guilhermo donnell
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8/22/2019 Guilhermo Donnell
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DOSSI QUALIDADE DA DEMOCRACIA
REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.7, n.1, p.15-114, jan.-abr. 2013. 15
DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO
HUMANO E DIREITOS HUMANOS
DEMOCRACY, HUMAN DEVELOPMENT AND
HUMAN RIGHTS
Guilhermo ODonnell
Reproduo e autorizao:
revistadebates@ufrgs.br
ISSN Eletrnico 1982-5269
ISSN Impresso 2236-479X
www.revistadebates.ufrgs.br
I. Introduo
O presente texto parte de uma premissa fundamental: um regime democrtico (que
defino abaixo) um componente fundamental da democracia, porm no esgota seu
significado. Espero mostrar que isto verdade em todos os casos, mas se fez particularmente
evidente nos estudos das novas (e algumas no to novas) democracias no Sul e no Leste.
Geralmente, a Cincia Poltica contempornea se limita ao estudo do regime poltico. Estalimitao oferece a segurana de um campo de indagao obviamente importante e
aparentemente bem delimitado. Aventurar-se alm do regime perigoso: facilmente pode-se
cair em um terreno escorregadio, no final do qual cada termina identificando a democracia
com o que lhe agrada. Uma forma de evitar este risco atar uma corda a um fundamento
relativamente firme o regime e com sua ajuda descer cautelosamente pelo abismo,
tentando ver como uma dimenso a democracia co-constitui alguns dos fenmenos, que
durante a descida observamos. claro, no qualquer corda que serve. A que escolhi provm
de uma dimenso importante, ainda que frequentemente ignorada que, com o devido cuidado,pode descobrir-se inclusive no nvel de regime democrtico: uma concepo particular do ser
humano cum cidado como um agente. Esta a linha fundamental, o fio que vou seguir na
esperana de que nos ajude a forjar uma melhor compreenso da democracia, especialmente
tal como ela existe na realidade contempornea da Amrica Latina.
O que segue , ento, teoria democrtica com inteno comparativa. Como tal, inclui
uma discusso terica de alguns aspectos da democracia e suas conexes com o
desenvolvimento humano e os direitos humanos. Desta forma, este texto inclui uma dimenso
emprica, concretizada na proposio de diversos critrios que creio teis para avaliar a
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qualidade das democracias polticas existentes e suas mudanas ao longo do tempo. O que
segue uma primeira explorao desses temas. claro, alimenta-se de contribuies de
diversas disciplinas, porm observa vrios temas de ngulos pouco explorados. Por estas
razes o presente texto um fragmento de teoria democrtica. Aqui argumento basicamente
sobre seus fundamentos e algumas de suas consequncias. Pouco falo sobre outros tpicos
extremamente importantes, tais como quem so os atores polticos reais individuais e
coletivosem uma determinada circunstncia, ou como exercem seu poder os governos e os
estados em cada caso, ou quais so as conseqncias domsticas das diversas dimenses da
globalizao. Alm do mais, embora o estado ocupe um lugar central em minha anlise,
devido a limitaes de espao e de tempo, minha discusso sobre o mesmo, sobretudo como
um conjunto de burocracias e como foco de identidade, sumria1. De qualquer modo, espero
que a presente incurso, para alm do regime, mostre que a corda que utilizo pode suportar
exploraes adicionais. Estou persuadido de que, inclusive ao custo da perda de parcimnia
que resulta de concentrar-se exclusivamente no regime, este tipo de incurso pode abrir temas
e ngulos de interrogao no s intelectualmente estimulantes, mas tambm teis para
melhorar o funcionamento e os impactos da democracia.
Refletindo sobre o fator fundador da democraciaa concepo do ser humano como
um agente cheguei concluso que existem estreitas conexes entre a democracia, o
desenvolvimento humano e os direitos humanos. Alm de destacar estas conexes, no
presente texto afirmo que elas nos conduzem a avaliar a qualidade das democracias existentes,
e proponho alguns critrios para lidar com esta questo. Meu argumento que a democracia, o
desenvolvimento humano e os direitos humanos esto baseados em uma concepo similar de
ser humano como um agente2. Observo tambm que esta perspectiva foi adotada, implcita,
porm claramente, em vrias convenes e tratados internacionais e regionais 3, assim como
nos Informes sobre Desenvolvimento Humano do PNUD. Adiciono que esta concepo
1 Esta uma importante ressalva. Embora avance mais sobre este tema em um texto que escrevi aps este
(ODONNELL, 2002a), as complexas e muito pouco estudadas relaes entre a democracia e diversas
dimenses do estado as analiso em um livro em preparao e no qual retomo, embora nem sempre desde omesmo ngulo, um velho texto meu (ODONNELL, 1978). At ento, no posso deixar de incorrer em vrias
simplificaes e omisses.2 Outra ressalva importante. Em vrias conversas, Jos Nun me alertou sobre o perigo que esta concepo seja
vista como individualista. Na verdade, o fato de que um dos nveis relevantes de uma teoria seja o individual,
no a faz necessariamente individualista. Neste caso especfico, como espero ficar claro ao longo do texto, na
minha teorizao o individuo no entra nas relaes sociais j pr-constitudo como tal, conforme postulam as
teorias individualistas; ao contrrio, se constitui propriamente em agente em e por um tecido complexo de
relaes sociais, no poucas das quais, nas sociedades contemporneas, esto legalmente estipuladas.3
Para una valiosa apresentao e discusso destes documentos internacionais e suas principais interpretaes,feitas a partir de uma perspectiva convergente com a minha, ver Held (2002).
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estabelece um horizonte em perptuo movimento que impede considerar o desenvolvimento
humano, os direitos humanos e a democracia como sendo fenmenos estticos ou
unidimensionais, como faramos se pensssemos o desenvolvimento s como um aumento na
disponibilidade de recursos materiais, ou se reduzssemos os direitos humanos proteo
contra a violncia fsica e ao temor a ela ou, da mesma forma, se restringssemos a democracia
ao regime.
At onde sei, estas conexes e a explorao de suas conseqncias so em boa
medida terra incgnita. Um perigo de ingressar nela sem um bom mapa perder-se nas
muitas ramificaes que aparecem. Embora no tenha eliminado inteiramente este perigo,
guiei minha pesquisa pelas seguintes perguntas: Qual o terreno que estas correntes tm em
comum? Porque deveramos nos preocupar, para alm das razes instrumentais (tal como,
digamos, sua presumvel contribuio ao crescimento econmico) pela democracia e sua
qualidade? Quais so os parmetros conceituais sob os quais a questo da qualidade da
democracia pode ser levantada frutiferamente? Como poderamos estabelecer uma
conversao entre estas trs correntes que lhes permita alimentar-se mutuamente e fomentar
na teoria e na pratica a perspectiva dos seres humanos como agentes, que as trs, como espero
mostrar, compartilham?
Admito que partes do texto que seguem no so fceis. Para ajudar a segui-lo ao
longo do mesmo incluo proposies que vo destilando as principais concluses alcanadas 4.
Tambm incluo sugestes sobre como avaliar (ou auditar) a qualidade da democracia.
II. Um primeiro olhar sobre o desenvolvimento humano e sobre os direitos humanos
O conceito de desenvolvimento humano que foi proposto e amplamente difundido
pelo PNUD implica, junto com as contribuies de Amartya Senper se e por sua influncia
nos Informes do PNUD uma mudana das vises dominantes sobre o desenvolvimento.
Ao invs de concentrar-se em medidas agregadas do desempenho econmico, a perspectiva
centralizada no desenvolvimento humano comea e termina pelos seres humanos. O conceito
implica perguntar-se pelas possibilidades de cada individuo de alcanar las ms elementalescapacidades, tales como la de vivir una vida larga y saludable, ser socialmente reconocido y
disfrutar de un estndar de vida decente. Estas so consideradas condies bsicas para que
cada persona pueda llevar una vida de respetable y valorable5. Deste ponto de vista, no s
el desarrollo humano [...] es un proceso de enriquecimiento de las posibilidades humanas6,
4 Com o mesmo propsito incluo uma lista destas proposies como Anexo 3.5
PNUD (2000, p. 20).6Ibd. p. 2.
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mas tambm se converte no padro de medida com o qual avaliar outros aspectos do
desenvolvimento.
Ao longo de seus Informes sobre o Desenvolvimento Humano, tanto mundiais como
regionais, o PNUD vem extraindo destas consideraes, cada vez mais explicitamente, um
importante corolrio: a conquista e a expanso de um conjunto de capacidades bsicas no
considerada s algo ao que os seres humanos tm um direito moral, nem s una meta que as
pessoas de boa vontade podem propor, mas um direito de todos os que sofrem privao dessas
capacidades. Este um autntico interesse humano, cuja satisfao pode ser legitimamente
exigida dos demais, especialmente do estado.
A afirmao desses direitos me parece um passo bastante radical e, inclusive,
institucionalmente corajoso por parte do PNUD. Para comear, a existncia desse tipo de
direitos discutida seja porque simplesmente so negados, seja porque se pretende que
sejam impraticveispor influentes correntes na filosofia, teoria tica e jurisprudncia atuais,
e simplesmente ignorada pela maior parte da Cincia Poltica. Por outro lado, em recentes
Informes sobre Desenvolvimento Humano esta afirmao se associa a uma discusso sobre os
direitos humanos e sobre os campos de sobreposio e diferena entre estes dois conceitos.
Esta convergncia no acidental: uma vez que a conquista de certas capacidades bsicas (por
exemplo, certos nveis mnimos de alimentao e de sade) definida como um direito,
alguns dos interesses humanos obviamente vinculados a elas (por exemplo, a integridade
fsica) logicamente tendem a ser definidos como direitos no menos fundamentais e exigveis.
