livro de religiao no mediterraneo - vol i
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE
Prticas Religiosas No
Mediterrneo Antigo
Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ
2011
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Copyright2011: todos os direitos desta edio esto reservados ao Ncleo de Estudos da Antiguidade NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Capa: Junio Csar Rodrigues Diagramao: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpo Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USA Catalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black Figure Shape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic
Editorao eletrnica: Equipe NEA www.nea.uerj.br
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA
Ficha eletrnica P912 CANDIDO, Maria Regina; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa (Orgs.). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2011. 252 p. ISBN: 1. Mediterrneo, Mar, Regio - Religio. 2. Religio. I. Cndido, Maria Regina. II. Campos, Carlos Eduardo da Costa.
CDU 931(262)
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extenso e cultura: Ndia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Cincias Humanas Jos Augusto Souza Rodrigues Departamento de Histria Andr Luiz Vieira de Campos Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH/UERJ) Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Claudia Beltro da Rosa Deivid Valrio Gaia Jos Roberto de Paiva Gomes Maria do Carmo Parente Santos Maria Regina Candido Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Ana Carolina Caldeira Alonso Carlos Eduardo da Costa Campos Junio Csar Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpo Tricia Magalhes Carnevale Pedro Vieira da Silva Peixoto
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Sumrio
7 Apresentao
Maria Regina Candido
10 Prefcio
Vicente Dobroruka
13 A Situao Scio-Poltica de Josefo: entre a Histria e a Traio
Alex Degan
31 O cuidado para com os pobres no Cristianismo Primitivo
Reflexes a partir de Joo Crisstomo
Carlos Caldas
48 Elementos da religio domstica romana na Aulularia de Plauto
Claudia Beltro da Rosa
58 Homero: magia e encantamento da palavra potica
Flvia Maria Schelee Eyler
69 A cristianizao do Imprio Romano: Algumas consideraes de
carter historiogrfico
Gilvan Ventura da Silva
87 Identidade e Memria no Cristianismo Srio-Palestino: oamen
nos ditos de Jesus de Nazar
Joo Batista Ribeiro dos Santos
101 A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristos
Joo Oliveira Ramos Neto
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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117 Bs em Deir el Medina e no Mediterrneo(1540-400 a.C.) Margaret M. Bakos 135 Mito y sentido en Hesodo: Las formas de habitar el mundo Maria Cecilia Colombani
147 A Rainha de Sab e o Cristianismo da Etipia
Maria da Conceio Silveira
160 Muulmanos e Cristos: uma construo da alteridade dos fiis
das duas crenas
Maria do Carmo Parente Santos
174 Santidade Feminina na Glia Merovngia: Radegunda de Poitiers
Miriam Lourdes Impellizieri Silva
190 O Culto Imperial como Transcrito Pblico
Norma Musco Mendes
210 Pondo o Lixo Pra Fora da relao entre excluso de grupos
scio-religiosos e interdio literaria na tradio judaico-crist Joo,
Judas e Lutero
Osvaldo Luiz Ribeiro
222 Consideraes Sobre a Religiosidade Grega
Pedro Paulo Abreu Funari
235 Um manuscrito pseudo-Zorostrico e o papel do Salvador no
Cristianismo Primitivo Oriental
Vicente Carlos Dobroruka
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Apresentao
Maria Regina Candido
Ao apresentar uma publicao com um tema amplo como a
Religio no Mediterrneo Antigo, estamos trazendo ao debate as vrias
faces do sagrado na qual podemos construir uma relao interpretativa
entre a natureza transcendente do ser humano diante da religio e
como ele traduz a sua materialidade. A manifestao do sagrado
contribui para uma nova semntica de relaes no qual o homem
religioso imprime ao mundo sensvel uma descontinuidade, que
reclassifica qualitativamente os objetos, sacraliza o mundo e atribui um
significado ao espao sagrado em oposio ao cotidiano do mundo
profano.
Por outro lado, no podemos esquecer da dinmica do sculo
XIX para os estudos da religio. Tal perodo perpassou pela
revitalizao dos textos clssicos, assim como vivenciou
acentuadamente as novas descobertas arqueolgicos. No meio
acadmico, o resultado emergiu com a institucionalizao da disciplina
da Cincias da Religio que fomentou a criao da ctedra
universitria Histria das Religies promovendo a realizao de teses,
congressos e publicaes.
A identificao da temtica da religio como objeto de estudo
torna-se interessante para ns pesquisadores das prticas mgico-
religiosas na Antiguidade ao redor do Mediterrneo. O fato se deve a
ampliao da complexidade do ambiente religioso no Mundo Antigo
assim como na Modernidade que pode ser lida de modos diferentes,
antagnicos e complementares. Alex Degan investiga o judasmo
tardio e o cristianismo primitivo e os mtodos de governana romana
na Palestina. Carlos Caldas atualiza o tema ao trazer o personagem de
Joo Crisstomos e a relao da igreja crist com os pobres
considerados explorados e oprimidos. A pesquisadora Cludia Beltro
analisa o teatro romano como reflexo da centralidade da vida religiosa
dos romanos. A abordagem religiosa nos remete as prticas mgicas
cuja fronteira nem sempre visvel para separar o sagrado do profano
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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como aponta Flavia Maria Schlee Eyler. Gilvan Ventura da Silva
analisa a expanso e fortalecimento das comunidades crists no
decorrer do sculo IV no epicentro dos ncleos urbanos do orbis
romanorum.
Junto a os aspectos da vida religiosa no cotidiano, Joo Batista
Ribeiro Santos analisa a tradio talmudica e Joo Oliveira Ramos
Neto traz a reflexo sobrea vida dos primeiros cristos no cotidiano
dos habitantes da Palestina nos dois primeiro sculos da era comum.
Retrocedendo no tempo, Margaret M. Bakos busca indcios da escrita
antiga impressa no basto mgico usado no culto no Egito Antigo,
enquanto que Maria Cecilia Colombani busca identificar certa
funcionalidade dos deuses e heris visando tornar inteligvel a lgica
da narrativa mtica. O tema sobre a narrativa mtica perpassa tambm
pela abordagem de Maria da Conceio Silveira ao analisar o mito da
Rainha de sab e o Cristianismo na regio da Etiopia. A religiosidade
do islamismo em embate com o cristianismo, to ativa no tempo
presente, transita pelo tema da pesquisadora Maria do Carmo Parente.
Enquanto a Antiguidade Tardia e a emergencia de novos modelos de
santidade e mrtires revelam as mudanas ocorridas na percepo
religiosa dos cristos de acordo com a perspectiva de Miriam Lourdes
Impellizieri Silva. O Culto Imperial como Transcrito Publico, segundo
Norma Musco Mendes que analisa a institucionalizao do sistema
imperial romano de acordo com a documentao textual, epigrafia e
arqueolgica no final do periodo republicano expe a fragil infra
estrutura demarcada pelos caticos expedientes administrativo.
A tradio judaico-crist foi constituda por mltiplas
representaes socio-religiosa, segundo Osvaldo Luiz Ribeiro, fossem
todas as harmnicas e homogenias tenderiam a uma fuso pacifica,
porem , no foi o que ocorreu, fato explicado pelo autor em seu texto.
Ainda mantendo o interesse na esfera do religioso, Pedro Paulo de
Abreu Funari analisa as consideraes sobre a religiosidade gregas ao
constatar que os gregos nunca foram muito unidos, falavam e viviam
em diferentes regimes politicos e sociais e variadas eram as suas
origens tnicas, mesmo assim continual a inspirar as geraes
posteriores causando espanto e admirao ao qual cabe ao autor
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analisar. O pesquisador Vicente Dobroruka discute a formao do
cristianismo primitiva em relao refeio sagrada e o culto de Mitra.
Prof. Dr. Maria Regina Candido
Prof. Associada de Histria Antiga da UERJ
Coordenadora do Ncleo de Estudos da Antiguidade
& do Lato Sensu de Histria Antiga e Medieval da UERJ
Coordenadora de Mestrado do PPGH/UERJ
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Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ
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Prefcio
Vicente Carlos Dobroruka
Prefaciar um livro que trata de prticas religiosas no Mediterrneo antigo seria algo fcil de fazer-se no Brasil de algumas dcadas atrs? O tema era por si mesmo bizarro, os estudiosos, poucos
e o acesso informao inexistente. Ou se tinha dinheiro e acesso s
bibliotecas estrangeiras (ou alternativamente, podia-se pagar o infame
dlar livro e encomendar, por vezes com demora de anos, um livro numa das grandes livrarias de Rio ou So Paulo), ou o estudioso com
freqncia mudava de rea. Ouvi de mais de um colega de graduao
que ele iria estudar histria do Brasil (um rtulo to andino quanto Histria Antiga, diga-se de passagem por nada dizer acerca do tema estudado pelo fato de que h fontes vontade.
Os menos cultos alegavam - falaciosamente - que no era necessrio saber outra lngua alm do portugus.
Diante de tamanho fracasso, o quadro atual algo de que
devemos nos orgulhar. Em aproximadamente duas dcadas saamos da
virtual inoperncia na rea de estudos de religio no mundo antigo,
como estamos aos poucos nos aventurando em terrenos pouco
mapeados, mesmo por estudiosos de renome internacional.
Obviamente, parte desse sucesso, espelhado nesta compilao que traz
a marca da excelncia dos trabalhos realizados pelo Ncleo de
Estudos da Antigidade - NEA da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), deve-se a fatores externos inimaginveis h duas
dcadas: o fim da inflao, a inveno da Internet, a "verso 2.0" da
mesma, que nos coloca em contato com os grandes nomes de qualquer
campo de pesquisa "em tempo real", a moeda brasileira forte, os
programas de incentivo pesquisa.
