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Sonhos Lúcidos FLORINDA DONNER‐GRAU
“Para todos aqueles que ensonham sonhos de feiticeiros. E para aqueles que os ensonharam comigo.”
PREFÁCIO
Florinda Donner é uma discípula de Don Juan Matus, um mestre bruxo do
estado de Sonora, México e, por mais de vinte anos, uma companheira minha nesta aprendizagem. Devido a seus talentos naturais, Don Juan e duas de suas companheiras feiticeiras,
Florinda
Grau
e Zuleica
Abelar,
deram
a Florinda
Donner
uma
instrução
e
cuidados muito especiais. Entre os três a treinaram como “ensonhadora” e a levaram a
desenvolver sua “atenção de ensonho” a um grau de controle extraordinário. De acordo com os ensinamentos de Don Juan Matus, os feiticeiros do antigo
México praticavam duas artes: a arte de espreitar e a arte de ensonhar. Praticar uma
ou outra arte estava decretado pela atitude inata de cada praticante da feitiçaria. Ensonhadores eram aqueles que possuíam a habilidade de fixar o que os bruxos chamam de “atenção de ensonhos”, um aspecto especial da consciência, nos elementos dos sonhos normais.
Chamavam espreitadores a aqueles que possuíam uma aptidão inata conhecida
como a “atenção
de
espreita”,
outro
estado
especial
da
consciência,
que
permite
encontrar os elementos chave de qualquer situação no mundo cotidiano e fixar essa
dita atenção neles, a fim de alterá‐los ou de ajudá‐los a permanecer em seu curso. Através de seus ensinamentos, Don Juan Matus sempre deixou muito claro que
as idéias dos bruxos da antiguidade ainda permanecem em vigência hoje em dia, e que
os bruxos modernos sempre se reúnem nesses dois grupos tradicionais. Para tanto, seu esforço como mestre foi inculcar em seus discípulos as idéias e práticas dos bruxos da antiguidade por meio de um rigoroso treinamento e uma disciplina férrea.
A idéia dos bruxos é que, ao fazer com que a atenção de ensonhos se fixe nos elementos dos sonhos normais, estes sonhos se transformam de imediato em
ensonhos. Para
eles,
os
ensonhos
são
estados
únicos
da
consciência;
algo
como
comportas abertas até outros mundos reais, porém alheios à mente racional do
homem moderno. Na primeira vez que Don Juan me falou da arte de ensonhar, eu lhe
perguntei: _Você quer dizer, Don Juan, que um feiticeiro toma a seus sonhos como se
fossem uma realidade? _Um feiticeiro não toma nada como se fosse outra coisa – contestou. –Os
sonhos são sonhos. Os ensonhos não são algo que se pode tomar como a realidade: os ensonhos são uma realidade a parte.
_Como é tudo isso? Me explique.
_Você tem
que
entender
que
um
bruxo
não
é um
idiota
nem
um
transtornado
mental. Um bruxo não tem nem o tempo nem a disposição para enganar a si mesmo,
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ou para enganar a ninguém, e menos ainda para dar um passo em falso. O que
perderia fazendo isso é demasiado grande. Perderia sua ordem vital, a qual leva uma vida inteira para se aperfeiçoar. Um feiticeiro não vai desperdiçar algo que vale mais que sua vida tomando uma coisa por outra. Os ensonhos são algo real para um bruxo
porque neles ele pode atuar deliberadamente; pode escolher dentro de uma variedade
de possibilidades
àquelas
que
sejam
as
mais
adequadas
para
levá
‐lo
aonde
ele
necessite ir. _Então você quer dizer que os ensonhos são tão reais como o que estamos
fazendo agora? _Se prefere comparações, lhe direi que os ensonhos são talvez mais reais. Neles
a pessoa tem poder para mudar a natureza das coisas, ou para mudar o curso dos eventos. Mas tudo isso não é o importante.
_O que é então o importante, Don Juan? _O jogo da percepção. Ensonhar ou espreitar significa ampliar o campo do que
se pode perceber a um ponto inconcebível para a mente.
Na opinião
dos
bruxos,
todos
nós
em
geral
possuímos
dons
naturais
de
ensonhadores ou espreitadores, e a muitos de nós nos resulta muito fácil ganhar o
controle da atenção de ensonhos ou o da atenção de espreita, e o fazemos de uma maneira tão hábil e natural que na maioria das vezes nem nos damos conta de o haver realizado. Um exemplo disto é a história do treinamento de Florinda Donner, que
precisou de anos inteiros de agonizante trabalho, não para ganhar o controle de sua
atenção de ensonho, e sim para clarear seus ganhos como ensonhadora e integrá‐los ao pensamento linear de nossa civilização.
Certa vez foi perguntado a Florinda Donner qual era a razão pela qual escreveu
este livro, e ela respondeu que lhe era indispensável contar suas experiências no
processo de
enfrentar
e desenvolver
a atenção
de
ensonho
a fim
de
tentar,
intrigar
ou
incitar, pelo menos intelectualmente, a aqueles que se interessem em levar a sério as afirmações de Don Juan Matus acerca das ilimitadas possibilidades da percepção. Don
Juan acreditava que no mundo inteiro não existe, nem talvez já tenha existido, outro
sistema, exceto o dos bruxos do antigo México, que conceda à percepção seu
merecido valor pragmático.
CARLOS CASTANEDA
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NOTA DA AUTORA
Meu primeiro contato com o mundo dos feiticeiros não foi algo planejado ou
buscado por mim, ou melhor, foi um evento fortuito. Conheci a um grupo de pessoas no norte do México em julho de 1970, que eram os fiéis discípulos da tradição
feiticeira dos
índios
do
México
pré
‐colombiano.
Aquele primeiro encontro teve em mim um poderoso efeito; introduziu‐me em
outro mundo que coexiste com o nosso. Há vinte anos estou comprometida com esse
mundo, e esta é a crônica de como começou meu compromisso e de como ele foi estimulado e dirigido pelos feiticeiros responsáveis pelo meu ingresso nele.
A pessoa mais proeminente entre eles foi uma mulher chamada Florinda
Matus. Foi minha mentora e minha guia. Foi também quem me deu seu nome —
Florinda — como um presente de amor e poder. Chamá‐los feiticeiros não é escolha minha. Bruxos e bruxas, ou seja, feiticeiros
e feiticeiras, são os termos que eles mesmos usam para designarem‐se a si mesmos.
Sempre me
incomodou
a conotação
negativa
dessas
palavras,
mas
os
próprios
feiticeiros me tranqüilizaram de uma vez por todas, explicando que o que se denomina feitiçaria é algo bastante abstrato: a habilidade que algumas pessoas desenvolvem
para expandir os limites de sua percepção normal. A qualidade abstrata da feitiçaria, então, anula automaticamente qualquer conotação positiva ou negativa dos termos usados para descrever àqueles que a praticam.
Expandir os limites da percepção normal é um conceito que surge da crença dos feiticeiros de que nossas opções na vida são limitadas devido ao fato de estarem
definidas pela ordem social. Os feiticeiros crêem que a ordem social cria nossa lista de
opções, mas que nós fazemos o resto; ao aceitar somente essas opções limitamos
nossas quase
ilimitadas
possibilidades.
Por sorte estas limitações, de acordo com os feiticeiros, são aplicáveis somente ao nosso lado social e não ao outro, praticamente inacessível, que não cai dentro do
domínio da percepção comum. Para tanto, seu principal esforço tende a revelar esse
lado. Eles conseguem isso quebrando a débil e, contudo, resistente carapaça das suposições humanas com respeito ao que somos e do que somos capazes de ser.
Os feiticeiros aceitam que em nosso mundo dos afazeres diários há quem prove
o desconhecido em busca de opções diferentes da realidade, mas argumentam que, por desgraça, tais buscas são essencialmente de natureza mental. Nunca nos abastecem da energia necessária para mudar nosso modo de ser. Sem energia, novos
pensamentos e novas
idéias
quase
nunca
produzem
mudanças
em
nós.
Algo que aprendi no mundo dos feiticeiros é que, sem retirar‐se do mundo e
sem avariarem‐se no processo, eles conseguem realizar a magnífica tarefa de romper o
pacto que tem definido a realidade.
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CAPÍTULO UM
Respondendo a um impulso, após assistir ao batismo da filha de uma amiga na cidade de Nogales, Arizona, decidi cruzar a fronteira e entrar no México. Quando já
saía da casa de minha amiga, uma de suas hóspedes, uma mulher chamada Delia
Flores, me
pediu
que
a levasse
até
Hermosillo.
Era uma mulher morena, talvez de uns quarenta e tantos anos, de estatura média e físico corpulento. Tinha um cabelo negro e liso, recolhido em uma grossa trança, e seus olhos escuros e brilhantes realçavam um rosto redondo, astuto, e sem
embargo levemente juvenil. Segura de que se tratava de uma mexicana nascida no
Arizona, lhe perguntei se necessitava um visto de turista para ingressar no México. —Para quê preciso de um visto de turista para entrar em meu próprio país? —
respondeu, abrindo os olhos num gesto de exagerada surpresa. —Seu modo de ser e de falar me fizeram pensar que você era do Arizona —
contestei.
—Meus pais
eram
índios
de
Oaxaca
—
explicou
—
mas
eu
sou
uma
ladina.
—O que é uma ladina? —Os ladinos são índios astutos, criados na cidade — declarou. Havia em sua
voz uma estranha excitação que me foi difícil entender quando acrescentou: —Adotam
as maneiras do homem branco e o fazem tão bem que podem se fazer passar pelo que
não são. —Isso não é algo para orgulhar‐se — julguei — e por certo que em nada
favorece a vocês, senhora Flores. A contraída expressão de seu rosto cedeu, dando lugar a um amplo sorriso. —Talvez não a um verdadeiro índio ou a um verdadeiro branco — rebateu com
descaro —
mas
eu
estou
perfeitamente
satisfeita
comigo
mesma
—
e,
aproximando
‐se, acrescentou: —E não me chame por você. Por favor chame‐me Delia. Tenho a
impressão de que seremos grandes amigas. Sem saber o que dizer me concentrei na estrada, e seguimos em silêncio até
chegar ao posto de controle. O guarda pediu meu visto de turista, mas não o de Delia. Pareceu não reparar nela; não trocaram palavras nem olhares. Quando tentei falar‐lhe, Delia me deteve com um movimento imperioso de sua mão, ante o qual o guarda me
dirigiu um olhar interrogante. Ao constatar que eu não lhe responderia, se encolheu de
ombros e com um gesto me ordenou prosseguir em meu caminho. —Como foi que o guarda não solicitou seus papéis? — perguntei quando
tínhamos nos
afastado
um
trecho.
—Oh, ele me conhece — mentiu, e sabendo que eu sabia que mentia, riu
desavergonhadamente. —Acho que eu o assustei e ele não se animou a falar comigo
— mentiu de novo, e insistiu com sua risada. Decidi mudar de assunto, ainda mais que não fosse para conservar‐lhe uma
escalada às suas mentiras. Comecei a falar de coisas da atualidade, mas na maior parte
do tempo viajamos em silêncio. Não resultou ser um silêncio tenso e incômodo: foi como o deserto que nos rodeava, extenso, vazio e estranhamente tranquilizante.
—Onde eu te deixo? — perguntei, quando entramos em Hermosillo. —No centro — respondeu. —Sempre me hospedo no mesmo hotel quando
visito
esta
cidade.
Conheço
bem
a
seus
donos,
e
estou
segura
de
poder
conseguir
para
você a mesma tarifa que eu pago.
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Agradecida, aceitei sua oferta. O hotel era velho e descuidado, o quarto que me deram abria‐se a um pátio
poeirento. Uma cama dupla de quatro colunas e uma maciça e antiquada cômoda o
reduziam a dimensões claustrofóbicas. Haviam lhe agregado um pequeno banheiro, mas sob a cama havia um pinico, que fazia jogo com a bacia de porcelana situada
sobre a cômoda.
A primeira noite foi horrível. Dormi mal, e em meus sonhos tive consciência de
sussurros e de sombras que se projetavam nas paredes. Dos móveis surgiam formas e
animais monstruosos, e dos cantos se materializavam seres pálidos e espectrais. No dia seguinte percorri a cidade e seus arredores, e nessa noite, apesar de
encontrar‐me exausta, me mantive acordada. Quando por fim dormi e cai num
horrendo pesadelo, vi uma figura escura em forma de ameba, que me espreitava pelos pés da cama. Tentáculos iridescentes pendiam de suas fendas cavernosas, e ao
inclinar‐se sobre mim respirou, emitindo tons e sons raspantes que terminaram num
engasgo.
Meus gritos
foram
afogados
por
suas
cordas
iridescentes
que
se
ajustaram
em
torno de meu pescoço, e logo tudo se fez negro quando a criatura — que de alguma maneira eu sabia que era feminina — me esmagou jogando‐se sobre mim. O momento
intempestivo entre o dormir e o despertar foi por fim quebrado por insistentes golpes sobre minha porta, e pelas preocupadas vozes dos hóspedes do hotel, que chegavam
do corredor. Acendi a luz e murmurei desculpas e explicações através da porta. Com o pesadelo ainda grudado em minha pele como se fosse suor, me dirigi ao
banheiro e sufoquei um grito ao contemplar no espelho as linhas roxas que cruzavam
minha garganta, e os pontos roxos eqüidistantes que sulcavam meu peito como uma
tatuagem inacabada. Frenética, empacotei minhas coisas. Eram três horas da manhã
quando pedi
a conta.
—Aonde vai a esta hora? — perguntou Delia Flores, surgindo da porta localizada atrás do balcão. —Fiquei sabendo do pesadelo. Preocupou a todo o hotel.
Estava tão feliz de encontrar‐me com ela que a abracei e deixei correr meu
choro. —Bom, bom — murmurou em tom de consolo, enquanto acariciava meus
cabelos. —Se quiser, pode dormir no meu quarto. Eu cuidarei de você. —Nada neste mundo me faria continuar neste hotel — repliquei. —Volto a Los
Ângeles neste mesmo instante. —Costuma ter pesadelos com frequência? — perguntou como ao acaso,
enquanto me
conduzia
a um
sofá
rangente
localizado
num
canto.
—Tenho sofrido com pesadelos toda minha vida — respondi. —Mais ou menos tenho me acostumado a eles, mas esta noite foi diferente; mais real, o pior que já tive.
Dirigiu‐me um longo olhar, como se me avaliasse. Logo, arrastando suas palavras, disse: —Quer se desfazer de seus pesadelos? — e enquanto falava, deu uma rápida olhada à porta por cima do ombro, como se temesse que dali nos estivessem
escutando. —Conheço a alguém que na verdade poderia te ajudar. —Eu gostaria muito disso — murmurei, desatando a echarpe para mostrar‐lhe
as linhas que cruzavam minha garganta, e lhe confiei os detalhes precisos de meu
pesadelo. —Já viu algo parecido? — perguntei.
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—Parece bastante sério — disse‐me, examinando com cuidado minhas feridas. —Na verdade você não deveria partir sem antes ver à curandeira que tenho. Vive a
umas cem milhas ao sul daqui. Uma viagem de umas duas horas. A possibilidade de ver a uma curandeira me agradou. Havia estado em contato
com elas desde meu nascimento na Venezuela. Quando ficava doente meus pais
chamavam um
médico,
e nem
bem
este
partia,
nossa
caseira
venezuelana
me
levava
a
uma curandeira. Quando cresci e já não quis ser tratada dessa maneira — nenhum de
meus amigos o era — ela me convenceu de que não havia nada de mal nesta dupla proteção. O hábito tomou tal corpo que, ao mudar‐me para Los Ângeles, quando ficava doente, não deixava de ver tanto um médico como a uma curandeira.
—Acha que me verá hoje? — perguntei, e ao observar a expressão perplexa de
Delia precisei lembrá‐la que já era domingo. —Te verá qualquer dia — me assegurou. —Por que não me espera aqui e eu te
levarei até ela? Juntar minhas coisas não levará mais que uns minutos. —Por que você está se esforçando tanto em me ajudar? — perguntei de
pronto, desconcertada
por
sua
oferta.
—Depois
de
tudo
sou
uma
perfeita
estranha
para você. —Precisamente! — disse, pondo‐se de pé e olhando‐me de maneira
indulgente, como se pudesse perceber as incômodas dúvidas que surgiam em mim. —Que melhor razão poderia haver? — inquiriu de maneira retórica. —Ajudar a um
perfeito estranho é um ato de loucura ou um ato de grande controle. E o meu é um de
grande controle. Impossibilitada de contestar só pude olhar fixo em seus olhos, esses olhos que
pareciam vislumbrar o mundo com assombro e curiosidade. De todo seu ser emanava algo estranhamente tranquilizador. Não era só por confiar nela; era como se a
houvesse conhecido
por
toda
a vida,
fazendo
‐me
pressentir
que
entre
nós
existia
uma
união, uma proximidade. E sem embaraço, ao vê‐la desaparecer pela porta em busca de seus pertences,
brinquei com a idéia de pegar minhas malas e fugir. Não desejava trazer‐me
dificuldades por causa de minha ousadia, como tantas vezes aconteceu no passado, mas uma inexplicável curiosidade me reteve, apesar da insistente e conhecida sensação de perigo que me dominava.
Passaram‐se vinte minutos de espera, quando surgiu uma mulher da porta situada atrás do mostrador da recepção, vestindo um conjunto roxo de jaqueta e
calças, e sapatos de plataforma. Parou embaixo da luz, e com um gesto estudado
sacudiu para
trás
sua
cabeça,
de
modo
que
os
cachos
de
sua
peruca
loira
brilharam
na
claridade. —Não me reconhece, não é? — perguntou, rindo. —Não é você, Delia? — respondi, contemplando‐a de boca aberta. —O que você acha? — e sem parar de rir saiu comigo à rua na procura de meu
carro, estacionado em frente ao hotel. Jogou sua cesta e uma bolsa no banco traseiro
de meu pequeno conversível, e logo ocupou o banco junto a mim. —A curandeira na
qual vou te levar disse que apenas os jovens e os muitos velhos podem permitir‐se o
luxo de se vestir de maneira excêntrica. Antes que se me apresentasse a oportunidade de lembrar‐lhe que, em matéria
de
idade,
ela
não
era
nem
um
nem
outro,
confessou
ser
muito
mais
velha
do
que
aparentava. Seu rosto estava radiante quando me olhou de frente para esclarecer:
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—Uso este conjunto para deslumbrar a meus amigos. Não especificou se isso era aplicável a mim ou à curandeira. Eu, certamente,
estava deslumbrada. A diferença não se encontrava apenas nas roupas; todo seu porte
havia mudado, eliminando qualquer traço da mulher distante e circunspecta que
viajou comigo de Nogales a Hermosillo.
—Esta será
uma
viagem
encantadora
—
anunciou
—,
especialmente
se
baixarmos a capota. — sua voz soava feliz e sonolenta. —Adoro viajar de noite com a
capota aberta. Eu a atendi com gosto. Eram quase quatro da manhã quando deixamos para
trás Hermosillo. O céu, terno, negro e pontilhado de estrelas, parecia mais alto que
qualquer céu que tivesse visto antes. Dei velocidade ao veículo, e no entanto era como
se não nos movêssemos. As silhuetas retorcidas dos cactos e das árvores de mezquite (algarobeira) apareciam e desapareciam sem cessar à luz de meus faróis. Todos pareciam do mesmo formato e tamanho.
—Embrulhei uns pães doces e uma térmica cheia de champurrado — pegando
a cesta
que
jogara
no
banco
traseiro.
—Chegaremos
na
casa
da
curandeira
no
começo
da manhã. — serviu‐me um meio copo de delicioso chocolate, feito com farinha de
milho, fazendo‐me saborear, pedaço a pedaço, um tipo de pão doce dinamarquês. —Estamos atravessando terras mágicas — informou, ao mesmo tempo em que
saboreava ao delicioso chocolate —, terras mágicas habitadas por guerreiros. —E quem são esses guerreiros? — perguntei, não querendo parecer
condescendente. —Os Yaquis de Sonora — respondeu, ficando logo depois em silêncio, talvez
medindo minha reação. —Admiro os índios Yaquis, pois têm vivido constantemente em guerra. Primeiro com os espanhóis e logo depois com os mexicanos, e isso até
épocas tão
recentes
como
1934.
Ambos
têm
experimentado
a selvageria,
a astúcia
e a severidade dos guerreiros Yaquis.
—Não admiro à gente guerreira — disse. E logo, como para desculpar meu tom
belicoso, expliquei que eu era proveniente de uma família alemã destroçada pela guerra.
—Seu caso é diferente — sustentou. —Você não possui os ideais da liberdade. —Um momento, — protestei — é precisamente porque possuo os ideais da
liberdade que acho a guerra tão abominável. —Estamos falando de dois tipos diferentes de guerra — insistiu. —A guerra é a guerra — insisti.
—Seu tipo
de
guerra
—
prosseguiu,
ignorando
minha
interrupção
—
é entre
dois irmãos, ambos chefes, que lutam pela supremacia. — Se aproximou e, num
sussurro urgente, acrescentou: —O tipo de guerra ao qual eu me refiro é entre um
escravo e um patrão que acredita ser o dono da gente. Entende a diferença? —Não, não a compreendo — respondi, teimosa, e repeti que a guerra era a
guerra, independentemente de suas razões. —Não posso estar de acordo contigo — disse ela, suspirando fundo e
reclinando‐se no assento. —Talvez a razão de nosso desacordo filosófico radique em
que proviemos de distintas realidades sociais. Assombrada pelas palavras pronunciadas por Delia, automaticamente diminui a
marcha
do
carro.
Não
desejava
ser
descortês,
mas
escutar
de
sua
boca
essa
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de conceitos acadêmicos era algo tão incongruente e inesperado que não pude evitar rir‐me. Delia não se ofendeu. Me observou sorridente, muito satisfeita de si mesma.
—Quando chegar a conhecer meu ponto de vista pode ser que mude sua opinião — e disse isto com tal seriedade, mas não isenta de carinho, que senti vergonha por ter rido. —Até pode desculpar‐se por rir de mim — acrescentou, como
se tivesse
lido
meus
pensamentos.
—Peço desculpas, Delia — disse com total sinceridade —, sinto muito ter sido
descortês, mas me surpreenderam tanto suas declarações que não soube o que fazer — olhei‐a de soslaio antes de agregar, compungida: —De modo que ri.
—Não me referia a desculpas sociais por seu comportamento — respondeu, e
sacudiu a cabeça para evidenciar sua desilusão —, me refiro a desculpas por não haver compreendido a condição do homem.
—Não sei do quê você está falando — respondi incômoda. Sentia que seus olhos me perfuravam.
—Como mulher deveria entender muito bem essa condição. Tem sido uma
escrava toda
sua
vida.
—Do que está falando, Delia? — perguntei, irritada por sua impertinência, mas de imediato me acalmei, pensando que sem dúvida a pobre índia tinha um marido
prepotente e insuportável. — Acredite em mim, Delia. Sou inteiramente livre. Faço o que quero. —Talvez você faça o que quer, mas não é livre — insistiu. —Você é mulher, e
isso automaticamente significa que está à mercê dos homens. —Não estou à mercê de ninguém! — gritei. Não sei se foi minha afirmação ou o tom de minha voz que fizeram com que
Delia se desatasse em gargalhadas, tão fortes como as minhas de momentos antes.
—Parece estar
gozando
de
sua
vingança
—
observei
incomodada.
—Agora
é a sua vez de rir, não é?
—Não é o mesmo — replicou, repentinamente séria. —Você riu de mim porque
se sentia superior. Escutar a uma escrava que fala como seu amo sempre diverte ao
amo por um momento. Desejei interrompê‐la, dizer‐lhe que nem me havia passado pela cabeça pensar
nela como uma escrava, ou nem a mim como a um amo, mas ela ignorou meus esforços, e no mesmo tom solene explicou que o motivo pelo qual havia rido de mim
era porque eu me achava cega e estúpida ante minha própria feminilidade. —O que está acontecendo, Delia? — perguntei intrigada. —Você está me
insultando deliberadamente.
—Muito certo — respondeu rindo, por completo indiferente à minha raiva crescente. Logo depois, golpeando‐me forte no joelho, acrescentou: —O que me
preocupa é que você não sabe que, pelo simples fato de ser mulher, é escrava. Recorrendo a toda a paciência que pude reunir disse‐lhe que estava
equivocada: —Ninguém é escravo hoje em dia. —As mulheres são escravas — insistiu Delia —, os homens as escravizam. Eles
aturdem às mulheres, e seu desejo de nos marcar como propriedades suas nos envolve
em névoa, a névoa resultante se prende a nós como uma bigorna.
Meu
olhar
vazio
a
fez
sorrir.
Recostou‐
se
no
assento,
abraçando
o
peito
com
as
mãos.
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—O sexo desorienta as mulheres — acrescentou de maneira suave, mas enfática —, e o faz tão irrefutavelmente que não podem considerar a possibilidade de
que sua baixa condição seja a consequência direta do que se lhes faz sexualmente. —Essa é a coisa mais ridícula que jamais escutei — declarei; logo,
pesadamente, embarquei numa longa discussão acerca das razões sociais, econômicas
e políticas
que
explicavam
a baixa
condição
da
mulher.
Com grande detalhe falei das mudanças ocorridas nas últimas décadas, e de
como as mulheres haviam tido bastante êxito em sua luta contra a supremacia masculina. Incomodada com sua expressão irreverente, não pude conter o comentário
de que ela, sem dúvida, era vítima dos prejuízos de sua própria experiência e
perspectiva do tempo. Todo o corpo de Delia começou a sacudir‐se com o esforço que fazia para
controlar seu riso. Conseguiu fazê‐lo e me disse: —Na realidade nada mudou. As mulheres são escravas. Temos sido criadas
como escravas. As escravas que foram educadas estão hoje atarefadas denunciando os
abusos sociais
e políticos
cometidos
contra
a mulher.
Não
obstante,
nenhuma
dessas
escravas pode enfocar a raiz de sua escravidão — o ato sexual — a não ser que envolva um estupro, ou esteja relacionado com alguma forma de abuso físico — um leve
sorriso adornou seus lábios quando disse que os religiosos, os filósofos e os homens da
ciência têm mantido durante séculos, e certamente o seguem fazendo, que tanto os homens como as mulheres devem seguir um imperativo biológico ditado por Deus, que diz respeito diretamente à sua capacidade sexual reprodutiva.
—Temos sido condicionadas para acreditar que o sexo é bom para nós —
ressaltou. —Esta crença e aceitação inata nos têm incapacitado para fazer a pergunta certa.
—E qual
é essa
pergunta?
—
inquiri,
esforçando
‐me
para
não
rir
de
suas
convicções totalmente erradas. Delia pareceu não haver me escutado; esteve tanto tempo em silêncio que
pensei se haveria dormido, e por isso me surpreendeu quando disse: —A pergunta que ninguém se atreve a fazer é: o que é quê o ato de que nos
montem nos faz a nós, mulheres? —Vamos, Delia… — retruquei jocosamente. —O aturdimento da mulher é tão total que enfocamos qualquer outro aspecto
de nossa inferioridade, menos aquele que é a causa de tudo — manteve. —Mas Delia — disse rindo —, não podemos viver sem sexo. O que seria do
gênero humano
se…?
Parou minha pergunta e meu riso com um gesto imperativo de sua mão. —Hoje em dia mulheres como você, em sua febre por se igualar ao homem,
imitam‐no, e o fazem até ao extremo absurdo de que o sexo que lhes interessa não
tem nada que ver com a reprodução. Equiparam o sexo à liberdade, sem sequer considerar o que o sexo faz a seu bem‐estar físico e emocional. Temos sido tão
cabalmente doutrinadas que acreditamos firmemente que o sexo é bom para nós —
me tocou com o cotovelo e, como se estivesse recitando uma ladainha, acrescentou: —O sexo é bom para nós. É agradável, é necessário. Alivia as depressões, as
repressões e as frustrações. Cura as dores de cabeça, a hipertensão e a pressão baixa.
Faz
desaparecer
as
espinhas
da
cara.
Faz
crescer
a
bunda
e
os
seios.
Regula
o
ciclo
menstrual. Resumindo: é fantástico! É bom para as mulheres. Todos o dizem. Todos o
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recomendam. — fez uma pausa para depois declamar com dramática finalidade: —Não há mal que uma boa trepada não cure.
Suas declarações me pareceram muito engraçadas, mas de repente fiquei séria ao recordar como minha família e amigos, inclusive nosso médico particular, o haviam
sugerido (é claro que não de maneira tão crua) como uma cura para todos os males da
adolescência que
me
angustiavam
por
crescer
em
um
meio
tão
estritamente
repressivo. Havia dito que, ao casar‐me, teria ciclos menstruais regulares, aumentaria de peso e dormiria melhor. Inclusive adquiriria uma disposição de ânimo mais doce.
—Não vejo nada de mal em desejar sexo e amor — me defendi. —Minhas experiências neste sentido têm sido muito prazerosas, e ninguém me domina ou
atordoa. Sou livre! Eu faço com quem quero e quando quero. Nos olhos escuros de Delia vi um lampejo de alegria ao dizer: —O fato de escolher seu companheiro não altera o fato de que te montam. —
Em seguida sorriu, como para mitigar a aspereza de seu tom, e acrescentou: —Equiparar o sexo com a liberdade é a suprema ironia. A ação de aturdir, por parte do
homem, é tão
completa,
tão
total,
que
nos
tem
drenado
a energia
e a imaginação
necessárias para enfocar a verdadeira causa de nossa escravidão. — Logo enfatizou: —Desejar a um homem sexualmente, ou enamorar‐se romanticamente por um, são as únicas opções dadas às escravas, e tudo o que nos tem sido dito acerca dessas duas opções não são outra coisa que desculpas, que nos submergem na cumplicidade e na
ignorância. Indignei‐me, pois não podia deixar de pensar nela como em uma reprimida que
odiava aos homens. —Por que odeia tanto aos homens, Delia? — perguntei, apelando ao meu tom
mais cínico.
—Não me
desagradam
—
assegurou
—,
ao
que
me
oponho
apaixonadamente
é à nossa renúncia a examinar quão profundamente doutrinadas estamos. A pressão que
têm exercido sobre nós é tão terrível e fanática que nos convertemos em cúmplices complacentes. Aquelas que se animam a discordar são rotuladas como monstros que
detestam aos homens, e sofrem a conseguinte zombaria. Corada, observei‐a sub‐repticiamente, e decidi que ela podia falar de forma
depreciativa do amor e de sexo pois, no fim das contas, era velha, e por estar mais além de todo desejo.
Rindo contidamente, Delia colocou as mãos atrás da cabeça. —Meus desejos físicos não caducaram porque seja velha —confessou — e sim porque me foi dada a
oportunidade de
usar
minha
energia
e imaginação
para
converter
‐me
em
algo
diferente da escrava para a qual me criaram. Porque havia lido meus pensamentos me senti mais insultada que
surpreendida. Comecei a defender‐me, mas minhas palavras só provocaram sua risada. Quando parou de rir me encarou; seu rosto mostrava‐se tão sério e severo como o de
uma professora a ponto de dar uma reprimenda a um aluno. —Se você não é uma escrava, como é que te criaram para ser uma Hausfrau
que não pensa em outra coisa que em heiraten e em seu futuro Herr Gernahl que dich
mitnehmen? Ri tanto ante seu uso do alemão, que precisei parar o carro para não correr o
risco
de
bater,
e
meu
interesse
por
averiguar
de
onde
havia
aprendido
tão
bem
esse
idioma fez com que esquecesse de defender‐me de sua pouco lisonjeira acusação, de
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que tudo o que eu ambicionava na vida era encontrar um marido que se unisse
comigo. Com respeito a seu conhecimento de alemão, apesar de minhas insistentes súplicas, manteve‐se desdenhosamente refratária a fazer revelações.
—Você e eu teremos tempo de sobra no futuro para falar em alemão —
assegurou, e depois de me olhar de forma irreverente, completou — ou do fato de ser
uma escrava
—
e adiantando
‐se
à minha
réplica,
sugeriu
que
falássemos
de
algo
impessoal. —Como o quê, por exemplo? — perguntei, e coloquei o carro em movimento. Colocou seu assento numa posição quase reclinada e fechou os olhos. —Deixe eu te contar algo acerca dos quatro líderes mais famosos que tiveram
os Yaquis — murmurou. —A mim me interessam os líderes, seus êxitos e seus fracassos.
Antes que eu pudesse objetar que na verdade não me interessavam as histórias de guerra, Delia disse que Calixto Muní foi o primeiro yaqui em atrair sua atenção. Contar histórias não era seu forte. Seu relato era direto, quase acadêmico, e apesar
disso me
encontrei
pendente
de
cada
palavra.
Calixto Muni foi um índio que durante anos navegou sob bandeira pirata por águas do Caribe. Ao regressar à sua Sonora natal, dirigiu, por volta de 1730, uma revolta contra os espanhóis. Foi traído, capturado e executado. Logo Delia se estendeu
numa sofisticada explicação sobre como, na década de 1820, depois de obtida a
independência mexicana, seu governo pretendeu parcelar as terras yaquis, e a
resultante resistência se converteu numa ampla revolta. Foi Juan Bandera, explicou, quem — guiado pelo mesmíssimo espírito — organizou as unidades combativas dos yaquis. Armados com frequência só com arcos e flechas, as hostes de Bandera lutaram
durante quase dez anos contra as tropas mexicanas. Em 1832 Bandera foi derrotado e
executado. Segundo Delia o líder seguinte que se destacou foi José María Leyva, mais
conhecido como Cajeme, “o que não bebe”, yaqui de Hermosillo e homem educado, que havia adquirido seus conhecimentos militares servindo no exército mexicano. Graças a esses conhecimentos unificou a todos os yaquis. Desde seu primeiro levante, por volta de 1870, Cajeme manteve suas forças em estado de revolta ativa. Foi derrotado pelo exército mexicano em 1887 em Buataviche, uma cidadela montanhês fortificada, e apesar de ter conseguido escapar e se ocultar em Guaymas. Eventualmente foi traído e executado.
O último dos grandes heróis yaquis foi Juan Maldonado. Conhecido também
como Tebiate,
“pedra
rolante”.
Reorganizou
o restante
das
forças
yaquis
nas
montanhas de Bacatete, e dali conduziu uma feroz e desesperada guerra, feita de
guerrilhas contra as tropas mexicanas, por mais de dez anos. —Em fins do século — e com isto Delia finalizou sua narração — o ditador
Porfirio Díaz havia inaugurado uma campanha de extermínio dos yaquis. Os matava enquanto trabalhavam nos campos; milhares foram capturados e enviados para
trabalhar nas plantações de agave (sisal) em Yucatán, e para Oaxaca, nas de cana de
açúcar. Seus conhecimentos me impressionaram, mas ainda não podia entender por
que me havia contado tudo isso. Não lhe ocultei minha admiração:
—Soa
como
uma
erudita,
como
uma
historiadora
do
modo
de
vida
dos
yaquis.
Quem, na verdade, é você?
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Por um momento pareceu desconcertada por minha pergunta, que por outro
lado era puramente retórica, mas recobrando‐se com rapidez disse: —Já lhe disse quem eu sou. Acontece que conheço muito sobre os yaquis. Vivo
entre eles, sabia? — Caiu num momentâneo silêncio, logo fez um breve movimento de
cabeça, como quem chega a uma conclusão, e acrescentou: —O motivo pelo qual lhe
contei sobre
os
líderes
dos
yaquis
é porque
compete
às
mulheres
conhecer
a força
e a
debilidade do líder. —Por quê? — perguntei. —A quem interessa os líderes? No que me diz
respeito, são todos uns tontos. Delia coçou a cabeça por baixo da peruca, espirrou repetidas vezes e disse com
um vacilante sorriso: —Por desgraça as mulheres devem congregar‐se em torno deles, a não ser que
desejem ser elas mesmas as que guiam. —E a quem iriam guiar? — perguntei de maneira sarcástica. Olhou‐me com assombro, depois friccionou a parte superior de seu braço.
Tanto o gesto
como
o rosto
pareciam
pertencer
a uma
jovenzinha.
—É
muito
difícil
de
explicar — murmurou, a voz dominada por uma rara suavidade, metade ternura e a
outra metade indecisão, misturada com falta de interesse. —É melhor que nem o
tente. Poderia perder você para sempre. Tudo o que posso dizer no momento é que
não sou erudita nem historiadora. Sou uma narradora de histórias, que ainda não lhe
contou a parte mais importante de seu conto. —E qual é esse conto? — perguntei, intrigada por seu desejo de mudar de
tema. —Tudo o que te dei até agora é informação precisa. Daquilo que ainda não falei
é do mundo mágico a partir do qual operavam esses líderes yaquis. Para eles as ações
do vento,
das
sombras,
dos
animais
e das
plantas
eram
tão
importantes
como
os
atos
dos homens. Essa é a parte que mais me interessa. —As ações do vento, das sombras, dos animais e das plantas? — repeti
zombando. Em nada perturbada por meu tom, Delia assentiu com um movimento de
cabeça, e depois de levantar‐se no assento tirou a peruca loira, para permitir que o
vento brincasse com seus cabelos negros e lisos. —Esses são os montes do Bacatete — anunciou, assinalando umas montanhas
localizadas a nossa esquerda, apenas delineadas contra a semi‐obscuridade do céu de
alvorada.
—É para
lá
aonde
nos
dirigimos?
—
perguntei.
—Hoje não — respondeu, deslizando‐se de novo no assento. Um sorriso
enigmático brincava em torno de seus lábios quando me encarou. —Talvez algum dia você tenha a oportunidade de visitar essas montanhas —
acrescentou, fechando os olhos —, o Bacatete está habitado por criaturas de outro
mundo, de outra época. —Criaturas de outro mundo, de outra época? — repeti, imprimindo à voz uma
falsa seriedade. —Quem ou o que são? —Criaturas — disse vagamente —, criaturas que não pertencem ao nosso
tempo ou ao nosso mundo.
—Vamos,
Delia.
Está
querendo
me
assustar?
—
e
não
pude
evitar
o
riso.
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Mesmo na escuridão seu rosto brilhava. Parecia extraordinariamente jovem, com sua pele sem rugas, que se dobrava sobre as curvas de suas bochechas, testa e
nariz. —Não, não estou tentando te assustar — disse com naturalidade, ao mesmo
tempo em que acomodava uma mecha de cabelo atrás de sua orelha. —Simplesmente
estou lhe
transmitindo
o que
nesta
região
é público
e notório.
—Interessante. E que tipo de criaturas são? — perguntei, e precisei morder os lábios para controlar o riso. —Já os viu?
Respondeu‐me com tom indulgente. —É claro que os vi. Se não fosse assim, não estaria me referindo a eles — e
sorriu com doçura, sem vestígios de ressentimento. —São seres que povoaram a terra em outro tempo, e que agora se retiraram a lugares isolados.
Inicialmente não pude evitar rir‐me de sua credulidade. Logo, ao ver quão séria e convencida estava da existência desses seres, decidi aceitá‐los e não zombar‐me
dela. Afinal de contas, ela estava sendo meu contato com uma curandeira, e não
desejava antagonizá
‐la
com
minhas
indagações
racionais.
—Esses seres, são os fantasmas dos guerreiros yaquis que perderam a vida nas guerras? — perguntei.
Negou com um gesto de cabeça; depois, como se temesse que alguém pudesse nos escutar, se aproximou para sussurrar‐me no olvido.
—É bem sabido que estas montanhas são habitadas por seres encantados: pássaros que falam, arbustos que cantam, pedras que dançam, e criaturas que podem
adotar a forma que desejam. Reclinada em seu banco me contemplou em expectativa. —Os yaquis chamam a essas criaturas surem, e crêem que são velhos yaquis
que recusaram
ser
batizados
pelos
primeiros
jesuítas
que
vieram
catequizar
aos
índios.
—Acariciou meu braço afetuosamente. —Cuide‐se, dizem que os surem gostam das loiras — e riu, encantada de sua advertência. —Talvez seja isso o que provoca seus pesadelos: um surem tratando de roubar‐te.
—Você não acredita em tudo isso de verdade, não é? — perguntei desdenhosamente, já incapaz de dissimular minha irritação.
—Não, acabo de inventar isso de que os surem gostam das loiras — respondeu
em tom tranquilizante. —Não lhes agrada em absoluto. Apesar de não ter me virado para olhá‐la, pude perceber seu sorriso e o
lampejo de humor em seus olhos, ao qual me incomodou, e me fez pensar que Delia
era muito
cândida,
esquiva
ou,
pior
ainda,
muito
louca.
—Na realidade não acredita na existência de seres de outro mundo, não é? —
irrompi mal humorada. Em seguida, temendo tê‐la ofendido, a encarei com uma semi‐ansiosa desculpa
nos lábios, mas antes que eu pudesse articular palavra, me respondeu no mesmo tom
forte e agressivo que eu empregara anteriormente. —Mas é óbvio que eu acredito. Por que não haveriam de existir? —Sinceramente, porque não! — disse de maneira seca e autoritária, para em
seguida desculpar‐me. Falei‐lhe de minha criação pragmática, e de como meu pai me havia levado a
admitir
que
os
monstros
de
meus
sonhos,
e
meus
supostos
invisíveis
companheiros
de
jogo, não eram outra coisa que produto de uma imaginação hiperativa.
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—Desde muito nova fui criada para ser objetiva e para qualificar tudo. —Esse é o problema — observou Delia —, as pessoas são tão razoáveis que só
de falar nisso minha vitalidade diminui. —Em meu mundo — continuei, ignorando seu comentário —, não existe dado
algum acerca de criaturas de outros mundos: só especulações e anseios, fantasias de
mentes perturbadas.
—Não pode ser tão densa! — expressou‐se alegre entre acesos de riso, como
se minha explicação tivesse oprimido suas expectativas. —Pode me provar que esses seres existem? — a desafiei. —E em que consistiria a prova? — perguntou com um ar de desconfiança,
obviamente falso. —Se alguma pessoa pudesse vê‐los, essa seria uma prova. —Quer dizer que se você, por exemplo, conseguisse vê‐los, essa seria uma
prova de sua existência? — perguntou, aproximando sua cabeça à minha. —Esse poderia ser um começo.
Com um
suspiro
Delia
apoiou
a cabeça
contra
o respaldo
de
seu
banco,
e se
manteve tanto tempo em silêncio que tive a certeza de que havia dormido, e me
surpreendi sobremaneira quando se levantou abruptamente para pedir‐me que
parasse o automóvel ao lado do caminho. Precisava aliviar‐se, disse. Decidi aproveitar a interrupção de nossa viagem com idêntico fim, e me enfiei
atrás dela no matagal. Estava por abaixar meu jeans quando escutei uma forte voz masculina, muito perto de mim, dizer: “¡Qué cuerote!” e suspirar. Com meus jeans ainda sem desprender corri até onde se encontrava Delia.
—É melhor a gente dar o fora daqui — gritei —, há um homem escondido no
matagal!
—Não seja
idiota
—
respondeu
—,
o único
que
está
aqui
é um
burro.
—Os burros não suspiram como homens depravados — observei, e repeti as palavras que escutei.
Delia caiu vítima de um ataque de riso, mas ao observar minha preocupação fez um gesto conciliatório com a mão.
—Chegou a ver o homem? —Não foi necessário — respondi —, apenas escutá‐lo me bastou. Por uns instantes não se moveu; depois se encaminhou até o carro, mas antes
que subíssemos ao desnível da estrada se deteve num tranco e, virando‐se para mim, sussurrou:
—Aconteceu algo
bastante
misterioso,
que
preciso
lhe
revelar
—
e,
pegando
‐me pela mão, me levou de volta ao lugar onde me pus de cócoras. E ali mesmo, atrás de uns arbustos, vi um burro.
—Antes não estava ali — insisti. Delia me observou, divertida, depois encolheu os ombros e se dirigiu ao animal. —Burrinho — disse no tom que se usa com os bebês —, ¿Le miraste el trasero?
(Você olhou pra bunda dela?) Pensei que Delia era uma ventríloqua, e que se iria fazer o animal falar, mas o
burro só zurrou forte e repetidas vezes. —Vamos sair daqui — roguei‐lhe, puxando sua manga. —Deve ser o dono dele
que
está
escondido
entre
os
arbustos.
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—Mas o pobrezinho não tem dono — disse, no mesmo tom infantil, enquanto
acariciava suas largas e suaves orelhas. —Mas é claro que tem dono. Não vê o tanto que está bem cuidado e
alimentado que até brilha? — e numa voz que enrouquecia por império dos nervos e
da impaciência, ressaltei outra vez sobre os perigos que representava para duas
mulheres ao
ver
‐se
sozinhas
em
um
deserto
a caminho
de
Sonora.
Delia me observou em silêncio, aparentemente preocupada. Logo assentiu com
a cabeça e me convidou por sinais a segui‐la. Pegado a mim caminhava o burro, topando minhas nádegas com o focinho, mas quando me virei para encará‐lo, precisei me conformar com apenas um praguejar. O burro já não estava ali.
—Delia! — gritei assustada. —O que aconteceu com o burro? Alarmada por meu grito, um bando de pássaros alçou um ruidoso vôo, traçou
um círculo em torno e depois se alinhou em direção ao leste, e uma frágil abertura no
céu era indício do fim da noite e o começo do dia. —Onde está o burro? — insisti em um sussurro apenas audível.
—Ali o tem,
em
frente
a ti
—
retornou,
assinalando
uma
árvore
nodosa,
desfolhada. —Não o vejo. —Precisa de óculos. —Não tenho problemas com meus olhos — repliquei. —Até consigo ver as
lindas flores da árvore — e assombrada pela beleza dos casulos brancos e brilhantes, em forma de campainhas, me aproximei.
—Que tipo de árvore é? —Palo Santo. Por um segundo desconcertante acreditei que era o animal, que nesse
momento emergia
por
detrás
do
tronco,
que
havia
falado.