Estas duas perspectivas tm alguns elementos cruciais em comum: ambas comeam e
terminam pelos seres humanos e ambas se perguntam qual pode ser, ao menos, um conjunto
mnimo de condies, direitos e/ou capacidades que os permitam viver de forma apropriada a
sua condio de tais. Na verdade, em suas origens, o conceito de desenvolvimento humano se
concentrava no contexto social, enquanto que o de direitos humanos o fazia no sistema legal e
na preveno e reparao da violncia estatal. Entretanto, o Informe sobre Desenvolvimento
Humano do ano 2000 e sua discusso sobre diretos humanos, por um lado, e a crescente
ateno dos estudiosos e militantes dos direitos humanos aos fatores sociais, por outro 7,
revelam uma importante convergncia: ambas correntes se ocupam de conjuntos de condiese capacidades que, nos termos de Sen, so valiosos na medida em que permitem aos
indivduos eleger livremente os funcionamentos (isto quer dizer, os cursos de ao que
determinam o que eles realmente fazem e so) apropriados a sua condio de seres humanos
que, como argumento abaixo, partilham a condio e a conseguinte dignidade de ser
agentes.
7
interessante observar que Anistia Internacional esta discutindo incluir em seu mandato a promoo dedireitos sociais, econmicos e culturais (verThe Economist, 2001).
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Se notar que acima utilizei o vago termo apropriado. A forma de especificar este
termo aprimorar uma concepo do ser humano com referncia a qual agente possa predicar
esse atributo de apropriado. Nos submergimos aqui em guas profundas. Em primeiro lugar,
em termos da lgica de seus argumentos, tanto os patrocinadores do desenvolvimento humano
como dos direitos humanos devem ser rigorosos universalistas, ao menos no que se refere
realizao e defesa dos direitos, condies sociais e capacidades bsicas que propiciam. Os
proponentes da escravido, da existncia de raas inferiores, da inferioridade inata da mulher,
da irredutvel singularidade das culturas, os cnicos de todo tipo, os cticos consistentes, e os
governos que no querem ser avaliados por seu desempenho nestas matrias, rejeitam este
universalismo. Em contraste, os estudiosos e praticantes do desenvolvimento humano e dos
direitos humanos se perguntam sobre pelo menos algumas condies e direitos bsicos que
seriam aplicveis a todos os seres humanos, independentemente das condies sociais,
culturais e biolgicas de cada um8.
Em segundo lugar, cabe aos universalistas explicitar a concepo subjacente
reivindicao de que todos podem alcanar ao menos um conjunto bsico de capacidades e
direitos. Estou persuadido que este elemento subjacente e fundador uma concepo
moral do ser humano como um agente, quer dizer, algum que est normalmente dotado de
razo prtica e de autonomia suficiente para decidir que tipo de vida quer viver, que tem
capacidade cognitiva para detectar razoavelmente as opes que se encontro a sua disposio
e que se sentee interpretado/a pelos demais comoresponsvel pelos cursos de ao que
elege. claro, posso abdicar destes atributos, ou eleger cursos de ao que sejam inteis ou
inclusive auto-destrutivos, ou posso ter a desgraa de haver nascido, digamos, com um forte
prejuzo de minhas capacidades cognitivas. Estas so questes importantes sobre as quais
voltarei, dado que a questo central, porque afeta a milhes de pessoas, se refere a situaes
nas quais de maneira objetiva (quer dizer, muito alm das preferncias dos que esto
envolvidos) vem objetivamente obstaculizada a probabilidade de converter-se plenamente em
agentes, depois da heteronomiabiologicamente determinadada infncia. Recapitulo agora
com algumas proposies.
8 Em termos de desenvolvimento humano, talvez no haja afirmao deste universalismo mais eloquente
(embora implcita) que a recente incorporao aos Informes sobre Desenvolvimento Humano de dados sobre
questes de gnero e, em geral, sobre a situao das mulheres. O bvio fundamento desta incorporao a
crena universalista que as mulheres no tm menos direitos que os homens, e que as privaes a que elas se
encontram, frequentemente, submetidas merecem consideraes especiais e obrigaes do estado e de outros
atores sociais. claro, esta crena concorre com perspectivas que esto ainda profundamente arraigadas emmuitas partes do mundo.
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1. Os conceitos de desenvolvimento humano e de direitos humanos compartilhamuma subjacente perspectiva universalista do ser humano como um agente.
2. Esta perspectiva conduz pergunta de quais seriam as condies, capacidadese/ou direitos bsicos que normalmente permitem a um individuo funcionar como
um agente.
Mencionei j quo difcile, inclusive, controverso o primeiro ponto; o segundo,
embora mais prtico e emprico, no menos complexo. Antes de abordar estas questes,
convm que na seo que segue, proponha minhas definies de alguns conceitos que usarei
extensamente ao longo deste texto. Na seo subsequente incorporarei outra dimenso,
tambm fundamentada na agncia: a democracia poltica.
III. Definies
Comeo pela definio de estado. Pelo mesmo, entendo:
Um conjunto de instituies e de relaes sociais (boa parte delas
sancionadas pelo sistema legal desse estado) que normalmente penetra e controla o
territrio e os habitantes que esse conjunto pretende delimitar geograficamente.
Essas instituies tm como ltimo recurso, para efetivar as decises que tomam,
supremacia no controle dos meios de coero fsica que algumas agncias
especializadas do mesmo estado normalmente exercem sobre esse territrio. Essa
supremacia geralmente respalda a pretenso que as decises estatais sejam
vinculantes para todos os habitantes de seu territrio.
Esta uma definio que se pode reconhecer como de cunho weberiano.
Particularmente, ela esta focada no que o estado , no na enorme variedade de coisas que o
estadofaz ou pode fazer. Porm, por razes que veremos abaixo, minha definio se separa da
weberiana ao no postular como atributo componente do estado que sua coero, ou violncia,deva ser legtima; esta caracterstica convm consider-la uma varivel histrica, tanto de
pases como de diferentes perodos em cada pas (veremos que o mesmo vale para as outras
dimenses do estado includas na definio que propus). Outra caracterstica desta definio,
compartilhada com Weber e outros autores clssicos, que ela aponta diretamente ao tema do
poder, em termos da grande concentrao de poder (mais precisamente, poderes) implicada
pelo surgimento e funcionamento do estado.
Vemos que, de acordo com esta definio, o estado inclui ao menos trs dimenses.
Uma, a mais bvia e reconhecida quase exclusivamente pela literatura contempornea, o
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estado como um conjunto de burocracias9. Estas burocracias, geralmente organizaes
complexas, tm legalmente designadas responsabilidades destinadas a alcanar ou proteger
algum aspecto do bem, ou interesse pblico, geral.
O estado tambm um sistema legal, uma trama de regras legalmente sancionadas
que penetram e co-determinam numerosas relaes sociais. Contemporaneamente,
especialmente em democracias, a conexo entre as burocracias do estado e o sistema legal
ntima: as primeiras se supem que atuam em termos de faculdades e responsabilidades que
lhes so legalmente designadas por autoridades pertinentes, pois o estado se expressa na
gramtica do direito. Juntos, as burocracias do estado e o Direito presumem gerar, para os
habitantes de seu territrio, o grande bem pblico da ordem geral e a previsibilidade de uma
ampla gama de relaes sociais. Ao fazer isto, o estado (mais precisamente, os funcionrios
que falam em seu nome) presume garantir a continuidade histrica da unidade territorial
respectiva, usualmente concebida como uma nao.
Estas pretenses levam terceira dimenso do estado: intenta ser um foco de
identidade coletiva para os habitantes de seu territrio. Tipicamente os funcionrios do estado,
especialmente os que ocupam posies em sua cpula institucional, afirmam que o seu um
estado-para-a-nao ou (sem entrar em detalhes desnecessrios neste momento) um estado-
para-o-povo. Com estas afirmaes eles convidam ao reconhecimento generalizado de um
ns que aponta para criar uma identidade coletiva (somos todos argentinos-brasileiros-
peruanos, etc) que, segundo se postula, estaria acima de, ou deveria prevalecer sobre, os
conflitos e clivagens sociais. Temos ento trs dimenses do estado, que poderiam resumir-se
na relativa eficcia de suas burocracias, efetividade de seu sistema legal e credibilidade de seu
conjunto.
Aponto que, seguindo o cunho weberiano da definio que propus estas trs
dimenses no devem ser atribudas a priori a qualquer estado. Elas so tendncias que
talvez felizmentenenhum estado materializou completamente, e que alguns estados distam
de haver alcanado medianamente. No que diz respeito ao estado como um conjunto de
burocracias, seu desempenho pode se desviar seriamente de cumprir as responsabilidades que
lhe foram designadas; por sua parte, o sistema legal podeper se ter srias falncias e/ou no seestender efetivamente a diversas relaes sociais, ou ainda a vastas regies; e no que diz
respeito ao estado como foco de identidade coletiva, sua pretenso de ser verdadeiramente um
9 Ultimamente as cincias sociais contemporneas, principalmente as anglo-saxs e sua forte influncia no
resto, tm prestado escassa ateno ao tema do estado, e quando o fizeram o reduziram a uma s dimenso, isto
, a um conjunto de burocracias (este o caso, por exemplo, da influente coleo de Evans et. al., 1985).
Embora obviamente esta no tenha sido a inteno de alguns destes autores, essa reduo tem ajudado as assim
chamadas correntes neoliberais a demonizar o estado como o culpado de todo tipo de patologias que seencontram em uma relao de soma zero com a sociedade.
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estado-para-a-nao pode no ser verossmil para boa parte da populao 10. Vemos ento que
as trs dimenses do estadoe, em conseqncia, tambm seu carter efetivamente legtimo e
vinculante para todos seus habitantes so historicamente contingentes;portanto, a medida
de sua realizao deve ser estabelecida empiricamente.
A seguir defino os conceitos de regime, regime democrtico e governo.
Por regime entendo os padres, formais e informais, e explcitos e implcitos,
que determinam os canais de acesso s principais posies de governo, as
caractersticas dos atores que so admitidos e excludos de tal acesso, os recursos e
as estratgias permitidas para realiz-lo, e as instituies atravs das quais esse
acesso ocorre e pelas quais, uma vez realizado, so tomadas as decises
governamentais11.
