luiz carlos falconi - o uso inadequado das Áreas de

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE DOUTORADO EM CIÊNCIAS AMBIENTAIS LUIZ CARLOS FALCONI O USO INADEQUADO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAÇÃO DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL NO BRASIL Goiânia 2005

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE DOUTORADO EM CINCIAS AMBIENTAIS

    LUIZ CARLOS FALCONI

    O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA

    RURAL NO BRASIL

    Goinia 2005

  • LUIZ CARLOS FALCONI

    O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA

    RURAL NO BRASIL

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Cincias Ambientais da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da Universidade Federal de Gois, para obteno do ttulo de Doutor em Cincias Ambientais. rea de Concentrao: Estrutura e Dinmica Ambiental Orientador: Prof. Dr. Jos Nicolau Heck

    Goinia 2005

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    (GPT/BC/UFG)

    Falconi, Luiz Carlos. F181u O uso inadequado das reas de preservao permanente e reserva legal como causa de desapropriao da proprieda- de imobiliria rural no Brasil / Luiz Carlos Falconi. Goi- nia, 2005. 261 f. : il. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Gois, Pr- Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao, Programa de Dou- torado em Cincias Ambientais,2005. Orientador : Jos Nicolau Heck Bibliografia : f. 249-261. 1. Propriedade rural Desapropriao Brasil 2. - reas de preservao permanente Brasil 3. Reserva legal Desapropriao Brasil I. Heck, Jos Nicolau II. Uni- versidade Federal de Gois. Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps- Graduao. III. Ttulo.

    CDU: 347.243(81)

  • LUIZ CARLOS FALCONI

    O USO INADEQUADO DAS REAS DE PRESERVAO PERMANENTE E RESERVA LEGAL COMO CAUSA DE DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE IMOBILIRIA

    RURAL NO BRASIL

    Tese defendida no Curso de Doutorado em Cincias Ambientais da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da Universidade Federal de Gois, para obteno do Ttulo de Doutor, aprovada em ___de __________de 2005, pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

    Prof. Dr.______________________________ Jos Nicolau Heck Presidente da Banca Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________ Prof. Dr. _____________________________

  • Aos colegas do Doutorado em Cincias

    Ambientais pelo convvio fraterno e a troca de experincias enriquecedoras durante trs anos.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Professor e orientador desta tese, Doutor Jos Nicolau Heck, pela confiana e estmulo nas horas difceis.

    Aos Professores do Programa de Doutorado pelas lcidas observaes durante as aulas e seminrios.

    Aos Professores Divino Brando, Jos Alexandre Diniz Filho e Nivaldo dos Santos pelas sugestes sobre os artigos publicados.

    Ao Professor Doutor Luiz dson Fachin, da Universidade Federal do Paran, pelas sugestes sobre o projeto de tese.

    Professora Vera Maria T. Silva, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Gois, pela oportuna reviso da tese.

    Aos Doutores Airton Batista de Andrade (veterinrio), Maurcio Rosado (zootecnista), Pricles Antunes Barreira e Raquel Boaventura (agrnomo/advogado e engenheira-florestal do IBAMA), Luiz Clio Pereira de Azevedo e Jos Maria de S (agrnomos do INCRA), pelas informaes e esclarecimentos sobre o tema.

    Aos meus pais, aos meus irmos e, muito especialmente, minha esposa, Consuelo e aos meus filhos Ana Carolina, Ana Rita e Lus Augusto pelo apoio irrestrito ao longo da redao do trabalho.

  • A herana mais memorvel do sculo XXI ser a era da Solido que aguarda a humanidade. O testamento que deixaremos a este mundo (em 2100) poderia ser escrito mais ou menos assim:

    Ns vos deixamos as selvas sintticas do Hava e algumas rvores raquticas onde outrora existiu a prodigiosa floresta Amaznica, juntamente com pequenas ilhas de vegetao nativa que no chegamos a destruir totalmente. Vosso desafio ser criar novas formas de plantas e animais por engenharia gentica e de alguma forma integr-las em ecossistemas artificiais auto-sustentveis. Compreendemos que talvez isto se revele impossvel. Estamos certos de que, para alguns de vs, a simples idia de fazer algo semelhante causar repugnncia. Desejamos-lhes boa sorte. Se conseguirem sucesso, lamentamos que vossa obra jamais possa ser to satisfatria quanto a criao original. Aceitai nossas desculpas e esta biblioteca audiovisual que mostra quo maravilhoso costumava ser o nosso mundo.

    E. Wilson, 2002 (O futuro da vida).

  • RESUMO

    Este trabalho afirma a tese da possibilidade desapropriatria por interesse social em sentido amplo ou para fins de reforma agrria dos imveis rurais que apresentem aproveitamento anti-social, considerando-se como tal a depredao da vegetao das reas de preservao permanente e de reserva legal, substitudas pela implantao de culturas e pastagens. Considera-se destrutiva, e no produtiva, a propriedade que ultrapassa o piso mximo da rea agricultvel, por caracterizar essa hiptese simultnea depredao dos espaos territoriais especialmente protegidos para fins ecolgicos, com ferimento a dispositivos constitucionais e infraconstitucionais da ordem econmica e social. Esta tese mostra a evoluo do direito motivada por fatores histricos e sociais, o seu elemento teleolgico que o aproxima das cincias sociais, estimula a interdisciplinaridade e engendra a funo social do direito e da propriedade, para incorporar-lhe a funo ambiental e exigir a converso de cada proprietrio, como membro da sociedade, num artfice da construo social e responsvel, em parte, pela manuteno do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Perquire a ocupao e explorao do Cerrado, do Distrito Federal e do Estado de Gois, levantando conceitos, caractersticas e dados econmicos, histricos, sociolgicos, geogrficos, botnicos e estatsticos das trs realidades, demonstrando o excessivo crescimento dos desmatamentos para fins agrcolas e pecurios, nos ltimos trinta anos do sculo XX e concluindo que essa questo est a exigir maior preocupao do Poder Pblico, da sociedade e da comunidade cientfica, em busca de frmulas que traduzam, na prtica, o verdadeiro desenvolvimento sustentvel, para que as reas estudadas no se transformem em reas de degradao permanente.

    Palavras-chaves: funo social, funo ambiental, propriedade rural, meio ambiente, desenvolvimento sustentvel, desapropriao.

  • ABSTRACT

    This study affirms the thesis of potential expropriation due to social interest in its wide meaning or as means of agrarian reform of rural lands which are of non-social use, considering the damage to the vegetation in permanent preservation areas and of legal reservations which accompanies the implementation of agricultural usage. Also, this research considers destructive, therefore non-productive, any property which exceeds the maximum limit of farmable area, for this hypothesis is understood as a way of depredation of the territorial areas which are especially protected for ecological ends, with breaking of constitutional and infra-constitutional acts of the economic and social regulations. Additionally, in this study the evolution of the law, which has been motivated by historical and social aspects, its teleological element which makes it match the social sciences, is shown. The teleological element stimulates interdiciplinarity and enhances the social function of ownership rights and private property in order to add the environmental function to it and to demand the conversion of each landowner, as a member of society, into individuals of social construction, who are partially responsible for the maintenance of an ecologically balanced environment. Furthermore, the research examines the occupation and exploitation of the Cerrado, the Federal District, and Goias State, and raises some concepts, as well as economic, historic, sociologic, geographic, ecologic and statistical characteristics of these three areas, demonstrating the geometric growth of deforestation related to agriculture and livestock production in the last thirty years of the twentieth century. Finally, this study concludes that this issue demands a bigger commitment of Public Authorities, society, and the scientific community, which should aim to create practical measures that actually stimulate sustainable development, so that the studied areas do not turn into areas of permanent degradation.

    Keywords: Social function, environmental function, rural property, environment, sustainable development, expropiation.

  • LISTA DE FIGURA/TABELAS

    Tabela 1 Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos de ecossistemas da regio dos Cerrados .......................................................................................................................... 143 Figura 1 Distribuio da rea nuclear dos cerrados no Brasil ............................................. 144 Tabela 2 Diferenas na composio botnica entre trs formas de vegetao savnica ...... 145 Tabela 3 Ocupao das reas do cerrado e projeo em milhes de hectares...................... 154 Tabela 4 Caractersticas hidrolgicas do Estado de Gois .................................................. 158 Tabela 5 Dados comparativos dos resultados dos censos 1970 1995-1996 Gois ....... 165 Tabela 6 Imveis com menos e com mais de 100 hectares Gois e Tocantins................ 166 Tabela 7 Utilizao do solo Estado de Gois Meso-Regies........................................ 168 Tabela 8 Cobertura vegetal e uso do solo no Distrito Federal % de rea......................... 173 Tabela 9 Perda de cobertura vegetal no DF no perodo de 1954-1998 ............................... 174

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AASP rea aproveitvel sem projeto

    APPC rea de preservao permanente de cerrado

    APPF rea de preservao permanente de floresta

    ARL rea de reserva legal florestal

    AT rea total

    ATC rea total de cerrado

    ATF rea total de floresta

    CEBRAC Fundao Centro Brasileiro de Referncia e Apoio Cultural

    CNDRS Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentvel

    CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente

    EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis

    IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrria

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    INDA Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrrio

    INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

    JICA Agncia Japonesa de Cooperao e Desenvolvimento Internacional

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    PIN Programa de Integrao Nacional

    POLAMAZNIA Programa de Plos Agropecurios e Agrominerais da Amaznia

    POLOCENTRO Programa de Desenvolvimento do Cerrado

    PONAMA Poltica Nacional do Meio Ambiente

    PROCON Fundao de Proteo e Defesa do Consumidor

    PRODECER Programa de Cooperao Nipo-brasileiro para o Desenvolvimento do Cerrado

    SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia

    SEMA Secretaria do Meio Ambiente

    SEPLAN-GO Secretaria do Planejamento do Estado de Gois

    SISNAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente

  • SUDAM Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia

    SUDECO Superintendncia do Desenvolvimento do Centro Oeste

    SUDENE Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste

    SUDEPE Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca

    SUDESUL Superintendncia do Desenvolvimento do Sul

    URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................14

    CAPTULO I A COMPREENSO DA CONCEPO SOCIAL DO DIREITO

    CONTEMPORNEO ........................................................................................................22

    1 A INFLUNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO NO CAMPO DO

    DIREITO ..................................................................................................................22