Mas todos esses recursos, tcnicos por natureza, de nada
serviriam se no existissem pesquisadores dispostos ao esforo
intelectual num campo to escorregadio, to cinzento e to cheio de
oportunidades quanto o do estudo das prticas religiosas no mundo
mediterrnico da Antigidade. Nesse sentido, o esforo mental de um
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Reitzenstein ou de um Nldeke comparvel ao nosso - sua
genialidade sobressai-se, em parte, pelas limitaes que
acompanhavam os trabalhos de sua poca, contrapostos s
supracitadas facilidades de que dispomos.
Muito do avano no estudo cientfico no estudo da religiosidade
desse perodo deve-se curiosidade despertada pela religiosidade do
mundo helenstico em geral; com a admisso franca do judasmo de
Jesus (algo relativamente recente), o pblico leitos viu-se s voltas
com um dado novo e "surpreendente": no apenas Jesus era judeu,
mas em seu tempo teve concorrentes, com propostas e prticas
distintos tambm.
O que uma coletnea como esta nos lembra a extrema
variedade e, por vezes, superposio dessas prticas. E nos lembra
tambm que, embora durante a vida de Jesus como hoje o essencial da
vida espiritual de cada homem consistisse na orao (de petio, de
promessa, de agradecimento ou mesmo de maldio), os textos nos
quais essas tradies espirituais se apoiavam variavam enormemente.
O uso de figuras sagradas parecia mesmo confundir-se entre diversos
grupos, e o mesmo pode ser dito de seus textos: com freqncia nos
deparamos diante de uma profecia, orao ou apocalipse que poderia
igualmente ser judeu, cristo ou pago.
Ou ainda poderia ser tudo isso simultaneamente - quando
Momigliano lanou a idia de um "banco de dados" temtico
espalhado pelo Mediterrneo aps o sc.V ou VI a.C., referia-se no
apenas a temas que apareciam um pouco por todo o lado como
tambm a personagens que, se no eram os mesmos, dividiam muitas
caractersticas comuns e, portanto, eram facilmente assimilveis por
seus adeptos. Pensemos em Jesus, Asclpio, Apolnio de Tyana e,
mais tardiamente, Zoroastro, Ostanes e Apolo.
O esforo representado pelos textos que compem esta
coletnea tanto mais notvel pelo fato de servirem-se com
freqncia de bibliografia e fontes primrias compartilhadas com os
melhores estudiosos de pases com mais tradio. Sejamos justos: o
resultado no ainda comparvel ao obtido por instituies com
muitos sculos a mais de tradio acadmica. Todavia, de se
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enfatizar aqui o "ainda no" - a prosseguirmos nessa autntica
sementeira de talentos, orientaes e publicaes, em breve teremos
avanado no apenas em funo de nosso prprio atraso, mas em
poucas geraes estaremos, como comunidade acadmica e no
apenas como indivduos isolados, dialogando com estudiosos e
instituies com muito mais tradio.
Levamos uma vantagem inicial, verdade - e isso fica tambm
exemplificado nesta coletnea: pela ausncia de quadros altamente
especializados, temos de cobrir uma vastido de campos de interesse e
investigao inconcebveis para um acadmico ingls, alemo ou
norte-americano. Damos aulas que, numa manh, pulam de Flvio
Josefo magia ateniense, e do mercenarismo grego confeco da
Teogonia. Vejam bem leitores, estou falando desse tipo de proeza
didtica realizada no pelo aluno, mas pelo professor: aqui, tivemos
de fazer da necessidade, virtude.
Um dos aspectos positivos dessa limitao que os autores dos
textos desta coletnea foram forados, creio que sem excees, a
travar contato com uma multiplicidade de tradies menos por
interesse do que por urgncia. E dessa urgncia surgiu o gosto, e do
gosto, o aprendizado dos modos de estudar e entender essas facetas do
passado.
Este livro parece-me, portanto, um balano de estado atual das
pesquisas sobre religiosidade no mundo antigo no Brasil; no o
nico, verdade, mas pela diversidade de temas, ele oferece ao leitor
um dilogo no apenas entre temas distintos, mas tambm entre
abordagens diferentes. E involuntariamente, presta homenagem ao
grande melting-pot tnico-religioso-poltico que foi o mundo legado
por Alexandre aos psteros.
Prof. Dr.Vicente Dobroruka
Professor de Histria Antiga da UnB
Professor Visitante em Clare Hall, Cambridge
Membro do Ancient India and Iran Trust, Cambridge
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A Situao Scio-Poltica de Josefo: entre a Histria e a
Traio
Alex Degan1
Nascido no primeiro ano do reinado de Calgula2, filho de
aristocratas de Jerusalm (Vita, 1-5) e sacerdote fariseu, Flvio Josefo
situa-se em uma categoria de personagens polmicos, seja por sua
atribulada vida, seja por seus impressionantes livros3, ou por sua
existncia posterior dentro da tradio literria clssica. Ao investigar
suas obras empreitada difcil deixar de se envolver com suas
controvrsias. Fonte importante para estudos que investigam o
Judasmo Tardio, o Cristianismo Primitivo e os mtodos de
governana romanos na Palestina, este estudo objetiva refletir sobre
seu papel scio-poltico dentro da sociedade judaica hierosolimitana,
procurando responder a seguinte pergunta: quais eram suas relaes
polticas e sociais na ecloso da revolta, na conduo dela e no trato
desastroso com Roma, terminando com a capitulao judaica e a
destruio de Jerusalm?
1 Professor Assistente do Departamento de Histria da Universidade Federal
do Tringulo Mineiro (UFTM), doutorando em Histria Social pela
Universidade de So Paulo (USP) e pesquisador do Laboratrio de Estudos
Sobre o Imprio Romano (LEIR). E-mail: alexdegan@yahoo.com.br 2 Entre os anos 37 e 38, (Vita, 5).
3 A obra de Josefo, preservada com cuidado desde o incio por intelectuais
cristos, composta por quatro livros: Bellum Judaicum (dividido em sete
livros que tratam desde a consolidao da dinastia asmonia, at a conquista
de Massada, escrito entre os anos 75 e 79), Antiquitates Judaicae (narrativa
da histria judaica, desde a criao do mundo at o incio da revolta de 66,
composta de vinte livros e redigida entre os anos 94 e 99), Vita (nico livro,
provavelmente um anexo incorporado a uma edio de Antiquitates, escrito
entre 94 e 100) e Contra Apionem (tratado apologtico organizado em dois
livros que se preocupa em demonstrar a nobreza e antiguidade da histria
judaica, polemizando especialmente com escritos gregos, sendo redigido
entre 94 e 100).
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Antes de analisarmos a aristocracia que Josefo pertencia,
devemos dedicar ateno ao seu universo: a Judia. preciso ressaltar
que a Palestina romana, regio atrelada provncia da Sria e lar
nacional dos judeus, no se destacava comosendo uma grande
reaeconmica no Imprio (SARTRE, 1994: 383). Em relao aos
judeus, provavelmente eles eram tratados como mais uma das muitas
etnias que compunham o arranjo imperial, sem merecer uma ateno
especial na poltica romana. Se pudermos atribuir alguma
especificidade a Judia, isto se justificava por sua posio fronteiria
entre os partos e pela relao que Jerusalm mantinha com imensa
comunidade judaica da dispora4. Estavam os judeus espalhados por
grande parte dabacia mediterrnea, principalmente em grandes
cidades como Roma5 e Alexandria
6, como tambm formavam
comunidades no Imprio Parta. Apesar das fontes registrarem
problemas localizados e temporrios entre judeus e gentios na
dispora at a ecloso da grande revolta de 66 - 707era evidente que a
relao exclusiva do povo judeu com YHWH, a observncia doshabat,
o cumprimento da dieta judaica e a prtica da
circuncisodemonstravam que o particularismo no poderia ser
ignorado(GOODMAN, 1994: 106), no necessariamente estruturando
um problema de convivncia.
4 Sobre a dispora, consultar: GRUEN, 2002.
5 Martin Goodman (1994 A, p. 328) observa a existncia de 11 ou mais
sinagogas em Roma durante o sculo I a.e.c. 6 Ellen Birnbaum (2004: 114) entende que os gregos de Alexandria
condenavam o comportamento passivo dos judeus frente ao comando romano
da cidade, o que produzia muitos conflitos e ressentimentos entre as duas
comunidades. 7 Sobre a relao dos romanos com a religio judaica, concordamos com o
que diz Maurice Sartre (1994: 392): Es abusivo hablar con respecto al judasmo de una religio licita, nocin jurdica desconocida por los romanos,
pero en funcin de su respeto de los derechos locales de todos los peregrinos
del Imperio, se reconoce la Torah como la ley de los judos, incluidos sus
aspectos religiosos.
