1970 1995-1996 Gois ....... 165 Tabela 6 Imveis com menos e com mais de 100 hectares Gois e Tocantins................ 166 Tabela 7 Utilizao do solo Estado de Gois Meso-Regies........................................ 168 Tabela 8 Cobertura vegetal e uso do solo no Distrito Federal % de rea......................... 173 Tabela 9 Perda de cobertura vegetal no DF no perodo de 1954-1998 ............................... 174
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AASP rea aproveitvel sem projeto
APPC rea de preservao permanente de cerrado
APPF rea de preservao permanente de floresta
ARL rea de reserva legal florestal
AT rea total
ATC rea total de cerrado
ATF rea total de floresta
CEBRAC Fundao Centro Brasileiro de Referncia e Apoio Cultural
CNDRS Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentvel
CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria
FUNAI Fundao Nacional do ndio
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis
IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrria
INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
INDA Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrrio
INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
JICA Agncia Japonesa de Cooperao e Desenvolvimento Internacional
OIT Organizao Internacional do Trabalho
PIN Programa de Integrao Nacional
POLAMAZNIA Programa de Plos Agropecurios e Agrominerais da Amaznia
POLOCENTRO Programa de Desenvolvimento do Cerrado
PONAMA Poltica Nacional do Meio Ambiente
PROCON Fundao de Proteo e Defesa do Consumidor
PRODECER Programa de Cooperao Nipo-brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
SEMA Secretaria do Meio Ambiente
SEPLAN-GO Secretaria do Planejamento do Estado de Gois
SISNAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente
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SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia
SUDECO Superintendncia do Desenvolvimento do Centro Oeste
SUDENE Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste
SUDEPE Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca
SUDESUL Superintendncia do Desenvolvimento do Sul
URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas
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SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................14
CAPTULO I A COMPREENSO DA CONCEPO SOCIAL DO DIREITO
CONTEMPORNEO ........................................................................................................22
1 A INFLUNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO NO CAMPO DO
DIREITO ..................................................................................................................22
2 O INDIVIDUALISMO JURDICO E SUA INTERFACE COM O
LIBERALISMO ECONMICO ..............................................................................26
3 A DECADNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO E DO
INDIVIDUALISMO JURDICO .............................................................................29
4 A VISO SOCIAL DO DIREITO NA EUROPA E NA AMRICA LATINA .....31
4.1 O DIREITO DO TRABALHO.................................................................................37
4.2 O DIREITO AGRRIO ...........................................................................................47
4.3 O DIREITO DO CONSUMIDOR............................................................................50
4.4 O DIREITO AMBIENTAL......................................................................................53
5 A VISO SOCIAL DO DIREITO NO BRASIL.....................................................56
5.1 O DIREITO DO TRABALHO.................................................................................59
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5.2 O DIREITO AGRRIO ...........................................................................................60
5.3 O DIREITO DO CONSUMIDOR............................................................................65
5.4 O DIREITO AMBIENTAL......................................................................................68
CAPTULO II DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE
PRESERVAO DO MEIO AMBIENTE A PROTEO DA FLORA COMO
RECURSO AMBIENTAL ................................................................................................73
1 O ELEMENTO TELEOLGICO COMO INDICADOR DA FUNO SOCIAL DO
DIREITO .............................................................................................................................73
2 O DIREITO DE PROPRIEDADE COM FUNO SOCIAL ...............................76
3 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA EUROPA............83
4 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA AMRICA
LATINA ...................................................................................................................97
5 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL ...........105
5.1 A PROTEO DO MEIO AMBIENTE (FLORA) NO ESTATUTO DA
TERRA E NO CDIGO FLORESTAL.................................................................114
5.2 A PROTEO DO MEIO AMBIENTE (FLORA) NA LEI N 6.938/81 E NA
CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 ................................................................125
CAPTULO III A UTILIZAO DOS RECURSOS NATURAIS
DISPONVEIS (DA FLORA) E A PRESERVAO DO MEIO AMBIENTE NA
REGIO DO CERRADO E NO ESTADO DE GOIS (1970 A 2000).......................133
1 AS INTERFERNCIAS DO HOMEM NO MEIO AMBIENTE NATURAL .....133
2 CONCEITUAO E CARACTERIZAO DO CERRADO BRASILEIRO ....140
2.1 OCUPAO DO CERRADO BRASILEIRO.......................................................145
2.2 USO DO SOLO COM LAVOURAS E PASTAGENS NO CERRADO
BRASILEIRO.....................................................................................................................152
3 INFORMAES E DADOS GERAIS SOBRE O ESTADO DE GOIS (E
DISTRITO FEDERAL)......................................................................................................155
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3.1 USO DO SOLO COM LAVOURAS E PASTAGENS NO CERRADO
GOIANO ............................................................................................................................159
3.2 USO DO SOLO, COBERTURA VEGETAL E PERDA DE COBERTURA
VEGETAL NO DISTRITO FEDERAL.............................................................................171
4 ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE OS EFEITOS DA EXPLORAO
AGROPECURIA DO CERRADO..................................................................................174
CAPTULO IV A DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE RURAL POR
DEPREDAO DA FLORA NAS REAS DE PRESERVAO
PERMANENTE E DE RESERVA LEGAL FLORESTAL .........................................183
1 DISCUSSO SOBRE A REA AGRICULTVEL E A PROPRIEDADE
PRODUTIVA .........................................................................................................183
2 NECESSIDADE DE PROTEO DE REAS TERRITORIAIS ESPECIAIS
DA PROPRIEDADE..............................................................................................196
3 REAS DE PRESERVAO PERMANENTE...................................................202
4 REAS DE RESERVA LEGAL FLORESTAL....................................................206
5 DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE RURAL POR INTERESSE
SOCIAL..................................................................................................................214
CONCLUSO...................................................................................................................232
REFERNCIAS ..............................................................................................................248
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INTRODUO
O presente trabalho, tese de doutoramento em Cincias Ambientais realizado na
Universidade Federal de Gois, busca, a partir de subsdios interdisciplinares sobre a
vegetao e a ocupao da regio do bioma Cerrado, e de pesquisa terico-doutrinria,
analisar e demonstrar a possibilidade jurdica de desapropriao por interesse social de
propriedades rurais onde ocorra depredao das reas de preservao permanente e de reserva
legal, espaos territoriais especialmente protegidos, cujos proprietrios se recusem a recompor
as reas destrudas, conforme determinam as leis definidoras das polticas agrcola, ambiental
e de reforma agrria.
O problema centra-se no contedo da funo social, ampliada expressamente pela
Constituio Federal de 1988, para agasalhar inerentemente a funo ecolgica da
propriedade, inserida entre os direitos e deveres individuais e coletivos fundamentais, entre os
princpios da ordem econmica e na configurao do art. 186, que, por conta de seu inciso II,
absorve em seu bojo as normas sociais inseridas no art. 225 sobre a proteo e defesa do meio
ambiente e permite indagar se, vista da criao da denominada propriedade produtiva, pelo
art. 185, seria passvel de desapropriao, por interesse social, a propriedade destrutiva das
reas de preservao permanente e de reserva legal florestal.
A literatura jurdica tem-se preocupado com a defesa dos recursos naturais
disponveis da flora em geral, na perspectiva da tutela penal, debulhando os vrios tipos
penais encontrveis na Seo II, do Captulo V, da lei dos crimes ambientais (n. 9605/98),
bem como as contravenes penais ainda remanescentes no Cdigo Florestal. Os
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doutrinadores tambm tm-se dedicado ao estudo das infraes administrativas concernentes
ao meio ambiente em geral e s florestas e demais formas de vegetao em particular.
No campo do direito privado, as preocupaes dos especialistas dirigem-se,
freqentemente, para o estudo da responsabilidade civil, em face do dano ambiental,
procurando os que se dedicam a tal estudo colocar em relevo o percurso histrico da
responsabilidade extra-contratual, partindo da tradicional responsabilidade subjetiva, e as
dificuldades da concretizao da prova por parte do lesado, at alcanar a responsabilidade
objetiva, eleita na legislao mais recente para situaes mais especficas, como acontece nos
casos de danos ambientais.
Os estudos de interesse ambiental tambm se avolumam, sob a perspectiva do
direito processual civil, no qual os especialistas procuram identificar os instrumentos jurdico-
processuais existentes e demonstrar como, quando, onde, e por quem so manejveis, com
vistas concretizao do dever de defesa dos recursos naturais e do meio ambiente. Nessas
obras, os autores enfrentam necessariamente o estudo da ao civil pblica, da ao popular e
dedicam, ainda, ateno a outros meios de defesa numericamente menos expressivos, como
so a ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o mandado de segurana
coletivo, o mandado de injuno e as aes civis j tradicionais.
