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A língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano: memória discursiva e
funcionamento do dispositivo1
Enísio Guilhermina Cuamba2
(Universidade Estadual de Maringá - UEM)
Resumo: Moçambique é um país cujo contato linguístico e cultural é bastante marcado pelo
diálogo entre a Língua Portuguesa e as línguas de origem bantu. A partir desse cenário,
pretendemos estabelecer um regime de dizer e de olhar sobre o funcionamento da Língua
Portuguesa nesse contexto multilíngue, que é revestido de contradições das quais destacamos
aquelas vinculadas às políticas linguísticas vistas, comumente, pelos órgãos públicos como um
“problema”, por causa do multilinguismo e das implicações culturais daí resultantes,
nomeadamente, o multiculturalismo, cujas condições de existência enunciativa específicas
demandam pela implementação de ações biopolíticas. Neste simpósio, sob a perspectiva da
Análise do Discurso Franco-Brasileira, definimos como objetivo compreender os regimes de
(in)visibilidade inscritos na materialidade discursiva formada por uma série enunciativa,
constituída por excertos documentais e depoimentos de professores a respeito da convivência
linguística entre o Português e as línguas bantu. Tal procedimento exige o resgate da memória
discursiva por meio da relação língua, história e memória, de tal modo que os enunciados sejam
compreendidos na sua singularidade a partir da correlação com outros enunciados.
Palavras-chave: Língua Portuguesa, memória discursiva, funcionamento do dispositivo.
Résumé: Le Mozambique est un pays dont le contact linguistique et culturel est très marqué
par le dialogue entre la langue portugaise et les langues d'origine bantoue. De ce scénario, nous
avons l'intention de mettre en place un système à dire et de regarder le fonctionnement de la
langue portugaise dans ce contexte multilingue, qui est revêtue de contradictions dont nous
remarquons celles qui ont trait aux politiques linguistiques vues communément par des
organismes gouvernementaux comme un « problème » en raison du multilinguisme et des
implications culturelles qui en résultent, à savoir le multiculturalisme, dont les conditions
énonciatives spécifiques exigent la mise en œuvre d'actions biopolitiques. Dans ce colloque,
sous la perspective de l’analyse du discours franco-brésilienne, on définit comme objectif
comprendre les systèmes d’invisibilité inscrits dans la matérialité discursive formée para une
série énonciative, constituée par des extraits documentaires et des témoignages des professeurs
à propos de la coexistence linguistique entre le portugais et les langues bantoues. Telle
procédure nécessite ne sauvetage de la mémoire de telle sorte que les énonces soient compris
dans leur singularité à partir de la corrélation avec d’autres énoncés.
Mots-clés: langue portugaise, mémoire discursive, fonctionnement du dispositif.
Introdução
1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação – PEC-PG
– Brasil 2 Doutorando em Letras/ Linguística pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Membro do Grupo de
Estudos em Análise do discurso da UEM – GEDUEM/CNPq. E-mail: egcuamba@yahoo.com.br.
O funcionamento da Língua Portuguesa em Moçambique remonta da época colonial.
Período em que os vários grupos linguísticos daquele país tinham contacto entre si e com o
Árabe.
De acordo com a historiografia portuguesa, os colonizadores chegaram a Moçambique
em 1498. Desde essa época a esta parte, o contacto entre o português e as línguas bantu passou
por vários estágios que, de certa maneira, rompem com a perspectiva contínua que a história
global procura impor, afinal, nos termos foucaultianos, “a descontinuidade era o estigma da
dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história”(FOUCAULT,
1986, p. 10).
Diante disso, hoje, tornou-se uma ordem na Análise do Discurso a busca de momentos
em que a aparente continuidade histórica falha criando rupturas onde se dá a irrupção de
singularidades históricas a que chamamos de acontecimentos.
Sob tal direção, o acontecimento discursivo que marca a irrupção de condutas outras,
enquanto evento único, é a proclamação da Independência Nacional em 1975 cujos alicerces
discursivos e não discursivos encontram espaço inicial na adoção da primeira Constituição da
República Popular de Moçambique (em 1990, passou a ser República de Moçambique).
