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Fontes orais e disputas pela memória: uma análise a partir das primeiras produções
historiográficas sobre o norte do Paraná
Wander de Lara Proença*
Introdução
A produção de saberes sobre o passado precede ao surgimento do lugar social da
universidade. Esta forma de conhecimento - que difere da história crítica, documentada e
teoricamente fundamentada, no âmbito da academia - é nominada por termos diversos,1 como
por exemplo, produção memorialista ou história tradicional, sendo classificada, de modo
geral, como “não profissional, produzida por intelectuais autodidatas com as mais diversas
formações, mas também vinculados a instituições de ensino ou agremiações tradicionais,
como sociedades e institutos históricos” (MALERBA, 2009, p. 17). Observa-se que a
profissionalização do ofício historiográfico no Brasil é “muito mais tardia” e “ainda
incompleta”, quando comparada, por exemplo, a outros países da América Latina, “já que,
embora contando com historiadores profissionais, a profissão em si ainda não é sequer
reconhecida pelo Estado até hoje”. Em razão disto, “a prevalência de uma história centrada no
Estado, história oficial (quando não oficiosa), apologética das elites governantes (quando não
paroquial e biográfica), foi também regra até avançada a década de 1960”, (IBIDEM, p. 18)
que veicula, valida e, principalmente, legitima os usos do passado.
Assim como ocorre no âmbito da academia, a produção memorialista também possui
suas regras próprias de validação, reconhecimento e controle. “Qualquer imaginário sustenta-
se historicamente na identificação de certos grupos sociais em relação ao sistema simbólico
que representa, feedback sem o qual seria silenciado ou mesmo desapareceria” (ANDRÉ,
2014, p. 171). A exemplo, a monumentalização de murais de fotografias narrando o passado
de uma região, expostos publicamente como semióforos:2
* O presente texto é resultado de parte da pesquisa de pós-doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação
em História da UFRGS, sob supervisão do Dr. Jurandir Malerba (UEL/FTSA). 1 Malerba menciona várias terminologias empregadas para distinguir os chamados “historiadores práticos” dos
“acadêmicos”, como por exemplo: escritores de história, historiadores populares, historiadores leigos
(MALERBA, 2018, p. 129). 2 Termo usado para definir objetos, pessoas ou instituições, colocados em evidência pelos seus significados de
comunicação e produção de sentidos, expostos ao olhar para articular o visível e o invisível, o passado e o
presente. Em Londrina, isto ocorreu coma a fixação de murais em azulejos como monumentos em local público,
por ocasião das celebrações dos 25 anos e do cinquentenário do município, respectivamente em 1959 e 1984. Estes suportes têm como material de exposição fotografias de José Juliani – fotógrafo que atuou
profissionalmente a serviço da propaganda publicitária da Companhia colonizadora do norte paranaense, nas
décadas de 1930 e 1940 (ARRUDA, 2005, p. 1,2,8).
3
[...] a interpretação, ou a aceitação da interpretação contidas naquelas imagens
[...] só foram realizadas daquela forma porque passaram por uma espécie de aval
do sentido coletivo sobre o que aconteceu e o que estava acontecendo. O aval
articula o passado do observador, seu presente e suas expectativas com relação ao
futuro [...](IBIDEM, p. 15).
1 – Narrativa memorialista
Nas décadas que antecedem à presença da academia na região norte paranaense já se
havia elaborado um saber sobre o passado deste contexto, de autoria de profissionais de
diferentes áreas, como jornalistas, geógrafos, cronistas, e publicadas em revistas, jornais ou
encartes comemorativos, “especialmente aquelas produzidas durante as décadas de 1950 e
1960”.3 O historiador Edson Leme comenta:
Desde os relatos desses primeiros colonizadores, foi se construindo, por meio de
crônicas, álbuns e demais publicações comemorativas e alusivas à colonização, uma história que se pretende oficial, a qual se tornou hegemônica por muitas
décadas consagrando como mitos fundadores de Londrina, a CTNP e os bravos
pioneiros (LEME, 2013, p. 230).
