impugnação da decisão da matéria de facto
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RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO
I. Relevância do erro em matéria de provas e de fixação dos factos materiais
da causa.
1. É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e
da escolha e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos
fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos
objecto do processo.
A função jurisdicional importa, na sua essência, uma actividade intelectiva que
visa a determinação de três aspectos diferenciados, mas estritamente conexos: a
escolha da norma jurídica, a precisão dos factos e a subsunção dos factos na norma
escolhida para enquadrar o caso concreto. O grau de acerto na declaração da
existência dos factos condiciona o valor das demais operações, que ainda que sejam
realizadas na perfeição, de um ponto de vista lógico, podem carecer de todo o
significado jurídico se, por erro na fixação dos factos, se concretizam na valoração de
factos inteiramente supostos que não encontram na realidade qualquer grau de
correspondência.
De nada vale, portanto, ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável
ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto.
O error in iudicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de
direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os
destinatários lesados.
2
A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são
ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja
apreciação é deixada ao prudente critério do juiz – como sucede com a
generalidade das provas produzidas na audiência final - é uma actividade
extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase
nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe
pode dizer1.
2. A actividade de fixação dos factos materiais da causa está, por natureza,
particularmente exposta a erros e imperfeições; a probabilidade e a relevância de um
erro quanto a tal objecto depõem, decisivamente, a favor da possibilidade de
controlo, pelo tribunal ad quem, das conclusões fácticas estabelecidas pelo tribunal a
quo.
E se a admissibilidade da impugnação da decisão judicial que tenha por
objecto os factos materiais da causa responde a um interesse da parte prejudicada –
que assim pode obter a correcção de uma decisão que a desfavorece - dá, do
mesmo passo, satisfação iminentes interesses gerais da comunidade, dado que
favorece o sentimento de segurança e de justiça e o prestígio da actividade
jurisdicional.
De resto, o direito a um processo equitativo impõe, como dimensão
ineliminável, que o exame da sentença da 1ª instância seja não só in iure mas também
in facto.
II. Condições de exercício pelo tribunal ad quem de poderes de controlo sobre
a decisão da questão de facto do tribunal a quo.
1 Manuel de Andrade, “Sentido e Valor da Jurisprudência”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XLVIII, Coimbra, 1972, pág. 227.
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1. Independência da actuação dos poderes de controlo da decisão da
matéria de facto relativamente ao registo ou documentação dos actos de prova.
1. Abstraindo das dificuldades intrínsecas de controlo da decisão da questão
de facto – dado que essa decisão é obtida através de um actividade que não se
traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, mediante um procedimento que não
se reduz a uma operação, pura e simplesmente, lógico-dedutiva – sendo antes
atingida através de um procedimento lógico-intuitivo - a impugnação, por via do
recurso ordinário, perante um tribunal superior, maxime no caso do objecto dessa
impugnação consistir no error in iudicando da decisão da matéria de facto, assenta
no pressuposto de que o tribunal ad quem se encontra em melhores condições para
apreciar a questão objecto da causa do que o tribunal recorrido – ou, ao menos, que
lhe são garantidas as mesmas condições que estão asseguradas a este último tribunal.
O controlo pelo tribunal ad quem da correcção da decisão da matéria de
facto do tribunal a quo não oferece, por isso, especiais dificuldades se a forma de
obtenção da decisão de um e de outro tribunal forem iguais ou quando o exercício
daqueles poderes de controlo não está na dependência da reapreciação, pelo
tribunal de recurso, a provas que tenham sido produzidas, na instância recorrida, sob o
signo da liberdade de apreciação.
Se a prova é produzida sem imediação, não há realmente qualquer diferença
entre o juiz de 1ª e de 2ª instância, na hora de tomar conhecimento do resultado da
prova e de proceder à sua valoração. Identicamente, o conhecimento, pelo tribunal
de recurso, de questões de facto e a actuação dos seus poderes de controlo sobre a
decisão da matéria de facto do tribunal a quo também não oferece dificuldades
relevantes sempre esse controlo não esteja na dependência da reapreciação de
actos de prova – e do seu registo – levados a cabo oralmente na instância recorrida.
4
Assim, independentemente da reapreciação dos actos de prova realizados na
1ª instância – e mesmo da renovação dessas provas ou da produção, na instância de
recurso, de novas provas - a Relação pode censurar o erro do Tribunal de 1ª instância
na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa sempre que
aquele Tribunal (artº 666 nº 1 do nCPC):
a) Tenha violado a exigência de certa prova, como sucederá no caso de julgar
provado um facto com base num meio de prova diverso daquele que a lei exige, ou
violado uma proibição de produção ou de valoração de prova (artºs 354 nº 1 e 364 nº
1 do Código Civil);
b) Haja atribuído a um meio de prova um valor probatório que a lei não lhe
reconhece ou recusado, a esse mesmo meio de prova, um valor que a lei lhe atribui;
c) Tenha exigido a prova de um facto que deva considerar-se plenamente
provado – v.g. por acordo das partes ou por documento autêntico – ou, inversamente,
tenha julgado não carecido de prova facto controvertido, por, erroneamente, o
considerar, v.g., admitido por acordo, ou notório, e, portanto, dispensado de prova;
d) Tenha sido apresentado um documento – objectiva ou subjectivamente –
superveniente, que não possa ser contrariado por qualquer outra prova, i.e., que por si
só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artº 662 nº 1, in
fine, do nCPC)
e) A decisão da matéria de facto seja deficiente, obscura ou contraditória ou
tenha omitido o julgamento de determinado facto, designadamente por não ter sido
incluído nos temas da prova e, portanto, não ter sido submetido ao exercício dessa
mesma prova (artº 662 nº 2, c), do nCPC).
f) A decisão da matéria de facto não se encontre adequadamente
fundamentada, ou seja, quando a especificação dos fundamentos que foram
decisivos para o julgamento de qualquer facto, como provado ou não provado, falte
em absoluto ou se mostre insuficiente (artºs 607 nº 4 e 662 nº 2, d), do nCPC).
5
Em todos estes casos, o exercício pela Relação das suas atribuições de controlo
da decisão da matéria de facto do Tribunal de 1ª instância não está na dependência
da reponderação das provas produzidas naquela instância, o que se explica por,
nalguns casos, ser o simples resultado da aplicação de regras imperativas de direito
probatório material – que constitui matéria de direito (artº 607 nº 4, ex-vi artº 663 nº 2 do
nCPC).
Do que decorrem estas duas consequências: a actuação, pela Relação, nos
casos apontados, dos seus poderes de controlo não tem de ser integrado por um
pedido da parte2; ao prazo de interposição e de resposta ao recurso, sempre que o
error in iudicando da matéria de facto radique num desse mesmos casos, não
acresce, o prazo de 10 dias. Este acréscimo de prazo – que, aliás, tem pouca
justificação - apenas é aplicável no caso de a impugnação da decisão da questão
de facto ter por objecto a prova oralmente produzida na instância recorrida, objecto
de registo fonográfico (artº 638 nº 7 do nCPC)3.
2. Registo ou documentação dos actos de prova como condição do exercício
dos poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da questão de facto.
1. Oralidade e registo das provas.
1. Sempre que o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da questão
de facto deva ser actuado designadamente sobre provas produzidas oralmente na
instância recorrida, exige-se, naturalmente, que a Relação tenha acesso ao conteúdo
dessas provas o que supõe, naturalmente, a sua documentação ou registo.
2 António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo
Civil, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 226.
3 Acs. da RE de 14.05.05., www.dgsi.pt.
6
2. Porém, como é sabido, durante largos anos prevaleceu entre nós uma
errónea parificação entre a oralidade e proibição do registo do acto de prova levado
a cabo oralmente4. O equívoco era manifesto: mesmo quando os actos de produção
de prova pessoal são objecto de documentação ou registo, o juiz a quo não deixa de
os receber oralmente e é nessa base que os valora, sendo o seu registo mera
formalidade complementar.
Oralidade não é, portanto, sinónimo de exclusão de documentação, no
sentido de proibição de todos os actos que tenham lugar oralmente sejam objecto de
registo, com a finalidade de controlo da assunção da prova, maxime para efeito de
recurso.
Este ponto não foi tido em boa e devida conta CPC de 1939, que tomou o
princípio da oralidade como razão justificativa da impossibilidade de documentar a
prova produzida em julgamento5. A combinação desta circunstância com o facto de,
por um lado, o sistema de recursos ser o da escrita, com absoluta exclusão da
oralidade, e, por outro, de haver um tribunal de recurso – a Relação – que conhecia
também da questão de facto, tornava o sistema absurdo, por dar como uma mão –
possibilidade de recurso da decisão da matéria de facto – aquilo que tirava com a
outra – proibição de documentação da produção oral da prova.
Por esse motivo, o recurso que se interpusesse da sentença final da causa,
incidia, em regra, unicamente sobre questões de direito, funcionando, assim, a
Relação, fundamentalmente, também como tribunal de revista (artº 712 do CPC de
1939).
4 Manuel Domingos Fernandes, “O Novo Código de Processo Civil (e o duplo
grau de jurisdição)”, disponível in Julgar on line.
5 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV (Reimpressão),
Coimbra Editora, Coimbra, pág. 468.
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Esta consequência era inteiramente desarmónica com a natureza de recurso
global ou amplo que se deveria atribuir ao recurso de apelação. Trata-se, aliás, do
traço que tecnicamente distingue os recursos ordinários de apelação e de revista: a
apelação é um recurso amplo ou global, susceptível de abranger matéria de facto e
de direito, ao passo que a revista é um recurso restrito e limitado à matéria de direito
(artºs 212 nº 5 da Constituição da República Portuguesa, 674 nºs 1 e 3 e 682 nºs 1 e 2 do
nCPC).
A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância e tem, portanto, pela sua
própria índole, competência para conhecer tanto de questões de direito, como de
questões de facto. Já o Supremo não funciona como 3ª instância, mas como tribunal
de revista, com a sua competência decisória restringida, como consequência da sua
vinculação aos factos fixados pelo tribunal recorrido, à matéria de direito (artºs 674 nº 3
e 682 nº 2 do nCPC).
A instituição de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto coloca,
decerto, delicados problemas de compatibilidade, consistência e coerência com as
características e particularidade de um processo que obedeça, na assunção das
provas, ao princípio da oralidade e da imediação. O que não parece é que essa
compatibilidade, coerência e consistência, só se obtenham – como entre nós sucedeu
durante largas décadas - com a supressão de uma verdadeira segunda instância,
face à impossibilidade de alterar a base fáctica da decisão do tribunal recorrido,
decorrente da ausência de documentação da prova produzida oralmente perante
esse mesmo tribunal.
A documentação ou o registo dos actos de documentação da prova levados
a cabo oralmente na 1ª instância é, assim, condição primeira para a actuação pela
Relação dos seus poderes de correcção do eventual error in iudicando daquela
prova, por equívoco na avaliação ou aferição da sua força persuasiva. Mas sendo
uma condição necessária é lícito perguntar se será uma condição suficiente,
considerada a irrecusável falta de homogeneidade da 1ª instância na assunção
8
daquela prova. Interrogação – como logo se intui – tem no centro o princípio da
oralidade e um seu incindível corolário: o da imediação.
2. Registo das provas produzidas oralmente no Tribunal de 1ª instância: modo e
finalidades.
1. Com o nCPC o registo das provas produzidas oralmente na instância
recorrida deixou de estar dependente do requerimento da parte ou de determinação
oficiosa do tribunal. Esse registo é agora obrigatório, sendo, em regra, fonográfico (artº
155 nºs 1 e 2)6.
6 Já anteriormente, porém, a lei impunha, nalguns procedimentos, o registo ou
documentação das provas. Era o que sucedia, por exemplo, nos processos tutelares
de promoção e protecção e nos processos tutelares educativos (artºs 118 nº 1 da
LPCJP, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro e 108 nº 1 da Lei Tutelar
Educativa, aprovada pela Lei nº 166/99, de 14 de Setembro). Problema delicado é o
de saber se a obrigatoriedade do registo deixou ou não incólumes os casos em que lei
exclui expressamente a documentação dos actos de prova produzidos oralmente na
audiência, como sucede nos processos tutelares cíveis (artº 158 nº 1, c), da OTM –
Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro). Mesmo considerando o problema a partir da
relação entre lei geral e lei especial – e à luz do princípio de que uma lei geral
posterior não revoga lei especial anterior, desde que se continue a justificar-se a
vigência da lei especial – deve concluir-se pela revogação tácita daquela norma, por
se dever ter por inequívoca a intenção do legislador de impor, em todos os processos,
indistintamente, o registo das provas, designadamente com o objectivo de permitir o
controlo da assunção da prova para efeitos de impugnação da decisão da questão
de facto (artº 7 nº 3 do Código Civil).
9
2. Note-se que o registo da prova não surge ordenado exclusivamente pela
finalidade de controlo da assunção da prova, maxime em matéria de recurso, dado
que esse registo é imposto mesmo nos casos em que o recurso não é admissível e
compreende também os actos postulativos das partes – requerimentos, respostas, etc.
– e mesmo os actos decisórios do tribunal (artº 155 nº 1 do nCPC).
Para se de decidir pela imperatividade do registo dos actos de prova levados a
cabo oralmente, mesmo nos casos em que a decisão não admite recurso, o legislador
terá sido sensível ao argumento de o registo favorece a veracidade dos depoimentos
das testemunhas e das declarações das partes e dos peritos, sendo um meio idóneo
para afrontar o clima de quase total impunidade e de absoluta falta de controlo – por
força do peso excessivo da oralidade da audiência – dos depoimentos menos
escrupulosos, prestados, muitas vezes intencionalmente, em violação do seu
indissolúvel compromisso do declarante com a verdade.
Como quer que seja, sempre que tenha lugar, perante a Relação, a
renovação ou a produção de nova prova, a respectiva audiência deverá ser objecto
de registo, o mesmo sucedendo, aliás, nos casos em que o Supremo funcione como 2ª
instância (artº 662 nº 3, a), do nCPC).
2.1. Invalidade do acto de registo das provas produzidas oralmente.
A falta, pura e simples, do registo fonográfico das provas produzidas oralmente
ou a sua deficiência – por imperceptibilidade ou inaudibilidade - por se tratar da
omissão ou irregularidade de um acto imposto, que nitidamente influi no exame da
causa, resolve-se numa nulidade inominada ou secundária (artº 195 nº 1 do nCPC).
2.2. Regime de arguição.
10
1. Até ao nCPC, a lei não regulava, de forma específica, o regime da nulidade
da falta ou deficiência da gravação, o que deu lugar a uma larga controvérsia
jurisprudencial sobre a questão do momento em que tal nulidade deveria ser arguida.