Estudos existem a respeito da funo social e ambiental da propriedade,
analisando a proteo legal desta e a positivao daquelas, bem como as limitaes da
propriedade estabelecidas no Cdigo Florestal, inclusive no que pertine s reas de
preservao permanente, investigando os possveis conflitos de interesses entre o direito de
propriedade de cunho privado e as reas de preservao caracterizadas pelo interesse pblico,
a aplicao do princpio da proporcionalidade na soluo de tais conflitos e a identificao das
ideologias adotadas, bem como suas influncias nas decises judiciais.
Em obra versando sobre o tema do meio ambiente e da propriedade rural,
cruzando os aspectos ambiental e agrrio, tambm pode ser encontrada opinio afirmativa no
sentido de que at mesmo a propriedade considerada produtiva, em face do grau de utilizao
da terra e do grau de eficincia na sua explorao, nos termos do art. 6 da Lei n. 8.629/93,
passvel de desapropriao para fins de reforma agrria, se no cumprir a funo ambiental
delineada no art. 9 do mesmo diploma legal, sem, contudo, distinguir entre propriedade
produtiva e destrutiva e sem identificar no que consistiria o desatendimento da funo
ambiental.
Ainda pode ser encontrada na literatura jurdico ambiental, em comentrios ao
Cdigo Florestal, opinio que, partindo da premissa de ser, atualmente, a preservao
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ambiental uma das condies para que a propriedade da terra cumpra a sua funo social,
conclui poder ser feita a desapropriao por interesse social para evitar a degradao do meio
ambiente, atribuio incumbida aos entes federados, em geral, na forma da Lei n. 4.132/62, e
Unio, exclusivamente, para a reforma agrria, opinio que, apesar de caminhar paralela ao
defendido nesta tese, dela se distingue por anunciar a medida em sentido geral, enquanto aqui
se analisa a desapropriao na perspectiva da propriedade destrutiva das reas de preservao
e conservao.
No que concerne especificamente s reas de preservao permanente, os estudos
so mais direcionados para a questo do direito de indenizao ou no da cobertura vegetal e
da terra nua nelas encravadas, diante das disposies do Cdigo Florestal, tendo em vista as
alegaes de prejuzo, levantadas por alguns proprietrios perante o Poder Judicirio,
principalmente do Estado de So Paulo, pelo simples fato da existncia de tais reas em suas
propriedades. H opinies favorveis indenizao e h outras que, diferenciando reas de
preservao decorrentes da lei e decorrentes de ato administrativo, defendem a indenizao
somente quando a rea de preservao existir em decorrncia de ato administrativo e excluir
totalmente a possibilidade de explorao do prdio rstico.
A tese aqui defendida, no entanto, tem por objeto a anlise das reas de
preservao permanente criadas por fora de lei, e no por fora de ato administrativo, bem
como as reas de reserva legal florestal, e seu enfoque tem outra diferena, pois no se discute
se a existncia delas obriga o Poder Pblico a ressarcir os proprietrios pelo simples fato de
existirem dentro da propriedade. Ao contrrio, o que se discute a possibilidade de
desapropriao, por interesse social, das propriedades onde foram devastadas as vegetaes de
uma e/ou outra rea, para implantao de culturas agrcolas ou pastagens, o que implica
indenizao por causa da perda da propriedade.
Tambm no se pode olvidar a existncia de importantes obras na seara do direito
agrrio e da reforma agrria que, confrontando os dispositivos constitucionais dos arts.185 e
186, incisos I, II, III e IV, concluem pela possibilidade desapropriatria da propriedade tida
como produtiva, se a produo e a produtividade tiverem sido alcanadas com ferimento a
quaisquer dos incisos do art.186, uma vez que admitir tal ilicitude importaria passar por cima
de toda a ordem social trabalhista e de toda a ordem social ambiental prevista na prpria Carta
Poltica. Tratando de todas as funes da propriedade sob a perspectiva do jurdico, o objeto
dessas obras distingue-se do eleito nesta tese, delimitada que est questo relacionada com o
ferimento aos direitos ambientais coletivos da sociedade pela depredao de uma das espcies
de recursos ambientais (a flora) e, quanto ao espao geogrfico do Cerrado e ao tempo de
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1970 a 2000, diferindo ainda daquelas obras por incorporar aos estudos outros aspectos para
alm do jurdico envolventes da questo agro-ambiental.
O tema mostra-se interessante e atual, pois seu estudo implica colocar,
necessariamente, de um lado, a finitude dos recursos ambientais da flora e, por conseqncia,
da fauna da regio do Cerrado, inclusive no Estado de Gois e Distrito Federal, e, de outro
lado, o crescimento geomtrico do desmatamento de novas reas rurais para implantao de
projetos agrrios nos ltimos trinta anos, atingindo, inclusive, as reas de preservao e
conservao. Para que se avaliem o interesse e a atualidade da matria sob exame, basta dizer
que, de 1970 a 2000, os desmatamentos na regio do Cerrado em geral, no Estado de Gois e
no Distrito Federal, para esse fim, superaram, e muito, a rea desmatada em todos os tempos,
desde o descobrimento do Brasil1.
H de considerar-se ainda que, se no houver conservao e preservao nas
propriedades privadas, que representam mais de 90% do territrio rural brasileiro cadastrado,
a conservao confinada puramente nas Unidades de Conservao no prosperar, pois,
notoriamente, so insuficientes em quantidade e em reas para alcanar esse desiderato. Alm
do mais, necessrio relembrar que todos so responsveis pelo meio ambiente
ecologicamente equilibrado e, nessa perspectiva, tanto o proprietrio como o posseiro ou o
assentado devem, como membros da sociedade, dar a respectiva quota de contribuio
proporcional, pois propriedade cabe intrinsecamente uma funo scio-ambiental. Destarte,
sob a tica da conservao como um todo, jamais se poder desprezar a manuteno das reas
de preservao permanente e de reserva legal florestal incrustadas nas propriedades privadas.
Tido politicamente como fronteira agrcola, o Cerrado tem auxiliado a equilibrar a
balana de pagamentos do Pas, ficando, no entanto, com um saldo ecolgico deficitrio, pois,
desde a dcada de setenta, recebe significativos impactos ambientais, incentivados, inclusive
por programas do governo (POLOCENTRO, POLAMAZNIA, PRODECER, etc), pelo
progresso da cincia e da tecnologia e obviamente pela capacidade de investimento dos
empresrios rurais em mquinas, implementos e insumos, que resultam na contnua e
crescente abertura de novas reas, geralmente para monoculturas, como pastagens artificiais,
soja, cana-de-acar, milho, etc, com risco de reduo da diversidade ou extino de espcies
da flora e da fauna.2
1 Quadros Demonstrativos da ocupao do solo com a agricultura e a pecuria na regio do Cerrado em geral, no Estado de Gois e no Distrito Federal, esto inseridos no Captulo III. 2 Quadro estimativo de nmero de rvores e arbustos existentes por hectare no Cerrado e quantidade de espcies vegetais e animais j identificadas no Bioma Cerrado esto inseridos no Captulo III.
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O tema reveste-se de importncia para as Cincias Ambientais em geral e para o
Direito Agrrio e Ambiental em particular, por ser a desapropriao um poderoso instrumento
de proteo do equilbrio do meio ambiente, mediante a persecuo do atendimento da funo
social e, por extenso, da imanente funo ecolgica da propriedade. Com efeito, pela
desapropriao, substitui-se o proprietrio inadimplente contumaz, por outro ou outros
agricultores que queiram dar terra a sua verdadeira funo social, que no descarta a
ambiental. Se a desapropriao for intentada pelos outros entes federativos que no a Unio,
ou por esta prpria, alicerada na Lei n. 4.132/62, ampliar-se- o leque de alternativas viveis
para a recuperao ou restaurao da rea degradada.
Em verdade, as sanes estabelecidas na lei de poltica nacional do meio ambiente
(Lei n. 6.938/81) e no Cdigo Florestal (Lei n. 4.771/65) tm-se mostrado ineficazes, pois a
realidade evidencia que, desde as seculares Ordenaes Filipinas, de 1603, e do Regimento do
Pau Brasil, de 12.12.1605, historicamente o pblico-alvo duvida da seriedade de tais
instrumentos legais e, assim, persiste promovendo a destruio das reas de preservao
permanente e de reserva florestal legal, desacreditando a legislao protetora, como est
acontecendo mais recentemente com as frustradas tentativas de recomposio florestal
estabelecidas pela lei de poltica agrcola (Lei n. 8.171/91), enfraquecidas, do ponto de vista
ambiental, pelas alternativas mitigadoras e compensatrias da Medida Provisria n. 2.166-
67/2000, que, certamente, restaro inobservadas.