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O Imprio Romano, composto por sociedades distintas8, se
apoiava em algumas estruturas unificantes, como o imperador, a
cidade e os exrcitos. Em relao aos assuntos cotidianos, o poder
romano encontrava-se ligado aos aparatos das polticas local e
regional, tendo a cidade como unidade bsica de organizao. De fato,
as cidades eram os centros primrios de poder, e no Roma (PRICE,
2004: 54). Foi nas cidades que a poltica romana procurou fazer sentir
sua presena, cooptando suas classes dirigentes e buscando encontrar
nesse centro de organizao instituies unificadoras para estabelecer
sistemas coletores de impostos, mantenedores da ordem pblica9 e de
culto ao imperador10
. Na Palestina judaica a maior e mais honrada
estrutura nacional era o Templo de Jerusalm (HORSLEY, 2000: 17),
local no qual se nutriam as ramificaes do poder na antiga Palestina
judaica e de sua aristocracia religiosa sacerdotal que acabava
assumindo tambm as direes de classe dirigente civil (VIDAL-
NAQUET, 1996: 33). Flvio Josefo, como muito se orgulhava (Vita,
1, 1-6), pertencia a esta elite sacerdotal, descendente da casa real
asmonia e da tribo sacerdotal de Levi11
. Yosef benMattitiahou ha
8Como todos os imprios os imprios, o imprio romano no era uma sociedade unitria, mas uma combinao de muitas sociedades [...]. Historicamente, qualquer grau aprecivel de integrao foi alcanado
unicamente por meio do exerccio de vrias espcies de poder (HORSLEY, 2000: 17). 9Garnsey e Saller observam que os objetivos bsicos deste mtodo de
governana construdo por Roma e elites regionais eram dois: manter a
ordem e arrecadar impostos. GARNSEY; SALLER, 1991: 32. 10
Sobre o culto ao imperador na parte oriental do Imprio do sculo I:
PRICE, 2004: 53-76. 11Sobre o lugar da elite sacerdotal na Palestina romana: O sacerdote era algum separado para servir exclusivamente sua vocao, tendo sua
existncia inteira comprometida com uma total entrega a Deus (PEDREIRA, 2002: 271); Os prprios sacerdotes, ou cohanim, pertencem tribo de Levi. Esta no recebeu territrios nos tempos bblicos, pois cabe-lhe
uma misso mais elevada: a de guardar a Aliana. Dessa tribo provm, em
especial, Aaro e Moiss, filhos de Amram, mas somente a descendncia de
Aaro, o irmo mais velho, tida por fornecedora dos grandes sacerdotes
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Cohen, antes da adoo pelos Flvios o renomear
comoTitusFlaviusJosephus12
, era um sacerdote fariseu13
e, dando
crdito aos seus textos, figura importante na sociedade de Jerusalm
antes da revolta. Para Per Bilde14
, TessaRajak15
e David M. Rhoads16
sob este ponto que devemos ler e interpretar as descries que Josefo
faz da guerra, do Judasmo e dos rebeldes: para estes autores, a elite
sacerdotal a que Josefo pertencia estaria no s em desacordo com os
grupos de revoltosos, mas tambm procuravam se opor a eles em um
projeto nacional (RHOADS, 1976: 05). Bilde afirma que Josefo e seus
pares formariam uma espcie de partido moderado, tentando equilibrar as tenses entre judeus e autoridades romanas, atuando
como um grupo poltico que lutou por esvaziar o descontentamento
ungidos pelo Senhor e pode usar o ttulo de Cohen (HADAS-LEBEL, 1991: 19). 12
Hadas-Lebel (1991: 11) explica que, Josefo o prenome bblico que o pai, Matias, lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez
dele um cidado romano, esse prenome brbaro tornou-se um cognomen associado ao nome de famlia do benfeitor que o libertou aps t-lo
aprisionado, o nome da gens Flvia. 13
Sobre Josefo com um fariseu na juventude, consultar: RAJAK, 1983: 11-
45. 14
Para Bilde (1988: 179): Josephus was of an aristocratic, priestly and noble family. He had been well educated []. Moreover, he was wealthy throughout his life. Thus, Josephus was deeply rooted in the Palestinian-
Jewish and Jerusalem upper-class, and later it appears that in the Diaspora
and in Rome, he seems to have established himself in a similar position. 15
Para Tessa Rajak (1983: 79):The various strands of Josephus interpretation of the revolt fall into place, and make sense, when the simple
point is understood that his opinions are, as is quite natural, the product of
his position within Palestinian society, and that they are those of a partisan
on one of the two sides in a violent civil conflict. 16
Para David Rhoads (1976: 5): Josephus heritage thus identifies him the priestly ruling class of Israel, the class which cooperated most directly with
the Romans and which had the most to lose by a war white Rome.
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popular de seu contedo revolucionrio, tentando ganhar tempo17
,
dominando os fanticos, preservando a amizade com Agripa II e
esperando uma ao romana para abrir novas negociaes.
Provavelmente o desaparecimento da ordem romana tambm
significaria uma sria ameaa a esta classe dirigente.
Ainda centrada na classe dirigente a qual Josefo pertencia,
Martin Goodman oferece uma interpretao interessante. Para
Goodman a elite dirigente mantinha profundas oposies em relao
aos grupos rebeldes (GOODMAN, 1994: 26), na maioria compostos
por judeus camponeses (GOODMAN, 1994: 84), distantes do
cotidiano dos ofcios do Templo e da cidade18
. Josefo no esconde as
diferenas entre o judeu que ele e os galileus e idumeus, ressaltando
as especificidades destes grupos em suas relaes com o Judasmo19
.
Entretanto, Goodman afirma que esta elite sacerdotal do Templo no
se ops ao conflito aberto contra Roma porque tambm o desejava.
Para ele, a revolta foi, assim, desde o incio conduzida pela classe dirigente, numa tentativa desesperada de manter sua importncia na
sociedade judaica depois que o apoio romano, em que haviam
anteriormente confiado, foi retirado (GOODMAN, 1994: 173). De fato, como nos mostra Richard A. Horsley, a centralidade do Templo
e de suas estruturas de poder nunca foram totalmente aceitos por todos
os judeus20
, e os romanos, na tentativa de assentar sua influncia na
17He tried to control the rebellious forces, to subdue the religious fanatics, to retain the relationship to King Agripa II and thus to the Romans, to
maintain control of the entire province and, by and large, to wait and see,
hoping that a possibility of negotiation might turn up (BILDE, 1988: 179). 18
Sobre a relao entre banditismo social e meio rural na Palestina romana
do sculo I: HORSLEY; HANSON, 1995: 57-88. 19
Richard Horsley(2000: 19) observa que, embora em algumas passagens Josefo se refira aos hoiioudaioi de modo um tanto indefinido, em geral ele
bastante preciso com relao aos galileus ou aos idumeus em situaes em
que seus intrpretes substituem por judeus. 20O Templo, porm, foi sempre uma instituio contestada e negociada, quer no tempo de Salomo (construdo com o emprego de trabalho forado
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aristocracia nativa, aceleraram seu descrdito frente ao frgil corpo
social da Palestina judaica. Com o fracasso do modelo de dinastia
helenstica aps a morte de Herodes, os romanos incorporaram a
regio ao plano administrativo direto da provncia da Sria21
, assistida
por um procurador ou prefeito22
, buscando ajuda no cargo de Sumo
contra o qual quase todas as tribos finalmente se revoltaram; 1Rs 5:12), na
poca de sua reconstruo nas ltimas dcadas do sculo VI e sob o
patrocnio do Imprio Persa (Ageu, Malaquias, Isaas 56-66, Esdras,
Neemias), na crise do fim do sculo III / incio do sculo II a.C. (1 Henoc 92-
104; Reforma Helenizadora, Rebelio Macabaica, comunidade de Qumr /
Manuscritos do Mar Morto), na reconstruo imponente do Templo em estilo
romano-helenstico empreendida por Herodes ou na grande revolta de 66-
70. Instituies como a do Templo de Jerusalm eram resultados
contestados, negociados, de compromisso continuado, assumido por um
povo imperialmente dominado (HORSLEY, 2000: 17-18). 21Siria, engrandecida con Cilicia Llana, slo ocupa de hecho el Norte y Centro de la gran Siria (en sentido antiguo), puesto que en el sur estn los
reinos de Judea (Palestina) y Nabatea (Transjordania). Ella misma est
conformada por una constelacin de microestados que ocupan su territorio.
El gobernador, que reside en Antioquia, gobierna de hecho sobre la Siria de
las ciudades. Como provincia fronteriza limita con el territorio de los partos,
lo que explica la presencia de tres o cuatro legiones en su territorio. Augusto
conserva el mando de la provincia para s mismo y nombra a un legado de
rango consular. Siria permanece ininterrumpidamente como uno de los ms
importantes gobiernos provinciales (SARTRE, 1994: 21). 22
Sobre a dvida se a Judia romana aps o ano 6 era administrada por um
procurador ou prefeito: SARTRE, M., 1994: 388. Siguiendo a Flavio Josefo y los escritos intertestamentarios, se crey durante mucho tiempo que Judea
form una provincia autnoma confina a un procurador desde ese momento.
Una inscripcin encontrada en Cesarea en 1969 prueba que Poncio Pilato
llevaba el ttulo de praefectus. En realidad Judea estuvo, pues, anexionada a
Siria cosa probada suficientemente por las mltiples intervenciones de los gobernadores de Siria en Judea hasta la revuelta del 66 y por lo que Josefo
declara explcitamente, pero un prefecto al mando de las tropas
representaba al gobernador; el mismo hombre estaba tambin, sin duda,
encargado de las finanzas de la regin, al menos de la gestin de los
dominios imperiales, y actuaba entonces como procurador (SARTRE,
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Sacerdote23
. Este antigo cargo, em acentuado desprestgio desde 37
a.e.c., abalado pela ao centralizadora de Herodes, s seduzia ainda
membros da prpria classe sacerdotal. O Evangelho de Joo registrou
este desgaste do sumo sacerdcio frente ao povo judeu em duas
oportunidades24
, sugerindo que o ofcio no cargo era anual. No era,
como demonstra Goodman (1994: 118), mas as rpidas mudanas,
devido aos jogos de poder entre Herodes e, posteriormente, romanos e
famlias sacerdotais, mimaram definitivamente a importncia do cargo
aos olhos dos judeus simples (GOODMAN, 1994: 118).
