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KAIOWÁ/PAĨ TAVYTERÃ: espaço de reafirmação do direito ao Oguatá Porã na
fronteira Brasil/Paraguai
Andréa Lúcia Cavararo Rodrigues1
andreacavararo@gmail.com
Antonio Hilario Aguilera Urquiza2
hilarioaguilera@gmail.com
Marco Antonio Rodrigues3
marcorod.adv@gmail.com
RESUMO: O presente trabalho é fruto da pesquisa em andamento, e tem por objetivo
analisar a dinâmica da mobilidade espacial dos Kaiowá/Paĩ Tavyterã localizados na
região de fronteira Brasil/Paraguai. O estudo privilegia a motivação da mobilidade deste
povo, o rearranjo desta população ao chegar no novo território, à concepção de
mobilidade espacial (Oguatá Porã) para esta população e seus deslocamentos no
espaço/tempo. Partimos de reflexões teóricas de autores como Brand (1993 e 1997),
Cavalcante (2014 e 2016), Colman (2015), Meliá (2008), Pereira (1999 e 2004). O povo
Kaiowá/Paĩ Tavyterã possui processo próprio de ocupação de um território tradicional no
qual ocorrem estes deslocamentos e é nele que as comunidades estabelecem redes sociais
pautadas pelas relações de parentesco e afinidades. A análise histórica e antropológica do
Direito Consuetudinário é importante para que se possa compreender a limitação do
Oguatá Porã pelos Estados Nacionais, desrespeitando o direito de ir e vir desses povos
tradicionais. A pesquisa terá como foco principal a mobilidade entre as aldeias Tei’ykue
no município de Caarapó e Taquaperi, município de Coronel Sapucaia localizadas no
estado de Mato Grosso do Sul/BR e no Paraguai a Aldeia Pysyry, Departamento de
Amambay, distrito de Pedro Juan Caballero/PY. A pesquisa também analisará o impacto
que a mobilidade proporciona na esfera de direitos dos povos indígenas e sua efetividade
à luz da Constituição Federal e da Convenção 169 da OIT.
Palavras-chave: Mobilidade transfronteiriça, Povos indígenas, Territorialidade Kaiowá/
Paĩ Tavyterã, Fronteiras Nacionais, Direitos Consuetudinário.
GT 2: Povos tradicionais, autonomia e Direitos Humanos
1 Mestranda em Antropologia Social - PPGAS pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Bolsita
CAPES. Especialista em Antropologia História dos Povos Indígenas (UFMS/2017). Bacharela em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (2016). Foi Bolsista PIBIC CNPq.2014/15. 2 Professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, orientador da pesquisa. Possui
Doutorado em Antropologia pela Universidade de Salamanca/Espanha; atualmente é docente do curso de
Ciências Sociais, da Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFMS e do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (UFMS) e Professor colaborador da Pós-Graduação em Educação (UCDB). 3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Teoria e
Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). Foi voluntário PIBIC
CNPq 2014/15 e 2015/16.
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2
INTRODUÇÃO
O presente artigo propõe uma análise sobre a dinâmica e motivação da
mobilidade espacial4 dos Kaiowá5/Paĩ Tavyterã localizados na região de fronteira
Brasil/Paraguai e o rearranjo deste povo ao chegar no novo território em ambos os países.
Nesse contexto, as cidades fronteiriças do Mato Grosso do Sul tornam-se
verdadeiros laboratórios de estudo do processo de inserção dos migrantes, sendo um
espaço privilegiado para a discussão dos temas acerca da diversidade e da trajetória
histórica e cultural de povos indígenas (AGUILERA URQUIZA, 2013).
O povo kaiowá/Paĩ6 se refere aos representantes do subgrupo Kaiowá pertencentes
ao tronco Tupi, da família linguística Tupi-guarani, que no Brasil engloba os Kaiowá, os
Ñandeva e os Mby’a (PEREIRA, 1999, p 14). São na maioria bilíngues, ou seja, além do
Guarani, falam o português (Brasil) ou castelhano (Paraguai), todavia os mais idosos
falam somente a língua materna. O Guarani é a língua utilizada cotidianamente entre eles,
em conversas, reuniões e ensinamentos dos “mais velhos” para as crianças e jovens.
O historiador Antônio Brand, em sua tese “O impacto da perda da terra sobre a
tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra”, relata que:
Os Kaiowá (Paĩ Pavyterã) foram descobertos pelo mundo colonial, em
1750-60, por ocasião da execução do Tratado de Madrid (...). Foram
considerados descendentes dos Itatim, cujo território se estendia desde
o rio Apa até o rio Miranda, tendo ao Leste a serra de Amambai e a
Oeste o rio Paraguai (...) (BRAND, 1997, p.49-50; apud MELIÀ, G.