Um bosquejo rápido pela jurisprudência do Supremo mostrava que se repartia por
duas orientações: uma que sustentava que o prazo dessa arguição era de dez dias,
que se iniciava imediatamente após o termo da discussão ou, ao menos, depois da
entrega à parte ou ao mandatário da cópia da gravação, e, portanto, fazia recair
sobre a parte um dever de diligência na audição do registo áudio, presumindo-se um
comportamento negligente, dessa parte ou do seu mandatário, caso não procedesse
a essa audição7; outra que advogava a inexigibilidade, da audição da gravação,
pela parte ou pelo seu mandatário, antes do início do curso do prazo de interposição
do recurso, no segmento relativo à apreciação da matéria de facto, sendo nesse
momento que coloca a necessidade de uma audição atenta e cuidada do conteúdo
do registo sonoro e, com ela, o conhecimento da falta, total ou parcial, ou da
deficiência da gravação, podendo o vício correspondente ser invocado na própria
alegação do recurso e constituir objecto dele8. E parecia ser esta última orientação
que tendia a prevalecer no tribunal de derradeira instância.
O nCPC contém uma previsão específica sobre o ponto, tendo optado pela
primeira das apontadas orientações: a nulidade da falta ou deficiência da gravação
deve ser arguida no prazo de 10 dias, contado do momento em que a gravação é
disponibilizada à parte (artº 155 nº 4 do nCPC)9.
7 Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.02.01, 20.05.03, 08.07.03, 29.11.04 e 13.01.05,
www.dgsi.pt.
8 Acs. do STJ de 23.01.01, 09.07.02, 24.10.02, 05.06.03, 20.06.03, 20.11.03, 29.05.07,
15.01.08, 17.01.08, 15.01.09 e 14.01.10 www.dgsi.pt. No mesmo sentido, v.g., os Acs. da
RP de 09.06.10 e 25.03.10 e da RL de 14.01.10, www.dgsi.pt.
9 Dado que a legislador interveio para decidir uma questão de direito cuja
solução era controvertida ou incerta, consagrando uma solução que a jurisprudência,
11
2. A exacta compreensão deste regime impõe, no entanto, algumas
observações complementares.
Em primeiro lugar, deve notar-se que o caso directamente figurado na lei é o
de ter sido disponibilizada à parte um suporte que deveria conter a gravação da
audiência final e em que se constata que, afinal, aquele suporte não contém
qualquer gravação – ou que a gravação que contém é deficiente - dado que só
neste caso tem sentido falar-se na invocação da falta - ou deficiência - de gravação
a partir do momento em que a mesma é disponibilizada à parte (artº 155 nº 4 do
nCPC). Dito doutro modo: não é regulado o caso de, nomeadamente por qualquer
deficiência técnica, a audiência não ter sido, em absoluto, objecto de registo
fonográfico10.
Neste caso, pergunta-se: em que momento deve ser arguida a nulidade da
omissão de gravação da audiência final?
Essa nulidade deve ser invocada na própria audiência, se a parte, usando de
normal diligência, se puder aperceber-se da omissão, ou caso não tenha estado
presente na audiência, no prazo de 10 dias contado da realização dessa mesma
audiência (artºs 149 nº 1, 196 nº 1 e 199 nº 2 do nCPC)11. Este regime não prejudica,
evidentemente, o suprimento oficioso, durante essa audiência, da omissão (artº 199 nº
2 do nCPC).
A lei é terminante em impor que a gravação seja disponibilizada às partes no
prazo de dois dias a contar da realização do acto de registo (artº 153 do nCPC). E se
pelos seus próprios meios podia ter chegado, a disposição deve ser considerada
interpretativa, sendo, por isso, aplicável às gravações efectuadas antes de 1 de
Setembro de 2013 (artº 13 nº 1, 1ª parte, do Código Civil).
10 Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, mensagem de 23/09/2014.
11 José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado,
Volume 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 311.
12
essa obrigação não for cumprida ou o for com atraso? Segundo a Relação de
Lisboa12, o prazo da arguição da falta ou da deficiência da gravação conta-se, nesta
hipótese, do termo do prazo de disponibilização da gravação, devendo descontar-se,
no caso da entrega, com atraso, esse mesmo atraso, dado que afrontaria a razão de
ser da lei o entendimento de que o início do prazo de contagem do prazo para a
invocação da eventual deficiência da gravação ficaria dependente da livre iniciativa
da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação
temporal. Parece, todavia, mais exacto assentar em que, na hipótese figurada, a
parte deve arguir a nulidade da omissão de disponibilização da gravação, contando-
se o prazo de arguição da falta ou deficiência da gravação a partir do momento em
que a gravação for efectivamente disponibilizada à parte (artºs 157 nº 5 e 195 nº 1 do
nCPC).
3. Mais espinhosa é, porém, a questão de saber se a nulidade é ou não
oficiosamente cognoscível e, não o sendo, que consequência é que se deve assinalar
à indisponibilidade, pela Relação das provas produzidas oralmente.
O primeiro problema radica no facto de o Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de
Fevereiro, regulador da documentação ou registo da audiência e da prova – maxime
o artº 9, de harmonia com o qual, se em qualquer momento se verificar que foi omitida
qualquer parte da prova ou que esta s encontra imperceptível, proceder-se-á à sua
repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade - não ter sido objecto
de revogação expressa pelo diploma que aprovou o nCPC. Mas deve entender-se
que aquela disposição – bem com as contidas nos artºs 6 nº 1, 7 nº 2 – foi tacitamente
revogada, por força da patente incompatibilidade com as normas reguladoras da
nulidade contidas no nCPC (artº 7 nº 2, 2ª parte do Código Civil)13.
12 Ac. 05.02.15, www.dgsi.pt.
13 Assim, tanto quando se depreende da utilização do pretérito perfeito,
constituiu regulamento da gravação o disposto nos artºs 3 a 9 do DL 39/95, de 15 de
13
A orientação actualmente prevalecente na jurisprudência das Relações é a de
que a nulidade não é oficiosamente cognoscível e de que, não tendo sido
tempestivamente arguida, se sana, impedindo a Relação de actuar os seus poderes
de controlo no tocante à decisão da matéria de facto14.
Esta última proposição não é exacta, ao menos no tocante aos casos em que
os poderes de controlo da Relação não estejam na dependência do registo das
provas produzidas oralmente na audiência.
Há, realmente, duas situações em que a nulidade da falta ou de deficiência
do registo, mesmo nos casos em que a impugnação se funda no erro na apreciação
da prova produzida oralmente na audiência, não obstacula ao exercício pela
Relação dos seus poderes-deveres de controlo: a falta ou insuficiência da
fundamentação da decisão da matéria de facto da 1ª instância; a deficiência, a
contradição ou a obscuridade dessa decisão ou a omissão do julgamento de
determinado facto, por ausência da sua inclusão nos temas da prova. Em qualquer
dos casos a Relação pode actuar os seus poderes de cassação, exigindo à 1ª
instância o suprimento da falta de motivação da decisão da matéria de facto ou da
insuficiência dessa motivação ou anulando aquela decisão e reenviando-lhe o
processo para que complete, esclareça ou harmonize essa decisão ou proceda ao
julgamento do facto julgado relevante (artº 662 nºs 1 e 2, c) e d) do nCPC).
Fevereiro, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado,
Volume 1º, cit., pág. 311.
14 Acs. da RC de 10.07.14 e de 14.10.14, da RG de 11.06.14, da RP de 13.02.14,
de 17.12.14 e de 30.04.15, www.dgsi.pt. Em sentido diferente, com o argumento de o nº
4 do artº 155 do nCPC não veda o conhecimento oficioso da nulidade, tendo-se
limitado eliminar a controvérsia sobre o prazo e o momento em que as partes a devem
arguir, o voto de vencido no Ac. da RG de 11.09.14, www.dgsi.pt., e o Ac. da RL de
12.11.13, www.dgsi.pt.
14
Nos demais casos – como sucede, por exemplo, quando, por força da
deficiência da gravação, a Relação fica impedida de actuar os seus poderes de
investigação oficiosa, i.e., de proceder à audição da totalidade do depoimento na
qual o recorrente funda a impugnação ou de depoimentos diversos do invocado pelo
impugnante – a resposta está longe de ser evidente (artº 640 nº 2, b), 1ª parte, do
nCPC).
Assentando-se em que, mesmos nestas circunstâncias, a Relação não deve
renunciar ou demitir-se das suas competências de controlo da correcção decisão da
matéria de facto – controlo que é hoje oficioso e é actuado no cumprimento de um
dever - uma proposta de solução possível é a actuação, pela Relação, do seu dever
de renovação da prova, ordenando essa renovação no tocante às provas que não
foram objecto de registo ou em que o registo é deficiente (artº 662 nº 2, a), do nCPC)
15. Solução que tem contra si não apenas a letra da lei – dado que a renovação da
prova apenas é admitida no caso de dúvida fundada sobre a credibilidade ou o
sentido dos depoimentos, o que supõe o conhecimento desses mesmos depoimentos
– mas também o princípio de que a Relação actua os seus poderes de controlo
relativamente à decisão da questão de facto na hipótese de erro de julgamento das
provas e não caso de vício relacionado com o registo ou a documentação dessas
mesmas provas.
Outra saída possível é a actuação pela Relação dos seus poderes cassatórios
e, portanto, a anulação da decisão e o reenvio do processo para o Tribunal de que
provém o recurso para que produza, de novo as provas que não foram objecto de
registo ou cujo registo é defeituoso e relativamente às quais pretende actuar os seus
poderes inquisitórios. Valeria aqui – por integração analógica ou interpretação
extensiva – a solução disposta a lei para os casos de deficiência, obscuridade ou
15 Contra – para um caso de deficiência parcial da gravação – entendendo,
que, nessa hipótese, se não deve conhecer do objecto do recurso no tocante à
matéria de facto, o Ac. da RG de 11.09.14, www.dgsi.pt.
15
contradição intrínseca da decisão da matéria de facto em que a Relação não tem
disponíveis os elementos que lhe permitam a alteração dessa mesma decisão (artºs 10
e 11 do Código Civil 662 nº 2, c), do nCPC)16.
Em todo o caso, uma coisa parece certa: que o facto de à Relação não ser
lícito conhecer oficiosamente da nulidade da falta ou deficiência do registo dos
depoimentos não deve constituir obstáculo intransponível à actuação dos deveres de
controlo da correcção da decisão da questão de facto, como, por exemplo os que
decorrem do dever de ordenar a produção de novos meios de prova (artº 662 nº 2 b)
do nCPC).
2.3. Irrecorribilidade.
A nulidade da omissão ou da deficiência do registo deve ser invocada no
tribunal em que foi cometida e a decisão que aprecie a reclamação correspondente
não é recorrível, dado que aquela nulidade não interfere com os princípios
estruturantes da igualdade ou do contraditório nem se refere à aquisição processual
de factos ou à admissibilidade de meios de prova (artº 630 nº 2 do nCPC)17.
2. Registo ou documentação de actos de prova praticados pessoalmente pelo
juiz de 1ª instância.
1. O problema da documentação ou o registo da prova para efeitos de
controlo da assunção dessa prova tem-se colocado, com particular insistência no
tocante aos actos de prova levados a cabo oralmente: depoimentos das
testemunhas, declarações das partes e esclarecimento dos peritos. Mas o problema
16 Ac. da RL de 12.12.13, www.dgsi.pt.
17 Conhecendo, todavia, da decisão que indeferiu a reclamação da nulidade
da deficiência da gravação, cfr. o Ac. da RE de 30.04.15, www.dgsi.pt.
16
também assume extraordinária relevância no tocante a uma outra prova: a prova por
reconhecimento ou inspecção judicial.
2. A inspecção judicial destina-se a examinar, com ressalva da intimidade da
vida privada e familiar e da dignidade humana, coisas ou pessoas, a facultar a
deslocação ao local da questão ou a mandar proceder à reconstituição de factos
(artº 490 nº 1 do nCPC).
A doutrina salienta una voce, como traço característico da inspecção judicial,
a circunstância de se tratar, além de uma prova real – porque o meio probatório
consiste numa coisa - da prova directa por excelência18. Ao passo que, noutros meios
probatórios, o juiz se vê obrigado a servir-se de intermediários, na inspecção judicial
não há intermediação: o juiz é posto em contacto directo e imediato com o facto a
provar.
Em face desta característica, nega-se mesmo à inspecção judicial o carácter
de prova: o que leva a destacar a sua força probatória – a percepção directa do juiz
e a inexistência de representação dos actos ou factos – impediria, do mesmo passo, a
sua qualificação como prova. Este ponto de vista não é de aceitar: à inspecção
judicial deve assinalar-se, mesmo no plano estritamente doutrinário, uma natureza
probatória.
A circunstância de o juiz ser posto em contacto imediato com o facto a provar,
sem que entre o juiz se interponha uma pessoa – confissão, prova pericial e prova
testemunhal – ou uma coisa – prova por documentos – exerce uma influência
considerável sobre a formação da convicção do julgador.
Ao contrário de outros meios de prova em que lhe dão unicamente a
representação de um facto, na inspecção judicial, aquele magistrado tem diante de
si o próprio facto que pretende captar.
18 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora,
1981, pág. 305.
17
Originariamente só se lavrava auto da inspecção se a diligência fosse feita
pelo tribunal singular; se a diligência fosse realizada pelo tribunal colectivo, não havia
lugar à sua feitura (artº 615 do CPC de 1939). A razão da distinção estava nisto: se
fosse o tribunal colectivo proceder à inspecção, nada se escrevia ou registava pela
mesma razão por que não se registavam os depoimentos prestados perante o tribunal
colectivo; se a inspecção fosse feita pelo juiz singular, o auto era lavrado para que,
através dele, o tribunal colectivo, viesse a ter conhecimento dos resultados da
diligência19.
Actualmente, a lei manda que se lavre auto, independentemente da estrutura
colegial ou singular do tribunal, no qual se registam todos os elementos úteis para o
exame e decisão da causa, podendo o juiz determinar que se tirem fotografias para
serem juntas ao processo (artº 493 do nCPC). O propósito da modificação foi,
declaradamente, o de permitir um melhor e efectivo exercício dos poderes de
controlo, em matéria de facto, em caso de recurso da respectiva matéria20.
Mas a verdade é que se o que individualiza a inspecção judicial relativamente
às demais provas é a percepção judicial directa, o rigor dos princípios exigiria que só
pudesse decidir a matéria de facto o juiz que tenha produzido este meio de prova; se
a inspecção pode ser realizada por uma juiz e a matéria de facto decidida por outro,
perde-se a essência mesma da inspecção.