Concordamos com Goodman em sua anlisedo quadro de
alienao poltica da elite dirigente judaica, falida e sem capital moral
para comandar a Judia25
, mas no temos muita certeza quanto a sua
participao decisiva na ecloso e conduo da revolta. Mesmo
quando Goodman argumenta que a razo da excessiva punio
1994: 388);Cette inscription dcouverte Csare [] porte le nom de Ponce Pilate et indique son tigre officiel, prfet de Jude. Aprs le bref
intermde du rgne dAgrippa, les gouverneurs de Jude prennent le titre de procurateur (HADAS-LEBEL, 1997 : 94). 23
Concordamos com a precisa observao de Martin Goodman (1994: 116):
A Judia havia sido governada durante quase um sculo e meio por monarcas de molde helenstico. Quando as instituies da monarquia
desapareceram naturalmente com a destituio de Arquelau, os romanos
procuraram instituies nativas alternativas para substitu-las. Foram
atrados a promover o sumo sacerdcio liderana da nao apenas por
aquela posio ser no s antiga como tambm venerada pelos judeus. 24Mas um deles, chamado Caifs, que era o pontfice daquele ano, disse-lhe: Vos no sabeis nada (Jo 11:49). Primeiramente levaram-no casa de Ans, por ser sogro de Caifs, que era o pontfice daquele ano (Jo 18:13). 25Eles (o povo judeu) no confiavam nas representaes dos seus pretensos lderes. Se toda a classe dirigente de fato conseguiu, com Josefo, iludir-se de
que seus membros eram a elite judaica natural, foram eles ento a nica
poro da sociedade a ter essa iluso. Outros judeus no sentiam tal
confiana no direito da classe dirigente de governar (GOODMAN, 1994: 57).
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romana estaria ligada a elevada participaoda elite de Jerusalm na
revolta (GOODMAN, 1994: 238-239), acreditamos que a causa disto
estaria no fato de que uma nova dinastia de imperadores, os Flavianos,
necessitava de uma gloriosa conquista, com um triunfo grandioso,
para consolidar e legitimar seu poder. Preferimos a anlise de
TessaRajak que relacionou o desgaste e racha entre dirigentes judeus e
romanos como um fruto das vacilaes e inabilidades de sucessivos
governantes latinos na administrao da regio, como tambm sendo
gerada pelas disputas polticas locais e pela incapacidade da elite
hierosolimitana em lidar com os complexos problemas que a Judia da
segunda metade do sculo I se encontrava26
. H uma clara falta de
identificao entre as classes sociais (RAJAK, 1983: 85) e um surto
de banditismo rural que nos revela a desintegrao que a tradicional
sociedade camponesa da Palestina sofreu27
. Rajak (1983: 123-124) e
Goodman (1994: 61-64) apontam perodos de secas e de aguda crise
econmica na dcada de 60 e.c. Fica evidente a inabilidade da classe
dirigente em administrar a regio, com suas instituies
constantemente vistas como injustas e intolerveis (HORSLEY;
HANSON, 1995: 58), sem indcios de um sincero engajamento em um
levante popular contra o domnio romano. Como os romanos
tradicionalmente viam as elites como as portadoras de riqueza
26
Para Rajak (1983: 78): a rift between Jews and Romans had been opened by bad governors and was widened by various criminal or reckless types
among the Jews themselves, for their own ends, or out of their own madness
[]. The inactivity of the established leadership made this possible. 27
Segundo Horsley e Hanson (1995: 57-58):o banditismo social surge em sociedades agrrias tradicionais, em que os camponeses so explorados por
governos e proprietrios de terras, particularmente em situaes nas quais
os camponeses so economicamente vulnerveis e os governos
administrativamente ineficientes. Esse banditismo pode aumentar em pocas
de crise econmica, incitado pela fome ou elevada tributao, por exemplo,
bem como em perodos de desintegrao social, talvez resultante da
imposio de um novo sistema poltico ou econmico-social [...]. O contexto
econmico-social do antigo banditismo judeu apresentava exatamente essas
condies.
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fundiria (GOODMAN, 1994: 131), e tampouco tinham sensibilidade
para entender estruturas sociais distintas da sua28
, esta insistncia
romana em apoiar a elite judaica, seja pela descendncia sacerdotal
desgastada, ou pela riqueza agrria, s fez piorar a situao. Os
publicanos29
, preferidos pelos romanos como mandatrios locais, eram
sumariamente desprezados pelos judeus30
. Mesmo o evergetismo,
trao fundamental da poltica romana31
, parece que nunca seduziu por
completo os judeus da Palestina: Herodes atraia muito mais a
admirao grega por suas obras do que a judaica32
. Em resumo, esta
elite nacional judaica, que Josefo representava ativamente, padecia de
uma iluso se sentindo como inquestionvel. Roma tambm,
assentando seu poder nestes clientes judeus33
, ignorava
completamente a situao complexa da Judia do sculo I. Yosef
28O governo romano era culposamente ignorante a respeito das estruturas sociais dos povos submetidos no imprio. Essa ignorncia era profunda e
entranhada em todo o arcabouo mental romano atravs do qual eles
compreendiam outras naes (GOODMAN, 1994: 247). 29Em outras provncias do Imprio Romano os homens ricos que arrecadavam os impostos estatais estavam entre os membros mais
respeitados da sociedade. Chegando ateno de governadores romanos
atravs de tais servios, eram eles justamente a espcie de homens que se
tornavam procuradores do imperador e cujos descendentes eventuais
ascendiam classe dirigente romana (GOODMAN, 1994: 137). 30
O assombro, registrado no Evangelho de Lucas, que os fariseus
manifestaram ao saber que Jesus tinha se reunido em refeio com
publicanos, confirma esta viso negativa que os judeus palestinos tinham dos
coletores de impostos; Lucas 5:27-32. 31
Sobre a relao entre o papel sacerdotal do imperador e oevergetismo em
Roma: GORDON, 2004: 134-140. 32
Josefo registra no Bellum Judaicum muitas passagens que refletem a
gratido grega ao evergetismo praticado por Herodes, em contraposio ao
silncio judeu sobre a maioria destas obras. Um longo relato das aes
promovidas por Herodes com intuito de alegrar os gregos, incluindo o
patrocino de um jogo olmpico, segue em Bellum Judaicum, I: 401-418. 33
Sobre a relao do Estado imperial romano com lideranas clientes do
oriente: SARTRE, 1994: 60-66.
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benMattitiahoue a classe sacerdotal a que pertencia eram marginais na
sociedade que deveriam dirigir.
No entanto, apesar desta profunda alienao poltica, em 66
e.c. estava o partido moderado de Josefo coordenando a resistncia e administrando a Palestina judaica rebelada. Apesar da desconfiana
de grupos populares como os sicrios e os zelotes, algum prestgio
eles ainda deveriam ter. Antes mesmo da revolta, em 64 e.c., o jovem
fariseu Yosef benMattitiahou integrou uma comisso que viajou at
Roma (Vita, 13-16) a fim de negociar junto a Popeia Sabina a
libertao de alguns sacerdotes detidos34
. Conforme observaram
David Rhoads35
e MireilleHadas-Lebel (1991: 73) a viagem o deve ter
impressionado muito, estando na grande cidade e no centro do poder
do grande imprio,e talvez esta experincia tenha aprofundado suas
dvidas sobre as reais chances de sucesso de um levante. A comisso
foi bem sucedida e Josefo deve ter colhido algumas glrias entre os
dirigentes de Jerusalm e os judeus de Roma36
. Hadas-Lebel(1991:
60) deduz que j neste ano Josefo deveria conhecer a lngua grega, ao
menos o suficiente para participar da embaixada judaica, observao
reforada por Momigliano (1992: 186) quando aponta a dupla
formao de Josefo, versado no judasmo farisaico e na retrica
34Em 64, com 26 anos completos, Josefo foi encarregado de uma misso em Roma. Tratava-se, observa ele, de conseguir a libertao de alguns
sacerdotes amigos seus, homens distintos. Segundo o relato bastante sucinto contido na Autobiografia, o procurador da Judia, Flix (52-60),
no se sabe por que razo, tinha mandado prend-los e lev-los a Roma para que se explicassem diante do imperador Nero. Josefo gaba-se de ter
tido xito nessa misso intervindo junto imperatriz Popia (HADAS-LEBEL, 1991: 58). 35Josephus was especially impressed by the might of Rome. When he returned in 66 C. E. to a Jerusalem on the brink of revolt, he tried to
dissuade those bent on revolution by reminding them of the power of Rome (RHOADS, 1976: 06). 36
Sobre a relao de Josefo com os judeus de Roma: HADAS-LEBEL, 1991:
67-72; GOODMAN, 1994 A.