Virei
‐me
na
direção
de
Delia. —Palo Santo — repetiu, rindo. Ali me ocorreu a idéia de que Delia me estava pregando uma peça. O burro
provavelmente pertencia à curandeira que, sem dúvida, vivia nas imediações. —O que é que te causa tanta graça? — perguntou Delia, ao captar a expressão
sabichona de meu rosto. —Estou com uma cólica terrível — menti, sentando‐me com as mãos sobre o
estômago. —Por favor, me espere no carro. Nem bem fiquei sozinha tirei meu lenço para amarrá‐lo no pescoço do burro, e
gozei antecipando
a surpresa
de
Delia
quando
descobrisse
(ao
chegar
à casa
da
curandeira) que todo o tempo eu estava a par de sua brincadeira. Contudo, toda
esperança de reencontrar‐me com o animal ou meu lenço desapareceram logo. Levamos quase duas horas para chegar ao nosso destino.
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CAPÍTULO DOIS
Por volta das oito da manhã chegamos na casa da curandeira, nos arredores de Ciudad Obregón; uma casa velha, maciça, de paredes pintadas e teto de telhas cinzas por causa da passagem do tempo. Ostentava grades de ferro e um pórtico em forma de arco.
A pesada
porta
da
rua
estava
aberta
de
par
em
par,
e com
a confiança
de
quem
conhece
o
terreno, Delia Flores me conduziu através de um vestíbulo escuro e um largo corredor até os fundos, a um quarto apenas mobiliado com uma cama estreita, uma mesa e várias cadeiras. O mais estranho desse cômodo era que em cada parede havia uma porta, todas elas fechadas.
—Espere aqui — ordenou Delia, assinalando a cama com a testa. —Durma um
pouco enquanto busco a curandeira, o que pode custar‐me algum tempo — e fechou a porta após sair.
Aguardei a que os sons de seus passos se amortecessem antes de inspecionar a mais estranha sala de curas que jamais meus olhos viram. As paredes brancas estavam
desnudas, e as
lajotas
marrom
‐claro
brilhavam
como
um
espelho.
Não
havia
altar,
imagens ou figuras de santos, da Virgem nem de Jesus, que supunha fossem de praxe em
tais quartos. Investiguei as quatro portas; duas abriam a corredores sombrios, e as outras a um pátio cercado por um muro alto.
Quando caminhava nas pontas dos pés por um dos corredores rumo a outro
quarto, ouvi atrás de mim um grunhido abafado e ameaçante. Virei‐me lentamente, e
apenas a poucos metros vi um enorme cão negro, de aspecto feroz. Não me atacou, mas firme em sua postura, me desafiava com grunhidos e com a exibição de seus caninos. Sem
olhá‐lo diretamente nos olhos, mas mantendo‐o sempre enfocado, retrocedi de costas até a sala de curas, seguida até a própria porta pelo animal. Fechei a porta com suavidade em
seu próprio
focinho,
para
depois
apoiar
‐me
contra
a parede,
até
conseguir
que
se
normalizassem as batidas de meu coração. Depois me deitei na cama, e em pouco tempo, sem sequer me propor a isso, caí num sono profundo. Despertou‐me uma leve pressão
sobre o ombro, e ao abrir os olhos tinha ante mim o rosto enrugado e rosado de uma mulher de idade.
—Está ensonhando — disse — e eu sou parte de seu ensonho. Assenti automaticamente com a cabeça, mas sem estar de todo convencida de
estar sonhando. A mulher era chamativamente pequena; não anã nem pigméia, e sim, melhor dizendo, do tamanho de uma criança, de braços descarnados e ombros estreitos e
frágeis.
—É a curandeira?
—
perguntei.
—Sou Esperanza — respondeu. —Sou a que traz os ensonhos. Sua voz era suave e muito baixa, dotada de uma qualidade curiosa e exótica, como
se o espanhol (que falava de maneira fluida) fosse uma língua à qual os músculos do lábio
superior não estavam acostumados. Gradualmente o som de sua voz ganhou intensidade, até converter‐se numa força desconexa que enchia o recinto, fazendo‐me pensar em
águas que corriam na profundidade de uma caverna. —Não é uma mulher — murmurei para comigo mesma —, é o som da
obscuridade. —Agora vou remover a causa de seus pesadelos — anunciou, fixando em mim seu
olhar
imperioso,
ao
mesmo
tempo
em
que
seus
dedos
pressionavam
com
suavidade
minha garganta. —Vou tirá‐las uma por uma — prometeu, enquanto suas mãos se
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moviam sobre meu peito em suaves ondulações. Sorriu de maneira triunfal, e então me convidou a examinar as palmas de suas mãos.
—Vê? Saíram sem esforço algum. Observava‐me com tal expressão de conquista e assombro que não pude dizer‐lhe
que não via nada em suas mãos, e certa de que a sessão curativa havia terminado, a
agradeci e me
levantei.
Ela
sacudiu
a cabeça
num
gesto
de
reprovação,
e com
suavidade
me obrigou a recostar‐me. —Está adormecida — me recordou. —Sou a que traz os ensonhos, lembra? Adoraria insistir que estava desperta, mas a única coisa que consegui foi sorrir
como uma idiota, ao mesmo tempo em que o sono me afundava em um estado
confortável. Risos e sussurros me cercavam como sombras; lutei por despertar, e precisei fazer
um grande esforço para abrir os olhos, levantar‐me e olhar a aqueles que se haviam
juntado ao redor da mesa. O peculiar nevoeiro do quarto entorpecia a possibilidade de vê‐
los claramente. Delia estava entre eles, e estava a ponto de pronunciar seu nome quando
um insistente
som
raspante
me
fez
virar
para
averiguar
o que
acontecia
às
minhas
costas.
Um homem, precariamente erguido sobre um tamborete alto, descascava amendoins fazendo muito barulho. A primeira vista parecia jovem, mas de alguma
maneira eu sabia que era velho. Seu sorriso era uma mistura de esperteza e inocência. —Quer? — ofereceu. Antes que eu pudesse ensaiar qualquer resposta minha boca se abriu em
assombro, e não pude fazer outra coisa que olhá‐lo fixamente, ao ver‐lhe transportar todo
seu peso a uma mão e, sem esforço, elevar seu corpo pequeno e tenso na vertical. Dessa posição me jogou um amendoim, que caiu em minha boca aberta. Me engasguei, e um
golpe seco em minhas costas de imediato restabeleceu a respiração. Agradecida, virei‐me
para averiguar
quem,
entre
todos
os
que
agora
se
haviam
agrupado
em
torno
de
mim,
havia reagido com tanta presteza. —Sou Mariano Aureliano — disse aquele que me havia ajudado. Me deu um aperto de mãos. Seu tom suave e a encantadora formalidade de seu
gesto mitigaram a feroz expressão de seus olhos, e a severidade de seus traços aquilinos. A
inclinação de suas sobrancelhas escuras lhe dava um aspecto de ave de rapina. Seus cabelos brancos, e o rosto bronzeado e curtido, falavam de anos, mas seu corpo
musculoso exalava vitalidade de juventude. Havia seis mulheres no grupo, incluindo a Delia, e todas me deram um aperto de
mãos de idêntica e eloqüente formalidade. Não me disseram seus nomes, simplesmente
se pronunciaram
felizes
por
conhecer
‐me.
Não
se
pareciam
fisicamente,
apesar
de
existir
entre elas uma chamativa similaridade, uma contraditória mistura de juventude e velhice, de força e delicadeza que me desorientava, acostumada como estava à brusquidão e
ausência de sutilezas de minha patriarcal família alemã. Assim como não conseguia decifrar a idade de Mariano Aureliano e do acróbata do
tamborete, tampouco conseguia fazê‐lo com a das mulheres, que poderia estar tanto nos quarenta como nos sessenta anos. O fato de que as mulheres persistissem em olhar‐me fixamente me produziu uma ansiedade passageira. Experimentei a bem definida
impressão de que podiam ver dentro de mim, e estavam analisando o visto. Seus sorrisos divertidos e contemplativos não me proporcionavam maior segurança, de modo que,
ansiosa
por
quebrar
esse
incômodo
silêncio
por
qualquer
meio,
me
dirigi
ao
homem
do
tamborete para perguntar‐lhe se era acróbata.
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—Sou o senhor Flores — disse, e com uma pirueta para atrás abandonou o
tamborete e aterrissou no chão sobre suas pernas cruzadas. —Não sou um acróbata —
esclareceu —, sou um mágico — e com um sorriso de inocultável gozo extraiu de um bolso
o xale de seda que eu havia atado ao pescoço do burro. —Já sei quem é você. Você é o marido dela! — e apontei um dedo acusador a
Delia. —Vocês
sim
que
me
fizeram
um
belo
truque
sujo!
O senhor Flores não respondeu, limitando‐se a olhar‐me em meio a um silêncio
cortês. —Não sou o marido de ninguém — disse por fim, e saiu do quarto por uma das
portas que conduziam ao pátio, fazendo medialunas. (Termo relacionado com a acrobacia, estrelinhas, meia‐lua).
Respondendo a um impulso saltei da cama e fui atrás dele. Por uns instantes, ofuscada pela luz exterior, fiquei imóvel. Depois cruzei o pátio e corri em paralelo ao
caminho de terra, até encontrar‐me num terreno recém cultivado, delimitado por árvores de eucaliptos. Fazia calor, o sol parecia estar em chamas e os sulcos resplandeciam como
grandes víboras
efervescentes.
—Senhor Flores! — gritei, sem obter resposta, e certa de que se ocultava atrás de uma das árvores, cruzei o terreno correndo.
—Cuidado com esses pés descalços! — advertiu uma voz que chegava do alto. Surpreendida, olhei para cima e ali, cara a cara comigo, estava o senhor Flores,
pendurado pelas pernas. —É perigoso e bobo caminhar sem sapatos — me reprovou, balançando‐se como
um trapezista. —Este lugar está infestado de víboras cascavel. Melhor me acompanhar aqui encima. É seguro e fresco.
Apesar de saber que os galhos estavam fora de meu alcance, elevei meus braços
com confiança
infantil,
e antes
que
pudesse
adivinhar
as
intenções
do
senhor
Flores,
ele
já
me havia tomado pelos pulsos, e sem maior esforço do que o necessário para alçar a uma boneca de trapo, me havia levantado do solo e me depositado na árvore. Deslumbrada, sentei‐me junto a ele para olhar as folhas sussurrantes que brilhavam ao sol como lascas de ouro.
—Consegue escutar o que lhe diz o vento? — perguntou o senhor Flores depois de um longo silêncio, e girou sua cabeça em um e outro sentido para que eu pudesse apreciar a maneira assombrosa em que movia as orelhas.
—Zamurito! — sussurrei, enquanto as lembranças inundavam minha mente. Zamurito, “abutrezinho”, era o apelido de um amigo de minha infância
venezuelana. O
senhor
Flores
tinha
seus
mesmos
traços
delicados,
semelhantes
a um
pássaro, cabelos negros e os olhos cor mostarda e, para encher‐me de assombro, ele, assim como Zamurito, podia mover as orelhas uma de cada vez, ou ambas ao mesmo
tempo. Contei ao senhor Flores sobre meu amigo, a quem conhecia desde o jardim da
infância. No segundo grau havíamos compartilhado uma mesa, e durante os longos recessos do meio‐dia, em lugar de comer nossa merenda no colégio, nós escapávamos para fazê‐lo no alto de uma colina próxima, à sombra do que acreditávamos ser a maior árvore de manga do mundo, cujos galhos mais baixos tocavam o solo e os mais altos roçavam as nuvens. Na estação das frutas nos enchíamos de mangas. O alto dessa colina
era
nosso
lugar
favorito,
até
o
dia
em
que
encontramos
o
corpo
do
bedel
do
colégio
pendurado num galho.
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19
Não nos animamos a nos mover nem a gritar; nenhum desejava perder prestígio
ante o outro. Nesse dia não subimos nos galhos. Procuramos comer nosso almoço
praticamente embaixo do corpo do morto, perguntando‐nos internamente qual dos dois se desmoronaria primeiro. Fui eu quem cedeu.
—Alguma vez pensou em morrer? — perguntou‐me Zamurito, em voz muito baixa.
Eu acabara
de
olhar
ao
pendurado,
e nesse
instante
o vento
havia
movido
os
galhos com uma insistência chamativa, e nesse roçar das folhas eu havia escutado o morto
dizer‐me que a morte era apaziguante. Isso me pareceu tão insólito que me pus de pé e
fugi aos gritos, indiferente ao que Zamurito pudesse pensar de mim. —O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — disse o senhor Flores
quando terminei meu conto. Sua voz era baixa e suave, e seus olhos de ouro brilharam
com luz febril ao explicar‐me que no momento da morte, num relâmpago instantâneo, as memórias, sentimentos e emoções do velho bedel se haviam liberado para ser absorvidas pela mangueira.
—O vento fez com que os galhos e as folhas lhe falassem — repetiu —, pois o
vento por
direito
te
pertence.
—
com
olhos
aplanados,
olhou
através
das
folhas,
buscando
além do horizonte que se perdia sob o sol. —O fato de ser mulher lhe permite comandar ao vento — prosseguiu. —As mulheres não o sabem, mas em qualquer momento podem
dialogar com o vento. Sacudi a cabeça sem compreender. —Na verdade não sei do que você está falando — disse‐lhe, e meu tom de voz
delatou minha crescente inquietude. —Isto é como um sonho, e se não fosse porque
segue e segue, juraria que é um de meus pesadelos. Seu prolongado silêncio me incomodou, e senti o rosto sufocado pela irritação. —Que faço eu aqui, sentada numa árvore com um velho louco? — me perguntei,
mas ao
mesmo
tempo,
temendo
tê
‐lo
ofendido,
optei
por
pedir
desculpas
por
minha
aspereza. —Sei que minhas palavras não têm muito sentido para você — admitiu. —Isso é
porque há muita crosta em você, a qual lhe impede de escutar o que o vento tem para dizer.
—Demasiada crosta? — perguntei, confusa e duvidosa. —Você quer dizer que estou suja?
—Isso também — disse, fazendo‐me enrubescer. Sorriu e repetiu que eu estava envolta em uma crosta muito grossa, e que essa crosta não podia ser eliminada com água
e sabão, independentemente de quantos banhos tomasse. —Está cheia de juízos —
explicou —,
e eles
lhe
impedem
de
entender
o que
estou
lhe
dizendo,
e que
o vento
é teu
para o que quiser mandá‐lo. Observou‐me com olhos críticos, tensos. —E então? — exigiu com impaciência, e antes que pudesse me dar conta do que
estava acontecendo, ele me havia tomado pelas mãos, girando‐me, e me depositado no
chão. Acreditei ver como seus braços e pernas se estiravam, como se fossem bandas elásticas, imagem passageira que expliquei a mim mesma como uma distorção perceptual causada pelo calor. Não pensei mais nisso, pois nesse exato momento me distraíram Delia
Flores e seus amigos, que estendiam um grande pedaço de lona embaixo da árvore
vizinha.
—Quando
vieram
para
cá?
—
perguntei‐
lhe,
desorientada,
pois
nem
havia
visto
nem ouvido ao grupo acercar‐se.
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20
—Vamos ter uma comidinha em sua honra — disse. —Porque hoje você se uniu a nós — acrescentou outra das mulheres. —Como foi que me uni a vocês? — perguntei, sentindo‐me incômoda. Não havia
conseguido individualizar a quem falou, e as olhei uma por uma, esperando que uma delas explicasse essa declaração.
Indiferentes a minha
inquietude
as
mulheres
se
concentraram
na
lona,
assegurando‐se de que estivesse uniformemente estendida. Quanto mais as observava, maior era minha preocupação. Tudo se me parecia tão estranho. Podia explicar com
facilidade porque havia aceitado o convite de Delia para visitar a curandeira, mas não
podia compreender minhas ações posteriores. Era como se alguém me tivesse privado de minhas faculdades racionais, obrigando‐me a permanecer ali, e reagir, e dizer coisas alheias à minha vontade. E agora organizavam uma celebração em minha honra, da qual o
mínimo que se podia dizer era que me era desconcertante, e apesar de meus esforços não conseguia explicar minha presença nesse lugar.
—Por certo que não me mereço nada disto — murmurei, revelando minha
formação alemã
—,
as
pessoas
não
costumam
fazer
coisas
pelos
outros,
ainda
mais
assim,
sem mais. Somente quando escutei a exuberante risada de Mariano Aureliano percebi que
todos estavam me olhando. —Não há razão alguma para que considere tão a fundo o que está lhe
acontecendo hoje — disse, tocando‐me com suavidade o ombro. —Organizamos o almoço
porque nos agrada fazer as coisas sob o impulso do momento, e posto que hoje você foi curada por Esperanza, a meus amigos lhes agrada dizer que o almoço é em sua homenagem. — falou de maneira casual, quase com indiferença, como se se tratasse de um assunto sem importância, mas seus olhos diziam algo diferente; sua dureza parecia
indicar que
era
vital
que
eu
o escutasse
detidamente.
—É uma alegria para meus amigos poder dizer que é em sua honra, — continuou
— aceite‐o tal qual eles o oferecem, com simplicidade e sem premeditação — seus olhos se encheram de ternura ao olhar às mulheres. Depois se virou para mim para acrescentar: —A comida, posso lhe assegurar, não é em absoluto em sua honra, e sem embargo o é. Esta é uma contradição que lhe custará tempo para entender.
—Não pedi a ninguém que faça nada por mim — disse, mal humorada. Me havia
tornado extremadamente pesada, tal qual sempre o havia feito ao sentir‐me ameaçada. —Delia me trouxe aqui, e estou agradecida — me senti obrigada a acrescentar — e
gostaria de pagar por qualquer coisa que tenham feito por mim.
Estava segura
de
tê
‐los
ofendido;
sabia
que
a qualquer
momento
me
pediriam
que
fosse embora, ao qual, fora o fato de afetar adversamente a meu ego, não me haveria
importado em demasia. Estava assustada, e já haviam ultrapassado minha medida. Para minha surpresa e raiva não me levaram a sério. Se riram de mim, e quanto mais me irritava maior era seu júbilo, seus olhos sorridentes e brilhantes fixos em mim como se eu
fosse um organismo desconhecido. A ira fez com que eu esquecesse meu temor, e os agredi, acusando‐os de tomar‐
me por uma boba. Acusei‐os de que Delia e seu marido (não sei por quê insistia em vê‐los como parceiros) me haviam pregado uma peça suja.
—Você me traiu — disse, virando‐me para Delia — para que você e seus amigos
me
usassem
como
palhaço.
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Quanto mais rabugenta, mais se riam, deixando‐me perto de chorar de raiva, frustração e lástima de mim mesma, até que Mariano Aureliano parou junto a mim e
começou a falar comigo como se eu fosse uma criança. Queria dizer‐lhe que podia cuidar de mim sozinha, que não precisava de sua simpatia, e que me ia embora para casa, quando algo em seu tom, em seus olhos, me apaziguou ao ponto de acreditar que havia
me hipnotizado.
E sem
embargo,
sabia
que
não
o havia
feito.
O que mais me perturbou foi a súbita e completa mudança que se produziu em
mim. O que normalmente haveria levado dias havia acontecido em um instante. Toda
minha vida me havia permitido ruminar acerca das indignidades — reais ou imaginárias —
que havia sofrido. Com cabal minuciosidade, eu as desmiuçava até que cada detalhe
ficasse explicado à minha inteira satisfação. Ao olhar para Mariano Aureliano, senti vontade de rir de minha recente explosão. Podia apenas me lembrar daquilo que a pouco
me enfureceu até quase me deixar às lágrimas. Delia me pegou pelo braço e me pediu que ajudasse às outras mulheres a
desembrulhar os pratos, os copos de cristal e a prataria dos vários cestos em que haviam
sido trazidos.
As
mulheres
não
falaram
comigo
nem
o fizeram
entre
elas,
e apenas
breves
suspiros de prazer escapavam de seus lábios à medida que Mariano Aureliano exibia as iguarias: havia tamales, enchiladas (panquecas de milho condimentadas), um guisado de pimenta malagueta e tortilhas feitas à mão. Não eram tortilhas de farinha, comuns no
norte do México, e que não me apeteciam muito, e sim tortilhas de milho. Delia me preparou um prato que continha um pouco de tudo, e comi com tal voracidade que fui a primeira a terminar.
—Isto é o mais delicioso que já comi em minha vida — disse, esperando uma repetição que ninguém me ofereceu. Para dissimular minha frustração me dediquei a elogiar a beleza do velho rendado que bordeava a lona sobre a qual estávamos sentados.
—Isso fui
eu
que
fiz
—
anunciou
uma
mulher
sentada
à esquerda
de
Mariano
Aureliano. Era velha, e seus descuidados cabelos grisalhos ocultavam seu rosto. Apesar do
calor usava uma saia longa, blusa e malha. —É um rendado belga autêntico — me explicou com voz suave e sonolenta. Suas
mãos longas e delicadas, nas quais brilhavam esquisitos anéis, se demoraram amorosas sobre a longa franja. Com riqueza de detalhes me falou de suas habilidades manuais, mostrando‐me os pontos e as linhas usados nesse trabalho. Por momentos obtinha uma versão passageira de seu rosto através da massa de cabelos, mas não poderia dizer que aspecto tinha.
—É renda belga autêntica — repetiu —, é parte de meu enxoval. — Alçou um copo
de cristal,
bebeu
um
gole
de
água
e acrescentou:
—Estes
também
são
parte
de
meu
enxoval. São Baccarat. Eu não duvidava disso. Os lindos pratos, cada um deles diferente dos outros, eram
da mais fina porcelana, e me estava perguntando se uma discreta olhada embaixo do meu prato passaria inadvertida, quando a mulher sentada à direita de Mariano Aureliano me incitou a fazê‐lo.
—Não seja tímida. Anda. Está entre amigos — e sorrindo, levantou o seu. —Limoges — anunciou, e depois levantou o meu e marcou que era um Rosenthal.
A mulher tinha traços delicados, infantis. Era pequena, de olhos negros, redondos, e cílios grossos. Seu cabelo era negro, exceção feita à coroa de sua cabeça que se havia
tornado
branca,
e
estava
arrumado
e
preso
num
apertado
mignon.
Havia
nela
algo
cortante, uma força bastante gélida, que notei quando me apertou com perguntas, diretas
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e pessoais. Não me importava seu tom inquisitorial, acostumada ao bombardeio ao qual me submetiam meu pai e meus irmãos, quando saía com um homem, ou me embarcava em alguma atividade própria. Isso me incomodava, mas era o normal em minha vida
familiar. Portanto, nunca aprendi a conversar: a conversação para mim consistia em
desviar ataques verbais e defender‐me a qualquer custo.
Me surpreendi
quando
o interrogatório
coercitivo
da
mulher
não
me
levou
a
defender‐me de imediato. —É casada? — me perguntou. —Não — respondi, com suavidade mas com firmeza, desejando que mudasse de
assunto. —Tem um homem? — insistiu. —Não, não tenho — rebati, e comecei a sentir os vestígios de meu velho ser
defensivo eriçando‐se em mim. —Há algum tipo de homem pelo qual sente particular apego? — insistiu. —Sente
preferência por algum traço de personalidade em especial no homem?
Por um
momento
pensei
que
ela
estava
brincando,
mas
parecia
genuinamente
interessada, assim como suas companheiras. Seus rostos curiosos e ávidos me acalmaram, e deixando de lado minha natureza belicosa, e o fato de que essas mulheres tinham idade
para ser minhas avós, lhes falei como a amigas de minha mesma geração, com quê estivéssemos falando sobre homens.
—Deve ser alto e apresentável — comecei — e ter senso de humor. Deve ser sensível sem ser afetado, inteligente sem ser um intelectual. —Baixei o tom de minha voz para adicionar confidencialmente: —Meu pai costumava dizer que os homens intelectuais são fracos até os ossos, e todos eles são traidores. Acho que coincido com meu pai.
—Isso é o que deseja de um homem?
—Não —
me
apressei
em
responder.
—Sobretudo,
o homem
de
meus
sonhos
deve ser atlético. —Como seu pai — observou uma das mulheres. —Naturalmente — acrescentei na defensiva. —Meu pai foi um grande atleta. Um
fabuloso esquiador e nadador. —Você se dava bem com ele? —Maravilhosamente — disse com um tom entusiasta. —O mero pensar nele me
faz lacrimejar. —Por que não está com ele? —Somos demasiado parecidos — expliquei. —Há algo em mim que não entendo
plenamente nem
posso
controlar,
que
me
afasta
dele.
—E o que há de sua mãe? —Minha mãe — suspirei, e fiz uma momentânea pausa para encontrar as
melhores palavras para descrevê‐la. —É muito forte. É minha parte sóbria; a parte
silenciosa que não precisa ser reforçada. —Você é muito ligada aos seus pais? —Em espírito sim — repus com ternura —, na prática sou uma solitária. Não tenho
muitas ligações. — Depois, como se algo dentro de mim se esforçasse por sair, revelei um
defeito de personalidade que nem sequer em meus momentos mais introspectivos me animava a confessar a mim mesma. —Antes que apreciar ou alentar afeto pelas pessoas,
eu
as
uso…
—
mas
de
imediato
retifiquei
minha
declaração:
—Mas
também
sou
capaz
de
sentir afeto.
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Com uma mistura de alívio e frustração olhei a uns e outros. Nenhum parecia ter dado importância à minha confissão. Seguindo outra linha, as mulheres perguntaram se descreveria a mim mesma como um ser valente ou covarde.
—Sou uma total covarde — respondi —, mas por desgraça, minha covardia jamais me detém.
—Detém de
que?
—
perguntou
a mulher
que
me
havia
estado
interrogando.
Seus
olhos negros passavam uma expressão séria, e suas sobrancelhas, semelhantes a linhas pintadas com carvão, estavam enrugadas num gesto de preocupação.
—De fazer coisas perigosas — respondi. Satisfeita ao notar que pareciam estar pendentes de cada palavra minha, passei a explicar‐lhes que outro de meus sérios defeitos era minha grande facilidade para meter‐me em problemas.
—Em qual problema esteve do qual pode nos falar? — perguntou, e seu rosto, sério até esse momento, se iluminou com um sorriso brilhante, quase malicioso.
—Que lhe parece este, meu problema atual? — perguntei, meio de brincadeira, temerosa de que interpretassem mal meu comentário, mas para surpresa e alívio todos
riram e gritaram,
como
costumam
fazer
os
rancheiros
mexicanos
quando
algo
lhes
é
gracioso ou atrevido. —Como acabou nos Estados Unidos? — inquiriu a mulher quando todos se
acalmaram. Me encolhi de ombros, não sabendo ao certo o que responder. —Desejava ir à universidade — murmurei por fim. —Estive primeiro na Inglaterra,
mas ali o que mais fiz foi me divertir. Na verdade não sei bem o que quero estudar. Acredito estar em busca de algo sem saber exatamente o quê.
—Isso nos leva à minha primeira pergunta — continuou a mulher, seu rosto
atrevido e seus olhos escuros destemidos e curiosos como os de um animal. —Busca um
homem? —Suponho que sim — admiti, para depois acrescentar de maneira impaciente. —
Que mulher não o está, e por que me pergunta isso tão insistentemente? Tem um
candidato? Seria este algum tipo de exame? —Temos um candidato — interpôs Delia flores —, mas não é um homem… — e
tanto ela como as outras riram de tal maneira que não pude fazer menos do que me juntar a seu festejo.
—Isto é definitivamente um exame — me assegurou a inquisidora, quando todos se haviam aquietado. Guardou silêncio durante um momento, seus olhos alertas e
reflexivos. —Pelo quê nos mencionou, concluo que você é completamente de classe
média —
prosseguiu,
abrindo
os
braços
num
gesto
de
forçada
aceitação.
—Mas,
que
outra
coisa pode ser uma mulher alemã nascida no novo mundo? — e observou a raiva refletida em meu rosto com um sorriso apenas reprimido. —As pessoas da classe média têm
sonhos de classe média. Ao observar que eu estava a ponto de explodir, Mariano Aureliano me explicou
que ela fazia essas perguntas simplesmente porque sentia curiosidade por minha pessoa. Quase nunca recebiam visitas, e muito raras vezes gente jovem.
—Isso não quer dizer que tenham que me insultar — protestei. Como se eu não houvesse dito nada, Mariano Aureliano continuou desculpando às
mulheres. Seu tom calmo e sua carinhosa carícia em minhas costas tornaram a derreter
minha
raiva,
tal
qual
fizera
anteriormente,
e
seu
sorriso
era
tão
angelical
que
nem
por
um
momento duvidei de sua sinceridade quando começou a me adular. Disse que eu era uma
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das pessoas mais extraordinárias que eles haviam conhecido, o qual me emocionou ao
extremo de convidá‐lo a perguntar‐me qualquer coisa que desejasse saber acerca de minha pessoa.
—Você se sente importante? — perguntou. Assenti.
—Todos somos
importantes
para
nós
mesmos.
Sim,
creio
que
sou
importante,
não
em um sentido geral e sim específico, para mim mesma — e me embarquei num discurso
acerca de uma imagem própria positiva e valiosa, e do vital que era o reforçar nossa importância a fim de sermos indivíduos fisicamente sãos.
—E o que pensa das mulheres? Acredita que são mais ou menos importantes que os homens?
—É óbvio que os homens são mais importantes — disse. —As mulheres não têm
escolha. Devem ser menos importantes para que a vida familiar corra bem sobre os trilhos, por assim dizer.
—Mas isso está bem? — insistiu.
—Naturalmente que
está
bem
—
declarei.
—Os
homens
são
intrinsecamente
superiores, por isso manejam o mundo. Eu fui criada por um pai autoritário que, apesar de conceder‐me tanta liberdade como a de meus irmãos, me fez saber, não obstante, que certas coisas não eram tão importantes para a mulher. Por isso não sei que faço na universidade, nem o que é o que desejo da vida — e logo acrescentei num tom infantil e
desvalido: —Suponho que busco a um homem tão seguro de si mesmo como o era meu pai.
—É uma simplória! — disse uma das mulheres. —Não, ela não é — assegurou Mariano Aureliano. —Simplesmente está
confundida, e é tão persistente como seu pai.
—Seu pai
alemão
—
corrigiu
enfaticamente
o senhor
Flores,
ressaltando
a palavra
alemão. Havia descido da árvore como uma folha, suavemente e sem ruído. Serviu‐se de uma quantidade imoderada de comida.
—Quanta razão você tem — concordou Mariano Aureliano, sorrindo —, ao ser tão obstinada como seu pai alemão, não fez outra coisa que repetir o que escutou toda sua vida.
Minha raiva, que subia e abaixava como uma febre misteriosa, não se devia só ao
que diziam de mim, e sim ao fato de que falavam de mim como se eu não estivesse
presente. —Não tem remédio — disse outra das mulheres.
—Está muito
bem
para
o projeto
que
temos
em
mãos
—
observou
Mariano
Aureliano, defendendo‐me com convicção. O senhor Flores respaldou a Mariano
Aureliano, e a única mulher que até então não havia falado disse com voz profunda e
rouca que estava de acordo com os homens: que eu servia muito bem para o propósito
em mãos. Era alta e delgada. Seu rosto pálido, delicado e severo, estava coroado por cabelos
brancos, trançados e ressaltados por olhos grandes e luminosos. Apesar de sua vestimenta gasta e descolorida, havia em torno dela uma aura de elegância.
—O que estão fazendo comigo? — gritei, já incapaz de controlar‐me. —Não se dão conta do horrível que é para mim escutar que falam como se eu não estivesse presente?
Mariano
Aureliano
fixou
em
mim
seus
olhos
ferozes.
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—Você não está aqui — disse num tom desprovido de toda emotividade —, ao
menos pelo momento. E, o mais importante, é que isto não conta. Nem agora nem nunca. Quase desmaiei de ira. Ninguém me havia falado jamais com tal dureza e
indiferença para com meus sentimentos. —Eu cago em todos vocês, gusanos comemierda, filhos da puta! — gritei.
—Deus meu!
Uma
alemã
obscena!
—
exclamou
Mariano
Aureliano,
e todos
riram.
Estava a ponto de ficar de pé e ir‐me quando Mariano Aureliano me deu repetidos golpezinhos nas costas.
—Bom, bom — murmurou, como quem tranquiliza à criança que arrotou. E como
antes, em lugar de incomodar‐me ao ser tratada como criança, minha raiva desapareceu. Me senti vibrante e feliz, e sacudindo a cabeça em sinal de incompreensão, os olhei e ri.
—Aprendi castelhano nas ruas de Caracas com a ralé — expliquei. —Conheço
todos os palavrões. —Não lhe encantaram os tamales doces? — perguntou Delia, fechando os olhos
para demonstrar sua apreciação.
Sua pergunta
pareceu
ser
uma
senha:
o interrogatório
cessou.
—Mas é claro que lhe encantaram! — respondeu o senhor Flores por mim —, só
lamenta que não lhe serviram mais, pois tem um apetite insaciável — e veio sentar‐se ao
meu lado. —Mariano Aureliano se excedeu, e nos cozinhou um manjar. Não podia acreditar nisso. —Quer dizer que ele cozinhou? Tem a todas estas mulheres e cozinhou? — e de
imediato, preocupada pela interpretação que pudessem dar às minhas palavras, me desculpei, explicando minha enorme surpresa ante o fato de que um macho mexicano
cozinhasse em sua casa quando havia mulheres para fazê‐lo. As resultantes risadas me
demonstraram que
tampouco
era
isso
o que
quis
dizer.
—Especialmente se essas mulheres são suas mulheres; é isso o que queria dizer? — perguntou o senhor Flores, suas palavras entre misturadas com os risos de todos. —Tem razão, são as mulheres de Mariano ou, para ser mais preciso, elas lhe pertencem — e
se deu um divertido golpe no joelho. Depois, dirigindo‐se à mais alta das mulheres, aquela que só havia falado em uma oportunidade, disse: —Por que não lhe conta acerca de nós?
—Obviamente o senhor Aureliano não tem essa quantidade de esposas — disse, ainda mortificada por meus lapsos.
—E por que não? — retrucou a mulher, e todos riram de novo. O riso era alegre, juvenil, mas não conseguia tranquilizar‐me. —Todos aqui estamos unidos por nossa luta,
pelo profundo
afeto
que
nos
professamos
e pela
certeza
de
que
se
não
estamos
juntos
nada é possível — disse. —Mas vocês não são parte de nenhum grupo religioso, não é? — perguntei, e
minha voz revelou minha crescente apreensão. —Nem de nenhuma espécie de comunidade?
—Pertencemos ao poder — respondeu a mulher. —Meus companheiros e eu
somos os herdeiros de uma antiga tradição. Somos parte de um mito. Não compreendi o que estava dizendo; intranquila, olhei para os outros; seus olhos
estavam fixos em mim; observavam‐me com uma mistura de expectativa e
contentamento. Voltei minha atenção à mulher alta, que também me observava com a
mesma
expressão
embriagada.
Seus
olhos
brilhavam
ao
ponto
de
chispar.
Inclinada
sobre
seu copo de cristal, bebia sua água em delicados goles.
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—Somos essencialmente ensonhadores — explicou —, agora estamos todos ensonhando e, pelo fato de que foi trazida a nós, você também está ensonhando conosco
— disse isto num tom tão suave que na verdade não pude captar o que foi dito. —Você quer dizer que estou dormindo e compartilhando um sonho com vocês? —
perguntei com jocosa incredulidade, e precisei morder‐me os lábios para segurar o riso
que borbulhava
em
meu
interior.
—Não é exatamente o que está fazendo, mas passa perto — admitiu, e em nada incomodada por meus risinhos nervosos, explicou que o que eu estava experimentando se parecia mais a um sonho extraordinário, onde todos me ajudavam ao ensonhar meu ensonho.
—Mas isso é uma...... — comecei, mas ela me silenciou com um gesto de mão. —Todos estamos ensonhando o mesmo ensonho — me assegurou,
aparentemente extasiada por uma felicidade que eu não alcançava compreender. —E o que me diz dessas coisas deliciosas que acabo de comer? — procurei o
molho de chili que havia derramado sobre minha blusa. Mostrei‐lhe as manchas. —Isto
não pode
ser
um
sonho!
Eu
comi
dessa
comida!
—
insisti
em
tom
forte
e agitado.
—Sim,
eu mesma a comi! Seu olhar era tranqüilo, como se tivesse estado esperando tal arrebatamento. —E o que me diz de como o senhor Flores te subiu ao alto da árvore de eucalipto?
— perguntou. Estava a ponto de informar‐lhe que não me havia subido ao alto da árvore, e sim
simplesmente a um galho, quando me interrogou em voz baixa. —Você pensou nisso? —Não, não pensei nisso — respondi de mau jeito. —É claro que não — concordou, movendo a cabeça com um gesto sabichão, como
se soubesse
que
nesse
exato
instante
eu
havia
recordado
que
mesmo
o galho
mais
baixo
de qualquer uma das árvores que nos rodeavam eram impossíveis de alcançar do chão. Explicou que a razão pela qual eu não me havia dado conta disso era porque nos ensonhos não somos racionais.
—Nos ensonhos podemos unicamente agir — ressaltou. —Um momento — interrompi —, pode ser que eu esteje um tanto atordoada, eu
admito. Sem contar que você e seus amigos são a gente mais estranha que jamais conheci, mas estou desperta até não mais poder — e, vendo que ria de mim, gritei: —Isto não é um
sonho! Com um imperceptível movimento de cabeça atraiu a atenção do senhor Flores,
que num
rápido
movimento
se
apoderou
de
minha
mão
e,
juntos,
nos
elevamos
a um
galho do eucalipto mais próximo. Ali ficamos uns instantes, sentados, e antes mesmo que eu pudesse dizer algo, ele me baixou para a terra, ao mesmo lugar em que estive sentada.
—Compreende o que quero dizer? — perguntou a mulher alta. —Não, não compreendo — gritei, sabendo que havia sofrido uma alucinação. Meu
temor se converteu em fúria, e lancei uma enxurrada de maldições obscenas. Esgotado
meu furor senti lástima por mim mesma e comecei a chorar. —O que vocês me fizeram? — exigi em meio ao meu choro. —Puseram algo na minha comida? Na água?
—Não fizemos nada disso — respondeu com bondade a mulher alta. —Você não precisa de nada…
Apenas
conseguia
escutá‐
la;
minhas
lágrimas
eram
como
um
véu
escuro
que
desfigurava tanto seu rosto como suas palavras.
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—Aguenta — a escutei dizer, apesar de não poder vê‐la e nem a seus companheiros. —Aguenta, não desperte ainda.
Havia algo tão imperioso em seu tom que compreendi que minha própria vida
dependia de vê‐la de novo, e graças a uma força desconhecida, e por completo
inesperada, consegui atravessar o véu de minhas lágrimas. Escutei um suave ruído de
aplausos e em
seguida
os
vi.
Eles
sorriam,
e seus
olhos
brilhavam
com
tal
intensidade
que
suas pupilas pareciam iluminadas por algum fogo interno. Me desculpei primeiro ante as mulheres, e depois aos dois homens, por minha reação boba, mas não desejavam nem
falar dela, dizendo que eu havia me desempenhado de maneira excepcional. —Somos as partes viventes de um mito — disse Mariano Aureliano, depois do qual
juntou os lábios para soprar. —Eu lhe soprarei até à única pessoa que agora tem o mito
em suas mãos — anunciou. —Ele lhe ajudará a esclarecer tudo isto. —E quem pode ser essa pessoa? — perguntei com um certo ar petulante, e estava
a ponto de inquirir se essa pessoa seria tão teimosa como meu pai, mas Mariano
Aureliano me distraiu. Continuava soprando, os cabelos brancos eriçados, e as bochechas
roxas e infladas.
Em evidente resposta a seus esforços, uma suave brisa começou a infiltrar‐se por entre os eucaliptos. Mariano Aureliano fez um sinal com a cabeça, como se admitisse estar inteirado de minha confusão e de meus pensamentos não expressados, e com suavidade
me fez girar até eu ficar de frente às montanhas do Bacatete. A brisa se converteu em vento, um vento tão frio e áspero que tornava doloroso o
respirar. Com um movimento ondulante, como se não tivesse esqueleto, a mulher alta se levantou, tomou minha mão e me arrastou através dos sulcos arados. No meio do campo
culvitado fizemos uma repentina parada, e poderia jurar que, com seus braços estendidos, incitava e atraía à espiral de terra e folhas mortas que se enredemoinhavam à distância.
—Nos ensonhos
tudo
é possível
—
sussurrou.
Ri, abri os braços para chamar o vento, e a terra e as folhas bailaram em torno de nós com tal força que tudo se borrou ante minha vista. De repente vi à mulher alta muito
longe. Seu corpo parecia dissolver‐se numa luz avermelhada até desaparecer por completo de meu campo de visão. Então um negrume encheu minha cabeça.
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28
CAPÍTULO TRÊS
A essa altura me era difícil determinar se o piquenique havia sido um sonho ou
se na realidade havia acontecido. Não era capaz de recordar em ordem sequencial todos os eventos dos quais havia participado desde o momento em que adormeci na
cama da
sala
de
curas.
A
seguinte
lembrança
nítida
era
a de
encontrar
‐me
falando
com
Delia nesse mesmo quarto. Habituada a esses lapsos de memória, comuns em minha juventude, a princípio
não dediquei demasiada importância a esta anomalia. De criança, quando me
assaltavam ganas de brincar, com frequência abandonava a cama semi‐adormecida, e
saía de casa furtivamente através das grades de uma janela. Muitas vezes despertei na
praça, brincando com outras crianças que não eram obrigadas a ir deitar‐se tão cedo
como eu. Não abrigava dúvidas a respeito da autenticidade da refeição, apesar de não
poder situá‐la temporalmente. Tentei pensar, reconstruir os fatos, mas me assustava
atualizar a idéia
de
meus
lapsos
infantis.
De
certo
modo
eu
resistia
a fazer
perguntas
a
Delia sobre suas amigas, e tampouco ela ofereceu informação. No entanto abordei o
tema da sessão curativa, que não duvidava ter sido um sonho. Me introduzi no tema com cautela: —Tive um sonho muito nítido a respeito de uma curandeira — disse. —Não só me disse seu nome como me assegurou haver eliminado todos os meus pesadelos.
—Não foi um sonho — rebateu Delia, num tom que deixava claro seu
desagrado, enquanto me olhava com incômoda insistência. —A curandeira lhe disse
seu nome, e de fato curou seus transtornos de sonho. —Mas foi um sonho — insisti —, e nele a curandeira tinha o tamanho de uma
criança. Ela
não
pode
ter
sido
real.
Delia pegou um copo de água que havia sobre a mesa, mas não bebeu. Em
troca o fez girar infinitas vezes em sua mão, sem derramar uma gota, depois do qual me olhou com olhos resplandecentes.
—A curandeira lhe deu a impressão de ser pequena, isso é tudo — e fez um
movimento de cabeça como se essas palavras tivessem acabado de lhe ocorrer, e as achou satisfatórias. Bebeu sua água em ruidosos goles, e seus olhos se tornaram
suaves e reflexivos. —Precisava ser pequena para poder lhe curar. —Precisava ser pequena? Quer dizer que eu somente a vi como se ela fosse
pequena? Delia assentiu repetidas vezes com a cabeça, e depois se aproximou de mim e
cochichou: —O que aconteceu é que você ensonhava, e sem dúvida o que ensonhava não
era um sonho. A curandeira na verdade veio a você e lhe curou, mas você não estava no lugar em que está agora.
—Vamos, Delia — objetei —, do que está falando? Eu sei que foi um sonho. Sempre tenho plena consciência de estar sonhando, já que os sonhos me são
completamente reais. Esse é meu mal, lembra‐se? —Talvez agora que está curada já não seja seu mal, e sim seu talento —
retrucou
Delia
com
um
sorriso
—,
mas
voltando
à
sua
pergunta.
A
curandeira
tinha
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29
que ser pequena, como uma criança, porque você era muito criança quando
começaram seus pesadelos. Sua declaração me soou tão absurda que nem sequer consegui rir. —E agora estou curada? — perguntei jocosamente. —Você está — me assegurou. —Nos ensonhos as curas se realizam com grande
facilidade, quase
sem
esforço.
O
difícil
é fazer
que
a gente
ensonhe.
—Difícil? — perguntei, e minha voz soou mais áspera do que eu houvesse
desejado. —Todos sonhamos. Todos temos que dormir, não é assim? Delia dirigiu uma olhada travessa até o teto; depois me encarou para dizer: —Esses não são os sonhos aos quais me refiro. Esses são sonhos comuns. O
ensonhar tem um propósito do qual os sonhos comuns carecem. —Mas é claro que o têm! — declarei em enfática oposição, para depois
embarcar‐me numa longa retórica a respeito da importância psicológica dos sonhos, e
citar obras de psicologia, filosofia e arte. Meus conhecimentos não impressionaram a Delia nem um pouco. Estava de
acordo em
que
os
sonhos
cotidianos
ajudavam
a manter
a saúde
mental
do
indivíduo,
mas insistiu em que isso não lhe concernia. —Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm — reiterou. —Que propósito, Delia? — perguntei de maneira complacente. Desviou seu
rosto, como se quisesse impedir que eu o visse, mas momentos depois me encarou de
novo. Algo frio e isolado dominava seus olhos, e sua mudança de expressão se havia endurecido a tal ponto que me assustou.
—O ensonho sempre tem um propósito prático, e serve ao ensonhador de
maneira simples ou intrincada. Ele serviu a você para superar seus pesadelos, serviu às bruxas que lhe fizeram a comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para fazer
com que
o guarda
da
fronteira,
que
lhe
pediu
seu
visto
de
turista,
não
estivesse
consciente de mim. —Estou começando a entender o que me diz, Delia — murmurei. —Quer dizer
que vocês podem hipnotizar aos outros contra sua vontade? —Chame‐o assim se quiser — respondeu, e em seu rosto se distinguia por uma
calma indiferença que denotava pouca simpatia. —O que contudo não conseguiu ver é
que você mesma, com pouco esforço, pode entrar no que você chama de um estado
hipnótico. Nós o chamamos ensonhar um sonho que não é um sonho, mas um
ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém deseje. As palavras de Delia estavam a ponto de adquirir sentido para mim, mas eu
carecia das
necessárias
palavras
para
expressar
meus
pensamentos
e sentimentos.