    2 O INDIVIDUALISMO JURDICO E SUA INTERFACE COM O

    LIBERALISMO ECONMICO ..............................................................................26

    3 A DECADNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO E DO

    INDIVIDUALISMO JURDICO .............................................................................29

    4 A VISO SOCIAL DO DIREITO NA EUROPA E NA AMRICA LATINA .....31

    4.1 O DIREITO DO TRABALHO.................................................................................37

    4.2 O DIREITO AGRRIO ...........................................................................................47

    4.3 O DIREITO DO CONSUMIDOR............................................................................50

    4.4 O DIREITO AMBIENTAL......................................................................................53

    5 A VISO SOCIAL DO DIREITO NO BRASIL.....................................................56

    5.1 O DIREITO DO TRABALHO.................................................................................59

  • 5.2 O DIREITO AGRRIO ...........................................................................................60

    5.3 O DIREITO DO CONSUMIDOR............................................................................65

    5.4 O DIREITO AMBIENTAL......................................................................................68

    CAPTULO II DA FUNO SOCIAL DA PROPRIEDADE

    PRESERVAO DO MEIO AMBIENTE A PROTEO DA FLORA COMO

    RECURSO AMBIENTAL ................................................................................................73

    1 O ELEMENTO TELEOLGICO COMO INDICADOR DA FUNO SOCIAL DO

    DIREITO .............................................................................................................................73

    2 O DIREITO DE PROPRIEDADE COM FUNO SOCIAL ...............................76

    3 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA EUROPA............83

    4 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NA AMRICA

    LATINA ...................................................................................................................97

    5 A FUNO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO BRASIL ...........105

    5.1 A PROTEO DO MEIO AMBIENTE (FLORA) NO ESTATUTO DA

    TERRA E NO CDIGO FLORESTAL.................................................................114

    5.2 A PROTEO DO MEIO AMBIENTE (FLORA) NA LEI N 6.938/81 E NA

    CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 ................................................................125

    CAPTULO III A UTILIZAO DOS RECURSOS NATURAIS

    DISPONVEIS (DA FLORA) E A PRESERVAO DO MEIO AMBIENTE NA

    REGIO DO CERRADO E NO ESTADO DE GOIS (1970 A 2000).......................133

    1 AS INTERFERNCIAS DO HOMEM NO MEIO AMBIENTE NATURAL .....133

    2 CONCEITUAO E CARACTERIZAO DO CERRADO BRASILEIRO ....140

    2.1 OCUPAO DO CERRADO BRASILEIRO.......................................................145

    2.2 USO DO SOLO COM LAVOURAS E PASTAGENS NO CERRADO

    BRASILEIRO.....................................................................................................................152

    3 INFORMAES E DADOS GERAIS SOBRE O ESTADO DE GOIS (E

    DISTRITO FEDERAL)......................................................................................................155

  • 3.1 USO DO SOLO COM LAVOURAS E PASTAGENS NO CERRADO

    GOIANO ............................................................................................................................159

    3.2 USO DO SOLO, COBERTURA VEGETAL E PERDA DE COBERTURA

    VEGETAL NO DISTRITO FEDERAL.............................................................................171

    4 ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE OS EFEITOS DA EXPLORAO

    AGROPECURIA DO CERRADO..................................................................................174

    CAPTULO IV A DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE RURAL POR

    DEPREDAO DA FLORA NAS REAS DE PRESERVAO

    PERMANENTE E DE RESERVA LEGAL FLORESTAL .........................................183

    1 DISCUSSO SOBRE A REA AGRICULTVEL E A PROPRIEDADE

    PRODUTIVA .........................................................................................................183

    2 NECESSIDADE DE PROTEO DE REAS TERRITORIAIS ESPECIAIS

    DA PROPRIEDADE..............................................................................................196

    3 REAS DE PRESERVAO PERMANENTE...................................................202

    4 REAS DE RESERVA LEGAL FLORESTAL....................................................206

    5 DESAPROPRIAO DA PROPRIEDADE RURAL POR INTERESSE

    SOCIAL..................................................................................................................214

    CONCLUSO...................................................................................................................232

    REFERNCIAS ..............................................................................................................248

  • INTRODUO

    O presente trabalho, tese de doutoramento em Cincias Ambientais realizado na

    Universidade Federal de Gois, busca, a partir de subsdios interdisciplinares sobre a

    vegetao e a ocupao da regio do bioma Cerrado, e de pesquisa terico-doutrinria,

    analisar e demonstrar a possibilidade jurdica de desapropriao por interesse social de

    propriedades rurais onde ocorra depredao das reas de preservao permanente e de reserva

    legal, espaos territoriais especialmente protegidos, cujos proprietrios se recusem a recompor

    as reas destrudas, conforme determinam as leis definidoras das polticas agrcola, ambiental

    e de reforma agrria.

    O problema centra-se no contedo da funo social, ampliada expressamente pela

    Constituio Federal de 1988, para agasalhar inerentemente a funo ecolgica da

    propriedade, inserida entre os direitos e deveres individuais e coletivos fundamentais, entre os

    princpios da ordem econmica e na configurao do art. 186, que, por conta de seu inciso II,

    absorve em seu bojo as normas sociais inseridas no art. 225 sobre a proteo e defesa do meio

    ambiente e permite indagar se, vista da criao da denominada propriedade produtiva, pelo

    art. 185, seria passvel de desapropriao, por interesse social, a propriedade destrutiva das

    reas de preservao permanente e de reserva legal florestal.

    A literatura jurdica tem-se preocupado com a defesa dos recursos naturais

    disponveis da flora em geral, na perspectiva da tutela penal, debulhando os vrios tipos

    penais encontrveis na Seo II, do Captulo V, da lei dos crimes ambientais (n. 9605/98),

    bem como as contravenes penais ainda remanescentes no Cdigo Florestal. Os

  • doutrinadores tambm tm-se dedicado ao estudo das infraes administrativas concernentes

    ao meio ambiente em geral e s florestas e demais formas de vegetao em particular.

    No campo do direito privado, as preocupaes dos especialistas dirigem-se,

    freqentemente, para o estudo da responsabilidade civil, em face do dano ambiental,

    procurando os que se dedicam a tal estudo colocar em relevo o percurso histrico da

    responsabilidade extra-contratual, partindo da tradicional responsabilidade subjetiva, e as

    dificuldades da concretizao da prova por parte do lesado, at alcanar a responsabilidade

    objetiva, eleita na legislao mais recente para situaes mais especficas, como acontece nos

    casos de danos ambientais.

    Os estudos de interesse ambiental tambm se avolumam, sob a perspectiva do

    direito processual civil, no qual os especialistas procuram identificar os instrumentos jurdico-

    processuais existentes e demonstrar como, quando, onde, e por quem so manejveis, com

    vistas concretizao do dever de defesa dos recursos naturais e do meio ambiente. Nessas

    obras, os autores enfrentam necessariamente o estudo da ao civil pblica, da ao popular e

    dedicam, ainda, ateno a outros meios de defesa numericamente menos expressivos, como

    so a ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o mandado de segurana

    coletivo, o mandado de injuno e as aes civis j tradicionais.

    Estudos existem a respeito da funo social e ambiental da propriedade,

    analisando a proteo legal desta e a positivao daquelas, bem como as limitaes da

    propriedade estabelecidas no Cdigo Florestal, inclusive no que pertine s reas de

    preservao permanente, investigando os possveis conflitos de interesses entre o direito de

    propriedade de cunho privado e as reas de preservao caracterizadas pelo interesse pblico,

    a aplicao do princpio da proporcionalidade na soluo de tais conflitos e a identificao das

    ideologias adotadas, bem como suas influncias nas decises judiciais.

    Em obra versando sobre o tema do meio ambiente e da propriedade rural,

    cruzando os aspectos ambiental e agrrio, tambm pode ser encontrada opinio afirmativa no

    sentido de que at mesmo a propriedade considerada produtiva, em face do grau de utilizao

    da terra e do grau de eficincia na sua explorao, nos termos do art. 6 da Lei n. 8.629/93,

    passvel de desapropriao para fins de reforma agrria, se no cumprir a funo ambiental

    delineada no art. 9 do mesmo diploma legal, sem, contudo, distinguir entre propriedade

    produtiva e destrutiva e sem identificar no que consistiria o desatendimento da funo

    ambiental.

    Ainda pode ser encontrada na literatura jurdico ambiental, em comentrios ao

    Cdigo Florestal, opinio que, partindo da premissa de ser, atualmente, a preservao

  • ambiental uma das condies para que a propriedade da terra cumpra a sua funo social,

    conclui poder ser feita a desapropriao por interesse social para evitar a degradao do meio

    ambiente, atribuio incumbida aos entes federados, em geral, na forma da Lei n. 4.132/62, e

    Unio, exclusivamente, para a reforma agrria, opinio que, apesar de caminhar paralela ao

    defendido nesta tese, dela se distingue por anunciar a medida em sentido geral, enquanto aqui

    se analisa a desapropriao na perspectiva da propriedade destrutiva das reas de preservao

    e conservao.

    No que concerne especificamente s reas de preservao permanente, os estudos

    so mais direcionados para a questo do direito de indenizao ou no da cobertura vegetal e

    da terra nua nelas encravadas, diante das disposies do Cdigo Florestal, tendo em vista as

    alegaes de prejuzo, levantadas por alguns proprietrios perante o Poder Judicirio,

    principalmente do Estado de So Paulo, pelo simples fato da existncia de tais reas em suas

    propriedades. H opinies favorveis indenizao e h outras que, diferenciando reas de

    preservao decorrentes da lei e decorrentes de ato administrativo, defendem a indenizao

    somente quando a rea de preservao existir em decorrncia de ato administrativo e excluir

    totalmente a possibilidade de explorao do prdio rstico.

    A tese aqui defendida, no entanto, tem por objeto a anlise das reas de

    preservao permanente criadas por fora de lei, e no por fora de ato administrativo, bem

    como as reas de reserva legal florestal, e seu enfoque tem outra diferena, pois no se discute

    se a existncia delas obriga o Poder Pblico a ressarcir os proprietrios pelo simples fato de

    existirem dentro da propriedade. Ao contrrio, o que se discute a possibilidade de

    desapropriao, por interesse social, das propriedades onde foram devastadas as vegetaes de

    uma e/ou outra rea, para implantao de culturas agrcolas ou pastagens, o que implica

    indenizao por causa da perda da propriedade.