O problema que aquela possibilidade traz imbricada é, portanto, o do valor do
auto lavrado para documentar a produção daquela prova. Se a inspecção é
realizada pelo mesmo juiz que deve decidir a questão de facto, o princípio da
imediação vale em toda a sua extensão, de modo que a convicção do juiz se forma
não de harmonia com o plasmado no auto – mas com a percepção obtida pelo juiz
com os seus sentidos. Neste caso, o auto não é o fundamento da convicção, embora,
19 Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra
Editora, 1981, pág. 320.
20 Cfr. Preambulo do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.
18
claro, possa cumprir o papel de auxiliar de memória daquilo que foi percepcionado
no acto; a convicção do juiz forma-se com o acto – e não com o auto.
Quando a valoração daquela prova não possa ser actuada de harmonia com
o princípio da imediação, já o elemento de convicção não é o acto – mas o auto.
Esta constatação obriga ao distinguo lógico entre dados intrínsecos objectivos
e dados intrínsecos subjectivos21.
Tratando-se de dados intrínsecos objectivos, a convicção do juiz que não
produziu essa prova – por exemplo, o tribunal de recurso – pode basear-se no auto: se
neste se fez constar, por exemplo, que distância existente entre dois pontos era de 10
m, o que no terreno existia uma árvore, o segundo juiz pode – e deve22 - partir desses
dados objectivos, dando-os como certos.
Quando se trata de dados intrínsecos subjectivos, quer dizer, apreciações,
conclusões ou deduções, é mais que duvidoso que o auto que documenta a
inspecção possa ser usado por um juiz distinto para decidir a matéria de facto ou para
controlar essa decisão. Se relativamente aos dados objectivos – que são meras
constatações da percepção do juiz – é muito difícil que possam ser negados, seja elas
partes seja por outro juiz, já no tocante aos dados subjectivos – os que consistem em
apreciações – vale a regra contrária.
21 Juan Montero Aroca, La Prueba en el Proceso Civil, 4ª edición, Thomson,
Civitas, pág. 432.
22 Diz-se deve, dado que, nesta hipótese, o auto ou a acta constituem um
documento autêntico e, portanto, faz prova plena dos factos que no auto ou na acta
são atestados com base nas percepções do juiz (artºs 369 e 371 nº 1 do Código Civil).
O mesmo sucede com as verificações não judiciais qualificadas no tocante às
atestações realizadas por autoridade ou oficial público (artº 494 nº 2, 1ª parte, do
nCPC).
19
Isto mostra que não há razão para a inspecção deva prevalecer, em qualquer
circunstância, de modo absoluto, sobre qualquer outro meio de prova, ou dito de
outro modo, que se lhe deva reconhecer força de prova plena.
È verdade que, visando a prova estabelecer a convicção pessoal do
magistrado, este deve prestar aos seus próprios sentidos maior valor do que qualquer
outra demonstração; mas não está inteiramente excluída a possibilidade de o juiz ser
induzido em erro pelos seus sentidos e de, portanto, a sua convicção ser formada a
partir de percepções individuais inexactas.
Isto explica, decerto, a prudência da nossa lei quanto ao valor deste meio de
prova. No tocante à eficácia probatória da inspecção rege, por inteiro, o princípio da
prova livre: o resultado da inspecção é apreciado livremente pelo tribunal (artº 391 do
Código Civil). O tribunal deve, por isso, atribuir aos resultados da inspecção judicial o
valor que, de harmonia com uma convicção prudente, entender, em atenção às
restantes provas e a todos os elementos de convicção disponibilizados pelo processo.
Mas esta circunstância não deve fazer esquecer duas coisas: que a prova por
meio de inspecção ou reconhecimento judicial é frequentemente idónea para
convencer o juiz, de modo extraordinariamente simples, da existência ou inexistência
de um facto; que o juiz que a realiza está em condições, melhor que ninguém, de
determinar o seu alcance probatório.
Estas características da prova por inspecção tornam particularmente difícil a
substituição da Relação à 1ª instância no julgamento de um facto cuja realidade
tenha sido estabelecida a partir desse meio de prova, não faltando mesmo quem
sustente a insindicabilidade da convicção do juiz a quo, formada com base nessa
prova23.
23 Ac. da RE de 03.06.04, CJ, XXIX, III, pág. 249 e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas
Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág.
150.
20
Estando fora de dúvida que a inspecção judicial é assinaladamente eficaz
para esclarecer um facto que interessa à decisão da causa e, portanto, para exercer
a maior influência no ânimo do juiz, ainda assim não deve excluir-se, por inteiro, a
possibilidade de se censurar o erro do juiz da audiência na apreciação dessa prova,
opondo-lhe outros meios idóneos para rectificar percepções individuais inexactas e
para corrigir equívocos ou a violação, na valoração dos resultados a que a inspecção
conduziu, de regras de ciência, de lógica ou da experiência.
3. Simplesmente, o que se verifica com uma frequência indesejável é que o
acto ou a acta da inspecção não documenta os factos observados pelo juiz que
procedeu à inspecção ou os resultados a que a inspecção o conduziu – mas, depois,
na motivação da decisão da questão de facto, surge indicada, como prova
absolutamente decisiva, para aquele julgamento, a inspecção judicial. Dado que a
fonte de convicção da Relação é, nesta caso, o auto ou a acta da inspecção, a falta
de documentação dos factos observados ou dos resultados a que a inspecção
conduziu o juiz que a realizou, impede, naturalmente, a Relação de controlar o
eventual erro daquele Magistrado na apreciação ou valoração daquela prova.
Também neste caso, não é clara a atitude que a Relação deve tomar. Nos
circunstancialismos apontados, dada a inadmissibilidade de renovação dessa prova,
uma proposta de solução possível é a Relação ordenar se proceda a verificação não
judicial qualificada (artºs 494 nº 1 e 666 b), do nCPC). Outra, é anular a decisão da
matéria de facto, por nesse caso, não dispor de todos os elementos que lhe permitem
alterar a decisão da matéria de facto, objecto da impugnação (artº 662 nº 2, c), do
nCPC).
III. Ónus da impugnação da decisão da questão de facto.
1. Âmbito.
21
Uma outra condição para que a Relação actue os seus poderes de controlo
sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância é o cumprimento pelo recorrente
dos ónus de impugnação dessa decisão a que lei o vincula.
Se a impugnação compreender a matéria de facto, o recorrente está adstrito
ao ónus de especificar, sob pena de imediata rejeição do recurso, os concretos
pontos de facto que considera erroneamente julgados, os meios de prova,
disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que
imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do
recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação
(artº 640 nº 1, a) a c), do CPC).
Quando os meios de prova tenham sido objecto de registo fonográfico,
incumbe ainda ao recorrente, sob a cominação da imediata rejeição do recurso, no
tocante à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da
gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova, sem prejuízo, de, por
sua iniciativa, proceder à transcrição (artº 640 nº 2, a), do nCPC).
E é este último encargo ou ónus que vincula o recorrente que tem suscitado
alguma controvérsia.
1. Cumprimento do ónus de indicação precisa das passagens da gravação.
1. Constitui ocorrência ordinária o recorrente não indicar, com precisão, as
passagens do registo fonográfico em que fundamenta a impugnação, limitando-se a
localizar, no registo, o início e o fim do depoimento, ou a transcrever troços ou
segmentos desse depoimento, ou a juntar com a alegação a transcrição integral dos
depoimentos.
O procedimento do impugnante assenta, nitidamente, nesta lógica: desde que
procedi à localização, no registo fonográfico, do início e do fim do depoimento ou à
22
transcrição dos depoimentos, não tenho que proceder à indicação exacta das
passagens da gravação em que fundo a impugnação da decisão da questão de
facto. Mas há boas razões para não ter um tal ponto de vista por exacto.
2. Realmente, a lei é terminante: os depoimentos invocados como fundamento
do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente,
sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação exacta das passagens da
gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos
excertos que considere relevantes (artº 640 nº 2, a),do CPC).
Um tal ónus não pode considerar-se satisfeito se, por exemplo, o impugnante se
limita a indicar o início e o fim do depoimento dos participantes processuais ouvidos
na audiência final, nas quais funda a impugnação.
A exactidão desta conclusão torna-se patente pelo exame da evolução
legislativa quanto do conteúdo do apontado ónus de impugnação da decisão da
questão de facto.
Efectivamente, no sistema de recursos imediatamente anterior à sua
reconformação pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aquele ónus de
impugnação considerava-se satisfeito, quanto ao ponto considerado, através da
simples indicação dos depoimentos em que o recorrente baseava a sua discordância,
por referência ao assinalado na acta, que deveria documentar o início e o termo da
gravação de cada depoimento (artº 690-A nº 2, in fine, do CPC de 1961). Era, portanto
suficiente, para que o recorrente se livrasse daquele ónus, a especificação dos
depoimentos que, no seu ver, impunham, para os pontos da matéria de facto,
decisão diversa da recorrida, e a sua localização no registo sonoro, através da simples
indicação, nesse registo, do seu início e do seu terminus.
Com a Reforma dos recursos, aquele ónus – que transitou, qua tale, para o
Código de Processo Civil vigente - tornou-se mais exigente: não basta a localização
dos depoimentos no registo, pela simples indicação do seu início e do seu fim:
23
reclama-se a indicação, precisa, exacta, das passagens da gravação – o mesmo é
dizer dos depoimentos – que, no ver do recorrente, inculcam, para os pontos de facto
que reputada mal julgados, uma decisão diferente da que foi achada pelo decisor de
facto da 1ª instância.
O ónus daquela indicação também não pode considerar-se cumprido pela
junção da transcrição – integral ou não – dos depoimentos produzidos e registados,
por meios técnicos sonoros, na audiência final.
Toda a interpretação da lei deve começar pela análise da sua letra, pela
tentativa de compreensão do seu significado: a letra da lei é a base textual da sua
interpretação (artº 9 nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Considerada na sua dimensão
semântica – i.e., no significado das palavras utilizadas na lei, no contexto da sua
estrutura - à expressão sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que
considere relevantes, não pode, de todo, atribuir-se o sentido de a transcrição dos
depoimentos constituir uma alternativa à indicação precisa da sua localização no
registo sonoro.
A letra da lei tem um valor que não pode ser ignorado pelo intérprete e que
impõe dois limites: um decorrente das presunções de que o legislador consagrou as
soluções mais acertadas e de que soube exprimir o seu pensamento em termos
adequados; outro, que decorre da proibição de consideração, pelo intérprete, de um
significado que, não tenha na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal,
ainda que imperfeitamente expresso (artº 9 nºs 1 e 2 do Código Civil): o significado que
não encontre uma correspondência mínima na letra da lei, está para além do seu
significado provável e não pode, por isso, qualificar-se como interpretação. A
conclusão de que o ónus do impugnante da matéria de facto que se discute se
considera cumprido, alternativamente, pela indicação precisa das passagens da
gravação ou pela transcrição dos depoimentos não é, de todo, compatível com letra
da lei.
24
No mesmo sentido concorre o elemento teleológico, i.e., a finalidade da lei,
elemento através do qual procura determinar-se quais são os objectivos que lei pode
prosseguir e que, portanto, impõe a procura, pelo intérprete da ratio legis –
determinante para a fixação do significado da lei interpretanda - e a sua utilização na
determinação do espírito da lei.
Porque se formulou a exigência da especificação, exacta, pelo recorrente das
passagens da gravação em que funda a impugnação? Para que o recorrido e o
tribunal ad quem, que há-de julgar o recurso, fiquem habilitados a conhecer
nitidamente, os troços ou os segmentos da prova pessoal susceptíveis de inculcar o
error in iudicando que o recorrente assaca à decisão da questão de facto. A parte
contrária necessita de o saber para exercer o seu direito ao contraditório e porque lhe
incumbe, na resposta ao recurso, indicar os depoimentos gravados que infirmem as
conclusões do recorrente; o tribunal ad quem carece de o saber para poder
reapreciar, com segurança e reflexão, o julgamento cuja exactidão se impugna (artº
640 nº 2, b), do nCPC).
E a exigência de que a indicação seja exacta, precisa, específica, visa,
nitidamente – sobretudo nos casos, que constituem a esmagadora maioria - de
depoimentos particularmente extensos – permitir, tanto à parte contrária, como ao
Tribunal ad quem – uma audição, fácil e célere, das passagens da gravação em que
se funda a impugnação, de modo a avaliar, de forma ágil, se os troços do registo
apontados pelo recorrente são ou não adequados – mesmo que considerados
apenas de per se - a inculcar o error in iudicando invocado pelo impugnante, sem
prejuízo, todavia, da actuação, pelo tribunal superior dos seus poderes de
investigação oficiosa, portanto da faculdade de proceder à audição de quaisquer
outros segmentos do registo, do mesmo ou de outros depoimentos.
Como se observou, a possibilidade de o tribunal de recurso conhecer de
matéria de facto, pressupõe, evidentemente, que lhe sejam garantidas, pelo menos,
as mesmas condições que estão asseguradas ao tribunal recorrido, problema que
25
assume particular acuidade no que se refere à oralidade e a um seu corolário – a
imediação, entendida como a relação de proximidade entre o tribunal e os
participantes do processo, de modo a que aquele possa obter uma percepção
própria do material que terá como base da sua decisão – que contribuem,
decisivamente, para a boa apreciação da matéria de facto.
O sistema actual de registo da prova – gravação fonográfica das provas
produzidas oralmente na audiência – é o que minimiza, por comparação com a
leitura, fria e inexpressiva da transcrição, os inconvenientes da assunção, pelo tribunal
de recurso, dessa prova, sem a actuação, em toda a sua extensão, dos princípios da
oralidade e da imediação. E são estes princípios que saem optimizados através da
interpretação de harmonia com a qual o indicado ónus de impugnação do
recorrente se cumpre com a indicação precisa das passagens da gravação e não
através da transcrição, integral ou não, da prova produzida oralmente na audiência.