A relevncia do tema tambm se apresenta em face de o rgo incumbido da
poltica de Reforma Agrria no instruir processos de desapropriao de imveis rurais que
desatendem a funo ambiental da propriedade, interpretando restritivamente a exceo
contida no art.185 da Constituio Federal como uma vedao absoluta. Parece recomendvel
que se d o contrrio, at mesmo como forma de provocar o pronunciamento direto e
especfico em processo de desapropriao pelos Tribunais Superiores da Nao, os quais
provavelmente no encontraro bice ao intento desapropriatrio. certo que a autarquia
federal no computa como rea produtiva aquela encravada nas faixas protegidas, porm esse
procedimento importa em tornar relevante o aspecto simplesmente econmico da propriedade
em detrimento da proteo devida ao meio ambiente, o que pode funcionar como estmulo
aos infratores para prosseguirem devastando as florestas e demais formas de vegetao das
reas de preservao permanente e reserva legal florestal.
A metodologia utilizada consistiu no levantamento de dados junto ao Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatstica, em Gois, Superintendncia Estadual do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis, Superintendncia do
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Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria, Agncia Ambiental Goiana e
Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento do Estado de Gois, entrevistas com tcnicos
em agronomia, arquitetura, veterinria, biologia, engenharia florestal, sociologia e consulta
doutrina especializada, por meio de livros, revistas e peridicos, para apreenso de conceitos,
informaes e constataes que enriquecessem o trabalho e pudessem, enfim, embasar as
concluses.
Utilizou-se o mtodo histrico para levantamento da ocupao da regio do
Cerrado e sua explorao econmica; o mtodo estatstico para registro e sistematizao de
dados colhidos nos rgos pblicos; o mtodo comparativo para confrontar as realidades da
menor rea (Distrito Federal), a maior rea (a Regio do Cerrado) e a que mais de perto
interessa tese, o Estado de Gois, e, ainda, o mtodo dedutivo e o indutivo para embasar as
concluses finais sobre a propriedade destrutiva, no contexto da funo scio-ambiental da
propriedade e sua importncia para a sociedade, valorizando a integrao e a harmonizao
metodolgica.
Justifica-se, pois, a limitao do tema no s quanto ao contedo dos princpios e
regras sobre a ordem econmica e social agro-ambiental constitucionais e infra-
constitucionais, aplicveis s reas de preservao e conservao dos arts. 2 e 16 do Cdigo
Florestal, dado que se entrecruzam a funo social e a proteo do meio ambiente, como
tambm quanto ao tempo (perodo de 1970 a 2000) e ao espao geogrfico da regio do
Cerrado, com nfase para o Estado de Gois (embora tenham sido coletados dados sobre o
Cerrado em geral e o territrio do Distrito Federal), como forma de ampliar os elementos da
pesquisa e aumentar as oportunidades de comparao entre as trs realidades ecolgicas e
econmicas.
Vale ressaltar, no entanto, como assinalado no Captulo III, que o Cerrado ocupa
22% do territrio brasileiro (2.000.000 km), ou 200.000.000 de hectares, e que as normas de
regncia para as reas de preservao permanente so as mesmas para todo o Brasil.
Entrementes, no que concerne s reas de reserva legal florestal, uma vez obedecidos aos
percentuais estabelecidos para as propriedades da Amaznia Legal (florestas, cerrado e
campo) e para as propriedades situadas fora dela (restante do Pas), sendo as premissas as
mesmas (obrigatoriedade da preservao e conservao), tem-se que as concluses a que se
chegou sobre a propriedade destrutiva so vlidas para todo o territrio brasileiro.
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A motivao para a elaborao da tese deveu-se a dois fatores: primeiro, retomar
os trabalhos da Dissertao de Mestrado3, concluda na dcada de noventa, envolvendo
pesquisa de cunho terico e prtico, objetivando aferir o cumprimento da funo social da
propriedade rural nos Estados de Gois e Tocantins, no perodo de 1946 a 1989, marco
inicial do condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social, pela Constituio, e
termo final da execuo do Plano Nacional de Reforma Agrria da Nova Repblica4
passando pela novel Constituio de 1988; e segundo, a constatao por viagens5 pelos
Estados de So Paulo, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso, Rondnia, Tocantins e Maranho,
cujas paisagens mostram, sem maior esforo, a destruio das reas de preservao
permanente e de reserva legal das propriedades rurais, substitudas por pastagens artificiais e,
mais recentemente, pela cultura da soja, dentre outros produtos.
E, como se sabe, seja no Cerrado, na Amaznia, nas Araucrias, na Mata
Atlntica, no Pantanal, na Zona Costeira ou em qualquer ponto do territrio nacional, o
proprietrio no tem o direito de explorar a propriedade com ferimento aos arts. 5, 170, 186 e
225 da Constituio Federal, principalmente no que concerne s reas de preservao
permanente ou de reserva legal florestal, pois sempre que isso acontecer estar desatendida a
funo scio-ambiental da propriedade e, nesse passo, estar-se- inarredavelmente diante da
propriedade considerada destrutiva.
O desenvolvimento da tese foi dividido em quatro Captulos: no primeiro,
procurou-se demonstrar a evoluo da concepo individualista do direito para a concepo
social contempornea, as influncias do liberalismo no sistema jurdico, destacando o
individualismo como brao de sustentao daquele, a reao contra esse estado ideolgico, a
partir de manifestaes dos trabalhadores, da sociedade, das cincias sociais, da doutrina
jurdica, e, enfim, o declnio do liberalismo econmico e do individualismo jurdico, cedendo
passo s conquistas havidas no mbito trabalhista, agrarista, consumerista e ambientalista.
No segundo Captulo, buscou-se apontar a simetria da evoluo dos direitos
sociais obrigacionais com idntica manifestao ocorrida nos direitos reais, basicamente a
propriedade, e, muito especialmente, a propriedade rural, da qual se exigiu o cumprimento da
funo social, conceito que evoluiu para admitir intrinsecamente nela alojada a funo
ecolgica da propriedade. Alinhou-se a evoluo do conceito da propriedade na Europa e na 3 Imvel Rural: o cumprimento da funo social nos Estados de Gois e Tocantins 1946-1989. Goinia: Universidade Federal de Gois, 1994, 279 pginas. 4 Executado de 1985 a 1989. 5 Realizadas no exerccio das funes de Vice-Executor e Executor, respectivamente, dos Projetos Fundirios Gurupi e Araguana; Chefe da Diviso de Recursos Fundirios e Superintendente Adjunto do INCRA, nos Estados de Gois e Tocantins, de 1974 a 1994.
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Amrica Latina, consignando a sua disciplina e sua funo nas Constituies de alguns pases
europeus e da maioria dos latino-americanos, opinies doutrinrias, bem como a influncia da
funo social e a proteo do meio ambiente na legislao agro-florestal, ambiental e na
Constituio brasileira de 1988.
O Captulo terceiro voltou-se para a realidade social, econmica e ecolgica
encontrada no Bioma Cerrado e, assim, procurou-se assinalar a longevidade do aparecimento
das formas de vida na Terra, a influncia trazida pelo surgimento da cobertura vegetal no
planeta, as interferncias do homem no ambiente natural, a conceituao e a caracterizao do
Cerrado brasileiro, sua ocupao e o uso das terras com culturas e pastagens, informaes
gerais sobre o Estado de Gois e o uso dos imveis rurais com a agropecuria, bem como do
Distrito Federal, encerrando com algumas consideraes sobre a explorao do Cerrado e
sugestes para a adequao do uso das terras ao pretendido desenvolvimento sustentvel.
Por fim, o Captulo quarto foi subdivido em cinco sees: na primeira discutiram-
se as questes sobre a rea agricultvel (economicamente aproveitvel) do prdio rstico e a
concernente denominada propriedade produtiva, instituda pela Constituio Federal de
1988; na segunda, esclareceu-se o porqu da necessidade de proteo das reas territoriais
especiais da propriedade rural; na terceira e na quarta, analisaram-se os espaos ecolgicos
formados pelas reas de preservao permanente e de reserva legal; e ao cabo, na quinta
seo, sustentou-se a tese da desapropriao da propriedade rural por interesse social, com
pagamento da terra em dinheiro, por qualquer dos entes federados, ou em ttulos da dvida
pblica, pela Unio, quando a finalidade relacionar-se com a reforma agrria.
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I A COMPREENSO DA CONCEPO SOCIAL DO DIREITO
1. A INFLUNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO NO CAMPO DO DIREITO
De acordo com Orlando Gomes (1971, p.16), o direito fenmeno social, no
sendo possvel estud-lo abstraindo-o da sociedade. Castanheira Neves (1967, p.16)
acrescenta que o direito essencialmente histrico e Elas Daz (1976, p.54) arremata que a
concepo totalizadora da realidade jurdica exige a complementaridade das dimenses
cientfico-normativa, sociolgica e filosfica, razo por que no se entende plenamente o
mundo jurdico se o sistema normativo (cincia do direito) se isola da realidade social em
que nasce e a que se aplica (sociologia jurdica) e do sistema de legitimidade que o inspira, o
qual deve sempre possibilitar sua crtica racional (filosofia do direito).