    Tambm no se pode olvidar a existncia de importantes obras na seara do direito

    agrrio e da reforma agrria que, confrontando os dispositivos constitucionais dos arts.185 e

    186, incisos I, II, III e IV, concluem pela possibilidade desapropriatria da propriedade tida

    como produtiva, se a produo e a produtividade tiverem sido alcanadas com ferimento a

    quaisquer dos incisos do art.186, uma vez que admitir tal ilicitude importaria passar por cima

    de toda a ordem social trabalhista e de toda a ordem social ambiental prevista na prpria Carta

    Poltica. Tratando de todas as funes da propriedade sob a perspectiva do jurdico, o objeto

    dessas obras distingue-se do eleito nesta tese, delimitada que est questo relacionada com o

    ferimento aos direitos ambientais coletivos da sociedade pela depredao de uma das espcies

    de recursos ambientais (a flora) e, quanto ao espao geogrfico do Cerrado e ao tempo de

  • 1970 a 2000, diferindo ainda daquelas obras por incorporar aos estudos outros aspectos para

    alm do jurdico envolventes da questo agro-ambiental.

    O tema mostra-se interessante e atual, pois seu estudo implica colocar,

    necessariamente, de um lado, a finitude dos recursos ambientais da flora e, por conseqncia,

    da fauna da regio do Cerrado, inclusive no Estado de Gois e Distrito Federal, e, de outro

    lado, o crescimento geomtrico do desmatamento de novas reas rurais para implantao de

    projetos agrrios nos ltimos trinta anos, atingindo, inclusive, as reas de preservao e

    conservao. Para que se avaliem o interesse e a atualidade da matria sob exame, basta dizer

    que, de 1970 a 2000, os desmatamentos na regio do Cerrado em geral, no Estado de Gois e

    no Distrito Federal, para esse fim, superaram, e muito, a rea desmatada em todos os tempos,

    desde o descobrimento do Brasil1.

    H de considerar-se ainda que, se no houver conservao e preservao nas

    propriedades privadas, que representam mais de 90% do territrio rural brasileiro cadastrado,

    a conservao confinada puramente nas Unidades de Conservao no prosperar, pois,

    notoriamente, so insuficientes em quantidade e em reas para alcanar esse desiderato. Alm

    do mais, necessrio relembrar que todos so responsveis pelo meio ambiente

    ecologicamente equilibrado e, nessa perspectiva, tanto o proprietrio como o posseiro ou o

    assentado devem, como membros da sociedade, dar a respectiva quota de contribuio

    proporcional, pois propriedade cabe intrinsecamente uma funo scio-ambiental. Destarte,

    sob a tica da conservao como um todo, jamais se poder desprezar a manuteno das reas

    de preservao permanente e de reserva legal florestal incrustadas nas propriedades privadas.

    Tido politicamente como fronteira agrcola, o Cerrado tem auxiliado a equilibrar a

    balana de pagamentos do Pas, ficando, no entanto, com um saldo ecolgico deficitrio, pois,

    desde a dcada de setenta, recebe significativos impactos ambientais, incentivados, inclusive

    por programas do governo (POLOCENTRO, POLAMAZNIA, PRODECER, etc), pelo

    progresso da cincia e da tecnologia e obviamente pela capacidade de investimento dos

    empresrios rurais em mquinas, implementos e insumos, que resultam na contnua e

    crescente abertura de novas reas, geralmente para monoculturas, como pastagens artificiais,

    soja, cana-de-acar, milho, etc, com risco de reduo da diversidade ou extino de espcies

    da flora e da fauna.2

    1 Quadros Demonstrativos da ocupao do solo com a agricultura e a pecuria na regio do Cerrado em geral, no Estado de Gois e no Distrito Federal, esto inseridos no Captulo III. 2 Quadro estimativo de nmero de rvores e arbustos existentes por hectare no Cerrado e quantidade de espcies vegetais e animais j identificadas no Bioma Cerrado esto inseridos no Captulo III.

  • O tema reveste-se de importncia para as Cincias Ambientais em geral e para o

    Direito Agrrio e Ambiental em particular, por ser a desapropriao um poderoso instrumento

    de proteo do equilbrio do meio ambiente, mediante a persecuo do atendimento da funo

    social e, por extenso, da imanente funo ecolgica da propriedade. Com efeito, pela

    desapropriao, substitui-se o proprietrio inadimplente contumaz, por outro ou outros

    agricultores que queiram dar terra a sua verdadeira funo social, que no descarta a

    ambiental. Se a desapropriao for intentada pelos outros entes federativos que no a Unio,

    ou por esta prpria, alicerada na Lei n. 4.132/62, ampliar-se- o leque de alternativas viveis

    para a recuperao ou restaurao da rea degradada.

    Em verdade, as sanes estabelecidas na lei de poltica nacional do meio ambiente

    (Lei n. 6.938/81) e no Cdigo Florestal (Lei n. 4.771/65) tm-se mostrado ineficazes, pois a

    realidade evidencia que, desde as seculares Ordenaes Filipinas, de 1603, e do Regimento do

    Pau Brasil, de 12.12.1605, historicamente o pblico-alvo duvida da seriedade de tais

    instrumentos legais e, assim, persiste promovendo a destruio das reas de preservao

    permanente e de reserva florestal legal, desacreditando a legislao protetora, como est

    acontecendo mais recentemente com as frustradas tentativas de recomposio florestal

    estabelecidas pela lei de poltica agrcola (Lei n. 8.171/91), enfraquecidas, do ponto de vista

    ambiental, pelas alternativas mitigadoras e compensatrias da Medida Provisria n. 2.166-

    67/2000, que, certamente, restaro inobservadas.

    A relevncia do tema tambm se apresenta em face de o rgo incumbido da

    poltica de Reforma Agrria no instruir processos de desapropriao de imveis rurais que

    desatendem a funo ambiental da propriedade, interpretando restritivamente a exceo

    contida no art.185 da Constituio Federal como uma vedao absoluta. Parece recomendvel

    que se d o contrrio, at mesmo como forma de provocar o pronunciamento direto e

    especfico em processo de desapropriao pelos Tribunais Superiores da Nao, os quais

    provavelmente no encontraro bice ao intento desapropriatrio. certo que a autarquia

    federal no computa como rea produtiva aquela encravada nas faixas protegidas, porm esse

    procedimento importa em tornar relevante o aspecto simplesmente econmico da propriedade

    em detrimento da proteo devida ao meio ambiente, o que pode funcionar como estmulo

    aos infratores para prosseguirem devastando as florestas e demais formas de vegetao das

    reas de preservao permanente e reserva legal florestal.

    A metodologia utilizada consistiu no levantamento de dados junto ao Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica, em Gois, Superintendncia Estadual do Instituto

    Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis, Superintendncia do

  • Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria, Agncia Ambiental Goiana e

    Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento do Estado de Gois, entrevistas com tcnicos

    em agronomia, arquitetura, veterinria, biologia, engenharia florestal, sociologia e consulta

    doutrina especializada, por meio de livros, revistas e peridicos, para apreenso de conceitos,

    informaes e constataes que enriquecessem o trabalho e pudessem, enfim, embasar as

    concluses.

    Utilizou-se o mtodo histrico para levantamento da ocupao da regio do

    Cerrado e sua explorao econmica; o mtodo estatstico para registro e sistematizao de

    dados colhidos nos rgos pblicos; o mtodo comparativo para confrontar as realidades da

    menor rea (Distrito Federal), a maior rea (a Regio do Cerrado) e a que mais de perto

    interessa tese, o Estado de Gois, e, ainda, o mtodo dedutivo e o indutivo para embasar as

    concluses finais sobre a propriedade destrutiva, no contexto da funo scio-ambiental da

    propriedade e sua importncia para a sociedade, valorizando a integrao e a harmonizao

    metodolgica.

    Justifica-se, pois, a limitao do tema no s quanto ao contedo dos princpios e

    regras sobre a ordem econmica e social agro-ambiental constitucionais e infra-

    constitucionais, aplicveis s reas de preservao e conservao dos arts. 2 e 16 do Cdigo

    Florestal, dado que se entrecruzam a funo social e a proteo do meio ambiente, como

    tambm quanto ao tempo (perodo de 1970 a 2000) e ao espao geogrfico da regio do

    Cerrado, com nfase para o Estado de Gois (embora tenham sido coletados dados sobre o

    Cerrado em geral e o territrio do Distrito Federal), como forma de ampliar os elementos da

    pesquisa e aumentar as oportunidades de comparao entre as trs realidades ecolgicas e

    econmicas.

    Vale ressaltar, no entanto, como assinalado no Captulo III, que o Cerrado ocupa

    22% do territrio brasileiro (2.000.000 km), ou 200.000.000 de hectares, e que as normas de

    regncia para as reas de preservao permanente so as mesmas para todo o Brasil.

    Entrementes, no que concerne s reas de reserva legal florestal, uma vez obedecidos aos

    percentuais estabelecidos para as propriedades da Amaznia Legal (florestas, cerrado e

    campo) e para as propriedades situadas fora dela (restante do Pas), sendo as premissas as

    mesmas (obrigatoriedade da preservao e conservao), tem-se que as concluses a que se

    chegou sobre a propriedade destrutiva so vlidas para todo o territrio brasileiro.

  • A motivao para a elaborao da tese deveu-se a dois fatores: primeiro, retomar

    os trabalhos da Dissertao de Mestrado3, concluda na dcada de noventa, envolvendo

    pesquisa de cunho terico e prtico, objetivando aferir o cumprimento da funo social da

    propriedade rural nos Estados de Gois e Tocantins, no perodo de 1946 a 1989, marco

    inicial do condicionamento do uso da propriedade ao bem-estar social, pela Constituio, e

    termo final da execuo do Plano Nacional de Reforma Agrria da Nova Repblica4

    passando pela novel Constituio de 1988; e segundo, a constatao por viagens5 pelos

    Estados de So Paulo, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso, Rondnia, Tocantins e Maranho,

    cujas paisagens mostram, sem maior esforo, a destruio das reas de preservao

    permanente e de reserva legal das propriedades rurais, substitudas por pastagens artificiais e,

    mais recentemente, pela cultura da soja, dentre outros produtos.