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grega37
, se enquadrado numa constituio helenstica geral das elites
de Jerusalm que poderia provocar censura de alguns dos lderes
populares do levante. Seu retorno ao lar dos judeus ocorreu
praticamente ao mesmo tempo em que o rompimento com Roma se
dava, e mais uma vez Josefo esteve presente no centro das decises
judaicas38
: foi confiado a ele o comando e organizao da Galileia
(alta e inferior) e de Gamala, em Golan. Novamente podemos supor
que seu prestgio entre os dirigentes hierosolimitanos era alto, pois a
Galileia no era uma regio pacfica.Fazendo fronteira com os partos e
com o reinado de Agripa, ao norte de Jerusalm e sul da provncia da
Sria, a regio era a provvel porta de entrada dos romanos na
Palestina judaica independente, situao que se confirmou. No
obstante, a situao interna parecia catica, j que a ordem poltica
herodiana e romana desintegrou-se primeiro l, mergulhando a regio
num surto de banditismo. Historicamente a Galileia sempre foi uma
regio complexa e particular, prensada entre imprios e
continuadamente invadida. Horsley (2000: 23) observa que:
Tanto as tradies hebraicas com a literatura judaica
recente apresentam o povo da Galileia como ardentemente
independente. Esse povo precisava ser assim, pois um
soberano estrangeiro aps o outro assumia o controle da
regio e determinava sua vida e sua geografia [...]. Os
galileus devem ter sido resistentes e persistentes para
37
Josefo afirma que estudou lngua grega antes de 64 em Antiquitates
Judaicae, 20, 263. Procurei tambm, atravs de muito esforo, ter acesso aos textos e disciplinas elaboradas em grego, depois de ter recebido lies
de gramtica, ainda que, na verdade, eu no consegui a pronncia correta,
j que a maneira peculiar dos judeus ver as coisas me impediu. 38Ao voltar de sua misso, Josefo certamente no partidrio de um confronto com Roma. No acaba ele de beneficiar-se de apoios na corte
imperial, de avaliar o nmero de seus correligionrios na capital do mundo?
E, no entanto, alguns meses mais tarde, ele se encontra no s envolvido na
guerra contra Roma, mas tambm investido de uma responsabilidade muito
grande: o comando de toda a Galilia e da regio do Golan (HADAS-LEBEL, 1991: 77).
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manter seu esprito independente ao longo de uma srie
aparentemente interminvel de dominadores estrangeiros,
desde as primeiras cidadescananias at o imprio romano.
Mesmo as relaes com Jerusalm e o Templo nunca foram
absolutamente tranquilas (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 28),
registrando os textos bblicos a Galileia como uma regio conquistada
e dominada pela realeza de Davi e Salomo (HORSLEY, 2000: 26-
28). O cisma das 12 tribos, provocado aps a morte de Salomo,
refora a ideia de que as tribos do norte, dentre elas a regio da
Galileia, no aceitavam passivamente um comando partindo de
Jerusalm.
Assim, no incio da revolta judaica estava Josefo coordenando
os esforos e representando os interesses hierosolimitanos na Galileia.
S dispomos de informaes que ele mesmo nos deu sobre este
perodo, que no so poucas, mas desencontradas e com lacunas
(HADAS-LEBEL, 1991: 251). Seu constrangimento em narrar suas
aes contra a campanha de Vespasiano evidente, e talvez por isto
ele no nos fornea informaes sobre sua formao militar antes de
66. Sendo Josefo escolhido comandante de uma regio importante,
complexa e que seria a primeira a sofrer com a empreitada romana,
deveria conhecer um pouco de disciplina e ttica blicas? No
sabemos. Josefo diz que procurou fortificar cidades, unificar as
guerrilhas locais e organizar um exrcito seguindo o modelo romano.
Informou que provocou imediatas desconfianas entre os lderes
galileus populares quanto as suas intenes frente aos romanos e
Agripa II. Para Richard Laqueureste um indcio que ele abusou de
sua autoridade39
, despertando rancores locais, e Cornelli observa que
sua autoridade na Galileia era to fraca que ele tinha que se valer de
39Josephus abused his mission by assuming the role of tyrant of the northern province. Laqueur builds this part of his reconstruction on Vita, partly the
hypothetical statement of affairs from 67, and partly the final version which is supposed to be determined by Josephus polemics against Justus of Tiberias (BILDE, 1988: 174).
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sua guarda pessoal e de mercenrios para se sustentar, mas no do
povo (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 42). O certo que em sua
misso galileia ele sustentou duas guerras: uma externa, contra
Vespasiano e romanos, e outra interna, contra grupos independentes
de judeus rebelados (IGLESIAS, 1994: 19). E de certa forma foi
engolido pelas duas.
Neste ponto, a posio poltica de Josefo se coloca na
pergunta: ele foi um traidor40
? Aos olhos dos rebeldes, sua capitulao
em Jotapata foi uma grande traio nacional, mas ser que esta era a
viso de sua classe social? As discusses e dvidas acerca de sua
traio so contemporneas aos seus escritos. Justo de Tiberades, um
antigo opositor galileu, contestou o papel de Josefo na guerra em uma
obra que infelizmente no sobreviveu(Vita, 336-367). Imediatamente
Josefo se justificou, publicando uma autobiografia, Vita, no final do
sculo I e.c., na qual estruturou uma defesa poltica pessoal temperada
com algumas informaes pessoais41
. MireilleHadas-Lebel observa
que a necessidade de Josefo em se autojustificar era to grande que
nove dcimos de Vita so dedicados ao perodo do comando na
Galileia (HADAS-LEBEL, 1991: 77). Todavia, como observa Per
Bilde (1988: 181), a traio de Josefo, negada com constrangimento,
pode ser relativizada se interpretarmos seu comportamento o
comparando com outros judeus de situao social parecida, como
Herodes, Agripa II, Filo de Alexandria, os saduceus e os judeus de
Roma42
. Tampouco devemos desconsiderar que Josefo atemorizado
pelas desgraas da guerra lutou instintivamente por sobreviver,
40
Sobre o tema da traio e Flvio Josefo: VIDAL-NAQUET, 1980. 41
Uma interessante leitura do Vita, observando as contradies com seus
escritos anteriores e violncia que o texto orienta sua polmica foi feita por
Denis Lamour, 1999. 42On a very crude level, of course, Jews in Rome must have seen Josephus as a highly desirable patron. He wasanimportantperson in Roman society. (GOODMAN, 1994 A: 332).
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observao apontada por Elias Canetti43
. Os romanos, antigos
parceiros da aristocracia de Jerusalm, lhe prometeram a vida,
enquanto a causa da independncia judaica lhe colocou o dilema da
sobrevivncia e do suicdio. Foi neste Josefo sobrevivente Flavius Josephus que os judeus da dispora poderiam buscar algum modelo ou orientao frente ao desespero da destruio do Templo e da
desconfiana sofrida pelo Judasmo dentro do Imprio. Ele no
renegou sua f judaica para se tornar cidado romano (Vita, 422-423),
e trabalhou na redao de uma obra que se dedicou em mostrar que o
Judasmo poderia ser compatvel com a sociedade romana e ordem
imperial44
. Aristocrata, fariseu, sacerdote com prestgio dentro da
classe dirigente de Jerusalm, a posio poltica de Josefo transitou
entre romanos e judeus, primeiramente tentando preservar a posio
de destaque de sua classe social na Judia e, depois da catstrofe de
70, negociando a sobrevivncia de sua religio em um ambiente hostil
ao povo de YHWH. Este homem intermedirio (VIDAL-NAQUET,
1980: 32) permaneceu cindido at o fim, tentando sepultar as suspeitas
que o cercavam e seus fantasmas passados escrevendo histrias do
Judasmo, com se tivesse a necessidade de se convencer de sua
grandeza. Ator de paixes polticas e religiosas, testemunha parcial de
43
Segundo Canetti (1983: 251), o momento de sobreviver o momento de poder. O espanto diante da viso da morte se dissolve em satisfao, pois
no se o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente est de p. como
se um combate tivesse antecedido aquele momento, e ns mesmos tivssemos
derrubado o morto. Na sobrevivncia, cada qual inimigo do outro,
comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor no tem muita
importncia. Mas importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de
um ou de vrios mortos. Ele se V s, se sente s, e, quando se fala do poder
que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua
unicidade e somente dela. 44Josephus could have identified himself with Roman society. Much of is writing was aimed at convincing both Jews and Romans that the practice of
Judaism was not incompatible with living in a roman society, and it would
have been entirely logical for him to present himself as a Roman of the Jewish faith (GOODMAN, 1994 A: 334).
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deprimidos acontecimentos e fundador de uma historiografia
judaica45
, sua traio ajudou a nos legar uma obra forte e
impressionante, sem paralelos para o historiador moderno dedicado ao
perodo. Sua triste sorte revelou-se nosso prodgio. Estranhos
caminhos da Histria.
Documentao Textual
JOSEPHUS. The Life.Against Apion. Translated by H. St. J.
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45
Denis Lamour (2006: 145) observa que Josefo foi o primeiro judeu que procurou levar em considerao, por um lado, o encadeamento lgico das
causas materiais e, por outro, o desgnio impenetrvel de Deus de Israel,
tendo evitado, ao mesmo tempo, a perdio.
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31
O Cuidado para com os Pobres no Cristianismo Primitivo Reflexes a partir de Joo Crisstomo
Carlos Caldas46
Uma das principais caractersticas das produes teolgicas
surgidas na Amrica Latina desde a segunda metade do sculo XX tanto a Teologia da Libertao (TdL) como a Teologia da Misso
Integral (TMI) nfase e a ateno dadas ao fato que as igrejas crists
devem dar aos pobres, explorados e oprimidos em sua atuao no
mundo47
. Evidentemente h uma diferena imensa e uma distncia
quase abissal entre as duas correntes teolgicas latino-americanas no
que diz respeito ao lugar e ao papel do pobre para a reflexo teolgica
e ao pastoral ou ao em misso da igreja no mundo. Enquanto a
TMI enfatizou a importncia do envolvimento social como parte
integrante e absolutamente essencial para o cumprimento da misso da
igreja no mundo, a TdL enfatizou o pobre como chave hermenutica
da leitura bblica e como sujeito da reflexo teolgica. Alguns crticos
podem pensar que a TMI tmida demais, especialmente se
comparada TdL. No obstante, impossvel negar que a TMI
representou avano, se comparada ao pensamento dos que advogam
uma compreenso da misso da igreja em termos puramente
espirituais (entre muitas aspas...), metafsicos e extramundanos. So os que no meio evanglico latino-americano e brasileiro entendem a
misso da igreja apenas, nica e exclusivamente em termos de
46
Carlos Caldas, Doutor em Cincias da Religio pela Universidade
Metodista de So Paulo, professor da Escola Superior de Teologia e do
Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, So Paulo. ccaldas@mackenzie.br 47
As igrejas que seguem orientao teolgica libertacionista chamaro esta
atuao de ao pastoral ou simplesmente pastoral, e as que se afinam com a linha teolgica da misso integral a chamaro de misso. Para mais detalhes consultar Longuini Neto (2002: passim).