Olhei para ela, desorientada. De repente recordei um episódio de minha juventude. Quando por fim me foi permitido ter aulas de direção com o Jeep de meu pai,
surpreendi à minha família demonstrando que já sabia acionar as marchas, algo que
durante anos vinha fazendo em meus sonhos. Na minha primeira tentativa, com uma
segurança que até a mim surpreendeu, tomei a velha estrada de Caracas ao porto de
Guayra. Duvidei sobre falar a Delia desse episódio, e escolhi em troca abordar o tema do tamanho da curandeira.
—Não é uma mulher alta — respondeu. —Mas tampouco é tão pequena como
você a viu. Em seu ensonho curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e,
ao
fazê‐
lo,
apareceu
pequena.
Essa
é
a
natureza
da
magia.
Deve
ser
aquilo
cuja
impressão deseja dar.
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—É uma maga? — perguntei esperançosa. A idéia de que todos trabalhavam
em um circo, de que eram parte de um espetáculo de magia, me havia cruzado a
mente em várias ocasiões. Acreditava que isso explicaria muitas coisas acerca deles. —Não, não é uma maga. É uma feiticeira — disse, e Delia me olhou com tal
desdém que me envergonhei de minha pergunta. —Os magos são do teatro. Os
feiticeiros são
do
mundo,
sem
ser
parte
do
mundo
—
explicou.
Logo
caiu
num
longo
silêncio, ao fim do qual suspirou antes de fazer‐me a seguinte pergunta: —Você
gostaria de ver Esperanza agora? —Sim! — respondi animada. —Eu gostaria muito. A possibilidade de que a curandeira fosse um ser real e não um sonho me
atordoava. Delia não me convencera de tudo, e no entanto desejava crer‐lhe a todo
custo. Meus pensamentos se fragmentaram; de repente me dei conta de não haver mencionado a Delia o fato de que a curandeira de meu sonho havia manifestado
chamar‐se Esperanza. Tão absorta estava em meus pensamentos que não percebi que Delia falava.
—Perdão, o que
disse?
—
perguntei
‐lhe.
—A única maneira em que pode encontrar sentido a tudo isto é ensonhando de
novo — respondeu, e com um suave riso agitou sua mão, como convidando a alguém a
apresentar‐se. Suas palavras careciam de importância para mim, meus pensamentos já fluíam
por outros trilhos. Esperanza era um ser real, e me animava a certeza de que me
esclareceria tudo. Além disso, ela não havia comparecido à refeição, nem me havia aviltado como fizeram as outras mulheres. Abrigava a vaga confiança de que eu havia
caído bem a Esperanza, e este pensamento, de certa forma, restaurou minha
segurança. Para ocultar meus sentimentos de Delia, manifestei ansiedade em ver à
curandeira. —Queria agradecer a ela e, lógico, pagar‐lhe por tudo quanto fez por mim.
—Já está tudo pago — anunciou Delia, e o matiz pungente de seus olhos revelou que tinha acesso a meus pensamentos.
—O que quer dizer com isso de “já está tudo pago”? — perguntei com voz estridente. —Quem o pagou?
—É difícil explicá‐lo — respondeu, e o distante toque de bondade que denotava sua voz me trouxe tranquilidade. —Tudo começou na festa de sua amiga em Nogales. Você chamou minha atenção de imediato.
—Não me diga? — perguntei intrigada, ansiosa por escutar elogios referentes
ao bom
gosto
de
meu
cuidadosamente
selecionado
figurino.
Sobreveio um incômodo silêncio. Não conseguia ver os olhos de Delia, velados atrás de suas pálpebras semicerradas, e havia algo perturbador em sua voz, contudo
tranquila, quando disse haver observado que cada vez que eu precisava falar com a
avó de minha amiga parecia absorta e como se adormecida. —Absorta não é a palavra — respondi. —Não tem idéia do que tive que lutar
para convencer à velha de que eu não era o diabo encarnado. Delia pareceu não escutar‐me, e prosseguiu falando: —De imediato percebi que tinha grande facilidade para ensonhar, de modo que
lhe segui pela casa para ver você em ação. Você não tinha plena consciência do que
fazia
ou
dizia,
e
no
entanto
se
desempenhava
muito
bem,
rindo,
falando
e
mentindo
descaradamente para cair bem.
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—Está me chamando de mentirosa? — perguntei de brincadeira, e sem dúvida
deixando em descoberto o fato de sentir‐me ferida. Senti a necessidade de irritar‐me, e para amortizar esse perigoso impulso, fixei a vista no jarro de água sobre a mesa.
—Não me atreveria a chamar‐lhe de uma mentirosa — explicou Delia um tanto
pomposamente —, eu te qualificaria como uma ensonhadora.
Sua voz
estava
carregada
de
solenidade,
mas
seus
olhos
brilhavam
de
gozo
e
boa malícia quando disse: —Os feiticeiros que me criaram diziam que não importava o que se pode
chegar a dizer, sempre e quando se tenha o poder para dizê‐lo — e sua voz transmitia tal entusiasmo e aprovação que tive a certeza de que havia alguém atrás de uma das portas escutando‐nos. —E a maneira de conseguir esse poder é ensonhando. Você não
sabe disso porque o faz de uma maneira natural, mas quando se vê enfrentada por alguma dificuldade, sua mente se submerge de imediato no ensonho.
—Foi criada por feiticeiros, Delia? — perguntei para mudar de assunto. —É claro — respondeu, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
—Seus pais
eram
feiticeiros?
—Oh, não — respondeu com um riso contido. —Um dia os feiticeiros me
encontraram, e dali em diante me criaram. —Que idade você tinha? Era uma criança? Delia riu como se com minha pergunta eu houvesse alcançado a quintessência
do humor. —Não, não era uma criança. Talvez tivesse sua mesma idade quando me
encontraram e se encarregaram de minha criação. —O que quer dizer com “se encarregaram de minha criação”? Delia me olhou sem que seus olhos me enfocassem, fazendo‐me pensar que
não havia
me
ouvido
ou,
de
tê
‐lo
feito,
não
estar
disposta
a responder.
Repeti
a pergunta, ante a qual sorriu encolhendo‐se de ombros.
—Me criaram como quem cria a um menino — disse finalmente. —Não
importa a idade que ele tenha. Em seu mundo ele é um menino. Assaltada de súbito pelo temor de que nossa conversa pudesse ser escutada,
olhei por cima de meu ombro e disse em voz baixa: —Quem são esses feiticeiros, Delia? —Essa é uma pergunta difícil — cochichou —, e por este momento nem sequer
posso intentar uma resposta. Tudo o que posso dizer acerca deles e que são aqueles me disseram que ninguém deve mentir para ser acreditado.
—E por
que
então
deveria
alguém
mentir?
—
perguntei.
—Pelo simples prazer que há em fazê‐lo — respondeu com presteza, e se pôs de pé para dirigir‐se até a porta que conduzia ao pátio, mas antes de atravessar o
umbral se virou para mim, e com um sorriso perguntou: —Conhece aquele ditado “se
não está mentindo para ser acreditado pode dizer o que quiser, sem se importar com o
que pensem de você?” —Nunca escutei isso — supus que o havia inventado. Tinha a sua cara. —Além
do mais — acrescentei —, não entendo o que está tratando de dizer. —Estou segura de que sabe sim — afirmou, e me olhou de relance através da
madeixa de sua negra cabeleira. Com um gesto de sua testa me incitou a segui‐la. —
Vamos
agora
mesmo
ver
Esperanza.
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Me levantei de um salto e a segui, somente para deter‐me abruptamente na
porta. Cegada de momento pela luz externa me detive procurando determinar o que
havia acontecido. Parecia que o tempo não tinha passado desde o momento em que
corri atrás do senhor Flores através do campo arado. O sol, como então, estava ainda
no zênite.
Tive uma
rápida
visão
da
saia
vermelha
de
Delia
no
momento
em
que
dobrava
uma esquina. Corri atrás dela, atravessando um arco de pedra que levava a um pátio
encantador. Inicialmente me achei cegada, tão intenso era o contraste entre a
deslumbrante luz do sol e as profundas sombras do pátio. Me mantive imóvel, ofegante, inalando o ar úmido, fragrante graças ao odor
das laranjeiras, madressilvas e ervilhas‐doce. Subindo por linhas que pareciam
suspensas no céu, os ramos da ervilha‐doce se destacavam como uma cortina brilhante entre a folhagem de árvores, arbustos e samambaias.
Sentada em uma cadeira de balanço, no meio do pátio, descobri a feiticeira que
vi antes em meu sonho. Era muito mais velha que Delia e as outras mulheres, ainda
que como
eu
o soube
não
poderia
dizer.
Se
movia
com
um
ar
de
abandono,
e senti
uma angústia dolorosa em todo meu ser quando me assaltou a certeza irracional de
que cada movimento de sua cadeira a afastava de mim. Uma onda de agonia e uma
sensação de solidão indescritível me envolveram. Queria cruzar o pátio para retê‐la, mas algo na intrincada trama das escuras lajotas impedia o livre movimento de meus pés. Por fim pude pronunciar seu nome, porém em voz débil, apenas audível para
meus ouvidos. —Esperanza. Abriu os olhos e sorriu sem demonstrar surpresa alguma, tal como se houvesse
estado me aguardando, e após ficar de pé, caminhou até mim. Pude então apreciar
que não
era
do
tamanho
de
uma
criança,
e sim
da
minha
mesma
altura,
delicada
e de
aspecto frágil, apesar do qual irradiava uma vitalidade ante a qual me senti empequenecida.
—Estou muito feliz em vê‐la de novo — saudou, num tom que soava sincero, e
com um gesto me convidou a tomar assento em uma das cadeiras de junco junto à
cadeira de balanço. Em torno de nós, nas imediações, descobri às outras mulheres, incluindo Delia,
sentadas em cadeiras de junco, semi‐escondidas entre árvores e arbustos. Também
elas me olhavam com curiosidade, algumas sorrindo, outras comendo tamales dos pratos que tinham sob suas saias.
Na verde
luz
difusa
do
pátio,
e não
obstante
sua
mundana
atividade
gastronômica, pareciam imaginárias, insubstanciais, e contudo estranhamente vívidas, apesar da ausência de nitidez que as envolvia. Pareciam ter absorvido a verde luz do
pátio, que a tudo impregnava como uma névoa transparente. A idéia passageira e
nada agradável de estar em uma casa povoada por fantasmas tomou conta de mim por um instante.
—Quer comer algo? — perguntou Esperanza. —Delia preparou uns pratos que
você nem imagina. —Não, obrigado — murmurei, numa voz que não parecia a minha, e ao
observar seu olhar inquisidor acrescentei sem muita convicção: —Não tenho fome. —
Me
sentia
tão
nervosa
e
agitada
que,
mesmo
se
estivesse
desmaiando
de
fome,
não
teria podido engolir nem um bocado.
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Esperanza deve ter intuído meu medo pois, aproximando‐se, segurou meu
braço como para me passar confiança. —O que é que você quer saber? — perguntou. Minha resposta saiu aos borbotões: —Achei ter visto você num sonho — e ao ver o riso em seus olhos acrescentei:
—Estou sonhando
agora?
—Sim — respondeu, enunciando suas palavras de maneira lenta e precisa —, mas não está dormindo.
—Como posso estar sonhando e não estar dormindo? —Algumas mulheres podem fazê‐lo com grande facilidade. Podem ensonhar
sem dormir. Você é uma delas. Outras precisam batalhar toda sua vida para consegui‐lo.
Pressenti um toque de admiração em sua voz, mas não me senti lisonjeada nem
um pouquinho. Ao contrário, estava mais preocupada que nunca. —Mas como é possível: sonhar sem dormir? — insisti.
—Se eu
te
explico
não
o entenderá
—
contrapôs.
—Aceite
minha
palavra;
é
preferível postergar a explicação por agora — de novo segurou meu braço, e um doce
sorriso iluminou seu rosto. —Por hora lhe basta saber que, para você, eu sou a que
traz os ensonhos. Não considerei isso suficiente, mas tampouco me animei a dizer‐lhe isso. Em
troca perguntei: —Eu estava desperta quando você me curou de meus pesadelos, e estava
sonhando quando estive sentada fora com Delia e as outras? Esperanza me contemplou por um longo tempo antes de fazer um movimento
com a cabeça, como se houvesse decidido revelar uma verdade monumental.
—É demasiado
simplória
para
compreender
o mistério
do
que
fazemos
—
disse
isto de maneira tão casual, tão sem intenção de emitir um juízo, que não me senti ofendida nem intentei réplica alguma.
—Mas você poderia me fazê‐lo entender, não é? — supliquei ansiosamente. Se escutaram risinhos das outras mulheres, não irônicos, mas sim um murmúrio
como de um coro em surdina cujo eco me envolveu, som que não parecia provir das mulheres e sim das sombras do pátio. Mais que risinhos eram sussurros, uma delicada advertência a fim de apaziguar‐me, que apagou minhas dúvidas impertinentes, minhas ânsias de saber, e soube então, sem a mais remota dúvida, que em ambas oportunidades estive desperta e ao mesmo tempo sonhando. Não poderia explicar
esta certeza
que
superava
o poder
da
palavra.
Contudo,
depois
de
um
breve
lapso,
senti a obrigação de dissecar minha análise, de colocar tudo num marco lógico. Esperanza me olhava com evidente prazer. Depois disse: —Vou lhe explicar quem somos e o que é que fazemos — mas antecipou seu
esclarecimento com uma admoestação: advertiu‐me que tudo o quanto devia me dizer era de difícil aceitação, e portanto eu deveria suspender qualquer juízo e escutá‐la sem
perguntas nem interrupções. —Pode fazê‐lo? —Mas é claro. Guardou silêncio, medindo‐me com seus olhos. Deve ter intuído minha
incerteza,
e
também
à
pergunta
que
estava
a
ponto
de
saltar
de
meus
lábios.
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—Não é que não queira responder à suas perguntas — sustentou —, melhor dizendo, é que neste momento lhe será impossível compreender as respostas.
Fiz um gesto com a cabeça, temerosa de que a menor interferência de minha parte a faria emudecer. Num tom de voz que não passava de um suave murmúrio me
disse algo por sua vez incrível e fascinante. Disse ser a descendente de feiticeiros que
viveram milênios
antes
da
conquista
espanhola,
no
vale
de
Oaxaca.
Depois
mergulhou
num longo silêncio, e seus olhos, fixos nas ervilhas‐doce multicoloridas, pareciam
estender‐se nostalgicamente até o passado. —Pelo que sei, a parte das atividades desses feiticeiros que diz respeito a você
se denomina “ensonhar”— continuou. —Esses feiticeiros foram homens e mulheres possuidores de grandes poderes derivados do ensonho, e realizaram atos que
desafiam a imaginação. Abraçada a meus joelhos a escutei. Esperanza era uma talentosa narradora e
uma excelente mímica. Seu rosto mudava com cada uma de suas explicações; por momentos era o rosto de uma mulher jovem, em outros de uma velha, ou também de
um homem,
ou
de
uma
criança
inocente
e travessa.
Sustentou que milhares de anos atrás homens e mulheres possuíam a
faculdade de entrar e sair do mundo normal, e portanto dividiram suas vidas em duas áreas: o dia e a noite. Durante o dia desenvolviam atividades semelhantes ao mais comum dos mortais, sendo sua conduta a normal e esperada, mas de noite se
convertiam em ensonhadores, e sistematicamente ensonhavam ensonhos que
transcendiam os limites do que consideramos a realidade. Fez uma nova pausa, como para dar tempo a que suas palavras me
penetrassem. —Usando a escuridão como manto, eles conseguiram algo inconcebível: foram
capazes de
ensonhar
estando
despertos
—
antecipando
a pergunta
que
eu
estava
a ponto de formular, explicou que isso lhes significava poder submergir‐se, estando
conscientes e despertos, num ensonho que lhes dava a energia necessária para realizar prodígios que estremeciam a mente.
Devido à modalidade agressiva imperante em minha casa, nunca desenvolvi a
habilidade necessária para poder escutar durante um longo período. Se não podia
enfrentar com perguntas diretas, belicosas, então nenhum intercâmbio verbal, por mais interessante que fosse, tinha sentido para mim. Por não poder discutir me
impacientei. Morria de vontade em interromper Esperanza. Fervia de perguntas, mas que me explicassem as coisas não era o objetivo de minha necessidade de
interromper. O que eu desejava era render‐me à compulsão de discutir aos gritos com ela,
para assim recuperar minha normalidade. Se diria que Esperanza estava a par de
minha inquietude, já que após me olhar fixamente me ordenou a falar, ou pelo menos assim eu o acreditei. Abri a boca para dizer, como sempre, a primeira coisa que me
viesse na mente, estivesse ou não relacionada com o tema, mas não pude articular palavra. Lutei por falar, e emiti sons guturais para deleite das mulheres nas sombras.
Esperanza retomou a palavra, como se não houvesse notado meus frustrados intentos, e me surpreendeu sobremaneira comprovar que continuava comandando
toda minha atenção. Disse que a origem dos conhecimentos dos feiticeiros somente
podia‐
se
entender
em
termos
de
lenda.
Um
ser
superior,
apiedando‐
se
da
terrível
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condição do homem, de ser perseguido, como um animal, pela fome e a reprodução, conferiu‐lhe o poder de ensonhar e lhe ensinou como usar esses sonhos.
—Naturalmente as lendas dizem a verdade de um modo velado — explicou. —Seu êxito em ocultar a verdade reside na convicção do homem de que não passam de
simples histórias. Lendas de homens que se transformam em anjos ou em pássaros são
relatos de
verdades
ocultas
que
parecem
ser
fantasia
ou,
simplesmente,
as
alucinações
de mentes alteradas ou primitivas. Durante milhares de anos a tarefa dos feiticeiros tem sido a de inventar novas lendas, ou descobrir a verdade escondida nas antigas. Aqui é onde figuram os ensonhadores, tarefa na qual se sobressaem as mulheres. Possuem a faculdade de abandonar‐se, de deixar‐se ir. A mulher que me ensinou a
ensonhar podia manter duzentos ensonhos. Esperanza me observou com atenção, como ponderando minha reação, que era
algo de completo estupor, pois não tinha idéia do significado de tudo isso. Explicou
que manter um ensonho significava que a pessoa podia ensonhar algo específico a
respeito de si mesmo, e entrar nesse ensonho à vontade. Sua mestra, disse, podia
entrar voluntariamente
em
duzentos
ensonhos
que
lhe
concerniam.
—Como ensonhadoras as mulheres são insuperáveis — me assegurou
Esperanza. —São extremadamente práticas, e para manter um ensonho elas devem
sê‐lo, pois o ensonho deve tocar aspectos práticos de si mesmo. O favorito de minha
mestra era ensonhar‐se como um falcão; outro como uma coruja. De modo que, dependendo do momento do dia, podia ensonhar‐se como qualquer um dos dois e, dado que ensonhava desperta, era real e absolutamente um falcão ou uma coruja.
Havia tal sinceridade e convicção em seu tom e em seus olhos, que caí por completo sob seu encanto. Não duvidei dela nem por um instante, e nada do que
pudesse ter dito me haveria parecido incoerente.
Prosseguiu com
o tema:
—Para levar a cabo um ensonho dessa natureza as mulheres necessitavam
possuir uma disciplina de ferro — e aproximando‐se a mim, como se não quisesse que
as demais escutassem, explicou: —Por disciplina de ferro não quero aludir a nenhum
tipo de rotina árdua, ou melhor, as mulheres devem acabar com a rotina do que se
espera delas, e devem fazê‐lo em sua juventude, quando suas forças estão intactas. Com frequência, quando as mulheres chegam a uma idade em que já não têm que ser mulheres, decidem que é chegado o momento de preocupar‐se com pensamentos e
atividades não mundanas ou extramundanas. Não sabem nem querem acreditar que
tais empenhos quase nunca têm êxito — com suavidade golpeou meu estômago, como
se estivesse
tocando
um
tambor.
—O
segredo
da
fortaleza
da
mulher
está
em
seu
útero. Esperanza moveu sua cabeça de maneira enfática. Se diria que havia escutado a
pergunta boba que invadiu minha mente: Seu útero? —As mulheres — continuou — devem começar por queimar seu útero. Não
podem ser o terreno fértil que deve ser fecundado pelo homem, seguindo o mandato
do próprio Deus. — continuou inspecionando‐me de muito perto, sorriu e perguntou. —Por acaso, é religiosa?
Neguei com a cabeça. Não podia falar, e minha garganta estava tão
constrangida que apenas se conseguia respirar. Me encontrava paralisada pelo medo e
o
assombro,
não
tanto
pelo
que
me
dizia
como
pela
mudança
operada
nela.
Se
me
tivessem perguntado sobre isso, não teria podido dizer quando mudou, mas de
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36
repente seu rosto era jovem e radiante; parecia que um fogo interno houvesse
incendiado seu ser. —Isso é bom! — exclamou. —Deste modo não terá que lutar contra crenças
que são muito difíceis de superar. Eu fui criada como uma devota católica, e por pouco
não morri quando precisei examinar minha atitude frente à religião. — suspirou, sua
voz se
tornou
nostálgica
e suave
quando
acrescentou:
—Isso
não
foi
nada
comparado
com a batalha que precisei travar antes de converter‐me numa ensonhadora fiel. Aguardei expectante, respirando apenas, enquanto uma sensação bastante
prazerosa, semelhante a uma corrente elétrica, se estendia por todo meu corpo. Supus que me narraria algo horripilante, a crônica de sua luta contra criaturas aterrorizantes, e mal pude dissimular meu desencanto quando revelou que a tal batalha foi contra si mesma.
—Para converter‐me numa ensonhadora precisei vencer ao eu que é nosso ser, e nada, absolutamente nada, é tão difícil. Nós, as mulheres, somos as mais desgraçadas prisioneiras de nosso ser. É nossa prisão, feita de ordens e expectativas
com as
quais
nos
atordoam
desde
o momento
em
que
nascemos.
Você
sabe
como
é:
se o primogênito é varão, o fato se celebra. Se é mulher, há um encolhimento de
ombros e a resignada frase: “—Está bem; por igual irei querê‐la bem, e farei qualquer coisa por ela.” Por respeito não dei vazão ao meu riso. Jamais em minha vida havia escutado
declarações de tal natureza. Eu me considerava uma mulher independente, mas era óbvio, sob a luz do que disse Esperanza, que minha situação era igual à de qualquer outra mulher, e contrariamente ao que tivesse sido minha reação normal ante tal conceito, concordei com ela.
Sempre se me havia ensinado que minha precondição de mulher me obrigava à
dependência, e se
me
ensinou
que
uma
mulher
podia
considerar
‐se
afortunada
se
era
desejável, para assim conseguir a atenção dos homens. Se me disse que competia à
minha condição de mulher o realizar de qualquer tarefa encomendada, e que o lugar da mulher é em sua casa, junto a seu marido e seus filhos.
—Assim como você, fui criada por um pai autoritário, ainda que compreensivo
— continuou Esperanza — e, como você, acreditei ser livre. Para mim, entender a
filosofia dos feiticeiros (que a liberdade não significava ser o eu que era meu ser) foi quase a morte. Ser eu mesma significava afirmar minha feminilidade, e consegui‐lo
consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao contrário, os feiticeiros entendem a
liberdade como a capacidade para fazer o impossível, o inesperado; ensonhar um
ensonho que
carece
de
base
e de
realidade
na
vida
cotidiana
—
sua
voz
se
converteu
de novo num sussurro ao acrescentar: —O excitante e novo é o conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o que a mulher necessita para mudar seu ser e converter‐se
numa ensonhadora. Esperanza disse que se não tivesse conseguido vencer seu ser, só teria
conseguido ter a vida de uma mulher normal: a que seus pais lhe haviam traçado, uma vida de derrota e humilhação, desprovida de todo mistério. Uma vida programada pelo
costume e a tradição. Esperanza me beliscou o braço, e a dor me fez gritar. —É melhor que preste
atenção — me sermoneou.
—Eu
estou
—
murmurei
defensivamente,
esfregando
o
braço.
Estava
certa
de
que ninguém notaria meu interesse minguante.
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37
—Não entrará no mundo dos feiticeiros por ter sido tentada ou enganada —
me advertiu. —Deve escolher, consciente do que lhe espera. As mudanças de meu estado de ânimo me assombravam pelo irracional que
eram. Deveria de ter sentido medo, contudo me encontrava tranqüila, como se minha
presença ali fosse o mais natural do mundo.
—O segredo
da
fortaleza
de
uma
mulher
está
em
seu
útero
—
repetiu
Esperanza, e uma vez mais me deu um golpe no estômago. Disse que as mulheres ensonhavam com seus úteros ou, melhor, a partir de seus úteros. O fato de ter útero
as faz ensonhadoras perfeitas. Antes sequer de que eu conseguisse completar o
pensamento “por que o útero é tão importante?”, Esperanza me deu a resposta. —O útero é o centro de nossa energia criativa, a tal ponto que, se
desaparecessem os machos do mundo, as mulheres continuariam se reproduzindo, e
então o mundo estaria povoado unicamente pela parte feminina da espécie humana. — Acrescentou que, reproduzindo‐se unilateralmente, as mulheres somente conseguiriam reproduzir clones de si mesmas.
Me senti
genuinamente
surpreendida
por
esta
específica
mostra
de
erudição,
mas não pude conter minha interrupção e dizer a Esperanza que havia estudado o
referente à reprodução assexuada e partogenéica na aula de Biologia. Se encolheu de ombros e prosseguiu com sua explicação. —A mulher, tendo então a habilidade e os órgãos para reproduzir a vida,
também possui a habilidade para produzir ensonhos com esses mesmos órgãos — ao
observar a dúvida em meus olhos me advertiu: —Não se preocupe em como se
consegue, a explicação é muito simples, e por ser simples é o mais difícil de entender. A mim ainda me causa dificuldades, de modo que, como uma boa mulher, atuo. Ensonho, e deixo as explicações aos homens.
Esperanza aduziu
que
originalmente
os
feiticeiros
dos
quais
me
havia
falado
transmitiam seus conhecimentos a seus descendentes biológicos, ou a pessoas de sua própria escolha, mas os resultados haviam sido catastróficos.
Em lugar de ampliar essa erudição os novos feiticeiros, escolhidos por favoritismo arbitrário, conspiraram para promover‐se a si mesmos. Foram finalmente destruídos, e essa destruição quase extinguiu o conhecimento. Os poucos sobreviventes decidiram então que no futuro sua sabedoria jamais seria legada a seus descendentes ou a pessoas de sua escolha, senão àqueles eleitos por um poder impessoal chamado “o espírito”.
— Agora tudo isto nos traz a você. Os feiticeiros da antiguidade decidiram que
somente aqueles
predeterminados
seriam
qualificados.
Você
nos
foi
assinalada,
e aqui
está! É uma ensonhadora nata, e depende das forças que nos regem qual será seu
futuro caminho. Não depende de você nem, logicamente, de nós. Só pode aceitar ou
recusar. Julgando pela urgência de sua voz e à luz especial de seus olhos, era óbvio que
Esperanza me havia fornecido esta informação com toda a devida seriedade, e foi isto
o que impediu que me risse. Ademais, me encontrava demasiado exausta. A
concentração mental que precisei para segui‐la havia sido por demais intensa. Desejava dormir. Ela insistiu em que eu estirasse as pernas e me encostasse para relaxar‐me. O fiz ao ponto de cair adormecida.
Despertei
sem
idéia
do
quanto
havia
dormido.
Busquei
a
reconfortante
presença de Esperanza ou das outras mulheres, mas não havia ninguém no pátio.
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Contudo, não me senti só; de alguma maneira sua presença continuava vigente em
torno de mim, entre a verde folhagem. Uma brisa moveu as folhas, e eu a senti em
minhas pálpebras, morna e suave. Soprou em torno de mim, e depois passou por cima
de mim como passava sobre o deserto, rapidamente, sem som. Com a vista fixa nas lajotas caminhei ao redor do pátio, procurando entender
seu complicado
desenho,
e me
alegrou
comprovar
que
as
linhas
conduziam
de
uma
cadeira de junco à outra. Tentei lembrar quem havia ocupado cada uma das cadeiras, mas meu esforço se mostrou inútil. Não podia recordá‐lo.
Me distraiu um delicioso aroma de comida, realçado por alho e cebola, e guiada pelo odor cheguei à cozinha, um cômodo largo e retangular, tão deserta como o pátio. O desenho alegre das lajotas me recordava as do pátio, mas não me detive a constatar sua similaridade, pois achei a comida que tinha sobrado sobre uma maciça mesa de
madeira no meio do recinto. Presumindo que era para mim, tomei assento e comi tudo. Se tratava do mesmo guisado temperado que havia comido com eles. Aquecido
ficava ainda melhor.
Ao recolher
os
pratos,
descobri
um
bilhete
e um
mapa
embaixo
de
minha
esteira de palha. Nele Delia me sugeria regressar a Los Ângeles via Tucson, onde se
encontraria comigo em certa cafeteria indicada no mapa. Somente ali, informava, poderia dizer‐me mais acerca de si mesma e de seus amigos.
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CAPÍTULO QUATRO
Ansiosa por conhecer as revelações de Delia, regressei a Los Ângeles via
Tucson, e cheguei à cafeteria ao cair da tarde. Um velho me orientou até um espaço
vazio na área de estacionamento, e assim, quando abriu a porta de meu veículo,
consegui reconhecê
‐lo.
—Mariano Aureliano! — exclamei. —Que surpresa. Me alegra tanto vê‐lo. Que
faz você aqui? —Te esperava — afirmou. —Por isso meu amigo e eu lhe reservamos este
espaço. Tive uma fugaz visão de um índio corpulento que manejava uma velha
camionete colorida. Deixava o local no momento em que eu entrava. —Lamento que Delia não tenha podido vir. Precisou viajar inesperadamente a
Oaxaca — disse Mariano Aureliano e me deu um amplo sorriso antes de agregar: —Estou aqui como seu substituto. Espero poder preencher satisfatoriamente o vazio.
—Você não
tem
idéia
do
quanto
encantada
que
estou
em
vê
‐lo
—
afirmei
com
toda sinceridade, convencida de que ele, melhor que Delia, poderia me ajudar dando
sentido a tudo o que me havia acontecido nos últimos dias. —Esperanza me explicou
que eu estava em uma espécie de transe quando conheci a todos vocês — acrescentei. —Disse isso? — perguntou com um tom quase ausente. Sua voz, sua atitude e todo seu comportamento diferiam tanto da lembrança
que conservava dele, que me dediquei a observá‐lo com detenção, na esperança de
descobrir o que havia mudado. O rosto, rudemente esculpido, havia perdido sua
ferocidade mas, preocupada por minhas próprias inquietudes, desviei meus pensamentos.
—Esperanza me
deixou
sozinha
na
casa
—
prossegui.
—Ela
e todas
as
mulheres
se foram sem sequer se despedir de mim, mas… — me precipitei em completar — isso
não me preocupou, apesar de que normalmente me sinto muito incomodada quando
as pessoas não são cortêses. —Não me diga! — exclamou, como se eu houvesse dito algo extremamente
importante. Temerosa de que se ofendesse pelo que eu havia dito acerca de suas
companheiras, de imediato comecei a explicar‐lhe que não havia sido minha intenção
acusar a Esperanza e às outras de não ser amigáveis. —Muito pelo contrário — lhe assegurei —, foram o mais cortêses e carinhosas.
— estive
a ponto
de
revelar
o que
me
fora
confiado
por
Esperanza,
mas
sua
olhada
enérgica me deteve. Não havia nessa olhada raiva nem ameaça, senão uma qualidade
penetrante que perfurou minhas defesas, e tive a sensação de que tinha acesso à
confusão reinante em minha mente. Desviei o olhar para esconder meu nervosismo, e declarei em tom quase de
brincadeira não haver me sentido por demais afetada ao ficar sozinha na casa. —O que me intrigou foi que conhecia cada rincão do lugar — confessei, e me
detive, incerta a respeito do impacto que minhas palavras podiam haver lhe causado. Seguiu olhando‐me fixo. —Fui ao banheiro, e comprovei que havia estado ali antes. O
banheiro não tem espelhos, e recordei desse detalhe antes mesmo de entrar. Depois
lembrei
da
ausência
total
de
espelhos
na
casa,
percorri
cada
cômodo
e
o
confirmei.
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Ao comprovar sua ausência de reação ante minhas palavras, lhe confessei que
ao escutar a rádio durante minha viagem à Tucson me havia dado conta de que andava atrasada em um dia, e terminei dizendo, num tom esforçado:
—Devo ter dormido todo um dia. —Não dormiu um dia inteiro — assinalou Mariano Aureliano com indiferença
—, caminhou
por
toda
a casa
e falou
muito
conosco
antes
de
dormir
como
um
tronco.
Comecei a rir, um riso próximo ao histérico, mas ele não pareceu notá‐lo. Riu
comigo, e isso me relaxou. —Nunca durmo como um tronco — me senti obrigada a explicar. —Meu sono é
muito instável. Mariano Aureliano se calou, e quando retomou a palavra sua voz era séria e
exigente. —Lembra de haver sentido curiosidade sobre como as mulheres se vestiam e se
penteavam sem a ajuda de espelhos? Não me ocorreu nenhuma resposta, e ele prosseguiu.
—Lembra que
lhe
pareceu
estranho
a ausência
de
quadros
nas
paredes
e…?
—Não lembro de haver falado com ninguém — interrompi, para depois observá‐lo com cautela na crença de que, talvez, nada mais que para confundir‐me, alegaria que eu confraternizei com todos nessa casa, quando na verdade nada disso
havia acontecido. —Não lembrá‐lo não significa que não aconteceu — disse laconicamente. Senti em meu estômago uma involuntária revoada de mariposas. Não me havia
sobressaltado seu tom de voz, e sim o fato de haver dado resposta às minhas não
formuladas perguntas. Na certeza de que se seguisse falando algo dissiparia minha
crescente apreensão, me embarquei em uma longa e confusa recitação acerca de meu
estado de
ânimo.
Reconstruí
o acontecido
e me
deparei
com
buracos
na
ordem
do
que
ocorreu entre a sessão curativa e minha viagem à Tucson, prazo no qual, eu sabia, perdi todo um dia.
—Vocês me estão fazendo algo — os acusei, sentindo‐me momentaneamente virtuosa —, algo incomum e ameaçante.
—Agora está se portando como uma tonta — e pela primeira vez Mariano
Aureliano sorriu. —Se algo é incomum e ameaçante é só porque é novo para você. É
uma mulher forte, e cedo ou tarde lhe encontrará o sentido. Me incomodou o uso de mulher. Teria preferido que dissesse garota,
acostumada como estava a que pedissem meus documentos para provar que tinha
mais de
dezesseis
anos.
De
repente
me
senti
velha.
—A juventude deve estar unicamente nos olhos de quem contempla — disse
como se uma vez mais estivesse lendo meus pensamentos. —Quem quer que te olhe
deve perceber sua juventude, seu vigor, mas está mal que você se sinta uma
pequenina. Precisa ser inocente sem ser imatura. Por alguma razão inexplicável suas palavras excederam minha capacidade de
tolerância. Desejava chorar, não por sentir‐me ferida, e sim de desalento. Incapaz de
sugerir algo melhor, sugeri comer. —Estou morrendo de fome — anunciei com falso alvoroço. —Isso não é verdade — retrucou autoritário. —Está tentando mudar de
assunto.
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Surpreendida por seu tom e suas palavras olhei‐o aterrada, e minha surpresa de imediato se converteu em raiva. Não só tinha fome, como também estava cansada e tensa por causa da longa viagem. Desejava gritar, fazê‐lo alvo de minha ira e
frustração, mas seus olhos me impediam todo movimento, esses olhos que não
piscavam, e pareciam possuir atributos de réptil. Por um momento pensei que poderia
chegar a devorar
‐me,
do
mesmo
modo
em
que
uma
víbora
devora
a um
indefeso
e
hipnotizado pássaro. A tensão por temor e ira alcançou tal intensidade que senti o
sangue invadindo meu rosto, e soube por uma curiosa e quase imperceptível elevação
de sobrancelhas que Mariano Aureliano havia percebido essa mudança de cor. Desde
muito nova eu havia sofrido terríveis ataques de mau gênio, e a não ser por procurar acalmar‐me, ninguém havia tentado impedir minha entrega a eles, e eu o fazia até ao
ponto de convertê‐los em monumentais ataques de raiva, nunca causados por me ser negado algo que desejava fazer ou possuir, mas sim por indignações, reais ou
imaginárias, infligidas à minha pessoa. Não obstante, as circunstâncias desse momento me fizeram sentir vergonha de
meu hábito.
Fiz
um
esforço
consciente
para
controlar
‐me
que
quase
consumiu
todas
as
minhas forças, mas me acalmei. —Esteve todo um dia conosco, um dia que agora não pode recordar — explicou
Mariano Aureliano, pelo visto indiferente aos meus flutuantes estados de ânimo. —Durante esse tempo esteve muito comunicativa e receptiva, o qual nos encantou. Quando ensonha melhora, e se converte num ser mais atraente, menos geniosa. Nos permitiu conhecer‐lhe muito profundamente.
Suas palavras me inquietaram. Por ter crescido defendendo‐me e afirmando‐
me, tal qual fiz, me permitiu ser muito apta em detectar significados ocultos por trás das palavras. “Conhecer‐me muito profundamente” me preocupou. Em especial
“profundamente”. Só
podia
ter
um
significado,
pensei,
mas
de
imediato
o descartei
por ser descabido. Me absorvi de tal maneira em meus próprios cálculos que deixei de atentar ao
que dizia. Continuava com as explicações do dia perdido por mim, mas apenas captei pedaços isolados, e devo de ter grudado minha vista muito fixamente nele, pois de
repente deixou de falar. —Não está prestando atenção — me admoestou severamente. —O que me fizeram quando estive em transe? — retruquei, naquilo que, mais
que uma pergunta, era uma acusação. Me surpreenderam minhas próprias palavras por impensadas, e Mariano
Aureliano se
surpreendeu
ainda
mais,
e quase
o afogou
o rompante
de
riso
que
se
seguiu à sua inicial expressão de sobressalto. —Pode estar certa de que não nos aproveitamos de criancinhas — e não só
pareceu dizê‐lo com sinceridade, senão até ofendido por minha acusação. —Esperanza lhe disse quem somos: gente muito séria. —E depois, num tom brincalhão, acrescentou: —E levamos a sério este negócio.
—Que tipo de negócio? — exigi belicosamente. —Esperanza não me disse o
que queriam de mim. —Sei que o disse — respondeu com tal segurança que por um instante me
perguntei se não haveria estado oculto, escutando nossa conversa no pátio. Eu o
considerava
bem
capaz
de
fazer
isso.
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—Esperanza lhe disse que você nos havia sido assinalada — prosseguiu. —E
agora isso nos impulsiona, como a você lhe impulsiona o medo. —A mim não me impulsiona nada nem ninguém — gritei, esquecendo que
ainda não me havia revelado o que desejavam de mim. Em aparência indiferente ante minha raiva, disse que Esperanza havia sido
muito clara
ao
explicar
‐me
que
dali
em
diante
eles
estavam
comprometidos
em
criar
‐
me. —Criar‐me!? — gritei. —Vocês estão loucos. Já recebi toda a criação que
necessito! Ignorando meu estouro se dedicou a explicar que o compromisso deles era
total, e o fato de que eu o entendesse ou não, não lhes importava. Fiquei olhando‐o, incapaz de ocultar meu medo. Jamais havia escutado a alguém expressar‐se com tanta indiferença e ao mesmo tempo com interesse. Num esforço por ocultar meu alarme
procurei injetar em minha voz um valor que estava longe de sentir, e perguntei: —O que é que querem insinuar quando falam em criar‐me?
—Exatamente o que
ouviu
—
respondeu.
—Estamos
comprometidos
a guiar
‐te.
—Mas, por quê? — estava nervosa e curiosa ao mesmo tempo. —Você não vê
que não preciso de direção, nem quero que…? O riso de Mariano Aureliano afogou minhas palavras. —Não há dúvida alguma de que necessita direção. Esperanza já te fez ver que
sua vida carece de significado — e antecipando minha iminente pergunta me pediu
silêncio. —E no tocante a por quê você e não outra pessoa, ela lhe explicou que
deixamos ao espírito a escolha de quem devemos dirigir, e o espírito assinalou você. —Um momento, senhor Aureliano — protestei —, não quero ser grosseira nem
ingrata, mas você precisa entender que não busco direção. A simples idéia me
aborrece. Você
entende?
Fui
suficientemente
clara?
—Sim, e compreendo o que quer que eu entenda — e ao dizer isto deu um
passo para trás para afastar‐se de meu dedo em riste —, mas precisamente por não
desejar nada, você se converte na candidata ideal. —Candidata? — gritei, farta de sua insistência. Olhei ao redor, perguntando‐me
se aqueles que entravam e saíam da cafeteria poderiam ter me escutado, e continuei gritando:
—O que é isto? Você e seus companheiros são um bando de loucos! Deixem‐
me em paz, me ouviu? Não preciso de vocês nem de ninguém. Para surpresa e mórbida alegria de minha parte, Mariano Aureliano terminou
por irritar
‐se
e se
pôs
a criticar
‐me
tal
como
faziam
meus
pais
e meus
irmãos.
Com
voz
controlada, que não transcendia ao cenário de nossa discussão, me insultou, tratando‐
me de estúpida e de malcriada. Depois, como se o insultar‐me lhe desse ímpeto, disse
algo imperdoável. Gritou que minha única fortuna era a de ter nascido loira e de olhos azuis, numa terra onde esses atributos eram reverenciados.
—Jamais teve que lutar por nada — assegurou. —A mentalidade colonial dos mestiços de seu país fez que te olhassem como se merecesse tratamento especial. Um
privilégio baseado na posse de uma cabeleira loira e olhos azuis é o privilégio mais tonto que pode existir.
Eu estava passada, pois jamais fui dos que recebem insultos sem reagir. Os anos
de
treinamento
familiar
para
essas
batalhas
gritadas
que
mantínhamos,
e
as
extremamente descritivas vulgaridades aprendidas (e nunca esquecidas) nas ruas de
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43
Caracas quando era menina, essa tarde me foram de suma utilidade. Disse coisas a
Mariano Aureliano que me envergonham até o dia de hoje. Tal era meu estado de
nervos que não percebi que o índio corpulento condutor da camionete se havia
juntado a nós, e apenas o soube ao escutar sua forte risada. Ele e Mariano Aureliano
praticamente estavam no chão, segurando as barrigas e gritando alvoroçados.
—O que
tem
isto
de
engraçado?
—
gritei
ao
índio
corpulento,
a quem
também
insultei. —Que mulher tão boca‐suja! — disse em perfeito inglês —, se eu fosse seu pai
lhe lavava a boca com água e sabão. —Quem te deu vela neste enterro, gordo de merda? — e cega de fúria, dei‐lhe
um chute no tornozelo. A dor lhe fez soltar um grito, e me insultou. E eu estava a ponto de agarrar‐lhe
o braço e mordê‐lo quando Mariano Aureliano me pegou por trás e me jogou no ar. O tempo se deteve. Minha descida foi tão lenta, tão imperceptível, que me
pareceu estar suspensa no ar indefinidamente. Não caí em terra com os ossos
quebrados como
esperava,
e sim
nos
braços
do
índio
corpulento.
Não
cambaleou
ao
receber‐me, sustentando‐me como a uma levíssima almofada. Consegui captar um
malicioso reflexo em seus olhos, e tive a certeza de que me iria lançar para cima de
novo, mas deve ter intuído meu temor, pois sorriu e, com suavidade, me depositou no
chão. Esgotadas minhas forças e minha ira, me apoiei contra o carro e chorei. Mariano Aureliano me rodeou com seus braços e acariciou minha cabeça e meu
braço, tal como fazia meu pai quando eu era menina. Murmurando palavras tranquilizantes me assegurou não estar nem um pouco incomodado pelas barbaridades que lhe havia gritado. A culpa, e um sentimento de pena por mim
mesma, aumentaram a intensidade de meu choro. Ante isto ele sacudiu a cabeça num
gesto de
resignação,
ainda
que
seus
olhos
brilhassem
de
gozo.
Depois,
num
esforço
evidentemente destinado a fazer‐me rir, confessou que, contudo, lhe custava acreditar que eu conhecesse um linguajar tão sujo, e menos ainda usá‐lo.
—Bom — cochichou — suponho que a linguagem existe para ser usada, e o
linguajar sujo para quando as circunstâncias o requerem. Suas palavras não me causaram graça, e uma vez superado o ataque de auto‐
compaixão eu comecei, como era habitual em mim, a remoer sua afirmação de que a
única coisa que eu possuía era o cabelo loiro e os olhos azuis. Devo ter revelado algo a
Mariano Aureliano acerca de meus sentimentos, pois me assegurou haver dito isso
somente para mortificar‐me, e que não havia nada de certo nisso. Sabia que mentia, e
por um
momento
me
considerei
duplamente
insultada,
e depois
espantada,
ao
dar
‐me
conta de que minhas defesas estavam destruídas. Estava de acordo com ele. Havia
estado certo em tudo o que havia dito. Com um só golpe me havia desmascarado, perfurado minha couraça. Ninguém, nem sequer meu pior inimigo, já havia conseguido
me aplicar um golpe tão demolidor, e no entanto, pensasse o que pensasse de
Mariano Aureliano, sabia que não era meu inimigo. Essa descoberta me produziu
vertigens, como se uma força invisível estivesse pressionando algo em meu interior a
idéia de mim mesma. Algo que costumava fortificar‐me agora me esgotava. Mariano Aureliano me pegou pelo braço e me conduziu até a cafeteria. —Vamos fazer uma trégua — me sugeriu jovialmente. —Preciso que me faça
um
favor.