Sabendo que esse instrumento legal define institucionalmente as relações de saber e poder que
a Língua Portuguesa e as línguas bantu desempenham, podemos afirmar que ele é o dispositivo
de segurança, no exercício da biopolítica, como tecnologia da governamentalidade, que devia
reger condutas que privilegiassem o equilíbrio entre as línguas faladas no mesmo território,
através da definição de funções sócias, políticas, econômicas e administrativas igualitárias.
Nesse sentido, colocamos a seguinte indagação: como se estabelecem os regimes do
dizer e do olhar sobre o funcionamento da Língua Portuguesa em contexto multilíngue
moçambicano?
Sob tal delineamento e indagação, o presente artigo pretende compreender como se dão
os regimes de (in)visibilidade inscritos na materialidade discursiva formada por uma série
enunciativa, constituída por excertos documentais e depoimentos de professores a respeito da
convivência linguística entre o português e as línguas bantu.
Apesar do contacto permanente entre a língua portuguesa e as línguas bantu, em
Moçambique, apenas o português assume o estatuto de língua oficial, condicionando, dessa
forma, as relações de saber e poder vinculadas a essas línguas. Por exemplo, o processo de
ensino e aprendizagem usa essa língua como instrumento e objeto de ensino e as demais línguas
destinam-se para contatos restritos.
Esse cenário ocorre num país em que o português é falado pela grande maioria da
população como língua não materna (língua segunda), num ambiente sociolinguístico
caracterizado pelo multilinguismo distribuído em dois tipos de contato linguístico: contato de
línguas e contato bidialectal (variantes da mesma língua). Para Mapasse (2017, p. 241), “a
primeira situação, o reconhecimento dos dois sistemas é claro, porque cada uma das línguas
tem funções e valores distintos na economia linguística da comunidade, enquanto na segunda
situação, a distinção entre as variedades menos clara” especificamente porque no meio urbano
confluem falantes oriundos de vários lugares e etnias que falam um português que comporta
marcas do contato ente si e as línguas bantu.
Perante essa situação de evidente contacto linguístico, o português falado em
Moçambique, vai comportar um conjunto de características outras que o afasta da norma-
padrão, o português europeu, isto é, fala-se, hoje, uma língua portuguesa em transformação
estrutural e lexical.
Este trabalho mostra-se relevante porque ajuda a compreender o funcionamento da
língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano a partir do resgate de elementos já-
ditos ou escritos em outros lugares pois todo o enunciado “tem margens povoadas de outros
enunciados”(FOUCAULT,1986, p. 112), com os quais (co)existe historicamente num
determinado espaço.
Esse retorno a memória discursiva implica a constituição dos sentidos pelo viés da
língua, da história e da memória. Dessa maneira, “o enunciado se delineia em um campo
enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que
lhe abre um futuro eventual, isto é, que o insere na rede da História e, ao mesmo tempo, o
constitui e o determina” (GREGOLIM, 2004, p. 93).
Por essa razão, inscrevemos o nosso estudo num arquivo que compreende,
de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares […]entre a tradição e o
esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos
enunciados substituírem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente
(FOUCAULT, 1986, p. 149-150).
Nessa configuração, o arquivo é o sistema que determina o aparecimento de
acontecimentos singulares, constituídos, neste artigo, pelos recortes dos seguintes documentos:
a Constituição da República de Moçambique (2004); a comunicação de Fernando Ganhão no I
Seminário Nacional de Língua Portuguesa; as obras sobre a história e políticas linguísticas
(GOMÉZ, 1999; LOPES, 2004).
Para a realização do trabalho, adotamos o método arquegenealógico foucaultiano. Esse
método, guia-se pela identificação de acontecimentos por meio de uma história arqueológica
para depois fazer a sua genealogia, isto é,
Se a história arqueológica procura identificar e descrever a singularidade dos
objetos históricos, desfazendo-se das generalidades que correspondem aos
universais antropológicos (como a identidade, a origem, o sujeito, a razão, a
verdade), a genealogia percorre o engendramento de uma determinada
singularidade, acentuando as relações de poder que determinam a sua
constituição, a fim de reparar de que modos estas singularidades modelaram
o presente (FONSECA, 2008, p. 250).