GRÜNBERG, F. GRÜNBERG, 1976).
Alguns estudiosos (MELIÁ, 2008), (BRAND, 1997), (PEREIRA, 1999), dentre
outros, afirmam que os Kaiowá/Paĩ possuíam um território ao Norte, até os rios Apa e
Dourados e, ao Sul, até a Serra de Maracaju e os afluentes do Rio Jejuí, chegando ao
Leste/Oeste por uma distância de aproximadamente 100km, em ambos os lados da Serra
de Amambai, abrangendo uma extensão de terra de aproximadamente a 40Km2. Território
este que, com a Construção dos Estados Nacionais, foi dividido pela fronteira
4 Compreende os movimentos territoriais de população: “a imigração e emigração de indivíduos, famílias
ou grupos” (COLMAN, 2015, p. 20 apud VAINER E MELLO, 2012). 5 Na grafia dos nomes indígenas adoto as normas da Convenção da ABA de 1953 - I° RBA (que pretende
uniformizar a maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em língua portuguesa, ou
seja, descartar o “c” e o “q”, substituindo-os pelo “k”). 6 Ao longo do texto estarei utilizando a escrita “Paĩ “ para me referir a esta população que autodenomina
Paĩ Tavyterã no Paraguai.
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Brasil/Paraguai. Nesta espacialidade localizam-se suas aldeias, tendo como referência as
matas e os córregos, para dimensionar seus territórios como algo específico para cada
família extensa7, e assim poderem dar continuidade ao bom modo de ser de seus
ancestrais. É na aldeia, enquanto tekoha8 que os Kaiowá vivenciam e atualizam seu modo
de ser (BRAND, 1997, p.2-8).
De acordo com o antropólogo Levi Marques Pereira:
Os Kaiowá ocupam uma pequena área situada em uma faixa de terra de
pouco mais de 100 quilômetros de cada lado da fronteira do Brasil com
o Paraguai, onde são denominados de Paĩ Tavyterã. Tradicionalmente
são agricultores de floresta tropical, praticando a caça como principal
fonte de proteína, e a pesca e a coleta como atividades subsidiárias
(PEREIRA, 1999, p. 16).
A partir do período em que os países adquiriram sua autonomia no que tange à
criação dos Estados Nacionais na América, ocasião em que se definiram as fronteiras
regionais pelo critério de fronteiras naturais, foram ignoradas, por conseguinte, as
fronteiras do território tradicional Kaiowá/Paĩ, haja vista bem sabermos que seus tekoha
ficam próximos a córregos ou rios, e foi o que aconteceu com o território tradicional na
fronteira Brasil/Paraguai, mais precisamente tendo o Rio Estrela como divisor entre os
países, também conhecido como “Estrelão”. Podemos citar, também, o processo mais
intenso da perda de territórios tradicionais enfrentado pelos Kaiowá/Paĩ, que se iniciou
com o fim da Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), dando início à
ocupação por frentes de colonos e criadores de gado no estado de Mato Grosso do Sul/BR,
não muito diferente do ocorrido no lado paraguaio. Essa expansão atingiu todo o território
indígena em ambos os lados da fronteira.
Os Kaiowá/Paĩ possuíam uma vasta extensão territorial, mas com a construção
dos Estados nacionais sul americanos, não houve o devido respeito aos direitos dos povos
indígenas de manterem-se em seus territórios e, em decorrência, impedindo-os de suas
práticas culturais. Soma-se a isso, a perda de seus territórios nos últimos quarenta anos,
7 A cada família extensa corresponderá, como condição para sua existência, uma liderança, em geral um
homem que denominam Tamõi (avô), não sendo raro, contudo, a existência de líder de família extensa
mulher, que denominam Jari (avó) – neste caso, a incidência é maior entre os Ñandeva. O líder familiar
aglutina parentes e os orienta política e religiosamente. Cabe-lhe também as decisões sobre o espaço que
seu grupo ocupa no tekoha e onde as famílias nucleares (pais e filhos) pertencentes a seu grupo familiar
distribuem suas habitações, plantam suas roças e utilizam os recursos naturais disponíveis (conforme
https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/555 - acesso no dia 20/10/2016). 8 Tekoha é o lugar físico (teko = modo de ser e ha = lugar onde) – Deve conter, antes de tudo, matas
(ka'aguy) e todo o ecossistema que representa, como animais para caça, águas piscosas, matéria prima para
casas e artefatos, frutos para coleta, plantas medicinais etc (conforme
https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1298 - acesso no dia 20/10/2016).
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em prol da exploração de recursos naturais por grandes empresas tanto do Brasil como
do Paraguai e outros projetos de infraestrutura idealizados sem levar em conta as
especificidades e direitos indígenas, mas que infelizmente foram realizados com a
anuência dos estados nacionais.