Por regime democrtico entendo um no qual o acesso s principais posies
de governo se alcana mediante eleies que so por sua vez limpas e
institucionalizadas e no qual existem, durante e entre essas eleies, diversas
liberdades habitualmente chamadas polticas tais como as de associao,
expresso, movimento e de disponibilidade de informao no monopolizada pelo
estado ou por agentes privados12.
Por governo entendo as posies na cpula das instituies do estado: o
acesso s ditas posies se realiza atravs do regime, o qual permite aos
funcionrios respectivos tomar, ou autorizar a outros funcionrios a tomar, decises
que so normalmente emitidas como regras legais obrigatrias sobre o territrio
delimitado pelo estado13.
10 Repito a ressalva expressa na nota de rodap 1. Nas declaraes do texto principal passo por alto diversos
aspectos do estado que so intrinsecamente contraditrios, sobretudo a partir das tendncias inerentemente
autoritrias de sua dimenso burocrtica e de sua condio de estado de e em uma sociedade capitalista,especialmente de capitalismos como o capitalismo latinoamericano. Estas caractersticas por sua vez tm
complexas consequncias para a relao entre o estado e a democracia. Porm como j anticipei, devo adiar
estas discusses para um livro prximo; at ento apelo benevolencia dos leitores/as pelas simplificaes e
omisses que deixo aqui sugeridas.11Esta , com algumas adaptaes, a definio apresentada em ODonnel e Schmitter (1994, p. 118, nota de
rodap 1).12 Retomo este tema na seo seguinte.13 Estas decises no so necessariamente universais. O crescente uso por parte dos estados modernos de legine,
quer dizer, regras dirigidas a problemas, regionais ou grupos especficos, requerem este esclarecimento. Noentanto, se supe que toda regra legal tem validade sobre a totalidade do territrio delimitado pelo estado.
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De acordo com estas definies, o governo una parte fundamental de estado, sua
cpula institucional. Por sua vez, o regime uma mediao entre o estado e a sociedade:
consiste de um conjunto de instituies, regras e prticas que regula o acesso desde a
sociedade s mais altas posies no estado. Em um regime democrtico o principal canal
institucional esta integrado por partidos polticos que competem livremente para ganhar esse
acesso14. Sob este regime o resultado desta competio determina quem ocupa por um tempo
determinado (em regimes presidencialistas) ou de acordo com condies pr-estabelecidas
(em regimes parlamentares) as posies governamentais15.
Porm, est claro, o sistema de representao democrtica que implica este regime
esta longe de esgotar os meios de representao de interesses e identidades que influenciam
sobre as decises (e omisses) do governo e das burocracias estatais. Diversos interesses
econmicos e coorporativos nacionais e (crescentemente) transnacionais, interesses e vises
das prprias burocracias estatais, demandas populares, presses pontuais e s vezes invisveis
de diversos poderes, interesses privados dos governantes e funcionrios estatais, as prprias
ideologias e vises desses, e outros insumos geralmente determinam complexamente as
mencionadas aes e omisses. Isto leva a perguntar-se sobre o grau em que pesam
efetivamente, nessas decises e omisses, os insumos provenientes do regime e suas
instituies representativas em relao a outros insumos. Tenhamos em conta que pelo lado do
regime democrtico provm a principal fonte de legitimao das polticas pblicas (e,
conseqentemente, no agregado, da credibilidade do estado e do governo), a pretenso de
representar o conjunto da cidadania e as preferncias e aspiraes que se supe expressos em
eleies limpas e institucionalizadas. Os outros insumos, pblicos ou ocultos, legais ou
ilegais, embora resultem em decises que se pode aceitar que beneficiaram algum aspecto do
bem pblico, carecem dessa capacidade de legitimao propriamente democrtica das
polticas pblicas. O resultado, em todas as democracias realmente existentes, que o regime
14Nota-se que, portanto e contrariamente ao uso corrente, esta mediao que o regime no faz nada. Os que
fazem quer dizer atuam, tomam decises, etc so, na ponta social do regime, os eleitores, militantes de
partidos e outros; e em sua ponta estatal os governantes e funcionrios estatais. Algumas conversas com
Carlos Strasser me permitiram esclarecer este ponto, embora eu duvide que Strasser compartilhe tal como o
formulo.15 Com exceo dos tribunais superiores e da cpula das foras armadas, embora nos casos de regimes
democrticos solidamente institucionalizados estas dependem de um ministro de defesa (ou designao
equivalente) designado pela autoridade eleita. Da mesma forma, em tempos recentes se difundiu a pratica deeximir deste requisito os diretores de bancos centrais.
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8/22/2019 Guilhermo Donnell
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s uma parte do funcionamento e dos insumos de influncia a que esto sujeitos os governos
e as burocracias estatais16.
Isto levanta importantes problemas prticos: em que grau (e em cada caso, perodo e
tipo de poltica pblica) os insumos provenientes do regime pesam sobre os restantes? Em que
medida a autoridade que invoca-se no sentido de representar ou realizar aspiraes expressas
do regime democrtico corresponde realidade? Em que circunstncias seriam admissveis
desvios dessas aspiraes e/ou de promessas feitas durante o processo eleitoral? Em que
medida os insumos extra-regime so ocultos, ilegais e/ou corruptos? Estas questes levantam
tambm problemas empricos complicados, que entre outras coisas devem ter conseqncias
no que diz respeito avaliao da qualidade das respectivas democracias. S em casos
negativos bastante extremos se pode responder estas perguntas com aproximao suficiente.
Esses casos, infelizmente, no faltaram na experincia recente da Amrica Latina. Neles os
insumos do regime foram frgeis e/ou foram capturados por outros interesses, e s vezes esses
governos mostraram cumplicidade com interesses que dificilmente poderia argumentar-se
levam ao obteno de algum bem propriamente pblico ou geral. Estas circunstncias no
ajudaram eficcia, efetividade nem credibilidade desses estados e governos, nem por
certo qualidade destas democracias.
As reflexes precedentes servem como indicao de uma importante preocupao
deste texto: o escasso poder que na Amrica Latina tem os governos democraticamente eleitos
e, em geral, os estados, para avanar na democratizao de seus respectivos pases 17. Isto leva
a outras perguntas, que devem ser confrontadas por mais difceis que sejam. No se trata s de
saber o que o que o estado , mas tambm para que e para quem ou, dito de maneira
equivalente, para que nao (ou povo) e deveria ser esse estado nas presentes
circunstancias da Amrica Latina; isto , quando fizemos a realizao importantssima de
conquistar um regime democrtico, mas quando na maioria de nossos pases este regime
pouco ou nada consegue expandir-se na direo da democratizao da sociedade e do prprio
estado. Isto grave por si mesmo e porque, a mdio e longo prazo, afeta qualidade de uma
democracia e sobrevivncia do prprio regime.
16 Esta complexidade (que Bobbio, 1986, inclui entre as promessas no realizadas da democracia) costuma
ser ignorada pelas teorias da democracia que se centralizam exclusivamente no regime; comento e critico estas
teorias em ODonnell (2000). Ela em troca reconhecida no conceito de regimes parciais proposto por
Schimitter (1992) e, sobretudo, nas interessantes e detalhadas reflexes que sobre o tema oferece Strasser (entre
outros, 1996, 1999).17 Parafraseio aqui una observao de Malloy (1989). claro, este problema no deriva exclusivamente da
fragilidade do governo e do estado; no entanto, exceto para crentes fervorosos nos mercados mticos oumaravilhosas sociedades civis, essas fragilidades tem consequncias importante.
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Neste ponto quero reforar novamente que na presente seo me limitei a oferecer
definies de alguns conceitos que necessitarei no resto do presente texto. Porm, embora seja
claro que a estas definies subjaz uma concepo terica, por razes de espao e para poder
concentrar-me no tema, j suficientemente complexo, do presente texto, no apresento aqui
essa teorizao.
IV. Um Regime Democrtico, Democracia ou Poliarquia
Aps os prolegmenos precedentes, devemos nos concentrar na rocha na qual, mais
tarde, amarraremos nossa corda. Em um regime democrtico as eleies so competitivas,
livres, igualitrias, decisivas e inclusivas, e aqueles que votam so os mesmos que tm direito
a ser eleitos: so cidados(s) polticos(as). Se as eleies so competitivas, os indivduos
enfrentam ao menos seis opes: votar no partido A, votar no partido B, no votar, votar em
branco, anular o voto ou adotar algum procedimento que determine ao acaso qual das opes
anteriores colocar em prtica. Alm disso, os (ao menos dois) partidos que competem devem
ter possibilidades razoveis de fazer conhecer suas opinies a todos seus (reais e potenciais)
eleitores. Para ser uma eleio democrtica ela deve tambm ser livre, no sentido de que os
cidados no devem sofrer coero, ao menos ao tomar sua deciso de voto e ao votar. Para
que a eleio seja igualitria, todos os votos devem ter o mesmo peso, e devem ser contados
desse modo sem fraude, independentemente da posio social, da filiao poltica ou de
qualquer outra caracterstica de cada um 18. Por ltimo, as eleies devem ser decisivas, em
vrios sentidos. Primeiro, os vencedores passam a ocupar os postos governamentais que
disputaram. Segundo, esses governantes, baseados na autoridade atribuda a esses postos,
podem de fato tomar as decises que um sistema democrtico legal/constitucional
normalmente autoriza. Terceiro, esses governantes terminam seus mandatos nos termos e/ou
sob as condies estipuladas por esse mesmo sistema19.