Em linhas gerais, podemos dizer que o método proposto por FOUCAULT visa analisar
o acontecimento discursivo, tratando dos enunciados objetivamente ditos ou escritos, em sua
irrupção de acontecimento, como forma de buscar as condições de possibilidade para a sua
emergência em um determinado momento histórico. Feito isso, o analista do discurso, procura
restituir as condições de surgimento dessa singularidade a partir de seus múltiplos
determinantes como, por exemplo, as relações de força que incidem sobre a vida dos
indivíduos.
Acontecimentalização discursiva e o método arquegenealógico
Tendo em conta o que temos sublinhado até agora, a noção de acontecimento discursivo
é uma das que desempenha um papel central para a Análise do Discurso, uma vez que permite
ao analista descrever os enunciados em sua singularidade e irrupção histórica porque ele “é
sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”
(FOUCAULT, 1986, p.132).
Esse conceito relativamente novo surgiu imbricado à “nova História” (descontinuidade,
ruptura, limiar, limite, transformação, série) que veio impor o afastamento de noções utilizadas
pela história tradicional como continuidade, linearidade, causalidade, soberania do sujeito.
Foucault (1986, p. 28) assevera que
É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita
continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência
sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher o discurso em sua
irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade e dispersão temporal […]
Não remetê-lo à longínqua presença da origem, tratá-lo no jogo de sua
instância.
Dessa forma, a busca de acontecimentos discursivos ou a acontecimentalização consiste
em construir uma rede causal que procura dar conta das singularidades dos enunciados como
resultado de múltiplas relações. Nas palavras do autor, acontecimentalizar é “reencontrar as
conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, etc., que, em
um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade,
necessidade” (FOUCAULT, 2006 apud NAVARRO, 2011, p. 283).
No caso vertente, o percurso aqui apontado não se ajusta a uma pesquisa em história
tradicional. Para a análise que nos propomos, o acontecimento que gera a descontinuidade na
história colonial e, ao mesmo tempo, cria condições de possibilidade para que um conjunto
finito de enunciados tenha sido efetivamente dito ou escrito, em sua singularidade de
acontecimento é a proclamação da Independência Nacional em 1975.
Cada enunciado efetivamente falado ou escrito sobre a colonização e a proclamação da
Independência em Moçambique, enquanto acontecimento discursivo, constitui uma articulação
recíproca entre singularidade e repetição, isto é,
inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou
articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma
existência remanescente no campo da memória, ou na materialidade dos
manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque
é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à
transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas as
situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao
mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a
enunciados que o procedem e o seguem (FOUCAULT; 1986, p. 32, grifos
nossos).
Vale destacar que as condições de emergência dos discursos sobre a colonização e a
proclamação da Independência Nacional em Moçambique estão articulados com outros
enunciados que remetem, não só ao passado, como também ao futuro. Daí ser necessário
estabelecer a descrição dos jogos de relações aí imbricadas.
Identificado o acontecimento discursivo, passaremos a falar sobre o método
arquegenealógico. Considerado o que dissemos anteriormente, o método em alusão permite-
nos buscar um percurso que coloque em evidência a relação língua, história e memória, tendo
como ponto de partida o enunciado enquanto unidade mínima do discurso (FOUCAULT,
1986). Desse modo, A palavra arqueologia que está implicada no método de Foucault (1986),
refere-se a um tipo de investigação que “se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como
se eles estivessem registrados num arquivo” (FOUCAULT, 2006 apud NAVARRO, 2011, p.
284), que corresponde ao sistema de regras que rege o aparecimento de enunciados como
acontecimentos singulares, delimitando a prática discursiva.
Por seu turno, a genealogia serve-se da descrição e da análise dos enunciados como
ferramentas para a compreensão das relações entre o saber e o poder no exercício da
governamentalidade e do disciplinamento dos corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis e
obedientes (VEIGA-NETO, 2014).
Dessa forma, a biopolítica, como tecnologia da governamentalidade, funciona com
controles definidos e concretos de modo a exigir que a vida seja maximizada e gerida pelo
governo. Por exemplo, quando se oficializa o português num país multilíngue, isso é feito de
maneiras que se garanta mais vida para a população. Ao mesmo tempo que a oficialização de
apenas uma língua impõe medidas disciplinares para que cada um dos indivíduos compreenda
“o que é ser e como ser disciplinado” nesse meio (VEIGA-NETO, 2014, p. 71).