    E, como se sabe, seja no Cerrado, na Amaznia, nas Araucrias, na Mata

    Atlntica, no Pantanal, na Zona Costeira ou em qualquer ponto do territrio nacional, o

    proprietrio no tem o direito de explorar a propriedade com ferimento aos arts. 5, 170, 186 e

    225 da Constituio Federal, principalmente no que concerne s reas de preservao

    permanente ou de reserva legal florestal, pois sempre que isso acontecer estar desatendida a

    funo scio-ambiental da propriedade e, nesse passo, estar-se- inarredavelmente diante da

    propriedade considerada destrutiva.

    O desenvolvimento da tese foi dividido em quatro Captulos: no primeiro,

    procurou-se demonstrar a evoluo da concepo individualista do direito para a concepo

    social contempornea, as influncias do liberalismo no sistema jurdico, destacando o

    individualismo como brao de sustentao daquele, a reao contra esse estado ideolgico, a

    partir de manifestaes dos trabalhadores, da sociedade, das cincias sociais, da doutrina

    jurdica, e, enfim, o declnio do liberalismo econmico e do individualismo jurdico, cedendo

    passo s conquistas havidas no mbito trabalhista, agrarista, consumerista e ambientalista.

    No segundo Captulo, buscou-se apontar a simetria da evoluo dos direitos

    sociais obrigacionais com idntica manifestao ocorrida nos direitos reais, basicamente a

    propriedade, e, muito especialmente, a propriedade rural, da qual se exigiu o cumprimento da

    funo social, conceito que evoluiu para admitir intrinsecamente nela alojada a funo

    ecolgica da propriedade. Alinhou-se a evoluo do conceito da propriedade na Europa e na 3 Imvel Rural: o cumprimento da funo social nos Estados de Gois e Tocantins 1946-1989. Goinia: Universidade Federal de Gois, 1994, 279 pginas. 4 Executado de 1985 a 1989. 5 Realizadas no exerccio das funes de Vice-Executor e Executor, respectivamente, dos Projetos Fundirios Gurupi e Araguana; Chefe da Diviso de Recursos Fundirios e Superintendente Adjunto do INCRA, nos Estados de Gois e Tocantins, de 1974 a 1994.

  • Amrica Latina, consignando a sua disciplina e sua funo nas Constituies de alguns pases

    europeus e da maioria dos latino-americanos, opinies doutrinrias, bem como a influncia da

    funo social e a proteo do meio ambiente na legislao agro-florestal, ambiental e na

    Constituio brasileira de 1988.

    O Captulo terceiro voltou-se para a realidade social, econmica e ecolgica

    encontrada no Bioma Cerrado e, assim, procurou-se assinalar a longevidade do aparecimento

    das formas de vida na Terra, a influncia trazida pelo surgimento da cobertura vegetal no

    planeta, as interferncias do homem no ambiente natural, a conceituao e a caracterizao do

    Cerrado brasileiro, sua ocupao e o uso das terras com culturas e pastagens, informaes

    gerais sobre o Estado de Gois e o uso dos imveis rurais com a agropecuria, bem como do

    Distrito Federal, encerrando com algumas consideraes sobre a explorao do Cerrado e

    sugestes para a adequao do uso das terras ao pretendido desenvolvimento sustentvel.

    Por fim, o Captulo quarto foi subdivido em cinco sees: na primeira discutiram-

    se as questes sobre a rea agricultvel (economicamente aproveitvel) do prdio rstico e a

    concernente denominada propriedade produtiva, instituda pela Constituio Federal de

    1988; na segunda, esclareceu-se o porqu da necessidade de proteo das reas territoriais

    especiais da propriedade rural; na terceira e na quarta, analisaram-se os espaos ecolgicos

    formados pelas reas de preservao permanente e de reserva legal; e ao cabo, na quinta

    seo, sustentou-se a tese da desapropriao da propriedade rural por interesse social, com

    pagamento da terra em dinheiro, por qualquer dos entes federados, ou em ttulos da dvida

    pblica, pela Unio, quando a finalidade relacionar-se com a reforma agrria.

  • I A COMPREENSO DA CONCEPO SOCIAL DO DIREITO

    1. A INFLUNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO NO CAMPO DO DIREITO

    De acordo com Orlando Gomes (1971, p.16), o direito fenmeno social, no

    sendo possvel estud-lo abstraindo-o da sociedade. Castanheira Neves (1967, p.16)

    acrescenta que o direito essencialmente histrico e Elas Daz (1976, p.54) arremata que a

    concepo totalizadora da realidade jurdica exige a complementaridade das dimenses

    cientfico-normativa, sociolgica e filosfica, razo por que no se entende plenamente o

    mundo jurdico se o sistema normativo (cincia do direito) se isola da realidade social em

    que nasce e a que se aplica (sociologia jurdica) e do sistema de legitimidade que o inspira, o

    qual deve sempre possibilitar sua crtica racional (filosofia do direito).

    A complexidade das relaes sociais cada vez maiores no mundo contemporneo

    aponta para a evidncia dessas afirmaes, no sendo razovel que se admita nos dias

    presentes o isolamento de qualquer rea do conhecimento, principalmente do direito enquanto

    ramo do conhecimento formulador de regras6 de conduta que objetivam trazer equilbrio e

    segurana ao corpo social, sabido de antemo que muitas dessas regras tm a sua razo de ser

    e embasamento fulcradas nas hostes do conhecimento de outras reas afins ou no ao saber

    jurdico7.

    Ao contrrio, portanto, de fazer-se no isolamento, o estudo do direito deve ser

    6 Essa uma das acepes do direito. Todavia para alm da concepo do direito como norma, como algo pr-estabelecido, apresenta-se a idia que o concebe como uma prtica social, um processo permanente de construo, sob a influncia de consideraes tico-jurdicas (DWORKIN, 1977; VIOLA, 1990, AMARAL NETO, 2000, p.4). 7 Reale (1977, p.22) observa que o direito no s produto do fato econmico, resultando tambm de outros elementos de natureza religiosa, tica, demogrfica, geogrfica, etc, convertendo em jurdico tudo aquilo que toca, para dar-lhe condies de realizabilidade garantida, em harmonia com os demais valores sociais.

  • construdo tendo presente o conjunto maior no qual esto inseridas as cincias sociais, sem

    olvidar que no raro o seu estudo exige habilidades hauridas na seara de outros campos do

    conhecimento, como se d presentemente com o estudo interdisciplinar das cincias

    ambientais. Nesse contexto so transcendentes os papis da filosofia, da economia, da

    histria, da sociologia, da antropologia, e, ainda, da psicologia, da biologia, da agronomia, da

    engenharia florestal, da qumica e outras reas do saber, que fornecem ao direito, como a

    outros campos do conhecimento, o instrumental indispensvel sua compreenso no curso

    dos tempos.

    A complexidade das relaes humanas e tambm dos fenmenos da natureza

    exigem, na atualidade, e exigiro muito mais ainda num futuro prximo que os profissionais

    disciplinares, por convico ou por obrigao curricular sedimentada na longevidade da

    prtica do magistrio, ultrapassem as barreiras de sua disciplina, at mesmo para melhor

    conhecerem e aplicarem a sua prpria. Nesse sentido, no pode um profissional, qualquer que

    seja a sua rea de habilitao ou competncia, ignorar, por exemplo, os fatos econmicos e,

    em particular, a atividade econmica, cujo desenvolvimento bom, ruim ou pssimo interfere

    direta ou indiretamente na vida de todos e de cada um8.

    Assim sendo, fcil observar que a atividade econmica, enquanto fato humano

    essencial sobrevivncia de todas as pessoas com a dignidade desejvel pela sociedade, pelo

    Estado e pelo prprio indivduo singularmente considerado, pode ser tomada como objeto

    material de estudo dos vrios ramos do saber (v.g. da economia, do direito, da filosofia, da

    sociologia, da histria, da geografia) e se pode notar tambm que as escolas, doutrinas,

    teorias, instituies formuladas num campo de conhecimento podem corresponder a outras

    noutro campo, complementando-se ou, quando nada, auxiliando o entendimento da realidade

    econmica e seus efeitos no mbito das cincias sociais e fora delas.

    Esse entrelaamento das reas do conhecimento - e, em especial, das cincias

    sociais - permite verificar que, ao ser construda a doutrina conhecida por liberalismo

    econmico em substituio ao mercantilismo exacerbado do sculo XVIII, essa construo

    transformadora do status quo exigia para instrumentalizao da ideologia preconizada que se

    formulasse o seu conseqente jurdico para consecuo das diretrizes formuladas e

    desenvoltura do comrcio jurdico segundo a ideologia estabelecida, o que resultou na criao

    8 A interferncia da atividade econmica sempre foi notria e significativa em todos os setores da vida humana e particularmente, como se ver adiante, sobre o meio ambiente natural, nos dias atuais. Esse fato motivo de preocupaes e estudos dos profissionais das mais variadas reas das cincias e, certamente, justificam as pesquisas interdisciplinares sob as perspectivas econmica e ecolgica.

  • do individualismo jurdico como brao jurdico do liberalismo econmico.

    O mercantilismo dos sculos XVI-XVIII possibilitou a transio da economia

    regional para a economia nacional (nas metrpoles e no nas colnias), mas pontificou-se

    tambm pelo abuso de regulamentao sobre as atividades econmicas. Efetivamente,

    conforme Hugon (1970, p.89), ao emprestar papel importante s exportaes, a poltica

    mercantilista negligenciava as polticas de desenvolvimento da agricultura, indstria e

    comrcio internos, principalmente a agricultura, procurando baixar os preos dos gneros

    alimentcios a fim de obter, por meio de salrios irrisrios, preos de custo industrial mais

    favorveis exportao.

    Contra essa poltica (a exacerbao regulamentar) rebelam-se os fisiocratas e os

    liberais clssicos franceses e ingleses, liderados por Quesnay e Smith, fundadores dessas

    escolas e responsveis pelo reconhecimento da economia como cincia (ROSSETI, 1977,

    p.103). Entretanto, ao reagirem contra o excesso de regulamento do mercantilismo, essas

    escolas liberais tornaram realidade um outro excesso caracterizado pela regulamentao

    nenhuma das atividades econmicas, consubstanciada na ideologia do liberalismo econmico.