A complexidade das relaes sociais cada vez maiores no mundo contemporneo
aponta para a evidncia dessas afirmaes, no sendo razovel que se admita nos dias
presentes o isolamento de qualquer rea do conhecimento, principalmente do direito enquanto
ramo do conhecimento formulador de regras6 de conduta que objetivam trazer equilbrio e
segurana ao corpo social, sabido de antemo que muitas dessas regras tm a sua razo de ser
e embasamento fulcradas nas hostes do conhecimento de outras reas afins ou no ao saber
jurdico7.
Ao contrrio, portanto, de fazer-se no isolamento, o estudo do direito deve ser
6 Essa uma das acepes do direito. Todavia para alm da concepo do direito como norma, como algo pr-estabelecido, apresenta-se a idia que o concebe como uma prtica social, um processo permanente de construo, sob a influncia de consideraes tico-jurdicas (DWORKIN, 1977; VIOLA, 1990, AMARAL NETO, 2000, p.4). 7 Reale (1977, p.22) observa que o direito no s produto do fato econmico, resultando tambm de outros elementos de natureza religiosa, tica, demogrfica, geogrfica, etc, convertendo em jurdico tudo aquilo que toca, para dar-lhe condies de realizabilidade garantida, em harmonia com os demais valores sociais.
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construdo tendo presente o conjunto maior no qual esto inseridas as cincias sociais, sem
olvidar que no raro o seu estudo exige habilidades hauridas na seara de outros campos do
conhecimento, como se d presentemente com o estudo interdisciplinar das cincias
ambientais. Nesse contexto so transcendentes os papis da filosofia, da economia, da
histria, da sociologia, da antropologia, e, ainda, da psicologia, da biologia, da agronomia, da
engenharia florestal, da qumica e outras reas do saber, que fornecem ao direito, como a
outros campos do conhecimento, o instrumental indispensvel sua compreenso no curso
dos tempos.
A complexidade das relaes humanas e tambm dos fenmenos da natureza
exigem, na atualidade, e exigiro muito mais ainda num futuro prximo que os profissionais
disciplinares, por convico ou por obrigao curricular sedimentada na longevidade da
prtica do magistrio, ultrapassem as barreiras de sua disciplina, at mesmo para melhor
conhecerem e aplicarem a sua prpria. Nesse sentido, no pode um profissional, qualquer que
seja a sua rea de habilitao ou competncia, ignorar, por exemplo, os fatos econmicos e,
em particular, a atividade econmica, cujo desenvolvimento bom, ruim ou pssimo interfere
direta ou indiretamente na vida de todos e de cada um8.
Assim sendo, fcil observar que a atividade econmica, enquanto fato humano
essencial sobrevivncia de todas as pessoas com a dignidade desejvel pela sociedade, pelo
Estado e pelo prprio indivduo singularmente considerado, pode ser tomada como objeto
material de estudo dos vrios ramos do saber (v.g. da economia, do direito, da filosofia, da
sociologia, da histria, da geografia) e se pode notar tambm que as escolas, doutrinas,
teorias, instituies formuladas num campo de conhecimento podem corresponder a outras
noutro campo, complementando-se ou, quando nada, auxiliando o entendimento da realidade
econmica e seus efeitos no mbito das cincias sociais e fora delas.
Esse entrelaamento das reas do conhecimento - e, em especial, das cincias
sociais - permite verificar que, ao ser construda a doutrina conhecida por liberalismo
econmico em substituio ao mercantilismo exacerbado do sculo XVIII, essa construo
transformadora do status quo exigia para instrumentalizao da ideologia preconizada que se
formulasse o seu conseqente jurdico para consecuo das diretrizes formuladas e
desenvoltura do comrcio jurdico segundo a ideologia estabelecida, o que resultou na criao
8 A interferncia da atividade econmica sempre foi notria e significativa em todos os setores da vida humana e particularmente, como se ver adiante, sobre o meio ambiente natural, nos dias atuais. Esse fato motivo de preocupaes e estudos dos profissionais das mais variadas reas das cincias e, certamente, justificam as pesquisas interdisciplinares sob as perspectivas econmica e ecolgica.
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do individualismo jurdico como brao jurdico do liberalismo econmico.
O mercantilismo dos sculos XVI-XVIII possibilitou a transio da economia
regional para a economia nacional (nas metrpoles e no nas colnias), mas pontificou-se
tambm pelo abuso de regulamentao sobre as atividades econmicas. Efetivamente,
conforme Hugon (1970, p.89), ao emprestar papel importante s exportaes, a poltica
mercantilista negligenciava as polticas de desenvolvimento da agricultura, indstria e
comrcio internos, principalmente a agricultura, procurando baixar os preos dos gneros
alimentcios a fim de obter, por meio de salrios irrisrios, preos de custo industrial mais
favorveis exportao.
Contra essa poltica (a exacerbao regulamentar) rebelam-se os fisiocratas e os
liberais clssicos franceses e ingleses, liderados por Quesnay e Smith, fundadores dessas
escolas e responsveis pelo reconhecimento da economia como cincia (ROSSETI, 1977,
p.103). Entretanto, ao reagirem contra o excesso de regulamento do mercantilismo, essas
escolas liberais tornaram realidade um outro excesso caracterizado pela regulamentao
nenhuma das atividades econmicas, consubstanciada na ideologia do liberalismo econmico.
A escola fisiocrata capitaneada por Quesnay (mdico da Corte francesa) traduz o
liberalismo econmico sob a viso dos proprietrios de terras, com pretenses inclusive de ser
o padro de organizao de toda a sociedade. Entendem os fisiocratas, consoante Hugon
(1970, p.94), que os fenmenos econmicos se manifestam segundo uma ordem natural e
providencial, livre e independentemente de qualquer coao exterior, de acordo com uma
ordem imposta pela natureza e regida por leis naturais, devendo-se conhec-las e deix-las
atuar, pois sendo tambm expresso da vontade de Deus, liga-se liberdade, que a base do
progresso econmico e social. Assim, o bom preo deve ser fixado pela livre concorrncia,
independentemente at de preos mnimos, resultando da boa remunerao o aumento da
produo lquida e o progresso da sociedade.
O fisiocratismo, que se revela bastante apegado ao mtodo dedutivo e pouco
diligente em relao ao fato sociolgico e histrico, resumido nesta passagem de Dupont de
Nemours, transcrita em Histria das Doutrinas Econmicas:
Quanto mais considervel for o produto lquido e mais vantagens houver em ser algum proprietrio de terras, tanto maior o nmero de quantos dedicam despesas e trabalho para a criao, aquisio e melhoria das propriedades fundirias; quanto maior o nmero daqueles que dedicam despesas e trabalhos para criar, adquirir e melhorar as propriedades fundirias, tanto mais se estende e se aperfeioa a cultura; quanto mais se estender e aperfeioar a cultura, tanto maior ser o nmero de produtos anualmente consumveis; quanto mais se multiplicarem os produtos consumveis, tanto mais aptos estaro os homens a satisfazer seus desejos e maior,
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portanto, a sua felicidade. (HUGON, 1970, p.99).
Por sua vez, os liberais clssicos reagem contra os postulados da cartilha
mercantilista e tambm contra a noo exageradamente agrria dos fisiocratas. So contrrios
ao mercantilismo por serem avessos regulamentao da economia e divergem dos fisiocratas
ao colocarem o problema econmico sob uma perspectiva mais ampla e laicizada. A questo
central da economia, com efeito, no est para os liberais clssicos exclusivamente na
produo agrcola, mas sim no trabalho, entendido esse como trabalho auxiliado pelo capital,
que proporciona a atividade produtiva. Preconizando a eficcia e a diviso do trabalho, esta
como instrumento de solidariedade entre os homens, economias e naes, afirma Adam Smith
que a fonte da riqueza no est no ouro ou na terra, mas no trabalho.
A doutrina do liberalismo econmico parte da concepo ideolgica segundo a
qual, se os mecanismos do mercado operam livremente, o homem se encontra em posio
mais favorvel para realizar o bem da humanidade. Realizando o bem individual, realiza o
bem social, porque se confundem um e outro interesse. Fundamentalmente, dizem os liberais:
uma vez que o interesse individual coincide com o interesse geral, deve-se na prtica deixar
plena liberdade de ao aos interesses privados, no se justificando a interveno do Estado,
salvo para promover a paz, a arrecadao de impostos mdicos e uma tolervel
administrao da justia (HUGON, 1970, p.111 e 113).
As repercusses e influncias do liberalismo econmico no mundo foram intensas
e durveis, delas no escapando o novo mundo e, evidentemente, a colnia brasileira, at
porque, sem autonomia poltica, as colnias eram levadas a reboque de suas metrpoles.
Contextualizadas no tempo, observa-se, sem dificuldade, que as nascentes economias de toda
a Amrica foram concebidas sob os holofotes do liberalismo econmico. No Brasil colnia,
no Imprio e na Repblica, a ideologia se fez presente e tem sido alvo de reaes em todos os
tempos. Reflete-se inicialmente no pensamento de Jos da Silva Lisboa, o Visconde de
Cairu9, que, nomeado professor da primeira cadeira de Economia Poltica no pas, em 1808,
expe os seus princpios e as suas conseqncias, dizendo: o homem livre e responsvel pela
sua atividade econmica est nas melhores condies de conduzir essa atividade de forma
mais consentnea com os seus interesses, constituindo a soma dos interesses individuais
(HUGON, 1970, p. 150).