A MOBILIDADE ESPACIAL KAIOWÁ/PAI
O povo Kaiowá/Paĩ tem por tradição cultural a prática da mobilidade espacial.
Efetivamente, esta migração indígena faz parte do Direito Consuetudinário9, ou seja, é
uma mobilidade espacial ao longo do território ancestral, prática esta milenar e muito
conhecida dentre os povos indígenas como Oguatá Porã10.
Percebe-se que, para os Kaiowá/Paĩ, o viver bem está ligado ao viver no tekoha,
ou seja, está relacionado à qualidade da terra onde possam ser felizes, da mesma forma
que os seus antepassados foram.
De acordo com Bartomeu Meliá (2016), foram muitas as migrações dos
Kaiowá/Paĩ, desde o século XVI ao século XX, e sempre em busca de terras sem males.
Entenda-se que é uma terra que possua recursos naturais, sendo extremamente importante
para a qualidade de vida desta população indígena. Para os Kaiowá/Paĩ, é fundamental a
preservação do meio ambiente para se manter a relação com o mundo sobrenatural, ou
seja, para a prática cultural (BRAND, 1997). O tekoha se difere e corresponde a um modo
de ser identitário, e que possui um espaço exclusivo, com fronteiras definidas, mas não
demarcadas como as fronteiras dos não indígenas (MELIÁ, 2016).
Nessa inteligência, a mobilidade espacial praticada entre os Kaiowá/Paĩ está
vinculada ao princípio da ancestralidade do território. Eles são povos agricultores que
utilizam um sistema rotativo das terras, de forma a se evitar o desequilíbrio ecológico.
Eles também praticam visitação a seus parentes, podendo ficar por meses até mesmo anos,
mantendo assim suas redes sociais e políticas. Outra causa não menos importante é o
deslocamento para outros territórios a partir de conflitos internos, doenças e acidentes e
imprevistos com parentes, como por exemplo, a morte.
9 De modo geral, o direito consuetudinário é definido como um conjunto de normas sociais tradicionais,
criadas espontaneamente pelo povo, não escritas e não codificadas. O verbete “consuetudinário” significa
algo que é fundado nos costumes, por isso chamamos essa espécie de direito também de direito costumeiro
(CURI, 2012). 10 O termo “Oguatá Porã” (Bonita Caminhada), pertence à cosmologia e apresenta-se como um dos
elementos centrais da cultura deste povo.
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Em vista disso, esbarramos na negação do direito consuetudinário como
consequência da construção dos Estados Nacionais, em que a liberdade dos povos
indígenas de praticar seus deslocamentos espaciais; entretanto isso não quer dizer que
eles sejam nômades (andarilhos errantes), mas é representativo da busca de um lugar onde
possam ser Kaiowá/Paĩ, dentro de seu território tradicional. A autora Keppi (2001) afirma
que é justamente nas relações entre índios e não índios que o direito indígena não é
respeitado, acarretando aos povos indígenas grandes prejuízos, que os leva a se tornar
vítimas de um poder estatal o qual eles não conhecem, mas que lhes é aplicado, muito
embora o Brasil seja signatário da Convenção 169 da OIT.
Para os Kaiowá/Paĩ, as fronteiras nacionais não fazem o menor sentido, mas,
infelizmente, desde o período colonial, sua história vem sendo fortemente marcada e
demarcada pelas fronteiras dos estados nacionais, que possuem o monopólio do uso
legítimo da violência e da força. Eis que impacta frontalmente o modo de vida dessa
população indígena.
Estudos realizados sobre os Kaiowá/Paĩ por Meliá (2008-2016), Brand (1993),
Pereira (1999), Crespe Lutti (2009), dentre outros, tratam a parentela como o princípio
básico da organização social. A parentela ou família extensa é a reunião de várias famílias
nucleares, formada pelo pai, mãe, filhos e agregados. É um núcleo político, social,
econômico e religioso, organizado a partir dos mais idosos, agregando de três a quatro
gerações.
Pereira (1999), descreve a organização social dos Kaiowá11 do sistema de
parentesco, constituindo-se como um grupo não linear em torno de um líder de expressão,
que reúne em torno de si seus parentes mais próximos e aliados, formando assim a
parentela. O autor denomina a família nuclear como fogo familiar/doméstico, e o
estabelece como unidade sociológica no interior da família extensa, que pode ser
composta por vários fogos interligados por relações consanguíneas, afinidade ou aliança
política.