De resto, esta conclusão é indelevelmente inculcada pelo elemento
sistemático da interpretação, que impõe que nenhuma norma seja interpretada
isoladamente de outras com as quais apresenta uma conexão sistemática e que, de
entre os vários significados literais possíveis, vincula a que se prefira aquele que for
compatível com o significado de outras normas, dado que só assim se dá expressão à
unidade do sistema jurídico (artº 9 nº 1 do Código Civil). Nos casos em que o
recorrente impugne a decisão da matéria de facto, incumbe ao recorrido especificar
os meios de prova que contrariam as conclusões do recorrente e, caso os
depoimentos tenham sido gravados, indicar com precisão as passagens da gravação
em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere
relevantes (artº 640 nº 2 b) do CPC). Quer dizer: no tocante ao ónus de impugnação
do recorrido – a cujo incumprimento não se associa qualquer efeito cominatório – é
patente que não existe qualquer alternatividade entre a indicação com exactidão
das passagens da gravação em que se funda e a transcrição dos excertos
correspondentes: aquele ónus satisfaz-se sempre através da indicação das passagens
26
do registo sonoro e, cumulativamente, caso aquela parte queira, através da
transcrição dos excertos correspondentes dos depoimentos. O elemento sistemático
da interpretação impõe, pois, a adstrição do recorrente a um ónus exactamente
igual.
Interpretação diversa conflituaria, asperamente, aliás, com um princípio
estruturante do processo: o da igualdade das partes de harmonia com o qual ambas
as partes devem possuir os mesmos poderes, direitos, deveres e ónus, devendo cada
uma delas situar-se numa posição de plena igualdade perante a outra e ambas ser
iguais perante o tribunal (artº 4 do CPC). Por si só, este princípio excluiria um resultado
interpretativo, segundo o qual uma das partes, no tocante a um mesmo objecto - a
impugnação da decisão da matéria de facto – estaria adstrita a um ónus de
conteúdo ou dimensão diferente do da outra, como sucederia, decerto, se o
cumprimento daquele ónus da impugnação se considerasse satisfeito, no tocante ao
recorrente, pela junção da transcrição dos depoimentos, sem necessidade de
indicação precisa das passagens da gravação, e no tocante ao recorrido, tal
indicação lhe fosse exigível, não se satisfazendo com a simples transcrição, parcial ou
total, do depoimento
Tudo vincula, pois, à conclusão que a transcrição dos depoimentos não
constitui alternativa à indicação, com precisão das passagens da gravação e,
portanto, que o ónus de impugnação considerado só se considera satisfeito se o
recorrente indicar as passagens relevantes da gravação e, proceder, se assim o
entender, à transcrição dos segmentos que considere significantes24.
3. Consequência jurídica da insatisfação do ónus de impugnação da decisão
da questão de facto.
24 Acs. da RG de 30.01.14 e do STJ de 19.03.15, www.dgsi.pt, e António Santos
Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit. págs. 126 e 127.
27
1. A lei é também terminante na declaração de que o incumprimento pelo
recorrente de qualquer dos apontados ónus importa a imediata rejeição, nessa parte,
do recurso (artº 640 nºs 1 e 2 a), do nCPC)25.
2. Pode, porém, perguntar-se se, face ao não cumprimento daquele especial
ónus de impugnação, a rejeição do recurso é irremissível ou se não deve, neste
domínio, actuar-se o princípio da cooperação intersubjectiva, na vertente do dever
prevenção, que vincula o tribunal, e, consequentemente, preceder a decisão de
rejeição do recurso, na parte afectada, por um despacho de convite, dirigido ao
apelante, de aperfeiçoamento da sua alegação, evitando, assim, que o êxito do
recurso possa ser irremediavelmente comprometido por uso inadequado do processo
(artºs 7 nº 1 do nCPC).
25 Note-se que o espectro da rejeição do recurso, no segmento em que se
funda na prova pessoal produzida na instância, com fundamento na insatisfação, pelo
recorrente, dos ónus indicados, é mais amplo do que pareceria à primeira vista, dado
que exclui inteiramente a reponderação da exactidão do julgamento de todos os
pontos de facto em que a prova utilizada pelo decisor da 1ª instância para formar a
sua convicção acerca da realidade ou da inveracidade dos factos controvertidos,
tenha sido, ainda que não de forma exclusiva, a prova produzida oralmente na
audiência. Assim, se o decisor de facto da 1ª instância tiver formado a sua convicção
sobre a veracidade e a irrealidade dos factos apontados também na prova
testemunhal, deve exigir-se para os demais de prova produzidos um valor probatório
tal que imponha para os apontados factos uma decisão diversa que não possa ser
destruída por aquela prova pessoal (artº 662 nº 1 do nCPC). Estará nessas condições, o
documento ou a declaração confessória que façam prova plena de qualquer
daqueles factos, que o decisor da 1ª instância tenha desconsiderado (artºs 371 nº 1,
376 nº 1, 377, 352 e 358 nº 1 do Código Civil).
28
A letra da lei inculca nitidamente uma resposta negativa. De outro aspecto, o
convite ao aperfeiçoamento da alegação, além de resolver num novo alargamento
do prazo do oferecimento da alegação, contraria abertamente a razão que levou a
lei a adstringir às partes àquele ónus: a de desmotivar impugnações temerárias e
infundadas da decisão da matéria de facto.
Deve, por isso, concluir-se que não há, neste plano, espaço, para um tal
despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações26.
4. Rejeição imediata do recurso e direito a um processo equitativo.
1. Problemática é, porém, a compatibilidade da imediata rejeição do recurso,
sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir a insatisfação do ónus de
impugnação dessa matéria – maxime do ónus de indicação precisa e exacta das
passagens do registo fonográfico em que faz assentar a impugnação - com o direito a
um processo equitativo (artº 20 nº 4 da Constituição da República Portuguesa).
2. Sendo exacto que o direito a um processo equitativo não é incompatível
com a exigência de cumprimento de ónus processuais – de um qualquer requisito cuja
verificação e observância é necessária para que o órgão judicial possa examinar as
pretensões formuladas no pedido, dado que o direito à tutela jurisdicional não se
identifica com o direito a obter uma decisão favorável, antes se reconduz ao direito
de obter uma decisão fundada no direito, sempre que se cumpram os requisitos
26 Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição,
Almedina, Coimbra, 2008, pág. 170, nota 331, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas
ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80, e
Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, cit., págs. 141 e 142, e os
Acs. do STJ de 23.11.11, CJ, STJ, XIX, III, pág. 126, da RP de 24.02.14 e de 24.03.14, e da
RC de 18.02.14, www.dgsi.pt.
29
legalmente exigidos – também é verdade que o direito ao processo equitativo implica
a sanação de irregularidades processuais, como exigência do direito à tutela judicial.
O princípio do processo equitativo comporta, como dimensão ineliminável, o
direito a um processo orientado para a justiça material, sem demasiadas peias
formalísticas – e, portanto, um direito à emissão de pronúncia sobre o mérito das
pretensões formuladas. Consideradas estas dimensões do direito a um processo
equitativo, é, realmente, lícito questionar se a imediata rejeição do recurso por
insatisfação do apontado ónus da impugnação da decisão da questão de facto, sem
que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir a omissão – não é, em boa
verdade, constitucionalmente imprópria.
4. Ónus da impugnação e mérito da impugnação.
1. Na law in action é também comum a impugnação da decisão da matéria
de facto através da simples indicação da prova que, no ver do recorrente, conduz a
convicção distinta da formada pelo decisor do tribunal a quo.
2. O recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve procurar
demonstrar o erro de julgamento dessa matéria, demonstração que implica a
produção de razões ou fundamentos que, no seu modo de ver, tornam patente um tal
erro. Na realidade, não parece excessivo exigir ao apelante que, no curso da
alegação, exponha, explique e desenvolva os fundamentos que mostram que o
decisor da 1ª instância errou quanto ao julgamento da matéria de facto, exposição e
explicação que deve consistir na apreciação do meio de prova que justifica decisão
diversa da impugnada, o que pressupõe, naturalmente, a indicação do conteúdo
desse meio de prova, a determinação da sua relevância e a sua valoração, e a
indicação da regra da lógica, da ciência ou da experiência violada, nessa aferição,
pela decisão impugnada.
30
Todavia, este ónus de alegação é estranho ao ónus da impugnação da
matéria de facto, relevando, não no plano da admissibilidade da impugnação – mas
no do seu mérito27.
5. Competência para a rejeição do recurso.
Resta dizer que a competência para decidir a rejeição, nessa parte, do
recurso, com fundamento na insatisfação do ónus de impugnação da decisão da
matéria de facto é da Relação – em primeira linha do Relator – e não do juiz da 1ª
instância (artº 652 nº 1, h) e 3, e 655 nº 1 do nCPC).
IV. Âmbito do ónus de formular conclusões quando o recurso tenha por objecto
a impugnação da decisão da questão de facto.
1. O recorrente está adstrito a dois outros ónus: o de alegar; o de concluir. Ao
ónus de alegar acresce, portanto, o de concluir. Ónus que devem ter-se, quanto, ao
seu âmbito, como simétricos, dado que o ónus de concluir se satisfaz pela indicação
resumida dos fundamentos por que se pede a alteração ou a anulação da decisão
impugnada, pela enunciação abreviada dos fundamentos do recurso (artº 639 nº 1 do
nCPC).
2. Ponto que tem suscitado algumas dúvidas, e mesmo decisões
jurisprudenciais desencontradas, é o que respeita ao quantum do cumprimento do
ónus da impugnação da decisão da matéria de facto que o recorrente deve levar às
conclusões com que deve encerrar a alegação.
Para o bom julgamento do recurso não é suficiente que a alegação tenha
conclusões. Estas deverão ser precisas, claras e concisas de modo a habilitar a
27 Ac. do STJ de 19.02.15, www.dgsi.pt.
31
contraparte e o tribunal ad quem a conhecer quais as questões postas e quais os
fundamentos invocados. As alegações poderão ser extensas, prolixas e confusas;
importa que, no fim, a título de conclusões, o recorrente indique, de forma sintética,
por súmula, os fundamentos da impugnação (artº 639 nº 1 do nCPC).
O que se pergunta é se o ónus de concluir a que o recorrente está adstrito
compreende, quando o recurso tenha por objecto a impugnação da decisão da
questão de facto, a indicação resumida dos pontos de facto que reputa de mal
julgados, das provas que inculcam esse erro, da decisão que, no seu ver deve ser
encontrada para os enunciados de facto julgados erroneamente julgados e,
fundando-se a impugnação nos depoimentos objecto do registo, a sua localização
precisa nesse registo.
No rigor das coisas, tendo em conta a função das conclusões – a de
delimitação do âmbito objectivo e subjectivo do recurso e, correspondentemente, da
competência decisória da Relação – o ónus de concluir deveria compreender, as
proposições sintéticas relativas ao ónus de impugnação da decisão da matéria de
facto, dado que essa impugnação constitui fundamento do recurso.
3. Mas não é essa a orientação do Supremo, que, numa interpretação
benévola, bona partem, tem sustentado, que as conclusões apenas devem conter os
enunciados resumidos relativos aos pontos de facto objecto da impugnação e a
decisão que, no ver do impugnante, para eles deve ser encontrada pela Relação -
mas já não as indicações relativas às provas em que se fundamenta a impugnação
nem, no caso de provas pessoais objecto do registo, a localização na gravação, dos
depoimentos correspondentes28.
O que não é patente é o critério que justifica que, algumas das indicações
relativas à impugnação da decisão da questão de facto, se compreendam no ónus
de concluir e outros não. Critério que não é, decerto, a circunstância de as indicações
28 Assim, por último, o Ac. do STJ de 19.02.15, www.dgsi.pt.
32
relativas às provas e a localização das provas pessoais objecto do registo não
desempenharem a função de delimitação do objecto do recurso. Se tais indicações
devem, indubitavelmente ser expostas e explicados no curso da alegação –
constituindo nitidamente fundamento do recurso no segmento relativo à decisão da
questão de facto - que razão explica que não devam, depois, ser enunciadas e
resumidas sob a forma de conclusões, no encerramento dessa mesma alegação?
4. De qualquer modo, resolvendo-se a ausência de menção, nas conclusões,
dos fundamentos relativos à impugnação da decisão da matéria de facto, na
deficiência dessas conclusões – que omitem os fundamentos por que se pede a
alteração ou a anulação da decisão da matéria de facto – o que está indicado é que
o juiz relator convide o recorrente a completá-las e só se o recorrente declinar o
convite é que será lícito aplicar-lhe a cominação grave de não conhecimento, nessa
parte, do recurso (artº 639 nº 3 do nCPC).
V. Poderes – deveres - de controlo da Relação no tocante à decisão da
questão de facto da 1ª instância.
1. Reponderação e reexame.
1. O legislador não está, evidentemente, vinculado a configurar a segunda
instância num único sentido, tendo disponíveis, ao menos, duas opções que lhe
permitem obter um equilíbrio adequado entre o modelo processual que escolheu e a
necessidade de controlo por uma instância superior: trata-se de um puro problema de
política legislativa, que deve atender a critérios de tradição jurídica, técnica e
oportunidade.
Neste plano, existem dois modelos puros que, com o tempo, deram lugar a
modelos mistos que combinam aspectos de um e de outro. Estes modelos puros – ou
33
clássicos – originam a chamada apelação plena e a apelação limitada que dão
lugar, respectivamente, a novum iudicum ou uma rivisio prioris instantiae: no primeiro
caso, a apelação obedece ao modelo do recurso de reexame; no segundo ao de
reponderação.
2. A primeira opção supõe que o tribunal ad quem, ao proceder ao exame do
caso, conta com todos os materiais, de facto e probatórios, com que contou o
tribunal de 1ª instância, mais aqueles que as parte aportaram no procedimento
observado na 2ª instância. Permite-se, pois, às partes, nesta configuração da 2ª
instância, adicionar alegações de facto e propor e produzir novos meios de prova,
com os quais o tribunal superior entra em linha de conta para tomar a decisão que,
por isso, é formada com base em elementos que não foram apreciados pelo tribunal
inferior. Há, por isso, pouco espaço para a preclusão.
Diversamente, a apelação limitada vincula o tribunal superior a basear o seu
exame nos mesmos materiais que o tribunal inferior teve à sua disposição, sem que às
partes seja lícito alegar novos factos ou propor ou produzir novas provas. A apelação
limitada está, por isso, submetida a uma rígida regra de preclusão, dado que se proíbe
às partes tanto a alegação de factos novos, como a proposição ou a produção de
novas provas ou sequer a renovação das provas produzidas na instância recorrida.
Note-se, contudo, que mesmo neste modelo de apelação limitada, o tribunal
superior tem – ou deve ter - plena competência para rever toda a actuação do
tribunal inferior, tanto no que respeita aos factos, como relativamente às questões
jurídicas deduzidas. Questão diferente é a da auto limitação do tribunal ad quem, que
com o argumento da protecção da imediação, descaracteriza a apelação,
privando-a de toda a sua extensão no domínio do controlo da valoração da prova.