9 Cairu viveu at 1835. Seu pensamento, apesar de liberal, dirigido para a construo de uma economia nacional e no cosmopolita. nacionalista, comercialista e industrialista, entendendo que o desenvolvimento desta antes que uma questo econmica, acima de tudo uma questo poltica, condicionando a prosperidade da agricultura e favorecendo qualitativa e quantitativamente o desenvolvimento demogrfico e a consolidao do progresso e da independncia nacional.
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Nascido o Estado brasileiro ao tempo em que o liberalismo econmico se
apresentava como a tbua de salvao dos povos, natural que essa doutrina se refletisse na
formulao do arcabouo jurdico nacional, at porque no seria fcil a um Pas recm-
admitido no concerto das naes apresentar-se com uma roupagem diferente daquela
identificada praticamente em todos os pares institucionais. No parece razovel, nas
circunstncias de tempo e lugar, pretender-se outra coisa. Desse modo, o liberalismo
influenciou a construo do modelo jurdico nacional, vinculando o seu eixo aos padres
dessa ideologia, vale dizer, chancelando a autonomia privada e seus consectrios no mbito
do direito das obrigaes e das coisas: autonomia da vontade para a formulao de contratos,
propriedade privada qualificada como poder absoluto decorrente da liberdade de usar, gozar e
dispor das coisas da maneira que melhor aprouver ao titular, inclusive abstendo-se de us-la e
dar-lhe utilidade prtica, enfim movimentar o comrcio jurdico sem a intromisso do Poder
Pblico.
2. O INDIVIDUALISMO JURDICO E SUA INTERFACE COM O LIBERALISMO ECONMICO
Assim como se concorda em que o vocbulo direito possui semntica plurivalente,
tambm no se discrepa quanto ao conceito polissmico de liberdade, que pode ser
apreendido sob variados pontos de vista. No que concerne liberdade jurdica, parece de bom
tom o conceito de Garcia Amigo (1979, p.207), segundo o qual ela se apresenta como a
possibilidade de a pessoa atuar com transcendncia jurdica no mundo do comrcio jurdico.
A importncia da liberdade jurdica apresenta-se como relevante no relacionamento das
pessoas em todos os tempos, mas inegvel que no nascedouro do individualismo ela se
convertera na maior pilastra do arcabouo formulado exatamente sob a tica da no
interveno estatal nas relaes privadas.
Como expe Nbrega (1965, p.57), sendo o direito, na concepo do
individualismo, o meio de assegurar o pleno desenvolvimento da pessoa humana e tendo por
condio sine qua a liberdade, as normas jurdicas devem ter por funo essencial a
salvaguarda da livre atividade humana e devem intervir o menos possvel no exerccio dessa
atividade. As normas jurdicas devem representar uma garantia liberdade do indivduo, que
se situa em posio de primazia em relao sociedade e se constitui, sem dvida, em fonte e
razo de ser de toda a construo jurdica.
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Prossegue o referido autor (1965, p.57) admitindo que o liberalismo e o
humanismo so duas das vrias subdivises do individualismo e que o segundo se preocupa
com os valores ticos e com a proclamao da dignidade da pessoa humana como valor
supremo, na medida em que considera o homem como pessoa (no como indivduo) como o
centro de tudo, pois todos os processos culturais lhe esto subordinados e tm por misso
propiciar-lhe o desenvolvimento integral da personalidade. Enfim, a pessoa prima a tudo e
o denominador comum de todos os valores.
A seu turno, leciona Walline (1949, p.14 passim) que filosoficamente o
individualismo explica os fenmenos histricos e sociais como decorrncia da atividade
consciente e interessada dos indivduos, ao contrrio do materialismo histrico, que v a
explicao dos fenmenos sociais nas correntes de massa de origem puramente interessada e
material; politicamente reage ao estatismo, ao intervencionismo, ao conformismo e ao
tradicionalismo; economicamente confunde-se com o liberalismo na defesa da liberdade plena
do indivduo no mundo dos negcios e a mnima interveno do Estado apenas para assegurar
a liberdade de trabalho, de comrcio e o regime da propriedade privada; e juridicamente
afirma que as normas jurdicas so obra dos indivduos e no da sociedade, ou, mais
exatamente, um sistema jurdico que resulta da atividade individual.
Conforme o mesmo autor (1949, p.18 e 27), a sociedade para o individualismo
no um fim em si mesmo, nem o instrumento de um fim superior aos indivduos que a
compem, pois as instituies sociais devem ter por fim a felicidade e a perfeio dos
indivduos, o que significa uma tendncia a colocar as instituies polticas, jurdicas e
sociais de um pas ao servio dos interesses dos indivduos que compem a populao, de
preferncia aos interesses coletivos, constituindo, portanto um sistema em que a legislao
sofre influncia do individualismo poltico e consagra as instituies mais favorveis ao
indivduo10.
Os postulados do individualismo (liberdade de pensamento, de crena, e
contratual) colocam entre as suas instituies bsicas a propriedade com carter sacramental e
absoluto, em decorrncia da natural liberdade conferida ao indivduo de usar, gozar e dispor
de suas coisas como lhe aprouver e, como consectrio do direito de propriedade em
homenagem liberdade, o reconhecimento do princpio da autonomia privada. Este se
configura no poder conferido aos particulares pelo ordenamento jurdico, que lhes reserva um
10 Conforme Gusmo (1965, p.216), na doutrina do individualismo, o Estado no poderia estabelecer leis privando os homens de suas liberdades, por ser o seu objetivo fundamental proteger as liberdades individuais, sendo tirnica a autoridade que, em nome do Estado, tentasse priv-los desse bem.
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espao dentro do qual podem estabelecer negcios jurdicos segundo a manifestao
autnoma de sua vontade.
Essa maneira de encarar o mundo e de fazer correr o comrcio jurdico
impulsionado pelo princpio da liberdade, colocando o indivduo em posio de destaque em
relao sociedade e ao prprio Estado, so introduzidas nos documentos polticos do final o
sculo XVIII, como se pode verificar no Bill of Rights de Virgnia (EUA), de 12 de junho de
1776, conforme seu primeiro pargrafo11, e ainda na Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado aprovada pela Assemblia Nacional da Frana em 1789, notadamente o art.212. Em
ambos foram colocadas a propriedade ao lado da liberdade e da segurana como direitos
fundamentais inerentes a toda a pessoa, ou direitos naturais e imprescritveis do homem.
Com essas linhas mestras foram formuladas as bases do individualismo jurdico e
sua consagrao em regras do direito positivo infra-constitucional se consumou com a
aprovao dos Cdigos civis da Europa e da Amrica, a partir do Cdigo napolenico de
180413. O Brasil aderiu ao movimento da codificao em 1916, depois de quase vinte anos de
discusso do projeto respectivo no Congresso Nacional. Referidos cdigos, portanto,
repercutiram a exacerbao de direitos sob a tica egostica do indivduo, o que gerou, com o
passar dos anos, incontveis reaes na doutrina jurdica e no campo das cincias sociais,
ambas pleiteando uma maior socializao do direito.
3. A DECADNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO E DO INDIVIDUALISMO JURDICO
11 That all men are by nature equally free and independent, and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety. 12 Le but de toute asssociation politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de lhomme. Ces droits sont la libert, la propriet, la sret et la rsistance lopression. 13 Inspirado na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, o Cdigo civil francs foi o primeiro da idade moderna; seguiram-se, entre outros, o italiano de 1865, o alemo de 1900, e o brasileiro de 1916. O art.544 do Cdigo francs admitiu a propriedade como o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que no se faa uso proibido pelas leis ou regulamentos. E o art.524 do brasileiro assegurou ao proprietrio o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reav-los do poder de quem quer que injustamente os possua. O brasileiro regulamentou a constituio liberal de 1891, que garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude.
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Contra o deixar passar, deixar fazer, o mundo caminha por si mesmo, chaves
do liberalismo econmico, surgiram fortes reaes patrocinadas pelos socialistas e pelos
intervencionistas no-socialistas, ao longo do sculo XIX. Os socialistas, idelogos da
abolio da propriedade privada, pedra de toque do sistema capitalista-liberal, contra ela
investem ferozmente, defendendo a tese de que nela se radicam todas as mazelas da
sociedade. A seu turno, os intervencionistas no-socialistas defendem a instituio de
restries ao direito de propriedade sem, contudo, aniquil-lo, ou seja, propugnam que o
Estado (ou a Nao, ou os grupos representantes de interesses gerais ou coletivos) formulem
condicionamentos a serem cumpridos pelo proprietrio, dando ao direito privado uma
amplitude que contemple benefcios para a sociedade.14 Em suma, os socialistas defendem a
abolio da propriedade, e os no socialistas querem a interveno na propriedade (restries
liberdade econmica, sem extinguir o direito proprietrio).