A Língua Portuguesa em contexto multilíngue moçambicano: que contacto é esse?
A reflexão que trazemos, neste artigo, enquadra-se no rol de temas pertinentes para a
sociedade moçambicana, mas, por várias razões, tem sido pouco discutido. Falar da Língua
Portuguesa em contexto multilíngue moçambicano exige de nós algum critério, tendo em conta
que esta questão mexe com as identidades dos indivíduos, afinal de contas, Moçambique é um
país multilíngue no qual as comunidades estão expostas num cenário de diglossia no qual
apenas uma língua assume o estatuto dominante e as restantes são “minoritarizadas” através de
mecanismos legais como a Constituição da República (2004) e as demais leis correlatas que
funcionam como dispositivo que regula a biopolítica, isto é, “poder presente em todos os níveis
do corpo social e utilizadas por instituições […]” (FOUCAULT, 1999, p. 132).
Falamos de cenário diglóssico para descrever, segundo JUNG (2013, p. 104),
[…] comunidades multilíngues e ou/ou bidialetais em que o uso das línguas
ou variedades é marcado por uma relação assimétrica. Uma das línguas ou
variedades é considerada dominante, que goza de prestígio, e a instrução
escolar geralmente acontece nessa língua. Portanto, as crianças falantes de
uma variedade local devem participar de práticas escolares na língua
dominante e, sobretudo, aprender e participar de práticas letradas nessa
língua.
No caso específico de Moçambique, a língua dominante é o Português que goza de
prestígio e talvez seja a condição básica de acesso à cidadania e à moçambicanidade. As
restantes línguas de origem bantu funcionam como veiculares e restritas ao domínio familiar e
étnico. Falamos de domínio étnico fazendo referência a “modalidades de interação bem menos
complexas, como a uma mera “forma de interação entre grupos culturais atuando em contextos
sociais comuns” (OLIVEIRA, 2000, p. 8). Em suma, “centramo-nos na língua portuguesa como
língua pátria e não deixamos que as outras línguas ganhem cidadania” (KHOSA, 2010, p. 191).
Diante desse cenário, é importante sublinhar que apesar de termos adotado o português
como língua oficial de Moçambique, existem cerca de vinte e três línguas autóctones e outras
de origem asiática e europeia3, distribuídas pelo território nacional, conforme se ilustra no
quadro (INE4 apud NGUNGA; BAVO, 2011, p. 14):
3As línguas asiáticas(Hindi, Urdu e Gujurati), em Moçambique, são usadas em contexto familiar por descendentes
de indianos que asseguram atividades comerciais em centros urbanos. Há também alguns registros do Árabe que
é comumente usado nas mesquitas para a aprendizagem da leitura do Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos). 4 Instituto Nacional de Estatística.
De acordo com a tabela acima, existem em Moçambique 15.670.424 falantes de pelo
menos uma língua. O Instituto Nacional de Estatística (INE) teve como referência a idade
mínima de 5 anos para considerar um indivíduo como falante de uma língua.
Para além, dessas línguas existem treze grupos étnicos, vinculados intrinsecamente
àquelas línguas nativas, a saber: Swahilis, Macuas-Lomués, Ajauas, Marave, Nhanjas, Sena,
chuabo, chonas, Angonis, tsongas, chopes, bitongos.
As línguas autóctones são usadas não só para a interação entre pessoas da mesma
família e parentes, mas também são um veículo de expressão de identidades étnicas. Daí, a
situação de diglossia que se vive em Moçambique exigir que os agentes da educação e
pesquisadores possam
Compreender o tipo de práticas e relações com a escrita que acontecem nessas
situações representa um desafio para a pesquisa [e para as práticas
pedagógicas de letramento] que deve considerar não apenas as situações
linguísticas nas comunidades envolvidas, mas também suas histórias
particulares de relação com a escrita, em qualquer sistema ou variedade
linguística (ROCKWELL, 2010, p. 101).