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—Você não precisa nada mais do que pedir — respondi, e procurei imitar seu
tom. —Antes que você chegasse pedi um sanduíche na cafeteria, e praticamente se
recusaram a me servir. Quando protestei o cozinheiro me dispensou. Isso acontece por eu ser índio — queixou‐se abatido.
—Denuncie o cozinheiro
para
o gerente
—
sugeri
indignada,
meus
próprios
problemas misteriosamente esquecidos. —Isso não me ajudaria em nada — confessou Mariano Aureliano, e me
assegurou que a única maneira em que eu podia ajudá‐lo era entrando na cafeteria para sentar‐me no balcão, pedir um bom almoço, e deixar cair nele uma mosca morta.
—E tacar a culpa no cozinheiro? — conclui por ele. Tudo me parecia tão
absurdo que acabei rindo, mas ao perceber que falava a sério, prometi fazer o que me
pedia. —Espere aqui — disse, e depois, junto com o índio corpulento (que ainda não
me havia sido apresentado) se encaminharam até a camionete roxa, estacionada na
rua, para
regressar
quase
de
imediato.
—A propósito — disse Mariano Aureliano —, este é John. É um índio Yuma do
Arizona. Estava por perguntar se John também era feiticeiro, mas Mariano Aureliano se
adiantou a mim. —É o membro mais jovem de nosso grupo. Com um risinho nervoso estendi minha mão: —Encantada em conhecer‐lhe. —Igualmente — retribuiu. Sua voz era profunda, ressonante, e seu aperto de
mãos, cálido. —Espero que você e eu nunca nos agarremos a tapas.
Apesar de
não
ser
muito
alto
exalava
a vitalidade
e a força
de
um
gigante.
Até
seus grandes dentes brancos pareciam indestrutíveis. Com ânimo brincalhão
inspecionou meus bíceps e opinou: —Aposto que pode desmontar a um sujeito com um só soco bem dado. Antes que pudesse desculpar‐me por meus chutes e insultos, Mariano
Aureliano pôs uma pequena caixa em minhas mãos. —A mosca — explicou. —John sugeriu que use isto — e tirou uma peruca negra
e enrolada de uma bolsa. —Não se preocupe, é nova em folha — disse, enquanto a
acomodava em minha cabeça. Depois, afastando‐se um pouco para inspecionar‐me, disse que servia. —Não está mal. Não quero que te reconheçam — e se ocupou de
ocultar minha
longa
cabeleira
loira.
—Não há necessidade de disfarçar‐me — protestei. —Posso assegurar‐lhes que
não conheço a ninguém em Tucson. —me observei no espelho retrovisor de meu
carro. —Não posso entrar assim, pareço um poodle. Mariano Aureliano me observava com um exasperante ar divertido, enquanto
acomodava uns fios rebeldes. —Não se esqueça que tem que se sentar no balcão e gritar como uma louca
quando descobrir a mosca em sua comida. —Por quê? Olhou‐me como se eu fosse uma retardada.
—Tem
que
chamar
a
atenção
e
humilhar
ao
cozinheiro.
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A cafeteria estava repleta pelos clientes de primeira hora, mas não demorei em
arranjar um lugar no balcão. Uma cansada mas bem disposta garçonete pegou meu
pedido. Semi‐oculto atrás da grade dos pedidos pude ver ao cozinheiro, mexicano ou
norte‐americano de origem mexicana, que desempenhava suas tarefas com tal bom
ânimo que tive a certeza de que era inofensivo, incapaz de malícia alguma; mas ao
pensar no
velho
índio
que
me
aguardava
na
praça
de
estacionamento,
não
hesitei
em
esvaziar o conteúdo da caixa de fósforos sobre o hambúrguer perfeitamente assado
que havia pedido, e o fiz com tal velocidade e dissimulação que nem sequer os homens sentados de cada lado notaram minha ação. Meu grito de asco foi autêntico, ao ver uma enorme barata morta em minha comida.
—O que foi, querida? — perguntou a garçonete. —Como o cozinheiro espera que eu coma isto? — me queixei. Não foi
necessário pretextar raiva. Estava indignada, não com o cozinheiro e sim com Mariano
Aureliano. —Como pôde fazer isto comigo? — perguntei em voz alta. —Só pode ser um horrível acidente — explicou a mulher aos dois curiosos
clientes que
me
ladeavam,
ao
mesmo
tempo
em
que
mostrava
o prato
ao
cozinheiro.
—Fascinante! — opinou o cozinheiro em voz alta, e coçando a testa inspecionou o prato. Não demonstrava preocupação alguma, e tive a vaga suspeita de
que se ria de mim. —Esta barata ou caiu do teto ou… — e olhou minha cabeça como se
fascinado — …de sua peruca. Antes que eu pudesse demonstrar‐lhe minha indignação e colocá‐lo em seu
lugar, me ofereceu a escolha de qualquer prato do menu. —Por conta da casa — prometeu. Pedi um bife e um caldo quente, o qual me foi trazido quase de imediato, e
quando estava a ponto de colocar os temperos em minha salada, o qual sempre deixo
para o final,
descobri
uma
aranha
de
respeitável
tamanho
emergindo
por
debaixo
da
folha. Foi tal minha surpresa ante a evidente provocação que nem sequer pude gritar, e ao levantar os olhos vi ao cozinheiro atrás da treliça, acenando‐me com a mão e com
um amplo sorriso. Mariano Aureliano me aguardava, impaciente. —O que aconteceu? — perguntou. —Você e sua asquerosa barata! — disse incisiva. —Não aconteceu nada. O
cozinheiro não se incomodou, e se divertiu muitíssimo, claro que às minhas custas. A
única que se incomodou fui eu. A pedido seu, dei a Mariano Aureliano um detalhado informe do acontecido.
Quanto mais eu falava mais parecia divertir‐se. Desconcertada por sua reação exigi:
—O que
é tão
engraçado
para
você?
Lutou por manter‐se sério, mas seus lábios o traíram, e o riso inicial se
converteu numa explosão de boas gargalhadas. —Não pode se levar tão a sério — me repreendeu. —É uma excelente
ensonhadora, mas não é atriz. —Não estou atuando agora — retruquei defensivamente em voz chorosa. —Quero dizer que contava com sua habilidade para ser convincente —
esclareceu. —Tinha que fazer o cozinheiro acreditar em algo que não era certo. Pensei que poderia fazê‐lo.
—Como você se atreve a me criticar? — gritei. —Faço o papel de tonta em seu
favor,
e
tudo
o
que
se
lhe
ocorre
dizer
é
que
não
sei
atuar!
—
tirei
a
peruca
e
a
joguei
longe. —Por certo que agora estou com piolhos.
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Ignorando meu rompante Mariano Aureliano observou que Florinda já lhe havia
antecipado que eu era incapaz de fingir. —Tínhamos que nos assegurar para colocá‐la na repartição apropriada —
acrescentou. — Os feiticeiros são ou ensonhadores ou espreitadores. —Do que está falando? Que bobagem é esta de ensonhadores e espreitadores?
—Os ensonhadores
se
ocupam
de
ensonhos
—
explicou.
—Obtêm
seu
poder
e
sua sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com
o mundo cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus semelhantes.
—Evidentemente você não me conhece — disse de maneira depreciativa. —Eu
sei lidar muito bem com as pessoas. —Isso não é verdade — me contradisse. —Você mesma já disse que não sabia
conversar. É uma boa mentirosa, mas mente só para conseguir o que deseja. Suas mentiras são demasiado específicas, por demais pessoais. E sabe por quê? — fez uma
pausa, como para dar‐me tempo de responder, mas antes que eu pudesse pensar em
algo, continuou:
—Porque
para
você
as
coisas
são
brancas
ou
pretas,
sem
meios
tons,
e não falo em termos de moral mas sim em termos de conveniência; sua conveniência, é claro. Uma verdadeira autoritária. — Mariano e John trocaram olhares, depois ambos endireitaram seus ombros, fizeram soar os saltos de seus sapatos, e fizeram
algo para mim imperdoável. Estiraram os braços numa saudação fascista e gritaram: —Mein Führer! Quanto mais riram mais aumentava minha fúria. Senti o sangue zunindo em
meus ouvidos, sufocando meu rosto, e desta vez não fiz nada para acalmar‐me além
de chutar meu carro e dar murros na capota. Em vez de consolar‐me, tal qual teriam
feito meus pais ou meus amigos, os dois homens se dedicaram a rir como se eu lhes
estivesse proporcionando
o espetáculo
mais
divertido
imaginável.
Sua
indiferença,
sua
total falta de preocupação comigo era tão chocante, que minha ira diminuía lentamente por si mesma. Nunca havia sido ignorada a tal ponto. Senti‐me perdida, sem capacidade de manobra. Nunca soube, até esse dia, que se as testemunhas de
meus ataques de raiva se mostravam indiferentes, eu não sabia que caminho tomar. —Creio que agora está confundida. Não sabe o que fazer. — Mariano Aureliano
disse a John, e o rodeou com seu braço e acrescentou em voz baixa mas o
suficientemente alta como para que eu escutasse: —Agora vai começar a chorar, e
quando o fizer, chorará até que a consolemos. Não há nada mais chato que uma putinha malcriada.
Isso foi
o auge.
Como
um
touro
ferido,
baixei
a cabeça
e investi
contra
Mariano
Aureliano. Tanto lhe surpreendeu meu furioso e inesperado ataque que quase perdeu
o equilíbrio, o qual me deu tempo suficiente para cravar os dentes na parte carnosa de
sua barriga. Seu grito foi uma mistura de dor e riso. John me pegou pela cintura para separar‐me, mas eu não afrouxei a mordida enquanto não cedeu minha prótese
dental. Havia perdido dois de meus dentes superiores frontais aos treze anos, numa briga entre os estudantes venezuelanos e alemães da Escola Alemã de Caracas. Os dois homens riram aos gritos, John recostado sobre o porta‐malas de meu Volkswagen, segurando a barriga e golpeando o carro.
—Tem um rombo entre os dentes como um jogador de futebol! — conseguiu
articular
entre
alaridos.
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Minha vergonha superou toda descrição. Tal era minha raiva que meus joelhos se afrouxaram. Caí ao chão como uma boneca de trapo e desmaiei. Quando recuperei os sentidos estava sentada dentro da camionete. Mariano Aureliano me pressionava as costas e, sorrindo, acariciava repetidas vezes minha cabeça. Depois me abraçou. Me
surpreendeu minha ausência de emoção; não me sentia enraivecida nem
envergonhada. Estava
relaxada,
em
paz,
dona
de
uma
serenidade,
de
uma
tranquilidade nunca experimentada anteriormente. Pela primeira vez em minha vida
me dei conta de que jamais havia estado em paz comigo nem com os outros. —Gostamos muito de você — disse Mariano Aureliano —, mas precisa se curar
desses ataques. Se não o fizer eles te matarão. Desta vez foi culpa minha, e preciso
pedir perdão por ela. Eu te provoquei deliberadamente. Me encontrava por demais tranquila para responder. Desci da camionete para
estirar braços e pernas. Sentia câimbras nas panturrilhas. Depois de um tempo lhes pedi desculpas a ambos, e lhes disse que meu caráter havia piorado desde que passei a
tomar bebidas gasosas compulsivamente.
—Então deixe
de
fazê
‐lo
—
sugeriu
Mariano
Aureliano.
Depois
mudou
por
completo de assunto e seguiu como se nada houvesse acontecido. Disse estar muito
contente por eu ter‐me unido a eles. —De verdade? — perguntei sem compreender. —Eu me uni a vocês? —Assim é. Um dia tudo terá sentido para você — e me assinalou um bando de
corvos que nos sobrevoavam. —Os corvos são um bom presságio. Olhe como são
lindos. Como uma pintura no céu. Vê‐los agora é uma promessa de que nós nos veremos de novo.
Fiquei olhando aos pássaros até que desaparecessem. Quando me voltei para olhar a Mariano Aureliano já não estava ali. A camionete se havia ido sem sequer um
ruído.
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CAPÍTULO CINCO
Sem me importar com as aranhaças me lancei atrás do cão que, a grande
velocidade, se enfiava por entre os arbustos de Artemísia. De súbito perdi de vista sua
pelagem dourada, e segui a pista de seus latidos, cada vez mais fracos na distância.
Intranquila, observei
a grossa
névoa
avançando
para
mim,
para
cerrar
‐se
em
torno
do
lugar onde me encontrava, e em poucos momentos o céu se apagou. A suavizada bola do sol declinante da tarde era apenas avistada, e a magnífica vista da baía de Santa Mônica, agora mais imaginada que vista a partir das montanhas de Santa Susana, havia
desaparecido com incrível rapidez. Não me preocupava a perda do cachorro, mas não
tinha idéia de como regressar ao apartado local escolhido por meus amigos para o
piquenique, nem onde se encontrava o caminho de pedestres que tomei para perseguir ao animal.
Encaminhei uns passos inseguros na mesma direção tomada pelo cachorro
quando algo me deteve. Descendendo desde alguma abertura na névoa vi como um
pequeno ponto
luminoso
caía
até
mim.
Outro
o seguiu,
depois
outro,
semelhantes
a
pequenas chamas atadas a uma linha; tremiam e vibravam no ar para extinguir‐se
justo antes de me alcançar, como tragadas pela névoa. Dado que desapareceram a
poucos metros diante de mim, me aproximei desejosa de examinar o extraordinário
espetáculo, e perfurando a névoa com a vista, vi deslizarem‐se umas escuras figuras humanas, suspendidas no ar a curta distância do sólo como se caminhassem nas pontas dos pés sobre as nuvens. Uma atrás da outra se agacharam até formar um
círculo. Ensaiei uns passos vacilantes para depois deter‐me quando a névoa ficou mais espessa e tragou as figuras.
Permaneci imóvel, sem saber o que fazer, vítima de um estranho medo, não o
conhecido, e sim
um
medo
que
afetava
o corpo,
o estômago,
o
tipo
de
medo
que
os
animais devem experimentar. Não sei quanto tempo permaneci ali. Quando a névoa levantou‐se o suficiente descobri à minha esquerda, a uns vinte e tantos metros, dois homens sentados no chão com as pernas cruzadas. Cochichavam, e o som de suas vozes parecia vir de todas as direções, presas em pequenas capas de névoa semelhantes a tufos de algodão. Não lhes entendi, mas uma ou outra palavra chegada aos meus ouvidos me produziu tranquilidade; falavam espanhol.
—Estou perdida! — gritei. Ambos se viraram com lentidão, hesitantes e incrédulos, como quem vê a uma
aparição. Olhei atrás de mim para ver se alguém que estivesse ali fosse o causador de
sua dramática
reação.
Não
havia
ninguém.
Sorrindo, um dos homens se levantou. Estirou seus membros até fazer estalar suas articulações, e depois, com rápidos passos percorreu a distância entre nós. Era jovem, de baixa estatura e forte constituição: ombros poderosos e cabeça grande. Seus olhos escuros irradiavam uma divertida curiosidade. Disse‐lhe que passeava com
amigos e me havia perdido perseguindo seu cão. —Agora não sei como juntar‐me de novo a eles. —Por aqui não se pode seguir — me advertiu. —Estamos parados sobre um
penhasco — e com grande seriedade me pegou pelo braço e me conduziu à própria borda do precipício, distante não mais de uns três metros de onde eu havia estado
parada.
—Este
amigo
—
e
assinalou
ao
outro
homem
que
havia
permanecido
sentado
— acabava de contar‐me que abaixo há um velho cemitério indígena, quando você
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apareceu e quase nos matou de susto. Você é sueca? — perguntou, estudando meu
rosto e minha longa trança loira. Ainda confusa com o que foi dito pelo jovem acerca do cemitério, fixei minha
vista na névoa. Sob circunstâncias normais, como estudante de antropologia, me
haveria entusiasmado a idéia do cemitério indígena, mas nesse momento pouco me
importava o que
havia
abaixo
nessa
cavidade
enevoada.
A
única
coisa
em
que
conseguia pensar era que, de não me haver distraído essas luzes, eu poderia ter terminado enterrada ali.
—Você é sueca? — insistiu. —Sim — menti, e de imediato o lamentei, mas não podia pensar em como
desdizer‐me sem perder prestígio. —Fala castelhano com perfeição — comentou. —Os suecos possuem uma
maravilhosa facilidade para os idiomas. Apesar de sentir‐me muito culpada, não pude fazer nada menos que
acrescentar que, mais que um dom, era uma necessidade para os escandinavos
aprender vários
idiomas,
se
desejavam
comunicar
‐se
com
o resto
do
mundo.
—Ademais — confessei —, me criei na América do Sul. Por alguma estranha razão esta informação pareceu desorientá‐lo. Sacudiu a
cabeça, como para exteriorizar sua dúvida; depois permaneceu um longo tempo em
silêncio, absorto em seus pensamentos. Logo após, como se houvesse chegado a uma decisão, me pegou pela mão e me levou junto ao outro homem que permanecia sentado.
Não era minha intenção entregar‐me à sociabilidade. Queria juntar‐me com
meus amigos o mais rápido possível, mas o jovem me deixou tão envaidecida, que em
lugar de pedir‐lhe que me conduzisse ao caminho de pedestres, lhe ofereci uma
detalhada versão
das
luzes
e das
figuras
humanas
que
acabara
de
ver.
—Que raro que o espírito tenha lhe ajudado — murmurou o homem sentado
como para seus botões, franzindo o cenho, mas era óbvio que se dirigia a seu
companheiro, que respondeu com outro ininteligível murmúrio, e trocaram olhares que intensificaram minha inquietude.
—Perdão? — disse, dirigindo‐me ao homem sentado. —Não entendi o que
disse. Olhou para mim de modo agressivo. —Foi advertida do perigo — anunciou em voz grave e ressonante. —Os
emissários da morte vieram em seu auxílio.
—Quem? —
me
senti
obrigada
a perguntar,
apesar
de
ter
lhe
entendido
perfeitamente bem. Olhei‐o de perto, e por um momento tive a certeza de que o conhecia bem,
mas ao completar meu estudo cheguei à conclusão de não tê‐lo visto jamais, apesar de
não poder descartar a impressão inicial. Não era tão jovem como o outro, embora tampouco velho, e sem dúvida alguma era índio, de tez escura, cabelo negro e liso da
grossura de uma escova. Mas não era seu aspecto exterior o que o fazia familiar. Era mal humorado como só eu podia ser. Pelo visto meu exame o incomodou, pois ficando
de pé abruptamente, anunciou que me levaria para junto de meus amigos. —Siga‐me, e não se atreva a cair. Cairia encima de mim e ambos nos
mataríamos
—
disse
em
tom
pouco
amável,
e
antes
de
dar‐
me
a
oportunidade
de
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50
responder que não era uma tonta, se adiantou por um pronunciado declive na direção
oposta ao penhasco. —Sabe aonde vai? — gritei‐lhe, revelando na voz meu nervosismo. Não podia orientar‐me (nunca fui boa para isso), mas não achei estar subindo
um monte quando persegui ao cão. O homem se virou, o rosto iluminado por um
sorriso, apesar
de
que
seus
olhos
não
sorriram.
Me
lançou
um
olhar
pétreo.
—Te levarei para com seus amigos — foi tudo o que disse. Não me agradava o sujeito, mas sem dúvida acreditava nele. Não era muito
alto, talvez um metro e setenta, e de ossos pequenos, apesar do qual seu corpo
impressionava por ser maciço e compacto. Se movia com muita confiança na névoa, pisando com graça e facilidade naquilo que eu acreditava ser uma baixada vertical.
O homem mais jovem desceu atrás de mim, ajudando‐me em cada uma de
minhas dificuldades. Tinha as polidas maneiras de um velho cavalheiro. Suas mãos eram suaves ao tato, porém fortes, bonitas e de tremendo poder. Várias vezes, com
grande facilidade, alçou‐me por cima de sua cabeça, talvez não uma grande façanha
dado meu
peso
escasso,
mas
impressionante
posto
que
estávamos
parados
sobre
beiradas de argila, e ele só era mais alto que eu por quatro ou cinco centímetros. —Precisa agradecer‐lhes, aos emissários da morte — ordenou o que havia
encabeçado nossa travessia, nem bem alcançamos terra plana. —Sim? — perguntei, zombando; a mera idéia me parecia ridícula. —Devo
ajoelhar‐me? — perguntei entre risadas. Ao homem não lhe pareceu tão gracioso. Com os braços na cintura me olhou
nos olhos sem sorrir. Havia um quê ameaçante em seu porte, em seus escuros olhos inclinados, que olhavam sob sobrancelhas hirsutas que se uniam sobre a ponte de seu
nariz esculpido. De improviso me deu as costas e se afastou, para sentar‐se sobre uma
rocha próxima.
—Não podemos nos ir daqui até que você agradeça aos emissários da morte —
repetiu. De repente me preocupou a comprovação de estar só num lugar perdido,
prisioneira da névoa e junto com dois homens estranhos, um deles talvez perigoso, que não se moveria do lugar se para tanto eu não cumprisse sua ridícula exigência, mas, que surpresa… em lugar do temor, senti vontade de rir. O sorriso compreensivo
do homem jovem revelava às claras que sabia como eu me sentia, o qual lhe causava grande prazer.
—Não precisa chegar ao extremo de ajoelhar‐se — disse, depois do qual,
incapaz de
controlar
seu
regozijo,
soltou
uma
risada
alegre
que
soava
como
se
pequenos seixos caíssem em torno. Seus dentes eram imaculadamente brancos e
paralelos, como os de uma criança, e seu rosto por sua vez doce e travesso. —Basta
apenas dizer obrigado — aconselhou. —Diga‐o. O que pode perder com isso? —Me sinto boba — confessei, procurando de forma deliberada ganhá‐lo para
meu lado. —Não o farei. — depois, entre risos, repeti: —Eu sinto muito, mas não
posso fazê‐lo. Sou assim. Enquanto alguém me insiste que faça algo que não quero
fazer, me ponho tensa e irritada. Com a vista fixa no chão, a testa descansando sobre os nós dos dedos, moveu a
cabeça em sinal de estar ponderando o assunto.
—É
um
fato
que
algo
impediu
que
você
se
machucasse,
talvez
até
que
se
matasse. Algo inexplicável.
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Estive de acordo, e ainda admiti que tudo me parecia muito estranho. Inclusive
tentei exibir‐me falando sobre um fato fortuito que, por coincidência, acontece no
lugar certo e na hora certa. —Tudo isso está muito bem, mas não explica seu caso particular — e me deu
um carinhoso golpe na testa. —Você recebeu um presente, chame ao doador de
coincidência, circunstância,
cadeia
de
acontecimentos
ou
o que
seja,
mas
o fato
é que
você não foi ferida e nem sofreu dor alguma. —Talvez tenha razão — concedi. —Deveria mostrar‐me mais agradecida. —Não mais agradecida, mais flexível, mais fluida — opinou rindo, e vendo a
raiva que se gestava em mim, abriu bem os braços como para abarcar os arbustos de
Artemísia que nos rodeavam. —Meu amigo acredita que o que você viu tem relação
com o cemitério indígena que por certo está aqui. —Não vejo nenhum cemitério — respondi na defensiva. —É difícil de reconhecer, e não é a névoa o que impede de vê‐lo. Mesmo em
dias de sol a única coisa que se vê são os arbustos. — se ajoelhou, e me olhou com um
sorriso. —Não
obstante,
para
o olho
conhecedor,
se
trata
de
um
grupo
de
arbustos
de
forma insólita. — se deitou no chão, sobre o estômago, a cabeça virada para a
esquerda, indicando‐me para fazer o mesmo. —Esta é a única forma de vê‐lo com claridade — explicou.—Eu não o saberia a
não ser por meu amigo, que conhece todo tipo de coisas interessantes. Inicialmente não vi nada; depois, uma por uma, descobri as rochas entre o
espesso mato. Escuras e brilhantes, como se a névoa as houvesse lavado, estavam
reunidas em círculo, e mais pareciam criaturas que pedras, e quando me dei conta de
que eram idênticas às figuras humanas vistas entre a névoa, precisei reprimir meu
grito.
—Agora estou
assustada
de
verdade
—
murmurei.
—Eu
lhes
disse
que
vi
figuras
humanas sentadas em círculo — e tratei de procurar em seu rosto repúdio ou ironia, antes de acrescentar: —É demasiado inaudito, mas quase juraria que essas rochas são
as pessoas que vi. —Eu sei disso — falou em voz tão baixa que precisei me aproximar. —Tudo é
muito misterioso. Meu amigo, que como você já terá notado, é índio, disse que certos cemitérios indígenas têm um círculo ou uma fila de pedras. Essas pedras são os emissários da morte — me observou com detenção, e depois, como para assegurar‐se
de minha total atenção, confessou: —Tome nota. São os emissários, não a
representação dos emissários.
Fixei minha
vista
no
homem,
não
só
porque
não
sabia
bem
como
interpretar
suas palavras, e sim pelo fato de que esse rosto mudava à medida que ele falava e
sorria. Porém não eram os traços os que mudavam, era o rosto que um minuto era o
de um menino de seis anos, depois de um adolescente de dezessete, e também o de
um velho. —São crenças estranhas — continuou, indiferente a meu olhar inquisidor. —Eu
não lhes dei maior crédito até o momento em que você apareceu de improviso, quando meu amigo me falava dos emissários da morte e justamente vem você nos dizendo que acabara de vê‐los. Se eu fosse dado à suspeitas — e seu tom se tornou
subitamente ameaçador — diria que você e ele estão confabulados.
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—Não o conheço! — me defendi, a simples suspeita me indignava. Depois, em
voz baixa, para que só ele pudesse me escutar, acrescentei: —Para ser‐lhe franca, seu
amigo me dá medo. — Se eu fosse dado à suspeitas — repetiu o jovem, ignorando minha
interrupção —, acreditaria que vocês dois estão tratando de assustar‐me. Mas sou
confiante, de
modo
que
o único
que
posso
fazer
é suspender
todo
juízo
e desejar
saber
mais sobre você. —Eu não quero que saiba nada de mim — disse com irritação — e de qualquer
jeito não sei de que merda você fala. — olhei‐o furiosa. Não simpatizava com seu
dilema, pois também ele me estava inspirando medo. —Está falando de agradecer aos emissários da morte — disse o homem maior
que havia chegado onde eu estava, e me olhava de maneira estranha. Desejosa de abandonar o lugar e a esses dois loucos, fiquei de pé e gritei meu
agradecimento. Minha voz rebateu no mato rasteiro, que parecia ter se convertido em
rocha, e a escutei até que o eco se extinguiu. Depois, como possuída, e fazendo algo
que meu
bom
juízo
censuraria,
gritei
meu
agradecimento
uma
e outra
vez.
—Estou certo de que os emissários estão mais que satisfeitos — opinou o
jovem, golpeando minha panturrilha e deixando‐se cair ao chão para rir às gargalhadas. Eu não duvidei por um instante que, apesar da leviandade de meu gesto, havia de fato agradecido aos emissários da morte e, curiosamente, me sentia protegida por eles.
—Quem são vocês? — perguntei, dirigindo‐me ao mais jovem dos dois homens. Num salto ágil se pôs de pé. —Eu sou José Luis Cortez, meus amigos me chamam Joe — e me estendeu a
mão —, e este aqui, é meu amigo Gumersindo Evans Pritchard.
Temendo soltar
uma
risada
mordi
os
lábios
e comecei
a coçar
o joelho.
—Há de ser uma pulga — disse‐lhes, olhando de um para outro. Ambos devolveram meu olhar, desafiando‐me a zombar do nome, e tal era a seriedade de
suas expressões que meu riso se desvaneceu. Gumersindo Evans‐Pritchard pegou
minha mão e a sacudiu com vigor. —Encantado em conhecê‐la — disse em perfeito inglês de classe alta britânica.
—Por um momento pensei que você era uma dessas mulherzinhas estúpidas e
presunçosas sem outra graça que não a boceta. Em uníssono meus olhos e minha boca se dilataram. Apesar de intuir que suas
palavras mais continham um elogio que um insulto, meu choque foi tão intenso que
fiquei como
paralisada,
apesar
de
ser
capaz
de
competir
com
quem
fosse
no
uso
de
linguajar sujo, mas a palavra boceta (coño) me soou tão espantosamente ofensiva que
fiquei privada da fala. Joe veio em meu auxílio. Desculpou ao seu amigo com a explicação de que era
um iconoclasta social extremado, e antes de permitir‐me a oportunidade de dizer que
Gumersindo havia feito em pedacinhos meu sentido de decência e de boas maneiras, acrescentou que a compulsão de Gumersindo a ser iconoclasta se devia a ser seu
sobrenome Evans‐Pritchard. —Não deveria surpreender a ninguém. Seu pai é um inglês que abandonou à
sua mãe, uma índia de Jalisco, antes de Gumersindo nascer.
—Evans‐
Pritchard?
—
repeti
cautelosamente,
e
depois
perguntei
a
Gumersindo
se era correto permitir a Joe revelar a uma estranha seus segredos de família.
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—Não há segredos de família — respondeu Joe por seu amigo — e sabe por quê? — e fixou em mim seus olhos escuros e brilhantes, que não eram negros nem
castanhos, e sim da cor de cerejas maduras. Sacudi a cabeça em gesto de desamparo, minha atenção presa ao seu olhar insistente, onde um olho parecia rir de mim, enquanto o outro se mantinha sério, agourento e ameaçador.
—Porque o que
você
chama
segredos
de
família
constitui
a fonte
de
energia
de
Gumersindo. Sabia que seu pai é agora um famoso antropólogo inglês? Gumersindo o
odeia. Com um gesto quase imperceptível de cabeça, como orgulhoso de seu ódio,
Gumersindo aprovou. Não podia acreditar em minha boa sorte. Estavam se referindo a
E. E. Evans‐Pritchard, um dos antropólogos sociais mais importantes do século XX, e
era precisamente nesse semestre na universidade que eu estava preparando um
trabalho sobre antropologia social, e sobre os mais eminentes investigadores nesse
campo. Que sorte a minha! Precisei reprimir a tentação de gritar e saltar de alegria!
Descobrir semelhante
segredo:
um
grande
antropólogo
que
seduz
e abandona
a uma
mulher índia. Pouco importava que Evans‐Pritchard não tenha trabalhado no México
(era mais conhecido por suas investigações na África), pois estava certa de descobrir que durante alguma de suas visitas aos Estados Unidos havia estado no México. Tinha a prova diante de meus olhos.
Com um sorriso suave nos lábios contemplei a Gumersindo, e me fiz uma
secreta promessa de não revelar nada sem sua permissão. Bom, talvez eu dissesse algo
a algum dos professores: depois de tudo, uma pessoa não topava todos os dias com
este tipo de informação. As possibilidades giravam em minha mente. Talvez uma
conversa íntima com alguns estudantes selecionados na casa de um de meus
professores. Até
selecionei
o professor,
alguém
que
não
me
caía
muito
bem,
e que
tinha uma maneira um tanto infantil de querer impressionar a seus alunos. Nos encontrávamos de tanto em tanto em sua casa, onde cada vez descobria sobre sua escrivaninha, como deixada ao acaso, uma nota dirigida a ele pelo famoso antropólogo
Claude Lévi‐Strauss. —Não nos disse seu nome — recordou Joe, puxando‐me suavemente pela
manga. —Carmen Gebauer — respondi sem titubear, dando o nome de uma amiga de
minha infância, e para abrandar minha culpa e incômodo por ter mentido, perguntei a
Joe se era da Argentina, e ao observar sua expressão confusa me apressei a
acrescentar que
seu
sotaque
era
definitivamente
argentino,
ainda
que
não
parecesse
um argentino, completei. —Sou mexicano — disse —, e julgando por seu sotaque, você foi criada em
Cuba ou na Venezuela. Não quis seguir essa linha de conversação, de modo que mudei de assunto com
rapidez. —Sabe como voltar ao caminho de pedestres? — perguntei, subitamente
consciente de que meus amigos podiam estar preocupados por mim. —Eu não — confessou Joe com candura infantil —, mas meu amigo
Gumersindo Evans‐Pritchard sim.
Gumersindo
nos
guiou
através
do
chaparral,
por
uma
estreita
trilha
do
outro
lado da montanha, e não demoramos muito em ouvir as vozes de meus amigos e ao
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latido de seu cachorro. Experimentei um intenso alívio, mas ao mesmo tempo me
desiludiu e desagradou o fato de que nenhum dos dois mostrava‐se interessado em se
comunicar de novo comigo. —Bom, é certo que voltaremos a nos ver — se despediu Joe
desinteressadamente, e Gumersindo Evans‐Pritchard me surpreendeu beijando
galantemente minha
mão,
e o fez
de
maneira
tão
natural
e graciosa
que
não
me
ocorreu rir. —Está em seus genes — explicou Joe. —Apesar de ser só meio inglês, seu
refinamento é impecável. É um perfeito galã! Sem mais delongas ambos desapareceram na névoa, e duvidei muito se os veria
de novo. De repente me senti muito culpada por haver mentido sobre meu nome, e
estive a ponto de correr atrás deles, mas o cachorro de meus amigos me derrubou no
chão ao tratar de saltar para lamber‐me a cara.
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CAPÍTULO SEIS
Confusa, examinei ao orador convidado. Ajeitado em seu terno, recém
barbeado e com seu cabelo curto e enrolado, Joe Cortez parecia alguém de outra
época entre os estudantes de cabelo longo, barbudos, carregados de enfeites e
vestidos com
negligência,
que
lotavam
um
dos
grandes
salões
‐auditório
da
Universidade da Califórnia, em Los Ângeles. Acomodei‐me no assento vazio da última fila, que me havia reservado a amiga com quem fiz o passeio pelas montanhas de
Santa Susana. —Quem é? — perguntei. Minha amiga sacudiu a cabeça, impaciente e incrédula, e rabiscou Carlos
Castaneda num pedaço de papel. —E quem diabos é Carlos Castaneda? —Te dei seu livro — respondeu, e depois acrescentou que era um antropólogo
muito conhecido, que havia levado à cabo extensas investigações no México.
Estava a ponto
de
confiar
à minha
amiga
que
o orador
era
a mesma
pessoa
que
conheci nas montanhas no dia em que me perdi, mas por uma razão muito boa não o
fiz. Esse homem era responsável pela quase ruptura de nossa amizade, a qual eu
valorizava sobremaneira. Minha amiga insistia obstinadamente em catalogar a história do filho de Evans‐Pritchard como uma conversa fiada. Eu insistia que nenhum dos dois homens ganharia nada em mentir. Sabia que de maneira ingênua haviam dito a
verdade, porém minha amiga, indignada, me rotulou de tonta e de crédula. Já que
nenhuma das duas estava disposta a ceder, a discussão se fez agitada, e o marido de
minha amiga, numa tentativa para acalmar‐nos, havia sugerido que talvez eu dizia a
verdade, e minha amiga, irritada ante essa falta de solidariedade, lhe havia ordenado
aos gritos
que
se
calasse.
Fizemos a viagem de regresso num silêncio hostil, a amizade sob tensão, e
precisamos de duas semanas para restabelecer a cordialidade. Entretanto eu fiz averiguações entre várias pessoas a respeito do filho de Evans‐Pritchard, pessoas mais versadas em antropólogos e antropologia que minha amiga e eu, e folga dizer que me
fizeram cair como uma idiota. Obstinada, persisti em minha versão de que só eu
conhecia a verdade. Me haviam criado para ser prática: se alguém mentia, devia ser para obter uma vantagem de outro modo inalcançável, e não chegava a entrever quê
vantagem pretendiam obter esses homens com a sua. Prestei pouca atenção à conferência de Carlos Castaneda, demasiado absorta
em tratar
de
sondar
sua
razão
para
mentir
‐me
sobre
seu
nome.
Dada
minha
tendência
a deduzir os motivos alheios a partir de uma simples dedução ou observação, se
mostrava muito problemático neste caso dar com uma pista satisfatória, mas depois lembrei que também eu havia dado um nome falso, e não podia explicar‐me a razão.
Após uma longa deliberação mental decidi que havia mentido porque
automaticamente não havia confiado nele. Eu o achei demasiado seguro de si mesmo, demasiado presunçoso para inspirar‐me confiança. Minha mãe me havia ensinado a
desconfiar dos homens latinos, em especial se não se mostravam humildes. Costumava dizer que os machos latinos eram como os galos de rinha, interessados unicamente em
brigar, comer e fazer amor, nessa ordem, e suponho que acreditei nela sem prestar
atenção
ao
assunto.
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Por fim olhei para Carlos Castaneda. Suas palavras não tinham para mim nem
pé nem cabeça, mas me fascinaram seus movimentos. Parecia falar com todo o corpo, e suas palavras, mais que sair de sua boca, davam a impressão de surgir de suas mãos, as quais movia com a graça e a habilidade de um mágico. Procurei‐o ao terminar a
conferência. Rodeado por estudantes, se mostrava tão solícito e amável com as
mulheres que
automaticamente
o depreciei.
—Me mentiu acerca de seu nome, Joe Cortez — disse‐lhe em castelhano, apontando‐lhe um dedo acusador.
Segurando o estômago com as mãos, como se houvesse recebido um golpe, me
olhou com a mesma expressão vacilante e incrédula que mostrou quando pela
primeira vez nos vimos na montanha. —Também é mentira que seu amigo Gumersindo é filho de Evans‐Pritchard,
não é? — emendei antes que conseguisse repor‐se de sua surpresa. Com um gesto de súplica me pediu para não continuar, mas não parecia em
absoluto envergonhado. Havia em seus olhos tal olhar de surpresa que minha ira
justificada se
desvaneceu.
Com
suavidade
me
pegou
por
uma
mão,
como
se
temendo
que o abandonasse. Quando terminou com os estudantes me conduziu em silêncio até
um banco afastado, sombreado por um gigantesco pinheiro. —Tudo isto é tão surpreendente que me deixou sem fala — disse em inglês ao
sentarmos, olhando‐me como se ainda não pudesse crer que me tinha sentada ao seu
lado. —Não pensei que lhe encontraria de novo — disse em tom meditativo. —Depois que você se foi, meu amigo, cujo nome em tudo isto é Nestor, e eu falamos muito de
você, e chegamos à conclusão de que era uma semi‐aparição. — Mudou de repente ao
espanhol e confessou que inclusive haviam regressado ao lugar onde me deixaram na esperança de encontrar‐me.
—Por que
queria
encontrar
‐me?
—
perguntei
em
inglês
(confiada
em
que
responderia nesse idioma) que o havia feito porque gostava de mim. Em castelhano não há modo de dizer que uma pessoa simplesmente “gosta” de
outra, a resposta precisa ser mais enfeitada e ao mesmo tempo mais precisa. Em
castelhano uma pessoa pode arriscar um manso me caes bien, ou despertar paixão
total com me gustas. Minha inocente pergunta o mergulhou num longo silêncio. Parecia estar debatendo consigo entre falar ou não. Por fim disse que o encontrar‐me
na névoa naquela tarde o havia transtornado, e seu rosto revelava isso ao dizê‐lo, assim como sua voz, quando acrescentou que me encontrar na sala de conferências havia representado a culminação.
—Por quê?
—
perguntei,
aguçada
em
minha
vaidade,
mas
de
imediato
lamentei
de ter perguntado, pois estava convencida de que confessaria estar perdidamente apaixonado de mim, e isso me perturbaria por não saber o que responder.
—É uma longa história — respondeu, ainda pensativo. Fez um trejeito com a
boca. Parecia estar falando sozinho, ensaiando a próxima coisa a dizer. Eu reconhecia os sinais do sujeito a ponto de proferir: —Não li nada seu — disse, visando desviar do tema. —O que você faz? —Escrevi um par de livros sobre a feitiçaria. —Que tipo de feitiçaria? Vudú, espiritualismo ou o que? —Sabe algo sobre feitiçaria? — perguntou, com uma nota de expectativa na
voz.
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—É claro… cresci com ela. Passei bastante tempo na região costeira da
Venezuela, área famosa por seus feiticeiros. Eu passava a maior parte de meus verões com uma família de bruxos.
—Bruxos? —Sim — respondi, contente com sua reação. —Eu tinha uma babá que era
bruxa, uma
negra
de
Puerto
Cabello
que
me
cuidou
até
a adolescência.
Meus
dois
pais
trabalhavam, e quando eu era menina me deixavam aos seus cuidados. Ela me
manejava melhor que a qualquer um dos dois, me deixava fazer o que queria. Meus pais, naturalmente, deixavam que ela me levasse por onde desejasse, e durante as férias escolares ela me levava para visitar sua família, não sua família biológica e sim
sua família de bruxos. Não me permitiam participar de seus rituais nem sessões de
transe, contudo ainda assim consegui ver bastante. Joe me olhou com curiosidade, como se não me acreditasse. Depois perguntou
sorridente: —O que é que fazia dela uma bruxa?
—Todo tipo
de
coisas.
Matava
galinhas
e as
oferecia
aos
deuses
em
troca
de
favores. Ela e seus companheiros bruxos, homens e mulheres, dançavam até cair em
transe, e ela recitava encantações secretas que tinham o poder de curar a seus amigos e de fazer danos a seus inimigos. Sua especialidade eram as poções de amor. As preparava com todo tipo de plantas medicinais e resíduos humanos, como sangue
menstrual, restos de unhas e cabelo, em especial pelos púbicos. Confeccionava amuletos de boa sorte para o jogo e para as coisas de amor.
—E seus pais permitiam isso? —Em casa ninguém sabia disso, exceto é claro minha babá, seus clientes e eu.
Fazia visitas a domicílio como qualquer médico, mas em casa se limitava a acender
velas no
toalete
dos
fundos
quando
eu
tinha
pesadelos,
e dado
que
parecia
surtir
efeito e não havia perigo de incêndio, por causa dos azulejos, minha mãe lhe concedia ampla liberdade para fazê‐lo.
Subitamente Joe ficou de pé e começou a rir. —O que tem de engraçado? — pensei que talvez suspeitasse que eu o havia
inventado. —Te asseguro que é verdade. —Você afirma algo e, enquanto lhe diz respeito, isso se converte em verdade —
e a expressão de seu rosto era serena. —Mas é verdade — insisti, certa de que se referia à minha babá. —Eu vejo através das pessoas — assegurou com calma. —Por exemplo, vejo
que está
convencida
de
que
lhe
vou
declarar
meu
amor.
Se
convenceu
disso
e isso
agora é a verdade. É disso que falo. Desejei dizer algo, mas a indignação me deixou sem ar. Gostaria de ter fugido,
mas acabaria sendo muito humilhante. Franziu o cenho, e tive a desagradável impressão de que conhecia meus sentimentos. Enrubesci, e tremi com reprimida ira. Contudo, em pouco tempo, me senti extraordinariamente calma, ainda que não
devido a um esforço consciente de minha parte. No entanto tive a clara sensação de
que algo em mim havia mudado, e a vaga reminiscência de ter atravessado alguma vez uma experiência semelhante, ainda que minha memória falhasse tão logo entrava em
ação.
—O
que
está
me
fazendo?
—
murmurei.
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—Se dá o caso de que posso ver através das pessoas. Não sempre, e por certo
não com todas, somente com aquelas com as quais estou intimamente ligado. Não
entendo por que acontece contigo. Sua sinceridade era evidente. Parecia muito mais confundido que eu. Sentou‐se
de novo e se aproximou de mim. Permanecemos um período em total silêncio, e foi
uma experiência
prazerosa
o poder
abandonar
todo
esforço
por
conversar,
e não
sentir que eu era estúpida. Olhei o céu, limpo de nuvens e transparente como vidro
azul. Uma suave brisa soprava entre os pinheiros, e suas agulhas caiam sobre nós como uma chuva mansa. Depois a brisa se tornou vento, e as folhas caídas de um
sicômoro próximo se enredemoinharam ao redor com um som suave e rítmico, e em
uma de suas rajadas o vento as elevou até as alturas. —Essa foi uma bonita demonstração do espírito — murmurou — e foi para
você: as folhas girando ao vento bem diante de nós. O feiticeiro com quem trabalho
diria que esse é um presságio. Algo lhe assinalou, para que eu te visse no exato
momento em que pensava que seria melhor que me fosse embora. Agora não posso
fazê‐lo.
Pensando em nada mais que em suas últimas palavras me senti inexplicavelmente feliz. Não uma felicidade triunfalista, do tipo que sentimos quando
nos sorri um êxito, ou melhor, era uma sensação de profundo bem‐estar que não
perdurou. Meu ser impulsivo tomou conta de súbito e exigiu que me desfizesse desses pensamentos e sentimentos. Eu não tinha por que estar ali. Havia faltado a uma aula, ao almoço com meus verdadeiros amigos e à minha diária cota de natação no ginásio
feminino. —Talvez seja melhor que eu me vá — disse. A intenção foi de aparentar alívio,
mas quando a anunciei soou como se sentisse pena de mim mesma, o qual, de certo
modo, era
verdade.
Em
lugar
de
ir
‐me
lhe
perguntei
da
maneira
mais
casual
possível
se
sempre havia podido ver através das pessoas. —Não, não sempre — e seu tom carinhoso denunciou com clareza que
percebia minha inquietude interna. —O velho feiticeiro com quem trabalho o ensinou‐
me recentemente. —Acha que ele poderia ensiná‐lo a mim? —Sim, acho que sim. Se sentir por ti o mesmo que eu sinto, ele fará — e
pareceu assombrado por suas próprias palavras. —Conhecia algo de feitiçaria antes? — perguntei com timidez, emergindo com
lentidão de minha inquietação.
—Na América
Latina
todos
acreditam
saber,
e eu
não
era
exceção.
Nesse
sentido você me faz lembrar a mim mesmo. Como você, estava convencido de que
sabia o que era a feitiçaria, mas depois, quando a conheci de verdade, não era como
eu a havia concebido. —Como era? —Simples, tão simples que assusta — confessou. —Acreditamos que a feitiçaria
assusta por sua malignidade, mas a que eu descobri não tem nada de maligno, e por isso é o mais pavoroso que existe.
Eu o interrompi para assinalar que sem dúvida estava se referindo à magia branca, em contraposição à magia negra.
—Não
diga
bobagens,
caralho!