É evidente que a opção pela primeira alternativa conhece maiores resistência
e eventuais problemas no caso de um processo que aposte no reforço da autoridade
e do protagonismo do tribunal de 1ª instância, sendo susceptível de gerar
34
inconvenientes no plano da eficiência do processo, considerado o custo temporal e
económico necessariamente implicados numa apelação que obedeça ao modelo
de reexame. Em consequência, é indiscutível que a opção por uma apelação
limitada, que circunscreva o novo juízo ao pedido e decidido na 1ª instância, sobre os
factos alegados e a provas produzidas, parece ser mais razoável – sem prejuízo,
contudo de introduzir excepções julgadas indispensáveis para prevenir injustiças.
Todavia, como o modelo da apelação limitada tem implícito um largo efeito
preclusivo, as excepções a esse modelo – que a aproximam do modelo de reexame -
colocam o problema delicado da articulação dessa preclusão com a possibilidade
de, na instância de recurso, renovar as provas produzidas na 1ª instância ou mesmo
produzir novas provas.
3. O exame, ainda que leve, da evolução das atribuições da Relação de
julgamento da matéria de facto inculca, indubitavelmente, um reforço dos seus
poderes, nitidamente ordenado pela criação de um verdadeiro e efectivo segundo
grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes uma
maior e real possibilidade de reacção contra eventuais erros de julgamento na livre
apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução
jurídica do pleito. Apesar disso, não parece que seja errado dizer-se que não se visa
instituir uma nova instância de julgamento da matéria de facto – mas, limitadamente,
criar uma instância de controlo do julgamento daquela matéria feito pelo tribunal de
1ª instância.
De outro aspecto, a actuação pela Relação desses poderes de controlo não
obedece, segundo a sua finalidade, a um modelo uniforme, dado que pode visar a
reponderação da decisão impugnada, o reexame desta decisão com elementos não
ponderados na 1ª instância ou a anulação daquela decisão (artº 662 nºs 1 e 2, a) a d),
do nCPC).
35
2. Reapreciação da decisão.
A Relação deve reapreciar o julgamento da matéria de facto da 1ª instância
com base nos elementos examinados naquela instância – e consequentemente
alterar e substituir a decisão correspondente:
a) Se tendo sido registados fonograficamente os depoimentos prestados
oralmente, o recorrente impugnar a decisão proferida com base nesses depoimentos,
caso em que a Relação reaprecia as provas em que assentou a decisão impugnada,
sem prejuízo de, oficiosamente a atender a quaisquer outros elementos probatórios
(artºs 640 nº 2, b), 1ª parte, e 662 nº 1 do nCPC).
b) Independentemente da gravação dos depoimentos prestados, o processo
fornecer todos os elementos de prova que serviram de fundamento à decisão da
questão de facto, hipótese em que a Relação pode atender a quaisquer elementos
de prova disponibilizados pelo processo, desde que imponham uma decisão diversa
da impugnada (artº 662 nº 1 do nCPC). Nestas duas hipóteses, a actuação pela
Relação dos seus poderes de controlo obedece ao modelo de recurso de
reponderação e de substituição, dado que se limita a reapreciar as provas produzidas
em 1ª instância e, caso conclua pelo erro na sua apreciação, logo substitui a decisão
impugnada por outra;
c) Se for apresentado um documento superveniente que possua um valor
probatório suficiente para destruir a prova em que a decisão impugnada assentou
(artº 662 nº 1, in fine, do nCPC). Neste caso, dado que o julgamento da Relação
assenta num elemento novo, não ponderado pela 1ª instância, a Relação actua
poderes de reexame e de substituição.
2. Cassação ou rescisão da decisão da matéria de facto.
36
3.1. Deficiência, obscuridade, contradição da decisão da matéria de facto e
ampliação dessa matéria.
1. No contexto dos seus poderes de controlo da decisão da matéria de facto,
a Relação deve, mesmo oficiosamente, no uso de poderes de rescisão ou cassatórios,
anular a decisão da matéria de facto da 1ª instância:
a) Sempre que essa decisão seja deficiente, obscura ou contraditória (artº 662
nº 2, c), 1ª parte, do nCPC).
A deficiência daquela decisão decorre da omissão de pronúncia quanto a
algum facto controvertido; note-se que todos os factos controvertidos devem ser
apreciados pelo tribunal, sem que entre eles possa ser estabelecida qualquer relação
de prejudicialidade que dispense a pronúncia sobre outros; a obscuridade verifica-se
quando a resposta do tribunal for dúbia ou ambígua, não se percebendo se o facto é
considerado provado ou não provado ou em que medida é julgado provado ou não
provado; A contradição intrínseca ocorre quando são considerados provados factos
incompatíveis, desde que uns não possam ser considerados factos impeditivos,
modificativos ou extintivos de outros;
b) Quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto, i.e.,
quando se tenha verificado a omissão de julgamento de qualquer enunciado de
facto ou quando entenda que deve ser produzida prova sobre factos alegados pelas
partes que não constam dos temas da prova (artº 662 nº 2 c), in fine, do nCPC).
1. A actuação dos poderes cassatórios ou rescisórios, nos casos apontados, é
nitidamente construída como subsidiária, relativamente aos poderes de reponderação
do julgamento dos pontos de facto, objecto da impugnação. O exercício daqueles
37
poderes só é admissível se a supressão de qualquer dos vícios indicados não for
possível através da actuação dos poderes de reponderação ou de reexame29. Isto é
decerto assim, no caso de ambiguidade ou de obscuridade da decisão da matéria
de facto da 1ª instância. Maneira que, no caso de ambiguidade ou de contradição
da decisão da matéria de facto, a Relação deva ela mesma, esclarecer a decisão ou
desfazer a contradição, harmonizando as respostas em conflito.
2. Todavia, nos casos em que a Relação entenda que deva ser produzida
prova sobre qualquer facto que se não compreenda nos temas da prova, a resposta
exacta não parece tão evidente.
Compreende-se, realmente, por aplicação de um claro princípio de economia
e eficiência processuais, que se a Relação, tendo disponíveis todos os elementos de
prova, notar que a decisão da matéria de facto é intrinsecamente contraditória ou lhe
falte clareza, harmonize ela mesma as respostas contraditórias ou esclareça os pontos
obscuros. Também se compreende – para obviar ao desagradável vaivém do
processo da Relação para a 1ª instância e desta instância para a Relação - que se a
deficiência da decisão de facto consistir, por exemplo, na omissão de julgamento de
um ponto de facto que tenha sido incluído nos temas da prova, a Relação supra ela
mesma a omissão, decidindo esse mesmo ponto de facto.
Portanto, se a deficiência da decisão da questão de facto consistir num erro
sobre a enunciação dos temas da prova, i.e., se radicar na omissão, naquela
enunciação, de factos relevantes, alegados pelas partes, e a Relação entender que
deve ser produzida prova sobre eles, não lhe resta outra alternativa – parece-me -
senão actuar os seus poderes cassatórios e reenviar o processo para a instância
recorrida para que proceda a novo julgamento30.
29 Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, artº 712, VII.
30 A menos que se possa julgar provado, por outra via, v.g., por acordo, o facto
omisso: Ac. da RP de 01.03.99, CJ, III, pág. 259.
38
Porquê? Porque nestas condições, não se verifica a condição de que a lei faz
depender a actuação dos poderes de substituição: constarem do processo todos os
elementos probatórios que permitam a reapreciação da matéria de facto.
Efectivamente, se os factos não foram incluídos nos temas da prova, e,
portanto, não constituíram objecto da instrução, pode ter-se como certo que não
foram submetidos ao exercício da prova. Nesta circunstância, a actuação pronta dos
poderes de substituição, decidindo logo a Relação pontos de facto omissos nos temas
da prova, privaria as partes de exercer relativamente a eles o direito à prova e à
contraprova, que constitui uma dimensão ineliminável do direito a um processo
equitativo (artº 20 nº 1 da Constituição da República Portuguesa)31.
31 Pode dar-se o caso de a impugnação da decisão da matéria de facto ter
por objecto, cumulativamente, por exemplo, o error iudicando, por erro na aferição ou
valoração das provas, e a deficiência dessa mesma decisão decorrente da omissão
do julgamento de facto relevante. O que pode perguntar-se, neste contexto, é se
notando a deficiência da decisão da matéria de facto e a consequente necessidade
da sua ampliação, a Relação deve proceder, desde logo, à reponderação dos
demais pontos de facto cujo julgamento é impugnado no recurso. A resposta que se
tem por exacta é negativa. De um aspecto, essa solução é nitidamente contrária ao
princípio da unidade de decisor da matéria facto – ínsito no princípio da plenitude da
assistência dos juízes – e ao carácter unitário dessa decisão, dado que implicaria,
necessariamente, uma cesure, por órgão jurisdicionais diversos, supra ordenados,
daquela decisão; depois, porque uma tal decisão da Relação sempre se deveria por
ter como puramente provisória, dada a inarredável faculdade de que dispõe o
tribunal da 1ª instância de proceder à ampliação dessa matéria, com o fito exclusivo
de evitar contradições na decisão correspondente (artº 662 nº 3, c), in fine, do nCPC).
Na hipótese figurada, a Relação deve cassar a decisão da matéria de facto e
ordenar a sua ampliação, considerando, prejudicada, num primeiro momento, a
39
c) Quando a motivação da decisão da questão de facto falte ou seja
deficiente.
No caso de a decisão da 1ª instância não se mostrar adequadamente
fundamentada no tocante a um facto essencial, a Relação - também no exercício de
poderes de cassação ou rescisão embora limitados - deve reenviar-lhe o processo
para que supra a falta ou a insuficiência da motivação (artº 662 nº 2, d), do nCPC).
Em primeiro lugar, deve notar-se que o vício da fundamentação da decisão da
1ª instância susceptível de autorizar o uso pela Relação daquele poder de cassação
compreende tanto o caso de faltar em absoluto aquela fundamentação, como no
caso de ela se mostrar deficiente, i.e., sempre que não mostrem especificados, com
suficiência, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do decisor de
facto da 1ª instância sobre a prova ou falta de prova dos factos (artº 607 nº 4 do
nCPC).
Em segundo lugar deve observar-se que – apesar da referência aos
depoimentos gravados ou registados - o vício da fundamentação susceptível de impor
a actuação daquele poder controlo da Relação pode referir-se a prova diferente da
prova pessoal, desde que evidentemente se trate de prova sujeita a livre apreciação
do tribunal.
3.2. Falta ou deficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto e
nulidade da sentença.
reponderação daquela decisão. Suprida, na 1ª instância, a deficiência, e regressado
o processo à Relação deverá, então, proceder à reponderação das provas.
40
1. Um dos objectos alegados sistematicamente como fundamento do recurso
de apelação é a nulidade da sentença impugnada, assente, designadamente, na
falta da sua motivação.
E como o nCPC concentrou, na sentença final, o julgamento da matéria de
facto, é muito comum a arguição da nulidade da sentença com base na falta de
motivação da decisão da matéria de facto (artº 607 nºs 1 a 4 do nCPC).
2. Apesar de actualmente o julgamento da matéria de facto se conter na
sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de
facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios
da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade
da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das
situações de nulidade deste último acto decisório.
Realmente, a decisão da matéria de facto está sujeita a um modo diferente de
controlo e de impugnação: qualquer dos vícios daquela decisão – deficiência,
obscuridade, contradição e falta de motivação - não é causa de nulidade da
sentença, antes é susceptível de lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de
rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662 nº 2
c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal
se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve – no uso de uma
forma mitigada de poderes de cassação – reenviar o processo para a 1ª instância
para que a fundamente (artº 662 nº 2 do nCPC)32.
Efectivamente, a falta de especificação dos fundamentos de facto ou de
direito implica a nulidade da sentença (artº 615 nº 1, a) do nCPC). Na hipótese
considerada, a sentença não omite os fundamentos de facto, limitando-se a não
especificar as razões pelas quais considerou esses fundamentos adquiridos para o
32 Ac. da RC de 20.01.15, www.dgsi.pt
41
processo. Esta falta não gera, porém, a nulidade da sentença antes permite a
impugnação da decisão sobre a matéria de facto e justifica que a Relação possa
reenviar o processo à 1ª instância para que fundamente essa mesma decisão.
2. Renovação da prova.
No exercício dos seus poderes de controlo sobre a decisão da questão de
facto da 1ª instância, a Relação deve ainda – e no uso de claros poderes de reexame
– determinar a renovação da prova ou mesmo a produção de novos meios de prova.
A lei imediatamente anterior, admitindo que a Relação, não ficasse
esclarecida com a audição da gravação ou com a leitura, fria e inexpressiva, da
transcrição, reconhecia-lhe a faculdade de determinar a renovação dos meios de
prova produzidos na 1ª instância que se mostrassem absolutamente indispensáveis ao
apuramento da verdade quanto à matéria de facto impugnada (artº 712 nº 3 do CPC
de 1961).
Neste plano, é bem diferente a orientação do nCPC.
De um aspecto, vincou-se o carácter oficioso da renovação da prova: a
Relação é agora vinculada ao dever de determinar – perante si – a renovação da
prova (artº 662 nº 2 a) do nCPC).
De outro, modificou-se o pressuposto da renovação. Ao passo que no direito
imediatamente anterior a renovação surgia condicionada à sua absoluta
indispensabilidade para a apuramento da verdade, o nCPC elegeu, como
pressuposto, as dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido
do seu depoimento (artº 662 nº 2 a) do nCPC).
Por último restringiu-se a renovação à prova pessoal: a prova testemunhal, o
depoimento de parte e a prova por declarações de parte (artºs 495 e ss, 452 e ss. e
466 e ss. do nCPC).
42
4.1 Provas renováveis.
1. A renovação das provas não é, pois, admissível relativamente, por exemplo,
à prova por inspecção judicial, à prova por reconstituição dos factos, à prova pericial
ou à prova por verificação não judicial qualificada – sem prejuízo, evidentemente, de,
se for o caso, a Relação ordenar a produção de nova perícia, proceder a nova
inspecção ou determinar se proceda a nova inspecção de coisas ou locais ou à
reconstituição de factos por técnico ou pessoa qualificada (artº 604 nº 3 c) do nCPC).
2. Ao referir-se à credibilidade do depoente ou ao sentido do depoimento, a lei
tem nitidamente em vista a prova testemunhal, a prova por depoimento de parte e
por declarações de parte. Todavia, não parece haver obstáculo sério a que a
Relação ordene a renovação também no tocante aos esclarecimentos verbais
prestados pelo perito ou peritos ou pelo técnico ou pessoa qualificada que tenha
procedido à verificação não judicial qualificada ou tenha acompanhado o juiz na
realização da prova por inspecção, sempre que duvide seriamente da sua
credibilidade ou hesite sobre o sentido dos esclarecimentos (artºs 604 nº 3 c) do nCPC).