Nesse contexto, podemos afirmar que a língua portuguesa está em permanente contato
com as línguas bantu desde a chegada dos portugueses a Moçambique a esta parte. No entanto,
importa-nos sublinhar que
as relações entre a língua portuguesa e as línguas moçambicanas durante o
tempo colonial eram reflexo de relações próprias de colonizador e
colonizado. Com efeito, o colonialismo português nunca reconheceu às
línguas moçambicanas o estatuto de línguas, subtraindo-lhes todos os
predicados susceptíveis de encorajar os moçambicanos a usarem e ensinarem
aos seus filhos como línguas de cultura e de acesso ao conhecimento
(NGUNGA; BAVO, 2011, p. 1, grifos nossos).
Desde a época colonial, as relações de saber e poder que permitem individualizar os
enunciados vinculados ao dispositivo do pacto de segurança (assunto de que falaremos
adentradamente mais adiante) são aquelas que estabelecem o verdadeiro da épocae se
encontram regidas pela biopolítica, enquanto tecnologia de poder, concebida visando promover
a segurança e em cujo ordenamento abarca tudo o que põe em risco a vida da população
(TASSO, 2013).
Nesse caso, o verdadeiro da época continua sendo a omissão do estatuto de línguas de
conhecimento às línguas bantu. Através desse jogo de verdade quer o governo colonial
português quer o governo moçambicano pós-república controlam a população relativamente
ao uso das línguas, no exercício da biopolítica, que é a arte de governar a vida da população
com o intuito de maximizá-la e geri-la. Essa relação entre saber, poder e verdade é o que
sustenta o processo biopolítico de governação da população sempre através do exercício da
memória que permite que o enunciado se delineie em um campo enunciativo onde tem lugar e
status que lhe dão espaço para o diálogo com o passado e, ao mesmo tempo, lhe projetam um
futuro eventual como ocorre entre os enunciados típicos do sistema colonial que mais tarde são
retomados pelo governo moçambicano.
Para encerrar esta seção, podemos dizer que apesar do crescimento das taxas de falantes
do português como língua materna em Moçambique, o português ainda é falado pela maioria
da população como língua segunda num contexto sociolinguístico marcado pelo
multilinguismo. Isto pode ser uma evidência clara de que não há poder sem resistência como
Foucault (2015, p. 18) assevera: “e como onde há poder, há resistência, não existe propriamente
o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a
estrutura social”
Esse contexto marcado sociolinguisticamente pelo multilinguismo gera, na perspectiva
de Mapasse (2017, p. 241), dois tipos de contato linguístico, a saber: contato de línguas e
contato bidialectal. “Na primeira situação, o reconhecimento dos dois sistemas é claro, porque
cada língua tem funções e valores distintos na economia linguística da comunidade, enquanto
na segunda situação, a distinção entre as variedades é menos clara”.
O segundo caso, é que ilustra perfeitamente a resistência, uma vez que, no âmbito do
exercício da biopolítica, o governo oficializou o português europeu como padrão a ser ensinado
nas escolas e usado nas comunicações oficiais. Porém, ninguém usa a norma europeia nas
comunicações oficiais, aliás, “os próprios professores fornecem modelos linguísticos, muitas
vezes, não consistentes em relação à norma que eles dizem ensinar, mas que não dominam,
provavelmente, porque a maior parte deles teve acesso a um imput do português desenvolvido
por falantes não nativos dessa língua” (Op. Cit).
Materialidades e(m) análise: memória discursiva e dispositivo de pacto de segurança
Na dispersão dos objetos constituídos pela série enunciativa “Artigo 10º - A Língua
Portuguesa é língua Oficial em Moçambique” (Constituição da República de Moçambique,
2004, grifos nossos), as práticas discursivas concorrem para estabilizar os regimes de verdade
que estão “circularmente ligado[s] a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos
de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2015, p. 54)
Essa estabilização é assegurada, por um lado, pelos efeitos de memória que resultam
das relações possíveis que os enunciados estabelecem com o passado uma vez que “não há
enunciados que não suponham outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo
de coexistências, efeitos de séries e de sucessão, uma distribuição de funções e
papéis”(FOUCAULT, 1986, p. 114) como ilustram os enunciados abaixo:
[SE1] - Artigo 1°: O ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o
indígena da vida selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência
de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-se mais útil à
sociedade e a si próprio.
[SE2] - Artigo 7°: O ensino primário rudimentar destina-se a civilizar e nacionalizar
os indígenas das colónias, difundindo entre eles a língua e os costumes portugueses
(MEC/GÊS, 1980: p. 24/25 apud GOMÉZ, 1999).