18 Digo aqui que, no momento de contar os votos, cada voto deve ser computado como um (ou, no caso de
votos plurais, na mesma quantidade que qualquer outro voto). Com isso, aludo ao problema que resulta deregras de agregao de votos que provocam que em certos distritos eles pesem mais e em alguns casos,
significativamente mais que em outros distritos (em relao com a Amrica Latina e a severa
sobrerrepresentao de alguns distritos em alguns pases, ver Samuels e Snyder, 2001, e Calvo e Abal Medina,
2001). Em certo ponto, a sobrerrepresentao aparece to destacada que qualquer aparncia de voto igualitrio
desaparece. Antes de chegar a esse ponto, creio que possvel sustentar que a qualidade de uma determinada
democracia maior quanto menos sobrerrepresentao exista, ou seja, quanto mais conte cada voto
verdadeiramente igual aos demais.19Em ODonnell (2000) propus agregar esta caracterstica de decisividade lista habitual de atributos das
eleies em um regime democrtico. A omisso daquela caracterstica pode justificar-se em pases nos quais quase impensvel que os ganhadores de uma eleio no sejam admitidos aos respectivos postos, ou que eles
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Observe-se que os atributos que acabo de especificar no dizem nada a respeito da
composio do eleitorado. Existiram democracias oligrquicas aquelas que restringiam o
sufrgio que satisfizeram os atributos indicados. Mas, como consequncia dos processos
histricos de democratizao nos pases pioneiros20 e de sua difuso em outros pases, a
democracia adquiriu outra caracterstica, a inclusividade: o direito de votar e de ser votado se
aplica, com poucas excees, a todos os membros adultos de um pas.
Para resumir, em adiante chamo de eleies limpas as que renem a condio
conjunta de serem livres, competitivas, igualitrias, decisivas e inclusivas21. Este tipo de
eleio implica que os governos possam perder eleies e acate os resultados22. Esta uma
caracterstica especfica de um regime democrtico, ou democracia poltica, ou poliarquia,
trs expresses que uso como equivalentes. Em outros casos pode haver eleies (como
ocorria nos pases comunistas ou com outros pases autoritrios, ou na repblica Veneziana,
ou para a eleio do Papa, ou inclusive em certas juntas militares), mas s a democracia
poltica tem este tipo de eleio que rene todos os critrios acima especificados.
Contudo, contra o que afirmam influentes correntes minimalistas da Cincia
Poltica contempornea23, as eleies limpas no so suficientes para caracterizar um regime
democrtico. Neste tipo de regime, as eleies no se referem a um nico evento, mas a uma
srie de eleies que continuam e das quais se espera que continuem em um futuro
indefinido. Ao dizer isso, definimos uma instituio.
Sob um regime democrtico, as eleies esto institucionalizadas: praticamente todos
os atores, polticos e no polticos, deduzem que seguir havendo indefinidamente eleies
limpas. Isto implica que esses atores tambm do por certo que alguns direitos polticos (aos
quais me referirei mais adiante) continuaro sendo efetivos. Onde essas expectativas so
acabem em suas funes por meios inconstitucionais. Contudo, a experincia da Amrica Latina mostra
abundantemente que estas circunstncias no podem ser tidas como certas, seja porque acontece algum tipo de
golpe militar ou porque, como o caso de Fujimori no Peru (ou, para o caso Yeltsin, na Rssia), um presidente
democraticamente eleito cancela a democracia ao despedir ilegalmente altos funcionrios judiciais e/ou fechar
o congresso. No meu op. cit. argumento que esta e outras pressuposies silenciadas da Cincia Polticacontempornea devem ser criticamente revisadas se a teoria democrtica quer chegar a alcanar uma amplitude
comparativa adequada.20O uso as expresses pases iniciadores e Noroeste para aludir sucintamente aos pases localizados no
quadrante Noroeste do mundo e, com no pouca licena geogrfica, Austrlia e Nova Zelndia.21Tal como acontece com os mercados, poucas eleies, se que existe alguma, so perfeitas (como a eleio
presidencial de 2000, nos Estados Unidos mostrou patentemente); ver sobre o tema Elklit e Svensson (1997).
Esta condio aponta a questo da diferente qualidade ou graus de democratizao do regime, qual me ocupo
mais adiante.22
Przeworski (1991, p. 10).23Para uma discusso desta e de outras correntes, ver ODonnell (2000).
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generalizadamente compartilhadas, as eleies limpas esto institucionalizadas. Esses casos
so diferentes, no somente aos de eleies autoritrias, mas tambm queles nos quais,
inclusive se uma determinada eleio foi limpa, no existe uma presuno generalizada de que
eleies semelhantes vo seguir tendo lugar. Apenas no primeiro tipo de situao os agentes
importantes ajustam racionalmente suas estratgias expectativa de que as eleies limpas
vo seguir existindo no futuro. Normalmente a convergncia destas expectativas aumenta a
probabilidade de que este tipo de eleio seguir, em efeito, ocorrendo24. Do contrrio, os
agentes relevantes investiro em recursos diferentes das eleies como meio para ascender s
mais altas posies do regime 25.
Vemos que as eleies limpas e institucionalizadas so um componente central do
regime democrtico j que so, com as excees j mencionadas, o nico meio de acesso para
as principais posies de governo. Mas isto, todavia, no suficiente para caracterizar um
regime democrtico. Vimos que, nesse regime, cada eleitor tem ao menos seis opes.
Devemos agora recordar algo que frequentemente esquecido: todos os(as) cidados(s) tm
direito no s a votar mas tambm de tentar serem eleitos(as). Que cada um queira ou no
exercer esse direito irrelevante em relao ao fato de que cada cidado() portador da
autoridade potencial de participar nas decises governamentais; ou seja, de compartilhar a
grande responsabilidade de participar na tomada de decises vinculativas que, em ltima
instncia, podem ser respaldadas pela supremacia estatal no controle dos meios de coero
sobre seu territrio.
O ponto importante sobre os direitos polticos de participao a votar e a ser
eleito(a) que eles definem um agente. Esta definio uma definio legal; esses direitos
so atribudos pelo sistema legal a quase todos os adultos no territrio de um estado, com
algumas excees que esto, elas mesmas, legalmente definidas. Esta atribuio
universalista: corresponde a quase todos os adultos em um territrio, independentemente de
sua condio social e de qualquer caracterstica adscritiva distintas da idade e da
nacionalidade. No nvel em que estamos discutindo um regime democrtico o
reconhecimento das pessoas como agentes implica a atribuio legal da capacidade de cada
cidado() de fazer opes que so consideradas suficientemente razoveis como para terconsequncias significativas em termos da agregao de votos e do desempenho de funes
no estado e no governo. Os indivduos podem no exercer esses direitos; contudo, o sistema
24 Esta probabilidade de durao no quer dizer que depois de N rodadas de eleies uma democracia tenha se
consolidado (como argumenta, por exemplo, Huntington, 1991), ou que outros aspectos do regime estejam
institucionalizados ou em vias de ser. Para uma discusso destas questes, ver ODonnell (1996). 25 Inclusive supondo que os agentes prevejam que as eleies em T1 sero limpas, se eles acreditam que existe
uma probabilidade significativa de que as eleies em T2 no vo ser, por uma regresso explorada nos dilemasdo prisioneiro com nmeros fixos de repetio, os agentes faro este tipo de inverses extra-eleitoraisj em T1.
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legal constri a todos como igualmente capazes de exercer esses direitos e suas
correspondentes obrigaes (tais como, digamos, se abster de fraude ou violncia durante as
eleies, ou atuar dentro dos limites legalmente estabelecidos nas funes de governo). Esta
atribuio cria um espao de igualdade universal, legalmente dotada para todos os que
satisfazem os requisitos da cidadania.
Note-se que esta atribuio implica designar a condio de agentes a todos os que se
aplicaos(as) cidados(s). Esta condio diz respeito s relaes diretamente referidas a um
regime democrtico baseado em eleies limpas e institucionalizadas. Observe-se, no
entanto, que esta uma atribuio de agncia feita mediante um universalismo limitado: se
aplica a quase todos os adultos no territrio de um estado organizado segundo um regime
democrtico, no, por exemplo, aos estrangeiros nesse territrio. Este universalismo limitado
se distingue do universalismo ilimitado, pois este ltimo se predica para a garantia e expanso
do desenvolvimento humano e os direitos humanos atravs de todo tipo de pases, estados e
regimes. Entretanto, o universalismo limitado dos direitos polticos tem uma vantagem
distintiva sobre o segundo, a de identificar claramente aos destinatrios desses direitos: esses
podem ser reclamados, por meio do sistema legal, ao estado e a qualquer indivduo que possa
t-los infringido. Trata-se, ento, de direitos subjetivos (legalmente acionados) que existem
pelo simples, mas fundamental, fato de que estes indivduos vivem em um estado
territorialmente delimitado que contm um regime democrtico.
Vista desta perspectiva, a democracia poltica no o resultado de algum tipo de
consenso, ou eleio individual, ou contrato social, ou processo deliberativo. o resultado de
uma aposta institucionalizada. O sistema legal atribui a cada indivduo mltiplos direitos e
obrigaes. Os indivduos no os escolhem; desde seu nascimento se encontram imersos em
uma complexa rede social; esta rede social inclui direitos e deveres estabelecidos e
respaldados pelo sistema legal do estado em que vivem. Somos seres sociais muito antes de
tomar qualquer deciso voluntria e nas sociedades contemporneas uma parte importante
deste ser est legalmente definido e regulado26. Qual a aposta? que, em uma democracia
poltica, cada ego deve aceitar que todo alter(ou seja, todos os que habitam um territrio de
um estado que contm um regime democrtico) participa, votando e eventualmente sendoeleito, no atoeleies limpas e institucionalizadasque determina quem os vai governar por
26 Volto aqui ao comentrio da nota de rodap nmero 2. Espero que esta formulao e vrias que seguem,
embora sucintas, sirvam para dissipar confuses de que a posio terica que sustento individualista. Para
uma discusso pertinente sobre este tema e convergente com a minha posio sobre este tema ver Lechner
(2000) e seus comentrios ao presente texto; ver tambm Berger e Luckman (1966). Ademais, apesar de suas
importantes diferenas, se existe algo que os grandes clssicos da sociologia e da economia poltica tm em
comum (basta mencionar Marx, Weber, Durkheim e Simmel) esta viso socializada, no individualista, daagncia humana.