    A escola fisiocrata capitaneada por Quesnay (mdico da Corte francesa) traduz o

    liberalismo econmico sob a viso dos proprietrios de terras, com pretenses inclusive de ser

    o padro de organizao de toda a sociedade. Entendem os fisiocratas, consoante Hugon

    (1970, p.94), que os fenmenos econmicos se manifestam segundo uma ordem natural e

    providencial, livre e independentemente de qualquer coao exterior, de acordo com uma

    ordem imposta pela natureza e regida por leis naturais, devendo-se conhec-las e deix-las

    atuar, pois sendo tambm expresso da vontade de Deus, liga-se liberdade, que a base do

    progresso econmico e social. Assim, o bom preo deve ser fixado pela livre concorrncia,

    independentemente at de preos mnimos, resultando da boa remunerao o aumento da

    produo lquida e o progresso da sociedade.

    O fisiocratismo, que se revela bastante apegado ao mtodo dedutivo e pouco

    diligente em relao ao fato sociolgico e histrico, resumido nesta passagem de Dupont de

    Nemours, transcrita em Histria das Doutrinas Econmicas:

    Quanto mais considervel for o produto lquido e mais vantagens houver em ser algum proprietrio de terras, tanto maior o nmero de quantos dedicam despesas e trabalho para a criao, aquisio e melhoria das propriedades fundirias; quanto maior o nmero daqueles que dedicam despesas e trabalhos para criar, adquirir e melhorar as propriedades fundirias, tanto mais se estende e se aperfeioa a cultura; quanto mais se estender e aperfeioar a cultura, tanto maior ser o nmero de produtos anualmente consumveis; quanto mais se multiplicarem os produtos consumveis, tanto mais aptos estaro os homens a satisfazer seus desejos e maior,

  • portanto, a sua felicidade. (HUGON, 1970, p.99).

    Por sua vez, os liberais clssicos reagem contra os postulados da cartilha

    mercantilista e tambm contra a noo exageradamente agrria dos fisiocratas. So contrrios

    ao mercantilismo por serem avessos regulamentao da economia e divergem dos fisiocratas

    ao colocarem o problema econmico sob uma perspectiva mais ampla e laicizada. A questo

    central da economia, com efeito, no est para os liberais clssicos exclusivamente na

    produo agrcola, mas sim no trabalho, entendido esse como trabalho auxiliado pelo capital,

    que proporciona a atividade produtiva. Preconizando a eficcia e a diviso do trabalho, esta

    como instrumento de solidariedade entre os homens, economias e naes, afirma Adam Smith

    que a fonte da riqueza no est no ouro ou na terra, mas no trabalho.

    A doutrina do liberalismo econmico parte da concepo ideolgica segundo a

    qual, se os mecanismos do mercado operam livremente, o homem se encontra em posio

    mais favorvel para realizar o bem da humanidade. Realizando o bem individual, realiza o

    bem social, porque se confundem um e outro interesse. Fundamentalmente, dizem os liberais:

    uma vez que o interesse individual coincide com o interesse geral, deve-se na prtica deixar

    plena liberdade de ao aos interesses privados, no se justificando a interveno do Estado,

    salvo para promover a paz, a arrecadao de impostos mdicos e uma tolervel

    administrao da justia (HUGON, 1970, p.111 e 113).

    As repercusses e influncias do liberalismo econmico no mundo foram intensas

    e durveis, delas no escapando o novo mundo e, evidentemente, a colnia brasileira, at

    porque, sem autonomia poltica, as colnias eram levadas a reboque de suas metrpoles.

    Contextualizadas no tempo, observa-se, sem dificuldade, que as nascentes economias de toda

    a Amrica foram concebidas sob os holofotes do liberalismo econmico. No Brasil colnia,

    no Imprio e na Repblica, a ideologia se fez presente e tem sido alvo de reaes em todos os

    tempos. Reflete-se inicialmente no pensamento de Jos da Silva Lisboa, o Visconde de

    Cairu9, que, nomeado professor da primeira cadeira de Economia Poltica no pas, em 1808,

    expe os seus princpios e as suas conseqncias, dizendo: o homem livre e responsvel pela

    sua atividade econmica est nas melhores condies de conduzir essa atividade de forma

    mais consentnea com os seus interesses, constituindo a soma dos interesses individuais

    (HUGON, 1970, p. 150).

    9 Cairu viveu at 1835. Seu pensamento, apesar de liberal, dirigido para a construo de uma economia nacional e no cosmopolita. nacionalista, comercialista e industrialista, entendendo que o desenvolvimento desta antes que uma questo econmica, acima de tudo uma questo poltica, condicionando a prosperidade da agricultura e favorecendo qualitativa e quantitativamente o desenvolvimento demogrfico e a consolidao do progresso e da independncia nacional.

  • Nascido o Estado brasileiro ao tempo em que o liberalismo econmico se

    apresentava como a tbua de salvao dos povos, natural que essa doutrina se refletisse na

    formulao do arcabouo jurdico nacional, at porque no seria fcil a um Pas recm-

    admitido no concerto das naes apresentar-se com uma roupagem diferente daquela

    identificada praticamente em todos os pares institucionais. No parece razovel, nas

    circunstncias de tempo e lugar, pretender-se outra coisa. Desse modo, o liberalismo

    influenciou a construo do modelo jurdico nacional, vinculando o seu eixo aos padres

    dessa ideologia, vale dizer, chancelando a autonomia privada e seus consectrios no mbito

    do direito das obrigaes e das coisas: autonomia da vontade para a formulao de contratos,

    propriedade privada qualificada como poder absoluto decorrente da liberdade de usar, gozar e

    dispor das coisas da maneira que melhor aprouver ao titular, inclusive abstendo-se de us-la e

    dar-lhe utilidade prtica, enfim movimentar o comrcio jurdico sem a intromisso do Poder

    Pblico.

    2. O INDIVIDUALISMO JURDICO E SUA INTERFACE COM O LIBERALISMO ECONMICO

    Assim como se concorda em que o vocbulo direito possui semntica plurivalente,

    tambm no se discrepa quanto ao conceito polissmico de liberdade, que pode ser

    apreendido sob variados pontos de vista. No que concerne liberdade jurdica, parece de bom

    tom o conceito de Garcia Amigo (1979, p.207), segundo o qual ela se apresenta como a

    possibilidade de a pessoa atuar com transcendncia jurdica no mundo do comrcio jurdico.

    A importncia da liberdade jurdica apresenta-se como relevante no relacionamento das

    pessoas em todos os tempos, mas inegvel que no nascedouro do individualismo ela se

    convertera na maior pilastra do arcabouo formulado exatamente sob a tica da no

    interveno estatal nas relaes privadas.

    Como expe Nbrega (1965, p.57), sendo o direito, na concepo do

    individualismo, o meio de assegurar o pleno desenvolvimento da pessoa humana e tendo por

    condio sine qua a liberdade, as normas jurdicas devem ter por funo essencial a

    salvaguarda da livre atividade humana e devem intervir o menos possvel no exerccio dessa

    atividade. As normas jurdicas devem representar uma garantia liberdade do indivduo, que

    se situa em posio de primazia em relao sociedade e se constitui, sem dvida, em fonte e

    razo de ser de toda a construo jurdica.

  • Prossegue o referido autor (1965, p.57) admitindo que o liberalismo e o

    humanismo so duas das vrias subdivises do individualismo e que o segundo se preocupa

    com os valores ticos e com a proclamao da dignidade da pessoa humana como valor

    supremo, na medida em que considera o homem como pessoa (no como indivduo) como o

    centro de tudo, pois todos os processos culturais lhe esto subordinados e tm por misso

    propiciar-lhe o desenvolvimento integral da personalidade. Enfim, a pessoa prima a tudo e

    o denominador comum de todos os valores.

    A seu turno, leciona Walline (1949, p.14 passim) que filosoficamente o

    individualismo explica os fenmenos histricos e sociais como decorrncia da atividade

    consciente e interessada dos indivduos, ao contrrio do materialismo histrico, que v a

    explicao dos fenmenos sociais nas correntes de massa de origem puramente interessada e

    material; politicamente reage ao estatismo, ao intervencionismo, ao conformismo e ao

    tradicionalismo; economicamente confunde-se com o liberalismo na defesa da liberdade plena

    do indivduo no mundo dos negcios e a mnima interveno do Estado apenas para assegurar

    a liberdade de trabalho, de comrcio e o regime da propriedade privada; e juridicamente

    afirma que as normas jurdicas so obra dos indivduos e no da sociedade, ou, mais

    exatamente, um sistema jurdico que resulta da atividade individual.

    Conforme o mesmo autor (1949, p.18 e 27), a sociedade para o individualismo

    no um fim em si mesmo, nem o instrumento de um fim superior aos indivduos que a

    compem, pois as instituies sociais devem ter por fim a felicidade e a perfeio dos

    indivduos, o que significa uma tendncia a colocar as instituies polticas, jurdicas e

    sociais de um pas ao servio dos interesses dos indivduos que compem a populao, de

    preferncia aos interesses coletivos, constituindo, portanto um sistema em que a legislao

    sofre influncia do individualismo poltico e consagra as instituies mais favorveis ao

    indivduo10.

    Os postulados do individualismo (liberdade de pensamento, de crena, e

    contratual) colocam entre as suas instituies bsicas a propriedade com carter sacramental e

    absoluto, em decorrncia da natural liberdade conferida ao indivduo de usar, gozar e dispor

    de suas coisas como lhe aprouver e, como consectrio do direito de propriedade em

    homenagem liberdade, o reconhecimento do princpio da autonomia privada. Este se

    configura no poder conferido aos particulares pelo ordenamento jurdico, que lhes reserva um

    10 Conforme Gusmo (1965, p.216), na doutrina do individualismo, o Estado no poderia estabelecer leis privando os homens de suas liberdades, por ser o seu objetivo fundamental proteger as liberdades individuais, sendo tirnica a autoridade que, em nome do Estado, tentasse priv-los desse bem.