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O choque de escutá‐lo falar‐me nesse tom me obrigou a respirar pela boca. De
imediato renasceu minha inquietação. Ele desviou o olhar para evitar o meu. Havia se
permitido gritar comigo, e me enfureci ao ponto de achar que me descomporia. Me
arderam as orelhas, e vi pontos negros ante meus olhos. Eu o teria pegado se não
tivesse se posto fora de meu alcance num rápido movimento.
—É muito
indisciplinada
—
opinou
ao
sentar
‐se
de
novo
—
e bastante
violenta.
Sua babá deve de ter permitido muito a você, e te tratado como se você fosse de vidro
— mas ao notar meu rosto aborrecido, explicou que não me havia gritado por sentir impaciência ou raiva. —Pessoalmente não me importa se presta atenção ou não, mas importa a aquele em cujo nome gritei com você. Alguém que nos está observando.
No começo senti perplexidade, depois inquietude. Olhei em torno de nós, pensando que talvez seu mestre feiticeiro fosse quem nos observava. Me ignorou e
prosseguiu: —Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o
fez porque não o sabia, como você tampouco o sabe.
—De que
bobagens
está
falando?
—
e minha
voz
irritada
refletia
meus
sentimentos do momento. Me havia gritado, me havia insultado, e me incomodava que estivesse conversando como se nada tivesse acontecido. Se ele achava que sua
conduta ia passar por alto uma surpresa lhe esperava. —Não se sairá com essa… — disse‐lhe, sorrindo com malícia. —Não comigo,
menininho. —Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença que não é
força, entidade nem presença — explicou com um sorriso angelical. Parecia totalmente indiferente a meu estado de ânimo belicoso. —Te parecerá conversa mole mas não o
é. Refiro‐me a algo que unicamente os feiticeiros conhecem. Chamam‐no o espírito,
nosso observador
pessoal,
nossa
testemunha
permanente.
Não sei exatamente como, ou qual palavra exata fez o prodígio, mas de repente
ele teve toda a minha atenção. Prosseguiu falando dessa força que, segundo ele, não
era Deus, nem tinha nada que ver com a religião ou a moral, e sim uma força impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada. Inclusive me pegou pela mão, o qual não me desagradou. Melhor, me agradou seu toque suave e forte. Senti‐me morbidamente fascinada pelo estranho
poder que exercia sobre mim, e me horrorizava comprovar que ansiava sentar‐me
indefinidamente com ele nesse banco, com minha mão unida à sua. Continuou falando, eu pendente de cada uma de suas palavras, mas ao mesmo
tempo perversamente
intrigada
a respeito
de
quando
me
ia
tocar
as
pernas.
Sabia
que
somente a mão não lhe havia de satisfazer, e que eu nada podia fazer para impedi‐lo. Ou era eu que não desejava fazer nada para impedi‐lo? Explicou que ele havia sido tão
negligente e indisciplinado mais do que tudo, porém que nunca conheceu a diferença por estar aprisionado pela modalidade do tempo.
—E o que é a modalidade do tempo? — perguntei com tom áspero e
inamistoso, destinado a não fazer‐lhe saber que desfrutava por estar em sua companhia.
—Em nossos dias, o que os feiticeiros chamam a modalidade do tempo é a
preocupação da classe média. Eu sou homem da classe média, assim como você é
mulher
da
classe
média...
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—Enquadramentos desse tipo não têm validez — interrompi com rudeza, ao
mesmo tempo em que arrancava minha mão da sua. —Não são mais que
generalidades — lancei‐lhe um olhar, furiosa e desconfiada. Havia algo chamativamente familiar em suas palavras, mas não pude precisar
de onde as havia escutado, ou qual importância eu estava lhes concedendo, contudo
estava certa
de
sua
vital
importância
se
pudesse
apenas
recordar
o sabido
por
mim
acerca delas. —Não me venha com essas asneiras científico‐sociais. — disse jovialmente. —
Conheço‐as tanto como você. Cedi a um momento de total frustração, peguei sua mão e a mordi. —Na verdade sinto muito — murmurei antes que ele conseguisse se repor de
sua surpresa. —Não sei por que fiz isso. Não mordia a ninguém desde que era menina — e escorri até o extremo do banco à espera de sua retaliação, que não chegou.
—É completamente primitiva — foi tudo o que disse, esfregando a mão com
um ar como confundido.
Emiti um
profundo
suspiro
de
alívio.
Havia
se
quebrado
o poder
que
exercia
sobre mim, e lembrei ter uma velha dívida a cobrar. Ele me havia transformado na
“faz‐me‐rir” de minhas colegas de antropologia. —Regressemos ao problema original — disse, procurando abafar minha raiva.
—Por que me contou todas essas besteiras acerca do filho de Evans‐Pritchard? Você
deve ter se dado conta de que eu cairia como uma tonta. — observei‐o com cuidado, certa de que, ao confrontá‐lo desta maneira, e depois da mordida, terminaria por quebrar seu autocontrole, ou pelo menos incomodá‐lo. Esperei que gritasse, que
perdesse sua confiança e insolência, mas permaneceu imperturbável. Suspirou fundo e
adotou uma expressão séria.
—Sei que
parece
um
simples
caso
de
alguém
que
mente
por
diversão,
porém
a coisa é mais complexa — e riu disfarçado antes de recordar‐me que naquele momento
ele desconhecia minha condição de estudante de antropologia, e de que eu terminaria fazendo um papelão. Fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras adequadas, depois encenou um impotente encolhimento de ombros e acrescentou: —Verdadeiramente não posso explicar‐lhe agora por que apresentei ao meu amigo
como filho de Evans‐Pritchard, a menos que te conte muito mais acerca de mim e
minhas metas, e isso não é algo prático. —Por quê? —Porque quanto mais saiba de mim, mais te complicará — e seus olhos me
demonstravam sua
sinceridade
—,
e não
me
refiro
a uma
confusão
mental,
e sim
a algo pessoal comigo.
Esta aberta demonstração de descaramento me devolveu a confiança. Desenterrei o meu já testado sorriso sarcástico, e falei num tom cortante:
—É repugnante, e conheço seu tipo. É o exemplo típico do macho latino
confesso, contra o qual tenho lutado toda minha vida — e ao ver sua expressão
surpreendida, insisti, dando livre vazão a toda minha soberba: —Como se atreve a
pensar que posso chegar a envolver‐me contigo? Seu rosto não enrubesceu como eu esperava. Em lugar disso riu
estrepitosamente, golpeando‐me o joelho como se o dito por mim houvesse sido o
mais
cômico
que
escutou
em
sua
vida
e,
para
completar,
começou
a
fazer‐
me
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61
cosquinhas do mesmo modo em que se faz a uma criança. Temendo rir‐me (as cosquinhas me afetavam muito), gritei minha indignação.
—Como se atreve a me tocar! — e tremendo me pus de pé para retirar‐me, mas em seguida assombrei a mim mesma recuperando meu assento. Vendo que
pretendia continuar com as cosquinhas, cerrei os punhos e os esgrimi ante seus olhos.
—Vou quebrar
seu
nariz
se
me
tocar
de
novo
—
adverti.
Por completo indiferente à minha ameaça, reclinou a cabeça contra o encosto
do banco e fechou os olhos. Espasmos de riso o faziam sacudir. —Você é a típica menina alemã que cresceu rodeada por negrinhos. —Como sabe que sou alemã se nunca lhe disse isso? — perguntei com voz
insegura, à qual tentei dar uma inflexão levemente ameaçante. —Sabia que era alemã desde o instante em que te conheci. Você o confirmou
no momento em que mentiu que era sueca. Unicamente alemães nascidos no Novo
Mundo depois da Segunda Guerra Mundial mentem assim. Isso, é claro, se vivem nos Estados Unidos.
Apesar de
que
não
se
admitiria
isso,
ele
tinha
razão.
Com
frequência
havia
sentido a hostilidade daqueles que se interavam de que meus pais eram alemães: para
eles isso nos fazia automaticamente nazistas, e de nada adiantava se lhes dizia que
meus pais eram idealistas. Logicamente preciso admitir que, como bons alemães, se
achavam superiores, mas eram boas pessoas, sendo que toda sua vida foi apolítica. —Eu não fiz nada além que concordar contigo — disse acidamente. —Você viu
cabelo loiro, olhos azuis, pômulos altos, e só pôde pensar em uma sueca. Não tem
muita imaginação, sabia? — aproveitei minha vantagem para dizer‐lhe que ele não
tinha nenhum direito de mentir. —A menos que seja um mentiroso de merda por natureza — e à medida que falava minha voz se fazia estridente contra minha vontade.
Terminei dando
‐lhe
uns
golpezinhos
no
peito
com
meu
dedo
indicador:
—Joe
Cortez
então, hein? —E seu nome é Cristina Gerbauer? — retrucou, imitando minha voz alta e
odiosa. —Carmen Gebauer! — gritei, ofendida porque não o havia recordado
completamente. Depois, arrependida de meu estouro, tentei uma caótica autodefesa, mas ao fim de uns minutos me detive, consciente de não estar falando com coerência. Admiti ser alemã, e que Carmen Gebauer era o nome de uma amiga de infância.
—Eu gosto disso — comentou com um sorriso apenas esboçado, mas não pude
estabelecer se se referia às minhas mentiras ou à minha confissão. Em seus olhos
brilhava uma
luz
entre
bondosa
e divertida,
e com
doçura
passou
a me
contar
a história de sua amiga de infância, Fabiola Kunze.
Porque me confundiu sua reação desviei a vista até o sicômoro próximo e aos mais distantes pinheiros. Depois, ansiosa por ocultar meu interesse em seu relato, comecei a brincar com minhas unhas, com a cutícula e o esmalte, que eu descascava de forma metódica.
A história de Fabiola Kunze se assemelhava tanto à minha que em poucos minutos esqueci minha pretensa indiferença para escutá‐la com atenção. Supus que
era pura invenção, apesar do qual precisei lhe dar crédito por certos detalhes que
unicamente a filha de uma família alemã do Novo Mundo podia conhecer.
Segundo
a
história
Fabiola
Kunze
vivia
num
mortal
temor
dos
morenos
garotos
latinos, mas igualmente temia aos alemães; aos latinos por sua irresponsabilidade, e
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aos alemães por ser tão previsíveis. Soltei uma risada quando descreveu cenas ocorridas aos domingos de tarde na casa de Fabiola, quando duas dezenas de alemães se reuniam ao redor de uma mesa esquisitamente posta, com a melhor louça, prataria e cristaleria, e ela precisava escutar duas dezenas de monólogos que pretendiam ser conversas.
À medida
que
Joe
proporcionava
detalhes
dessas
tardes
de
domingo
comecei
a
sentir‐me mais e mais incomodada: ali estava o pai de Fabiola, que proibia os debates políticos em sua casa mas compulsivamente intentava dar pé a eles, ao buscar por meios tortuosos contar piadas obscenas a respeito dos sacerdotes católicos, e o medo
mortal da mãe: que sua louça fina estivesse nas mãos desses caipiras imorais. As palavras de Joe Cortez eram guias às quais eu respondia inconscientemente;
comecei a ver cenas de minhas tardes dominicais projetadas sobre a parede. Me
converti num feixe de nervos, senti desejo de chutar e de me descontrolar como só eu
sabia fazê‐lo. Desejava odiar a esse homem, mas não podia. Necessitava ser justiçada, receber desculpas. Queria dominá‐lo, que se enamorasse por mim para poder rejeitá‐
lo. Envergonhada
de
meus
sentimentos
imaturos
procurei,
mediante
um
grande
esforço, reagir, e pretextando aborrecimento me aproximei dele para perguntar: —Por que mentiu a respeito de seu nome? —Não menti — respondeu. —Esse é meu nome, tenho vários. Os feiticeiros
têm nomes diferentes para ocasiões diferentes. —Que conveniente! — comentei com sarcasmo. —Muito conveniente — repetiu, e me piscou o olho, atitude que me enfureceu. Logo depois fez algo insólito e inesperado. Me abraçou, sem que esse abraço
encerrasse conotações sexuais. Foi um espontâneo, doce e simples gesto de um
menino que deseja consolar a um amigo, e me tranquilizou ao ponto de me fazer
soluçar de
maneira
incontrolável.
—Sou uma merda — confessei. —Quero agredir você e olhe‐me: estou em seus braços — e estava a ponto de acrescentar que isso me agradava, quando me invadiu
uma corrente de energia, e como se saísse de um sonho, o afastei. —Deixe‐me! —
gritei, e me afastei a grandes trancos. Escutei que o riso o afogava, o qual não me preocupou em absoluto, por já ter
se dissipado meu ataque. Fiquei paralisada, tremendo e incapacitada para afastar‐me. Então, como se respondesse a uma banda elástica aderida a meu corpo, regressei ao
banco. —Não se sinta mal — disse com bondade. Parecia saber muito bem o que me
arrastara de
novo
ao
banco.
Espalmou
minhas
costas
tal
como
se
faz
com
um
bebê
depois de ter comido. —Não é o que você e eu fazemos — continuou. —É algo fora de
nós que nos está influenciando. Está influenciando a mim desde há muito tempo e me
acostumei a ele, mas não entendo por que atua sobre você. Não me pergunte de quê
se trata — disse, antecipando‐se à minha pergunta. —Ainda não o posso explicá‐lo. De todo modo não pretendia perguntar‐lhe nada. Minha mente havia deixado
de funcionar, me sentia como dormida, sonhando que falava. Momentos depois meu
adormecimento cedeu, e apesar de não haver regressado ao que era meu normal, me
senti muito mais animada. —O que me está acontecendo? — perguntei.
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—Está sendo enfocada por algo que não emana de ti. Algo te está empurrando, usando‐me a mim como instrumento. Algo está sobrepondo outro critério sobre suas convicções de classe média.
—Não comece com essa bobagem de classe média — protestei debilmente. Senti como se o estivesse suplicando isso.
Apresentei um
sorriso
desamparado,
pensando
que
havia
perdido
minha
usual
impulsividade. —Lembre‐se que estas não são minhas próprias idéias ou opiniões — disse. —
Como você, sou produto de uma ideologia de classe média. Imagine meu horror quando precisei enfrentar‐me com uma ideologia diferente e mais avassaladora. Me
fez em pedaços. —Que ideologia é essa? — perguntei humildemente, minha voz tão fraca que
apenas escutava‐se. —Um homem a trouxe‐me, ou melhor, o espírito falou e me influenciou através
dele. Esse homem é um feiticeiro, sobre quem tenho escrito. Se chama Juan Matus, e é
quem me
fez
enfrentar
minha
mentalidade
de
classe
média.
—Juan Matus certa vez me fez uma pergunta importante: “O que você acha que é uma universidade?”. Eu, evidentemente, lhe respondi como um cientista social: “um centro de estudos superiores”. Ele me corrigiu, dizendo que uma universidade deveria chamar‐se “um Instituto de Classe Média”, pois é o lugar ao qual comparecemos para aperfeiçoar nossos valores de classe média. Disse que
comparecemos a esses institutos para nos convertermos em profissionais. A ideologia de nossa classe social nos diz que devemos nos preparar para ocupar posições gerenciais, que ali vamos para nos tornarmos engenheiros, advogados, médicos, etecétera, e as mulheres para conseguir um marido adequado, provedor e pai de seus
filhos. Adequado
é logicamente
definido
pelos
valores
da
“classe
média”.
Desejava contradizê‐lo, gritar‐lhe que conhecia gente à qual não os interessava uma carreira ou encontrar marido; que conhecia gente interessada em idéias, no
conhecimento em si. Mas não conhecia a tais pessoas. Senti uma terrível pressão no
peito, e tive um acesso de tosse seca. Não foram a tosse nem o mal estar físico os que
me fizeram retorcer no assento e impediram que discutisse com ele. Era a certeza de
que se referia a mim: eu ia à Universidade para encontrar um homem adequado. De novo me pus de pé, disposta a partir. Inclusive estendi minha mão para
despedir‐me, quando senti um poderoso puxão em minhas costas, tão forte que
precisei sentar‐me para não cair. Sabia que ele não me havia tocado. Estive
observando‐o todo
o tempo.
Memórias
de
pessoas
não
de
todo
recordadas,
de
sonhos
não esquecidos, inundaram minha mente e formaram uma intrincada trama da qual não podia desembaraçar‐me. Rostos desconhecidos, orações semi‐escutadas, imagens escuras e borradas de lugares e pessoas me remeteram momentaneamente a uma espécie de limbo. Estive próxima de recordar algo deste caleidoscópio de sons e
visualizações, mas o conhecimento se desvaneceu, dominando‐me uma sensação de
calma e alívio, uma tranquilidade tão profunda que eliminou todo desejo de afirmar‐me.
Estiquei as pernas ante mim como se não tivesse uma só preocupação no
mundo (e nesse momento não tinha) e comecei a falar. Não lembro de tê‐lo feito com
tanta
franqueza
anteriormente,
e
não
podia
descobrir
por
que
de
repente
baixei
minhas defesas ante ele. Contei‐lhe da Venezuela, de meus pais, minha juventude,
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minha vida inquieta e sem significado. Contei‐lhe coisas que não admitiria a mim
mesma. —Venho estudando antropologia desde o ano passado, e na verdade não
entendo por quê. — começava a sentir‐me levemente incômoda ante minhas próprias revelações. Me movi inquieta no banco, mas não pude deixar de acrescentar: —As
duas matérias
que
mais
me
interessam
são
a literatura
castelhana
e a alemã,
e estar
em antropologia desafia tudo o que sei acerca de mim mesma. —Isso me intriga sobremaneira — opinou. —Não posso pensar nisso agora,
mas me parece que fui posto aqui para que você me encontrasse, ou vice‐versa. —Que significa tudo isto? — perguntei, e fiquei corada ao me dar conta de que
estava centrando e interpretando tudo em torno de minha feminilidade. Ele parecia estar completamente a par de meu estado mental. Pegou minha
mão e a apertou contra o coração. “¡Me gustas, Nibelunga!”, exclamou
dramaticamente, e depois traduziu a frase ao inglês. “Você me atrai de maneira apaixonada, Nibelunga”.
Fez a paródia
de
me
devorar
com
os
olhos,
ao
estilo
amante
latino,
e depois
soltou uma gargalhada. — Está convencida de que cedo ou tarde preciso dizer isto, de modo que bem
podia ser agora. Em lugar de irritar‐me por ser alvo de seu humor, ri; seu humor me agradava
muito… os únicos Nibelungos que conhecia eram provenientes do livro de meu pai sobre mitologia alemã; Siegfrid e suas Nibelungen. Até onde podia me lembrar se
tratava de seres subterrâneos, mágicos e anões. —Está me chamando de anã? — perguntei em tom de gracejo. —Que Deus não o permita! — protestou —, te estou comparando com um ser
mitológico alemão.
Mais tarde, como se fosse a única coisa que podíamos fazer, fomos de carro até
as montanhas de Santa Susana, ao lugar onde nos havíamos conhecido. Nenhum dos dois pronunciou palavra alguma quando estivemos sentados no penhasco sobre o
cemitério indígena. Movidos por um puro impulso de companheirismo ficamos em
silêncio, indiferentes à tarde que se convertia em noite.
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CAPÍTULO SETE
Joe Cortez estacionou seu carro aos pés de uma baixada. Abriu minha porta, e
com um gesto galante me ajudou a descer. Senti alívio por ter ao fim detido nossa marcha, ainda que não saberia dizer por que. Estávamos no meio do nada, depois de
haver viajado
desde
as
primeiras
horas
da
manhã.
O
calor,
o deserto
chato,
o sol
inclemente e a poeira do caminho se tornaram uma vaga memória quando respirei o
ar frio e pesado da noite. Agitado por esse vento o ar se enredemoinhava em torno de nós como algo
palpável, vivo. Não havia lua, e as estrelas, incríveis em número e em brilho, pareciam
intensificar nosso isolamento. Sob o inquieto resplendor os montes e o deserto se
estendiam ao redor, quase invisíveis, cheios de sombras e sons murmurados. Procurei orientar‐me pelas estrelas, mas não soube identificar as constelações.
—Estamos de frente ao leste — sussurrou Joe Cortez, como se eu houvesse
falado em voz alta, e com paciência tentou me instruir a respeito das constelações
maiores desse
céu
de
verão.
Eu
só
recordava
da
estrela
Vega,
pois
seu
nome
me
trazia
à memória o escritor espanhol do século XVII, Lope de Vega. Sentados ali, em silêncio, sobre sua perua, passei em revista aos
acontecimentos de nossa viagem. Não se haviam ainda completado as vinte e quatro
horas desde que, enquanto comíamos num restaurante japonês de Los Ângeles, ele
me pedira, sem preâmbulo algum, que o acompanhasse à Sonora por uns dias. —Me encantaria — respondi impulsivamente. —Minhas aulas terminaram e
estou livre. Quando planeja partir? —Esta noite! — respondeu. —Na verdade, assim que terminarmos de comer. Tive que rir. Estava certa de que esse convite não passava de um gracejo.
—Não posso
partir
com
tão
pouco
pré
‐aviso.
O
que
você
acha
de
amanhã?
—Esta noite — insistiu, e estendeu sua mão para segurar a minha num apertão
formal. Somente ao ver o brilho travesso e alegre de seus olhos me dei conta de que
não estava se despedindo, e sim que selava um acordo. —Quando se toma uma decisão se deve agir de imediato — anunciou, e as
palavras ficaram flutuando no ar diante de meus olhos. Ambos as olhamos como se na
verdade pudéssemos adivinhar sua forma e seu tamanho. Concordei, apenas consciente de haver tomado uma decisão. A oportunidade
estava ali, independente de minha vontade, pronta e inevitável. Nada precisei fazer para que se materializasse. De repente, com uma intensidade demolidora, lembrei
minha viagem
do
ano
anterior
à Sonora,
e meu
corpo
se
endureceu,
comovido
e temeroso, à medida que imagens descontínuas em sequência ganhavam vida em meu
interior. Os acontecimentos daquela viagem rara haviam se esfumaçado de minha consciência a tal ponto que, até momentos antes, era como se nunca tivessem
ocorrido, mas agora adquiriam uma claridade idêntica à que tiveram no momento em
que aconteceram. Tremia, não de frio, mas sim por um medo indefinível, e encarei Joe Cortez para
falar‐lhe dessa viagem. Olhava‐me com rara intensidade, e seus olhos, como túneis escuros e profundos, absorveram meu espanto e fizeram retroceder as imagens temidas, as quais, uma vez perdido seu impulso, deixaram minha mente em branco.
Nesse
momento
acreditei,
fiel
à
minha
maneira
de
pensar,
que
nada
poderia
contar‐
lhe, pois uma verdadeira aventura sempre dita sua própria direção, e os eventos mais
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emocionantes de minha vida haviam sido sempre aqueles em cujo curso não me havia interposto.
—Como quer que te chame, Joe Cortez ou Carlos Castaneda? — perguntei‐lhe
com desagradável jovialidade feminina. Seu rosto avermelhado se desdobrou num
sorriso.
—Sou seu
companheiro
de
infância
—
respondeu.
—Dê
‐me
um
nome.
Eu
te
chamarei Nibelunga. Ao não acertar com um nome adequado, perguntei‐lhe: —Existe uma ordem em seus nomes? —Bom, Joe Cortez é cozinheiro, jardineiro e “faz‐tudo”, um homem solícito e
pensativo. Carlos Castaneda é homem do mundo acadêmico, mas não creio que o
tenha conhecido ainda. — olhou‐me fixo e sorriu, e esse sorriso levava implícito algo
infantil e intensamente sincero. Decidi chamá‐lo Joe Cortéz. Passamos a noite (em quartos separados) num motel de Yuma, Arizona. Depois
de sair
de
Los
Ângeles,
e através
de
uma
longa
viagem,
me
preocupei
muito
no
que
dizia respeito a onde e como dormiríamos. Por momentos temi que tentaria algo antes que chegássemos ao motel. Afinal, era um homem jovem e forte, agressivo e muito
seguro de si mesmo. Não me haveria preocupado tanto se ele fosse europeu ou norte‐
americano, mas por ser latino eu sabia quais eram suas intenções. O fato de aceitar seu convite de passar juntos uns dias significava que aceitava compartilhar sua cama.
Sua preocupação e bom comportamento durante a viagem se encaixavam
perfeitamente com o que eu pensava e esperava dele. Preparava o terreno. Era tarde
quando chegamos ao motel. Ele se dirigiu ao escritório do gerente para reservar quartos. Eu permaneci no carro, imaginando obscuras cenas. Tão absorta estive com
minhas fantasias
que
não
percebi
seu
retorno,
e ao
escutar
o tilintar
das
chaves,
que
ele fazia dançar ante meus olhos, me sobressaltei, deixando cair a sacola de papel que
continha meus artigos de toalete, comprados no caminho, que eu inconscientemente apertava contra o peito.
—Te consegui um quarto na parte traseira do motel — anunciou. —Está longe
da estrada — indicou uma porta situada próxima, antes de acrescentar: —Eu dormirei neste, perto da rua. Estou acostumado aos ruídos. Eram os únicos quartos que
sobraram. Desiludida, tomei a chave que me estendia. Todas minhas visões se
evaporaram. Já não teria a oportunidade de rechaçá‐lo, o qual na verdade não
desejava, mas
minha
alma
clamava
por
uma
vitória,
por
pequena
que
fosse.
—Não vejo por que devemos alugar dois quartos — opinei com fingida indiferença, e minhas mãos tremiam ao recolher os artigos caídos, que recoloquei na
sacola. O que acabara de dizer era incrível, mas não pude evitá‐lo. —O tráfego não te
permitirá descansar, e você precisa tanto como eu. — não podia conceber que alguém
pudesse dormir dado o ruído que provinha da estrada. Sem olhá‐lo, desci do carro e
me escutei dizer: —Poderíamos dormir no mesmo quarto, em duas camas, é claro. Fiquei aturdida e espantada. Jamais havia feito algo semelhante, nem tido
reação tão esquizofrênica. Dizia coisas sem me propor dizê‐las, ou é que as dizia deliberadamente, sem saber o que sentia? Seu riso pôs fim à minha confusão, e era
tão
forte
que
se
acenderam
as
luzes
num
quarto,
e
alguém
nos
exigiu
silêncio
aos
gritos.
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—Dividir seu quarto e permitir que se aproveite de mim no meio da noite, depois de ter me dado um banho de água fria? Nem pensar! — disse entre ondas de
alegria. Enrubesci ao ponto que minhas orelhas ardiam. Quis morrer de vergonha. Esta
não era uma de minhas cenas imaginadas. Voltei ao carro e fechei a porta com
violência.
—Leve‐me ao ônibus da Greyhound — apontei, dominando minha indignação. —Por que diabos vim contigo? Deveria fazer com que examinassem minha cabeça!
Sem deixar de rir abriu a porta e, com suavidade, me fez sair. —Durmamos não só no mesmo quarto, e sim na mesma cama. Deixe‐me fazer
amor com você — suplicou, e tive a impressão de que desejava isso de verdade. Horrorizada, me desfiz dele e gritei: —Jamais em sua puta vida! —Bom — disse —, diante de tão feroz recusa não me animo a insistir — pegou
minha mão e a beijou. —Me rejeitou e me pôs em meu lugar. Se acabaram os
problemas. Está
vingada.
Me afastei dele, a ponto de chorar. Meu desgosto não se devia à sua falta de
desejo de passar a noite comigo – se ele tivesse querido, com toda franqueza, não
teria sabido como reagir – e sim ao fato de que me conhecia melhor do que eu
conhecia a mim mesma. Eu havia recusado dar crédito ao que acreditava ser sua maneira de se auto‐lisonjear. Para ele eu era transparente, e de repente isso me
assustou. Joe se aproximou para abraçar‐me, um abraço doce e simples. Tal qual aconteceu anteriormente, minha inquietação se evaporou como se nunca houvesse existido. Devolvi seu abraço, e disse outra coisa incrível:
—Esta é a aventura mais excitante de minha vida. — de imediato quis retratar‐
me; as
palavras
pronunciadas
não
eram
minhas.
Nem
sequer
sabia
qual
havia
sido
minha intenção ao proferi‐las. Esta não era a aventura mais excitante de minha vida. Havia feito muitas viagens emocionantes: havia percorrido o mundo.
Minha irritação chegou ao cume quando me deu um beijo de despedida, um
beijo suave e doce como o que se dá em uma criança, e contra minha vontade me
agradou. Havia perdido a vontade. Com um empurrão Joe me enviou em direção ao
meu quarto. Maldizendo‐me, sentei‐me na cama e chorei de frustração, raiva e pena
de mim mesma. Desde os alvores de minha vida sempre se haviam satisfeito meus caprichos. Estava acostumada a isso. Estar confusa e não saber o que queria era uma experiência nova e nada agradável. Tive uma noite de sono intranquilo. Dormi vestida,
até que
ele
bateu
em
minha
porta
bem
cedo
de
manhã.
Viajamos todo o dia por caminhos afastados e tortuosos. Tal qual me havia
informado, Joe Cortez era na verdade atento, e durante toda a longa viagem provou
ser o mais bondoso e divertido dos companheiros. Me mimou com comidas, canções e
contos. Era dono de uma profunda porém clara voz de barítono, e conhecia todas minhas canções favoritas: espalhafatosas canções de amor de todos os países sul‐americanos, e seus hinos nacionais. Velhas baladas e até canções infantis. Seus contos me fizeram rir até doer os músculos abdominais. Como narrador me manteve fascinada com cada caso. Era um imitador nato. Sua assombrosa imitação de todos os acentos sul‐americanos, inclusive o singular português do Brasil, superava a imitação
para
converter‐
se
em
magia.
Estávamos
empoleirados
no
teto
da
perua
quando
Joe
formulou a advertência:
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—Melhor descermos. As noites no deserto se tornam frias. —É um meio ambiente indômito — comentei. Desejava gozar de novo do
refúgio da cabine, e então nos afastamos dali. Observei‐o enquanto recolhia algumas sacolas do interior do veículo. Havia comprado toda sorte de presentes para aqueles que íamos visitar.
—Por que
paramos
no
meio
do
nada?
—
perguntei.
—Nibelunga, você faz as perguntas mais bobas — disse. —Nós paramos aqui pois é o local onde começa nossa viagem.
—Chegamos ao misterioso destino sobre o qual não pôde falar? — perguntei com sarcasmo. A única coisa que havia entorpecido nossa agradável viagem havia sido
sua renúncia a informar‐me com exatidão para onde nos dirigíamos. Em questão de segundos me enfureci ao extremo de querer lhe dar um grande
soco no nariz, mas a noção de que minha repentina irritabilidade obedecia ao cansaço
de um longo dia produziu o necessário alívio. —Estou me pondo desagradável, mas não por querê‐lo — disse num tom jovial
que soava
falso,
pois
a tensão
de
minha
voz
revelava
a dificuldade
para
controlar
‐me.
Preocupava‐me a rapidez com que me enfurecia com ele. —Na verdade você não sabe conversar — acusou‐me com um grande sorriso —
, só sabe pressionar. —Oh! Vejo que Joe Cortez se foi. Vai começar a insultar‐me de novo, Carlos
Castaneda? Minha observação lhe causou graça, apesar de que minha intenção era outra. —Este lugar não está no meio do nada, a cidade de Arizpe está perto, e a
fronteira dos Estados Unidos ao norte, Chihuahua ao leste e Los Ângeles em algum
ponto ao noroeste — recitou.
Sacudiu a cabeça
num
gesto
desdenhoso
e tomou
à dianteira.
Em
silêncio
caminhamos através do chaparral, mais intuído do que visto, por uma estreita e
serpenteada trilha que se alargava ao chegar a um amplo espaço aberto encerrado por baixas algarobeiras. Conseguimos discernir os contornos de duas casas, recortadas contra a escuridão. No interior da maior brilhavam luzes. Uma casa menor se alçava a
curta distância. Caminhamos em direção à casa grande. Pálidas traças revoavam por onde a luz se infiltrava pelas janelas panorâmicas.
—Devo advertir‐lhe que a gente que vai conhecer é um tanto estranha —
sussurrou. —Não diga nada. Deixe que eu falo. —Direi o que se me der na telha — respondi. —Não me agrada que me digam
como devo
comportar
‐me.
Não
sou
uma
criança.
Ademais,
meus
hábitos
sociais
são
impecáveis, e posso lhe assegurar que não te farei passar vergonha. —Deixe de idiotices, caralho! — respondeu, esforçando‐se por controlar a voz. —Não me trate como se eu fosse sua esposa, Carlos Castañeda — gritei a
plenos pulmões, pronunciando seu sobrenome como eu considerava que deveria se
pronunciar: com ñ (nhe), o qual sabia que ele não gostava. Contudo, ele não se irritou. Minha tirada o fez rir, algo frequente nele quando
eu esperava que explodisse. “Nunca se irrita”, pensei com um suspiro. Sua
equanimidade era extraordinária. Nada parecia confundi‐lo, nem fazer‐lhe perder o
controle. Inclusive, quando gritava, os gritos soavam falsos.
Quando
Joe
estava
por
bater,
a
porta
se
abriu,
e
um
homem
frágil
projetou
sua
sombra negra no retângulo de luz. Com um gesto impaciente nos convidou a entrar, e
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ingressamos num vestíbulo abarrotado de plantas. Com rapidez, como se temesse
mostrar a cara, nos precedeu e, sem uma palavra de boas‐vindas, abriu outra porta cujos vidros não estavam bem fixos, e que soavam ao abri‐la. O seguimos por um
escuro corredor e através de um pátio interno, onde um jovem sentado numa cadeira de palha cantava com voz tremulante, acompanhando‐se com o violão. Fez uma pausa
ao nos
ver,
não
retribuiu
minha
saudação,
e continuou
tocando
quando
dobramos
uma esquina e encaramos outro corredor escuro. —Por que todos são tão pouco gentis? — sussurrei no ouvido de Joe Cortez. —
Tem certeza de que estamos na casa certa?
—Já lhe disse, são excêntricos — murmurou. —Está seguro de que os conhece? —Que tipo de pergunta é essa? — rebateu num tom tranquilo, ainda que
ameaçante. —É claro que os conheço. —Passaremos a noite aqui? — perguntei, intranquila. —Não tenho a menor idéia — e ao dizê‐lo me beijou na bochecha. —E por
favor, não
faça
mais
perguntas.
Estou
tentando
levar
a cabo
uma
manobra
quase
impossível. —Que manobra é essa? — perguntei também em voz baixa. Uma súbita
percepção me fez sentir ao mesmo tempo ansiosa e incomodada, e por sua vez estimulada. A palavra manobra havia proporcionado a pista.
Ao parecer convencido de meus sentimentos íntimos, passou as sacolas que
portava a um de seus braços, e com suavidade pegou minha mão para beijá‐la, contato
que enviou agradáveis correntes de prazer através de meu corpo. Cruzamos um
umbral para ingressar numa sala grande, tenuemente iluminada e exiguamente mobiliada. Não era minha idéia de uma sala de província mexicana. As paredes e o teto
eram de
um
branco
imaculado,
por
completo
desprovidas
de
quadros
ou
ornamentos.
Contra a parede oposta à porta havia um grande sofá, e sentadas sobre ele três imponentes senhoras, vestidas com elegância. Não pude ver bem seus rostos, mas a
luz fraca permitiu comprovar a chamativa semelhança e o ar familiar existente entre
elas, mesmo sem parecerem‐se. Isto me desorientou ao ponto de que apenas pude
reparar em duas pessoas sentadas em poltronas próximas. No meu afã por chegar junto às três mulheres dei um grande salto involuntário, por não ter reparado nos desníveis do piso de ladrilhos, e ao estabilizar‐me notei um lindo tapete oriental, e à
mulher sentada numa das poltronas. —Delia Flores! —exclamei. —Deus santo, não posso acreditar nisso! — toquei‐a
para assegurar
‐me
que
não
era
uma
figura
fruto
de
minha
imaginação.
Em
vez
de
saudá‐la, perguntei: —O que está acontecendo? — e ao mesmo tempo percebi que as mulheres do
sofá eram minhas velhas conhecidas do ano anterior na casa da curandeira. Permaneci com a boca aberta, gelada, a mente aturdida pela descoberta. Um esboço de sorriso
crispava os cantos dos lábios das mulheres quando se viraram em direção ao ancião de
cabelos brancos, sentado na outra poltrona. —Mariano Aureliano — minha voz saiu fraca e quebrada; tinha perdido toda
sua energia. Virei‐me até Joe Cortez, e nesse mesmo tom débil o acusei de ter me
enganado.
Desejava
gritar‐
lhe,
insultá‐
lo,
agredi‐
lo
fisicamente,
mas
não
tinha
nem
forças para levantar um braço. Tampouco para notar que, como eu, estava parado
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como se estivesse preso ao chão, o rosto pálido de assombro e confusão. Mariano
Aureliano, ficando de pé, se aproximou, os braços estendidos em sinal de abraço. —Estou tão feliz de ver‐lhe novamente! — sua voz era doce, seus olhos
brilhavam de felicidade, e com um abraço de urso me levantou do chão. Meu corpo
frouxo, desprovido de forças, não acertava em retribuir seu carinho. Não pude
articular palavra.
Me
depositou
de
novo
ao
chão,
e foi
em
direção
à Joe
Cortez,
para
dar‐lhe uma igualmente efusiva boas‐vindas. Delia Flores e suas amigas se aproximaram, cada uma com seu abraço, e
murmuraram algo em meu ouvido. Me reconfortaram suas carícias e vozes suaves, contudo não entendi uma só palavra. A mente não me acompanhava. Podia sentir e
escutar, mas não captar a essência de minhas sensações. Mariano Aureliano dirigiu‐se
a mim com voz clara que dissipou meu nublado entendimento. —Você não foi enganada. Eu lhe disse desde o princípio que te sopraria até ele. —De modo que você é… — não pude terminar a frase, pois finalmente captei
que Mariano Aureliano era o homem de quem tanto me havia falado Joe Cortez: Juan
Matus, o feiticeiro
que
mudou
o curso
de
sua
vida.
Abri a boca para dizer algo, e em seguida a fechei. Tinha a sensação de ter sido
separada de meu corpo. Minha mente não podia acomodar novas surpresas. Depois vi ao senhor Flores emergir por entre as sombras, e ao dar‐me conta de que havia sido
ele quem nos abriu a porta, desmaiei. Quando recuperei os sentidos me encontrava sobre o sofá, sentindo‐me extraordinariamente bem, descansada e livre de ansiedade. Para determinar o tempo que estive inconsciente me levantei para alçar o braço e
olhar meu relógio de pulso. —Esteve fora de comissão exatamente dois minutos e vinte segundos —
anunciou o senhor Flores, consultando seu pulso desprovido de relógio. Estava
sentado numa
otomana
de
couro
vizinha
ao
sofá,
e na
posição
de
sentado
pareceu
mais alto, pois suas pernas eram curtas e seu dorso largo. —Que terrivelmente dramático, isso de desmaiar‐se! — disse ao sentar‐se a
meu lado. —Sinto muito que tenhamos lhe assustado — mas seus olhos cor âmbar, plenos de riso, desdiziam o tom genuinamente preocupado de sua voz. —E desculpe‐
me por não os ter saudado ao abrir a porta. Com seu cabelo escondido sob o chapéu, e
com essa pesada jaqueta, pensei que você era homem. — entretanto ele brincava, encantado, com minha trança.
Ao ficar de pé precisei me apoiar no sofá. Continuava algo mareada. Insegura, percorri o quarto com a vista. Nem as mulheres nem Joe Cortéz estavam ali. Mariano
Aureliano estava
sentado
numa
das
poltronas
com
a vista
fixa
à frente.
Talvez
estivesse
dormido com os olhos abertos. —Assim que os vi de mãos dadas pensei que Charlie Spider tinha virado bicha…
— disse o senhor Flores em inglês, pronunciando cada palavra de maneira impecável e
com genuíno gosto. Ri ao escutar esse nome, e da formal pronúncia inglesa. —Charlie Spider? Quem é? —Não o sabe? — perguntou, abrindo os olhos, autenticamente desconcertado. —Não, não sei. Por acaso deveria saber? Expressou sua surpresa ante minha negação coçando a cabeça, e depois
perguntou:
—Com quem estava de mãos dadas?
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—Carlos segurava minha mão ao entrar nesta casa. —Pois isso — aprovou o senhor Flores, sorrindo contente como se tivesse
solucionado um difícil enigma. Depois, ao ver minha expressão ainda perplexa, acrescentou: —Carlos Castaneda não só é Joe Cortez como também Charlie Spider.
—Charlie Spider — repeti. —É um nome muito repelente.
—Dos três,
era
o que
mais
me
agradava,
sem
dúvida
devido
à minha
afeição
pelas aranhas, às quais jamais temi. Nem sequer às grandes aranhas tropicais. Nos cantos de meu apartamento sempre se podiam encontrar suas teias, as que não eram
destruídas ao se fazer a limpeza. —Por que se faz chamar Charlie Spider? — perguntei. —Diferentes nomes para diferentes situações — e o senhor Flores recitou a
resposta como se estivesse anunciando um produto. —Quem pode explicar‐lhe tudo
isto é Mariano Aureliano. —Mariano Aureliano é também Juan Matus? —Eu acho que sim — respondeu com um amplo e divertido sorriso. —Também
ele tem
distintos
nomes
para
distintas
situações.
—E você, senhor Flores, também tem diferentes nomes? —Flores é meu único nome. Genaro flores — e aproximando‐se, se insinuou em
tom conquistador, apenas murmurado: —Pode me chamar de Genarito. Sacudi a cabeça sem querer. Algo nele me assustava mais que Mariano
Aureliano, mas num nível racional não conseguia determinar a causa. O senhor Flores parecia muito mais abordável que o outro. Era infantil, brincalhão e de fácil trato, apesar do qual não me sentia confortável em sua companhia. O senhor Flores interrompeu meus pensamentos profundos:
—A razão pela qual tenho um só nome é que não sou um nagual.
—E o que
é um
nagual?
—Ah, isso é muito difícil de explicar — e me ofereceu um sorriso cativante. —Unicamente Mariano Aureliano ou Isidoro Baltazar podem explicar isso.
—Quem é Isidoro Baltazar? —Isidoro Baltazar é o novo nagual. —Basta. Não me diga mais nada — e levando a mão à frente me sentei no sofá.
—Está me confundindo, senhor Flores, e ainda estou fraca — e com olhar suplicante, perguntei: —Onde está Carlos?
—Charlie Spider está tecendo um sonho aracnóide — o senhor Flores disse a
frase inteira em seu inglês extravagante, após o qual emitiu um breve riso, como se
estivesse saboreando
uma
anedota
especialmente
boa.
Olhou
com
malícia
a Mariano
Aureliano (que seguia com a vista fixa na parede), depois a mim, e por último de novo
a seu amigo. Deve de ter pressentido meu crescente medo, pois encolheu os ombros e
elevou as mãos num gesto resignado antes de dizer: —Carlos, também conhecido
como Isidoro Baltazar, foi visitar a…
—O que, ele se foi?! — meu grito fez com que Mariano Aureliano se virasse
para olhar‐me. Me perturbava mais ficar sozinha com os dois velhos que saber que
Carlos Castaneda tinha ainda outro nome e era o novo nagual, fosse isso o que fosse. Mariano Aureliano se levantou, fez uma profunda reverência, e estendendo sua mão
para ajudar‐me a ficar de pé, perguntou:
—O
que
pode
ser
mais
agradável
e
recompensador
para
dois
velhos
que
cuidar
de ti até que te despertará de seus ensonhos?
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Seu gracioso sorriso e sua cortesia finissecular eram irresistíveis. Relaxei‐me de
imediato. —Não posso pensar em nada mais agradável — concordei, e permiti que me
conduzisse a um refeitório bem iluminado, situado do outro lado do corredor, a uma mesa de caoba ovalada nos fundos do aposento. Com um gesto galante me ofereceu
uma cadeira.
Aguardou
a que
me
instalasse
comodamente,
e depois
disse
que
não
era
demasiado tarde para comer, e que ele mesmo se encarregaria de trazer‐me algo
delicioso da cozinha. Minha proposta de ajudar foi recusada com finura. O senhor Flores, em vez de caminhar até a mesa, exibiu sua destreza acrobática
impulsionando‐se com uma meia‐lua, e calculou a distância com tal precisão que
aterrissou a poucos centímetros da mesa. Com um sorriso tomou assento a meu lado. Seu rosto não revelava o esforço realizado, e nem sequer ofegava.
—Apesar de que negue ser um acrobata, creio que você e seus amigos são
parte de um espetáculo mágico — opinei. O senhor Flores saltou de sua cadeira, o rosto iluminado por intenções
travessas.
—Você tem toda a razão do mundo! Somos parte de um espetáculo mágico! —
e pegou um jarro de cerâmica que estava sobre um largo aparador. Serviu‐me uma caneca de chocolate quente. —Isto e um pedaço de queijo representam para mim uma
refeição — e me cortou um pedaço de queijo Manchego. Juntos eram uma delícia. Apesar de meus desejos não me ofereceu repetir. A meia caneca que me serviu
não me satisfez. Sempre gostei de chocolate, que nenhum dano me fazia por mais que
comesse, e tinha a certeza de que se me concentrasse em meu desejo de comer mais, ele se veria na obrigação de oferecer‐me outra caneca sem um pedido de minha parte. De menina, isto me dava resultado quando era forte meu desejo por algo. Observei‐lhe
retirar dois
copos
e dois
pratinhos
extras
do
armário,
e notei
que
entre
a louça,
os
cristais e a prataria, pastava uma rara mistura de figuras de cerâmica pré‐hispânica e
uns monstros pré‐históricos de plástico. —Esta é a casa das bruxas — informou o senhor Flores com ar de conspirador,
como se isso explicasse a incongruência do conteúdo do móvel. —As esposas de Mariano Aureliano? — perguntei desafiante. Em vez de responder me convidou com um gesto a olhar atrás de mim.