O chefe da parentela atua como centro norteador dos fogos, e seus parentes se
estabelecem ao redor, tanto socialmente como geograficamente. Geralmente os mais
próximos pertencem ao tronco familiar e na medida em que o grau de parentesco vai se
distanciando, vão se constituindo os fogos mais autônomos. São comuns os conflitos
11 Cito apenas a etnia Kaiowá por ter sito a etnia abordada pelo autor em sua dissertação intitulada
“Parentesco e organização social Kaiowá” (1999). Vale ressaltar que na proposta dessa pesquisa estamos
abordando o povo Kaiowá/Paĩ.
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dentro da parentela e, portanto, é função do chefe solucioná-la. Caso não ocorra a solução,
o indígena ou a família deverá buscar outra parentela que tenha afinidade consanguínea
ou política, ou até mesmo ocorrer a mudança de tekoha.
Passando adiante, quando analisamos o fluxo migratório, os indígenas e os
migrantes estarão sempre na situação desconfortável e de vulnerabilidade comum às
minorias sociais, estando sujeitos a todo tipo de dificuldades para sobreviver no novo
ambiente, passando por discriminação e marginalização (CARDOSO DE OLIVEIRA &
BAINES, 2005). Por outro lado, a autoidentificação indígena é um direito garantido pela
Constituição Federal de 1988, sendo um importante reconhecimento da consciência
política e cidadã de ser índio. Entretanto, isso não significa que “qualquer um pode ser
índio”, mas, com base no processo histórico-étnico e reconhecimento de seu povo, esta
população não deveria passar por discriminação e muito menos qualquer dúvida quanto
a sua identidade-étnica.
De acordo com Bim (2014), a Convenção OIT nº 169 se aplica aos povos
indígenas e tribais (Indigenous and Tribal Peoples ou Peuples Indigènes et Tribaux). É
oportuno discorrer sobre o que se entende como povos tribais, mesmo que esses não
estejam abrangidos pela cláusula do artigo 231, § 3o da Constituição Federal.
Esse autor afirma que a Convenção OIT 169 (1989) substituiu a Convenção OIT
107 (1957). Esta, concernente à proteção das populações indígenas e outras populações
tribais e semitribais de países independentes, era expressa em se dizer aplicável às
populações tribais e semitribais. No atual diploma normativo, o termo semitribal foi
eliminado, restando apenas povos tribais.
Nesse sentido, Bim (2014) destaca que a Convenção OIT 169 não se aplica
somente aos povos indígenas e tribais, mas também se aplica aos (i) povos tribais em
países independentes, (ii) cujas condições sociais culturais e econômicas os distingam de
outros setores da coletividade nacional e (iii) que sejam regidos, total ou parcialmente,
por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial.
Segundo Athias (2005), a partir da Constituição Federal de 1988 os povos
indígenas recuperam seus direitos originários de poderem se constituir como cidadãos
etnicamente diferenciados mostrando, assim, a possibilidade de existência de um Estado
pluriétnico. Porém, a letra da Constituição não garantiu, ainda, a inclusão das
comunidades étnicas em um processo de participação plena nas políticas públicas de
desenvolvimento que permitam a essas comunidades exercer plenamente seus direitos.
Apesar de um “crescimento econômico” anunciado pelo governo, as comunidades étnicas
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constituem-se em grupos vulneráveis que buscam soluções para seus problemas, que
tendem a se agravar devido à política do Estado mínimo, onde não há espaço para
políticas sociais que incluem as minorias étnicas.
Por residirem em região de fronteira, os Kaiowá/Paĩ passam por frequentes
dúvidas para se autoafirmarem e autodeterminarem, haja vista a sociedade não indígena
questionar a sua nacionalidade, ocasionando grande dificuldade quanto ao acesso às
políticas nacionais em ambos os países, ou seja, Brasil e Paraguai. Acarretando o
impedimento de obterem, um simples registro de nascimento, no qual muitas vezes os
cartórios brasileiros costumam não admitir sua identidade étnica alegando que os mesmos
são paraguaios, restando a essa população a alternativa de permanecer sem o direito de
ser registrado, em clara afronta ao Código Civil brasileiro. Nesse contexto, não há dúvidas
ao afirmarmos que estes cartórios não reconhecem os direitos indígenas estabelecidos
pelo Estado brasileiro, e nem o Código Civil, pois ao negar a emissão da certidão de
nascimento, refletem a sua discriminação aos indígenas, além de bloquearem o seu livre
acesso às políticas públicas, como educação, saúde, bolsa família12 e sistema
previdenciário13. Colman, Azevedo e Brand (2012) informam no artigo “A presença dos
Guarani no estado de SP – final do séc. XIX até hoje” que a mobilidade espacial impacta
diretamente na implementação dos direitos dos povos Guarani relativos à documentação,
educação escolar, terra e saúde, e isso tudo agrava por não possuírem registro de
nascimento.