  • espao dentro do qual podem estabelecer negcios jurdicos segundo a manifestao

    autnoma de sua vontade.

    Essa maneira de encarar o mundo e de fazer correr o comrcio jurdico

    impulsionado pelo princpio da liberdade, colocando o indivduo em posio de destaque em

    relao sociedade e ao prprio Estado, so introduzidas nos documentos polticos do final o

    sculo XVIII, como se pode verificar no Bill of Rights de Virgnia (EUA), de 12 de junho de

    1776, conforme seu primeiro pargrafo11, e ainda na Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado aprovada pela Assemblia Nacional da Frana em 1789, notadamente o art.212. Em

    ambos foram colocadas a propriedade ao lado da liberdade e da segurana como direitos

    fundamentais inerentes a toda a pessoa, ou direitos naturais e imprescritveis do homem.

    Com essas linhas mestras foram formuladas as bases do individualismo jurdico e

    sua consagrao em regras do direito positivo infra-constitucional se consumou com a

    aprovao dos Cdigos civis da Europa e da Amrica, a partir do Cdigo napolenico de

    180413. O Brasil aderiu ao movimento da codificao em 1916, depois de quase vinte anos de

    discusso do projeto respectivo no Congresso Nacional. Referidos cdigos, portanto,

    repercutiram a exacerbao de direitos sob a tica egostica do indivduo, o que gerou, com o

    passar dos anos, incontveis reaes na doutrina jurdica e no campo das cincias sociais,

    ambas pleiteando uma maior socializao do direito.

    3. A DECADNCIA DO LIBERALISMO ECONMICO E DO INDIVIDUALISMO JURDICO

    11 That all men are by nature equally free and independent, and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety. 12 Le but de toute asssociation politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de lhomme. Ces droits sont la libert, la propriet, la sret et la rsistance lopression. 13 Inspirado na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, o Cdigo civil francs foi o primeiro da idade moderna; seguiram-se, entre outros, o italiano de 1865, o alemo de 1900, e o brasileiro de 1916. O art.544 do Cdigo francs admitiu a propriedade como o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que no se faa uso proibido pelas leis ou regulamentos. E o art.524 do brasileiro assegurou ao proprietrio o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reav-los do poder de quem quer que injustamente os possua. O brasileiro regulamentou a constituio liberal de 1891, que garantia o direito de propriedade em toda a sua plenitude.

  • Contra o deixar passar, deixar fazer, o mundo caminha por si mesmo, chaves

    do liberalismo econmico, surgiram fortes reaes patrocinadas pelos socialistas e pelos

    intervencionistas no-socialistas, ao longo do sculo XIX. Os socialistas, idelogos da

    abolio da propriedade privada, pedra de toque do sistema capitalista-liberal, contra ela

    investem ferozmente, defendendo a tese de que nela se radicam todas as mazelas da

    sociedade. A seu turno, os intervencionistas no-socialistas defendem a instituio de

    restries ao direito de propriedade sem, contudo, aniquil-lo, ou seja, propugnam que o

    Estado (ou a Nao, ou os grupos representantes de interesses gerais ou coletivos) formulem

    condicionamentos a serem cumpridos pelo proprietrio, dando ao direito privado uma

    amplitude que contemple benefcios para a sociedade.14 Em suma, os socialistas defendem a

    abolio da propriedade, e os no socialistas querem a interveno na propriedade (restries

    liberdade econmica, sem extinguir o direito proprietrio).

    Sob a gide do direito tambm foram profundas as reaes. Ora, tinha-se como

    evidente que o liberalismo se fortaleceu sombra da revoluo industrial, com o multiplicar

    das invenes ocorridas principalmente a partir da segunda metade do sculo XVIII, que

    geraram ipso facto o aumento da produo e do consumo. Mas, ao desenvolvimento da

    produtividade com vantagens para uma das partes, a detentora dos meios de produo, no

    correspondiam proporcionalmente os ganhos sociais dos trabalhadores, eis que as relaes de

    trabalho se espelhavam nas bases jurdicas do individualismo, que patrocinava e camuflava os

    abusos contra os direitos dos dbeis econmicos.

    Obviamente, os trabalhadores singularmente considerados na condio de dbeis

    econmicos no teriam como contratar em igualdade de condies com os industriais, muito

    melhor posicionados tcnica e economicamente na sociedade oitocentista. Essa desigualdade

    econmica teria de ser igualada pelo direito, que se omitia sob as vestes do individualismo.

    Numa viso interdisciplinar econmica e jurdica, pode-se afirmar que, se o liberalismo

    simbolizava a imagem da eficincia em matria produtiva de riqueza, o individualismo

    representava a negligncia e a ineficincia na luta contra o egosmo prprio do ser humano,

    descumprindo, enquanto direito, a sua misso social.

    Filosoficamente falando, o direito se distanciava das tendncias sociais que j

    comeavam a se esboar. Sociologicamente, posicionava-se na contramo da realidade viva

    da sociedade industrial. Historicamente, escamoteava o seu papel de instrumento realizador da 14 Note-se que, entre os prprios economistas clssicos, John Stuart Mill, j em 1806, preocupava-se com a justia social; David Ricardo, em 1820, desloca o ncleo central do objeto da Cincia Econmica para a repartio da riqueza, e Marshal, em 1820, v a atividade econmica individual e social consagrada a utilizar e a atingir as condies materiais do bem-estar. (Cf. HUGON, 1970, pp.59, 61 e 137).

  • justia. Do ponto de vista moral, deixavam os juristas de perceber que a desigualdade

    provocava efeitos contrrios aos que o direito deveria legitimamente agasalhar ou fazer

    acontecer. Enfim, o individualismo contentava-se com o princpio da igualdade formal. Todos

    so iguais perante a lei. Mas (todos ou muitos dentre eles) so muito desiguais no mundo dos

    contratos, onde a realidade se pe. E a no mundo real dos atos e fatos que o direito teria de

    intervir para nivelar os economicamente desiguais no sentido de amparar socialmente o dbil

    econmico com a compensao da igualdade jurdica.

    Tudo estava a indicar a necessidade de interveno na liberdade econmica e na

    autonomia privada contratual. Assim, no campo da economia, o Estado promoveu

    intervenes a partir da formulao de uma ordem pblica econmica, ajustando a liberdade

    de iniciativa s necessidades sentidas em cada lugar, em relao s especificidades de cada

    povo. Sem monopolizar as atividades econmicas, busca-se, entretanto, pela via jurdica,

    estabelecer mecanismos regedores da ordem econmica, procurando controlar o laissez faire,

    o laissez passer, le monde va de lui mme.

    O princpio da liberdade econmica, to importante quanto a liberdade no mundo

    social teria de deixar de ser visto assistematicamente no conjunto dos valores. Sem dvida,

    seria necessrio que a liberdade passasse a ser apreendida, apreciada, seno at mesmo

    confrontada com os outros valores expressos nas virtudes encontradas na justia, na ordem, na

    segurana, no bem comum, enfim que a liberdade se libertasse para ser resgatada e

    praticada sob o enfoque tambm dos contornos sociais, para produzir uma sociedade de todos,

    e para todos, e no somente para o detentor da liberdade econmica.

    A liberdade, enfim, teria de receber a concorrncia de outro princpio, o da

    igualdade material, de maneira a forrar as relaes sociais de um maior contedo de justia no

    mundo das flagrantes desigualdades sociais. Nesse sentido, verificou-se a sada do Estado de

    sua cmoda posio de mero espectador das relaes econmicas e protagonista das aes de

    segurana, de defesa da liberdade e da propriedade, para transformar-se num Estado menos

    abstencionista e mais vinculador da ordem econmica e social, na pretenso de alcanar o

    objetivo de proporcionar vida digna a um maior nmero de administrados.

    Assiste-se passagem do Estado liberal, fruto da revoluo industrial e

    tecnolgica geradora de crescimento econmico de um lado, e de egosmo e problemas

    sociais de outro, para o Estado democrtico e social. Esse Estado social e intervencionista

    surgiu, consoante registra Amaral Neto (1989, p.224/225), destinado a organizar e disciplinar

    a vida econmica, protegendo os setores mais desfavorecidos, e diligenciando no sentido de

    criar iguais oportunidades de acesso aos bens e vantagens da sociedade contempornea,

  • caracterizando, no campo do direito privado, como querem alguns, a socializao do direito

    civil ou, como querem outros, a publicizao do direito civil.

    Analogamente afirmao de Lavoisier de que na natureza nada se perde, tudo se

    transforma, pode-se afirmar tambm que no mundo da cultura nada esttico, ao contrrio,

    tudo dinmico e passvel de transformaes segundo os impulsos originrios dos fatores

    histricos, sociolgicos, psicolgicos, dentre outros, e, como o direito se situa no mundo da

    cultura, tambm ele est sujeito a inmeras influncias do meio social e, nessas

    circunstncias, tem de acompanhar as evolues ocorrentes na sociedade.

    Dessa forma, a viso do individualismo jurdico tornou-se acanhada e

    incompatvel com as necessidades da sociedade tecnolgica do final do sculo XIX e de todo

    o sculo XX, o que motivou a criao paulatina de uma srie de leis ordinrias e de micro-

    sistemas jurdicos revogadores de inmeras disposies codificadas, envelhecidas e

    desconectadas com a realidade e as necessidades dos novos tempos. No raro testemunhou-se

    a entrada das regras de direito pblico ou de ordem pblica na seara do direito privado para

    reger matrias anteriormente codificadas, em busca de melhor eficcia na satisfao dos

    intentos sociais.

    A complexidade econmica e social tambm influenciou o aparecimento de novos

    ramos do direito, a fim de regrar com abrangncia e profundidade questes surgidas na

    sociedade contempornea, impossveis de serem regradas pelos vetustos caminhos do

    tradicional direito civil. Nesse caminhar, o econmico entrelaa-se com o social e o social

    estende-se ao ecolgico, abrindo campo para a proteo ambiental e a exposio ntida da

    interdisciplinaridade em matria notoriamente multifacetria, como o meio ambiente.