Estas narrativas sobre o passado também foram em grande medida matizadas pela
legitimação de interesses políticos, vinculados ao poder de mando de elites locais:
As publicações, tanto particulares quanto aquelas produzidas pelo poder público
municipal, crônicas, livros-documentários e notadamente os álbuns comemorativos,
elegeram, para serem os protagonistas dessa história, apenas os representantes dos
grupos hegemônicos da sociedade, tornados vultos e nomes tutelares da história
local/regional. Os segmentos populares, quando apareciam, ocupavam um espaço
discreto de coadjuvantes anônimos, figurantes mudos da grande epopeia pioneira
(IBIDEM, p. 84).
3 Dentre os álbuns e publicações comemorativas, que reforçam o ideário de uma história tradicional ou oficial,
destacam-se: Londrina: 25 anos de sua História, de autoria de Humberto Puigari Coutinho, diretor do jornal
Paraná Norte, periódico financiado e porta-voz da Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), que buscou
reafirmar a grandiosidade de Londrina a partir da história de sua colonização; o livro Londrina no seu Jubileu de
Prata: documentário histórico, dos jornalistas Gustavo Branco e Fideli Mioni, que contou com o apoio para
divulgação do Jornal Folha de Londrina, principal jornal da cidade; Gustavo Branco era proprietário da revista
Realizações Brasileiras e tinha prestígio junto às elites cafeeiras da cidade. Ver LEME, Edson José Holtz. O
teatro da memória: o Museu Histórico de Londrina - 1959-2000. 2013. 276 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia Júlio de Mesquita Filho, Ciências e Letras de
Assis, 2013. Outras publicações: ALMEIDA, G. H.. Guia Geral de Londrina. 1945; BARROSO, V.. O famoso
norte do Paraná: terra onde se anda sobre dinheiro, 1956; BRANCO, G. & ANASTÁCIO, A. Construtores do
progresso, 1969; CARVALHO, B. Londrina Monumental: milagre do gênio britânico e do caboclo vencendo as
forças brutas da natureza, 1978; COMPANHIA Melhoramentos Norte do Paraná. Colonização e desenvolvimento do norte do Paraná: publicação comemorativa do cinquentenário da Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná, 1975; MASCHIO, E. Documentário de Londrina, 1977; ZORTÉA, A. J.
Londrina através dos tempos e crônicas da vida: edição comemorativa ao 40º aniversário, 1975.
4
Estes bens simbólicos, produzidos pelo memorialismo, são em princípio controlados
ou resguardados pelos agentes produtores:
Entre os signos de poder e de prestígio estão os elementos da história, as narrativas
que enaltecem os feitos dos grandes homens do passado, os trabalhos e a luta em
torno da memória. [...] Nesse sentido, tornar-se os “senhores da memória”, ou estar
mais perto da fundação e dos fundadores, é um recurso importante na constituição de
poder e legitimidade (ARRUDA, 2005, p. 09).
Em balanço historiográfico sobre estas produções, a historiadora Sonia Adum4 aponta
como características e perspectivas centradas em um “discurso de felicidade”. Produzidos
entre as décadas de 1930 e 1960, estes textos “apesar da diversidade de gênero, tema e estilo,
podem ser caracterizados como de ‘exaltação’” (ADUM, 2008, p. 04). E comenta: “Na
perspectiva dessas obras, o norte do Paraná é a Terra da Promissão, o Eldorado, a nova Canaã,
o paraíso prometido da fertilidade, da produção agrícola abundante, das oportunidades iguais
de enriquecimento para todos aqueles que quisessem trabalhar e prosperar”. Acrescenta que
“essas análises, não raro, trazem no bojo a ideia de uma ocupação e construção pacíficas do
território, onde o capital e seus agentes foram, naturalmente, preenchendo os espaços, como
se estes estivessem ansiando e esperando por aqueles” (IBIDEM, p. 05).
A formação mais tradicional, em termos historiográficos, dos poucos historiadores
docentes - aliada ao número de profissionais não graduados em História -, influenciou na
elaboração do conceito de museu e de arquivo de História, que estavam sendo criados.5 Essa
perspectiva tradicional se refletiu na coleta de objetos e documentos textuais considerados de
“valor histórico”, com ênfase no ufanismo colonizador da região:
Visando a formação do acervo, os alunos do curso de História eram incentivados a
buscar doações de peças e documentos em Londrina e nas suas cidades de origem e
recebiam notas por este trabalho. Vários docentes do Departamento passaram a direcionar suas disciplinas, com o intuito de transformar em atividades acadêmicas
esse processo de coleta de documentos e peças. Essa atividade tinha como objetivo
abastecer o futuro museu e arquivo de acervos. A perspectiva adotada direcionava
este processo de pesquisa e de coleta para questões relacionadas aos colonizadores
da região (IBIDEM, p. 128).