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32
evangelizao, com vistas salvao da alma. Nesta viso, sem dvida estreita, tudo que no tem a ver diretamente com
evangelizao tido como perda intil de tempo, energia e dinheiro.
O fim ltimo da misso o crescimento numrico da igreja. Esta
perspectiva terica, que gera uma prtica concreta de misso, foi
desafiada pela TMI. A grande referncia da TMI est no documento
conhecido como Pacto de Lausanne, produzido no Congresso
Internacional para Evangelizao Mundial (conhecido mais
simplesmente como Congresso de Lausanne), realizado em 1974. O
Pacto de Lausanne (PL) gerou uma srie de encontros menores que
por sua vez tambm geraram documentos, que se tornaram conhecidos
no meio evangelical no Brasil como Srie Lausanne48. Dentre estes volumes merecem destaque especial Viva a simplicidade!
Compromisso evanglico com um estilo de vida simples (1985) e
Evangelizao e responsabilidade social (1984). Lausanne revigorou
e oxigenou a reflexo teolgica e a prtica missionria das igrejas
simpatizantes e aderentes da TMI. Nunca demais destacar que a
atuao dos telogos evangelicais latino-americanos Ren Padilla (do
Equador), Samuel Escobar (do Peru) e Orlando Costas (de Porto Rico)
tanto no Congresso de Lausanne como na redao do PL foi
determinante para que a teologia evanglica conservadora
compreendesse que a misso da igreja no se resume a um discurso
terico e mera aceitao de contedos racionais. A TMI advoga que,
sem embargo do anncio do evangelho, to caro s igrejas de tradio
evanglica, deve haver tambm um envolvimento com questes de
natureza social, econmica e poltica49
. Nos ltimos anos a TMI
desenvolveu articulaes interessantes em sua prxis50
, tais como a
48
Os dez volumes da Srie Lausanne foram publicados no Brasil pela ABU
Editora e Viso Mundial de 1982 a 1985. 49
Para detalhes quanto TMI e sua atuao no contexto hispano-americano,
consultar: www.kairos.org.ar 50
A palavra prxis utilizada no na acepo do senso comum, que a
entende como mero sinnimo de "prtica", mas em seu sentido de reflexo
sobre a prtica. O conceito de "prxis" bastante antigo, pois tem razes
remotas no pensamento de Aristteles. Todavia, se tornou termo tcnico
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Rede Miquias (Mica Network) 51
e a RENAS Rede Evanglica Nacional de Ao Social
52. So movimentos que priorizam de diversas
maneiras a responsabilidade e o cuidado que a igreja em misso no
mundo deve ter para com o pobre, o oprimido e o necessitado. Neste
sentido, a TMI resgatou o aspecto original do evangelicalismo
britnico dos sculos XVIII e XIX, o qual j tinha em sua gnese a
compreenso e a prtica do envolvimento em questes de natureza
social, poltica e econmica53
. O evangelicalismo movimento
teolgico multifacetado por demais. H pontos em comum entre suas
diversas ramificaes, como o aspecto fortemente estaurocntrico do
movimento, com uma viso substitucionria anselmiana da morte de
Jesus na cruz, alm das bandeiras Solas da Reforma Protestante do sculo XVI (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura e Solo Christo,
ou Solus Christus respectivamente, S a f, S a Graa, S as Escrituras e S Cristo). Mas vertente latino-americana do evangelicalismo conhecida como Evangelicalismo radical, pela compreenso que tem da necessidade de radicalidade na insero em
problemas de natureza social, poltica e econmica, levando em conta
central no materialismo histrico de Karl Marx, que, a partir de sua
interlocuo com o pensamento de Ludwig Feuerbach, a entende como
atividade humana a um s tempo prtica e crtica. Prxis sem dvida
conceito multifacetado. Antonio Gramsci deu-lhe novos contornos, e o
mesmo fizeram Georg Lukcs e Jurgen Habermas. A teologia prtica na
Amrica Latina se apropriou do termo, utilizando-o farta, no sentido acima
citado, de reflexo crtica sobre a ao pastoral da igreja em misso. 51
Para detalhes quanto aos propsitos e atuao da Rede Miquias, consultar
o web site do movimento: http://redemiqueias.org/ 52
Para detalhes quanto aos propsitos e atuao da RENAS, consultar o web
site do movimento: http://www.renas.org.br/ 53
Exemplo clssico William Wilberforce (1759-1833), poltico ingls, lder
do movimento anti-escravagista no Imprio Britnico. Sua ao poltica foi
motivada por sua convico teolgica evangelical. Para detalhes quanto sua
teologia, consultar Wilbeforce, William. Cristianismo verdadeiro. Braslia:
Editora Palavra, 2008.
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especialmente (mas no apenas) as doutrinas da criao e da
encarnao54
.
J a TdL foi sem dvida mais avanada que a TMI no que diz respeito ao envolvimento da igreja em misso no mundo com
questes sociais. Gustavo Gutierrez por exemplo (1981), padre
catlico peruano, fala a respeito da fora dos pobres na histria. A hermenutica bblica latino-americana de inspirao libertacionista
usou a figura do pobre como chave de leitura dos textos bblicos.
Exemplo de tal utilizao a Bblia Sagrada Edio Pastoral publicada no Brasil por Paulus desde 1991. Trata-se de uma edio da
Bblia com um portugus simplificado, apropriado para pessoas com
pouca leitura (ao estilo da Nova Traduo na Linguagem de Hoje da
Sociedade Bblica do Brasil), com comentrios em notas de rodap,
em perspectiva de uma hermenutica libertacionista clssica55
. A TdL
latino-americana de inspirao catlica recebeu impulso quando a
Conferncia do Episcopado Latino-Americano em Medelln,
Colmbia (1968) assume a opo preferencial pelos pobres. Anos mais tarde o Vaticano envidou esforos para esvaziar a ao engajada
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), punir eclesisticos afinados com a TdL, fechar instituies de ensino comprometidas com
a proposta pedaggica da teologia libertacionista. Caso clssico neste
sentido foi o acontecido com o ITER Instituto Teolgico do Recife criado pelo legendrio Dom Helder Cmara em 1968 e fechado por
54
Para detalhes quanto ao evangelicalismo radical latino-americano
consultar, inter alia: CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuio
na histria da teologia latino-americana. So Paulo: Vida, 2007, pp. 74-83. 55
Desnecessrio dizer que um empreendimento desta natureza, ainda que
chamado de pastoral, no deixa de ser acadmico (se bem que o pastoral e o acadmico no esto em oposio antes, devem se completar. Os Pais da Igreja que o digam!). Toda e qualquer chave de leitura para as Escrituras se
transformar, mais cedo ou mais tarde, em um leito de Procusto, pois, por incrvel que parea, sempre ser algo externo ao texto bblico, e na prtica
pode produzir uma contradio, isto , uma eisegese e nem tanto uma
exegese.
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determinao expressas do Vaticano em 1989, onde lecionaram
expoentes da TdL, como Joseph (Jos) Comblin, conhecido
missionrio e telogo belga radicado no Brasil. O ITER foi uma das
principais casas de educao teolgica e formao clerical catlica no
Brasil, na qual o ensino da TdL estava ligado ao trabalho das CEBs e da insero em movimentos sociais e populares.
Esta breve introduo apresenta duas perspectivas teolgicas
latino-americanas bastante diferentes em termos de mtodo teolgico
e pressupostos tericos, mas com um ponto em comum, a saber, a
compreenso que, biblicamente, a igreja tem responsabilidade para
com o pobre. O que se pretende apresentar neste captulo que, na
verdade, a preocupao e o cuidado para com os pobres no uma
inovao produzida no cristianismo latino-americano a partir da
segunda metade do sculo XX. Antes, era prtica do cristianismo
primitivo. Como exemplo, mostrar-se- a atuao de So Joo
Crisstomo (349-407), um dos Pais da Igreja Oriental. Pretende-se
apresentar o antecedente histrico, seguido de uma tentativa de
dilogo entre o pensamento teolgico e pastoral de Joo Crisstomo e
a teologia latino-americana contempornea.
Joo Crisstomo Esboo biogrfico56
nasceu em Antioquia, sia Menor (atual Antakya, sul da Turquia) no ano 349. poca do seu
nascimento, Antioquia era a terceira cidade do Imprio Romano. Joo
passou histria com o apelido Crisstomo literalmente, boca de ouro, por conta de seus dotes de oratria e retrica, que lhe deram fama e o tornaram conhecido como o maior orador da igreja grega. A
alcunha lhe foi dada no sculo sexto. Filho de famlia culta e abastada,
Joo perdeu seu pai muito cedo. O pai de Joo, por nome Segundo,
srio de nascimento, era oficial do exrcito romano, tinha o ttulo de
56
Informaes extradas de Hall, Kelly, Altaner & Stuiber, Hamman e
Meulenberg.