    4. A VISO SOCIAL DO DIREITO NA EUROPA E NA AMRICA LATINA

    incontroverso na doutrina jurdica, nas cincias polticas, na economia poltica,

    na histria da filosofia e, enfim, no mbito das cincias sociais, que o liberal-individualismo

    se consagrou nos diplomas constitucionais promulgados nos Estados Unidos da Amrica

    (Constituio de 1787) e na Frana (1791), depois da Declarao dos Direitos do Homem e do

    Cidado, proclamada aps a Revoluo Francesa de 1789. A histria tem registrado que os

    fatos polticos ocorridos num determinado pas tendem a ser imitados por outros o que pode

    ser melhor explicado pela psicologia social , mas o fato poltico e jurdico que aqui interessa

  • que o mundo ocidental imediatamente aderiu ao movimento do constitucionalismo liberal.15

    Seguiram-se as transformaes e conquistas econmicas do capitalismo

    tecnolgico da revoluo industrial. Aumentos de produtividade, multiplicao da

    acumulao de excedentes em virtude da melhor produtividade gerada pelas mquinas,

    transformao das oficinas artesanais corporativas em fbricas capitalistas e, em razo disso, a

    aplicao dos sistemas de diviso tcnica do trabalho e de produo em maior escala, melhor

    desempenho das unidades capitalistas (fbricas) em relao aos pequenos produtores que, em

    meio quebradeira, transformaram-se em assalariados ou artesos das fbricas.

    Num primeiro momento, saiu ganhando a nascente industrializao com

    abundante oferta de fora de trabalho, queda no poder de barganha e dos salrios dos

    trabalhadores e concentrao dos incrementos de produtividade nas mos dos prsperos

    capitalistas. Num segundo momento, porm, a velocidade de acumulao de capital, que se

    revelou de duas a trs vezes mais rpida do que o aumento da oferta de mo-de-obra

    provocou a inverso das condies do mercado de trabalho de modo a elevar os salrios e

    permitir maior participao dos trabalhadores na produtividade. (FURTADO, 1964, p.65;

    MANTEGA, 1985, p.83).

    Os trabalhadores, entretanto, apesar de o trabalho se tornar o fator dinmico da

    relao de produo que antes se justapunha iniciativa privada do empresrio, continuaram

    por muito tempo sem experimentar melhor sorte no que diz respeito tutela social da

    prestao laboral. Observa o ex-Ministro do Trabalho Arnaldo Sussekin (1986, p.13) que

    somente aps a primeira Grande Guerra (1914-1918) que os direitos sociais ganharam

    hierarquia constitucional e dessa forma o liberal-individualismo em muitos pases cedeu

    terreno ao intervencionismo estatal, indispensvel consecuo desses direitos.

    Os direitos individuais, conforme escreve Siches (1970, p.12), tm como contedo

    predominante um no fazer dos outros e, principalmente, do Estado e dos demais entes

    pblicos. Por sua vez, os direitos sociais tm por objeto atividades positivas do Estado, do

    prximo e da sociedade, para conceder ao homem certos bens ou condies. Nesse estgio

    social, portanto, Estado, cidado e sociedade devem construir um piso mnimo de condies

    realizveis concretamente, servindo de sustentculo estruturao e manuteno de um

    estado de bem-estar social prolongvel no curso do tempo.

    Mirkine-Guetzvitch (1957, p.169/171) tambm j assinalava que as liberdades 15 Assim, a Constituio brasileira de 1824 garantiu o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem pblico legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidado, ser ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcar os casos em que ter lugar esta nica exceo e dar as regras para se determinar a indenizao (art.179, 22).

  • individuais e os direitos sociais ocupam um lugar de honra nas novas Constituies e que os

    direitos sociais aparecem como obrigaes positivas do Estado ao lado do catlogo das

    liberdades formuladas em 1789, destacando ainda que entre os direitos sociais podem ser

    citados a segurana social, o direito do trabalho, os direitos sindicais, o direito a uma vida s

    e ao repouso e as garantias econmicas para as classes trabalhadoras.

    A doutrina do individualismo foi recepcionada nas constituies polticas do

    mundo ocidental e transplantou-se para os seus Cdigos civis, tendo por matriz o Cdigo

    francs de 1804. Espraiando-se pelo mundo afora16, os pases ocidentais logo se adaptaram ao

    figurino moldado, inclusive Portugal, que aprovou o seu Cdigo em 1867, quando revogou as

    Ordenaes Filipinas. Curiosamente, como observa Rodrigues (1997, v.1, p.10), no Brasil,

    que se tornou soberano em 1822, as Ordenaes do Reino continuaram em vigor at 1917, por

    fora da Lei de 20 de outubro de 1823, que determinou que continuasse em vigor no Imprio

    a legislao do Reino. Isso, na prtica, no impediu que os ventos liberais soprassem por todo

    o territrio brasileiro em razo de a Constituio de 1824 ter aderido francamente ao

    liberalismo constitucional e destarte ao econmico.

    No modelo transplantado para o mundo, o princpio da autonomia privada como

    conseqente imediato do individualismo aparece como a mola mestra impulsionadora dos

    contratos e, pois, instrumento da liberdade de iniciativa econmica , possibilitando o

    desenvolvimento livre das vontades particulares (princpio da autonomia da vontade) nas

    relaes de produo e, como no poderia ser diferente segundo a ideologia adotada, as

    contrataes deveriam perseguir o objetivo de alcanar produo mxima a custos mais

    baixos de acordo com a livre concorrncia. O contrato, portanto, o instrumento do laissez-

    faire e, porque o fim desejado livremente pelas partes, funciona como lei entre elas.

    A autonomia da vontade, como princpio, no exclusividade do direito civil,

    pois alcana todo o direito privado. Por muito tempo reinou sem qualquer restrio nas

    relaes civis e comerciais, servindo de instrumento fomentador das iniciativas do mundo

    empresarial, ou daquelas atividades realizadas entre particulares isoladamente considerados,

    com pretenses negociais especulativas. Sua importncia reside no fato de os particulares

    poderem criar direitos e obrigaes, funcionando o contrato como fonte de direito

    obrigacional, alis a principal fonte no campo do direito das obrigaes. Vale dizer, a lei

    como fonte primeira do direito abre campo para a existncia de fontes extra-legais (os

    contratos).

    16 Cdigo Civil belga 1807, Cdigo Civil austraco 1811, Cdigo Civil italiano 1865, Cdigo Civil portugus 1867, Cdigo Civil argentino 1869, Cdigo Civil alemo 1896 (vigorou em 1900), Cdigo Civil brasileiro 1916.

  • De fato, se os particulares podem legislar em matria jurdica que diz respeito

    aos seus interesses particulares, esto autorizados a realizar negcios jurdicos (contrato ou

    conveno, testamento, etc), vale dizer, podem fazer manifestaes bilaterais ou unilaterais de

    vontade que expressem os seus desejos de adquirir, modificar, transferir ou extinguir direitos,

    criando, distribuindo e consumindo riquezas (bens e servios) produzidas no mercado. Podem

    comprar, vender, trocar, doar, emprestar e fazer tantas outras estipulaes livremente,

    partindo do fundamento de que o pressuposto da autonomia a propriedade, cuja funo,

    conforme Barcelona (1980, p.43) proporcionar a livre circulao de bens.

    Porque derivado da lei, diz-se que o princpio da autonomia privada derivado e

    tem por objetivo especfico regrar as combinaes realizadas entre particulares, que podem

    estipular o que quiserem, com quem quiserem, desde que respeitada a supremacia da ordem

    pblica e os bons costumes. Assim sendo, resulta claro que se distingue do princpio da

    autonomia pblica que conferida ao Estado ou aos rgos pblicos, com a finalidade de

    criar o direito envolvendo interesses fundamentais e gerais da sociedade, o que o caracteriza

    como poder de natureza originria, pblica e discricionria.

    Como se tem afirmado, a origem do direito privado tido como moderno encontra-

    se no Cdigo Civil francs aprovado em 1804 com a influncia direta de Napoleo. Justia

    seja feita, o referido diploma civil recepcionou o princpio da autonomia privada no art.6 e,

    nesse mesmo dispositivo, asseverou, como no poderia ser diferente, que a autonomia privada

    encontra limite na supremacia da ordem pblica. Parece-me que, com tal ressalva, o prprio

    diploma civilstico deixou a porta aberta para futuras flexibilizaes, tanto quanto se

    tornassem necessrias ao atendimento da ordem pblica.17

    Talvez no esperasse o legislador francs que as questes de ordem pblica se

    multiplicassem tanto e na velocidade que aconteceram desde o final do sculo XVIII. O fato

    que as relaes sociais coloridas com juridicidade dotadas de interesse da ordem pblica

    foram-se avolumando num crescendo tal que deixaram de ser exceo para se transformarem

    em regra corriqueira no complexo emaranhado de relaes sociais construdas a partir do

    extraordinrio desenvolvimento da cincia e da tecnologia desde ento.

    Em razo disso, assistiu-se paulatinamente ao surgimento de leis com regras de

    ordem pblica,18 fato que nos dias de hoje no constitui mais surpresa, pois se v por toda a

    17 Em sentido idntico o art.17 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil brasileiro Decreto-lei n. 4.657, de 04.09.1942, aplicvel s disposies legislativas de natureza privada ou pblica. 18 Tambm as normas de direito pblico tm-se sobreposto no tratamento de matrias tidas anteriormente como meramente privadas. A evoluo dessa orientao intervencionista se projeta por todos os lados para agasalhar interesses sociais e coletivos, no amparados anteriormente, como si acontecer com a reviso de contratos

  • parte a interferncia do legislador motivado a acudir situaes que reclamam maior ateno

    do poder pblico por dizerem respeito ao interesse coletivo ou difuso. Nesse diapaso so

    institudas regras de direitos irrenunciveis pelos seus titulares e obrigaes inarredveis por

    parte dos sujeitos passivos de obrigaes, como forma de proteger interesses superiores aos

    meramente privados.

    Esses comandos normativos so conseqncia da lgica que se manifestou notria

    entre os juristas, legisladores, cientistas sociais e mesmo para o homem comum do povo de

    que o fortalecimento da autonomia privada conferia aos mais fortes a possibilidade de

    defender como natural os seus prprios interesses particulares, deixando na penumbra os

    interesses maiores da sociedade voltados para o bem-comum. Os abusos caracterizadores de

    leso aos direitos dos mais fracos, configurando situaes contrrias aos interesses da ordem

    pblica e dos bons costumes explicam as transformaes gerais do direito em busca de uma

    nova concepo social.