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um tempo. Esta uma aposta institucionalizada, porque se impe a cada um
independentemente de suas preferncias subjetivas: cada ego deve aceit-la inclusive se cr
que permitir a certos indivduos votar ou ser eleito inadequado. Ego no tem outra opo
seno correr o risco de que partidos e polticas equivocadas sejam eleitos como resultado de
eleies limpas27. Ego tem que correr este risco porque est sancionado e respaldado pelo
sistema legal de uma democracia poltica; isto parte de que ego um ser social rodeado de, e
constitudo por, direitos e deveres estabelecidos e respaldados se fosse necessrio, mediante
a coeropelo estado28. Para ego, este , entretanto, um risco moderado: sob um regime de
eleies limpas e institucionalizadas h segurana de que em futuras rodadas dessas eleies
ter possibilidades razoveis de fazer com que sejam eleitos os candidatos que lhes paream
adequados.
Encontramos outra caracterstica especfica da democracia poltica: o nico tipo de
regime que resulta de uma aposta institucionalizada, universalista e inclusiva . Todos os
outros regimes, que incluam ou no eleies, estabelecem algum tipo de restrio a esta aposta
ou a suprimem por completo. Novos ou velhos, os regimes democrticos contemporneos so
resultado desta aposta e esto profundamente marcados por ela.
Posso agora incluir uma proposio:
3. Um regime democrtico inclui eleies que so limpas e institucionalizadas,assim como uma aposta institucionalizada, inclusiva e universalista.
A esta altura convm lembrar que os cidados(s) de um estado que contm esse tipo
de regime tem diversos direitos participativos, j comentados. Alm disso, lgico que, para
que eles possam exercer esses direitos, o estado e seu sistema legal devem estabelecer e
respaldar outros direitos (ou garantias), habitualmente considerados polticos. A razo
que, para a institucionalizao de eleies limpas sobretudo na medida em que essa
27 Em alguns pases estes egos podem se constituir numa legio, inclusive se esto legalmente obrigados a
aceitar a aposta. Em uma pesquisa que realizei na rea metropolitana de So Paulo, Brasil, (Dezembro de1991/Janeiro de 1992), um surpreendente 79% respondeu no para a pergunta Os brasileiros sabem votar?.
Esta porcentagem chega a 84% entre os entrevistados com educao secundria e superior (no contexto era
claro para os entrevistados que a pergunta no se referia aos mecanismos do voto, mas sua avaliao das
opes que outros eleitores faziam entre os partidos e os candidatos em disputa).28 Existe uma bvia exceo ao que foi exposto anteriormente: quando as democracias emergem. Nestes casos,
na medida em que so sancionadas por corpos constituintes claramente eleitos, ou ratificados por um referendo
tambm limpo, os direitos e obrigaes pertinentes podem ser considerados expresso de um acordo majoritrio
e, portanto, suficientepara a institucionalizao da aposta democrtica. Depois deste momento, as geraes
sucessivas se encontram ab initio rodeadas de, e constitudas pelas relaes, legalmente definidas,caractersticas do regime e da aposta democrtica.
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institucionalizao envolve expectativas de durao indefinida , essas eleies no podem
existir isoladamente. Algumas liberdades que rodeiam as eleies emuito importanteque
continuam regendo entre elas, devem existir tambm. De outro modo, o governo de turno
poderia manipular com facilidade ou inclusive cancelar eleies futuras.
De acordo com um influente autor, Robert Dahl29, as liberdades polticas relevantes
so as de expresso, associao e de acesso informao plural; outros autores postulam, mais
ou menos explicitamente e com maior ou menor detalhe, direitos similares. O mesmo que os
direitos participao, os que discuto neste momento so limitadamente universais, j que
correspondem a quase todos os adultos, em e pelo sistema legal de um estado em que habitam
e que contm um regime democrtico30.
Embora complique o que foi dito at agora, devo observar que o efeito combinado das
liberdades enunciadas por Dahl e outros autores no podem garantir inteiramente que as
eleies sejam limpas e institucionalizadas. Por exemplo (levando em considerao liberdades
usualmente omitidas nessas definies), o governo poderia proibir aos candidatos da oposio
viajar dentro do pas, ou submet-los a perseguio policial por razes que pretenderia
falsamente como independentes de suas candidaturas. Nesses casos, inclusive se as liberdades
propostas por Dahl e outros autores fossem aplicadas, no seria razovel concluir que as
eleies so limpas, menos ainda institucionalizadas. Isto significa que as condies propostas
por Dahl e outros noso suficientes para garantir as eleies livres. Na verdade elas so
condies necessrias que, conjuntamente, permitem um juzo probabilstico: se regem,
ento, ceteris paribus, existe boa probabilidade de que as eleies sejam limpas e
institucionalizadas31.
Podemos discutir agora um problema que geralmente ignorado pelas teorias
contemporneas da democracia, mas que tem relao prxima com outro tema do
desenvolvimento humano e dos direitos humanos. Os direitos acima mencionados so
derivados indutivamente. Seu listado resulta de uma fundamentada avaliao emprica de seu
29 Ver Dahl (1989; 1999).30 Ter-se- avisado que vrias vezes falei de um estado que contm um regime democrtico. Este se deve a
um argumento que apresento em ODonnell (2000) e que por razes de espao me refiro. Brevemente, digo,
como habitual, que O pas X democrtico uma enganadora metonmia (embora implicitamente
reveladora do alto valor positivo atualmente atribudo para a democracia), enquanto designa o conjunto por um
de seus atributos; esse mesmo pas tambm capitalista, localizado na regio Y do mundo, mais ou menos
desenvolvido ou desigual, etc. Tal como argumento no meu op. cit. e desenvolvo no meu prximo livro,
necessrio rigor conceitual, no s por razes tericas, mas tambm prticas, demanda precises do tipo que
implico na formulao que comento.31
Seguramente se observou que estou me referindo indistintamente a direitos e liberdades. Mais adianteprecisarei este uso.
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impacto sobre a probabilidade de que existam eleies limpas e institucionalizadas 32. Este
juzo est controlado pela inteno de encontrar um ncleo mnimo, ou central, de liberdades,
no sentido de que sua enumerao no se converta em um to longo quanto intil inventrio
de todos os direitos ou liberdades que podem ter relao com a limpeza e a institucionalizao
das eleies. O problema que, posto que os critrios de incluso de algumas liberdades e de
excluso de outras inevitavelmente resultante de juzos indutivos, no pode existir uma
teoria que estabelea um critrio firme e claro que determine o que chamarei um conjunto
mnimo necessrio dessas liberdades. No caso das liberdades polticas, esse conjunto, se
existesse, incluiria somente as condies que so necessrias e entre todassuficientes para
que existam eleies limpas e institucionalizadas; esse conjunto, portanto, excluiria outras
liberdades que, mesmo que possam contribuir ao melhor desempenho desse tipo de eleio,
no seriam condies necessrias ou suficientes para ele. Entretanto, como as liberdades a
serem includas e excludas no conjunto so derivadas indutivamente33, nunca haver um
acordo intersubjetivo firme e generalizado sobre qual seria seu conjunto mnimo suficiente:
disputaremos eternamente quais so as liberdades que so verdadeiramente necessrias e
conjuntamente suficientes para o exerccio da cidadania poltica.
At aqui discuti a questo dos limites externos das liberdades que rodeiam, e tornam
provveis, as eleies limpas e institucionalizadas; isto , a questo de quais liberdades incluir
e excluir deste conjunto. Mas existe outro problema: o dos limites internos de cada uma
dessas liberdades. Todas elas contm o que chamaria de uma clusula de razoabilidade que,
uma vez mais, fica normalmente implcita nas teorias da democracia 34. Assim, por exemplo, a
liberdade de formar associaes no inclui criar organizaes com fins terroristas; a liberdade
de expresso limitada, entre outras coisas, pelo delito de calnia; a liberdade de informao
no requer que a propriedade dos meios seja inteiramente competitiva, etc. Como determinar
se estas liberdades so efetivas ou no? Certamente, os casos que caem prximos de algum
dos extremos no apresentam problemas. Mas muitos outros caem em uma rea cinzenta entre
os dois plos. Aqui uma resposta depende novamente de juzos indicativos sobre o grau no
qual at a dbil (ou parcial, ou intermitente) efetividade de certas liberdades suporta, ou no, a
probabilidade de eleies livres e institucionalizadas. Uma vez mais, no existe uma respostafirme e clara para esta questo: os limites internos e externos dos direitos polticos so
32 Obviamente, esta no a nica razo pela qual estes direitos so importantes. Volto a este assunto adiante.33 Esta s uma razo para este enigma; mais tarde encontraremos outras.
34
Em contraste, este tema tem gerado uma enorme literatura entre os juristas. Voltarei sobre alguns aspectosdesta literatura e sua lamentvel distncia da maior parte da Cincia Poltica e da sociologia poltica.
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teoricamente indecidveis35. Outro modo de dizer isto afirmar que o que ele sobra o
conjunto mnimo suficiente dessas liberdades. Este fato, no entanto, no deve nos levar a
negar que as liberdades que so razoveis candidatas a pertencer a este conjunto so
sumamente importantes, e que como tais devem ser levadas em cuidadosa considerao36.
Uma dificuldade adicional que os limites internos de liberdades tais como as
arroladas por Dahl, e de outros direitos e liberdades que so tambm potencialmente
relevantes para a existncia de eleies limpas e institucionalizadas, tm experimentado
mudanas significativas ao longo do tempo. Basta notar que certas restries liberdade de
expresso e de associao que nos pases pioneiros se consideravam aceitveis at no muito
tempo, hoje seriam consideradas claramente antidemocrticas37. Tendo isto em conta, quo
exigentes deveriam ser os critrios que aplicamos para as recm surgidas democracias (e a
outras, mais antigas, fora do Noroeste)? Deveramos aplicar os critrios atualmente vigentes
nos pases iniciadores38, ou os utilizados ali no passado, ou fazer em cada caso avaliaes
indutivas desses direitos em termos da probabilidade da realizao de eleies limpas e
institucionalizadas? Parece-me que esta ltima posio a mais adequada, mas ela nos reenvia
diretamente ao problema da indecidibilidade dos respectivos conjuntos de direitos, agora
ainda mais complicados por sua variabilidade histrica.