Mariano Aureliano estava às minhas costas. —As mesmas — admitiu, colocando uma sopeira de porcelana sobre a mesa. —
As mesmas bruxas que fizeram esta deliciosa sopa de rabo de boi — e com um concha
de prata
encheu
um
prato
e me
instou
a juntar
‐lhe
um
pedaço
de
lima
e outro
de
abacate. Assim fiz, devorando tudo nuns poucos goles. Comi vários pratos até ficar fisicamente satisfeita, quase saciada.
Permanecemos ao redor da mesa um longo tempo. A sopa de rabo de boi exerceu um maravilhoso efeito sedativo sobre mim. Sentia‐me tranquila. Algo
usualmente muito desagradável em mim estava desconectado, e todo meu ser, corpo
e espírito, agradecia ao fato de não ter que utilizar energia para defender‐me. Assentindo com a cabeça, como confirmando em silêncio cada um de meus pensamentos, Mariano Aureliano me observava com olhos agudos e divertidos. Estava a ponto de dirigir‐me a ele chamando‐o Juan Matus quando antecipou meu intento e
disse:
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—Eu sou Juan Matus para Isidoro Baltazar. Para você sou o nagual Mariano
Aureliano. — sorrindo, chegou mais perto e sussurrou confidencialmente: —O homem
que te trouxe aqui é o novo nagual, o nagual Isidoro Baltazar. Você deve usar esse
nome quando falar com ele ou o mencionar. —Não está totalmente dormida nem desperta — continuou Mariano Aureliano
—, de
modo
que
poderá
entender
e recordar
tudo
o que
lhe
dizemos
—
e vendo
que
eu estava a ponto de interrompê‐lo, acrescentou com suavidade: —E esta noite não
vai ficar fazendo perguntas estúpidas. Não foi tanto seu tom e sim uma força, um cordão, o que me gelou, paralisando
minha língua. Contudo minha cabeça, como independente de minha vontade, fez um
gesto de assentimento. —Precisa colocá‐la à prova — lembrou o senhor Flores a seu amigo. Um brilho
decididamente perverso apareceu em seus olhos. —Ou melhor ainda, deixe que eu o
faça. Mariano Aureliano fez uma pausa, longa e deliberada, plena de sinistras
possibilidades, e me
olhou
em
forma
crítica,
como
se
minhas
feições
pudessem
dar
‐lhe
um indício para algum importante segredo. Imobilizada por seus olhos penetrantes, nem sequer pisquei. Depois deu seu perdão, e o senhor Flores me formulou uma pergunta em voz grave e profunda:
—Está enamorada de Isidoro Baltazar? E que me condenem se não disse que sim, de maneira mecânica e inanimada. O senhor Flores se aproximou até que nossas cabeças quase se tocaram, e em
um murmúrio cheio de riso sufocado perguntou: —De verdade, louca, loucamente apaixonada?
Repeti que sim, e ambos os homens estouraram em sonoras gargalhadas. O
som de
suas
risadas,
repiqueteando
em
torno
do
aposento
como
bolinhas
de
ping
‐pong, pôs fim a meu estado de transe. Me agarrei ao som e saí do encantamento. —Que porra é esta? — perguntei a todo pulmão. Ambos os homens saltaram em suas cadeiras, assustados por meus gritos. Se
olharam, e logo seus olhares convergiram em mim, e ambos se abandonaram a um riso
extático. Quanto mais eloqüentes eram meus insultos, maior eram suas gargalhadas, e
tão contagioso era seu entusiasmo que não pude evitar de aderir‐me a ele. Quando nos acalmamos, Mariano Aureliano e o senhor Flores me
bombardearam com perguntas. Os interessava em especial como e quando havia
conhecido a Isidoro Baltazar, e cada pequeno detalhe os enchia de alegria. Quando
repeti os
acontecimentos
pela
quarta
ou
quinta
vez,
havia
ampliado
ou
melhorado
a história, ou recordado detalhes que não teria suspeitado que poderia recordar.
—Isidoro Baltazar conseguiu ver através de você e de todo o assunto — julgou
Mariano Aureliano quando finalizei minha exposição. —Contudo, ainda não vê o
suficientemente bem. Nem sequer concebeu que fui eu quem te enviou a ele — e me
lançou outra de suas olhadas perversas antes de corrigir‐se: —Na verdade não fui eu e
sim o espírito, que me elegeu para fazer seu mandato, e te soprei até ele quando
estava no máximo de seu poder, no meio de seu ensonhar desperta — falava de
maneira casual, quase com negligência, e somente seus olhos transpareciam sua sabedoria. —Talvez seu poder para ensonhar desperta foi a razão pela qual Isidoro
Baltazar
não
percebeu
quem
era,
apesar
a
que
estava
vendo,
ainda
quando
o
espírito
o
tenha revelado desde o primeiro momento em que ele te viu. Não pode existir maior
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indício que essa exibição de luzes na névoa. Que estupidez a de Isidoro Baltazar de não
ver o óbvio. Riu contidamente e eu concordei, sem saber com quê estava concordando. —Isso te demonstrará que o fato de ser feiticeiro não é grande coisa. Isidoro
Baltazar é feiticeiro; ser um homem de conhecimento é algo diferente. Para chegar a
isso, os
feiticeiros
precisam
às
vezes
esperar
toda
uma
vida.
—Qual é a diferença? — perguntei. —Um homem de conhecimento é um líder — explicou em voz baixa, sutilmente
misteriosa. —Os feiticeiros precisam de líderes para guiá‐los até e através do
desconhecido. Um líder se revela por suas ações; eles não têm preço, o que significa que não se pode os comprar, subornar, adular ou mistificar.
Acomodou‐se melhor em sua cadeira, e disse que todos os membros de seu
grupo haviam concordado em estudar aos líderes através da História, para descobrir se
algum deles chegou a justificar sua condição de tal. —E vocês encontraram alguns que o conseguiram?
—Alguns —
admitiu.
—Os
que
encontramos
poderiam
ter
sido
naguais.
Os
naguais são, pois, líderes naturais, homens de tremenda energia, que se convertem em
feiticeiros agregando um marco a mais ao seu repertório: o desconhecido. Se esses feiticeiros chegam a converter‐se em homens de conhecimento não existe
praticamente limite ao que podem alcançar. —Podem as mulheres…? — não me permitiu terminar. —As mulheres, como descobrirá algum dia, podem fazer coisas infinitamente
mais complexas ainda. —Isidoro Baltazar — interrompeu o senhor Flores —, lhe fez lembrar a alguém
que conhecera previamente?
—Bom —
respondi
—,
me
senti
muito
bem
com
ele,
como
se
o conhecesse
de
toda a vida. Me fez recordar a alguém, talvez alguém de minha infância, um amigo
esquecido. —De modo que não recorda tê‐lo conhecido antes? — insistiu o senhor Flores. —Você quer dizer na casa de Esperanza? — talvez estivera ali e eu não o
recordava. Sacudiu sua cabeça, desiludido. Depois, pelo visto esgotado seu interesse em
minha resposta, perguntou se eu havia reparado em alguém que nos saudava com a
mão quando dirigíamos em direção à casa. —Não, ninguém.
—Pense bem
—
insistiu.
Contei‐lhe que depois de Yuma, em vez de nos dirigirmos ao leste, a Nogales na
Rota 8, o caminho mais lógico, Isidoro Baltazar havia marchado até o sul, ao México, depois ao leste através de “El Gran Desierto”, depois de novo ao norte entrando nos Estados Unidos por Sonoyta a Ajo, Arizona, depois de novo ao México à Caborca, onde
desfrutamos de um delicioso almoço de língua de boi em molho picante de pimenta verde.
—Quando voltamos ao carro com o estômago cheio, já quase nem prestei atenção à rota — admiti. —Sei que passamos por Santa Ana, e após nos dirigimos até o
norte à Cananea, e depois outra vez ao sul. Tudo muito confuso, em minha opinião.
—Não
lembra
ter
visto
a
alguém
na
rota
—
insistiu
o
senhor
Flores
—,
alguém
que os saudava com a mão?
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Fechei bem os olhos, procurando visualizar a quem pudesse ter‐nos saudado de
tal maneira, mas minha lembrança da viagem era feita de contos, canções e cansaço
físico. E de repente, quando estava a ponto de abrir os olhos, surgiu a fugaz imagem de
um homem. Disse‐lhes que recordava vagamente a um jovem às margens de um
desses povoados, de quem pensei que nos pedia que o levássemos.
—Pode ter
feito
sinais
com
a mão,
mas
não
o posso
assegurar.
Ambos riram como crianças empenhadas em ocultar um segredo. —Isidoro Baltazar não estava muito seguro de nos encontrar — anunciou
Mariano Aureliano —, por isso seguiu essa rota insólita. Seguiu a rota dos feiticeiros, o
caminho do coiote. —Por que não estaria seguro de encontrá‐los? —Não sabia se nos encontraria até ver ao jovem fazendo‐lhe sinais — explicou
Mariano Aureliano. —Esse jovem é uma sentinela do outro mundo. Seu sinal era prova
de que se podia seguir adiante. Isidoro Baltazar deveria ter sabido ali mesmo quem
era. Mas, como você, é extremamente cauteloso, e quando não o é, é extremamente
temerário. —
fez
uma
pausa
para
permitir
que
suas
palavras
se
registrassem,
e depois
acrescentou significativamente: —O mover‐se entre esses dois pontos é a maneira mais segura de errar. A cautela cega tanto como o atrevimento.
—Não entendo a lógica de tudo isto — murmurei fatigada. Mariano Aureliano esclareceu: —Quando Isidoro Baltazar traz um convidado, precisa prestar atenção ao sinal
da sentinela antes de seguir viagem. —Certa vez trouxe a uma garota por quem estava enamorado — informou o
senhor Flores, e fechou os olhos como transportado por sua lembrança da garota. —Era alta, forte e de cabelos escuros. Pés grandes e rosto bonito. Percorreu toda a Baja
Califórnia, e a sentinela
nunca
lhe
autorizou
a passagem.
—Quer dizer que traz suas namoradas? — perguntei com mórbida curiosidade. —Quantas tem trazido?
—Umas tantas — respondeu o senhor Flores com inocência. —Naturalmente o
fez por conta própria. Seu caso é diferente. Você não é sua namorada; você retornava. Isidoro Baltazar quase explodiu quando descobriu que por tonto não compreendeu
todas as indicações do espírito. Ele simplesmente serviu de chofer. Nós te
esperávamos. —O que teria acontecido se a sentinela não estivesse lá? —O que sempre acontece quando Isidoro Baltazar vem acompanhado —
retrucou Mariano
Aureliano.
—Não
nos
teria
encontrado,
porque
não
corresponde
a ele eleger a quem trazer ao mundo dos feiticeiros — sua voz se fez agradavelmente
doce ao acrescentar: —Somente aqueles a quem o espírito tenha assinalado podem
bater à nossa porta, depois que um de nós o tenha admitido. Estive a ponto de interromper, mas recordando a advertência de não fazer
perguntas tontas, tapei minha boca com a mão. Com um sorriso Mariano Aureliano
acrescentou que em meu caso Delia havia sido quem me trouxe ao mundo. —É uma de nossas duas colunas, por assim dizer, que fazem a porta de nosso
mundo, a outra é Clara, a quem conhecerá logo. Havia uma genuína admiração em seus olhos e em sua voz quando disse:
—Delia
cruzou
a
fronteira
nada
mais
que
para
trazer‐
lhe
à
casa.
A
fronteira
é
um fato concreto, mas os feiticeiros o usam de maneira simbólica. Você estava do
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outro lado e precisava ser trazida a este lado. No outro está o mundo do cotidiano, mas neste se encontra o mundo dos feiticeiros.
“Delia te escoltou com delicadeza, um trabalho verdadeiramente profissional; uma manobra impecável que você apreciará mais e mais à medida que passe o
tempo.”
Mariano Aureliano
se
levantou
em
sua
cadeira
para
alcançar
a compoteira
de
porcelana da divisória. Colocou‐a diante de mim com um convite: —Sirva‐se, são
deliciosos. Fascinada olhei os damascos polpudos e logo provei um deles. Eram tão
deliciosos que, de imediato, despachei mais três. O senhor Flores, depois de piscar‐me
um olho, me instigou a comê‐los todos, antes que retirassem o prato. Com a boca
cheia fiquei corada, e procurei pedir desculpas. —Não se desculpe! — recomendou Mariano Aureliano. — Seja você mesma,
mas você mesma sob controle. Se quer acabar com os damascos, termine‐os, e
assunto encerrado. O que jamais deve fazer é terminá‐los e depois arrepender‐se.
—Então os
terminarei
—
disse,
e isso
os
fez
rir.
—Sabia que conheceu a Isidoro Baltazar no ano passado? — disse o senhor Flores, que se balançava tão precariamente em sua cadeira que temi que caísse para trás e batesse contra o armário das louças. Um brilho maligno apareceu em seus olhos, ao mesmo tempo em que começou a cantarolar uma bem conhecida ranchera, fazendo um arremedo da letra para contar a estória de Isidoro Baltazar, famoso
cozinheiro de Tucson, que jamais perdia a calma, nem sequer quando se lhe acusavam
de pôr baratas mortas na comida. —Oh! — exclamei —, o cozinheiro! O cozinheiro da cafeteria era Isidoro
Baltazar! Mas isso não pode estar certo. Não acredito que ele… — interrompi a frase
na metade.
Olhei fixamente a Mariano Aureliano, na esperança de descobrir algo em seu
rosto, em seu nariz aquilino, em seus olhos penetrantes, e senti um involuntário
calafrio. Havia algo de selvagem em seus olhos frios. —Sim — me incitou. —Não acredita que ele… — e com um movimento de
cabeça me pressionava a completar minha frase. Estive por dizer que não acreditava que Isidoro Baltazar era capaz de mentir‐me dessa maneira, mas não me animei a
formular a frase. Os olhos de Mariano Aureliano se endureceram, mas eu me sentia tão mal comigo mesma que não tinha cabimento para o medo.
—Ou seja, que, depois de tudo, fui enganada — explodi por fim, olhando‐o com
fúria. —Isidoro
Baltazar
sabia
todo
o tempo
quem
era
eu.
Tudo
não
é mais
que
um
jogo. —Tudo é um jogo — concordou Mariano Aureliano —, mas um jogo
maravilhoso. O único que vale a pena jogar. — fez uma pausa, como para dar‐me a
oportunidade de continuar com minhas queixas, mas antes que eu pudesse fazê‐lo me
lembrou da peruca que ele insistiu em colocar‐me naquela oportunidade. —Se você
não reconheceu a Isidoro Baltazar, que não estava disfarçado, o que te faz pensar que
ele te reconheceu em seu disfarce de cachorro peludo? Mariano Aureliano seguia me observando. Seus olhos haviam perdido sua
dureza, agora se viam tristes e cansados.
—Não
foi
enganada,
nem
sequer
pensei
em
fazê‐
lo,
não
que
não
o
faria
se
o
julgasse necessário — acrescentou. —Disse‐lhe como eram as coisas desde o começo.
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Tem sido testemunha de coisas estupendas, mas não tem reparado nelas. Como faz a
maioria das pessoas, associa a feitiçaria com comportamentos incomuns, rituais, drogas, encantamentos — e, aproximando‐se, baixou a voz ao nível de um sussurro
para acrescentar que a verdadeira feitiçaria era uma muito sutil e esquisita manipulação da percepção.
—A verdadeira
feitiçaria
—
o senhor
Flores
concluiu
—
não
permite
a
interferência humana. —Mas o senhor Aureliano diz ter me soprado até Isidoro Baltazar — assinalei
com imatura impertinência. —Não é isso uma interferência? —Sou um nagual — respondeu Mariano Aureliano. —Sou o nagual Mariano
Aureliano, e o fato de ser o nagual me permite manipular a percepção. Eu o havia escutado com toda atenção, mas não tinha a menor idéia do que
queria dizer com manipulação da percepção. De puro nervosismo, estendi a mão para tomar o último damasco do prato.
—Você vai ficar doente — disse o senhor Flores —, é tão pequena, e no
entanto é uma
dor
de
cabeça.
Mariano Aureliano parou atrás de mim, e apertou minhas costas de tal maneira que me fez devolver o último damasco que tinha na boca.
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CAPÍTULO OITO
Neste ponto a sequência dos fatos, tal como eu os recordo, se faz confusa. Não
sei o que aconteceu depois. Talvez dormi sem ter me dado conta disso, ou talvez a
pressão que exerceu Mariano Aureliano sobre minhas costas foi tão forte que
desmaiei. Quando
voltei
a mim
estava
estendida
sobre
uma
esteira
no
chão.
Abri
os
olhos e de imediato me dei conta da luminosidade que me rodeava. O sol parecia brilhar dentro do quarto. Pisquei repetidas vezes, pensando ter algum problema com
os olhos, pois não podia centrá‐los. —Senhor Aureliano — chamei —, acho que algo anda mal com meus olhos… —
tentei levantar‐me sem consegui‐lo. Não eram o senhor Aureliano ou o senhor Flores que estavam de pé junto a
mim, e sim uma mulher, que estava inclinada para frente a partir da cintura, tapando a
luz. Seus cabelos negros balançavam soltos em torno de seus ombros e seus lados; tinha um rosto redondo e um busto imponente. De novo procurei levantar‐me. Não
me tocava,
apesar
do
qual
soube
que
de
alguma
maneira
era
ela
que
me
retinha.
—Não o chame de senhor Aureliano, ou senhor Mariano. Essa é uma falta de
respeito de sua parte. Chame‐o nagual, e quando falar dele refira‐se ao nagual Mariano Aureliano. Ele gosta de seu nome completo. — sua voz era melodiosa. Simpatizei com essa mulher.
Queria averiguar o que era toda essa bobagem com relação à falta de respeito. Tinha escutado a Delia e todas as outras mulheres chamá‐lo pelos mais ridículos diminutivos, e fazer‐lhe festa como se ele fosse seu boneco favorito, e por certo que
ele havia desfrutado de cada momento, mas eu não podia recordar de onde o havia presenciado.
—Entende? —
perguntou
a mulher.
Quis dizer que sim, mas tinha ficado sem voz. Aventei, sem êxito, de abrir a
boca, de falar, mas quando ela insistiu em perguntar se eu havia compreendido, tudo o
que pude fazer foi afirmar com a cabeça. Ofereceu‐me sua mão para me ajudar a
levantar, mas antes que me tocasse eu já estava de pé, como se meu desejo tornasse
inútil o contato com sua mão, e conseguido seu objetivo antes de sua intervenção. Assombrada por esta inesperada derivação quis fazer‐lhe perguntas, mas apenas era possível manter‐me em pé, e quanto a falar, as palavras se recusavam a sair de minha boca. Acariciou repetidas vezes meus cabelos, obviamente interada de meu problema. Sorriu bondosamente e disse:
—Está ensonhando.
Não a escutei dizer isso, mas sabia que suas palavras se haviam movido sem
transição de sua mente à minha. Fez um sinal afirmativo com a cabeça, e me informou
que, de fato, eu podia escutar seus pensamentos e ela aos meus. Me assegurou ser como uma invenção de minha imaginação, apesar do qual podia atuar comigo ou
sobre mim. —Preste atenção! — ordenou. —Não estou movendo meus lábios e contudo
estou lhe falando. Faça o mesmo. Sua boca não se movia em absoluto, e a fim de averiguar se seus lábios o faziam
ao enunciar suas palavras, desejei tocar sua boca com meus dedos. Era bonita, mas de
aspecto
ameaçante.
Tomou
minha
mão
e
a
apertou
contra
seus
lábios
sorridentes.
Não senti nada.
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—Como posso falar sem meus lábios? — pensei. —Tem uma fenda entre as pernas — me informou, introduzindo as palavras de
maneira direta em minha mente. —Concentre sua atenção nela. A perereca fala. Essa observação tocou uma fibra especial em mim, e ri até ficar sem ar e
desmaiar de novo. A mulher me sacudiu até me fazer reagir. Continuava sobre a
esteira no
chão,
mas
agora
apoiada
num
grosso
almofadão
em
minhas
costas.
Pisquei,
um calafrio me sacudiu, suspirei fundo e a olhei. Estava sentada ao meu lado sobre o
chão. —Não costumo desmaiar — disse, surpreendida de poder fazê‐lo com palavras.
O som de minha própria voz era tão reconfortante que ri forte e repeti a mesma frase
várias vezes. —Eu sei, eu sei — disse para apaziguar‐me. —Não se preocupe, não está de
todo desperta. Eu sou Clara. Já nos conhecemos na casa de Esperanza. Deveria ter protestado, ou perguntado o que queria dizer com isso. Entretanto,
sem duvidar por um só instante, aceitei que seguia adormecida e que havíamos nos
conhecido na
casa
de
Esperanza.
Lembranças,
pensamentos
brumosos,
visões
de
gente
e de lugares começaram a surgir lentamente. Um pensamento muito claro tomou
conta de minha mente. Certa vez havia sonhado que a conheci; foi um sonho, portanto
nunca havia pensado nele como num acontecimento real. Nesse momento lembrei de
Clara. —É claro que já nos conhecemos — declarei triunfalmente —, mas nos
conhecemos num sonho, por conseguinte não é real. Devo de estar sonhando neste
momento, e desse modo posso me lembrar de você. Suspirei, feliz de que tudo pudesse ser explicado com tamanha facilidade, e me
reclinei sobre os almofadões. Outra clara lembrança de um sonho se estampou. Não
podia lembrar
quando
o havia
sonhado,
porém
me
lembrava
dele
com
a mesma
fidelidade de um fato real. Nele, Delia me apresentava à Clara, a quem havia descrito
como a mais gregária das mulheres ensonhadoras. —Tem amigos que a adoram — me confessou. A Clara do sonho era bastante alta, forte e rotunda, e me havia observado com
insistência como quem observa a um membro de uma espécie desconhecida, com
olhos atentos e sorrisos nervosos. E entretanto, apesar de seu olhar penetrante, havia gostado muito dela. Seus olhos eram especulativos, verdes e sorridentes, e o que mais recordava de seu olhar era sua similaridade com o de um gato: o fato de não piscar.
—Eu sei que este é só um sonho, Clara — repeti, como se precisasse me
assegurar disso.
—Não, este não é só um sonho, é um sonho especial — me contradisse Clara. —Faz mal em urdir tais pensamentos. Os pensamentos têm poder, você deve cuidar deles.
—Você não é real, Clara — insisti, minha voz aguda e tensionada —, é um
sonho. Por isso não posso lembrar de você quando estou acordada. Minha obstinada persistência fez Clara sorrir. —Nunca intentou recordar‐me. Não havia razão nem sentido para isso. Nós, as
mulheres, somos extremamente práticas. É nosso grande defeito e nosso grande
capital.
Estava
a
ponto
de
perguntar‐
lhe
qual
era
o
aspecto
prático
de
recordá‐
la
agora,
quando se antecipou à minha pergunta.
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—Dado que estou frente a você necessita recordar‐me, e me recorda. — se
agachou ainda mais para fixar em mim seu olhar felino e disse: —E já não me
esquecerá. Os feiticeiros que me criaram me disseram que as mulheres necessitam
dois de cada coisa para que se fixe. Duas vistas de algo, duas leituras, dois sustos, etc. Você e eu já nos encontramos um par de vezes. Agora sou sólida e real — e para
provar o quanto
era
real,
arregaçou
a blusa
e flexionou
seus
bíceps.
—Toque
‐os
—
convidou‐me. Rindo, eu o fiz. Na verdade ela tinha músculos duros, poderosos e bem
definidos. Também me fez provar os de suas coxas e panturrilhas. —Se este é um sonho especial, que faço eu nele? — perguntei cautelosamente. —O que se te der vontade. Até agora está indo bem. Não posso guiar você, pois
não sou sua mestra de ensonhos, e sim simplesmente uma bruxa gorda que cuida de
outras bruxas. Foi minha sócia, Delia, quem te trouxe ao mundo dos feiticeiros, como
uma parteira. Mas não foi quem primeiro te encontrou. Essa foi Florinda. —E quem é Florinda, e quando me encontrou?
—Florinda é outra
bruxa.
Você
a conheceu;
é a que
te
levantou
em
seu
ensonho, na casa de Esperanza. Lembra da refeição no campo? —Ah… — suspirei, compreendendo. —Refere‐se à mulher alta de voz
profunda? — me senti feliz; sempre admirei as mulheres altas. Clara confirmou minha suposição: —A mulher alta de voz profunda. Ela encontrou você em uma festa, à qual você
compareceu faz alguns anos, com seu amigo. Um acontecimento elegantíssimo na casa
de um petroleiro, em Houston, Texas. —E o que fazia uma bruxa numa festa na casa de um petroleiro? — perguntei.
Em seguida, me golpeou o pleno impacto de sua declaração. Fiquei muda. Apesar de
não lembrar
ter
visto
a Florinda
lembrava
muito
bem
da
festa.
Eu
havia
comparecido
com um amigo, que havia voado de propósito em seu jato particular desde Los Ângeles, e regressado no dia seguinte. Eu fui sua tradutora. Compareceram vários homens de negócios, mexicanos que não falavam inglês.
—Meu Deus! — exclamei em segredo. —Que insólito! — e descrevi a festa com
riqueza de detalhes à Clara. Aquela foi minha primeira visita ao Texas, e como uma
deslumbrada admiradora de estrelas de cinema, os homens me deixaram boba, não
por serem lindos e sim porque me parecia tão chamativa sua indumentária: seus chapéus Stetson, seus ternos cor pastel e suas botas de cowboy. O petroleiro havia contratado artistas e montado um espetáculo digno de Las Vegas, numa gruta que
fazia as
vezes
de
um
night
‐club,
cheia
de
luzes
e música
estridente,
e lembrava
da
comida como sendo de primeiríssima qualidade. —Mas por que Florinda iria a uma festa desse tipo? —O mundo dos feiticeiros é o que de mais estranho existe — respondeu Clara,
que com um acrobático salto se levantou sem utilizar os braços, para percorrer o
quarto num ir e vir frente à esteira e ostentar seu aspecto chamativo: uma ampla saia escura, blusa de algodão com as costas bordadas em alegres cores, e sólidas botas de
vaqueiro. Um chapéu australiano, cuja longa aba escondia seu rosto do sol do meio‐
dia, dava o toque final à tão insólita vestimenta. —Gostou do meu conjunto? — perguntou radiante, detendo‐se frente a mim.
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—É fabuloso! — aplaudi. Não havia dúvida de que Clara possuía o atrevimento
e a confiança necessários para usar tais roupas. —Elas lhe caem muito bem —
acrescentei. Ajoelhando‐se junto a mim me fez uma confidência: —Delia está verde de inveja. Sempre competimos para ver quem se anima a
usar a roupa
mais
maluca.
Precisa
ser
louca
sem
ser
estúpida
—
guardou
silêncio
durante os segundos em que me contemplou: —Se desejar competir é bem‐vinda —
ofereceu. —Quer participar do nosso jogo? Aceitei com muito prazer, e ela me pôs a par das regras. —Originalidade, praticidade, preço baixo e nada de ostentação — enumerou.
Depois se pôs novamente de pé para percorrer o quarto e, rindo, desparramar‐se ao
meu lado. —Florinda acha que devo animá‐la a participar. Disse‐me que naquela festa
descobriu que você mostra uma tendência para conjuntos sumariamente práticos… —
apenas conseguiu terminar a frase, pois a assaltou um ataque de risos. —Florinda falou comigo lá? — perguntei, olhando‐a furtivamente, intrigada por
saber se
ela
forneceria
os
detalhes
daquela
festa
que
eu
não
havia
dado,
e nem
estava
disposta a proporcionar. Clara negou com um movimento de cabeça, e logo sorriu de maneira distraída,
destinada a evitar novas referências à festa. —Como foi que Delia assistiu ao batismo em Nogales, Arizona? — perguntei,
orientando a conversa para o tema da outra festa. —Florinda a enviou — admitiu Clara, recolhendo seus cabelos soltos sob o
chapéu australiano. —Chegou dizendo a todos que voltaria contigo. —Um momento! — interrompi. —Isto não é um sonho. O que está tentando
fazer comigo?
—Estou procurando
instruir
‐lhe
—
insistiu
Clara
sem
modificar
seu
ar
indiferente, utilizando um tom quase casual. Não parecia interessar‐lhe o efeito que
suas palavras pudessem ter em mim, apesar do qual me observou de maneira cuidadosa ao agregar: —Este é um ensonho, e certamente estamos falando em seu
ensonho porque eu também estou ensonhando seu ensonho. Que suas insólitas declarações bastaram para apaziguar‐me foi prova de que eu
ensonhava. Minha mente se acalmou, sonolenta, e capaz de aceitar a situação. Escutei minha voz separada de minha vontade.
—Não havia modo de que Florinda soubesse de minha viagem a Nogales —
disse. —O convite de minha amiga foi feito no último momento.
—Sabia que
isto
seria
incompreensível
a você
—
suspirou
Clara,
e olhando
no
fundo de meus olhos e pesando suas palavras cuidadosamente, declarou: —Florinda é
sua mãe, mais que qualquer outra mãe que jamais tenha tido. Essas palavras me pareceram absurdas, mas não podia dizer nada a respeito. —Florinda te pressente — continuou Clara com um toque diabólico nos olhos.
— Utiliza um dispositivo rastreador. Sabe onde você se encontra. —Que aparelho rastreador? — perguntei, sentindo que de súbito minha mente
estava sob controle. O simples pensar que alguém pudesse saber meu paradeiro a
todo o momento me encheu de medo. —Os sentimentos dela por você são um aparelho rastreador — respondeu Clara
com
esquisita
simplicidade,
e
num
tom
tão
doce
e
harmonioso
que
meus
temores
desapareceram.
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—Que sentimentos, Clara? —Quem sabe, filha? — e encolheu as pernas, as rodeou com os braços e
descansou a testa sobre os joelhos. —Nunca tive uma filha assim. Meu estado de ânimo mudou de maneira abrupta; o temor voltou, e com meu
velho estilo racional e ponderado, comecei a preocupar‐me pelas sutis implicações do
que foi
dito
por
Clara.
E foram
precisamente
essas
deliberações
racionais
as
que
me
fizeram retomar minhas dúvidas. Não era possível que isto fosse um sonho. Eu estava desperta, somente assim se poderia explicar meu intenso grau de concentração.
Deslizando‐me pelo almofadão, no qual apoiava minhas costas, semicerrei os olhos. Mantive a vista fixa em Clara através das pálpebras, e me perguntei se
desapareceria lentamente, como desaparecem as pessoas e as visões nos sonhos. Não
o fez, e momentaneamente me tranquilizou a idéia de que ambas estávamos despertas.
—Não, não estamos despertas — contradisse Clara, de novo intrometendo‐se
em meus pensamentos.
—Posso falar
—
disse,
para
justificar
meu
estado
de
total
consciência.
—Grande façanha! — zombou ela. —Agora farei algo que te despertará, para que possa continuar esta conversa estando verdadeiramente desperta — e enunciou a
última palavra com extremo cuidado, prolongando‐a exageradamente. —Espere, Clara, espere — roguei. —Dê‐me tempo para adaptar‐me a tudo isto
— preferia minha insegurança ao que pudesse me fazer. Indiferente à minha súplica, Clara ficou de pé e esticou a mão até uma jarra de
água colocada sobre uma mesa próxima. Rindo, girou sobre mim, mantendo a jarra sobre minha cabeça. Tentei desviar‐me para um lado sem consegui‐lo; meu corpo se
recusava a obedecer, parecia cimentado à esteira. Antes que ela chegasse a despejar a
água sobre
mim,
senti
uma
suave
e fria
garoa
sobre
meu
rosto,
e o frio,
mais
que
o molhado, produziu uma sensação muito particular. Primeiro semi‐ocultou o rosto de
Clara, como as ondas que distorcem a superfície da água: logo o frio se concentrou em
meu estômago, fazendo me retrair sobre mim mesma como uma manga invertida, e
meu último pensamento foi que me afogaria num jarro de água. Borbulhas e mais borbulhas escuras bailaram ao meu redor até que tudo se fez negro.
Quando recobrei a consciência já não estava sobre a esteira, e sim sobre um
divã na sala. Duas mulheres se encontravam aos meus pés, olhando‐me com grandes olhos fixos. Florinda, a mulher alta de voz rouca, estava sentada ao meu lado, cantarolando uma canção de ninar, ou assim pareceu a mim, e acariciava meu cabelo,
meu rosto
e meus
braços
com
grande
ternura.
O
contato
e o som
de
sua
voz
me
serenaram. Permaneci deitada, meus olhos fixos nos seus, certa de estar experimentando um de meus sonhos vívidos que sempre começavam como sonhos e
acabavam como pesadelos. Florinda me falava, me ordenava olhá‐la nos olhos, e suas palavras se moviam
sem som, como asas de mariposa, mas o que vi em seus olhos me encheu de uma sensação familiar, o terror abjeto e irracional que experimentava em meus pesadelos. Levantei‐me de um salto e corri até a porta, respondendo à reação automática e
animal que sempre as acompanhava. —Não tenha medo, meu amor — me consolou Florinda, que me havia seguido.
—Relaxe,
estamos
todos
aqui
para
lhe
ajudar.
Não
deve
se
angustiar,
pois
danificará
seu corpinho se o submeter ao temor desnecessário.
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Eu me havia detido junto à porta, não em reação às suas palavras, e sim por não poder abri‐la. Meu tremor aumentou, sacudindo‐me ao ponto de fazer doer o
corpo e bater o coração de maneira tão forte e irregular que pressenti que terminaria por estourar.
—Nagual! — gritou Florinda por cima de seu ombro —, terá que fazer algo ou
ela morrerá
de
susto.
Eu não conseguia ver a quem se dirigia, mas em minha aloucada busca de um
lugar por onde fugir divisei uma segunda porta no outro extremo do cômodo. Estava certa de contar com suficiente energia como para alcançá‐la, porém minhas pernas cederam, e como se a vida tivesse abandonado meu corpo, caí ao chão já sem respirar. Os longos braços da mulher descenderam sobre mim como as asas de uma águia enorme, me recolheram, e pondo sua boca sobre a minha insuflou ar em meus pulmões.
Lentamente meu corpo se relaxou, se fez normal meu ritmo cardíaco, e me
invadiu uma estranha paz que, de repente, se transformou em viva excitação. Não era
o medo
a causa,
e sim
o ar
recebido
da
mulher,
ar
forte
que
abrasou
minha
garganta,
meus pulmões, meu estômago e virilha para chegar às minhas mãos e meus pés. Num
instante percebi que ela era igual a mim, só que mais alta, tão alta como eu gostaria de
ter sido, e senti tal amor por ela que fiz algo incrível: beijei‐a apaixonadamente. Senti que sua boca se alargou num sorriso, e depois jogou a cabeça para trás e riu.
—Esta ratita me beijou — anunciou, dirigindo‐se aos outros. —Estou sonhando! — exclamei, e todos riram com um abandono infantil. Inicialmente não pude evitar rir com eles, mas quase em seguida me
transformei em meu verdadeiro eu: envergonhada por causa de um ato impulsivo, e
irritada por ter sido desmascarada. A mulher alta me abraçou.
—Sou Florinda
—
disse,
e alçando
‐me
me
ninou
em
seus
braços
como
se
fosse
uma criança. —Você e eu somos iguais. Você é tão pequena como eu gostaria de ser. Ser alta é uma grande desvantagem. Ninguém pode ninar você. Eu meço um metro e
setenta e sete. —Eu, um metro e cinquenta e sete — confessei, e ambas rimos, pois nos
entendíamos à perfeição. Eu era um pouco menor no último centímetro mas sempre o
arredondava, e estava certa de que com Florinda acontecia ao contrário. Beijei suas bochechas e seus olhos, amando‐a com um amor que me era
incompreensível, sem dúvidas, medo ou expectativas. Era o amor que se sente nos sonhos. Pelo visto concordou comigo. Florinda deixou escapar um suave riso. A luz
fugaz de
seus
olhos
e o branco
fantasmal
de
seu
cabelo
representavam
algo
assim
como uma lembrança esquecida. Tinha a impressão de conhecê‐la desde o dia que
nasci, e se me ocorreu que os meninos que admiram às suas mães têm que ser meninos perdidos. O amor filial, unido à admiração física pela mãe, deve produzir um
amor total como o que eu sentia por esta mulher alta e misteriosa. Depositou‐me no
chão, e virando‐me até a uma mulher bonita, de cabelo e olhos escuros, disse: —Esta é Carmela. — os traços de Carmela eram delicados e sua pele impecável;
pele suave e da palidez cremosa de quem está sempre dentro de casa. —Somente tomo banhos de lua — sussurrou em meu ouvido ao abraçar‐me. —
Deveria fazer o mesmo. É demasiado branca para estar ao sol; está lhe arruinando a
pele.
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Mais que nada foi sua voz a que reconheci. Era a mesma que me havia feito
todas aquelas perguntas diretas e pessoais na refeição do campo. Lembrava dela sentada, e então me parecia frágil; agora, para minha surpresa, comprovei que me
ultrapassava em oito ou nove centímetros, e seu corpo poderoso e muscular me fez se
sentir insignificante em comparação.
Com seu
braço
em
torno
de
meu
ombro
Florinda
me
guiou
até
a outra
mulher,
que estava parada junto ao divã quando despertei. Era alta e musculosa, ainda que não
tão alta como Florinda; a sua não era uma beleza convencional (seus traços eram
demasiado fortes para isso), apesar do qual havia nela algo chamativo que atraía, inclusive a tênue sombra que povoava seu lábio superior, e que obviamente eu não
achava necessário ter. Pressenti nela uma tremenda força, uma agitação subjacente, mas totalmente controlada.
—Esta é Zoila — disse Florinda. Zoila não insinuou abraçar‐me ou apertar minha mão, e foi Carmela quem,
rindo, falou por ela:
—Estou muito
contente
de
ver
você
de
novo.
—
a boca
de
Zoila
se
curvou
no
mais delicioso dos sorrisos, mostrando dentes brancos, grandes e paralelos, e quando
sua longa e fina mão cheia de jóias roçou minha bochecha me dei conta de que era aquela cujo rosto esteve oculto sob uma massa de cabelos desarrumados. Era quem
havia costurado a renda belga nas bordas da lona sobre a qual nos sentamos nessa ocasião da comida.
As três mulheres me rodearam, obrigando‐me a sentar no divã. —Quando lhe conhecemos estava ensonhando — informou Florinda —, de
modo que não houve oportunidade para nos relacionarmos. Agora está desperta, e
sendo assim, então nos fale de você.
Estive a ponto
de
interrompê
‐la
para
dizer
‐lhe
que
este
era
um
sonho,
e que
durante o piquenique, adormecida ou desperta, já lhes havia contado tudo o que se
merecia saber de minha vida. —Não, não. Está equivocada — respondeu Florida, como se de fato eu
houvesse exteriorizado esse pensamento. —Agora está totalmente desperta, e o que
desejamos saber é o que tem feito desde nosso último encontro. Em especial conte‐
nos de Isidoro Baltazar. —Quer dizer que este não é um sonho? — perguntei timidamente. —Não, não é um sonho — assegurou‐me. —Há uns minutos você ensonhava,
mas isto é diferente.
—Não vejo
a diferença.
—Isso se deve a que é uma boa ensonhadora — explicou. —Seus pesadelos são
reais; você mesma disse isso. Todo meu corpo se tensionou e, depois, como sabendo que não resistiria a
outro ataque de medo, se afrouxou, abandonando‐se ao momento. Repeti a elas o já
narrado e recontado a Mariano Aureliano e ao senhor Flores. Contudo, nesta oportunidade recordei detalhes passados por alto anteriormente, tais como os dois lados do rosto de Isidoro Baltazar, e os dois simultâneos estados de ânimo que
revelavam seus olhos: o esquerdo sinistro, ameaçador, o direito aberto e amistoso. Sustentei que era um homem perigoso.
—Possui
o
raro
poder
de
mover
os
fatos
até
onde
lhe
agrada,
enquanto
ele
permanece fora deles e observa como estes se contorcem.
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Às mulheres lhes fascinou o que eu revelava, e Florinda me indicou com um
sinal que prosseguisse. —O que torna à gente tão vulnerável a seus encantos é sua generosidade —
continuei —, e a generosidade é talvez a virtude que não podemos resistir por estarmos despossuídos dela, seja qual for nossa base. — ao dar‐me conta do alcance
dessas palavras
me
detive
abruptamente
e as
observei
espantada,
medindo
sua
reação. —Não sei o que me aconteceu — disse tentando desculpar‐me. —Na verdade
não sei por que disse isso, quando eu mesma não pensei em Isidoro Baltazar nesses termos. Não sou eu quem fala, pois nem sequer sou capaz de fazer esse tipo de juízo.
—Não importa de onde lhe vêm esses pensamentos, menina — consolou
Florinda. —Obviamente os está sacando direto da fonte. Todos nós fazemos isso: tirá‐
los da própria fonte, mas se precisa ser feiticeiro para dar‐se conta disso. Não entendi o que intentava dizer‐me. Repeti que não havia sido minha
intenção deixar que minha língua me dominasse. Florinda riu, e durante uns
momentos me
contemplou
pensativa.
—Atue como se estivesse ensonhando. Seja audaz e não se desculpe. Me senti tonta, incapaz de analisar o que sentia. Florinda ordenou às suas
companheiras: —Conte‐lhe de nós. Carmela limpou sua garganta, e sem olhar‐me, disse: —Nós três e Delia formamos uma unidade. Nos ocupamos do mundo cotidiano. Eu estava atenta a cada uma de suas palavras, mas não consegui entendê‐la. —Somos a unidade de feiticeiras que trata com a gente. Há outra unidade de
quatro mulheres que nada têm a ver com as pessoas.
Carmela tomou
minha
mão
na
sua
e examinou
a palma,
como
se
estivesse
por
ler minha sorte, para depois formar um punho com ela e acrescentar: —Por alto é
como nós, e em particular como Florinda. Pode lidar com as pessoas. — fez uma nova
pausa, e com uma olhada sonolenta repetiu o que Clara já me havia antecipado: —Foi Florinda quem te encontrou. Assim, enquanto permanecer no mundo dos
feiticeiros, lhe pertence. Ela há de guiar e cuidar de você. — era tal a certeza de seu
tom que me deixou em profunda preocupação. —Não pertenço a ninguém e não preciso que cuidem de mim — disse, e minha
voz soava tensa, insegura e nada natural. As três mulheres me observaram em silêncio, sorridentes.
—Crêem que
necessito
ser
guiada?
—
perguntei
desafiante,
passando
meu
olhar de uma à outra. Seus olhos estavam semicerrados, seus lábios abertos em
sorrisos contemplativos, e os imperceptíveis movimentos de suas testas, indicava que
aguardavam que eu terminasse com o que tinha a dizer. —Creio que me arranjo
bastante bem na vida — terminei alegando com escassa convicção. —Lembra‐se do que fez na festa, aquela onde te encontrei? — perguntou
Florinda. Ao notar que eu reagia assombrada, Carmela cochichou em meu ouvido: —Não se inquiete. Sempre encontrará um modo de explicá‐lo por inteiro — e
pelo gesto de desdém que traçou com sua mão, deu a entender não estar
minimamente
preocupada.
A
mim
me
dominou
o
pânico
só
de
pensar
que
pudessem
saber que naquela festa eu me havia passeado desnuda frente a dezenas de pessoas.
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Até esse momento, se não até orgulhosa dele, eu aceitava esse ato desinibido
como uma manifestação de minha personalidade espontânea. Em primeiro lugar havia feito um longo passeio a cavalo com o dono da casa, vestindo meu traje de noite e sem
cela, depois que ele me desafiou a fazê‐lo e apostasse que não o faria. Foi para demonstrar que eu era tão boa montando como qualquer cowboy. Tive um tio na
Venezuela dono
de
um
haras,
e montava
desde
que
era
muito
pequena.
Após
ganhar
a
aposta, mareada pelo esforço e pelo álcool, arrematei minha façanha mergulhando
nua na piscina. —Foi ali, na piscina, onde você se exibiu pelada — disse Florinda, obviamente a
par de meus pensamentos. —Me roçou com suas nádegas desnudas, e escandalizou a
todos, inclusive a mim. Me agradou sua ousadia, sobretudo a atitude de caminhar nua
de um lado ao outro da piscina, nada mais que para esfregar‐se contra mim. O tomei como uma indicação de que o espírito te estava assinalando para benefício meu.
—Não pode estar certo — murmurei —, se tivesse estado nessa festa eu me
lembraria de você. É muito alta e chamativa para passar inadvertida. — não disse isso
em som
de
elogio.
Queria
convencer
‐me
de
que
estava
sendo
enganada,
manipulada.
—Me agradou isso de você estar se matando para exibir‐se — continuou
Florinda. —Era um palhaço ansioso por chamar a atenção por qualquer meio, em
especial quando saltou sobre uma mesa e dançou sacudindo sua bunda desavergonhadamente enquanto o anfitrião gritava como louco.
Ao invés de envergonhar‐me, seus comentários me produziram uma sensação
incrível de tranquilidade e agrado. Se havia feito público meu segredo, o que jamais me havia animado a admitir: eu era uma exibicionista capaz de qualquer ato que
centrasse a atenção em mim. Dominou‐me um novo estado de ânimo, definitivamente mais humilde, menos defensivo, mas temi que este estado seria de curta duração.
Sabia que
as
percepções
e as
realizações
às
quais
alcancei
em
sonhos
jamais
foram
duradouras. Mas talvez Florinda estivesse certa e não era este um sonho, e por conseguinte meu exaltado estado perduraria. Evidentemente conhecedora de meus pensamentos, as três mulheres concordaram de maneira enfática, o qual, em lugar de
estimular‐me, só fez reavivar minha incerteza. Tal como temia, meu estado perceptivo
foi efêmero. Em poucos minutos fervia de dúvidas, e precisava de uma trégua. —Onde está Delia? — perguntei. —Em Oaxaca — informou Florinda, e depois acrescentou sutilmente: —Esteve
aqui nada mais que para saudar‐lhe. Pensei que se mudasse de assunto conseguiria um respiro e a oportunidade de
recuperar minhas
forças,
mas
agora
enfrentava
algo
contra
o qual
me
encontrava
desprovida de recursos. Não podia acusar a Florinda de mentir deliberadamente para manipular‐me, o qual normalmente teria feito com qualquer um. Não podia
argumentar que suspeitava que me houvessem drogado e levado de quarto em quarto
enquanto estava inconsciente. —O que você disse, Florinda, é absurdo — a censurei. —Sem dúvida não
esperará que te leve a sério. Sei que Delia está escondida em um dos quartos. Os olhos de Florinda pareciam dizer‐me que entendia meu dilema. —Não tem outra alternativa que a de levar‐me a sério — e apesar do tom ser
moderado, a intenção era categórica.