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Magister Milium Orientis. Sua me, Antusa, era crist piedosa, e
contava com apenas 20 anos quando perdeu Segundo. Joo
praticamente no conheceu o pai. Antusa no entanto esforou-se para
providenciar para o filho educao da melhor qualidade. O primeiro
mestre de Joo em Filosofia e Retrica foi o filsofo sofista pago
Libnio ()57. batizado aos 18 anos, e no h relatos que tenha passado por alguma experincia de converso em moldes
dramticos como aconteceria, grosso modo, sculo e meio mais tarde
com o no menos famoso Agostinho de Hipona (que, a propsito, foi
mais tarde influenciado por Joo Crisstomo em sua abordagem ao
texto bblico). Joo se fez discpulo de Deodoro de Tarso,
representante da conhecida Escola de Antioquia de exegese bblica, caracterizada pela nfase no sentido literal dos textos bblicos (em
contraposio Escola de Alexandria, no Egito, famosa pela
interpretao alegrica)58
. Deodoro prope o que denominou theoria
ou contemplao, o que inclua anlise sinttica propriamente do texto bblico, alm da importncia dada ao elemento histrico dos
relatos bblicos (no tido como to importante pelos exegetas da
Escola de Alexandria, que davam mais valor ao elemento espiritual dos textos bblicos). A respeito do modelo de interpretao bblica em
Antioquia, David Dockery declarou:
De maneira geral, verdade que os alexandrinos viam um
significado literal e alegrico, e os antioquenos
encontravam um sentido histrico e tipolgico. Os
alexandrinos voltavam-se para a regra de f, a interpretao
mstica e a autoridade como fontes do dogma. Por sua vez,
os antioquenos voltavam-se para a razo e para o
desenvolvimento histrico da Escritura como foco da
teologia. Os antioquenos tinham mais conscincia do fator
57
Curiosamente, Baslio de Cesaria, outro dos grandes Pais da Igreja
Oriental, tambm foi aluno de Libnio. 58
Quanto ao modelo de interpretao bblica de Alexandria consultar, inter
alia: HALL, Christopher. Lendo Lendo as Escrituras com os Pais da
Igreja. Viosa: Ultimato, 2000, p. 147-165.
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humano da Escritura e buscavam ser justos com a autoria
dual da revelao bblica59
.
Dado o fato que Joo se notabilizou por seu trabalho como
pregador, importante sabe a maneira pela qual ele interpretava as
Escrituras. Retomar-se- este tema adiante neste captulo. Alm disso,
Joo e Teodoro de Mopsustia (c. 350-428) foram os principais nomes
da assim chamada Escola de Alexandria. Por hora, interessante
observar que
Para Crisstomo, teologia e hermenutica no eram
exerccios tericos, mas prticos e pastorais. Ele acreditava
que a mensagem bblica gerava mudanas na vida das
pessoas. Declarou que a mensagem divina das Escrituras
preparava as pessoas para boas obras60
.
A interpretao bblica praticada por Crisstomo e por seus
pares da tradio de Antioquia portanto leva em conta aspectos
humanos propriamente do texto bblico, tais como figuras de
linguagem, de estilo e de pensamento, mas ao mesmo tempo o texto
visto como revelao de Deus, e, via de consequncia, autoritativo.
um modelo de leitura bblica que faz lembrar o assim chamado
mtodo histrico-gramatical, desenvolvido sculos mais tarde, e ainda
hoje muito em voga na maioria das escolas teolgicas evanglicas de
corte conservador no Brasil e na Amrica Latina. Vale ainda destacar
que Antioquia no tem um conceito fundamentalista e fechado de
revelao, no qual os escritores bblicos so vistos como autmatos.
Por um tempo Joo vive entre monges em montanhas, em
ascetismo rigoroso de jejuns e viglias, o que comprometer em
definitivo sua sade. Robert Payne descreve de maneira vvida o
perodo monstico de Joo:
59
DOCKERY, David. S. Hermenutica contempornea luz da igreja
primitiva. So Paulo: Vida, 2005, p. 115. 60
DOCKERY, op. Cit., p. 115.
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Ele recolheu-se em uma gruta, onde negava-se a dormir e
lia a Bblia continuamente, e passou dois anos sem deitar-
se, visivelmente na crena de que um cristo deve estar
pronto para obedecer determinao: s vigilante. O resultado foi inevitvel: seu estmago contraiu-se e seus
rins foram afetados pelo frio. Sua digesto estava sempre
difcil. Incapaz de curar a si mesmo, ele desceu a montanha,
foi para Antioquia e apresentou-se ao arcebispo Melcio,
que o enviou imediatamente a um mdico61
.
Na sequncia, Joo foi dicono por Melcio entre 380/381.
Como tal, trabalhou em Antioquia, sua terra natal, provavelmente
entre os anos 386-397. No incio da ltima dcada do quarto sculo da
era crist ordenado sacerdote. Conta ento com quase quarenta anos
de idade.
Uma das tarefas s quais Joo mais se dedica a pregao.
pregador ousado e combativo: condena erros de clrigos, critica
costumes pagos antigos, como os jogos de gladiadores, espetculos
teatrais imorais e corridas de cavalos, a instituio da escravido
(ainda que no com a mesma intensidade com que criticou a falta de
misericrdia dos ricos para com os pobres), as festas em honra aos
antigos deuses, critica o consumismo e a ostentao, defende a causa
dos pobres e dos oprimidos. Este ltimo tema ser abordado com mais
detalhes adiante. Suas homilias no raro so comentrios bblicos.
Comenta Gnesis, Salmos, Isaas, o Evangelho de Mateus, o
Evangelho de Joo, Atos dos Apstolos, a Epstola aos Romanos, a
Epstola aos Hebreus62
. Sua grande preocupao aplicar o texto
bblico vida diria dos fiis. Para tanto, usa com xito ilustraes a
61
PAYNE, Robert. Fathers of the Eastern Church. New York: Dorset
Press, 1989, p. 195, apud. HALL, op. cit., p. 91.. 62
Cf. HALL (op. cit., p. 97) Joo Crisstomo escreveu 90 homilias sobre o
Evangelho de Mateus, 55 sobre Atos, 32 sobre Romanos, 44 sobre 1 e 2
Corntios, um comentrio sobre Glatas, 24 homilias sobre Efsios, 15 sobre
Filipenses, 12 sobre Colossenses, 18 sobre 1 Timteo e 34 sobre Hebreus.
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um s tempo vvidas e comunicativas, extradas muitas vezes de
atividades comuns do dia a dia.
Dedica-se tambm obra literria. escritor prolfico. So de
sua lavra catequeses batismais (textos preparatrios para os candidatos
ao batismo), e tratados: Sobre o Sacerdcio, Sobre a Vida Monstica,
Sobre a Virgindade (De virginitate), Sobre a providncia de Deus.
Sobre o Sacerdcio (Per hierosnes traduzido para o latim como De sacerdotio) at os nossos dias um clssico no assunto. Conforme
Hamman,
Joo Crisstomo um orador nato. Conhece o tom
pitoresco, a mania de sarcasmo, os jogos de palavras (que
mais tarde lhe custaro caro), a apstrofe direta, franca,
apaixonada63
.
No de se admirar que sua fama de bom pregador crescesse e
se espalhasse. A respeito de Joo dito que multides se reuniam para
ouvir seus sermes, claros e corajosos. No de se admirar tambm
que por esta causa tenha granjeado admiradores e adversrios.
Mais tarde, Joo foi indicado bispo de Constantinopla, capital
do Imprio Romano do Oriente sem dvida um privilgio, visto ser
aquela cidade uma das grandes ss da igreja64
. Mas por diferentes
questes pessoais, polticas e religiosas, Joo foi expulso de
Constantinopla no ano 404, por ordem direta do prprio imperador
Arcdio (Flavius Arcadius), da citada poro oriental do imprio. Isto
porque em alguns dos seus sermes Joo criticara Eudxia, esposa de
Arcdio. Esta tinha grande influncia sobre o marido, e conseguiu que
ele exilasse o bispo. Na verdade, o exlio de Joo se deu por conta de
63
HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. So Paulo: Paulinas, 1980, p. 195. 64
As outras eram Jerusalm (bero do Cristianismo), Antioquia (me do
movimento missionrio mundial), Alexandria (cidade importante no Egito) e
Roma (a capital do imprio).
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crticas contundentes feitas em seus sermes contra a falta de
escrpulos de polticos, a avareza e a ambio que viu na corte. Em
seus sermes denunciou tambm colegas do clero. Os ltimos trs
anos da vida de Joo foram passados em uma cidade pequenina
chamada Cucusus, nas montanhas da Armnia, em condies bastante
severas.
Joo considerado um dos quatro Doutores da Igreja Oriental
(os outros trs so Atansio, Gregrio de Nazianzo e Baslio o
Grande). A tradio crist oriental consagrou-lhe o dia 13 de
novembro. J a tradio crist ocidental no protestante consagrou-lhe
o dia 13 de setembro, o dia anterior sua morte no ano 407. Suas
ltimas palavras foram: Glria seja dada a Deus em tudo. Neste dia, nestas igrejas feita a seguinte orao: Vinde Esprito Santo, dai-nos a tmpera dos mrtires, dai-nos anunciar, mas tambm como
So Joo Crisstomo fez, denunciar aquilo que injustia, que
mentira, que prejudica principalmente os mais pobres. Vinde Esprito
Santo, dai-nos a ousadia dos homens e mulheres de Deus 65.