    Se o direito francs absorveu o princpio romano segundo o qual jus publicum

    privatorum pactis mutare non potest (os particulares no podem revogar por conveno as

    normas de direito pblico) e o brasileiro adotou a mesma regra, com muito mais razo nos

    dias que correm os particulares continuam no podendo revogar, pelas regras do contrato, as

    normas de ordem pblica. Por conseguinte e para usar uma expresso geogrfica, pelo

    espigo elevado entre a autonomia privada e a autonomia pblica, vale dizer, pelos caminhos

    dos bons costumes, da boa f e da eqidade desenvolveu-se a ideologia da concepo social

    no direito contemporneo.

    Aos poucos alteraes vo sendo feitas nos Cdigos em vigor, quando no

    revogados os existentes, para aprovao de nova disciplina da matria sob fundamentos

    diversos consentneos com as necessidades da contemporaneidade. A ttulo de exemplo cita-

    se o Cdigo Civil italiano que, em seu art.1322, estabeleceu de maneira lapidar que as partes

    podem determinar livremente o contedo do contrato nos limites impostos por lei e celebrar

    contratos atpicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses dignos de tutela,

    segundo o ordenamento jurdico. Ou seja, a autonomia privada pode legislar livremente

    sobre tudo que constitua interesses dignos de tutela.

    No mesmo sentido, podem encontrar-se regramentos no direito portugus

    contemporneo, pois o atual Cdigo Civil luso tambm dispe no seu art. art.405 que as

    florestais, imposio de normas de proteo dos recursos naturais nos contratos agrrios, proteo e defesa do consumidor nos contratos, exerccio das atividades econmicas e contrataes em consonncia com as diretrizes da poltica de defesa do meio ambiente, etc.

  • partes podem livremente fixar o contedo do contrato, nos limites da lei, e celebrar contratos

    diferentes dos previstos no mesmo Cdigo, fixando o art.280 limites ao exerccio da

    autonomia privada e estabelecendo a nulidade do negcio jurdico contrrio ordem pblica

    ou aos bons costumes.

    Fora da codificao, constituindo micro-sistemas paralelos, tambm se encontram

    no Brasil uma srie de normativos protetores da parte considerada, em cada caso,

    desprotegida em face da outra, com possibilidades de vir a ser lesada pelo abuso de direito no

    caso concreto. A ttulo exemplificativo, pode salientar-se a proteo dos inquilinos na relao

    locatcia, da companheira convivente em unio estvel, da criana e adolescente com direito a

    proteo e desenvolvimento integral, a obrigao de contratar definitivamente em face de

    contrato preliminar, a responsabilidade civil encarada objetivamente pela teoria do risco nas

    relaes de consumo e ambientais, perdendo terreno a tradicional culpa subjetiva, e assim

    tantos outros casos caracterizadores da socializao do direito. Enfim, como assevera o atual

    Cdigo Civil aprovado em 2002, a liberdade de contratar deve ser exercida em razo e nos

    limites da funo social do contrato.

    Todavia, como se pode constatar sem maiores dificuldades na histria do direito

    brasileiro do sculo XX, realmente os direitos sociais vo apresentar-se com muito mais

    nfase, com muito mais salincia, nos outros ramos do direito. Foi, realmente, no campo do

    direito do trabalho (inicialmente chamado por muitos de direito social), depois no direito

    agrrio e, mais recentemente, no direito do consumidor e no direito ambiental que se percebe

    grandiosa e qualitativamente a preocupao legislativa com a proteo de interesses de

    natureza coletiva ou difusa.

    O contedo dos direitos e interesses encontrados nesses ramos jurdicos por si ss

    justificam o desgarramento dos troncos comuns para receberem melhor proteo de forma

    autnoma, porm no independente, mesmo porque mais e mais se revelam necessrios os

    seus estudos interdisciplinarmente. Tais contedos agasalham a proteo do trabalho, da vida,

    da sade e da segurana das pessoas, cujos interesses devem ser estudados dentro da tica

    inerente socializao do direito.19

    So facilmente identificveis nesses ramos do direito normas de direito pblico,

    de direito privado e de ordem pblica, imperativas e cogentes, objetivando colocar a salvo

    interesses de grupos determinados ou, mesmo, de coletividade indeterminada no meio social. 19 No se pode dizer que o Direito Ambiental apartou-se do Direito Civil, como fonte, mas, indubitavelmente, sua formao como ramo autnomo foi cimentada originariamente na seara das normas extravagantes e setoriais incidentes sobre a esfera privada, estabelecendo, entre outras normas, restries ao direito de contratar e ao direito de propriedade (minerao, florestas, guas, fauna, caa e pesca, dentre outras).

  • Amide se apresentar a necessidade do estudo para alm da disciplinaridade, pois o direito

    abre-se cada vez mais nos tempos contemporneos para interconectar-se num cenrio mais

    amplo com as cincias sociais e externamente com outras cincias, como, por exemplo, as

    cincias ambientais na proteo e defesa do meio ambiente que se pretende ecologicamente

    equilibrado.

    4.1 O DIREITO DO TRABALHO

    No que tange ao trabalho sob vnculo empregatcio, observa-se que a segunda

    metade do sculo XVIII retratou, na Europa, a decadncia do mercantilismo, na medida em

    que as idias dos fisiocratas e dos liberais clssicos foram tomando corpo na sociedade e nas

    hostes dos governos. Queixavam-se aqueles da poltica econmica mercantilista que, atrelada

    ao conceito de riqueza sob a tica da acumulao de metais, principalmente ouro e prata, o

    chamado entesouramento, como fator de desenvolvimento, impunha excessiva

    regulamentao ao exerccio das atividades econmicas. Essa regulamentao, no entanto,

    como assinala Saint-Leone (1947) e Nascimento (1999, p.26), implicava na elaborao de

    estatutos pelas corporaes, que acabavam por contemplar normas sobre durao do

    trabalho, descanso nos feriados, etc.

    As corporaes de ofcio estavam montadas numa relao de subordinao

    hierrquica, disciplinar e tcnica, segundo os conhecimentos profissionais at ento

    adquiridos. Nessa estrutura hierrquica:

    os mestres eram os proprietrios das oficinas, que j tinham passado pela prova da obra mestra. Os companheiros eram trabalhadores que percebiam salrios dos mestres. Os aprendizes eram os menores a partir de 12 ou 14 anos que recebiam dos mestres o ensino metdico do ofcio ou profisso. O aprendiz passava ao grau de companheiro se obtivesse aproveitamento em seus ensinamentos. O companheiro s passava a mestre se fosse aprovado em exame de obra mestra (MARTINS, 2004, p. 19).

    Durante o perodo do mercantilismo, consoante observa Nascimento (1999, p. 21),

    multiplicaram-se as corporaes de ofcio, s quais se concediam privilgios, prerrogativas e

    monoplios, de forma que somente determinados artesos tidos como mais qualificados

    poderiam exercer os seus ofcios e, ainda assim, desde que previamente autorizados pelas

    agncias dos governos. A isso se opunham os fisiocratas, que, na esteira do direito natural,

    entendiam que todas as pessoas tinham o direito de trabalhar, produzir e dispor livremente do

  • produto de seu trabalho.

    Nessa linha de raciocnio, para os defensores da liberdade de comrcio e do

    trabalho, as corporaes se constituam em empecilho ao livre desenvolvimento da indstria e

    do comrcio, na causa do encarecimento da produo, enquanto a associao seria prejudicial

    liberdade, razo por que hostilizavam o mtodo corporativo inspirado na aprendizagem, no

    companheirismo e no produto final da obra mestra, pois o que importava na nova concepo

    era a liberdade do homem e liberdade para todos e no somente para os donos das

    corporaes.

    Essas idias vo se tornar vitoriosas na Revoluo Francesa de 1789, mas, antes

    disso, proporcionaram a extino das corporaes no pas gauls, atravs de edito de fevereiro

    de 1776, inspirado por Turgot20, em cuja exposio de motivos assinala-se que elas so

    consideradas instituies arbitrrias que no permitem ao indigente viver do seu trabalho.

    Sob esse argumento, o art.1 do edito, ao dispor sobre a liberdade de comrcio e de profisso,

    considera extintas as corporaes e comunidades de mercadores e artesos e anulados o seus

    estatutos e regulamentos (NASCIMENTO, 1999, p.27).

    Algumas corporaes que atuavam clandestinamente ainda tentaram se

    reconstruir, opondo resistncia proibio, mas o governo respondeu com nova Lei, agora o

    chamado Decreto Dallarde, de 1790, portanto, posterior Revoluo Francesa ,

    determinando o desaparecimento das corporaes e, ao mesmo tempo, considerando livre

    todo cidado para o exerccio de profisso ou oficio que considerasse conveniente, depois de

    receber uma patente e pagar o preo. A fundamentao do Decreto ancorou-se no

    entendimento de que o direito ao trabalho um dos direitos primordiais ao homem. A

    contrrio senso, suprimiu as corporaes por entend-las incompatveis com o ideal de

    liberdade do homem.

    Nova resistncia foi oferecida pelos mestres das corporaes que pretendiam

    continuar na direo delas e uma vez mais foram reprimidos, desta vez pela famosa lei

    denominada Le Chapelier, nome do Relator da Comisso que examinou o assunto. As

    concluses do Relator e as disposies da lei so transcritas abaixo, tendo em vista a sua

    importncia histrica consistente no fato de que, uma vez consagrada a liberdade individual

    do trabalho na Frana, seu contedo teve repercusso nos demais pases do mundo, gerando o

    posterior surgimento da questo social21, cujo objeto vai se agravar e se ampliar nos sculos

    20 Turgot era fisiocrata. Foi discpulo de Quesnay, Intendente de Limoges e Ministro de Luis XVI. Com os editos que mandou publicar manteve-se coerente com os mandamentos de sua escola. 21 A questo social nos dias que correm ultrapassou o mbito do direito do trabalho. No se refere somente

  • seguintes e exigir a proteo do Estado, visando a assegurar a paz social, o interesse geral e o

    bem comum.

    Concluiu o Relator:

    a) As corporaes que se formar