Thiago Leandro Vieira Cavalcante afirma em seu artigo “Os Guarani
Transfronteiriços: a realidade de quem existe sem existir” que:
Guarani e Kaiowá, não se coloca em dúvida a sua identidade étnica
indígena, pois, apesar do longo período de contato com a sociedade
nacional, eles mantêm sua língua e vários outros sinais diacríticos.
Assim sendo, de forma costuma lança-se mão do argumento de que os
indígenas que vivem na fronteira seriam de origem paraguaia, que
migram para o Brasil com o intuito de acessar benefícios sociais e
previdenciários, especialmente: o atendimento da rede de saúde
pública, a previdência social e o acesso às terras indígenas asseguradas
pelo Art. 231 da Constituição Federal de 1988 (CAVALCANTE,
2014).
12 É um programa do governo federal direcionado às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza
em todo o País, de modo que consigam superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. (Conforme
http://www.caixa.gov.br/programas-sociais/bolsa-familia/Paginas/default.aspx- acesso no dia 15/11/2016). 13 Este programa objetiva-se proporcionar melhores condições sociais, econômicas e humanas em geral para
a população (conforme http://conceito.de/previdencia-social - acesso no dia 15/11/2016).
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A vida cotidiana de parte dos Kaiowá/ Paĩ, caracterizados por ser uma população
indígena sem fronteiras ou, ao menos, sem as mesmas fronteiras impostas pelos Estados
nacionais, resume-se ou limita-se apenas à liberdade de ir e vir, seja para, visitar seus
parentes, busca de um novo território, ou até mesmo, poderem gozar de mais direitos
como trabalhar, acesso à educação e saúde.
Diante desses fatos, surge a reflexão sobre a expansão econômica desenfreada que
ameaça o futuro dos povos tradicionais. Estudar a cultura indígena nos remete a uma
indagação: será que a sociedade não indígena pensa no seu futuro como os indígenas?
Hans Jonas (2006) nos alerta sobre uma ética da responsabilidade, fundamentada no
compromisso com os seres futuros e nossa responsabilidade para com eles. Estudiosos
sobre o autor, como Battestin & Ghiggi (2010) advertem que “o dever para com as
gerações futuras é um dever da humanidade, independentemente se os seres são ou não
nossos descendentes”, desta forma a cultura indígena é pautado na preservação do hoje
para o futuro.
A RECEPÇÃO DO DIREITO CONSUETUDINÁRIO NA ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS LATINO- AMERICANOS
No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma
coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e,
portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT,
2002, p.95).
Ao longo da história, a sociedade foi marcada por conflitos e massacres, tal como
ocorridos na América espanhola e na própria América portuguesa, onde o colonizador
europeu viera em busca de ouro e pedras preciosas, renda para o custeio de guerras,
conquistas, opulência e luxo dos nobres.
Ao menos desde a época de 1500, a Europa experimentou inúmeras crises, bem
como guerras como a que ocorreu entre as duas potências ibéricas da época, e que levaram
Espanha e Portugal à bancarrota, mais ainda Portugal, que teve que se lançar ao mar na
busca de novas fronteiras de comércio e renda para amenizar a crise econômica interna e
externa existente.
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Assim como Ortega y Gasset (1983, p.105) buscou a compreensão política e social
de seu país através de suas raízes históricas, é necessário lançar um olhar amplo para se
compreender alguns matizes da situação estudada.
O homem vive de sonhos, expectativas e esperanças. Assim também os índios têm
esse direito, esperar que algo melhor lhes aconteça, a sua terra prometida, o seu solo e a
sua paz. No entanto, a questão indígena é um dos assuntos que resistiram ao tempo,
atravessando governos, sem solução concreta, mas apenas com paliativos ou soluções
cosméticas.
Desde a chegada dos europeus na América, nunca se verificou uma política
favorável aos povos indígenas, que continuam a ser violados em seus direitos, sua cultura
e, principalmente, em seus direitos territoriais. Houve a dizimação quase completa de
tribos inteiras por doenças, trabalhos forçados e resistência à dominação, não restando
alternativa ao governo senão importar escravos africanos.
Com o advento da escravidão, os índios foram relegados a um segundo plano,
recebendo a herança do ostracismo ao serem marcados pela sociedade como pessoas
incapazes e improdutivas.
Segundo Platão:
O orador Trasímaco entra na conversação para defender a idéia de que
a justiça se define pelo interesse do mais forte, e que a injustiça é mais
vantajosa do que a justiça. Sócrates refuta-o e insiste principalmente no
fato de que sem justiça sociedade alguma é possível (PLATÃO, 2013,
p.23).