Virei‐
me
até
as
outras
duas
mulheres,
com
a
esperança
de
obter
algum
tipo
de
resposta, qualquer coisa capaz de apaziguar meu crescente temor.
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—Se outra pessoa lhe guia é muito fácil ensonhar — confiou‐me Carmela. —A
única desvantagem é que essa pessoa precisa ser um nagual. —Faz tempo que venho escutando essa palavra. O que é um nagual? —Um nagual é um feiticeiro de grande poder, que pode conduzir a outros
feiticeiros através da escuridão e levá‐los à luz — explicou Carmela —, mas o nagual já
lhe disse
isso,
não
se
lembra?
Florinda intercedeu ao comprovar o esforço que eu fazia para recordar. —Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos
muita prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos lutar muito para recuperá‐los, simplesmente porque o corpo os armazena em diferentes lugares. Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula —
continuou — as instruções para ensonhar começam por fazer com que desenhem um
mapa de seus corpos, um trabalho cuidadoso que revela onde as visões dos ensonhos são armazenadas.
—Como se traça esse mapa, Florinda? — perguntei, autenticamente intrigada.
—Percorrendo e investigando
cada
polegada
do
corpo,
mas
não
posso
dizer
mais. Sou sua mãe, não sua mestra de ensonho. Sua mestra recomenda um martelinho
de madeira para golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito
raramente o corpo armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A
única coisa que diz respeito a você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a
pressão física sobre o ponto específico onde está armazenada essa visão. Por exemplo
— terminou dizendo com amável simplicidade — se empurrar sua vagina pressionando
o clitóris, recordará o que te disse Mariano Aureliano. Olhei‐a espantada, e depois caí num acesso de risinhos nervosos. Não pensava
empurrar nada.
Florinda
também
riu,
ao
parecer
estar
desfrutando
de
meu
desconcerto. —Se não o fizer — ameaçou —, então terei que fazer com que Carmela o faça
por você. Virei‐me até Carmela, que com um sorriso a ponto de tornar‐se gargalhada, me
assegurou que o faria. —Não faz falta! — gritei. —Eu lembro de tudo! — e de verdade o recordava, e
não só o dito por Mariano Aureliano. —O senhor Aureliano... Carmela não me permitiu continuar. —Clara lhe disse que o chame de nagual Mariano Aureliano.
—Os ensonhos
são
portas
que
conduzem
ao
desconhecido
—
disse
Florinda,
acariciando minha cabeça. —Os naguais guiam por meio de ensonhos, e o ato de
ensonhar com um propósito é a arte dos feiticeiros. O nagual Mariano Aureliano tem
lhe ajudado a chegar aos ensonhos que todos nós ensonhamos. Pisquei repetidas vezes, sacudi a cabeça, e depois me deixei cair sobre os
almofadões do divã, espantada pelo absurdo do quanto estava recordando. Lembrei ter sonhado com eles um ano atrás em Sonora, um sonho que pareceu durar eternamente. Nesse sonho conheci a Clara, Nélida e Hermelinda, a equipe de
ensonhadoras. Disseram‐me que quem dirigia essa equipe era Zuleica, mas que eu
ainda não podia sonhar com ela.
À
medida
que
a
memória
desse
sonho
se
aclarava,
também
se
fez
claro
que
entre essas mulheres nenhuma era mais ou menos que a outra. Que uma de cada
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grupo fosse líder de nenhuma maneira implicava poder, prestígio ou realização, mas sim por uma simples questão de eficiência. Não sei por que, mas eu estava convencida de que a única coisa que a elas importava era o profundo afeto existente entre elas.
Naquele sonho todos me haviam dito que Zuleica era minha professora de
ensonhos; era tudo o que podia recordar. Tal como me havia dito Clara, necessitava
vê‐las
ou
sonhar
com
elas
uma
vez
mais
para
cimentar
meu
conhecimento
de
suas
personalidades. No momento não passavam de lembranças incorpóreas. Vagamente escutei a Florinda dizer que depois de outras poucas tentativas eu
melhoraria em mover‐me de minha lembrança de um ensonho ao ensonho que estava ensonhando, e depois ao estado normal de consciência. Escutei Florinda rindo, mas eu
já não estava na casa e sim fora, caminhando através do chaparral, lentamente, por uma trilha invisível, e um tanto intranquila devido à falta de luz, lua ou estrelas.
Atraída por uma força invisível entrei num aposento grande, escuro salvo por umas linhas de luz que cruzavam de parede a parede sobre as cabeças daqueles que
estavam sentados em dois círculos, um externo e outro interno, linhas que
aumentavam e diminuíam
de
intensidade
como
se
alguém
no
círculo
manipulasse
um
interruptor que acendia e apagava a corrente. Reconheci a Mariano Aureliano e a Isidoro Baltazar, sentados costas contra
costas no meio do círculo interior. Reconheci tanto seus rostos como sua energia, a
qual não era mais brilhante ou intensa que a dos outros, e sim mais massiva, mais volumosa; um esplêndido e enorme montão de brilho inacabável.
O quarto emitia um brilho límpido e tudo, cada ângulo, cada esquina, reluzia uma força quase irreal. Tal era a claridade que tudo se destacava em separado, em
especial aquelas linhas de luz aderidas às pessoas sentadas no círculo, ou que
emanavam delas. Todas elas estavam conectadas por raios luminosos que pareciam os
pontos de
suspensão
de
uma
gigantesca
teia
de
aranha,
e se
comunicavam
sem
palavras através da luz. Me vi atraída em direção a essa tensão elétrica e silenciosa, até
converter‐me eu também num ponto dessa rede de luminosidade. —O que vai acontecer? — perguntei a Florinda. Encontrava‐me estirada no divã
com a cabeça em seu colo. Não respondeu; tampouco Carmela nem Zoila, que estavam sentadas ao seu
lado com os olhos fechados. Repeti a pergunta várias vezes, mas só obtive como
resposta a suave respiração das três mulheres. Tinha a certeza de que dormiam, e no
entanto sentia sobre mim a presença de seus olhos. O silêncio e a escuridão rondavam
a casa como algo vivo, trazendo com eles um vento gelado e o perfume do deserto.
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CAPÍTULO NOVE
Tremendo de frio apertei a coberta ao redor de meu corpo e me levantei. Me
encontrei numa cama estranha, num quarto estranho mobiliado só com uma cama e
uma mesa de noite, apesar do qual todo o entorno exsudava familiaridade. Contudo
não conseguia
dizer
por
que
tudo
me
era
tão
bem
conhecido.
“Talvez
ainda
esteja
dormindo”, pensei. “Como sei que não é um sonho?” Me deixei cair novamente sobre
as almofadas e permaneci ali, com meus braços atrás da cabeça, deixando que os raros acontecimentos presenciados e vividos, metade sonho, metade lembrança, percorressem minha mente.
Pelo visto tudo havia começado no ano anterior, quando acompanhei a Delia Flores à casa da curandeira. Ela mantinha que a comida que compartilhei com todos havia sido um ensonho, e eu rejeitei suas pretensões como absurdas. Não obstante, ela tinha razão. Agora eu sabia que a refeição no campo havia sido um ensonho, não
meu, e sim um ensonho ensonhado por outros, ao qual eu fui convidada: eu fui uma
convidada participante.
Meu
erro
todo
esse
tempo
havia
sido
o de
negá
‐lo
obstinadamente, em descartar como falso sem saber o que significava falso para mim. A única coisa que consegui com isso foi banir o fato tão completamente de minha mente que perdi consciência dele.
Eu precisava aceitar o fato de que possuímos uma senda por onde somente os ensonhos transitam. De ter‐me decidido a recordar o ensonho que tive em Sonora unicamente como tal, teria conseguido reter todo o admirável que aconteceu
enquanto o ensonho era ensonhado. Quanto mais especulava acerca disso, e de tudo o
que me estava acontecendo, maior era meu mal‐estar, porém o mais surpreendente era que toda essa gente não me assustava, pois apesar a que me apoiavam, não
deixavam de
ser
um
grupo
intimidante.
E de
repente
me
ficou
claro
o motivo
pelo
qual
não os temia: os conhecia muito bem, e a prova era que eles mesmos haviam
expressado a estranha e no entanto reconfortante sensação que eu sentia: a de estar voltando para casa.
Descartei todos estes pensamentos nem bem os havia formulado, e com toda honestidade me perguntei se não seria eu uma desequilibrada mental, e eles, conscientes disso, estavam se aproveitando de mim. De maneira séria e sistemática, passei em revista a minha história familiar, num intento de recordar tudo o que
pudesse ter escutado acerca de enfermidades mentais na família. Existiu, por exemplo, aquele tio‐avô materno que, com a Bíblia em mãos, pregava nas esquinas das ruas.
Depois tanto
meu
bisavô
como
meu
avô,
em
começos
da
Primeira
e da
Segunda
Guerra Mundial, haviam se suicidado ao comprovar que tudo estava perdido para eles, e uma de minhas avós estourou os miolos quando se deu conta de que havia perdido
sua beleza e atração sexual. Agradava‐me pensar que havia herdado meu sentido de
autonomia por ser a autêntica neta de todos esses loucos. Sempre acreditei que meu
sentido de autonomia era o que alimentava minha audácia. Estes mórbidos pensamentos me causaram tal ansiedade que, com
movimentos nervosos, me desfiz de minhas cobertas e saltei da cama. Para minha enorme surpresa e desconcerto me encontrei vestindo um grosso camisão de flanela, meias longas de lã, luvas e um cardigã (blusa de lã). “—Devo estar doente”, disse a
mim,
—
“por
que,
se
não,
estaria
sentindo
frio
com
todas
estas
roupas?”.
Normalmente eu dormia nua, indiferente às condições atmosféricas.
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Recém então notei a luz do sol no quarto, filtrando‐se através do grosso e semi‐opaco vidro da janela. Tinha a certeza de que essa luz em meus olhos era a
responsável por me acordar, além do mais tinha necessidade de encontrar o banheiro. Temendo que a casa não tivesse instalação sanitária interna me dirigi até a porta corrediça no outro extremo do cômodo, e ali encontrei um guarda‐roupa grande com
um pinico
com
tampa
encima.
—Caralho! — gritei. —Não posso ir ao banheiro num guarda‐roupa! A porta se abriu para deixar que Florinda entrasse. —Está bem — disse, abraçando‐me. —Há uma latrina fora da casa. O pinico é
uma relíquia do passado. —Que sorte que já é de dia — disse rindo. —Ninguém saberá que sou por
demais covarde para ir à latrina na escuridão. Florinda me olhou de maneira estranha, e depois desviou seus olhos antes de
perguntar‐me num sussurro. —O que te faz pensar que já é de manhã?
—O sol
me
despertou
faz
um
tempinho
—
respondi,
movendo
‐me
até
a janela.
Era incrível para mim que ainda fosse de noite. O rosto de Florinda se iluminou, e a risada sacudia seus ombros quando me
assinalou o foco de luz da lâmpada situada junto a minha cama, que eu havia confundido com a luz do sol.
—O que te faz tão segura de que está desperta? — perguntou. —Minha incontível necessidade de ir ao banheiro — respondi. Tomando‐me pelo braço me ofereceu sua ajuda. —Deixe que eu te leve à latrina antes que se desgrace. —Não vou a parte alguma se para tanto não me disser se estou desperta ou
adormecida —
gritei.
—Que mau gênio! — comentou Florida, baixando sua cabeça até fazer que sua frente tocasse com a minha. —Está ensonhando desperta — informou, enunciando
cada palavra com suma deliberação. Apesar de minha crescente apreensão comecei a rir, e o som desse riso,
reverberando por todo o quarto como um eco distante, dissipou minha ansiedade, e já
não me preocupou o fato de estar desperta, ou dormida sonhando. Toda minha
atenção se concentrou em chegar ao banheiro. —Onde fica o vaso? — perguntei de mau modo. —Você sabe onde está — respondeu Florinda dobrando os braços sobre o peito
— e nunca
chegará
a tempo
a menos
que
se
obrigue
a isso.
Mas
não
traga
o vaso
à sua
cama. A isso lhe chamam “o ensonhar do desleixado”, e é a melhor maneira para emporcalhar sua cama. Anda até a latrina em um abrir e fechar de olhos!
Comprovei espantada, ao tentá‐lo, que não podia alcançar a porta. Meus pés haviam perdido a confiança e, lentos e incertos, como indecisos, se arrastavam um
após o outro. Resistindo‐me a aceitar que já não me obedeciam, intentei acelerar meus movimentos ajudando‐os com minhas mãos, levantando um e depois o outro pé.
A Florinda parecia não importar‐lhe o que me acontecia. Lágrimas de frustração
e pena de mim mesma começaram a formar‐se em meus olhos enquanto eu seguia como parafusada ao chão. Meus lábios contornaram a palavra ajude‐me, mas nenhum
som
escapou
de
minha
boca.
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—O que acontece? — perguntou, tomando um de meus braços para fazer que, com suavidade, me sentasse no chão.
Depois me tirou as grossas meias de lã e examinou meus pés, e ali se mostrou
autenticamente preocupada. Queria explicar‐lhe que minha incapacidade para mover‐me obedecia a que me encontrava emocionalmente exausta, porém, por mais que o
tentasse, não
podia
transformar
meus
pensamentos
em
palavras,
e enquanto
lutava
por emitir sons descobri problemas com minha vista: meus olhos não conseguiam
enfocar seu objetivo, e o rosto de Florinda permanecia borrado apesar de meus intentos, independente de se estar meu rosto perto ou longe do seu.
—Eu sei o que te acontece — sussurrou Florinda em meu ouvido. —Tem que ir ao vaso. Faça‐o! Intente chegar lá!
Com um enfático movimento de cabeça evidenciei meu assentimento. Sabia
que eu estava ensonhando desperta, ou melhor, que vivia em outra realidade que
ainda não me pertencia por inteiro, mas à qual tinha acesso por intermédio desta gente. E me senti inexplicavelmente tranquila, e de repente estava na latrina, uma
autêntica latrina,
não
produto
dos
sonhos.
Gastei
bastante
tempo
em
inspecionar
o
que me cercava, em assegurar‐me de sua realidade, e durante um certo período o
consegui. Depois, não sei como, me encontrei de novo no quarto. Florinda ponderou
sobre minha capacidade para ensonhar, ao qual prestei escassa atenção, pois me
distraiu a pilha de cobertores acomodados contra a parede. Não os havia notado ao
despertar, mas tinha a certeza de tê‐los visto antes. Minha sensação de bem‐estar desapareceu rapidamente quando procurei recordar de onde havia visto essas cobertas. Cresceu minha ansiedade. Já não soube se seguia na mesma casa à qual chegara com Isidoro Baltazar, ou em algum outro lugar.
—De quem
é esta
residência?
—
perguntei
—
e quem
me
vestiu
com
toda
esta
roupa? — escutar minha própria voz me aterrorizava. Florinda me acariciou os cabelos, e com voz suave revelou que pelo momento a
casa era minha. Também que havia sido ela quem me abrigou para evitar um
esfriamento, explicando que o deserto era muito enganador, em especial de noite. Olhava‐me com uma expressão enigmática, como se aludisse a algo, o qual me
preocupou, pois suas palavras não proporcionaram indício algum acerca do
presumivelmente insinuado. Meus pensamentos giravam sem rumo. A palavra‐chave, decidi, era deserto. Eu não sabia que a casa das bruxas se localizava no deserto, pois havíamos chegado nela depois de tantos rodeios que não poderia localizá‐la com
exatidão. —De quem é esta casa, Florinda? — perguntei.
Ela parecia estar lutando com algum problema importante, pois sua expressão
mudou várias vezes, de pensativa a preocupada. “Está em sua casa”, disse por fim, sua
voz profunda embargada de emoção, e antes que eu pudesse lembrar‐lhe que não
havia respondido à minha pergunta, apontou em direção à porta e me indicou por sinais para ficar em silêncio.
Algo sussurrou na escuridão externa. Podia ter sido o vento e as folhas, mas eu
sabia que não era nem um nem outro. Era um som familiar, tranquilizante, que
recriava a memória da refeição no campo, em especial as palavras de Mariano
Aureliano:
“Te
soprarei,
como
soprei
às
outras,
à
pessoa
que
agora
tem
o
mito
em
suas
mãos”.
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As palavras soaram em meus ouvidos, e me virei como se Mariano Aureliano
tivesse entrado no quarto, e nesse exato momento as estivesse pronunciando em voz alta. Florinda assentiu com um movimento de cabeça. Havia lido meus pensamentos, e
seus olhos, fixos nos meus, estavam me obrigando a aceitar minha compreensão da
frase do nagual. Durante a comida não havia designado demasiada importância à
frase, simplesmente
me
pareceu
absurda.
Agora
era
tal
minha
curiosidade
por
averiguar quem eram “as outras” que não podia permitir que o tema se desvanecesse. —Isidoro Baltazar falou acerca de certa gente que trabalha com ele — insinuei
com cautela. —Disse que lhe havia sido encomendada, e que era seu dever sagrado
ajudá‐los. São eles os que… foram soprados até ele? — perguntei vacilante. Florinda repetiu seu característico movimento afirmativo de cabeça. Um leve
sorriso ondulava seus lábios, como se minha renúncia em utilizar a palavra soprar lhe
causasse graça. —Essas são as que o velho nagual soprou ao novo nagual. São
mulheres e se parecem com você. —Se parecem a mim? — perguntei insegura, e pensei que teria sido preferível
se, em
lugar
de
estar
tão
absorta
com
meus
alternantes
estados
de
ânimo
e
sentimentos com relação a Isidoro Baltazar durante a viagem, tivesse prestado maior atenção a tudo o que me revelou acerca de seu mundo.
—Em quê maneira essas mulheres se parecem a mim? — perguntei, para
depois acrescentar com fingida indiferença: —Você as conhece? —Eu já as vi — disse sem comprometer‐se. —Quantas mulheres foram sopradas a Isidoro Baltazar? — perguntei sem
conseguir ocultar que me afetava, apesar de que o mero pensar nelas era ao mesmo
tempo excitante e alarmante. A Florinda lhe encantou minha reação.
—Umas tantas.
Não
se
parecem
fisicamente
com
você,
e contudo
são
como
você. O que quero dizer é que se parecem entre si como eu com minhas irmãs feiticeiras. Você mesma não se surpreendeu com nossa grande semelhança assim que
nos conheceu? Dei‐lhe a razão, depois do qual Florinda explicou que o que fazia tão parecidas
às suas companheiras com ela, apesar das óbvias diferenças físicas, era sua absoluta devoção ao mundo dos feiticeiros.
—Nos une um afeto até agora incompreensível para você. —Não me cabe dúvida alguma — comentei com o tom mais cínico possível.
Depois minha curiosidade em respeito às mulheres que haviam sido sopradas a Isidoro
Baltazar me
dominou:
—Quando
as
conhecerei?
—Quando as encontrar — respondeu Florinda. —E como poderei encontrá‐las se não as conheço? Será algo impossível. —Não para uma bruxa. Como já disse, não se parecem fisicamente com você,
mas seu resplendor interno é tão intenso como o delas. Por esse resplendor as reconhecerá, é o resplendor dos feiticeiros. — Seus olhos se fixaram intensamente em
mim, como se de fato pudesse ver meu resplendor interno, sua voz baixou de tom e
seu rosto adquiriu um matiz grave. Teria preferido dizer uma irreverência, mas algo em sua postura me alarmou. —Eu posso ver esse resplendor? — perguntei.
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—Para isso necessitamos do nagual — respondeu Florinda, apontando para
Mariano Aureliano, que estava de pé no canto em sombras do quarto. Não havia
notado sua presença, mas sua repentina aparição não me alarmou. Florinda o colocar a par de meu desejo, e ele me fez sinais para segui‐lo até o
meio do recinto.
—Vou lhe
mostrar
esse
resplendor
—
disse,
pondo
‐se
de
cócoras,
e,
elevando
ambas as mãos, me instruiu por sinais a que eu subisse em suas costas. —O que? Vamos dar um passeio de cavalinho? — perguntei sem ocultar minha
desilusão. —Você não ia me mostrar o resplendor dos feiticeiros? — apesar de lembrar muito bem de sua advertência de que a verdadeira feitiçaria não implicava comportamento estranho, rituais, drogas ou encantamentos, agora esperava alguma demonstração de seu poder, tal como o misturar feitiços e ervas sobre o fogo, mas ignorando meu desencanto me convidou a rodear seu pescoço com meus braços, recomendando fazê‐lo com a devida precaução a fim de não sufocá‐lo.
—Você não acha que sou um pouco crescidinha para que me levem assim?
Surgiu um
riso
na
garganta
de
Mariano
Aureliano
e explodiu
com
gosto.
Em
um
salto ficou de pé, e acomodando seus braços atrás de meus joelhos me colocou em
posição cômoda, e saiu ao hall sem que minha cabeça batesse no umbral da porta. Caminhou tão sem esforço e com tal rapidez que experimentei a sensação muito
concreta de estar flutuando pelo longo e escuro corredor. Observei curiosa tudo o que
me rodeava, mas nossa velocidade me impedia de captar detalhes da casa. Um suave
embora persistente perfume invadia tudo: uma fragrância de laranjeiras e a frescura do ar frio.
Uma mortalha de névoa cobria o pátio exterior, reduzindo minha visão a uma
massa uniforme de silhuetas escuras, revelando e depois apagando as estranhas
formas de
árvores
e pedras.
Contudo,
de
uma
coisa
eu
tinha
certeza:
não
estávamos
na casa das bruxas. Um único som chegava a meus ouvidos, um rítmico resfolegar (não
sabia se meu ou de Mariano Aureliano), que invadia todo o pátio, fazia tremer as folhas e invadia meu corpo para produzir uma tontura que me obrigava a aferrar‐me
aos ombros do nagual a fim de não perder os sentidos; mas antes que pudesse dizer‐lhe o que estava experimentando a névoa me envolveu e senti que me dissolvia em
um nada. —Descansa sua testa sobre minha cabeça — ordenou Mariano Aureliano numa
voz que parecia vir de muito longe, e me produziu uma sacudida, pois havia esquecido
que cavalgava sobre suas costas. — Faça o que fizer — continuou — não se solte —
disse, acomodando
‐me
de
maneira
que
minha
cabeça
sobressaísse
sobre
a sua.
—O que poderia acontecer se eu me soltar? — perguntei, revelando meu
temor —, somente cairia ao chão, não é? Mariano Aureliano riu sem contestar. Pausadamente, quase com passos de
dança, percorreu várias vezes o extenso pátio, depois do qual, por um instante, tive a
muito aguda sensação de que nos elevávamos, perdíamos peso e sulcávamos o
espaço. Depois, através do corpo de Mariano Aureliano, me senti de novo em terra firme. Não soube se a névoa se havia dissipado ou se havíamos mudado de cenário, mas algo havia mudado. Talvez fosse só o ar que se fez mais denso, mais difícil de
respirar. Não havia lua e apenas se avistavam as estrelas, porém o céu brilhava como
iluminado
desde
algum
lugar
distante.
Lentamente,
como
se
alguém
estivesse
reforçando seus contornos, as árvores adquiriram nitidez.
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Mariano Aureliano fez uma parada frente a uma alta e frondosa árvore de
sapoti, em cujos pés estava reunido um grupo de umas doze ou catorze pessoas. As folhas, pesadas de névoa, escureciam seus rostos ressaltados por uma estranha luz verde emanada da árvore, cujo reflexo relampejava cada traço, olhos, narizes e lábios, apesar do qual eu não conseguia identificar a nenhum, nem sequer determinar se
eram homens
ou
mulheres.
—O que fazem? Quem são? — sussurrei no ouvido de Mariano Aureliano. —Mantenha sua testa sobre minha cabeça. Obedeci sua ordem, temerosa de exercer demasiada pressão e fundir meu
rosto em seu crânio. Na esperança de reconhecer a alguém pela voz lhes dei um “boa‐
noite”, mas apenas consegui sorrisos muito fugazes, pois me viraram os rostos. Um
som raro partiu do grupo, um som carregado de energia pois, igual à árvore, cada um
deles começou a resplandecer, não com luz verde e sim com um brilho dourado, que
em pouco tempo se converteu numa enorme bola de ouro, que ficou suspensa sob a
árvore. Depois a bola se dissolveu para formar pedaços de luminosidade que, como
gigantescos vaga
‐lumes,
apareciam
e desapareciam
entre
as
árvores,
espalhando
luzes
e sombras quando passavam. —Lembre‐se desse fulgor — murmurou Mariano Aureliano, e sua voz
repercutiu dentro de minha cabeça. —É o fulgor dos… surem. Um repentino golpe de vento esparramou suas palavras, um vento vivo que
brilhava contra a escuridão do céu, soprando com grande violência e um estranho e
desgarrante som. E esse vento se virou contra mim, e tive a certeza de que pretendia aniquilar‐me. Gritei de dor quando uma forte baforada chamuscou meus pulmões, e
um intenso frio dominou e endureceu meu corpo. Não pude determinar se foi Mariano Aureliano ou o vento quem falou. O vento
rugiu em
meus
ouvidos,
e depois
penetrou
meus
pulmões,
agitando
‐se
como
um
ser
vivo desejoso de devorar cada célula de meu corpo. Senti que me desmoronava, e
soube que estava morrendo, mas o rugido cessou, e se fez um silêncio tão repentino
que cheguei a ouvi‐lo. Ri com todas as minhas forças, agradecida pelo fato de seguir com vida.
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CAPÍTULO DEZ
A cama era grande, branda e confortável. Uma irradiação aurífera enchia o
quarto, e na esperança de prolongar esse momento de bem‐estar fechei os olhos e
mergulhei numa felicidade sonolenta, entre fragrantes lençóis de linho e o aroma de
travesseiros perfumados
com
lavanda.
Sentia
tensos
cada
músculo
e cada
osso
de
meu
corpo ao recordar os acontecimentos da noite, fragmentos desunidos de um sonho
horrível. Não existia continuidade nem sequência linear em tudo o que experimentei durante essas horas intermináveis. Duas vezes despertei aquela noite em camas diferentes, em quartos distintos, inclusive em casas distintas.
Se diria que essas imagens separadas possuíam vida própria, pois de repente se
empilharam e se expandiram para formar um labirinto que, de alguma maneira, consegui compreender. Melhor dizendo, percebi cada evento simultaneamente. A
sensação dessas imagens, nascendo de minha cabeça para formar uma enorme e
caprichosa touca, era tão forte que saltei da cama para chegar até a cômoda de aço e
vidro, cujo
espelho
de
três
painéis
encontrei
coberto
com
papel
arroz.
Tentei
arrancar
um pedaço desse papel, mas estava aderido como uma pele. Ver o jogo de escova e
pentes montados sobre prata, os frascos de perfume e os potes de cosméticos sobre a
cômoda, teve sobre mim um efeito tranquilizante, pois também eu os teria disposto
por tamanho como ferramentas. De algum modo soube que me encontrava no quarto
de Florinda, na casa das bruxas, e isto restabeleceu meu sentido de equilíbrio. O quarto de Florinda era enorme, e a cama e a cômoda seus únicos móveis.
Estavam localizadas em cantos opostos, em ângulo, e separadas das paredes, deixando
atrás delas um espaço triangular. Esta disposição não deixou de intrigar‐me, pois não
sabia se era em resposta a alguma trama esotérica cujo significado me escapava, ou se
simplesmente respondia
ao
capricho
estético
de
sua
dona.
Senti curiosidade pelas três portas do quarto. E meu desejo de saber para onde
conduziam me levou a prová‐las. A primeira estava fechada por fora, a segunda abria a
um pequeno pátio, retangular e amuralhado. Estudei intrigada o céu, até que por fim
me dei conta de que não era de manhã, tal qual supus ao despertar, mas o fim da
tarde. Não me preocupava o fato de haver dormido todo o dia: ao contrário, me senti feliz, pois convencida de ser uma insone crônica, sempre me extasia o exceder‐me em
dormir. A terceira porta abria a um corredor, e ansiosa por encontrar a Isidoro Baltazar me dirigi à sala, que encontrei vazia.
Havia algo imponente na maneira prolixa e simples em que estava disposto o
mobiliário. Nada
induzia
a crer
que
o sofá
e as
poltronas
tivessem
sido
ocupados
na
noite anterior. Até as almofadas estavam esticadas como soldados em posição de
sentido. Também o refeitório, seguindo pelo corredor, parecia abandonado. Nem uma cadeira fora de lugar, nem uma migalha, nem uma mancha sobre a lustrada superfície da mesa de caoba, nada delatava o fato de que na noite anterior eu havia ceiado ali com o nagual Mariano Aureliano e o senhor Flores.
Na cozinha, separada do refeitório por um pórtico e um estreito vestíbulo, encontrei um jarro com restos de champurrada e um prato tampado, de tamales doces. A fome me fez resistir ao incômodo de esquentá‐los. Me servi uma caneca do
espesso chocolate e comi os três tamales diretamente de seus pacotes. Tinham
recheio
de
pedaços
de
pinha,
uvas
passas
e
amêndoas,
que
achei
deliciosos.
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Era‐me inconcebível que me tivessem deixado sozinha na casa, mas não podia
ignorar o silêncio que me rodeava. Não era a paz reconfortante que se percebe quando os moradores deliberadamente se abstêm de fazer ruídos, antes era o rotundo
silêncio de lugar deserto, e a possibilidade de ter sido abandonada me fez engasgar com um pedaço de tamale.
De volta
ao
quarto
de
Florinda
me
detive
ante
cada
porta
para
golpear
repetidas vezes e perguntar “Tem alguém em casa?”; ninguém respondeu. Estava a
ponto de sair ao pátio quando ouvi com nitidez uma voz que perguntava: —Quem chama? — voz profunda e áspera cujo sexo não pude determinar,
assim como tampouco a direção de onde vinha. Retrocedi e repeti a pergunta a plenos pulmões. Ao chegar ao extremo do
corredor parei um instante frente a uma porta fechada, depois acionei a maçaneta e
entrei. Com os olhos fechados, apoiada contra a parede, esperei até que se
normalizassem as batidas de meu coração, e pensei com antecipada culpa nas consequências que podia acarretar‐me o fato de ser surpreendida ali. Mas minha
curiosidade venceu,
superei
a sensação
de
estar
cometendo
um
ato
delituoso,
e aspirei
o ar de encanto e de mistério que impregnava o cômodo. Pesadas cortinas escuras impediam toda a claridade, e a iluminação vinha de
uma lâmpada cujo enorme abajur adornado com franjas vertia um círculo de luz amarela sobre o sofá próximo à janela. No próprio centro uma cama de quatro
colunas, com dossel e cortinado, dominava tudo qual se fosse um trono, e as figuras orientais de bronze e madeira, talhadas a mão e dispostas sobre as quatro mesinhas situadas em cada canto, pareciam ser as sentinelas celestiais que guardavam o
aposento. Livros, papéis e jornais estavam amontoados sobre a escrivaninha e sobre
um armário; a cômoda carecia de espelho, e em lugar de pente e escova, ou frascos de
perfume e cosméticos,
a superfície
de
vidro
estava
coberta
por
uma
coleção
de
pequenas taças. Colares de pérolas, correntes de ouro, anéis e broches transbordavam
das taças de bordas douradas como tesouros abandonados, e reconheci dois dos anéis por tê‐los visto nas mãos de Zoila.
Reservei para o final a inspeção da cama. Quase com reverência, como se de
fato se tratasse de um trono, corri o cortinado e emiti uma exclamação de gozo: as almofadas brilhantes sobre a colcha verde me lembravam flores silvestres num prado. Contudo, não pude impedir que um calafrio sacudisse meu corpo, pois só podia
atribuir a uma ilusão esse calor e mistério que o quarto exalava. A sensação de ter‐me introduzido em algum tipo de miragem se fez mais
pronunciada no
terceiro
cômodo,
que
a princípio
também
me
pareceu
cálido
e amistoso. O próprio ar era suave e afetuoso, ecos de risos pareciam repicar de suas
paredes, porém esta atmosfera era tão tênue e fugaz como a luz do entardecer infiltrando‐se através do cortinado transparente de uma janela. Como no outro quarto, a cama, também com dossel, e decorada com almofadas multicolores distribuídas ao
acaso, dominava o espaço. Uma máquina de costura descansava contra uma parede: velho artefato de pé, pintado a mão. Junto a ela havia uma biblioteca, cujas estantes se
viam forradas com rolos das mais finas sedas, algodões e gabardines de lã, prolixamente empilhados por cor e por textura. Seis perucas de diferentes cores, estendidas sobre cabaças, estavam em exibição sobre uma mesa baixa junto à janela,
entre
elas
a
peruca
loira
que
usou
Delia
Flores,
e
a
escura
e
esquisita
que
Mariano
Aureliano me enfiou na cabeça no dia do incidente da cafeteria de Tucson.
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O quarto cômodo estava um tanto afastado dos outros, e do outro lado do
vestíbulo. Comparado com os demais dava a impressão de estar vazio. Os últimos raios do sol da tarde, infiltrando através de uma parede treliçada, jaziam no piso como um
tapete de luzes e sombras, trama ondulante e retangular. As poucas peças de mobília estavam tão engenhosamente distribuídas que faziam com que parecesse maior do
que na
realidade
era.
Estantes
baixas
para
livros,
com
portas
de
vidro,
se
alinhavam
junto às paredes, e num extremo do cômodo havia uma cama estreita cuja manta com
quadrinhos cinzas e brancos pendia até o piso e fazia jogo com as sombras no piso. A
delicada secrétaire de madeira rosa, com sua cadeira de igual madeira com bronze, antes aumentava que reduzia a sensação espartana do ambiente. Sabia que era o
quarto de Carmela. Gostaria de ter examinado os títulos dos livros, mas minha ansiedade era muito
grande, e como perseguida por alguém, saí precipitadamente ao corredor e dali ao
pátio. Sentei‐me numa cadeira de junco: tremia e transpirava, e apesar disso sentia as mãos geladas. Não era por causa da culpa que tremia (não me teria importado que me
surpreendessem xeretando)
e sim
a estranha,
não
mundana,
qualidade
que
distinguia
esses quartos tão lindamente mobiliados, a quietude aderida às paredes era uma
quietude singular que nada tinha a ver com a ausência de seus moradores, mas sim
com a ausência dos sentimentos e emoções que normalmente distinguem os lugares habitados.
Eu havia rido comigo mesma cada vez que alguém se referia às mulheres como
bruxas e feiticeiras. Nem se pareciam ou se comportavam como se espera que façam
as bruxas: extravagantemente dramáticas e sinistras. Mas agora não me cabia dúvida alguma de que eram diferentes de outros seres humanos. Assustava‐me que fossem
diferentes de uma maneira para mim incompreensível e inconcebível.
Um som
suave
e raspante
pôs
fim
a meus
inquietantes
pensamentos,
e em
busca de sua origem deslizei na ponta dos pés pelo corredor, afastando‐me dos dormitórios em busca dos fundos da casa. O ruído emanava de um quarto detrás da
cozinha, mas quando cheguei a ele e encostei meu ouvido na porta, parou, para reiniciar assim que me afastei. Intrigada, aproximei de novo minha orelha e outra vez parou, e assim várias vezes, como se o som e o consequente silêncio dependessem de
meus movimentos. Decidida a descobrir quem se escondia ou, pior ainda, quem deliberadamente
tratava de assustar‐me, busquei a maçaneta da porta, mas ao não poder abrir lutei vários minutos antes de me dar conta de que estava fechada, e com a chave na
fechadura. Nem bem me encontrei dentro pensei que alguém perigoso bem podia, por
muitas boas razões, estar encerrado neste aposento. Uma penumbra opressiva se
aderia às pesadas cortinas fechadas, como algo vivo que atraía às sombras de toda a
casa até esse recinto enorme. A luz se enfraqueceu, as sombras se engrossaram ao
redor do que pareciam ser móveis descartados, e de figuras incomuns, enormes e
pequenas, feitas de madeira e de metal. O mesmo som raspante que me trouxe a este quarto quebrou o silêncio. As
sombras se deslizavam pelo quarto como felinos em busca de uma presa, enquanto
gelada de terror eu observava como a cortina batia e respirava igual a um dos
monstros
de
meus
pesadelos.
De
repente
cessaram
o
som
e
o
movimento,
fazendo
ainda mais temível a resultante quietude e silêncio, e já me dispunha a abandonar o
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lugar quando o ruído recomeçou. Então, armando‐me de valor, cruzei o quarto e
descorri o cortinado, e soltei uma risada ao comprovar que através do vidro quebrado
da janela o vento havia estado chupando e soprando a cortina. A luz declinante da tarde, ao penetrar pelas cortinas semi‐abertas, reagrupava
as sombras e revelava um espelho ovalado quase escondido por uma das estranhas
figuras de
metal.
Consegui
deslizar
‐me
entre
a escultura
e a parede
para
contemplar
embelezada o velho espelho veneziano, manchado e gasto pelos anos, que ao
distorcer grotescamente minha imagem me obrigou a fugir do lugar. Saí afora pela porta traseira e encontrei deserta a ampla clareira detrás da casa.
O céu seguia brilhante, mas as altas árvores de frutas já haviam adquirido os tons do
crepúsculo. Um bando de corvos passou voando, suas negras asas escureceram a luz, e
se fez noite sobre o lugar. Dominada pela tristeza e a desesperança me sentei no chão
e chorei, e quanto mais forte era meu pranto maior prazer me ocasionava lamentar‐me em viva voz. O ruído de um rastelo me tirou de meu lamento, e ao levantar a vista vi a uma pessoa ágil arrastando folhas em direção a um fogo que ardia nos fundos do
pátio.
—Esperanza! — gritei, correndo até ela, mas me detive ao comprovar que não
era ela e sim um homem quem manipulava o rastelo. — Eu lamento — murmurei —, o
confundi com outra pessoa — e lhe estendi minha mão para apresentar‐me. Procurei não olhá‐lo muito fixamente, mas não pude evitar, pois não estava de todo segura de
que não se tratasse de Esperanza disfarçada de homem. Apertou minha mão suavemente, e a título de apresentação anunciou que era
o “cuidador”. Não disse seu nome. Quando tive sua mão na minha me pareceu tão
frágil como a asa de um pássaro; também seu rosto tinha algo de pássaro, aquilino e
de olhos vivos, cabelo branco semelhante a plumas e penacho. Em suma, um homem
fraco e antigo.
Mas
não
eram
só
sua
aparência
de
passarinho
e sua
delicadeza
as
que
me faziam lembrar a Esperanza, como também o rosto enrugado e carente de
expressão, os olhos límpidos e brilhantes como os de uma criança, e os dentes pequenos, quadrados e muito brancos.
—Sabe onde está Florinda? — perguntei, e ante sua resposta negativa acrescentei: —E os outros?
Aguardou num amplo silêncio, e depois, como se eu não tivesse feito pergunta alguma, repetiu que era o cuidador.
—Eu cuido de tudo o que está aqui — disse. —Não me diga? — perguntei, observando‐o com desconfiança. Tal era sua
fragilidade que
era
difícil
concebê
‐lo
cuidando
de
algo,
inclusive
de
si
mesmo.
—Cuido de tudo — repetiu com um doce sorriso, destinado talvez a eliminar minhas dúvidas, e parecia estar a ponto de acrescentar algo quando mudou de idéia, mordeu pensativo seu lábio inferior, para logo dar meia volta e continuar reunindo as folhas num pequeno monte, mediante hábeis movimentos de sua ferramenta.
—Onde estão todos? — perguntei. Com a testa descansando sobre a mão que segurava o rastelo me dirigiu uma
olhada ausente. Depois, com um sorriso vazio, olhou ao redor como se a qualquer momento alguém pudesse aparecer por detrás de uma das árvores de frutas. Com um
forte e audível suspiro eu estava prestes a me retirar. Ele limpou sua garganta, e com
voz
rouca
e
gasta
pelos
anos,
disse:
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—O velho nagual levou a Isidoro Baltazar às montanhas. — não me olhou; seus olhos enfocavam algo na distância. —Regressarão em alguns dias.
—Dias! — gritei indignada. —Está certo de ter escutado bem? — e abatida por haver se concretizado meu maior temor, só pude murmurar: —Como podem ter me
deixado sozinha desta maneira?
—Partiram de
noite.
—
informou
o velho,
ao
mesmo
tempo
em
que
recobrava
uma folha que o vento lhe havia roubado. —Isso é impossível, acabamos de chegar de noite — retruquei. —Bem tarde. Indiferente à minha presença e meu tom agressivo, o velho botou fogo no
monte de folhas. —Isidoro Baltazar deixou alguma mensagem para mim? — perguntei, ficando
de cócoras junto a ele. —Não deixou nada dito para mim ou algo parecido? — sentia vontade de gritar, mas algo me impedia disso. Um certo aspecto mistificador do velho
me desconcertava, e a idéia de que pudesse ser Esperanza disfarçada não me havia abandonado ao todo.
—E Esperanza,
foi
com
eles
para
as
montanhas?
—
perguntei,
e minha
voz
tremeu, atacada por um súbito e desesperado desejo de rir. A não ser que abaixasse suas calças e me mostrasse seus genitais, nada que ele fizesse poderia me convencer de que era homem.
—Esperanza está na casa — murmurou, sua atenção fixa no monte de folhas fumegantes. —Está na casa com os demais.
—Não seja ridículo, ela não está na casa — o contradisse de mau modo. —Não
há ninguém na casa. Eu os estive buscando toda a tarde, e revistei todos os quartos. —Está na casa pequena — repetiu o velho com obstinação, transferindo seu
intenso olhar das folhas ao meu rosto. O brilho malicioso de seus olhos fez com que eu
desejasse chutá
‐lo.
—Que pequena…? — não completei a pergunta, pois lembrei da outra casa que
havia visto quando chegamos, e a lembrança chegou a me causar uma dor física. —Deveria de ter me dito desde o princípio que Esperanza estava na casa
pequena — o censurei, enquanto sub‐repticiamente buscava o lugar, oculto de minha
vista pelas grandes árvores e por uma parede. —Irei ver se é verdade que Esperanza está lá como disse — e fiquei de pé.
O velho também se levantou, e da árvore mais próxima pegou uma lamparina e
um saco de estopa que estavam pendurados num galho baixo. —Eu sinto muito, mas não posso deixá‐la ir lá sozinha — anunciou.
—Não vejo
por
que
não?
—
respondi
incomodada.
—Talvez
não
o saiba,
mas
sou hóspede de Florinda. Me levaram à casinha de noite. — fiz uma pausa antes de
acrescentar: —Estive lá, não duvide disso. Escutou com atenção, mas a dúvida se refletia em seu rosto. —É complicado chegar lá — advertiu —, preciso lhe preparar o caminho.
Preciso… — pareceu parar no meio de um pensamento que não desejava expressar. Encolheu‐se de ombros e repetiu o referente à preparação do caminho.
—O que é que tem que preparar? Tem que se abrir caminho pelo chaparral com um facão? — perguntei sem ocultar minha irritação.
—Sou o cuidador. Eu preparo o caminho — repetiu com obstinação, e se
sentou
no
chão
para
acender
a
lamparina
de
azeite.
Antes
de
acender‐
se
satisfatoriamente, a lamparina apresentou problemas. Depois, sob sua luz, os traços
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do velho pareceram descamados, sem rugas, como se essa luz tivesse apagado os maus‐tratos do tempo.
—Assim que terminar de queimar estas folhas te levarei até lá. —Eu lhe ajudarei — retorqui. Era óbvio que estava senil e necessitava que o satisfizessem. Colaborei com ele
juntando as
folhas
em
pequenos
montículos
que
ele
de
imediato
queimava,
para
colocá‐las no saco de estopa assim que se esfriavam. O interior da bolsa estava recoberto de plástico. E foi este detalhe, o forro plástico, o que ressuscitou uma
lembrança quase esquecida de minha infância. Enquanto juntávamos as folhas na bolsa contei‐lhe que de menina, vivendo
num povoado vizinho à Caracas, com frequência me despertava o ruído de um rastelo. Então me escapulia da cama, e com passo de gato deixava para trás os dormitórios dos meus pais e irmãos, e chegada ao quarto que ficava de frente à praça, com extremo
cuidado por causa das dobradiças traiçoeiras, abria as persianas de madeira e me
deslizava por entre as barras de ferro. O velho, a cujo encargo estava a limpeza da
praça, me
dava
as
boas
‐vindas
com
um
sorriso
desdentado,
e juntos
costumávamos
recolher as folhas caídas durante a noite em pequenos montículos, relegando os demais dejetos às latas de lixo. Queimávamos as folhas e, ao esfriarem‐se, as metíamos em um saco de estopa forrado de seda. Segundo o velho, as fadas aquáticas que moravam num riacho sagrado nas montanhas próximas convertiam as cinzas em
pó de ouro. —Também conhece às fadas que transformam as cinzas em pó de ouro? —
perguntei ao perceber o quão feliz que estava o velho com o conto. Não respondeu, mas riu com tal prazer e abandono que não pude fazer menos
que juntar‐me à sua felicidade. Logo chegamos ao último montículo de cinzas junto ao
portão em
arco
implantado
na
parede:
o portão
de
madeira
estava
aberto
de
par
em
par. Do outro lado do chaparral, quase oculta em sombras, encontrava‐se a outra casa. Nenhuma luz brilhava em suas janelas, e me deu a impressão de que se afastava de
mim. Perguntei‐me se tudo não seria mais que fruto de minha imaginação, um lugar recordado em um sonho, e pisquei repetidas vezes e esfreguei meus olhos. Decidi que
algo andava mal ao lembrar minha chegada à casa das bruxas na noite anterior com
Isidoro Baltazar. A casa menor ficava à direita da maior. Como, então, a via agora do
pátio traseiro da casa das bruxas? Em minha tentativa por orientar‐me me movi de um
lado a outro, choquei‐me com o velho, agachado junto a um monte de cinzas, e cai no
chão. Com incrível agilidade ficou pé e me ajudou a levantar.