2 – Narrativas acadêmicas e uso de fontes orais
O cenário de transformação da historiografia brasileira está diretamente relacionado à
sua configuração numa disciplina acadêmica, institucionalizada dentro de um sistema
universitário (MALERBA, 2018, p. 57); mas, de modo decisivo, “toda a renovação da história
no Brasil desde o ano 1970 foi pautada na consolidação dos cursos de pós-graduação,
4 Professora aposentada do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). 5 Idealizados no final dos anos 1960, o Museu e O Arquivo de História (AH) foram oficialmente organizados no
início dos anos 1970, com a criação da Universidade Estadual de Londrina - UEL.
5
efetivada de fato a partir dos anos 80” (IBIDEM, p. 111). Novas histórias, produzidas na
academia, a partir do final dos anos 1980 representam “uma virada” no campo historiográfico,
quando “campos novos passaram a ser explorados” (IBIDEM, p. 13). Estas produções, pela
exploração de territórios do conhecimento até então ignorados e silenciados, provocaram
significativas mudanças nas práticas teórico-metodológicas vigentes à ocasião, marcando um
revisionismo da historiografia estabelecida no campo.
Configura-se como uma nova tendência a produção “sistemática de pesquisa
monográfica com ampla base empírica dentro dos novos programas de pós-graduação”, com
ênfase no temário regional. Avaliações e balanços historiográficos sobre o período
demonstram as pesquisas em “história regional” em ordem primeira dentre “os enfoques
metodológicos mais recorrentes nos anos 1980” (MALERBA, 2018, p. 112). Essa produção
[...] corroia os alicerces do padrão até então predominante, de formulações
explicativas lógicas e históricas típicas da historiografia das décadas anteriores.
[...] As formulações historiográficas clássicas passaram a ser sistemática e
convincentemente desafiadas na nova produção monográfica com base em
relevantes estudos empíricos de recorte regional (IBIDEM, p. 58.
A abordagem com enfoque regional recebe influências de três elementos
convergentes. Primeiramente, das novas perspectivas conceituais em relação ao que se
entende por região. No final da década de 1980, e mais fortemente nos anos de 1990, pela
expansão da história da cultura, os estudos do simbólico e das representações fizeram com
que o fenômeno região também fosse analisado por esta dimensão, definido não mais por
critérios objetivos ou “naturais”. Principalmente pelas contribuições de Pierre Bourdieu,
passou-se a considerar que as ordens de discursos que classificam ou explicitam identidades e
especificidades de um determinado espaço nomeado de região, incidem no “poder simbólico”
ou no “campo da luta simbólica” (BOURDIEU, 1989, p. 113). Ou seja, era preciso tomar as
narrativas sobre o passado regional como um discurso que participava da “luta de
representações”, travada entre as próprias disciplinas acadêmicas, pela fixação do que seria o
objeto regional; pelas disputas entre os discursos memorialistas sobre o passado da região e a
fala revestida do “poder simbólico” da ciência na figura do historiador acadêmico; e pelas
tensões internas da própria disciplina de História quanto ao posicionamento em relação ao
discurso tradicional nas regiões em que se inserem as universidades, no sentido de validar,
romper ou revisar criticamente esse capital já estabelecido.6
6 São exemplos destas perspectivas: PEREIRA, Luís Fernando Lopes. Paranismo - cultura e imaginário no
Paraná da I República. 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
1996; SZESZ, Christiane Marques. A invenção do Paraná: o discurso regional e a definição das fronteiras
6
Um dos elementos que contribuíram diretamente para isto se refere às possibilidades
de trabalho com as fontes orais e sua importância para abordagens de temporalidades
recentes. Arias Neto comenta que ao trabalhar com objeto regional, em temporalidade recente,
“percebe-se que muitas coisas não estão nas fontes escritas”:
Daí o papel das fontes orais na maneira de se abordar o objeto: a riqueza dos
depoimentos de personagens que vivenciaram esse passado, de quem é parte deste
passado. Usei os depoimentos orais nas linhas de trabalho, como diretrizes que serão preenchidas com outra documentação, as fontes escritas. Aquilo que os
“pioneiros” me disseram apontava o caminho a ser trilhado, a ser problematizado
(ARIAS NETO, 2019).