Esse debate, ocorrido há aproximadamente dois mil e quinhentos anos, ressalta a
necessidade de se estabelecer parâmetros para o que se poderia definir por justiça, e até
que ponto ela é efetiva no sentido de regular as relações entre os indivíduos, bem como
entre estes e o próprio Estado.
Nesse contexto, seria a injustiça mais vantajosa do que a justiça e a equidade? Ao
longo de anos, o ser humano tem desenvolvido modelos de justiça que inevitavelmente
refletiram, em quase sua totalidade, os interesses dos mais fortes, das classes dominantes.
Não seria diferente no caso dos indígenas e povos tradicionais, que ao longo do
tempo foram destituídos de seus direitos, em prol do progresso, dizem alguns; no entanto,
esse mesmo progresso tem ocasionado danos irreparáveis a esses povos, sub
representados nesse processo, marcados em muitos locais por preconceito e exclusão
social.
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Tornando o foco para a causa indígena, observa-se que, historicamente, não há
como se diferenciar políticas que fossem voltadas para resguardar os interesses imediatos
das populações tradicionais, ou mesmo a sua dignidade, destruída ao longo dos anos.
Embora as raízes históricas do problema das populações indígenas nos países da
América do Sul tenham suas diferenças, em um ponto elas concordam: quanto à violência
praticada contra essas populações, que ficaram à mercê de invasores e assassinos,
privadas de qualquer direito fundamental efetivo.
Trapalanda14 foi um termo cunhado por Sebastián Caboto15 em 1527, referiu-se a
um reino índio de fabulosas riquezas, tendo levado o rei Carlos V a se empolgar com as
notícias de uma terra fabulosa, tendo designado Pedro de Mendoza16 para a missão de
descobrir esse reino fabuloso e fantástico e, malgrado as dificuldades no estabelecimento
do novo território, as cidades foram sendo fundadas, a despeito do reino fantástico que
então se transmudara em um lugar cheio de dificuldades, obstáculos e miséria. Mesmo
assim, foram fundadas as cidades argentinas de Santiago Del Esteio, Córdoba e La Rioja.
A vastidão do território recém-povoado deu lugar à Coroa de Castela e à Igreja da
Contrarreforma, que iam paulatinamente plantando a suas sementes, organizando-se em
uma estrutura hierarquizada, burocrática, elitista e patrimonialista, tendo sido o Século
XVI marcado pela exploração da prata na região recém- conquistada e povoada. O maior
entrave foi o fato de grande quantidade de minas de prata estar em território indígena,
ocasionando violência e dizimação de diversas populações indígenas devido à ganância
com que foi conduzido esse processo.
No século seguinte, intensificou-se a exploração da prata devido à conjuntura
política da Europa, cuja análise foge ao objetivo deste trabalho, e com a finalidade de
refrear os ímpetos do colonizador espanhol, foram criadas missões jesuíticas com o
intuito de preservar as populações indígenas.
Todavia, o rei Carlos III ordenara a expulsão dos jesuítas, cuja influência se fazia
sentir em quase todos os assuntos do Estado, deixando populações inteiras de índios à
mercê de exploradores de ouro e prata.
14 A Cidade dos Césares ou Trapalanda é uma cidade legendária oculta na Patagônia, tida como possuidora
de imensas riquezas. (Nota do autor) 15 Cartógrafo e explorador inglês nascido em Veneza, Itália, de destaque na história da Inglaterra pela posse
e colonização do Novo Mundo. No comando de uma expedição espanhola destinada ao Oriente, desviou
para explorar o rio da Prata, o Paraguai e o Uruguai em 1525. (Nota do autor) 16 Pedro de Mendoza y Luján, de família nobre, foi um militar e conquistador espanhol, primeiro governador
do Rio da Prata e fundador de Buenos Aires. (Nota do autor)
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Nesse contexto, quanto à situação política, social e histórica brasileira, destacam-
se as palavras de Faoro:
A civilização brasileira, como a personagem de Machado de Assis,
chama-se ‘Veleidade’, sombra coada entre sombras, ser e não ser, ir e
não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora (FAORO, 2012,
p. 602).
A história mostra que a situação do índio no Brasil fora remediada em grande parte
pelo tráfico negreiro em função de dois fatores: dizimação quase absoluta da população
indígena conhecida e grandes lucros causados pela escravidão, muito embora a população
indígena também tenha sido socorrida pelas missões jesuíticas estabelecidas, criadas para
catequizar e proteger os índios.
Decerto o modelo brasileiro difere em grande parte dos demais países sul-
americanos, pois no Brasil o índio não foi submetido ao sistema de mita e encomienda
para trabalhar, mas foi forçado ao trabalho e resistiu, chegando a quase dizimação de sua
população.