Concluo que existe, e continuar existindo, divergnciana academia e, por certo, na
polticaa respeito de onde traar os limites externos e internos das liberdades que rodeiam e
fazem possveis as eleies limpas e institucionalizadas. Isto no um defeito das tentativas
de enunciar estas liberdades. Elas so sumamente importantes, tanto em si mesmo como
devido a sua relao com essas eleies: elas so condies necessrias para efetivar os
direitos de participao postulados por um regime democrtico, e como tais devem ser
listadas. Por um lado, ento, pode ser empiricamente estabelecido que a falta ou a limitao
severa de algumas dessas liberdades (digamos, de expresso, associao ou movimento)
35 Desde um ngulo diferente, mas convergente, me parece til a discusso sobre a indeciso em Mouffe (1996;
2000). Pelo que sei, a origem deste termo se encontram na obra de Jacques Derrida, mas aqui o uso de maneirabastante diferente da utilizada por este autor. Por outro lado, por razes que espero estejam claras a seguir, no
compartilho os comentrios de Silveira no sentido de afirmar que esta indeciso necessariamente implica a
subscrever teorias que so puramente culturalistas ou que reduzem os direitos da lgica do interesse. 36 Veremos que existe uma dupla dimenso nisto. Por um lado, em um nvel individual, estes so direitos
universalisticamente atribudos; por outro lado, em um nvel macro, estas so liberdades que caracterizam e co-
constituem o contexto social no qual estes indivduos esto imersos.37 Por exemplo, Holmes e Sustein (1999, p. 104) observam que lo que la libertad de palabra significa para la
jurisprudencia americana (sic) contempornea no es lo que significaba cincuenta o cien aos atrs. 38
Entre os quais, ademais, persistem at hoje diferenas significativas em relao com o alcance de algunsdesses direitos.
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DOSSI QUALIDADE DA DEMOCRACIA
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elimina a possibilidade de eleies limpas e, a fortiori, de sua institucionalizao39. Por outro
lado, o carter indutivo destas listas e o problema conexo de seus limites externos e internos
mostra suas limitaes como proposies tericas. Consequentemente, em lugar de ignorar
estes problemas ou de tratar artificialmente de fixar os limites externos e internos destas
liberdades, uma via mais frtil de indagao consiste em tematizar teoricamente as razes e
implicaes deste enigma40. Estamos em um terreno que suponho familiar para quem tem
refletido sobre o desenvolvimento humano e os direitos humanos em termos de tentativas de
encontrar conjuntos mnimos suficientes para seus respectivos interesses. No so esses, em
troca, temas que muitas vezes ocupam as principais correntes de Cincia Poltica
contempornea.
Aps essa discusso pode ser til listar algumas proposies:
4. Alm das caractersticas observadas na proposio 3, um regime democrticoconsiste de algumas liberdades polticas (limitadamente) universalistas. Estas
liberdades devem ser enumeradas porque so importantes per se e porque so
condies necessrias para a existncia de eleies limpas e institucionalizadas,
e, portanto, para a contnua efetividade da aposta democrtica.
5. Entretanto, tendo em vista que os limites externos e internos dessas liberdadesso indecidveis, no existe critrio vlido para deixar claro e estabelecer
firmemente um conjunto mnimo suficiente desses direitos que tenham validade
terica e/ou intersubjetiva geral.
Aponto agora outras concluses a que temos implicitamente chegado por meio da
discusso precedente. Uma a definio de cidadania poltica como o componente individual
de um regime democrtico. Ela consiste na atribuio dos direitos vinculados aposta
democrtica, isto , tanto de algumas liberdades circundantes (tais como as de expresso,
associao, informao, livre movimento e outras deste tipo) como dos direitos de
participao em eleies limpas e institucionalizadas, inclusive o direito de votar e ser
eleito(a).A segunda concluso que esta definio nos tem levado mais adiante do regime e
nos tem adentrado no estado, em dois sentidos. Primeiro como a entidade territorial que
delimita aos portadores dos direitos e obrigaes da cidadania poltica e, segundo, como um
39 Por sua vez, obviamente segundo o que j foi fundamentado, neste caso, embora haja eleies, o regime no
seria democrtico.40 Em um contexto similar (conceitos de igualdade), Amartya Sen (1993, p. 33-34) assinala bem: Sin una idea
fundamental tiene una esencial ambigedad, una formulacin precisa de esa idea debe tratar de capturar esaambigedad ms que ocultarla o eliminarla (itlicos no original).
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DOSSI QUALIDADE DA DEMOCRACIA
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sistema legal que sanciona e respalda esses mesmos direitos e obrigaes. Isto me permite
formular outra proposio.
6. A aposta democrtica e a cidadania poltica so, respectivamente, as carascoletiva e individual da mesma moeda o regime democrtico e ambas
pressupem o estado, tanto como uma delimitao territorial quanto como um
sistema legal (que, alm disso, deve ser realizado por diversas burocracias que
se desempenham em consonncia com o mesmo).
Os aspectos do estado recm apontados tm uma dupla funo: em um sentido, eles
so condies necessrias para a existncia de um regime democrtico; em outro o que
discuto a seguir so caractersticas do carter democrtico do prprio estado, no somente
do regime.
Incluo agora outras proposies:
7. A cidadania poltica consiste da atribuio universal (embora territorialmentedelimitada) dos direitos e liberdades vinculados a uma aposta democrtica
inclusiva, ou seja, tanto de algumas liberdades circundantes quanto dos direitos
participao em eleies limpas e institucionalizadas, incluindo votar e ser
eleito(a).
8. Um regime democrtico (ou democracia poltica, ou poliarquia) pressupe: a.Um estado de base territorial que delimita quem so considerados cidados(s)
polticos(as); e b. Um sistema legal desse mesmo estado que, dentro de seu
territrio, atribui a cidadania poltica sobre bases (limitadamente)
universalistas.
V. Primeiro excurso sobre a Qualidade da Democracia
A presente digresso, assim como as que seguem, tem estreita relao com o valiosotrabalho realizado pela equipe do projeto Estado da Nao da Costa Rica, especialmente
com suaAuditoria cidad sobre a qualidade da democracia (2001). Isto no se d por acaso,
j que como comento no comeo deste captulo, em vrias ocasies discuti em detalhe estas
questes, assim como seus fundamentos tericos e metodolgicos, com os autores deste
trabalho e recebi inspirao do mesmo. A premissa da Auditoria, assim como a do que segue,
que a qualidade da democracia de determinados pases pode ser avaliada pelos diferentes
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DOSSI QUALIDADE DA DEMOCRACIA
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graus de democraticidade em uma srie de dimenses41. Nesta digresso me limito s
dimenses diretamente implicadas no que discuti at aqui42. Irei agregando outras dimenses
na medida em que analiso outros temas.
A fim de ordenar minhas sugestes sobre esta questo, apresento sequencialmente
vrios processos tpicos, sobre os quais queremos saber:
V.1. Antes de eleies limpas e institucionalizadas
V.1.1. Sobre os cidados(s).
V.1.1.1. Quantos possuem uma preferncia clara e presumivelmente estvel por um
regime democrtico em lugar de qualquer outro.
V.1.1.2. Quantos aceitam que a populao territorialmente limitada pelo estado em
que vivem a unidade que determina a definio do eleitorado.
V.1.1.3. O quanto esto informados sobre os partidos, candidatos e temas de cada
eleio.
V.1.1.4. O quanto esto interessados sobre estes temas.
V.1.1.5. Quanto e de que maneira participam de atividades polticas, especialmente as
relacionadas com eleies.
V.1.1.6. Se o quanto usam das oportunidades existentes para expressar opinies sobre
a discusso, deciso ou implementao de polticas pblicas.
V.1.2. Sobre o sistema eleitoral
V.1.2.1. Se existe uma comisso ou tribunal eleitoral independente, imparcial e
adequadamente investido de autoridade e recursos como para garantir a idoneidade
das eleies, tanto em nvel nacional quanto sub-nacional.
V.1.2.2. Se o sistema eleitoral no sobrerrepresenta certos distritos ou certos tipos de
eleitores e, se esse o caso, em que medida.
V.1.2.3. Se compensa significativamente as desvantagens que certos partidos possam
sofrer pelo fato de no serem apoiados por grupos economicamente poderosos.
41 Concordo com os comentrios de Coppedge, no sentido que convm considerar estas dimenses como
variveis, das quais um quer analisar seu grau de presena ou peso em cada caso. Concordo tambm com
Coppedge e como os comentrios de Mazzuca e Munck, que argumentam que o anterior um passo
fundamental para poder explorar empiricamente as relaes entre as ditas variveis. Fao este esclarecimento
porque a redao original do presente texto parece ter induzido estes colegas a acreditarem erroneamente que
no concordo com o que foi dito acima.42 A Auditoria fez um trabalho sumamente cuidadoso e til ao caracterizar estes e outros itens como padres e
explicar as razes deste critrio. Para detalhes, devo me referir a este texto e ao preparado por Vargas Cullell et.al. (ODONNELL, IAZZETTA, CULLELL, 2003).
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V.1.2.4. Se existem regras claras e aplicveis para a publicidade das contribuies que
os partidos polticos recebem para as campanhas eleitorais e para o seu
funcionamento.
V.1.2.5. Se no se colocam altas barreiras para a criao e o desempenho dos partidos
polticos, com exceo dos que advogam pelo uso de meios violentos para a
competio poltica e/ou para ascender a posies governamentais.
V.1.2.6. Se no existem requisitos complicados para o registro dos eleitores, e
especialmente os que podem ser difceis de cumprir por indivduos pobres e/ou
discriminados(as).