Sonia Adum também ressalta que
A nova complexidade do campo histórico estendeu-se, também, à revalorização da
oralidade, através do depoimento de testemunhos vivos, agora não apenas focados
nos “grandes acontecimentos” políticos e sociais, mas fundamentalmente, no cotidiano de atores de todas as camadas sociais (ADUM, 2008, p. 13).
As novas narrativas advindas com estas mudanças paradigmáticas, em termos
conceituais e metodológicos, destacam a visão sobre “o papel desempenhado pelos indivíduos
como sujeitos de sua história”, tendo contribuído para esse protagonismo a abordagem com
“uso da redução de escala” (MALERBA, 2018, p. 58,59). Malerba observa que “a entrada de
novos personagens e temática na agenda dos investigadores foi um dos efeitos de 1968 sobre
a historiografia ocidental”, e que “sob a égide da virada cultural, a historiografia ocidental e,
dentro dela, com certo delay, a brasileira, se transmutou” (IBIDEM, p. 63). Começaram então
a surgir estudos sobre os “excluídos” em geral; o olhar etnológico descobria o “outro”.
No caso do norte do Paraná, as novas narrativas, em contrapartida ao “discurso de
felicidade”, constatam a violência cotidiana visibilizada na luta do dia-a-dia dos grupos
marginalizados - como jogadores, prostitutas, cáftens, ladrões, vagabundos -, que apareciam
retratados nas páginas policiais dos jornais. “Tais abordagens propiciaram a presença, no
cenário dessa história, de outros personagens que, já bem cedo, fizeram sua estreia,
desnudando o outro lado da ‘civilização’”.7 A dissertação em História, de Antonio Paulo
Benatti,8 produzida em 1996, sobre a prostituição local,9 colocou em xeque o “ideário de uma
cidade higiênica, ordeira e disciplinada” (ADUM, 2008, p. 20) ao analisar as diferentes
cartográficas – 1889-1920. 1995. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 1995. 7 Adum comenta que um pouco de cada um desses dois primeiros gêneros reaparecerá nas histórias produzidas
posteriormente. “Os da primeira categoria, de ‘exaltação’, voltarão naquelas que mostram a vitalidade do
povoamento e o progresso que se instaura; os da segunda, ‘marginal’, naquelas histórias que farão emergir os
segmentos populares, que deixarão de ocupar o espaço discreto de coadjuvantes para se transformarem nos personagens centrais dos relatos” (ADUM, 2008, p. 8, 9). 8 Atualmente, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa/ PR (UEPG). 9 Londrina foi considerada, nos anos 1940 e 1950, uma das maiores aventuras prostitucionais do país.
7
representações entre boemia e marginalidade, descortinando as relações tensas entre grupos
hegemônicos e marginais: “Na época, busquei resgatar a presença dessas camadas populares
em Londrina e região”, e acrescenta:
Já na graduação, tive participação em trabalhos de PIBIC, dedicando tempo ao
levantamento e leitura de fontes, pelo prisma de um marxismo mais heterodoxo. Fui
descobrindo que o progresso produz civilização, mas também barbárie, no mesmo
processo dialético. Nas páginas dos jornais, centro e margem estão paralelamente
publicados nas colunas sociais e policiais (BENATTI, 2016).
3 – Revisionismo no campo de saber sobre o passado
Os novos trabalhos trouxeram elementos de contestação às produções feitas dentro dos
“cânones” oficialmente estabelecidos. As narrativas memorialistas, ou mesmo acadêmicas,
foram submetidas a uma leitura crítica. Tal revisionismo resultou no enfoque de novos
personagens, desconstruindo determinadas “verdades” até então intocadas e sedimentadas,
questionando, inclusive, lugares de memória que serviam como suporte material das
representações regionais.
Em 1989, Nelson Tomazi produziu uma dissertação de mestrado em História em que
problematizou o discurso mítico sobre a Companhia colonizadora da região norte paranaense:
o discurso triunfalista da Companhia de Terras ocultou outras formas ilícitas de
limpeza da área que foi colonizada. O silêncio em relação ao destino dos indígenas
e posseiros na região pode ser comprovado por meio de depoimentos e até mesmo
nas entrelinhas dos discursos da CTNP (TOMAZI, 2012).