3. A apontada restrição da renovação da prova às provas estritamente
pessoais já tem sido objecto de crítica, por não ter qualquer explicação plausível.
Sem prejuízo da unção devida por entendimento diverso, a verdade é que
para a restrição podem ser dadas boas razões.
Em primeiro lugar, a restrição pode ser entendida como contrapartida da
vinculação da Relação ao dever de, sempre que tenha dúvidas fundadas sobre as
provas produzidas, ordenar a produção de novas provas (artº 662 nº 2, b), do nCPC).
Maneira que no espírito da Relação se forma a dúvida séria, por exemplo, sobre a
prova pericial ou sobre a prova por inspecção realizadas na instância recorrida, está
43
adstrita ao dever de ordenar a realização de nova perícia ou de proceder ao
reconhecimento ou à inspecção judicial.
Depois, porque é sobretudo no tocante à prova pessoal – maxime à prova
testemunhal – que se colocam os problemas mais delicados de aferição ou valoração
do seu valor persuasivo, em consequência, designadamente, de a apreciação desse
meio de prova não ser actuada, em toda a sua extensão, de harmonia com o
princípio da imediação.
O bem entendimento do fundamento a que se subordina a renovação da
prova – as dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou o sentido do
depoimento – reclama, no entanto, alguns esclarecimentos adicionais.
4.2. Pressupostos da renovação da prova.
1. Em primeiro lugar, é patente que a Relação não deve ordenar a renovação
da prova, em face de uma qualquer dúvida que lhe suscite credibilidade do
declarante ou o sentido do depoimento: essas dúvidas hão-de ser sérias, fundadas,
justificadas ou razoáveis.
A renovação da prova só deve ter lugar havendo razões claras para por em
dúvida a credibilidade da testemunha, se houver motivos sérios para concluir que a
testemunha ou a parte - o perito ou o técnico - não merecem crédito, se existirem
elementos que ponham a Relação de sobreaviso na apreciação da força probatória
do depoimento. E a este propósito deve notar-se que, no tocante à prova
testemunhal, o procedimento adequado disposto na lei para mostrar que há razões
para pôr em dúvida a credibilidade da testemunha, é o incidente da contradita, no
contexto do qual deve ser alegada qualquer circunstância que possa afectar ou a
razão de ciência de que a testemunha se tenha socorrido ou a fé que ela merece
(artº 521 do nCPC). A renovação da prova – ou a impugnação da decisão a questão
de facto - não deve ser pretexto para suprir a omissão da dedução do incidente da
44
contradita que a parte contra quem a testemunha foi produzida tinha o ónus de
deduzir logo na audiência em que a testemunha depôs.
2. Depois, a renovação só deve ter-se por admissível no caso de divergência,
grave ou séria, entre o decisor de facto da 1ª instância e a Relação sobre a
credibilidade do depoente ou o sentido do depoimento.
Se tanto o juiz da 1ª instância como a Relação forem acordes sobre a falta de
credibilidade do depoente, que por exemplo, a testemunha não merece crédito por
tais e tais razões, ou, nos casos menos graves, que a força probatória do depoimento
deve considerar-se diminuída por este ou aquele motivo – a renovação do
depoimento não deve lugar. Nesta hipótese resta considerar diminuída ou excluída a
força probatória do depoimento - em atenção à suspeição que resulta, não da
análise crítica desse mesmo depoimento mas de circunstâncias externas relacionadas
com a pessoa do depoente - e julgar o enunciado de facto que com aquela prova se
visava demonstrar de harmonia com o grau de credibilidade que a testemunha,
realmente, merece. E isto deve ser assim, ainda que as razões pelas quais o decisor da
1ª instância e a Relação para tenham por excluída ou diminuída a fé ou crédito que a
testemunha merece não sejam coincidentes: relevante é apenas que ambos os
tribunais não divirjam quanto à credibilidade do depoente ou à suspeição do
depoimento.
3. As dúvidas sobre o sentido do depoimento podem resultar da sua falta de
clareza, o que sucederá quando seja obscuro, i.e., quando algum passo dele seja
ininteligível, ou ambíguo, quando alguma passagem dele se preste a interpretações
diferentes. No primeiro caso, não se sabe o que o depoente quis dizer; no segundo,
hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. Note-se que a
ambiguidade é, em última extremidade, uma forma de obscuridade: se dado passo
do depoimento é susceptível de interpretações diferentes, não se sabe ao certo o que
45
o depoente quis dizer. Mas as dúvidas sobre o sentido do depoimento podem
também resultar do carácter contraditório das declarações. A renovação da prova
visa, nesta hipótese, esclarecer o depoimento ambíguo, obscuro ou contraditório e
tornar unívoco, claro e coerente o depoimento e, correspondentemente, determinar,
de forma indubitável, o seu sentido.
Mas também aqui, a renovação só deve ter lugar também no caso de
divergência relevante do decisor de facto da 1ª instância e da Relação sobre o
sentido do depoimento. Se apesar da ambiguidade, da obscuridade ou da
contradição do depoimento, tanto um como outro tribunal forem acordes sobre o seu
sentido, não deve haver lugar à renovação.
Em qualquer caso, deve ter-se presente que com a renovação da prova se
visa, patentemente, obviar aos inconvenientes de a assunção, pela Relação, da
prova pessoal, não decorrer sob o signo de um princípio que concorre decisivamente
para a boa valoração dessa prova: o princípio da imediação. Do que decorre que só
deve haver lugar á renovação se a dúvida sobre a credibilidade do depoente ou
sobre o sentido do depoimento só puderem resolvidas por actuação do princípio da
imediação, i.e., através do contacto directo da Relação com os participantes no
processo, de modo a que possa obter uma percepção própria da prova que deverá
ter como base da sua decisão. Sendo este o seu fundamento final, renovação da
prova só deve ocorrer se, acaso, a apreciação da prova com actuação do princípio
da imediação – i.e., através do contacto vivo e imediato com o depoente - permitir
resolver a dúvida relevante sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do
seu depoimento. De contrário, a renovação do depoimento, servirá apenas para o
depoente repetir o que já disse ou, eventualmente, caso tenha caído em
contradição, para, emendando a mão, reconformar indevidamente esse
depoimento, através narração de uma nova versão dos factos. O que parece inculcar
a que a renovação da prova está indicada ou parece mais talhada sobretudo para
os casos em que as dúvidas sobre a fé que o depoente merece ou sobre o sentido do
46
seu depoimento radiquem em momentos não-verbais da comunicação que, por
definição, o registo fonográfico, não torna patentes e que, portanto, escapam ao
controlo do tribunal de apelação. Admitindo-se a exactidão desta proposição
também parece que não deve haver lugar à renovação se, por exemplo, a dúvida
sobre o sentido do depoimento – porque, por exemplo, não é claro o facto a que esse
depoimento se refere - puder se removida de forma mais célere e ágil – v.g. através
da notificação da testemunha para esclarecer, no ponto duvidoso, o seu depoimento
(artº 417 nº 1 do nCPC).
Resta dizer que, tratando-se de renovar o depoimento, a renovação não deve
servir para o depoente depor sobre factos novos, i.e., factos diversos daqueles sobre
que versou o depoimento produzido na 1ª instância. Trata-se sempre de repetir o
depoimento – e não de produzir um novo depoimento. Repetição que, aliás, é
susceptível de prejudicar a espontaneidade do depoimento, espontaneidade das
declarações em que, como se sabe, se deve ver uma garantia de veracidade.
4.4. Imediação e renovação da prova.
1. Sendo exacto que o princípio da oralidade – com o seu corolário da
imediação – não vincula à exclusão da documentação dos actos de produção da
prova levados a cabo oralmente e, correspondentemente, ao controlo por via de
recurso da decisão atingida por essa forma, não deve, contudo, desvalorizar-se a
importância de qualquer desses princípios para o julgamento da questão de facto e,
consequentemente, as inevitáveis limitações, que para o tribunal ad quem decorrem
da circunstância de a actividade de controlo da decisão sobre a matéria de facto ser
actuada, por via de regra, sem a intervenção desses princípios.
2. Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto e a
generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre
47
apreciação do tribunal. Essa apreciação baseia-se na prudente convicção do tribunal
sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em
máximas de experiência (artº 607 nº 5 do nCPC). O controlo da Relação sobre a
matéria de facto incide, por isso, sobre um julgamento realizado na instância realizada
sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e.,
baseada num audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa
percepção própria do material que lhe serve de base
Decerto que se pode responder que as vantagens da reponderação da
decisão da matéria de facto pelo tribunal ad quem superam os inconvenientes de o
tribunal de 2ª instância não se encontrar em contacto vivo e imediato com as provas,
maxime, com a prova testemunhal, e que o modo como ao tribunal de recurso são
disponibilizadas as provas produzidas na instância recorrida é suficiente para permitir o
exercício dos poderes de controlo sobre o julgamento da questão de facto que a lei
lhe atribui.
Esta afirmação contém uma larga parcela de verdade – embora se lhe possa
opor que a gravação ou a transcrição da prova produzida oralmente não supre o
contacto directo com as provas pessoais, especialmente com as testemunhas, as
próprias partes e os peritos e que, obedecendo o recurso a um modelo de
reponderação e não de reexame, na dúvida deve prevalecer a valoração do tribunal
recorrido, a menos que se torne patente uma falha no raciocínio lógico ou no iter
indutivo do juiz da 1ª instância, ou quando estabelece conclusões arbitrárias ou
absurdas.
Um esclarecimento dos factos sujeitos a julgamento que se queira total e
completo só poderá ser alcançado pelo tribunal se, por um lado, ele não estiver
ligado ao conteúdo de autos e protocolos ou registos, e se, por outro lado, puder
adquirir uma impressão pessoal dos meios de prova.
Decerto que, no caso de a documentação dos actos de prova consistir no
registo fonográfico, o tribunal ad quem, na revisão do julgamento da matéria de
48
facto, assume e valora a prova de harmonia com o princípio da oralidade – mas não
seguramente de harmonia com o princípio da imediação. Todavia, a verdade é que
oralidade e imediação não são princípios distintos – antes se apresentam como um
conjunto incindível.
Do que decorre que para a boa actuação, pelo tribunal ad quem dos seus
poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto possa não ser suficiente a
disponibilidade do registo das provas produzidas oralmente no tribunal a quo, antes
exija que essas provas sejam produzidas perante em si, de modo a permitir o
funcionamento, na sua assunção, do princípio da imediação.
3. E este é um dos principais argumentos invocados para sustentar uma
concepção restritiva dos poderes de controlo da Relação relativamente à decisão da
questão de facto: a falta de homogeneidade da assunção da prova pessoal pelo
Tribunal da 1ª instância e pela Relação, dado que esta última exerce a actividade
processual de controlo da decisão da questão de facto sem a presença dos
participantes processuais e, portanto, sem o contacto vivo e imediato com esses
participantes.
O dever de renovar a prova deixa sem valor o argumento: sempre que a
Relação entenda que só com a presença do depoente lhe será possível, avaliar o
mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas, tem na sua
mão a possibilidade de obter uma percepção própria daquela prova: a renovação
da sua produção33.
33 Note-se que, em concreto, as dificuldades de controlo da correcção do
julgamento sempre que a impugnação se fundamenta numa imprudente apreciação
da força persuasiva do depoimento das testemunhas radicam, muitas vezes, em
circunstâncias que são exteriores à falta de fiabilidade conatural à prova testemunhal.
Desde logo, o abuso na produção desta espécie de prova pessoal – abuso que o
nCPC procurou minimizar através da redução do número de testemunhas admissível,
49
ainda que de forma não absoluta, para não ferir o direito à prova, enquanto
dimensão constitutiva do direito ao processo equitativo (artº 511 nºs 1, 2 e 4 do nCPC).
Redução tanto mais justificada quanto é certo, de um aspecto, que o que se não
pode provar por 3 testemunhas também se não prova por 30, e de outro, que o
recurso extensivo à prova testemunhal é à principal causa de demora na conclusão
da audiência de discussão e julgamento, sendo cada vez mais raros os casos de
continuidade da audiência e cada vez mais comuns os casos em que é audiência
sofre uma pluralidade de interrupções. Depois, a produção da prova testemunhal sem
a observância estrita das regras a que a lei subordina a prestação do depoimento.
Este é muitas vezes prestado com absoluta indistinção entre o interrogatório
fundamental e instâncias – estas são na esmagadora maioria dos casos as perguntas
já feitas no interrogatório, de forma que a testemunha depõe duas vezes, sucedendo,
não raro que a testemunha moída com instâncias, destrói muitas vezes o que
declarara com exactidão na resposta ao interrogatório, avolumando-se o processo
com depoimentos complicados, em que abundam as repetições, as excrescências e
as superfluidades. Também é comum que a instância sirva para contraditar a
testemunha – à margem das regras específicas do incidente específico disposto na lei
ou que se peça a testemunha que, em vez de narrar factos, produza juízos de valor, e,
portanto, que o depoente se converta de testemunha em perito. Resultado:
depoimentos excessiva e escusadamente longos. Também sucede não raro que o
depoimento é o simples produto de um interrogatório sugestivo, em que na pergunta
já vai insinuada a resposta que o inquiridor pretende obter e, portanto, que quem
afinal depõe é o inquiridor, insinuando ou impondo à testemunha a mera adesão a
determinada versão dos factos. Uma observância mais estrita das regime do
depoimento é tanto mais instante quanto é certo que o objecto do depoimento é a
matéria extraordinariamente fluída dos temas da prova (artº 516 nº 1, do nCPC). Por
último, a cultura de que a testemunha cumpre o seu dever cívico de colaborar com a
justiça prestando um depoimento favorável á parte que a ofereceu. Cultura que se
50
2. Produção de novas provas.
Na actuação dos poderes de controlo da Relação no tocante à decisão da
questão de facto, a Relação deve, em caso de dúvida fundada sobre a prova
produzida, ordenar a produção de novos meios de prova, hipótese em que lhe são
atribuídos claros poderes de reexame (artº 662 nº 1, b), do nCPC).
Por novos de meios de prova deve entender-se quaisquer meios de prova que
não tenham sido produzidos na instância recorrida ainda que pudessem tê-lo sido.
Não é, por isso, exigível que se trate de meios de prova, objectiva ou subjectivamente
supervenientes.
5. Preclusão e produção de provas novas.
1. Como se observou, a construção, total ou parcial, do recurso de apelação
segundo um modelo de reexame, nomeadamente no tocante à produção, na
instância de recurso, de novas provas, importa a exclusão ou ao menos o
abrandamento da preclusão.