Em [SE1] e [SE2], os elementos grifados, na sua dispersão, estabelecem relações
históricas que se vão projetar para outros domínios (educacional e legislativo) e épocas (pós-
independência). A circulação desses enunciados, que constituem a sua regularidade baseada na
língua portuguesa como o elemento civilizador, sustenta-se por regras históricas de emergência
que configuram o verdadeiro da época à luz do dispositivo do pacto de segurança que preconiza
que o Estado assuma a responsabilidade de organizar e prever um conjunto de mecanismos
capazes de minimizar as ocorrências danosas, controlando os seus efeitos nefastos (FARHI
NETO, 2010).
Por outro lado, a circulação de enunciados que se alinham em feixes de relações que
constituem uma regra ou uma regularidade, deve-se, neste caso particular, a memória
discursiva vista como aquele procedimento que “trabalha para estabelecer relações entre o
acontecimento do presente e outros acontecimentos, aos quais o que está em primeiro plano
acaba por ser filiado” (POSSENTI, 2006, P. 96), o que significa que, a memória ora remete
para o passado, ora remete para o futuro como acontece com os enunciados seguintes:
[SE3] - Artigo 9º - O Estado valoriza as línguas nacionais como património
cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização
crescente como línguas veiculares. Artigo 10º - A Língua Portuguesa é
língua Oficial em Moçambique (Constituição da República de Moçambique,
2004, grifos nossos).
A adoção do português como língua oficial de Moçambique pode funcionar como um
dispositivo que para Agamben (2009) é qualquer coisa que tenha a capacidade de controlar
gestos e condutas dos indivíduos. Aliás, nessa perspectiva, o dispositivo está sempre ligado a
relações de poder, traduzindo-se numa lei.
Os enunciados [SE4] e [SE5], na sua dispersão, constituem a unidade através da
necessidade da imposição da unidade nacional que supostamente só se conseguiria com a
implantação de uma única língua oficial.
[SE4] -A necessidade de combatermos o opressor exigia um combate
intransigente contra o tribalismo e o regionalismo. Foi esta necessidade de
unidade que nos impôs a única língua comum – a que servia para oprimir
– assumisse uma nova dimensão (MACHEL, 1979 apud LOPES, 2012, p.
21).
[SE5] - A decisão de se optar pela língua portuguesa, como língua oficial na
República Popular de Moçambique, foi uma decisão política meditada e
ponderada visando atingir um objectivo - a preservação da unidade
nacional e a integridade do território. A história da apropriação da língua
portuguesa, como factor de unidade e nivelador das diferenças veio desde a
criação da frelimo em 1962 (GANHÃO, 1979 apud LOPES, 2012, p. 21).
Os elementos grifados concorrem para a constituição da regularidade enunciativa com
os restantes enunciados apresentados. Os mesmos itens, permitem constatar que, no exercício
da biopolítica, o governo moçambicano, investido de poderes, adota o Português como língua
oficial numa ação que garantiria que os governados se afastassem de qualquer tipo de incerteza,
risco ou dano. Mas, essa medida colocou e vem colocando em questão a sobrevivência das
línguas veiculares e dos seus falantes pois esses se vêem excluídos do contexto de
desenvolvimento nacional que exige o domínio da língua portuguesa.
Conclusão
O funcionamento da língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano
sustenta-se por mecanismo legais que determinam o estatuto que cada língua assume naquele
território. Esses instrumentos legais funcionam como dispositivos na medida em que são
capazes de controlar gestos e modelar condutas de seres viventes (AGAMBEN, 2009).
A proclamação da Independência Nacional em 1975 é a condição de emergência de
práticas discursivas e não discursivas que se vinculam ao dispositivo do pacto de segurança no
exercício da biopolítica. As práticas discursivas que daí emergem constituem regularidades a
partir de retornos históricos que se vão configurando como regimes de verdade, isto é, a
reaparição de enunciados que na sua singularidade de acontecimento sugerem a adoção do
português como língua oficial como garantia da unidade nacional e territorial. A necessidade
de consolidação permanente da unidade nacional e territorial funciona como o verdadeiro da
época e, por via disso, “é objeto, de várias formas, de imensa difusão e de imenso consumo”
(FOUCAULT, 2015, p. 52).
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