Sua investigação constatou que “o mito da Companhia é estruturado por quatro
elementos fundamentais”:
Primeiro, sua atuação trouxe o progresso e a civilização para o norte do Paraná;
segundo, embora seja privada, sua atividade é considerada de interesse público;
terceiro, sua atuação foi possível devido aos empreendedores: os pioneiros; e,
finalmente, sua ação é exemplo pioneiro de reforma agrária (IBIDEM).
E conclui: “Os quatro elementos tinham a função de ocultar o verdadeiro objetivo da
ação da Companhia: a obtenção de lucros de forma mais rápida possível” (IBIDEM).
Sonia Adum destaca a relação de sua dissertação com as narrativas estabelecidas: “Eu
já fazia uma leitura crítica dessa historiografia, perguntando de onde ela emerge? de onde vem
esta visão?”.10 Analisou e questionou o discurso de felicidade implícito nas publicações
10 A autora também comenta sobre a relação entre seu objeto de pesquisa e trajetória pessoal: “O objeto está
ligado à minha história de vida. Vivi minha infância no centro de Londrina, região onde se observava o progresso e a riqueza de famílias economicamente bem sucedidas. No entorno, porém, circulavam e vivam
pessoas envolvidas com a prostituição, a violência, alvos da ação policial. Situava-se, naquele local, por
exemplo, a Pensão Colúmbia, que se tornou referência da prostituição em Londrina. Minha infância foi no local
8
celebrativas, relacionadas ao processo de ocupação da cidade e região, o qual omitia e
silenciava outros personagens.11 Demonstrou a violência cotidiana visibilizada na luta do dia-
a-dia dos grupos marginalizados - como jogadores, prostitutas, cáftens, ladrões, vagabundos -,
que apareciam retratados nas páginas policiais dos jornais:
a pesquisa possibilitou a presença, no cenário dessa história, de outros personagens
que, já bem cedo, fizeram sua estreia, desnudando o outro lado da ‘civilização’...
histórias que farão emergir os segmentos populares, que deixarão de ocupar o espaço discreto de coadjuvantes para se transformarem nos personagens centrais
dos relatos (ADUM, 2014).
A dissertação de mestrado de Arias Neto trabalha com a perspectiva de uma nova
história política, empregando, por exemplo, o conceito de representação,12 pelo qual se
articula o político, o simbólico e o imaginário. Em um olhar crítico, sua pesquisa
contextualizou algumas das representações sobre a cidade de Londrina em fases distintas de
seu desenvolvimento, como Eldorado e Terra da Promissão, a partir de mecanismos
construídos para reproduzir esse ideário:
A persistência na crônica histórica da identificação entre a CTNP e o Norte do
Paraná revela a força das imagens produzidas nos anos 1930. A CTNP não
procurou conquistar apenas o monopólio político e econômico. Todas as
construções ideológicas expressas pelos jogos de identificações, que se encontram
na formulação das imagens de Terra da Promissão, revelam que a sociedade
capitalista busca também o monopólio de “corações e mentes”, ou seja, a sua
legitimação social (ARIAS NETO, 2008, p. 45).
E, posteriormente, quando a crise econômica que se abatia sobre a produção do café,
documentos, crônicas, símbolos, publicações, monumentos, imagens, serviram para
construir lugares de memória. Essa produção de símbolos e representações
permitiu àqueles homens, das décadas de 1950 e 1960, forjarem a própria
identidade a partir de um elo simbólico com a história da cidade (IBIDEM, p. 155).
Benatti, em sua pesquisa com recorte temporal de 1930 a 1970, analisou os territórios
e personagens da prostituição da cidade de Londrina no auge da cafeicultura, articulando as
relações entre as margens e o centro. Na bibliografia que utiliza, estabelece um diálogo com a
sociologia, a antropologia, a literatura e a geografia. Sobre isto, comenta: “as discussões
teóricas vinham das aulas, especialmente o conceito de imaginário, e um pouco sobre
do encontro do progresso, do comércio e a prostituição. Foi esse entorno que me fez enquanto pesquisadora, que
me despertou para o tema da história sobre em perspectiva crítica e revisionista em relação à historiografia
apologética sobre Londrina e a região Norte.” (ADUM, 2014). 11 Dentre as diversas fontes, utilizadas pela autora, visando dar voz a estes excluídos da memória oficial, “estava
o acervo de autos-criminais do Fórum da cidade, onde ficaram registrados os conflitos e o sofrimento de
personagens que não tiveram espaço nas colunas sociais dos jornais” (LEME, 2013, p. 117). 12 Intitulada O Eldorado: Londrina e o Norte do Paraná (1930-1975); dissertação orientada por Maria de Lourdes
Monaco Janotti. Quando publicada em livro, em 1998, a dissertação recebeu como título O Eldorado:
representações da política em Londrina (1930-1975).