V.1.2.7. Se os(as) cidados(s) so livres para filiar-se a um partido, para tratar de ser
selecionado como candidatos(as) do mesmo e, se o so, para apresentarem-se a
eleies.
V.1.2.8. Se todos os partidos e candidatos(as) so tratados respeitosa e
imparcialmente pelas autoridades governamentais.
V.1.2.9. Se as eleies nacionais so realizadas com frequncia suficiente como para
refletir importantes mudanas na opinio pblica, e se existem mecanismos legais que
permitam aos cidados, com devidas precaues para evitar decises minoritrias
e/ou apressadas, remover os funcionrios eleitos, se o consideram necessrio, entre
eleies43.
V.1.3. Sobre os partidos polticos.
V.1.3.1. Se seus procedimentos internos, especialmente em matria de designao de
suas autoridades e candidatos, so abertos participao e controle de seus filiados e
das instituies estatais pertinentes.
V.1.3.2. Se publicizam, no devido tempo e forma, o apoio pblico e privado que
recebem, e prestam conta do uso que fazem deste apoio.
V.1.3.3. Se conduzem suas campanhas eleitorais respeitando os direitos civis e
polticos de seus oponentes, e de maneira que no envolva nem promova
discriminao, calnia ou qualquer outra forma de intolerncia.
V.1.3.4. Se existem incentivos para facilitar ou promover a participao poltica desetores cidados(s) pobres e/ou discriminados(as)44.
V.2. Sobre as eleies
V.2.1. Se os(as) votantes no so intimidados(as) ou pressionados(as) de qualquer
forma, e se seus votos so verdadeiramente secretos.
43
Tomo esta clusula, com pequenas modificaes, dos comentrios de Coppedge.44 Tomo este item dos comentrios de Karl.
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V.2.2. Se existe livre acesso aos locais de votao e escrutnio para os(as) eleitores,
representantes de partidos, observadores da eleio e meios de comunicao.
V.2.3. Se as eleies se desenvolvem de maneira ordenada e pacfica.
V.2.4. Se os votos so contados imparcialmente e os resultados anunciados sem
demora.
V.2.5. Se os(as) ganhadores(as) dos pleitos so proclamados(as) como tais e no
momento devido assumem suas respectivas posies governamentais.
V.2.6 Se as queixas ou impugnaes sobre as eleies so tratadas com
imparcialidade e rapidez.
V.2.7 Se os resultados da eleio so aceitos como vlidos pela populao em seu
conjunto.
V.3. Sobre o governo eleito
V.3.1. O Executivo
V.3.1.1. Se atua com clareza e consistncia acerca dos direitos dos cidados(s) e
suas associaes, assim como da autoridade e jurisdio de outras instituies estatais
V.3.2. O Congresso
V.3.1.1. Se atua com claro e consistente respeito aos direitos dos cidados(s) e a
suas associaes, assim como da autoridade e jurisdio de outras instituies
estatais.
V.3.2.2. Se conduz suas deliberaes e tomadas de decises de maneira que respeitem
razoavelmente o direito de cada legislador(a) a ser ouvido(a) (em sesses plenrias
e/ou em comisses) e a que seu voto seja contado em igualdade de condies com os
outros.
V.3.2.3. Se os partidos minoritrios tm possibilidade razovel de que suas crticas e
propostas sejam consideradas e discutidas, dentro e fora do Congresso.
V.3.3. O funcionamento geral do governo
V.3.3.1. Se atua com claro e consistente respeito pelos direitos dos(as) cidados(s) e
de suas associaes, assim como da autoridade e jurisdio de outras instituiesestatais.
V.3.3.2. Se oferece aos(as) cidados(s) e a suas associaes oportunidades claras,
oportunas e factveis de expressar suas opinies sobre a discusso, a deciso e
implementao de polticas pblicas.
Apresso-me a comentar que esta , por assim dizer, uma lista inocente. Uma razo
que ignora algumas situaes complicadas. A lista, com efeito, tem preferncia por valorizar
positivamente as oportunidades de participao cidad. Entretanto, em certas reas de polticas
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pblicas (por exemplo, decises sobre tipo de mudana) podem haver slidas razes para
evitar essa participao; ou em outras reas (por exemplo, negociaes de relaes exteriores
ou e em alguns assuntos de segurana nacional) pode se justificar a necessidade do segredo.
Nestes casos o teste de democraticidade relativa deveria se centrar sobre o tipo de
procedimentos e atores envolvidos no estabelecimento destas limitaes45, assim como na
existncia ou no de possibilidades de desafi-las e, no caso, anul-las.
A segunda razo da inocncia da lista precedente que passa por alto a questo de se
um sistema eleitoral de melhor qualidade, ou mais democrtico, segundo se incline por um
sistema de representao majoritria ou por um de representao proporcional. Alguns
indivduos que, de acordo com qualquer teste que possamos aplicar, so solidamente
democrticos, tendero a preferir a proporcionalidade se tem convices firmemente liberais;
outros, em troca, preferiro um sistema de representao majoritria, se participam de vises
derivadas da democracia clssica ou do republicanismo46. Rigorosamente, este outro tema
indecidvel. Supondo que o eleitorado est dividido sobre este assunto, a soluo naturalmente
democrtica seria que a questo se decida por meio do voto. Mas a votao deve se realizar de
acordo com uma ou outra destas regras, com o que a questo estaria decidida de antemo; por
outro lado, caso se faa mediante um referendum ento a questo tambm teria sido pr-
decidida, neste caso em favor dos propiciadores de um sistema majoritrio. Esta pode ser uma
das razes pelas quais frequentemente encontramos regimes eleitorais hbridos que combinam,
s vezes de maneira bastante desajeitada, regras majoritrias e proporcionais. Em vista disso,
creio que uma evoluo da qualidade da democracia deve se abster de julgar sobre esta
questo47.
Por ltimo, pode ter-se percebido algumas omisses na lista precedente: no se ocupa
de alguns importantes aspectos do formato institucional das democracias, especialmente de
regimes federal ou unitrio, ou presidencialista ou parlamentarista (e das diferentes
combinaes entre eles), como assim, to pouco, da contraposio entre sistemas de reviso
jurdica e de cortes constitucionais. A razo que, no presente estado de nosso conhecimento,
no me parece que qualquer dessas variantes possa ser considerada como mais ou menos
democrtica que a outra; de outro lado, qualquer que seja a adotada em cada caso, ela pode seravaliada em termos dos itens listados aqui e nas prximas digresses.
45 Por exemplo, se o executivo pode ou no decidir unilateralmente este tipo de questo e em que reas.46 Para explicao e discusso destes termos, remeto a ODonnell (1998; 2001a).47Em seus comentrios, Tavares de Almeida concorda, afirmando que Desde el punto de vista de la calidad de
la democracia no hay manera de decidir entre, por ejemplo, el modelo de Westminster de fusin de poderes o el
modelo de separacin de poderes y de checks and balances. Em seus comentrios Coppedge discorda,
argumentando que quanto mais proporcional (ou seja, anti-majoritrio) um sistema eleitoral, mais democrticono estou convencido.
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VI. Democracia e Agncia
A anlise precedente do regime descritiva. A partir desta seo ingressamos em um
terreno onde necessitarei fazer afirmaes normativas, no s factuais48. Em particular, o tema
da concepo do ser humano como um agente requer no s formulaes descritivas, mas
tambm extrair as consequncias normativas de sua efetividade e tambm especialmente no
caso da Amrica Latinade sua no efetividade.
Comeo por lembrar que a aposta democrtica implica na atribuio universalista do
direito de eleger, ser eleito e exercer as liberdades polticas que circundam o regime.
Tenhamos agora um olhar mais cuidadoso sobre a cidadania poltica. um status legalmente
definido reservado, como parte e consequncia da aposta democrtica, para a maioria dos
habitantes de um estado que contm um regime de eleies limpas e institucionalizadas. Este
status misto. adscritivo no sentido que (exceto em casos de naturalizao) pertence aos
indivduos pelo simples fato de ter nascido em um determinado territrio ( ius solis) ou de
certa linhagem (ius sanguinis). , como j vimos, limitadamente universalista, j que
atribudo, dentro da jurisdio delimitada por um estado, a todos os adultos que compartilham
a mesma nacionalidade. tambm um status formal, j que resulta de regras legais que em
seu contedo, promulgao e adjudicao satisfazem certos critrios que so especificados por
outras regras legais, algumas delas de nvel constitucional. Alm disso, a cidadania poltica
pblica49. Com isto quer dizer, primeiro, que o resultado de leis que satisfazem requisitos de
publicidade cuidadosamente regulados e, segundo, que os direitos e obrigaes que atribui a
cada um implicam, e legalmente demandam, um sistema de reconhecimento recproco entre
todos os indivduos, independentemente de suas posies sociais, como portadores desses
direitos e ou obrigaes50. Por ltimo, a cidadania poltica igualitria: gera um espao de
igualdade legalmente estabelecida na atribuio (e de seu exerccio ao menos potencial) de
uma srie de direitos.
Volto agora para a aposta democrtica. Seu carter inclusivo uma conquista recente.
Por um longo tempo, nos pases pioneiros diversos setores sociais foram excludos do direitode votar, e menos ainda de serem votados: campesinos, trabalhadores manuais, trabalhadores
domsticos (e, em geral, no proprietrios e indivduos pouco educados), negros nos Estados
Unidos, ndios nesse mesmo pas e muitos outros e, por certo, mulheres. S durante o sculo
48 Sobre essa distino ver os comentrios de Mazzuca; mas vrios dos temas que este autor trata vo bastante
alm das possibilidades deste texto.49 Para uma discusso til das vrias dimenses da publicidade em democracia, ver Iazzetta (2002).50
Lembremos que no depende da vontade ou preferncias subjetivas do ego ter que reconhecer que todo altertem, em um contexto de um regime democrtico, os mesmos direitos e obrigaes que ele.