O cuidado para com os pobres nas homilias de Joo Crisstomo
Joo ficou conhecido como homem de grande sensibilidade,
piedade, orao e compaixo. A seguir, citar-se-o partes de sermes
de Joo, exatamente a respeito da compaixo que os cristos devem
ter para com os pobres e necessitados:
medida que passava pelo mercado e pelas ruas estreitas
[...] vi no meio das ruas muitos excludos, alguns com as
mos feridas, outros com olhos vazados, outros cheios de
lceras purulentas e feridas incurveis, fazendo exposio
daquelas partes do corpo que, por conta de sua podrido
65
Extrado de
http://www.cancaonova.com/portal/canais/liturgia/santo/index.php?dia=13&
mes=9 [Acesso: 12 out 2010]
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concentrada, deveriam estar ocultas. Pensei que a pior falta
de humanidade seria no apelar ao vosso amor para com
eles, especialmente agora que a estao66
nos fora a voltar
a este assunto67
.
Neste mesmo sermo, bastante longo por sinal, o Crisstomo
faz um passeio pelas Escrituras, trabalhando com vrios textos para basear sua argumentao a favor de um envolvimento concreto com
os pobres da sociedade. Neste esforo para fortalecer sua linha de
raciocnio, cita textos como Glatas 2:9-10, 1 Corntios 16:1-2, 2
Tessalonicenses 2:7, Romanos 15:25, Atos 11:29, e outros mais. Ele
recomenda aos fiis que dem abundantemente aos que precisam68. Sua argumentao no deixa de apelar para o Antigo Testamento: cita
o profeta Osias (6:7) que fala que Deus quer misericrdia, no sacrifcios. Por isso, os cristos no podem ser negligentes na ajuda e no cuidado aos pobres (cf. Mateus 9:3), pois ao ajud-los, quem
verdadeiramente receber ajuda quem a d, e no quem a recebe69
.
De outra feita, Joo criticou de maneira severa os cristos
ricos que no se incomodavam enquanto pobres excludos passavam a
noite no em leitos de prata, mas em catres midos de palha junto
entrada dos banhos pblicos, congelados de rio e morrendo de fome,
enquanto cidados bem vestidos e bem aquecidos saem dos banhos e
vo para suas casas onde os esperam jantares bem preparados, os
pobres morrem de fome sem ter o que comer. Critica tambm a falta
de misericrdia para com os presos nos crceres, com feridas
sangrentas provocadas pelos grilhes que os prendem e pelos aoites
que recebem. Joo condena o egosmo dos ricos que se vestem com
roupas caras enquanto pobres criados imagem e semelhana de Deus
66
Crisstomo se refere ao inverno rigoroso da sia Menor, durante o qual os
pobres e desvalidos se encontravam em situao ainda pior que a enfrentada
com o clima ameno das outras estaes. 67
St. John Chrysostom. On Repentance and Almsgiving, p. 131. 68
St. John Chrysostom, op cit., p. 149. 69
St. John Chrysostom, op cit., p. 146.
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morrem de frio nas ruas. Em uma de suas homilias sobre 1 Timteo,
Joo apela para a criao do mundo, lembrando aos seus ouvintes e
leitores que Deus no criou um homem rico e outro pobre. Logo,
conclui que a diferena entre o rico e o pobre s pode ter sido criada
pela injustia humana, porque o forte explora o fraco assim como um
peixe grande engole um peixe pequeno. A linha de argumentao de
Joo talvez possa soar como ingnua para mentes modernas: em um
de seus sermes ele argumenta que Deus concedeu indistintamente a
todos os humanos bnos como o sol, o ar, a terra e a gua, sem
qualquer tipo de discriminao. Logo, errado se alguns se apropriam
de riquezas enquanto outros no o podem fazer. Para Joo, as palavras
meu e seu so palavras frias (to psuchron touto rema no sentido de manifestarem indiferena e egosmo). Para Joo, o cristo
que tem recursos deve sempre repartir com quem no tem, e jamais
ser caracterizado pela frieza da indiferena em relao aos que esto
em situao pior que a sua70
. luz de tanta contundncia, no de se
admirar que Joo tenha enfrentado tanta oposio71
. Muito mais
poderia ser dito. Todavia, os exemplos apresentados so suficientes
para demonstrar como, especialmente, mas no somente a partir de
Joo Crisstomo, era importante no cristianismo primitivo o cuidado
para com os pobres.
Joo Crisstomo em dilogo com a teologia latino-americana
O ponto deste captulo mostrar como a teologia latino-americana contempornea, tanto de corte libertacionista como a de
corte evangelical, podem aprender a partir de um dilogo com a
teologia de Joo, expressa em suas homilias. Particularmente, a
questo da importncia do cuidado para com os pobres e desvalidos da
sociedade. A este respeito, Marcelo Barros no Prefcio do livro Joo
Crisstomo. As mos calejadas, afirma:
70
Estes trechos de homilias de Joo so citados por Kelly, op cit., p, 97-99. 71
Cf. Kelly, op cit., p. 136.
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O modo de ler a Bblia de nossas comunidades
parte da realidade do amor e da solidariedade
efetiva para com os milhes de pessoas excludas
dos mnimos meios de sobrevivncia neste
sistema social em que vivemos. Vamos descobrir
a mesma sintonia na palavra engajada de Joo
Crisstomo que se ofereceu como delegado dos pobres e procurador da justia de Deus para os pequenos deste mundo
72.
Por um lado, h uma distncia quase abissal entre a teologia
expressa nas homilias do Crisstomo e as formulaes da TdL de um
lado, e da TMI do outro. E nem haveria como ser diferente. As
diferenas de mtodo so gritantes. A TdL em sua formulao clssica
trabalhou a partir do referencial terico do conceito marxista de luta
de classes. Da possvel afirmar que os objetivos da TdL so
diferentes dos de Joo. Analisados a partir da tica da TdL, as
homilias de Joo podem revelar uma viso apenas assistencialista e
paternalista, o que deplorvel para um telogo libertacionista. A
partir da talvez seja possvel afirmar que a teologia veiculada nos
sermes de Joo se aproxime mais da viso clssica da TMI que da
TdL. Pelo menos, em tese. Ao mesmo tempo, h que se reconhecer
que os telogos evangelicais latino-americanos que se afinam com a
TMI na maioria das vezes sequer se aproximam da coragem e da
contundncia do Crisstomo, no que diz respeito a estas questes.
Conforme afirmado acima, Joo apela para a doutrina da criao em
sua crtica falta de misericrdia dos ricos e o pedido que faz a estes
para que ajudem os pobres. A partir da, possvel afirmar que, ao
menos in nuce, h nas homilias do Crisstomo os princpios para uma
teologia da pobreza e da riqueza. Este aspecto tem sido em geral
esquecido pela TMI. Neste sentido, os telogos latino-americanos que
se identificam com a misso integral da igreja enriquecero sua
perspectiva teolgica a partir de um exame srio desta fonte patrstica
importante.
72
Marcelo Barros. Prefcio de: Joo Crisstomo. As mos calejadas, II.
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Olhada a partir deste prisma, tanto a TMI como a TdL podem
ser renovadas e revitalizadas a partir de uma dinmica de
(re)descoberta da fonte patrstica que a teologia expressa nas
homilias de Joo Crisstomo. A TMI pode aprender com a ousadia de
Joo na denncia do mal que o acmulo de riquezas. A TdL por sua
vez pode aprender a enriquecer e a aprofundar o aspecto pastoral
propriamente da ao de Joo ao ser advogado e porta-voz dos pobres,
especialmente os mais pobres dentre estes. Principalmente nestes
ltimos anos em que a TdL latino-americana se encontra em uma crise
de reviso de modelos e paradigmas. Uma reviso epistemolgica de
seus paradigmas tericos e de seus objetivos certamente benfica e
salutar. Ainda que questes como o meio-ambiente sejam
importantes73
, a TdL na Amrica Latina se beneficiar de uma volta s origens que lhe pode ser proporcionada pelo estudo da teologia de Joo. Alm disso, conforme j afirmado, um telogo libertacionista
clssico decerto rejeitar a teologia expressa nos sermes do
Crisstomo por consider-la assistencialista e paternalista. A TdL
latino-americana em sua formulao clssica, mormente a de corte
catlico, caracterizada por ser mais ambiciosa e talvez megalomanaca, por almejar nada menos que a transformao das estruturas da sociedade, de baixo para cima. Mas um erro comum no
qual consciente ou inconscientemente telogos da libertao podem
cair o de ficarem apenas na teoria, sem um engajamento com o
discurso. No se pretende aqui de modo algum cometer a leviandade
de julgar e generalizar, jogando todos os telogos da libertao na
vala comum de uma incoerncia entre discurso e prtica. Mas este
um erro que pode acontecer. As denncias e exortaes contundentes
e corajosas do Crisstomo podem servir de corretivo a tal situao.
73
Neste sentido interessante observar a mudana do Leonardo Boff
jovem autor de Jesus Cristo Libertador (1972) e de Teologia do Cativeiro e da Libertao (1980) com o Leonardo Boff velho autor de Ecologia: grito da terra, grito dos pobres (1995) e de Ecologia, mundializao e espiritualidade (2008) o sujeito da teologia deixa de ser o pobre para ser o meio-ambiente.
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O cuidado para com os pobres era uma das marcas do
cristianismo primitivo. Joo Crisstomo se destacou por suas homilias
sobre este tema, mas ele de modo algum foi o nico a ter tal
preocupao. Pais da Igreja Ocidental, como Jernimo, Ambrsio e
Agostinho trataram desta questo. Mestres da Escola de Alexandria,
como Clemente e Orgenes, de igual maneira o fizeram74
. A questo
da pobreza no mundo ainda traz desafios pastorais e missiolgicos
srios para a igreja. Certamente est fora de questo uma viso da
misso que se limita a um discurso terico, que visa a transmisso de
contedos meramente espirituais qu
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