9
representação” (BENATTI, 2016). Partindo da percepção de ser a história das margens
fragmentada, uma vez que os indícios sobre o assunto são deixados geralmente por aqueles
que detinham o monopólio do discurso, utilizou como fontes textos jornalísticos, literatura
local e fontes orais. Desse modo, buscou
uma combinação heterogênea com diferentes tipos de fontes, inovando em relação à
proposta anterior do uso de um único tipo de fonte: a literatura, não como um mero
documento; a história oral, que era uma novidade e que abriu um flanco de
aproximação com a antropologia, que é o trabalho de campo, coleta de dados; no
meu caso, um passado recente (IBIDEM).
Quanto ao memorialismo, homogêneo e linear, construído a partir da década de 1940
sobre a região, sua problematização implicou em embate simbólico pelos bens do campo
quanto ao controle do passado:
O revisionismo historiográfico gerou, na região, certa reação memorialista.
Embora a circulação desses trabalhos não seja tão difundida entre o público em
geral, sendo conhecida, sobretudo, por leitores acadêmicos ligados às ciências
humanas, sua elaboração produziu certo incômodo em relação à memória oficial. O
surgimento, por exemplo, de grupos compostos de pioneiros e/ou descendentes
reivindicando reescrever a ‘verdadeira história’ de Londrina e do norte do Paraná,
como tem ocorrido nos últimos anos, indica essa reação (ANDRÉ, 2014, p. 77).13
Tomazi destaca estes conflitos, ao falar das repercussões de sua pesquisa:
No mestrado, houve reação e crítica daqueles que cultuavam a memória da
Companhia de terras, como responsável pelo desenvolvimento e progresso da região.
Minha dissertação criou uma repercussão, que chegou até nos jornais: pessoas enviavam comentários à Folha de Londrina, em que insinuavam: “onde já se viu
questionar a Companhia, essa coisa maravilhosa que tanto bem fez pela região?”
(TOMAZI, 2012).
Considerações finais
Nas disputas pelos bens simbólicos, as críticas e perspectivas revisionistas enfrentaram
resistências e não foram recepcionadas em determinados lugares onde a memória oficial se
viu ameaçada; mas o campo também incorporou as mudanças. Estas resistências e
transformações se visibilizam de dois modos: no contexto mais amplo do memorialismo e no
ambiente acadêmico da universidade. Em relação ao primeiro aspecto, cita-se o exemplo do
Museu Histórico da cidade de Londrina. Simbolizando um território de conflitos de memórias
e ausência de diferentes vozes, enquanto órgão oficial da universidade, aquele espaço
13 O autor cita como outro exemplo o fato de que “nos últimos anos a quantidade de produções memorialistas
cresceu de modo visível. As livrarias de Londrina possuem seções específicas sobre a história de Londrina e/ou
Paraná, que comportam obras enfocando o passado da região de forma apologética e idealizada”. Ibidem.
10
representa as disputas pelo passado como um bem valorativo, sob a pretensão de que controlar
o passado pode implicar também no controle do presente:
Esta visão da história local, consagrada nas exposições do museu, ganhou, em
meados da década de 1990, um importante reforço para sua manutenção, com a
criação de uma associação de amigos. A Associação Sociedade de Amigos do Museu
(ASAM), formada por pessoas, em sua maioria, pertencentes às chamadas elites
locais e identificadas com a ideologia do pioneirismo, além do apoio financeiro ao museu, tornou-se uma forte aliada dos diretores identificados a esta narrativa
tradicional (LEME, 2016, p. 24).
Conforme Tomazi, “o Museu representa a continuidade da visão tradicional; a crítica
não foi ali incorporada. Continua sendo um altar de culto à memória dos vencedores, dos que
promoveram a ‘civilização e o progresso’ no norte paranaense” (TOMAZI, 2012). Ainda é
notória ali, por exemplo, a ausência representacional da memória de indígenas,
afrodescendentes, trabalhadores rurais posseiros e inúmeros outros personagens que marcam a
história da região em estudo.