Sob a gide do direito tambm foram profundas as reaes. Ora, tinha-se como
evidente que o liberalismo se fortaleceu sombra da revoluo industrial, com o multiplicar
das invenes ocorridas principalmente a partir da segunda metade do sculo XVIII, que
geraram ipso facto o aumento da produo e do consumo. Mas, ao desenvolvimento da
produtividade com vantagens para uma das partes, a detentora dos meios de produo, no
correspondiam proporcionalmente os ganhos sociais dos trabalhadores, eis que as relaes de
trabalho se espelhavam nas bases jurdicas do individualismo, que patrocinava e camuflava os
abusos contra os direitos dos dbeis econmicos.
Obviamente, os trabalhadores singularmente considerados na condio de dbeis
econmicos no teriam como contratar em igualdade de condies com os industriais, muito
melhor posicionados tcnica e economicamente na sociedade oitocentista. Essa desigualdade
econmica teria de ser igualada pelo direito, que se omitia sob as vestes do individualismo.
Numa viso interdisciplinar econmica e jurdica, pode-se afirmar que, se o liberalismo
simbolizava a imagem da eficincia em matria produtiva de riqueza, o individualismo
representava a negligncia e a ineficincia na luta contra o egosmo prprio do ser humano,
descumprindo, enquanto direito, a sua misso social.
Filosoficamente falando, o direito se distanciava das tendncias sociais que j
comeavam a se esboar. Sociologicamente, posicionava-se na contramo da realidade viva
da sociedade industrial. Historicamente, escamoteava o seu papel de instrumento realizador da 14 Note-se que, entre os prprios economistas clssicos, John Stuart Mill, j em 1806, preocupava-se com a justia social; David Ricardo, em 1820, desloca o ncleo central do objeto da Cincia Econmica para a repartio da riqueza, e Marshal, em 1820, v a atividade econmica individual e social consagrada a utilizar e a atingir as condies materiais do bem-estar. (Cf. HUGON, 1970, pp.59, 61 e 137).
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justia. Do ponto de vista moral, deixavam os juristas de perceber que a desigualdade
provocava efeitos contrrios aos que o direito deveria legitimamente agasalhar ou fazer
acontecer. Enfim, o individualismo contentava-se com o princpio da igualdade formal. Todos
so iguais perante a lei. Mas (todos ou muitos dentre eles) so muito desiguais no mundo dos
contratos, onde a realidade se pe. E a no mundo real dos atos e fatos que o direito teria de
intervir para nivelar os economicamente desiguais no sentido de amparar socialmente o dbil
econmico com a compensao da igualdade jurdica.
Tudo estava a indicar a necessidade de interveno na liberdade econmica e na
autonomia privada contratual. Assim, no campo da economia, o Estado promoveu
intervenes a partir da formulao de uma ordem pblica econmica, ajustando a liberdade
de iniciativa s necessidades sentidas em cada lugar, em relao s especificidades de cada
povo. Sem monopolizar as atividades econmicas, busca-se, entretanto, pela via jurdica,
estabelecer mecanismos regedores da ordem econmica, procurando controlar o laissez faire,
o laissez passer, le monde va de lui mme.
O princpio da liberdade econmica, to importante quanto a liberdade no mundo
social teria de deixar de ser visto assistematicamente no conjunto dos valores. Sem dvida,
seria necessrio que a liberdade passasse a ser apreendida, apreciada, seno at mesmo
confrontada com os outros valores expressos nas virtudes encontradas na justia, na ordem, na
segurana, no bem comum, enfim que a liberdade se libertasse para ser resgatada e
praticada sob o enfoque tambm dos contornos sociais, para produzir uma sociedade de todos,
e para todos, e no somente para o detentor da liberdade econmica.
A liberdade, enfim, teria de receber a concorrncia de outro princpio, o da
igualdade material, de maneira a forrar as relaes sociais de um maior contedo de justia no
mundo das flagrantes desigualdades sociais. Nesse sentido, verificou-se a sada do Estado de
sua cmoda posio de mero espectador das relaes econmicas e protagonista das aes de
segurana, de defesa da liberdade e da propriedade, para transformar-se num Estado menos
abstencionista e mais vinculador da ordem econmica e social, na pretenso de alcanar o
objetivo de proporcionar vida digna a um maior nmero de administrados.
Assiste-se passagem do Estado liberal, fruto da revoluo industrial e
tecnolgica geradora de crescimento econmico de um lado, e de egosmo e problemas
sociais de outro, para o Estado democrtico e social. Esse Estado social e intervencionista
surgiu, consoante registra Amaral Neto (1989, p.224/225), destinado a organizar e disciplinar
a vida econmica, protegendo os setores mais desfavorecidos, e diligenciando no sentido de
criar iguais oportunidades de acesso aos bens e vantagens da sociedade contempornea,
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caracterizando, no campo do direito privado, como querem alguns, a socializao do direito
civil ou, como querem outros, a publicizao do direito civil.
Analogamente afirmao de Lavoisier de que na natureza nada se perde, tudo se
transforma, pode-se afirmar tambm que no mundo da cultura nada esttico, ao contrrio,
tudo dinmico e passvel de transformaes segundo os impulsos originrios dos fatores
histricos, sociolgicos, psicolgicos, dentre outros, e, como o direito se situa no mundo da
cultura, tambm ele est sujeito a inmeras influncias do meio social e, nessas
circunstncias, tem de acompanhar as evolues ocorrentes na sociedade.
Dessa forma, a viso do individualismo jurdico tornou-se acanhada e
incompatvel com as necessidades da sociedade tecnolgica do final do sculo XIX e de todo
o sculo XX, o que motivou a criao paulatina de uma srie de leis ordinrias e de micro-
sistemas jurdicos revogadores de inmeras disposies codificadas, envelhecidas e
desconectadas com a realidade e as necessidades dos novos tempos. No raro testemunhou-se
a entrada das regras de direito pblico ou de ordem pblica na seara do direito privado para
reger matrias anteriormente codificadas, em busca de melhor eficcia na satisfao dos
intentos sociais.
A complexidade econmica e social tambm influenciou o aparecimento de novos
ramos do direito, a fim de regrar com abrangncia e profundidade questes surgidas na
sociedade contempornea, impossveis de serem regradas pelos vetustos caminhos do
tradicional direito civil. Nesse caminhar, o econmico entrelaa-se com o social e o social
estende-se ao ecolgico, abrindo campo para a proteo ambiental e a exposio ntida da
interdisciplinaridade em matria notoriamente multifacetria, como o meio ambiente.
4. A VISO SOCIAL DO DIREITO NA EUROPA E NA AMRICA LATINA
incontroverso na doutrina jurdica, nas cincias polticas, na economia poltica,
na histria da filosofia e, enfim, no mbito das cincias sociais, que o liberal-individualismo
se consagrou nos diplomas constitucionais promulgados nos Estados Unidos da Amrica
(Constituio de 1787) e na Frana (1791), depois da Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado, proclamada aps a Revoluo Francesa de 1789. A histria tem registrado que os
fatos polticos ocorridos num determinado pas tendem a ser imitados por outros o que pode
ser melhor explicado pela psicologia social , mas o fato poltico e jurdico que aqui interessa
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que o mundo ocidental imediatamente aderiu ao movimento do constitucionalismo liberal.15
Seguiram-se as transformaes e conquistas econmicas do capitalismo
tecnolgico da revoluo industrial. Aumentos de produtividade, multiplicao da
acumulao de excedentes em virtude da melhor produtividade gerada pelas mquinas,
transformao das oficinas artesanais corporativas em fbricas capitalistas e, em razo disso, a
aplicao dos sistemas de diviso tcnica do trabalho e de produo em maior escala, melhor
desempenho das unidades capitalistas (fbricas) em relao aos pequenos produtores que, em
meio quebradeira, transformaram-se em assalariados ou artesos das fbricas.
Num primeiro momento, saiu ganhando a nascente industrializao com
abundante oferta de fora de trabalho, queda no poder de barganha e dos salrios dos
trabalhadores e concentrao dos incrementos de produtividade nas mos dos prsperos
capitalistas. Num segundo momento, porm, a velocidade de acumulao de capital, que se
revelou de duas a trs vezes mais rpida do que o aumento da oferta de mo-de-obra
provocou a inverso das condies do mercado de trabalho de modo a elevar os salrios e
permitir maior participao dos trabalhadores na produtividade. (FURTADO, 1964, p.65;
MANTEGA, 1985, p.83).