Nos dizeres de Barbosa (1995, p.117), a América Latina é o reflexo de sua
realidade histórica e social: na verdade, um amontoado de espelhos partidos. Sociedades
forjadas pela cruz e pela espada, na coragem desmedida do colonizador de na sua
crueldade e intolerância, plasmadas na cobiça, na aventura e no desejo pela conquista
desenfreada do território, da exploração desmedida dos metais preciosos, seguida de
genocídios e demais violações à vida humana em todos os sentidos.
Considerando que toda essa situação terá reflexos diretos ao longo da formação
da sociedade nos diversos países latino-americanos, cumpre ressaltar a organização dos
estados e a formação, analisando-se o caso brasileiro, de todo um aparato jurídico
alienígena que serviu para beneficiar as classes dominantes e as oligarquias existentes na
época, favorecendo o clientelismo, os abusos e a expansão irregular de terras em
detrimento do direito já estabelecido nas populações tradicionais que habitavam o
território. Como continuidade desse contexto podemos citar o recente veto presidencial,
no novo estatuto do migrante, exatamente no artigo que permitia o livre trânsito de povos
indígenas e tradicionais nas fronteiras.
Segundo Volkmer (2003, p. 38), registra-se a consolidação de uma
instância de poder que, além de incorporar o aparato burocrático e profissional da
administração lusitana, surgiu sem identidade nacional, completamente desvinculada dos
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objetivos de sua população de origem da sociedade como um todo. Alheia à manifestação
e à vontade da população, a Metrópole instaurou extensões de seu poder real na Colônia,
implantando um espaço institucional que evoluiu para a montagem de uma burocracia
patrimonial legitimada pelos donatários, senhores de escravos e proprietários de terras.
Com isso, desenvolveu-se um cenário contraditório de dominação política: “de
um lado, a pulverização do poder na mão dos donos das terras e dos engenhos, seja pelo
profundo quadro de divisão de classes. seja pelo vulto da extensão territorial; de outra
parte, o esforço centralizador que a Coroa. impunha, através dos governadores-gerais e
da administração legalista. A ordem jurídica vigente, no domínio privado ou público,
marchará decisivamente no sentido de preeminência do poder público sobre as
comunidades, solidificando uma estrutura com tendência à perpetuação das situações de
domínio estatal (VOLKMER, 2003, p.38).
A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu
construir um modelo de Estado que defenderia, mesmo depois da independência, os
intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção.
Naturalmente, o aparecimento do Estado não foi resultante do amadurecimento
histórico-político de uma Nação unida ou de uma sociedade consciente, mas de imposição
da vontade do Império colonizador.
Instaura-se, assim, a tradição de um intervencionismo estatal no âmbito das
instituições sociais e na dinâmica do desenvolvimento econômico. Tal referencial
aproxima-se do modelo de Estado absolutista europeu, ou seja, no Brasil, o Capitalismo
se desenvolveria sem o capital, como produto e recriação da acumulação exercida pelo
próprio Estado (VOLKMER, 2003, p.38).
Nas palavras desse autor:
Na sua globalidade, a compreensão, quer da cultura brasileira, quer do
próprio Direito, não foi produto da evolução linear e gradual de uma
experiência comunitária como ocorreu com a legislação de outros povos
mais antigos. Na verdade, o processo colonizador, que representava o
projeto da Metrópole, instala e impõe numa região habitada por
populações indígenas toda uma tradição cultural a1ienígena e todo um
sistema de legalidade ‘avançada’ sob o ponto de vista do controle e da
efetividade formal (VOLKMER, 2003, p. 42).
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Conforme o autor (ibid., p. 42), ao se analisar as raízes culturais da legislação
brasileira, dos três grupos étnicos que constituíram nossa nacionalidade, somente a do
colonizador luso trouxe influência dominante e definitiva à nossa formação jurídica.
Se a contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura,
o mesmo não se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não
conseguiram impor seus princípios e suas leis, participando mais “na humilde condição
de objeto do direito real”, ou seja, objetos de proteção jurídica.
Igualmente o negro, para aqui trazido na condição de escravo, se sua presença é
mais visível e assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil e
a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração forçada a que se viam sujeitos,
não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na elaboração do Direito
brasileiro (VOLKMER, 2003, p. 45).
De acordo com este autor (2003, p. 45), desde o início da colonização, além da
marginalização e do descaso pelas práticas costumeiras de um direito nativo
consuetudinpario, a ordem normativa oficial implementava, gradativamente, as condições
necessárias para institucionalizar o projeto expansionista lusitano.