Um dos problemas mais delicados levantados pela abertura à produção de
novos meios de prova na Relação é, justamente, da sua compatibilização, por
exemplo, com as regras particularmente restritivas a que obedece a produção, na
instância de recurso, da prova documental34.
explica – ou também se explica – pela quase absoluta impunidade da falsidade do
depoimento, encorajada pela muita remota possibilidade de, apesar do seu registo, o
depoente vir a ser efectivamente confrontado com o teor das suas declarações e por
elas responsabilizado.
34 Ac. da RC de 15.06.10, www.dgsi.pt.
51
2. Com as suas alegações do recurso de apelação, as partes só podem juntar
documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes – i.e., cuja apresentação
foi impossível até ao encerramento da discussão - ou cuja junção se torne necessária
em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artºs 425 nºs 1 e 2 e 651 nº 1, 2ª
parte, do nCPC). Mas é claro que esta faculdade não compreende, em hipótese
alguma, o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia – e
deveria – ter oferecido naquela instância35.
Essa admissibilidade da junção pode fundar-se no facto de a apresentação
ser necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 651 nº 1, 2ª
parte, do nCPC).
Segundo alguma doutrina, a junção do documento será admissível, parece,
sempre que a decisão de baseie numa norma jurídica com cuja aplicação as partes
não tivessem contado36.
De harmonia com outra, porém, a admissibilidade da junção dos documentos,
pela razão apontada, está ordenada por esta finalidade: contraditar, pelo
documento, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a
pesar na decisão, que determinem, embora não necessariamente de forma exclusiva,
o seu sentido37; em face da liberdade do tribunal no tocante à indagação,
35 Ac. do STJ de 03.03.89, BMJ nº 385, pág. 545, e João Espírito Santo, O
Documento Superveniente para Efeitos de Recurso Ordinário e Extraordinário,
Almedina, Coimbra, 2001, págs. 47 a 53.
36 Antunes Varela, RLJ, Ano 115, pág. 95.
37 João Espírito Santo, O Documento Superveniente para efeito de recurso
ordinário e extraordinário, cit., pág. 50. No sentido que a admissibilidade da junção só
se verifica quando a necessidade dela tenha sido criada, pela primeira vez, pela
sentença da 1ª instância, necessidade que é criada tanto no caso de aquela
sentença se ter baseado num meio de prova não oferecido pelas partes, como no
caso de se ter fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as
52
interpretação das regras de direito é mais exacto – diz-se - assentar em que a junção é
admissível sempre que a aplicação da norma jurídica com que as partes
justificadamente não contavam seja o reflexo da introdução no processo, pelo juiz, de
um meio de prova com que as partes foram, inesperadamente, surpreendidas (artº 5
nº 3 do CPC). Quando isso suceda, a junção será sempre possível; se, pelo contrário, a
aplicação, pela sentença, de norma com que as partes não contavam, não resulta
da consideração de um novo meio de prova, a apresentação deve ter-se por
inadmissível.
Enfim, outra doutrina salienta, que manifestamente o legislador quis cingir-se
aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da
condenação, se tornou necessário fazer a prova de um facto ou factos com cuja
relevância a parte não podia, razoavelmente, contar antes do proferimento da
decisão38. Há, no entanto, um ponto em que todas estas orientações são acordes: o
de que aquela previsão não abrange o caso de a parte se afirmar surpreendida com
o desfecho da causa e, visar, com esse fundamento, juntar à alegação documento
que já poderia e de deveria ter oferecido na 1ª instância39.
Portanto, mesmo o error in iudicando, por equívoco na valoração da prova
produzida, não autoriza a produção, na instância de recurso, de provas documentais
partes, justificadamente, não contavam, cfr. os Ac. do STJ de 26.09.12, www.dgsi.pt., e
de 12.01.94, BMJ nº 433, pág. 467.
38 Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo
Civil, 2ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 533 e 534.
39 A jurisprudência, por seu lado, é terminante em recusar a junção de
documentos para prova de factos que, já antes da decisão recorrida, era patente
estarem sujeitos a prova – assim, v.g., Acs. do STJ de 27.06.00, CJ, II, pág. 131 e de
18.02.03, CJ, STJ, I, pág. 103 e da RC de 11.01.94, CJ, I, pág. 16 – não autorizando a
junção a mera surpresa quanto ao resultado do exercício da prova – Ac. do STJ de
03.03.89, BMJ nº 385, pág. 545.
53
novas, devendo ser corrigido pela simples reponderação da força probatória das
provas – dessa ou doutra espécie - já produzidas e que foram objecto de apreciação
na instância recorrida. O que torna admissível a junção do documento não é o erro
da decisão por erro na aferição das provas, mas a influência exercida nessa decisão –
de harmonia com os diversos entendimentos do problema - por uma prova, pela
relevância de um facto, ou pela aplicação de uma norma jurídica com que as partes,
justificadamente, não contavam.
Quer dizer: ao passo que a junção pelas partes da prova documental obedece
a regras particularmente restritivas – impõe-se à Relação, de forma latitudinária, o
dever de ordenar a produção de qualquer prova, mesmo da prova documental cuja
junção se proíbe às partes. É, assim, necessária a compatibilização entre a preclusão
da produção pelas partes da prova documental e o dever da Relação de ordenar a
produção dessa mesma prova, compatibilização tanto mais instante quanto é certo,
de um aspecto, que a prova documental é a prova cuja produção melhor se
compatibiliza com o procedimento do recurso, e de, outro, que é a prova que, com
mais frequência, as partes se propõem produzir na instância do recurso.
3. Uma proposta de solução susceptível de assegurar essa compatibilização é
entender que a parte pode oferecer o documento – à margem das regras específicas
da sua apresentação na instância de recurso – desde que a justificação seja
ordenada para dissipar ou dissolver a dúvida séria sobre a prova produzida. Se a
Relação tem o dever de ordenar a produção da nova prova documental, então há-
de ser lícito à parte, ao menos, requerer que a Relação admita o novo documento em
actuação do seu dever de ordenar – na hipótese de dúvida fundamentada sobre a
prova produzida – a produção dessa nova prova.
4. Note-se que, podendo a Relação ordenar a produção de novos meios de
prova lhe será lícito – por argumento a fortiori – determinar, oficiosamente, qualquer
54
diligência ordenada para o esclarecimento das provas produzidas. Assim, por
exemplo, se a Relação achar que o relatório da perícia realizada na 1ª instância é
deficiente, obscuro ou contraditório ou que as conclusões são infundamentadas há-
de ser-lhe autorizado apontar a deficiência e ordenar que o relatório seja
completado, denunciar a obscuridade e determinar que o ponto obscuro seja
esclarecido, notar a contradição e ordenar que ela seja desfeita – i.e. que o relatório
seja harmonizado – e indicar a falta ou insuficiência de fundamentação das
conclusões e determinar que os peritos as fundamentem (artº 485 nº 2 do nCPC).
6. Utilidade da actuação dos poderes de controlo.
De harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os
actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão
da matéria de facto da 1ª instância, seja qual for a modalidade considerada, só é
admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 130 do
nCPC).
Se o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para
nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação
da decisão correspondente da 1ª instância, a anulação da decisão ou o reenvio do
processo para essa instância para que seja fundamentada, a renovação ou a
produção de novas provas. Isso sucederá sempre que, por exemplo, mesmo com a
substituição da decisão da matéria de facto impugnada, a solução ou
enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, v.g.,
mesmo com a modificação, os factos adquiridos são insuficientes ou inidóneos para
modificar a decisão de procedência ou de improcedência, da acção ou da
excepção, contida no despacho ou na sentença recorrida.
Portanto, a actuação dos apontados poderes de controlo só deve incidir sobre
os factos que sejam relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das
55
soluções plausíveis da questão de direito, i.e., segundo todos os enquadramentos
jurídicos possíveis do objecto da acção40.
VI. Autonomia da convicção da Relação.
1. Compatibilidade entre oralidade e imediação e duplo grau de jurisdição em
matéria de facto: oralidade e imediação secundárias.
1. Na generalidade dos casos a Relação actua os seus poderes de controlo
relativamente à decisão da questão de facto da 1ª instância assente nas provas
pessoais produzidas oralmente na audiência através da audição do registo
fonográfico e eventualmente através da leitura da transcrição dos depoimentos e
declarações dos participantes processuais, apresentada com a alegação pelo
impugnante. A posição de um e outro tribunal, considerada a partir de dois princípios
relativos à forma de obter a decisão – a oralidade e a imediação – está, portanto,
bem longe de ser homogénea.
O princípio da oralidade – com o seu corolário da imediação – é instrumental
relativamente ao modo de assunção das provas, ligando-se, por esse lado,
nomeadamente ao princípio da livre - mas prudente - convicção do juiz (artº 607 nº 1,
1ª parte, do nCPC). O ponto de vista significante de qualquer dos princípios é a forma
de obter a decisão, sendo decisivos para o bom julgamento da causa, em especial no
que se refere à apreciação da matéria de facto, dado que só eles permitem avaliar,
com a maior correcção possível, da credibilidade das declarações prestadas por
participantes processuais.
Partindo da imediação, o que sucede é que o tribunal a quo valora a prova
atendendo, não ao seu reflexo documentado ou registado, mas com base no que ele
40 Acs. da RG de 09.04.15, RC de 06.03.12 e 24.04.12.
56
mesmo, directamente, viu e ouviu, ao passo que o tribunal ad quem conta
unicamente com aquele registo.
2. Todavia, a convivência entre oralidade – e a imediação – é perfeitamente
possível e mesmo necessária, embora não evidentemente, com a pureza técnica, que
por vezes se reclama.
Apesar de tudo, as possibilidades abertas pelas tecnologias de ponta ao
melhor funcionamento e eficácia do processo – concretamente a possibilidade de
através por meios áudio atenuar os problemas que se apontam na relação entre a 2ª
instância e o modelo processual oral – sempre permitem ao tribunal ad quem, se não
observar, ao menos escutar as provas produzidas oralmente na instância recorrida.
Dito por outras palavras: aquele meio de registo torna possível uma oralidade ou
imediação secundárias.
É certo que através do registo fonográfico não se consegue situar o tribunal
superior em posição igual à do tribunal da 1ª instância quando proferiu a sentença: o
tribunal de apelação encontra-se, necessariamente, numa posição diversa – in peius –
da do tribunal a quo. A Relação dificilmente poderá realizar, a respeito das provas
pessoais um juízo similar ao realizado pelo tribunal de 1ª instância e chegar às mesmas
percepções e apreciações de quem conheceu o objecto ou a pessoa, já que não viu
o que o juiz da 1ª instância pode perceber através dos seus sentidos.
A verdade, no entanto, é que esta objecção além de levar a imediação a um
absoluto próximo da idealização e de não sopesar adequadamente os elementos
envolvidos dado, que ignora que o tribunal superior sempre será afectado por um
maior afastamento cronológico, espacial e psicológico do facto – realidade que é,
aliás, partilhada por todos os meios de impugnação – não destaca o imenso salto
qualitativo que representa um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Através da gravação, o tribunal ad quem pode rever as declarações das
partes, das testemunhas e dos peritos e contrastá-las com a motivação fáctica do
57
decisor da 1ª instância. Sendo indubitável que o contacto com as partes e provas
pessoais produzem uma séria de sensações inconscientes, deve entender-se que
estas, conjuntamente com as que induzem a valoração conjunta da prova, as regras
de experiência e tudo aquilo que permite criar uma convicção sobre como
sucederam os factos, devem espelhar-se ou objectivar-se na valoração da prova que
deve ser feita na sentença; desta maneira, permite-se que na apelação se faça um
juízo crítico sobre essa mesma sentença que, juntamente com a audição das provas,
permita divergir ou não daquela valoração, através de explicações concretas
adequadas ao caso, perfeitamente fundamentadas e ajustadas a uma racionalidade
que se entende inerente, tanto ao julgamento do tribunal da 1ª instância como da
segunda.
3. Em todo o caso, deve evitar-se o erro que consiste em pensar-se que o juízo
de 1ª instância seria repetível através do procedimento de reiterar a totalidade das
provas perante o tribunal superior. Tais vicissitudes são irrepetíveis nas condições em
que se produziram, pelo efeito condicionante que a primeira experiência processual
teria nas representações e atitudes dos intervenientes processuais, incluindo no próprio
julgador que nunca o seria já em primeira instância.
De maneira que, assumido isto, o dado base que há que tomar em
consideração não é que o juiz do tribunal de segunda instância careça do contacto
directo com as fontes pessoais de prova – mas que esse contacto, em condições de
certa genuinidade, apenas está ao alcance do primeiro julgador, cuja decisão porém,
só por essa circunstância, não pode ficar blindada a um controlo jurisdicional.
Embora se trate de uma oralidade e imediação secundárias, é, em qualquer
caso, o preço que deve pagar pelo valor de uma segunda instância em matéria de
facto, se se quiser salvar a essencial função garantística que se reconhece à
possibilidade do recurso da decisão da questão correspondente.
58
4. Em face das dificuldades da articulação entre um processo dominado pela
oralidade e pela imediação e um segundo grau de jurisdição em matéria de facto,
não é de estranhar uma jurisprudência que para a qual a valoração das provas é
competência do juiz da 1ª instância, que por força da posição de imediação e de
percepção directa das provas se encontra numa situação mais favorável para
proceder àquela actividade, na qual só muito dificilmente pode ser substituído por
quem não as presenciou, especialmente quando se trata das chamadas provas
pessoais, como a prova testemunhal.
Nesta lógica, a reponderação feita em sede de apelação deverá limitar-se a
examinar a regularidade e validade processual da produção das provas e, no tocante
à sua valoração, somente a verificar se as conclusões obtidas pelo juiz da 1ª instância
são congruentes com os seus resultados e se ajustam aos critérios gerais de
argumentação lógica, segundo as regras de experiência comummente admitidas, o
mesmo é dizer, que salvo quando a valoração do juiz de 1ª instância seja ilógica,
irracional ou oposta às regras da crítica sã, ela deve ser respeitada, não se podendo
alterar. Sob o pretexto da imediação, descaracteriza-se o recurso de apelação, que
pela sua natureza não sofre esta limitação, recusando a possibilidade de apelação
verdadeiramente revisora da actividade do juiz a quo, que cumpra, no plano da
fixação dos factos materiais da causa, os standards do direito ao recurso.
Há um indiscutível consenso para reconhecer num modelo processual oral –
com concentração e imediação – uma fórmula que assegura uma verdade
processual de qualidade superior, justamente facilitada pela concentração da
actividade probatória e, especialmente, pelo contacto directo do tribunal com as
fontes da prova, em particular com as de carácter pessoal, como a prova
testemunhal.