Os trabalhadores, entretanto, apesar de o trabalho se tornar o fator dinmico da
relao de produo que antes se justapunha iniciativa privada do empresrio, continuaram
por muito tempo sem experimentar melhor sorte no que diz respeito tutela social da
prestao laboral. Observa o ex-Ministro do Trabalho Arnaldo Sussekin (1986, p.13) que
somente aps a primeira Grande Guerra (1914-1918) que os direitos sociais ganharam
hierarquia constitucional e dessa forma o liberal-individualismo em muitos pases cedeu
terreno ao intervencionismo estatal, indispensvel consecuo desses direitos.
Os direitos individuais, conforme escreve Siches (1970, p.12), tm como contedo
predominante um no fazer dos outros e, principalmente, do Estado e dos demais entes
pblicos. Por sua vez, os direitos sociais tm por objeto atividades positivas do Estado, do
prximo e da sociedade, para conceder ao homem certos bens ou condies. Nesse estgio
social, portanto, Estado, cidado e sociedade devem construir um piso mnimo de condies
realizveis concretamente, servindo de sustentculo estruturao e manuteno de um
estado de bem-estar social prolongvel no curso do tempo.
Mirkine-Guetzvitch (1957, p.169/171) tambm j assinalava que as liberdades 15 Assim, a Constituio brasileira de 1824 garantiu o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem pblico legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidado, ser ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcar os casos em que ter lugar esta nica exceo e dar as regras para se determinar a indenizao (art.179, 22).
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individuais e os direitos sociais ocupam um lugar de honra nas novas Constituies e que os
direitos sociais aparecem como obrigaes positivas do Estado ao lado do catlogo das
liberdades formuladas em 1789, destacando ainda que entre os direitos sociais podem ser
citados a segurana social, o direito do trabalho, os direitos sindicais, o direito a uma vida s
e ao repouso e as garantias econmicas para as classes trabalhadoras.
A doutrina do individualismo foi recepcionada nas constituies polticas do
mundo ocidental e transplantou-se para os seus Cdigos civis, tendo por matriz o Cdigo
francs de 1804. Espraiando-se pelo mundo afora16, os pases ocidentais logo se adaptaram ao
figurino moldado, inclusive Portugal, que aprovou o seu Cdigo em 1867, quando revogou as
Ordenaes Filipinas. Curiosamente, como observa Rodrigues (1997, v.1, p.10), no Brasil,
que se tornou soberano em 1822, as Ordenaes do Reino continuaram em vigor at 1917, por
fora da Lei de 20 de outubro de 1823, que determinou que continuasse em vigor no Imprio
a legislao do Reino. Isso, na prtica, no impediu que os ventos liberais soprassem por todo
o territrio brasileiro em razo de a Constituio de 1824 ter aderido francamente ao
liberalismo constitucional e destarte ao econmico.
No modelo transplantado para o mundo, o princpio da autonomia privada como
conseqente imediato do individualismo aparece como a mola mestra impulsionadora dos
contratos e, pois, instrumento da liberdade de iniciativa econmica , possibilitando o
desenvolvimento livre das vontades particulares (princpio da autonomia da vontade) nas
relaes de produo e, como no poderia ser diferente segundo a ideologia adotada, as
contrataes deveriam perseguir o objetivo de alcanar produo mxima a custos mais
baixos de acordo com a livre concorrncia. O contrato, portanto, o instrumento do laissez-
faire e, porque o fim desejado livremente pelas partes, funciona como lei entre elas.
A autonomia da vontade, como princpio, no exclusividade do direito civil,
pois alcana todo o direito privado. Por muito tempo reinou sem qualquer restrio nas
relaes civis e comerciais, servindo de instrumento fomentador das iniciativas do mundo
empresarial, ou daquelas atividades realizadas entre particulares isoladamente considerados,
com pretenses negociais especulativas. Sua importncia reside no fato de os particulares
poderem criar direitos e obrigaes, funcionando o contrato como fonte de direito
obrigacional, alis a principal fonte no campo do direito das obrigaes. Vale dizer, a lei
como fonte primeira do direito abre campo para a existncia de fontes extra-legais (os
contratos).
16 Cdigo Civil belga 1807, Cdigo Civil austraco 1811, Cdigo Civil italiano 1865, Cdigo Civil portugus 1867, Cdigo Civil argentino 1869, Cdigo Civil alemo 1896 (vigorou em 1900), Cdigo Civil brasileiro 1916.
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De fato, se os particulares podem legislar em matria jurdica que diz respeito
aos seus interesses particulares, esto autorizados a realizar negcios jurdicos (contrato ou
conveno, testamento, etc), vale dizer, podem fazer manifestaes bilaterais ou unilaterais de
vontade que expressem os seus desejos de adquirir, modificar, transferir ou extinguir direitos,
criando, distribuindo e consumindo riquezas (bens e servios) produzidas no mercado. Podem
comprar, vender, trocar, doar, emprestar e fazer tantas outras estipulaes livremente,
partindo do fundamento de que o pressuposto da autonomia a propriedade, cuja funo,
conforme Barcelona (1980, p.43) proporcionar a livre circulao de bens.
Porque derivado da lei, diz-se que o princpio da autonomia privada derivado e
tem por objetivo especfico regrar as combinaes realizadas entre particulares, que podem
estipular o que quiserem, com quem quiserem, desde que respeitada a supremacia da ordem
pblica e os bons costumes. Assim sendo, resulta claro que se distingue do princpio da
autonomia pblica que conferida ao Estado ou aos rgos pblicos, com a finalidade de
criar o direito envolvendo interesses fundamentais e gerais da sociedade, o que o caracteriza
como poder de natureza originria, pblica e discricionria.
Como se tem afirmado, a origem do direito privado tido como moderno encontra-
se no Cdigo Civil francs aprovado em 1804 com a influncia direta de Napoleo. Justia
seja feita, o referido diploma civil recepcionou o princpio da autonomia privada no art.6 e,
nesse mesmo dispositivo, asseverou, como no poderia ser diferente, que a autonomia privada
encontra limite na supremacia da ordem pblica. Parece-me que, com tal ressalva, o prprio
diploma civilstico deixou a porta aberta para futuras flexibilizaes, tanto quanto se
tornassem necessrias ao atendimento da ordem pblica.17
Talvez no esperasse o legislador francs que as questes de ordem pblica se
multiplicassem tanto e na velocidade que aconteceram desde o final do sculo XVIII. O fato
que as relaes sociais coloridas com juridicidade dotadas de interesse da ordem pblica
foram-se avolumando num crescendo tal que deixaram de ser exceo para se transformarem
em regra corriqueira no complexo emaranhado de relaes sociais construdas a partir do
extraordinrio desenvolvimento da cincia e da tecnologia desde ento.
Em razo disso, assistiu-se paulatinamente ao surgimento de leis com regras de
ordem pblica,18 fato que nos dias de hoje no constitui mais surpresa, pois se v por toda a
17 Em sentido idntico o art.17 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil brasileiro Decreto-lei n. 4.657, de 04.09.1942, aplicvel s disposies legislativas de natureza privada ou pblica. 18 Tambm as normas de direito pblico tm-se sobreposto no tratamento de matrias tidas anteriormente como meramente privadas. A evoluo dessa orientao intervencionista se projeta por todos os lados para agasalhar interesses sociais e coletivos, no amparados anteriormente, como si acontecer com a reviso de contratos
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parte a interferncia do legislador motivado a acudir situaes que reclamam maior ateno
do poder pblico por dizerem respeito ao interesse coletivo ou difuso. Nesse diapaso so
institudas regras de direitos irrenunciveis pelos seus titulares e obrigaes inarredveis por
parte dos sujeitos passivos de obrigaes, como forma de proteger interesses superiores aos
meramente privados.
Esses comandos normativos so conseqncia da lgica que se manifestou notria
entre os juristas, legisladores, cientistas sociais e mesmo para o homem comum do povo de
que o fortalecimento da autonomia privada conferia aos mais fortes a possibilidade de
defender como natural os seus prprios interesses particulares, deixando na penumbra os
interesses maiores da sociedade voltados para o bem-comum. Os abusos caracterizadores de
leso aos direitos dos mais fracos, configurando situaes contrrias aos interesses da ordem
pblica e dos bons costumes explicam as transformaes gerais do direito em busca de uma
nova concepo social.
Se o direito francs absorveu o princpio romano segundo o qual jus publicum
privatorum pactis mutare non potest (os particulares no podem revogar por conveno as
normas de direito pblico) e o brasileiro adotou a mesma regra, com muito mais razo nos
dias que correm os particulares continuam no podendo revogar, pelas regras do contrato, as
normas de ordem pblica. Por conseguinte e para usar uma expresso geogrfica, pelo
espigo elevado entre a autonomia privada e a autonomia pblica, vale dizer, pelos caminhos
dos bons costumes, da boa f e da eqidade desenvolveu-se a ideologia da concepo social
no direito contemporneo.