A consolidação desse ordenamento formalista e dogmático está calcada
doutrinariamente, num primeiro momento, no idealismo jusnaturalista; posteriormente,
na exegese positivista. Cumpre ressaltar, nessa trajetória, que os traços reais de uma
tradição subjacente de práticas jurídicas informais não-oficiais podem ser encontrados
nas remotas comunidades de índios e negros do Brasil colonial (VOLKMER, 2003, p.46).
Sob tal prisma, é essencial o resgate histórico de um pluralismo jurídico
comunitário, localizado e propagado através das ações legais associativas no interior dos
antigos “quilombos” de negros e nas “reduções” indígenas sob a orientação jesuítica,
constituindo-se nas formas primárias e autênticas de um direito insurgente, eficaz, não-
estatal (VOLKMER, 2003, p. 46).
Conforme o autor (ibid., p. 46), tais concepções desmentem o mito da
centralização jurídica ocidental moderna, fundada na unicidade territorial de um Direito
estatal e formal. A historiografia oficial em geral, não reconhece a existência, no período
anterior à colonização, de várias nações indígenas, cada qual com um Direito próprio,
base de suas formas de procedimento no âmbito da propriedade, posse, família, sucessão,
matrimônio e delito.
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Nos dizeres de Volkmer:
Na verdade, a riqueza desses grupos indígenas revela-se na convivência
com a pluralidade de valores culturais diversos, organizando suas
modalidades de comportamento conforme disposições jurídicas “que
nada têm a ver com o Direito Estatal, porque são a expressão de uma
sociedade sem estado, cujas formas de poder são legitimadas por
mecanismos diferentes dos formais e legais do Estado (VOLKMER,
2003, p. 47)
Entendemos, dessa forma, que a grande riqueza dos conhecimentos indígenas
acumulados acerca da sua organização social e política e as práticas milenares de
resolução de conflitos não foram aproveitadas pelo ordenamento jurídico dos estados
nacionais, muito menos, o respeito às suas práticas de mobilidade entre os limites de seu
território ancestral, os quais não coincidem com as fronteiras dos estados modernos.
CONCLUSÃO
As fronteiras Kaiowá/Paĩ costumam ser pautadas em acidentes geográficos,
fronteiras ecológicas e relações de parentesco, passando a confrontarem-se com as
fronteiras dos estados nacionais e, também, com frentes econômicas de expansão
territorial, com a concordância dos chefes de estados em ambos os países, alterando essas
fronteiras em detrimento do território dos Kaiowá/Paĩ. O conceito de fronteira fixa e
rígida, delimitando o espaço, não existe entre a população indígena, pois isso costuma ser
uma concepção ocidental.
Diante do avanço da expansão econômica e da frenética ocupação das terras
indígenas por terceiros denominados “não-índios”, fenômeno marcado por disputas
intestinas e extrema violência em alguns casos, acredita-se que o aumento da mobilidade
internacional indígena está diretamente relacionado à situação da perda de seus territórios
e de recursos naturais, o que os impulsionou aos deslocamentos temporários e/ou
definitivos.
Nesse contexto, constata-se que direitos dos povos indígenas e de outros povos
tradicionais sofreram diversas mutilações desde a formação dos estados nacionais latino-
americanos e da vinda do conquistador.
A estruturação social e política do estado brasileiro levou em conta o direito
alienígena, aplicando normas e impondo um ordenamento jurídico que em nada se
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relacionava com a realidade social e econômica da sociedade que aqui se encontrava, não
se atribuindo a devida importância aos costumes e ao direito próprio desses povos, que
poderiam ser harmonizados ou recepcionados pela ordem jurídica que ora se instaurava
em nosso país.
A base social, política e econômica de uma nação residem no seu povo, cujo
fundamento está em sua cultura tradicional, que pode ser aperfeiçoada em virtude da
dinâmica da sociedade, fruto do seu desenvolvimento e da incorporação de outros
patrimônios jurídicos, antropológicos e sociais que levem em conta a importância dos
diversos atores que se encontram nesse processo.
De fato, a busca de qualquer mudança nesse sentido deve ser precedida de bom
senso e de fatores que levem em conta os costumes arraigados em uma sociedade, bem
como a necessidade de se considerar as características culturais dos povos tradicionais
que habitam determinado território.
O progresso, a globalização e os demais fatores de integração e desenvolvimento
entre as nações têm relegado ao segundo plano os direitos dos povos tradicionais,
desdenhando a sua cultura e sua importância como elementos autóctones de um país, que
contribuíram na formação e estabelecimento de um estado pluricultural como o Brasil.
A principal função do Estado é o bem estar dos seus cidadãos, respeitando-se as
diferenças culturais, étnicas e sociais dentre os povos, por meio de políticas públicas
efetivas e alinhadas com a Constituição Federal de 1988, e qualquer coisa diferente disso
poderá resultar em graves consequências para a nação.
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