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XX em no muitos pases, somente depois da Primeira Guerra Mundial os direitos
polticos tornaram-se inclusivos51. Da sua parte, em diversas ocasies os pases no Sul e no
Leste adotaram o sufrgio inclusivo; mas diferentes tipos de democracia tutelares que
emergiram neles, ou de regimes abertamente autoritrios, significaram o rechao da aposta
democrtica.
Em todas as partes, a histria da democracia a histria da renitente aceitao do
desafio da incluso quer dizer, da rejeio a aceitar a universalizao da atribuio de
agncia no domnio do poltico. A histria dos pases pioneiros est marcada pelas
catastrficas predies52 e s vezes a violenta resistncia53 de setores e classes dominantes que
se opuseram extenso dos direitos polticos a outras classes e setores, considerados
indignos ou pouco confiveis. Em outras latitudes, por meios s vezes ainda mais
violentos e excludentes, esta extenso tambm sofreu resistncia. Quais foram as razes dessa
rejeio? Tipicamente, um argumento de falta de autonomia e de responsabilidade dos
excludos; ou seja, a negao de sua condio de agentes. Argumentava-se que somente
alguns indivduos (altamente educados e/ou proprietrios, ou uma vanguarda poltica que
decifrou a direo da histria, ou uma junta militar que entendia as demandas da segurana
nacional, ou uma teocracia) teriam capacidades morais e cognitivas suficientes para participar
ativamente da vida poltica. Somente eles eram vistos como suficientemente dotados (em
termos de educao, propriedade, trabalho revolucionrio, desgnios patriticos ou
conhecimento da verdadeira religio) de conhecimentos e motivao adequados para a tomada
responsvel de decises coletivas. claro, as vanguardas revolucionrias, as juntas militares e
as teocracias geraram regimes autoritrios, enquanto que nos pases iniciadores os
privilegiados geraram, ou na maioria dos casos e no sem, s vezes, brutais interrupes
autoritrias, regimes oligrquicos (ou seja, democracias polticas no inclusivas) para eles e
excluso poltica para o resto.
51 Em que pese frequentes informaes ao contrrio, nem sequer em termos de sufrgio universal masculino osEstados Unidos so exceo a isso. A existncia recente deste sufrgio em nvel federal foi convertida em
puramente nominal pelas severas restries impostas sobre os negros e ndios, especialmente no Sul. Devido a
isto, o ganho neste pas de uma democracia poltica inclusiva deve ser datado da Segunda Guerra Mundial ou
inclusive em uma poca tardia como a dcada de 1960, como resultado do movimento dos direitos civis.52 Ver, sobre essas resistncias, Hirschman (1991) e Rosanvallon (1992). Como disse um poltico britnico que
se opunha Ata da Reforma de 1867, Como soy un liberal [...] observo como uno de los mayores peligros la
propuesta [...] de transferir poder de las manos de la propiedad y la inteligencia a las manos de hombres cuya
vida entera est necesariamente ocupada en la lucha cotidiana por la existencia (LOWE apudHIRSCHMAN,
1991, p. 94).53 Ver principalmente Goldstein (1983).
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Como vimos, existe uma idia central subjacente a este tpico: a agncia. Um agente
algum dotado de razo prtica: usa sua capacidade cognitiva e motivacional para decidir
opes que so razoveis em termos de sua situao e de suas metas, sobre as quais, salvo
prova terminantemente contrria, considerado o(a) melhor juiz(a)54. Esta capacidade faz
dele(a) um(a) agente moral, no sentido de que normalmente se sentir (e ser considerado(a)
pelos outros) responsvel por suas opes e (ao menos) pelas consequncias que seguem
diretamente delas.
Claro, os autores que desde diversos ngulos se ocupam deste tema oferecem vrias
objees e ressalvas ao que acabo de afirmar. Entretanto, destaco que, sem prejuzo do que foi
dito, a presuno de agncia outro fato que, nos pases pioneiros, mais antigo e foi
institucionalizado antes da aposta democrtica e das eleies limpas. Esta presuno no
somente um conceito moral, filosfico ou psicolgico: um conceito legalmente sancionado e
respaldado. A presuno de agncia , precisamente, o que constitui a cada indivduo como
uma pessoa legal, portadora de direitos subjetivos. Essa pessoa realiza opes, e
responsabilizada por elas, porque o sistema legal pressupe que seja autnoma, responsvel e
razovel, repito, um agente55.
Esse critrio se tornou o corao dos sistemas legais dos pases iniciadores muito
antes que democracia poltica. O reconhecimento institucionalizado (ou seja, legalmente
sancionado e respaldado e, sociologicamente, amplamente compartilhado) de um agente
portador de direitos subjetivos ocorreu ao longo de um complexo processo que se iniciou com
alguns sofistas, esticos e Ccero, continuou atravs da adoo do direito romano e dos
jurisconsultos medievais56, foi refinado pelos tericos da lei natural e foi finalmente re-
apropriado e, diria, politizado, apesar de suas diferenas sobre outras questes, pelos grandes
pensadores do incio do liberalismoespecialmente Hobbes, Locke e Kant, assim como por
um no-liberal, Rousseau.
54 Como diz Dahl (1989, p. 108), la carga de la prueba [da falta de agncia] corresponde siempre a quien
reclama una excepcin, y ninguna excepcin ser admisible, ni moral ni legalmente en ausencia de unademonstracin concluyente. De fato, este princpio foi formulado pela primeira vez, em termos muito
similares aos que Dahl utiliza, por John Stuart Mill (1962, p. 206 epassim).55Jeremy Waldron (1992, p. 282) comenta que: La identificacin de alguien como portador de derechos
expresa una medida de la confianza en las capacidades morales de esa personaen particular, en su capacidad
para pensar responsablemente sobre la relacin moral entre sus intereses y los intereses de otros. 56 Foi particularmente importante o redescobrimento, no sculo XI, dos Cdigos Justinianos. Como observa
Berman (1993, p. 245), parte de sua importncia se deve ao fato de que o direito romano haba alcanzado un
muy alto nivel de sofisticacin en el terreno de los contratos. Desde uma perspectiva terica diferente,
Anderson (1974) concorda, agregando que as concepes legais romanas sobre livre disposio da propriedadeimobiliria foram tambm fundamentais.
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No posso referir aqui a esta histria57. Basta observar que se trata da histria da
formulao e progressiva expanso de uma viso no s moral, mas tambm legal do
indivduo como portador de direitos subjetivos; esses so direitos que pertencem a cada
indivduo como tal, no como derivao (como em Aristteles, So Toms e outras teorias
organicistas) da posio que ocupa em uma hierarquia social. Esses direitos sublinham o que
as teorias clssicas chamavam de potestas de cada indivduo, sua capacidade para assumir
voluntria, responsvel e livremente obrigaes e, correlativamente, seu direito a demandar o
cumprimento das obrigaes da(s) contraparte(s). Historicamente, esta concepo encontrou
sua expresso mxima na lei de contratos e na mercantilizao da propriedade da terra58. Esses
processos tiveram lugar em contraponto com a expanso, nos pases pioneiros, do capitalismo
e do estado moderno. Por um lado, o agente que contrata validamente o mesmo que vende
livremente sua fora de trabalho ao capitalista. Por outro lado, a atribuio formalmente
igualadora de agncia nas reas do contrato e da propriedade sob uma jurisdio legal comum,
foi um poderoso instrumento nas lutas dos formadores de estados (state makers) contra os
poderes feudais, as autonomias urbanas, as corporaes medievais e a Igreja Catlica59. At
que os grandes pensadores liberais comearam a transpor essa idia de agncia ao plano
poltico, os recm referidos ficaram basicamente limitados aos chamados direitos civis,
referidos a relaes privadas entre os indivduos. Alm disso, os direitos no foram
estendidos universalmente: entre outros, aos trabalhadores, camponeses e mulheres no
poucos desses direitos lhes foram estendidos mais lentamente e de forma restrita.
Entretanto, os fatos fundamentais para a minha discusso so os seguintes: primeiro, a
atribuio legal de agncia a um nmero crescente de indivduos tem uma grande histria nos
pases pioneiros; segundo, essa atribuio teve elaborao detalhada em diversas doutrinas
filosficas, morais e especialmente legais, antes que os grandes tericos liberais
transpusessem essa idia de agncia ao campo poltico60; terceiro, mais tarde esta mesma
perspectiva inspirou duas grandes constituies modernas: a da Frana e a dos Estados
Unidos. Insiro agora uma proposio:
57A fim de no estender o presente texto, remeto novamente a ODonnell (2000). 58 Sobre o tema ver, especialmente, Hamburguer (1989).59 Ver sobre essas questes o clssico trabalho de Weber (1968).60 Pierre Rosanvallon (1992, p. 111) comenta que antes do surgimento do liberalismo esta perspectiva de la
autonoma de la voluntad ciertamente apareci ya jurdicamente formulada en el derecho civil. Isto, por sua
vez, foi parte de uma srie de mudanas na prpria concepo da moralidade; como observa Schneewing (1998,
p. 27), durante los siglos XVII e XVIII las concepciones de la moralidad entendida como obediencia vinieron
a ser cada vez ms rechazadas por concepciones emergentes de la moralidad entendida como auto-gobierno [...]
centradas en la creencia de que todos los individuos normales son igualmente capaces de vivir juntos en unamoralidad del auto-gobierno.
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9. No Noroeste, a concepo do indivduo como um agente teve, muito antes daextenso universalista da cidadania poltica, um longo processo de elaborao
em diversas doutrinas religiosas, ticas e filosficas. Esta mesma concepo foi
cuidadosamente elaborada e progressivamente implantada, no ritmo da
expanso do capitalismo e do estado moderno, como uma doutrina legal que,
atribuindo direitos subjetivos a um crescente nmero de indivduos, lhes atribuiu,
legal e universalmente, condio de agentes.
Contudo, como muitos comentaram, esta construo de um agente portador de
direitos subjetivos, como omitia as condies reais de seu exerccio, contribuiu para
reproduzir relaes sumamente desiguais, especialmente entre capitalistas e trabalhadores61.
Mas, esta construo continha corolri
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