Aos poucos alteraes vo sendo feitas nos Cdigos em vigor, quando no
revogados os existentes, para aprovao de nova disciplina da matria sob fundamentos
diversos consentneos com as necessidades da contemporaneidade. A ttulo de exemplo cita-
se o Cdigo Civil italiano que, em seu art.1322, estabeleceu de maneira lapidar que as partes
podem determinar livremente o contedo do contrato nos limites impostos por lei e celebrar
contratos atpicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses dignos de tutela,
segundo o ordenamento jurdico. Ou seja, a autonomia privada pode legislar livremente
sobre tudo que constitua interesses dignos de tutela.
No mesmo sentido, podem encontrar-se regramentos no direito portugus
contemporneo, pois o atual Cdigo Civil luso tambm dispe no seu art. art.405 que as
florestais, imposio de normas de proteo dos recursos naturais nos contratos agrrios, proteo e defesa do consumidor nos contratos, exerccio das atividades econmicas e contrataes em consonncia com as diretrizes da poltica de defesa do meio ambiente, etc.
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partes podem livremente fixar o contedo do contrato, nos limites da lei, e celebrar contratos
diferentes dos previstos no mesmo Cdigo, fixando o art.280 limites ao exerccio da
autonomia privada e estabelecendo a nulidade do negcio jurdico contrrio ordem pblica
ou aos bons costumes.
Fora da codificao, constituindo micro-sistemas paralelos, tambm se encontram
no Brasil uma srie de normativos protetores da parte considerada, em cada caso,
desprotegida em face da outra, com possibilidades de vir a ser lesada pelo abuso de direito no
caso concreto. A ttulo exemplificativo, pode salientar-se a proteo dos inquilinos na relao
locatcia, da companheira convivente em unio estvel, da criana e adolescente com direito a
proteo e desenvolvimento integral, a obrigao de contratar definitivamente em face de
contrato preliminar, a responsabilidade civil encarada objetivamente pela teoria do risco nas
relaes de consumo e ambientais, perdendo terreno a tradicional culpa subjetiva, e assim
tantos outros casos caracterizadores da socializao do direito. Enfim, como assevera o atual
Cdigo Civil aprovado em 2002, a liberdade de contratar deve ser exercida em razo e nos
limites da funo social do contrato.
Todavia, como se pode constatar sem maiores dificuldades na histria do direito
brasileiro do sculo XX, realmente os direitos sociais vo apresentar-se com muito mais
nfase, com muito mais salincia, nos outros ramos do direito. Foi, realmente, no campo do
direito do trabalho (inicialmente chamado por muitos de direito social), depois no direito
agrrio e, mais recentemente, no direito do consumidor e no direito ambiental que se percebe
grandiosa e qualitativamente a preocupao legislativa com a proteo de interesses de
natureza coletiva ou difusa.
O contedo dos direitos e interesses encontrados nesses ramos jurdicos por si ss
justificam o desgarramento dos troncos comuns para receberem melhor proteo de forma
autnoma, porm no independente, mesmo porque mais e mais se revelam necessrios os
seus estudos interdisciplinarmente. Tais contedos agasalham a proteo do trabalho, da vida,
da sade e da segurana das pessoas, cujos interesses devem ser estudados dentro da tica
inerente socializao do direito.19
So facilmente identificveis nesses ramos do direito normas de direito pblico,
de direito privado e de ordem pblica, imperativas e cogentes, objetivando colocar a salvo
interesses de grupos determinados ou, mesmo, de coletividade indeterminada no meio social. 19 No se pode dizer que o Direito Ambiental apartou-se do Direito Civil, como fonte, mas, indubitavelmente, sua formao como ramo autnomo foi cimentada originariamente na seara das normas extravagantes e setoriais incidentes sobre a esfera privada, estabelecendo, entre outras normas, restries ao direito de contratar e ao direito de propriedade (minerao, florestas, guas, fauna, caa e pesca, dentre outras).
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Amide se apresentar a necessidade do estudo para alm da disciplinaridade, pois o direito
abre-se cada vez mais nos tempos contemporneos para interconectar-se num cenrio mais
amplo com as cincias sociais e externamente com outras cincias, como, por exemplo, as
cincias ambientais na proteo e defesa do meio ambiente que se pretende ecologicamente
equilibrado.
4.1 O DIREITO DO TRABALHO
No que tange ao trabalho sob vnculo empregatcio, observa-se que a segunda
metade do sculo XVIII retratou, na Europa, a decadncia do mercantilismo, na medida em
que as idias dos fisiocratas e dos liberais clssicos foram tomando corpo na sociedade e nas
hostes dos governos. Queixavam-se aqueles da poltica econmica mercantilista que, atrelada
ao conceito de riqueza sob a tica da acumulao de metais, principalmente ouro e prata, o
chamado entesouramento, como fator de desenvolvimento, impunha excessiva
regulamentao ao exerccio das atividades econmicas. Essa regulamentao, no entanto,
como assinala Saint-Leone (1947) e Nascimento (1999, p.26), implicava na elaborao de
estatutos pelas corporaes, que acabavam por contemplar normas sobre durao do
trabalho, descanso nos feriados, etc.
As corporaes de ofcio estavam montadas numa relao de subordinao
hierrquica, disciplinar e tcnica, segundo os conhecimentos profissionais at ento
adquiridos. Nessa estrutura hierrquica:
os mestres eram os proprietrios das oficinas, que j tinham passado pela prova da obra mestra. Os companheiros eram trabalhadores que percebiam salrios dos mestres. Os aprendizes eram os menores a partir de 12 ou 14 anos que recebiam dos mestres o ensino metdico do ofcio ou profisso. O aprendiz passava ao grau de companheiro se obtivesse aproveitamento em seus ensinamentos. O companheiro s passava a mestre se fosse aprovado em exame de obra mestra (MARTINS, 2004, p. 19).
Durante o perodo do mercantilismo, consoante observa Nascimento (1999, p. 21),
multiplicaram-se as corporaes de ofcio, s quais se concediam privilgios, prerrogativas e
monoplios, de forma que somente determinados artesos tidos como mais qualificados
poderiam exercer os seus ofcios e, ainda assim, desde que previamente autorizados pelas
agncias dos governos. A isso se opunham os fisiocratas, que, na esteira do direito natural,
entendiam que todas as pessoas tinham o direito de trabalhar, produzir e dispor livremente do
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produto de seu trabalho.
Nessa linha de raciocnio, para os defensores da liberdade de comrcio e do
trabalho, as corporaes se constituam em empecilho ao livre desenvolvimento da indstria e
do comrcio, na causa do encarecimento da produo, enquanto a associao seria prejudicial
liberdade, razo por que hostilizavam o mtodo corporativo inspirado na aprendizagem, no
companheirismo e no produto final da obra mestra, pois o que importava na nova concepo
era a liberdade do homem e liberdade para todos e no somente para os donos das
corporaes.
Essas idias vo se tornar vitoriosas na Revoluo Francesa de 1789, mas, antes
disso, proporcionaram a extino das corporaes no pas gauls, atravs de edito de fevereiro
de 1776, inspirado por Turgot20, em cuja exposio de motivos assinala-se que elas so
consideradas instituies arbitrrias que no permitem ao indigente viver do seu trabalho.
Sob esse argumento, o art.1 do edito, ao dispor sobre a liberdade de comrcio e de profisso,
considera extintas as corporaes e comunidades de mercadores e artesos e anulados o seus
estatutos e regulamentos (NASCIMENTO, 1999, p.27).
Algumas corporaes que atuavam clandestinamente ainda tentaram se
reconstruir, opondo resistncia proibio, mas o governo respondeu com nova Lei, agora o
chamado Decreto Dallarde, de 1790, portanto, posterior Revoluo Francesa ,
determinando o desaparecimento das corporaes e, ao mesmo tempo, considerando livre
todo cidado para o exerccio de profisso ou oficio que considerasse conveniente, depois de
receber uma patente e pagar o preo. A fundamentao do Decreto ancorou-se no
entendimento de que o direito ao trabalho um dos direitos primordiais ao homem. A
contrrio senso, suprimiu as corporaes por entend-las incompatveis com o ideal de
liberdade do homem.
Nova resistncia foi oferecida pelos mestres das corporaes que pretendiam
continuar na direo delas e uma vez mais foram reprimidos, desta vez pela famosa lei
denominada Le Chapelier, nome do Relator da Comisso que examinou o assunto. As
concluses do Relator e as disposies da lei so transcritas abaixo, tendo em vista a sua
importncia histrica consistente no fato de que, uma vez consagrada a liberdade individual
do trabalho na Frana, seu contedo teve repercusso nos demais pases do mundo, gerando o
posterior surgimento da questo social21, cujo objeto vai se agravar e se ampliar nos sculos
20 Turgot era fisiocrata. Foi discpulo de Quesnay, Intendente de Limoges e Ministro de Luis XVI. Com os editos que mandou publicar manteve-se coerente com os mandamentos de sua escola. 21 A questo social nos dias que correm ultrapassou o mbito do direito do trabalho. No se refere somente
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seguintes e exigir a proteo do Estado, visando a assegurar a paz social, o interesse geral e o
bem comum.
Concluiu o Relator:
a) As corporaes que se formar
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