Mas também houve sinais de visibilidade das novas abordagens, como demonstrado,
por exemplo, em relação ao Memorial do Pioneiro.14 Não obstante as controvérsias do título,
o monumento trouxe um novo olhar, mais crítico, com relação à história da cidade. Um dos
totens presta homenagem aos primeiros habitantes da região, os povos indígenas. Apresenta
também fragmentos de narrativas do povo kaingang, único grupo remanescente nos dias
atuais:
A inserção desses personagens, por décadas ocultados pela narrativa tradicional,
colocou na berlinda o então consensual mito do vazio demográfico, reiteradamente
sedimentado por meio de publicações comemorativas. Mito este que sustentava a
narrativa tradicional, a qual tinha na chegada da primeira caravana da CTNP o marco zero da cronologia dita oficial da história londrinense (IBIDEM, p. 114, 115).
Para Sonia Adum, o Memorial repercute ou reflete as perspectivas conceituais das
novas abordagens historiográficas:
Apesar de o Memorial recolocar o “mito de origem”, tão comum nas representações
acerca da cidade de Londrina, pode-se perceber, através da sua construção,
significativas mudanças no conceito, ocasionadas por revisões da memória e da
história, tanto no âmbito local e regional, quanto no nacional e internacional. [...] As
revisões aconteceram no sentido de uma inversão que coloca no centro das análises
as “memórias subterrâneas” (ADUM, 2009, p. 14).
Quanto ao âmbito mais específico da academia, destacam-se ainda as influências desta
historiografia revisionista por meio das novas produções da universidade, UEL, em seus
programas de pós-graduação, nas quais as dissertações, ora citadas, passaram a ser referência
14 Inaugurado em 2007, com 17 totens enfileirados verticalmente em uma travessa na área central da cidade. No
primeiro e último há uma placa de apresentação do Memorial. Nos demais 15 totens, apresentam-se placas
contendo as homenagens aos diversos personagens. Ibidem, p. 109.
11
de estudo e interpretação sobre a região.15 Exemplifica isto a existência como uma das áreas
denominada História e patrimônio, em nível de especialização,16 que apresenta em sua
proposta um olhar fundamentado nestes novos enfoques conceituais e metodológicos sobre o
temário regional.17
Referências:
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Londrina-PR: conflitos políticos e socioambientais em um território de diversidade (1975-2009). Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. FERNANDES, Priscila Martins.
Identidade e memória de imigrantes japoneses e descendentes em Londrina (1930-1970). 2010. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2010. KIMURA, Rosangela. Políticas
restritivas aos japoneses no Estado do Paraná: 1930-1950 (de cores proibidas ao perigo amarelo). 2006.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2006. NOVAK, Eder da
Silva. Tekoha e Emã: a luta das populações indígenas por seus territórios e a política indigenista no Paraná da
Primeira República - 1889 a 1930. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de
Maringá, Maringá, 2006. 16 Especialização em História, na UEL. 17 Também, na reformulação recente da matriz curricular do curso de História da UEL, inseriram-se disciplinas
com ementário que contemplam estas perspectivas conceituais e metodológicas sobre os estudos regionais.
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MALERBA, Jurandir. Notas à margem. Teoria e crítica historiográfica. Serra - ES: Editora
Milfontes, 2018.
______. A história na América Latina. Ensaio de crítica historiográfica. Rio de Janeiro: FGV,
2009.
TOMAZI, Nelson Dácio. Certeza de lucro e direito de propriedade: o mito da Companhia de
Terras Norte do Paraná. 1989. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual
Paulista, Assis, 1989.
Fontes orais:
ADUM, Sonia Sperandio Lopes. Entrevista concedida a Wander de Lara de Proença e Gilmar
Arruda. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2014. Gravação em
áudio.
ARIAS NETO, José Miguel. Entrevista concedida a Gilmar Arruda Wander de Lara de
Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2019. Gravação
em áudio.
BENATTI, Antonio Paulo. Entrevista concedida a Gilmar Arruda e Wander de Lara de
Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2016. Gravação
em áudio.
TOMAZI, Nelson Dácio. Entrevista concedida a Gilmar Arruda e Wander de Lara de
Proença. Projeto de pesquisa: A historiografia no Paraná. Londrina, UEL, 2012. Gravação
em áudio.
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