Neste sentido, põe-se em relevo a importância do juízo presencial que oferece
a vantagem de constatar todos os momentos comunicacionais não verbais, como,
por exemplo, a expressão corporal e outras atitudes que acompanham a expressão
59
vocabular e que também formam parte significante da mensagem transmitida,
garantindo, ao menos como regra, um maior acerto na valoração do testemunho.
Daqui decorre o argumento de que não é possível reavaliar a valoração da prova
levada a cabo pela 1ª instância, dado que o tribunal que dela conhece através do
recurso, não viu com os seus olhos a prova pessoal; a oralidade e, sobretudo a
imediação representam vantagens do processo concluído presencialmente, perante
juízes que veem e ouvem e que, depois, outros ouvidos não perceberão. Assim, salvo
julgamentos absurdos ou ilógicos – grosseiros – a valoração das provas levada a cabo
pelo juiz de 1ª instância deve ser acatada, estando excluída uma nova valoração do
material probatório pelo tribunal superior: nada se ganha e, pelo contrário, muito se
poderá perder, permitindo a substituição da convicção do juiz da 1ª instância pela
convicção do tribunal ad quem, fundamentado numa actividade probatória que não
presenciou e, nos casos em que a prova é objecto de registo apenas fonográfico,
impossibilita o acesso aos relevantes momentos não verbais da comunicação.
Isto esquece, porém, que, pelo muito que haja de reconhecer de positivo ao
contacto directo do juiz com as fontes da prova, a verdade é que os juízes - maxime
da 1ª instância - não são especialistas ou peritos em psicologia e que a leitura da
comunicação não verbal nem sempre será – por força da sua valência
plurissignificativa - uma tarefa pacífica, mas antes aberta a interpretações variadas,
susceptíveis de erro, sobretudo quando, em muitos casos, não contam com a
qualidade e a experiência suficientes. Além disso, ainda que, graças à imediação, se
reconheça uma melhor posição ao juiz da 1ª instância para decidir da credibilidade
ou da fiabilidade de determinado meio de prova, e se deva sublinhar que se a
imediação é efectivamente a regra de maior peso na hora da apreciação da prova e
da formação da convicção, tal regra não deve ser elevada, necessariamente, a um
absoluto. Em matéria de provas, há coisas que necessariamente tem de se apreciar
directamente e outras que não carecem de ser apreciadas desse modo.
60
A imediação torna possível, na apreciação da prova, a formação de um juízo
insubstituível sobre a credibilidade da prova, mediante o exame directo dessa mesma
prova, para acreditar ou não nela. A imediação é assim o modo através do qual o
tribunal realiza um acto de escolha racional de determinados meios de prova, por os
estimar mais credíveis que outros. Porém – sob pena de se cair em excessos – para
apreciar a verosimilhança de uma narrativa ou a relevância persuasiva da prova
indirecta ou indiciária, não se reclama ou se requer imediação. A plausibilidade ou a
verosimilhança é um problema que se apresenta depois do problema da
credibilidade, pelo que, sempre que o juiz opta por um certo meio de prova, do qual
extrai uma determinada versão dos factos, do que verdadeiramente se trata é de
controlar a plausibilidade dessa versão, de aferir se a versão que emana da livre
selecção do material probatório é ou não plausível.
4. Portanto, pode dizer-se sem erro que, em face dos dados que a lei
disponibiliza ao interprete e ao aplicador, não há outra resposta exacta que não
entender que a Relação não deve limitar-se a corrigir erros manifestos ou grosseiros da
instância a quo, e que, na busca de uma solução mais acerta e justa para o objecto
da causa, deve valorar de novo a prova, sem estar vinculada às razões e às
valoração do juiz da 1ª instância – embora, no caso de divergência deva cumprir,
com particular escrúpulo, o dever de motivação a que está adstrita, através da
indicação das razões que justificam a discordância.
Se a Relação tem o dever de proceder ao exame crítico das provas - novas ou
renovadas – que sejam produzidas perante ela e de formar, relativamente às provas
submetidas à sua livre apreciação, uma convicção prudente sobre essas provas – não
há razão bastante para que não proceda àquele exame e à formulação desta
convicção no caso de reapreciação das provas já examinadas pela 1ª instância (artº
61
607 nº 5 e 663 nº 2 do nCPC)41. O controlo da correcção da decisão da matéria de
facto da 1ª instância exige, realmente, que a Relação construa não só a sua própria
convicção sobre as provas produzidas, mas igualmente que a fundamente.
5. A conclusão pela correcção ou pela incorrecção da decisão da questão de
facto do tribunal da 1ª instância exige, assim, um juízo de relação ou de comparação
entre a convicção que o decisor de facto daquela instância extrai dos elementos de
prova que apreciou e a convicção que a Relação adquire da reapreciação dessas
mesmas provas. Se a convicção do juiz da 1ª instância e da Relação forem acordes ou
coincidentes, a decisão da matéria de facto da 1ª instância deve ter-se por correcta,
com a consequente improcedência da impugnação deduzida contra ela; se a
convicção do decisor da 1ª instância e da Relação forem divergentes, a Relação
deve fazer prevalecer a sua convicção sobre o convencimento do juiz da 1ª instância
e, correspondentemente, revogar a decisão deste último e logo a substituir por outra
conforme aquela mesma convicção42.
As dúvidas sérias ou fundadas da Relação sobre a credibilidade ou o sentido
dos depoimentos ou sobre os elementos de prova examinados na 1ª instância – para
as quais sejam oferecidas como justificação o facto de a assunção daquelas provas
não ter sido decorrido sob o signo do principio da imediação – não são, hoje,
procedentes: nesta conjuntura a Relação deve ordenar a renovação da prova ou a
produção das provas novas, conforme o caso, de modo a dissipar quaisquer dúvidas
41 António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo
Civil, cit., pág. 237 e João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do
Código Revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 638.
42 Miguel Teixeira de Sousa, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição
da epistemologia” – Ac. do STJ de 24.92013, Proc. 1965/04, in Cadernos de Direito
Privado, nº 44, Outubro/Dezembro 2013, págs. 33 e ss.
62
que a reponderação da prova, sem actuação daquele princípio, lhe tenha
eventualmente suscitado.
2. Inimpugnabilidade das decisões proferidas pela Relação sobre matéria de
facto e controlo pelo Supremo.
As decisões proferidas pela Relação sobre a matéria de facto são insusceptíveis
de recurso para o Supremo (artº 662 nº 4 do nCPC). Esta inimpugnabilidade deve,
porém, ser habilmente entendida.
De um aspecto, essa irrecorribilidade não constitui, obstáculo ao controlo pelo
Supremo – no recurso de revista que eventualmente tiver sido interposto do acordão
da Relação - do não uso ou do mau uso pela Relação dos seus poderes de controlo
relativamente à decisão da matéria de facto (artº 682 nº 3 do nCPC). De outro, apesar
da conformidade da decisão da 1ª instância e da Relação, não se verifica o
obstáculo à recorribilidade do acordão da Relação representado pela chamada
dupla decisão conforme, sempre que o fundamento do recurso seja o não uso ou o
mau uso pela Relação dos apontados poderes de controlo, dado que, nesta hipótese,
um tal fundamento do recurso, por definição, é necessariamente novo, dado que
respeita unicamente ao acordão da Relação, sento inteiramente estranho à decisão
da 1ª instância. (artº 671 nº 3 do nCPC).
VII. A apelação como recurso de reponderação.
1. A atribuição à apelação da natureza de recurso verdadeiramente global,
não significa, necessariamente, no plano da matéria de facto, uma sobreposição
absoluta da competência decisória da Relação e do tribunal da 1ª instância, nem
deve fazer esquecer que, mesmo no tocante à questão de facto, se trata sempre de
63
um recurso, quer dizer, da reponderação de uma decisão não transitada proferida por
um tribunal de hierarquia inferior.
Os parâmetros de controlo pela Relação da matéria de facto mostram,
nitidamente, que a apelação sendo um recurso amplo é ainda, em regra, no tocante
à questão-de-facto, um recurso de reponderação e não um recurso de reexame: não
se trata nunca de julgar ex-novo a matéria de facto – mas, mais limitadamente, de
reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto,
de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando (artº
662 nº 1 do nCPC)43. A Relação não procede à reconstrução ex-novo dos factos em
torno dos quais gravita o litígio, antes verifica se, na reconstituição da espécie de
facto, não foram violadas, pelo decisor do tribunal a quo, regras de avaliação
prudencial.
2. A apelação continua a obedecer, nitidamente, ao esquema do recurso de
reponderação ou revisão: o recurso tem por objecto a decisão impugnada, e o
tribunal ad quem limita a sua actividade ao controlo dessa decisão, não se admitindo,
na instância de recurso, como regra, a alegação de factos ou a formulação de
pedidos novos, i.e., a produção, na instância de recurso, de um efeito jurídico novo. O
recurso é concebido como um meio de impugnação da decisão e não de
julgamento de questões novas.
Mesmo quando se admite a renovação, perante o tribunal ad quem, da prova
produzida na instância recorrida e mesmo a produção de novos meios de prova –
hipóteses em que o recurso de apelação perde a sua característica de recurso de
reponderação e assume a feição de recurso de reexame - exclui-se sempre a
possibilidade de invocação pelas partes de factos novos (artº 662 nº 2 a) e b) do
43 Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes
Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág.
271.
64
nCPC). A renovação, na instância de recurso, perante a Relação da prova
anteriormente produzida na 1ª instância e mesmo a produção de novos meios de
prova é admissível mas apenas no tocante aos factos alegados naquela instância que
o recorrente reputa mal julgados (artº 640 nº 1 a) do nCPC).
3. Concretizações particularmente relevantes da construção do recurso de
apelação de harmonia com um modelo de reponderação são as representadas pelas
proibições da reformatio in peius e in melius. Qualquer das proibições exprime a
vinculação do tribunal ad quem à impugnação do recorrente e dá corpo a um
princípio de estabilidade da parte não recorrida da decisão.
De harmonia com a proibição da reformatio in peius, o julgamento do recurso
não pode agravar a posição do recorrente, tornando-a pior do que se seria se não
tivesse recorrido: a decisão impugnada não pode ser reformada para pior mas
apenas para melhor (artº 635 nº 4 do nCPC). De acordo com a proibição da
reformatio in melius, o julgado do tribunal recorrido, posto em causa no recurso, não
pode ser reformado para mais ou melhor do que é pedido pelo recorrente. A
proibição da reformatio in peius impede uma decisão do tribunal ad quem em prejuízo
do recorrente; a proibição da reformatio in melius obsta e a atribuição ao impugnante
por aquele tribunal de um benefício quantitativa ou qualitativamente maior do que
aquele que ele pede no recurso. Tanto uma proibição como outra representam um
limite absoluto à competência decisória do tribunal ad quem de que resulta uma
dupla consequência: de um aspecto, ambas as proibições valem mesmo para as
questões de conhecimento oficioso; a violação desse limite determina a nulidade, por
excesso de pronúncia, da decisão do tribunal de recurso.
Ambas as proibições valem, por inteiro, para a impugnação da questão de
facto.
65
VIII. Factos supervenientes.
1. Problema que o nCPC deixou por resolver respeita à admissibilidade da
alegação e do conhecimento, na instância de recurso, de factos supervenientes -
entendendo-se como tais no contexto dos recursos ordinários, aqueles que ocorreram
ou foram conhecidos pela parte depois do encerramento da discussão em 1ª
instância, ou seja, em momento em que a sua alegação já não era admissível: no
primeiro caso a superveniência é objectiva; no segundo diz-se subjectiva (artºs 506 nº 3
do CPC de 1961 e 588 nº 3 c) do nCPC). Este aspecto permite distinguir os factos
supervenientes dos factos novos, i.e., aqueles que podiam ter sido alegados na
instância recorrida. O distinguo é relevante, dado que quanto aos factos novos é
segura a inadmissibilidade da sua alegação na instância de recurso.
A doutrina está longe de ser acorde no tocante à admissibilidade da
alegação, e consequente conhecimento, na instância de recurso, de factos
supervenientes que podem integrar-se na matéria apreciada na instância recorrida44.
E o mesmo sucede com a jurisprudência45.
44 No sentido da admissibilidade, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil
Anotado, volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pág. 85, Miguel Teixeira de
Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 455, Amâncio
Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed., Coimbra, Almedina, págs. 156
e 215, Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 5ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 2010, págs. 142 e 187, e Nuno Andrade Pissarra, “O Conhecimento de factos
supervenientes relativos ao mérito da causa pelo tribunal de recurso em Processo
Civil”, https//www.oa.pt; contra, Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, Lisboa,
AAAFDL, 1989, pág. 31, Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código
de Processo Civil Anotado, Vol. 2, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pág. 609, e Luís
Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime de Recursos em Proceso Civil, 2ª edição,
Coimbra, Almedina, 2009, págs. 16, 122, 123 e 226.
66
2. Apesar do carácter delicado da questão, deve reconhecer-se que a
ampliação dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto
da 1ª instância – maxime dos poderes de reexame representados pela produção de
novas provas - disponibiliza um bom argumento para a admissibilidade da alegação
e do conhecimento, no recurso de apelação, de factos supervenientes.
IX. Conclusão: a Relação como segunda primeira instância.
Um exame ainda que despretensioso da evolução das atribuições da Relação
no plano da matéria de facto convence que essa evolução surge ordenada pela
finalidade de instituir, nesse domínio sensível, um efectivo duplo grau de jurisdição. E a
latitude actual daquelas atribuições mostra - parece – que o fundamento final do
legislador é que a Relação seja, na actividade de aquisição dos factos materiais
relevantes e das provas - a segunda primeira instância. Mas só será assim se a Relação
forem disponibilizadas condições objectivas – v.g. em matéria de equipamentos,
instalações e meios humanos – que lhe permita, realmente, actuar o seus deveres de
controlo da decisão da matéria de facto do tribunal da 1ª instância e lhe assegurem,
no desempenho dessa atribuição, uma efectiva colegialidade na reponderação do
julgamento correspondente.
45 No sentido da inadmissibilidade – que corresponde à orientação maioritária -
os Acs. do STJ de 05.03.87, 02.11.89, 07.12.93, 28.01.99, 20.06.00, 20.03.02 e de 16.05.09,
da RP de 03.03.92 e de 25.06.01, da RL de 05.11.92 e da RE de 29.11.07, www.dgsi.pt;
em sentido inverso, Acs. do STJ de 15.12.73 e de 15.03.07 e da RP de 11.03.93 e de
22.01.02,www.dgsi.pt.
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