—Está cheia
de
cinzas
—
disse,
limpando
‐me
o rosto
com
o punho
recolhido
de
sua camisa de trabalho. —Lá está! — gritei. Recortada nitidamente contra o céu a casa esquiva parecia
estar a poucos passos. —Lá está. — repeti, e comecei a saltar como se com esses pulos conseguiria reter a casa em seu lugar e no tempo. —Essa é a verdadeira casa das bruxas — acrescentei, enquanto deixava que o velho continuasse com a limpeza de
meu rosto —, a casa grande é só uma fachada. —A casa das bruxas — repetiu ele, lentamente, saboreando cada palavra, para
depois gargalhar, parecendo se divertir. Enfiou as últimas cinzas em sua bolsa, e com um sinal me convidou a segui‐lo.
Dois
pés‐
de‐
laranja
cresciam
do
outro
lado
do
portão,
afastados
da
parede.
Uma
brisa
fresca soprava através de seus galhos floridos, mas as flores em si não se moviam, não
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caíam ao chão. Contra a escura folhagem, pareciam talhadas em quartzo leitoso. Como
sentinelas, as duas árvores guardavam o estreito caminho, branco e muito reto, como
traçado com uma régua. O velho me entregou a lamparina; depois extraiu um punhado de cinzas da
bolsa, as quais passou várias vezes de uma mão à outra, como se as pesasse, antes de
espalhá‐las
pelo
chão.
—Não faça perguntas e siga minhas instruções — disse numa voz já não rouca, e sim dotada de uma qualidade aérea, enérgica e convincente. Levemente encurvado e
caminhando para trás deixou que o resto das cinzas caíssem da bolsa sob o estreito
caminho. —Mantenha seus pés na linha das cinzas — advertiu. —Se não o fizer nunca
chegará na casa. Tossi para esconder meu riso nervoso, e estendendo os braços encarei a
estreita linha de cinzas como se caminhasse por uma corda bamba: e cada vez que
parávamos para permitir ao velho recuperar o fôlego, me virava para olhar a casa
recém abandonada,
a qual
parecia
afastar
‐se
apesar
de
que
a outra
não
dava
a
impressão de aproximar‐se. Tentei me convencer de que se tratava de uma ilusão de
ótica, mas me pesou a vaga certeza de que jamais alcançaria uma ou outra casa se o
tentasse por minha conta. Diria‐se que o velho percebeu meus temores, pois segurou
meu braço para dar‐me ânimo. —Por isso estou preparando o caminho — explicou, e olhando dentro de sua
bolsa acrescentou: —Não tardaremos a chegar. Lembre‐se de manter seus pés sobre a
linha de cinzas. Se o fizer poderá transitar sem problema num ou noutro sentido a
qualquer momento. Minha mente me dizia que o homem era um louco, mas meu corpo sabia que
sem ele
e suas
cinzas
eu
estava
perdida.
E tão
absorta
estive
em
manter
meus
pés
sobre a linha que me surpreendeu quando finalmente nos encontramos frente à porta. O velho pegou de volta a lamparina, limpou sua garganta e depois golpeou
suavemente com os nós dos dedos sobre o painel entalhado. Não esperou resposta, empurrou e entramos.
—Não vá tão rápido! — gritei, temerosa de ser deixada para trás. O segui por um estreito vestíbulo, onde deixou a lamparina sobre uma mesa
baixa, e logo a seguir, sem uma palavra, e sem sequer olhar atrás, abriu uma porta e
desapareceu tragado pela escuridão. Guiada por uma vaga lembrança entrei no quarto
adjacente, apenas iluminado, e de imediato me dirigi à esteira que cobria o piso. Não
tinha a menor
dúvida
de
ter
estado
ali
e dormido
sobre
essa
esteira
na
noite
anterior,
mas não estava tão segura sobre o jeito em que cheguei. Que Mariano Aureliano me
havia carregado em suas costas através do chaparral estava claro em minha mente, como também ter despertado nesse quarto com Clara ao meu lado, antes de ser levada pelo velho nagual.
Confiante de que tudo me seria explicado em breve me sentei sobre a esteira. A
luz da lamparina vacilou e depois se apagou, e pressenti, mais que vi, coisas e pessoas movendo‐se ao redor. Escutei o murmúrio de vozes e sons intangíveis surgindo de
cada canto, e entre todos eles reconheci um familiar frufru de saias e um suave risinho. —Esperanza? — sussurrei. —Meu Deus, não sabe quanto me alegra por lhe
ver!
—
e
apesar
de
ser
ela
quem
me
esperava,
me
surpreendi
quando
a
tive
a
meu
lado. Timidamente toquei seu braço.
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102
—Sou eu — me assegurou. Apenas escutar sua voz me convenceu de que na verdade era Esperanza, e não
o cuidador, que havia trocado sua roupa de trabalho caqui por anáguas sussurrantes e
um vestido branco. Quando senti o toque tranquilizante de sua mão sobre meu rosto
desapareceu toda a preocupação pelo cuidador.
—Como cheguei
aqui?
—
perguntei.
—O cuidador te trouxe — respondeu rindo. —Não lembra? — e virando‐se até
a mesa acendeu de novo a lamparina. —Falo da outra noite — esclareci. —Sei que estive aqui, despertei sobre esta
esteira. Clara estava comigo, e Florinda, e as outras mulheres… — e minha voz apagou
ao lembrar que depois havia despertado na sala da outra casa, e depois sobre uma
cama. Sacudi a cabeça, como para por ordem em minhas lembranças. Sentindo‐me
desamparada olhei para Esperanza, confiante de que ela estava enrolando, e lhe falei das dificuldades que estava experimentando para recordar, em sua ordem seqüencial, dos acontecimentos daquela noite.
—Não deveria
ter
problemas
—
respondeu.
—Meteu
‐se
no
trilho
dos
ensonhos. Agora está ensonhando desperta. —Quer dizer que neste exato instante estou dormindo? — perguntei
brincando. —Você também dorme? —Não estamos dormindo — respondeu, articulando suas palavras com
cuidado. —Você e eu estamos ensonhando despertas — e elevando suas mãos num
gesto desvalido, acrescentou: —Eu lhe disse isso no ano passado. Lembra? Tive de repente um pensamento salvador que chegou como se dito por alguém
em meu ouvido: na dúvida a pessoa deve separar os dois trilhos, o dos assuntos ordinários e o dos ensonhos, já que cada um tem um diferente estado de consciência.
Isso me
levantou
o ânimo,
pois
sabia
que
o primeiro
a ser
examinado
era
o dos
ensonhos; se a situação não corresponde a este trilho então a pessoa não está ensonhando. Meu júbilo desapareceu quando tentei examinar o trilho dos ensonhos. Não tinha noção de qual era, nem de como se faz, para proceder à sua revisão e, para piorar, não lembrava quem me havia recomendado este procedimento.
—Fui eu — revelou Esperanza. —Você tem avançado muito no reino dos ensonhos. Quase recordou o que te disse o ano passado, no dia depois da comida. Disse então a você que quando duvidar sobre se está ou não ensonhando, precisa examinar o trilho pelo qual marcham os ensonhos, significando com isto que precisa examinar o grau de consciência que temos nos ensonhos, sentindo aquele com o qual
está nesse
momento
em
contato.
Se
está
ensonhando,
esse
sentir
regressa
a você
como um eco; se não regressar, é sinal de que não está ensonhando. Sorrindo, beliscou minha coxa e disse: —Prove com esta esteira sobre a qual está recostada. Experimente com suas
nádegas. Se obter resposta, então está ensonhando…
Minhas intumescidas nádegas não receberam resposta. De fato, eu estava tão
intumescida que nem sequer sentia a esteira. Tinha a sensação de estar estendida sobre as ásperas lajotas do chão. Experimentei um forte desejo de informar‐lhe que
deveria imperar o oposto: caso se receba resposta, então se está desperto, mas me
detive a tempo pois sabia, acima de qualquer dúvida, que para ela o significado de “o
sentir
que
regressa
como
um
eco”
nada
tinha
a
ver
com
nosso
conhecido
e
aceito
entendimento do que é uma sensação ou um eco. A diferença entre estar desperta e
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103
ensonhar desperta me escapava, apesar de minha certeza de que essa diferença não
coincidia em absoluto com nossa maneira convencional de entender a consciência. No
entanto, nesse momento, as palavras abandonavam minha boca sem controle de
minha parte. Disse: —Sei que estou ensonhando desperta e ponto final. — Pressenti a estar
aproximando‐me
a um
novo
e mais
profundo
nível
de
compreensão
que,
contudo,
não
conseguia assimilar. —O que queria saber é: quando eu dormi? — perguntei. —Já te disse, não está adormecida. Está ensonhando desperta. Sem querer comecei a rir de maneira tranquila, mas visivelmente nervosa. Ela
não pareceu notá‐lo nem importar‐se. —Quando teve lugar a transição? — perguntei. —Quando o cuidador te estava fazendo cruzar o chaparral, e tinha que
concentrar‐se em manter seus pés sobre as cinzas. —Deve ter me hipnotizado! — disse de não muito bom grado. Comecei a falar de forma incoerente, enredando‐me em palavras sem
conseguir que
elas
tivessem
sentido,
para
terminar
chorando
e denunciando
a todos.
Esperanza me observou em silêncio, sobrancelhas levantadas e olhos abertos em
atitude de surpresa. De imediato lamentei meu rompante, apesar de que me satisfez o
fato de ter falado, pois senti um momentâneo alívio do tipo que se experimenta depois de uma confrontação.
—Sua confusão se origina em sua facilidade para passar de um tipo de
consciência a outra. Se tivesse tido que lutar para conseguir isso, como o faz todo
mundo, então saberia que o ensonhar desperto não é somente hipnose. — Esperanza fez uma pausa antes de continuar. —O ensonhar desperto é o estado mais sofisticado
que os seres humanos podem conseguir.
Olhou em
direção
às
sombras
do
quarto,
como
se
de
lá
alguém
pudesse
lhe
fornecer uma explicação mais clara. Depois, virando‐se para mim, perguntou: —Você comeu sua comidinha? A mudança de assunto me surpreendeu, e comecei a balbuciar. Ao recobrar‐
me, disse‐lhe que, de fato, havia comido os tamales doces, que havia tido tanta fome
que nem me incomodei em esquentá‐los, e que estavam deliciosos. Enquanto brincava com seu chale Esperanza me pediu uma detalhada versão de tudo o que havia feito
desde meu despertar no quarto de Florinda. Como se me tivessem administrado uma poção reveladora da verdade, soltei mais do que era minha intenção divulgar. A
Esperanza não pareceu importar‐lhe minha passagem pelos quartos das mulheres,
nem lhe
impressionou
o fato
de
que
eu
soubesse
qual
quarto
correspondia
a cada
uma. O que se lhe interessou, não obstante, foi meu encontro com o cuidador, e com
um sorriso de inocultável felicidade, escutou o relato de minha confusão, de tê‐lo
tomado a ele por ela. Ao admitir que em determinado momento estive a ponto de
pedir‐lhe a exibição de seus genitais como prova, fez com que ela se torcesse de risos sobre a esteira.
Apoiando‐se em mim, cochichou em meu ouvido: —Te tranquilizarei — e com um brilho perverso nos olhos adicionou —, olhe os
meus. —Não é necessário, Esperanza — retruquei, intentando dissuadi‐la. —Não
duvido
de
que
seja
mulher.
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104
—Não há como se estar seguro disso — rebateu, ignorando minhas palavras, e
indiferente ao meu desconcerto (ocasionado não tanto pela iminente desnudez, e sim
pelo fato de ter que contemplar um corpo velho e enrugado) se recostou na esteira e, com grande sutileza, levantou lentamente suas saias.
Minha curiosidade triunfou sobre meu desconcerto, e a olhei boquiaberta. Não
usava calcinhas,
e carecia
por
completo
de
pelos
púbicos.
Seu
corpo
era
incrivelmente
jovem, as carnes fortes e firmes, e os músculos delicadamente delineados. Era de uma só cor, um uniforme rosa‐avermelhado; sua pele não exibia uma só mancha nem
varizes, e nada danificava a uniforme suavidade de suas pernas e seu abdômen. Me estiquei para tocá‐la, como se precisasse do tato para assegurar‐me de que
essa pele sedosa era real, e ela abriu os lábios de sua vagina com os dedos. Afastei meu rosto, não tanto por sentir‐me incomodada, mas por causa de minhas conflitadas emoções. Não era uma questão de desnudez: havia nascido num lugar sem
preconceitos, onde ninguém tinha problemas a esse respeito, e durante meus dias escolares na Inglaterra fui convidada um verão a passar duas semanas na Suécia, na
casa de
uma
amiga
que
morava
junto
ao
mar.
Toda
sua
família
pertencia
a uma
colônia
nudista que adorava o sol com cada pedaço de sua pele desnuda. Ver a Esperanza sem roupas ante mim foi diferente, e me excitou de maneira
muito especial. Nunca havia reparado antes nos órgãos sexuais de uma mulher. Certamente já havia examinado a mim mesma no espelho. Desde todo ângulo possível. Também havia assistido à exibição de filmes pornográficos, que não só me
desagradaram como me ofenderam, mas vê‐la assim a Esperanza foi uma experiência demolidora, pois sempre considerei normais minhas reações no terreno sexual. Pensei que como mulher unicamente me excitaria um homem, e me surpreendeu
tremendamente um incontível desejo de montá‐la, neutralizado somente por minha
falta de
pênis.
Quando Esperanza ficou de pé e tirou a blusa, aspirei o ar num sonoro gesto de
surpresa, e depois mantive a vista fixa no piso até que se amainou a sensação febril em
meu pescoço e em meu rosto. —Olhe‐me! — exigiu impaciente. Estava totalmente nua, os olhos brilhantes e
as bochechas coradas. Seu corpo era leve, porém maior e mais forte do que
aparentava vestida, e seus seios cheios e firmes. —Toque‐os! — ordenou num tom suave e convidativo. Suas palavras rebateram ao redor do quarto como um ritmo enfeitiçador, um
som mais sentido que escutado, que pouco a pouco cresceu em intensidade até
tornar‐se
tão
forte
como
o de
meu
próprio
coração.
Depois
não
escutei
nem
senti
outro som além do da risada de Esperanza. —O cuidador não estará escondido aqui, verdade? — perguntei quando pude
falar, repentinamente receosa e sentindo‐me culpada por minha ousadia. —Espero que não! — rebateu com tal ar de espanto que não pude evitar o riso. —Onde está? — insisti. Esperanza abriu bem os olhos e sorriu, como quem se preparara a gargalhar,
mas de imediato adotou uma expressão séria, e em tom formal explicou que o homem
cuidava das duas casas, e não era seu costume espiar as pessoas. —Mas é verdadeiramente o cuidador? — perguntei, cuidando para mostrar‐me
ascética.
—Não
quero
menosprezá‐
lo,
mas
não
me
parece
capaz
de
cuidar
de
nada.
Segundo Esperanza, a fragilidade do cuidador era só aparente.
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105
—É muito capaz, — me assegurou — e deve se ter cuidado com ele, pois ele
gosta de moças jovens, em especial das loiras — e se aproximou para cochichar em
meu ouvido: —Ele tentou algo contigo? Acudi em sua defesa. —Céus, não! Foi muito correto e de grande utilidade. É só que… — e minha voz
se arrastou
até
se
fazer
um
sussurro,
e minha
atenção
se
desviou
até
os
móveis
do
quarto, que não conseguia distinguir por causa da má luz da lamparina de azeite. Quando por fim pude enfocar de novo minha atenção em Esperanza o cuidador
deixou de me preocupar. Somente podia pensar, com tenaz insistência, em por que
Isidoro Baltazar havia partido sem avisar‐me, sem sequer deixar‐me um bilhete. —Por que me deixou desta maneira? — perguntei a Esperanza. — A alguém
deve de ter avisado quando voltará — e, ao notar seu sorriso irônico, emendei com
tom beligerante: —Estou segura de que você sabe algo sobre tudo isto. —Não sei de nada — insistiu, incapaz de entender meu problema. —Essas
coisas não me preocupam, e tampouco deveriam preocupar a você. Isidoro Baltazar se
foi, e assunto
acabado.
Regressará
num
par
de
dias,
num
par
de
semanas…
quem
sabe? Tudo depende do que aconteça nas montanhas. Achei abominável sua falta de compreensão e simpatia. —Tudo depende?! — gritei. —E eu? Eu não posso ficar semanas aqui. —Por que não? — perguntou Esperanza com ar inocente. Olhei‐a como quem olha a um demente, e logo me lancei a dizer que não tinha
com que me arranjar, que não havia nada que eu pudesse fazer ali. Minha lista de
queixas era interminável, e mal a havia acabado quando me esgotei. —Simplesmente tenho que ir pra casa, regressar a meu meio normal — concluí,
lutando contra minhas inevitáveis lágrimas, às quais opus valente batalha.
—Normal? —
e Esperanza
repetiu
a palavra
com
lentidão,
como
se
estivesse
saboreando‐a. —Pode ir quando quiser; ninguém lhe impede disso. Podemos arranjar para fazer‐lhe chegar sem problemas à fronteira, de onde pode tomar um ônibus da
Greyhound que lhe deixará em Los Ângeles. Não me animei a falar, de modo que assenti com um gesto. Tampouco sabia
que não partir era o que eu desejava, pois a mera idéia de ausentar‐me me era intolerável. De algum modo eu sabia que se eu fosse, jamais encontraria de novo a
essas pessoas, nem sequer a Isidoro Baltazar em Los Ângeles. Comecei a chorar incontrolavelmente. Não poderia ter posto minhas emoções em palavras, mas a aridez de uma vida, de um futuro sem essa gente, me era inconcebível.
Não percebi
a partida
e o regresso
de
Esperanza
do
quarto,
mas
não
teria
percebido nada a não ser pelo aroma delicioso de chocolate que senti sob minhas narinas.
—Se sentirá melhor depois que tiver comido — disse, colocando uma bandeja em minha saia, e sorrindo carinhosamente tomou assento a meu lado, e confessou
que o chocolate era o melhor remédio para a tristeza. Concordei plenamente com ela, bebi uns poucos goles e comi umas tantas
tortilhas enroladas e untadas com manteiga, e confessei que, apesar de não conhecer bem a ela nem às suas amigas, não podia conceber o afastar‐me e não vê‐las mais. Admiti que com elas sentia uma liberdade e uma soltura jamais experimentada antes.
Uma
sensação
estranha,
expliquei,
em
parte
física
e
em
parte
psicológica,
que
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106
desafiava toda análise, que só podia se descrever como uma sensação de bem‐estar, ou como a certeza de ter encontrado por fim um lugar ao qual pertencia.
Esperanza sabia com exatidão o que eu intentava expressar. Disse que o
pertencer ao mundo dos feiticeiros, ainda por um curto tempo, provocava vício, dependência. Não era a extensão do tempo, ressaltou, e sim a intensidade dos
encontros o que
importava.
—Seus
encontros
foram
muito
intensos…
—
afirmou.
—Eles foram? — perguntei. Esperanza levantou as sobrancelhas num autêntico gesto de surpresa, e depois
coçou sua testa de maneira exagerada, como se estivesse ponderando um problema sem solução. Depois de um longo silêncio emitiu sua opinião:
—Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não
pode voltar à sua antiga vida — sua voz, apesar de ser apenas audível, continha uma força extraordinária; seus olhos prenderam um instante os meus, e ali reconheci o
significado de suas palavras. —Para mim nada voltará a ser igual — disse. Esperanza concordou.
—Regressará ao
mundo,
mas
não
ao
seu
mundo,
à sua
antiga
vida
—
considerou, levantando‐se da esteira com essa abrupta majestade própria de pessoas pequenas. Correu até a porta, parou bruscamente e, virando‐se para mim, pronunciou
outra de suas sentenças: —É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o
é mais, se você se decide a fazer algo sem saber qual será o resultado. Estive em completo desacordo com ela, e disse‐lhe: —Preciso saber o que faço. Necessito saber em quê estou me metendo. Esperanza suspirou e levantou as mãos numa cômica atitude de súplica. —A liberdade causa muito temor — disse asperamente, e antes que eu tivesse
chance de responder, mudou de tom, e agregou com doçura: —A liberdade requer
atos espontâneos.
Não
tem
idéia
do
que
significa
o abandonar
‐se
espontaneamente...
—Tudo o que eu faço é espontâneo — interrompi. —Por que acha que estou
aqui? Acha que pensei muito sobre se deveria vir ou não? Voltou à esteira e ficou contemplando‐me um longo período antes de dizer: —É evidente que não o pensou muito, mas seus atos de espontaneidade se
devem mais à sua falta de avaliação que a um ato de abandono — e golpeando o chão
com o pé para impedir uma nova interrupção de minha parte, acrescentou: —Um ato
verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram
devidamente levados em conta e descartados, pois nem se espera nada nem se
lamenta nada.
Com
atos
dessa
natureza
os
bruxos
convocam
a liberdade.
—Não sou uma bruxa — murmurei em voz baixa, e procurei retê‐la segurando
o meio de seu vestido, mas ela deixou bem claro que não tinha interesse algum em
continuar com nossa conversa. Eu a segui pelo caminho que conduzia à outra casa. Tal qual fizera o cuidador, também ela me recomendou manter os pés sobre a linha de
cinzas. —Se não o fizer — disse —, você cairá no abismo. —Abismo? — repeti, olhando em torno, à massa do escuro chaparral que nos
rodeava. Se alçou uma leve brisa, e das sombras chegaram vozes e sussurros.
Instintivamente
me
aferrei
à
sua
saia.
—Pode ouvi‐los? — perguntou.
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—O que é que devo ouvir? Ela se aproximou como se temesse que alguém nos escutasse, para me dizer no
ouvido: —Surems de outro tempo. Usam o vento para vagar pelo deserto, sempre
despertos.
—Fantasmas?
—Não existem os fantasmas — manifestou de maneira terminante, e retomou
sua caminhada. Me certifiquei muito bem de manter os pés sobre a linha de cinzas, e não soltei
a saia de Esperanza até que ela parou bruscamente no meio do pátio da casa grande. Ali vacilou um instante, como se não pudesse decidir a qual parte da casa havia de
levar‐me. Percorreu corredores e dobrou em várias esquinas, até que por fim
ingressamos num enorme aposento que havia escapado de minha exploração anterior. As paredes estavam cobertas do piso ao teto com livros; em um extremo havia uma
mesa larga e forte, e em outro estava pendurada uma rede tecida, de cor branca.
—Que quarto
magnífico!
—
exclamei.
—A
quem
pertence?
—É seu — ofereceu Esperanza com um gracioso gesto, e depois, de um armário
próximo à porta, extraiu três grossas cobertas de lã. —Pegue, as noites são frias — disse. —Quer dizer que posso dormir aqui? — perguntei, e todo meu corpo tremeu
de prazer quando forrei a rede com as cobertas e me instalei nela… De menina, foram
muitas as vezes em que dormi numa rede, de modo que, recriando esses momentos, suspirei feliz e passei a me balançar. Depois meti as pernas e me estendi voluptuosamente.
—Saber dormir em rede é como saber andar de bicicleta. Nunca se esquece —
disse, mas
ninguém
me
escutou.
Esperanza havia partido sem que eu o notasse.
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CAPÍTULO ONZE
Apaguei a luz e permaneci muito quieta na rede, embalada pelos ruídos da
casa: estalos estranhos, e o gotejar da água de um filtro de barro situado junto à porta de meu quarto. O inconfundível som de passos no corredor me fez levantar
bruscamente.
—Quem pode ser a esta hora? — me perguntei. Abandonei a rede, e nas pontas dos pés me aproximei da porta para apoiar
meu ouvido contra ela. Os ruídos eram fortes, e meu coração acelerou ao constatar que chegaram perto e pararam ante meu quarto. Houve uma batida na porta carregada de urgência que, apesar de esperar por isso, me sobressaltou. Dei um salto
para trás e derrubei uma cadeira. —Teve um pesadelo? — perguntou Florinda ao entrar. Deixou a porta semi‐
aberta, e a luz do corredor invadiu o recinto. —Pensei que ficaria feliz ao escutar o som
de meus passos — disse de brincadeira. —Não queria me aproximar furtivamente —
acrescentou, enquanto
pendurava
uma
camisa
e uma
calça
cor
caqui
sobre
o encosto
de uma cadeira. —Com os cumprimentos do cuidador. Disse que pode ficar com elas. —Ficar com elas? — repeti, olhando as prendas com desconfiança. Davam a
impressão de estar limpas e recém passadas. —O que tem de errado com meus jeans? —Se sentirá mais cômoda com essas calças durante a longa viagem a Los
Ângeles — explicou Florinda. —Mas eu não quero ir! Eu fico aqui até que Isidoro Baltazar volte. Ao observar que eu estava a ponto de entregar‐me ao choro, Florinda riu. —Isidoro Baltazar regressou, e você pode ficar mais um tempo, se assim o
desejar.
—Oh, não,
nada
disso
—
respondi,
esquecida
já
de
toda
a ansiedade
acumulada
nesses dois dias, assim como também de todas as perguntas que desejava fazer a
Florinda. Somente conseguia pensar no fato de que Isidoro Baltazar estava de volta. —Posso vê‐lo já? —Temo que não — e Florinda me impediu que abandonasse o quarto. Por uns minutos não compreendi o sentido de suas palavras. Olhei‐a fixo sem
entender, até que ela repetiu que naquela noite não seria possível ver ao novo nagual. —Por que não? — perguntei confundida. —Estou certa de que ele desejaria me
ver. —Sem dúvida alguma — rebateu —, mas está profundamente adormecido, e
não pode
ser
despertado.
—
ante
a tão
terminante
recusa
não
pude
fazer
nada
mais
que contemplá‐la em silêncio. Florinda passou um longo tempo com o olhar fixo no chão, e quando por fim
me encarou seu olhar era triste. Por um momento achei que modificaria sua decisão e
me levaria junto a Isidoro Baltazar, mas concluiu repetindo que não poderia vê‐lo essa
noite, e dito isto, como temerosa de arrepender‐se, me abraçou e me beijou, abandonou o quarto, apagou a luz do corredor, e das sombras me mandou ir dormir.
Incapaz de conciliar o sono, passei longas horas revolvendo‐me na rede. Já
estava por amanhecer quando decidi levantar‐me e vestir os presentes trazidos por Florinda. Salvo as calças, que por falta de cinta precisei segurar com uma corda, o
conjunto
me
caía
bem.
Com
os
sapatos
na
mão
atravessei
o
corredor,
deixei
para
trás
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109
o quarto do cuidador, e me dirigi à entrada traseira. Cuidando para não fazer ruído, abri parcialmente a porta.
Lá fora estava escuro, mas o suave azul da madrugada já coloria o céu. Corri até
o pórtico assentado sobre a parede, parando apenas junto às duas árvores sentinelas do caminho. Um forte aroma de flor de laranjeiras perfumava o ar, e toda a dúvida a
respeito de
cruzar
o chaparral
morreu
quando
comprovei
que
cinzas
frescas
cobriam
o
chão. Sem pensar duas vezes corri até a outra casa. A porta estava entreaberta, porém adiei meu ingresso. Escondida sob uma
janela, esperei ser guiada por algum som, que me chegou em pouco tempo na forma de sonoros roncos. Deixei passar uns minutos, entrei, e guiada pelos roncos me
encaminhei diretamente ao quarto dos fundos da casa. Na escuridão apenas distingui uma forma adormecida sobre uma esteira, mas não tive dúvidas de que se tratava de
Isidoro Baltazar. Temerosa de que um despertar repentino o perturbasse, voltei ao
aposento da frente e me sentei no sofá. Tal era minha excitação que não conseguia ficar quieta, feliz com a idéia de que a qualquer momento despertaria. Duas vezes
regressei na
ponta
dos
pés
para
olhá
‐lo.
Havia
mudado
de
posição
durante
o sono,
e já
não roncava. Devo ter adormecido no sofá, pois através de meu inquieto sono tive a
sensação de que alguém havia entrado no quarto. Ergui‐me um pouco para murmurar “estou esperando que Isidoro Baltazar desperte”, mas sabia que nenhum som havia
saído de minha boca. Com um esforço consciente me sentei, e tudo dançou ante meus olhos, até que pude enfocar ao homem de pé diante de mim. Era Mariano Aureliano.
—Isidoro Baltazar, ainda dorme? — perguntei. O velho nagual me contemplou por um longo período, e não sabendo se
sonhava, tentei pegar sua mão. Precisei soltá‐la precipitadamente, pois ardia como
uma brasa.
Arqueou
as
sobrancelhas,
ao
parecer
surpreendido
por
meu
comportamento. —Não poderá ver a Isidoro Baltazar até a manhã — disse, e pronunciou estas
palavras lentamente, como se o fazê‐lo lhe ocasionasse um grande esforço. Antes que tivesse oportunidade de dizer que já era quase de manhã, e que
aguardaria a Isidoro Baltazar onde estava, senti a mão fervente de Mariano Aureliano
sobre minhas costas, expulsando‐me do quarto. —Volte para a sua rede. Houve um repentino golpe de vento, e quando me virei para protestar Mariano
Aureliano já não estava ali. O vento retumbou em minha cabeça como um tambor
grave, para
fazer
‐se
cada
vez
mais
suave
e morrer
numa
simples
vibração.
Abri
a boca
para prolongar os últimos frágeis ecos. Despertei no meio da manhã na rede, vestindo
as roupas que me deixara Florinda. Automaticamente, quase sem pensar, me
encaminhei até a casa pequena, cuja porta encontrei fechada à chave. Apesar dos golpes que dei nela e de meus gritos não recebi resposta. Tentei forçar as janelas, que
também encontrei fechadas. Aturdida e próxima às lágrimas, corri colina abaixo até a clareira junto ao
caminho, único lugar onde se podia estacionar um carro, para descobrir que a perua de Isidoro Baltazar não estava ali. Depois percorri em vão um bom trecho do caminho
em busca de rastros recentes de rodas de carro. Não havia nenhum.
Muito
confusa
voltei
à
casa,
e
sabendo
que
seria
inútil
buscar
pelas
mulheres
em seus quartos, parei no meio do pátio interno e chamei aos gritos por Florinda. A
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110
única réplica foi o eco de minha voz. Repassei incontáveis vezes às palavras de
Florinda, sem chegar a uma conclusão satisfatória. A única certeza que me assistia era a de que Florinda tinha vindo ao meu quarto no meio da noite para trazer‐me as roupas que agora eu vestia. Essa visita, e seu anúncio de que Isidoro Baltazar havia regressado, sem dúvida alguma haviam produzido tão vivido sonho em mim.
Para conter
‐me
de
toda
especulação
acerca
do
motivo
de
estar
só
na
casa,
pois
nem sequer o cuidador havia dado sinais de vida, me dediquei a lavar os pisos. Este
tipo de trabalho sempre exerceu um efeito tranquilizante sobre mim, e havia terminado com todos os cômodos, inclusive a cozinha, quando escutei o inconfundível som de um motor Volkswagen. Corri colina abaixo e me atirei nos braços de Isidoro
Baltazar ainda antes que ele abandonasse o veículo, quase derrubando‐o no chão. —Não posso acreditar — disse rindo, enquanto me abraçava. —Você é a moça
de quem tanto me falou o nagual. Sabia que quase desmaiei quando lhe deram as boas‐vindas?
Não esperou minha resposta. Abraçou‐me de novo e, rindo, me levantou nos
braços. Depois,
como
se
alguma
comporta
se
tivesse
aberto
nele,
começou
a falar
sem
pausa. Disse que fazia um ano que sabia de minha existência, pois o nagual lhe havia informado que lhe encomendaram uma garota estranha, à qual descreveu como “o
meio‐dia de um dia claro, não ventoso nem calmo, nem frio nem quente, mas que
alterna entre tudo isso, deixando‐lhe louco”. Isidoro Baltazar confessou que sendo o
tonto pomposo que era, havia sabido instantaneamente que o nagual estava se
referindo à sua namorada. —Quem é sua namorada? — o interrompi. Fez um movimento brusco com a mão, evidentemente incomodado por minhas
palavras.
—Esta não
é uma
história
de
feitos
—
disse
irritado
—,
é uma
história
de
idéias,
de modo que verá o idiota que sou. — de repente sua irritação cedeu lugar a um
brilhante sorriso. —Até cheguei a acreditar que poderia averiguar por mim mesmo
quem era essa garota — e fez uma pausa antes de acrescentar: —Inclusive cheguei a
incluir a uma mulher casada, com filhos, em minha busca. Suspirou fundo, sorriu e disse: —A moral desta história é que no mundo dos feiticeiros a pessoa deve eliminar
o ego ou sofrer as consequências, pois não há forma em que pessoas como nós possam predizer algo.
Ao notar que eu chorava me afastou um pouco e perguntou ansioso:
—O que
aconteceu,
Nibelunga?
—Na verdade nada — respondi, rindo em meio a meus soluços. —Não possuo
uma mentalidade abstrata capaz de preocupar‐se do mundo das histórias abstratas —
e acrescentei, com todo o cinismo e a dureza que pude reunir: —Me preocupo com o
aqui e o agora. Não tem idéia das coisas que passei nesta casa. —Claro que sim; tenho uma muito boa idéia — retrucou com deliberada rudeza
— pois já faz anos que lido com isso. — olhou‐me com olhos de inquisidor ao formular sua seguinte pergunta: —O que desejo saber é por que não me disse que já havia estado com eles?
—Estava a ponto de fazê‐lo, mas não me pareceu importante — respondi
confusa,
mas
em
seguida
minha
voz
se
fez
firme
à
medida
que
as
palavras
surgiam
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111
alheias à minha vontade: —De longe, vejo que a única coisa importante que fiz na vida
é ter me relacionado com eles. Para ocultar a surpresa que me produziu esta admissão, comecei a queixar‐me
de ter sido abandonada, de ter ficado sozinha nessa casa. —Não tive oportunidade de lhe avisar que eu ia às montanhas com o nagual —
disse.
—Isso eu já esqueci — assegurei‐lhe. —Estou falando do dia de hoje. Esta
manhã, ao despertar, esperava ver você aqui. Estava segura de que tinha passado a
noite na casinha, dormindo sobre uma esteira, e ao não te encontrar entrei em pânico. Ao notá‐lo intrigado, contei‐lhe da visita noturna de Florinda, e de meu sonho
de encontrar‐me sozinha na casa ao despertar. Sabia que meu discurso era incoerente, meus pensamentos e palavras confusas, mas não pude deter‐me. Conclui meu discurso
dizendo: —Há tanto que não posso aceitar, e tampouco refutar. Isidoro Baltazar não respondeu, e seu olhar, suas sobrancelhas arqueadas e a
expressão espirituosa
de
seu
rosto
delgado
e cansado,
cor
de
fumaça,
pareciam
indicar
que aguardava a que eu continuasse falando. Sua pele exsudava uma estranha frescura, e um vago cheiro a terra, como se houvesse passado dias numa caverna subterrânea.
Todo vestígio de inquietude desapareceu quando encarei seu sinistro olho
esquerdo e sua terrível, inclemente olhada. Nesse momento deixou de importar‐me
qual era a verdade autêntica, a ilusão, o ensonho dentro do ensonho. Ri feliz, leve
como o vento, livre do insuportável peso que carregava em minhas costas. Reconheci o
olho de bruxo, igual ao que tinham Florinda, Mariano Aureliano, Esperanza e o
cuidador. Destinado desde os princípios do tempo a carecer de sentimento e emoção,
esse olho
refletia
o vazio,
e como
se
já
tivesse
revelado
demais,
uma
pálpebra
interna,
como a do olho de um lagarto, se fechou sobre a pupila esquerda. Antes que eu tivesse
chance de comentar sobre seu olho Isidoro Baltazar fechou ambos; quando, depois de
um instante, os abriu, se viam idênticos, escuros, brilhantes e sorridentes. O olho de
bruxo caiu em ilusão. Com um braço rodeando meus ombros subimos a encosta. Antes de chegar na casa Isidoro Baltazar me ordenou recolher minhas coisas.
—Te espero no automóvel — disse. Pareceu‐me estranho que não entrasse comigo, mas nesse momento não me
ocorreu investigar sua razão, e somente quando estava recolhendo meus poucos pertences, ocorreu‐me que talvez temesse às mulheres, o qual me provocou riso, pois
se havia
algo
que
Isidoro
Baltazar
não
temia
era
às
mulheres.
Disso
estava
totalmente
segura. Ao chegar junto ao carro continuava com meu riso, e abri a boca para explicar a Isidoro Baltazar o motivo de meu júbilo, quando me invadiu uma forte e estranha emoção.
Não era paixão sexual o que sentia, tampouco afeto platônico, e menos ainda aquele carinho para com meus pais e irmãos. Simplesmente amava a ele com um amor ausente de expectativas, dúvidas e temores, e como se eu tivesse dito tudo isto em voz alta, Isidoro Baltazar me abraçou com tal força que apenas me permitia respirar.
Partimos muito lentamente, e botei a cabeça pela janela, acreditando que
poderia ver o cuidador entre as árvores.
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“Sinto‐me rara, partindo desta maneira”, pensei. “De certo modo, Florinda se
despediu de mim à noite, mas eu teria gostado de agradecer a Esperanza e ao
cuidador.” O caminho de terra serpenteava em torno do monte, e ao chegar a uma curva
fechada vimos de novo a casa. Isidoro Baltazar parou o carro, desligou o motor, e com
o dedo
assinalou
ao
velho,
sentado
sobre
um
caixote
em
frente
à casa.
Quis
abandonar
o veículo e correr até ele, mas Isidoro Baltazar me deteve. —Dê adeus com a mão. O cuidador se levantou; o vento brincava com sua camisa solta e suas calças,
fazendo que parecessem asas batendo contra seus membros. Soltou uma gargalhada, se encurvou, e ao parecer aproveitando a força do vento, deu dois saltos mortais para
trás. Por um momento pareceu estar suspenso no ar, porém nunca aterrissou. Simplesmente se evaporou, como se o próprio vento o tivesse sugado.
—O que aconteceu? Para onde foi? — perguntei assombrada. —Ao outro lado — respondeu Isidoro Baltazar, rindo com a felicidade de uma
criança se
divertindo.
—Essa
foi
sua
maneira
de
se
despedir.
Colocou o carro em movimento, e enquanto viajávamos, como se estivesse me
tentando, lançava‐me ocasionais olhadas irreverentes. —O que é que te preocupa, Nibelunga? — perguntou. —Você sabe quem ele é, verdade? — acusei‐o —Não é o cuidador, não? Isidoro Baltazar franziu o cenho, e depois de um longo silêncio me lembrou
que, para mim, o nagual Juan Matus era Mariano Aureliano, assegurando‐me que
deveria existir uma razão muito boa para que o conhecesse por esse nome, e agregou: —Estou certo de que deve de existir uma justificativa igualmente válida para
que o cuidador não te revele seu nome.
Eu argumentei
que
já
que
sabia
quem
era
Mariano
Aureliano,
a pretensão
do
cuidador não tinha sentido e — acrescentei com propriedade — eu sei quem é o
cuidador… — e ao dizê‐lo, olhei de soslaio a Isidoro Baltazar, cujo rosto nada revelou. Quando falou foi para dizer que, como todos os seres do mundo dos feiticeiros,
o cuidador também era um feiticeiro, mas que eu não sabia quem era. Lançou‐me um
breve olhar, e em seguida transferiu sua atenção ao caminho. —Depois de todos estes anos eu mesmo não sei quem são eles realmente, e
incluindo ao nagual Juan Matus. Enquanto estou com ele creio saber quem é, mas assim que me vira as costas, estou perdido.
Com acento quase sonhador, Isidoro Baltazar acrescentou que no mundo
cotidiano nossos
estados
subjetivos
eram
compartilhados
por
todos
nossos
semelhantes. Por tal razão sabemos a todo momento o que fariam estes semelhantes sob certas condições.
—Está equivocado! — gritei. — Totalmente equivocado. Não saber o que farão
nossos semelhantes sob certas circunstâncias é o que faz excitante a vida. É uma das poucas coisas excitantes que nos sobram. Não me diga que o quer eliminar.
—Não sabemos com exatidão o que fariam nossos semelhantes, — explicou
pacientemente — mas poderíamos redigir uma lista de possibilidades que teria sentido. Uma lista muito longa, te advirto, no entanto uma lista limitada. Para escrevê‐
la não necessitamos averiguar as preferências de nossos semelhantes. Só precisamos
nos
colocar
em
seu
lugar
e
escrever
as
possibilidades
que
nos
concernem.
Serão
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aceitáveis a todos, pois as compartilhamos. Nossos estados subjetivos são
compartilhados por todos nós. Disse depois que nosso conhecimento subjetivo do mundo nos é conhecido
como sentido comum. Pode diferir de grupo em grupo, de cultura em cultura, mas apesar de todas essas diferenças, o sentido comum é o suficientemente homogêneo,
como para
garantir
a declaração
de
que
o mundo
cotidiano
é um
mundo
intersubjetivo. —Entretanto com os feiticeiros o sentido comum, ao qual estamos
acostumados, não tem vigência. Possuem outro tipo de sentido comum, pois têm
outro tipo de estados subjetivos. —Quer dizer que são como seres de outro planeta? — perguntei. —Sim — respondeu Isidoro Baltazar, rindo —, são como seres de outro planeta. —É por isso que são tão reservados? —Não acho que o termo reservado seja o correto — observou pensativo. —
Lidam de maneira diferente com o mundo cotidiano, e seu comportamento nos parece
reservado pois
não
compartilhamos
seu
significado,
e já
que
carecemos
de
padrões
para medir o que para eles é sentido comum, optamos por acreditar que seu
comportamento é reservado. —Eles fazem o que nós fazemos: dormem, cozinham suas refeições, lêem —
observei —, contudo, nunca pude surpreendê‐los no ato de fazê‐los. Eu lhe asseguro
que são reservados. Sorrindo, sacudiu a cabeça. —Viu o que eles quiseram que visse, apesar do qual não te ocultavam nada.
Simplesmente você não conseguia ver. Estava a ponto de contradizê‐lo, mas me abstive, pois não queria que me
tomasse antipatia.
Não
era
tanto
o fato
de
que
tivesse
a razão,
pois
afinal
eu
não
entendia de quê falava. Antes disso, sentia que todas minhas averiguações e
curiosidades não me haviam dado pista alguma a respeito de quem eram essas pessoas e o que faziam. Com um suspiro, fechei os olhos e reclinei minha cabeça contra o encosto do banco.
No trajeto lhe falei de meu sonho, do quão real que me foi o vê‐lo dormido e
roncando sobre a esteira. Falei‐lhe de minha conversa com Mariano Aureliano, do
calor de sua mão, e quanto mais falava mais me convencia de que tudo isso não havia
sido um sonho, e me agitei de tal forma que terminei chorando. —Não sei o que me fizeram — disse. —Neste momento não estou muito certa
se estou
sonhando
ou
se
me
encontro
desperta.
Florinda
sempre
insiste
em
que
eu
ensonho desperta. —O nagual Juan Matus se refere a isso como “consciência intensificada” —
esclareceu Isidoro Baltazar. —Consciência intensificada — repeti. As palavras me eram familiares, ainda que parecessem exatamente o oposto de
ensonhar desperto. Recordei vagamente de tê‐las ouvido antes. Florinda ou Esperanza as havia utilizado, mas não lembrava em quê contexto, e já estavam a ponto de
adquirir sentido (vago talvez) mas minha mente se encontrava sobrecarregada por minhas vãs tentativas de recontar minhas atividades diárias na casa das feiticeiras.
Apesar
do
muito
que
me
esforcei
não
conseguia
lembrar
certos
episódios.
Lutava por dar com palavras que empalideciam e se desvaneciam ante meus próprios
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olhos, igual a visões semivistas e lembradas pela metade. Não era que tivesse
esquecido, e sim que as imagens me chegavam fragmentadas, como peças de um
quebra‐cabeça que se recusam a encaixar. Tudo isto adquiria estatura de sensação
física, e podia resumir‐se como uma névoa descida sobre certas partes de meu
cérebro.
—De modo
que
consciência
intensificada
e ensonhar
desperto
são
o mesmo?
— mais que uma pergunta era essa uma declaração cujo significado me escapava. Mudei de posição no assento, e recolhendo as pernas me sentei de frente a
Isidoro Baltazar. O sol fazia ressaltar seu perfil, seus cabelos negros e enrolados caindo
sobre sua frente, os pômulos cinzelados, sua forte testa e nariz, e os lábios finos, lhe
davam um aspecto romano. —Devo de estar ainda em estado de consciência intensificada — disse —, não
me havia fixado antes em você. Jogou a cabeça para trás e riu, e essa ação fez com que o carro balançasse. —Não há dúvida de que está ensonhando desperta. A pouco você se esqueceu
de que
sou
nanico,
negro
e de
aspecto
insignificante?
Tive que rir, não porque estivesse de acordo com essa descrição de si mesmo, e
sim porque era a única coisa que lembrava que ele havia dito naquela conferência em
que o conheci formalmente. Minha alegria logo cedeu lugar a uma estranha ansiedade. Tive a sensação de que haviam se passado meses, e não apenas dois dias, desde nossa chegada à casa das feiticeiras.
—A passagem do tempo é diferente no mundo dos feiticeiros — disse Isidoro
Baltazar, interpretando meus pensamentos —, e também o vivemos de maneira diferente.
Depois acrescentou que um dos aspectos mais difíceis de sua aprendizagem foi
o de
ter
que
lidar
com
sequências
de
acontecimentos
em
termos
de
tempo.
Com
frequência essas confusas imagens se misturavam em sua mente, que penetravam
mais profundamente quando mais tentava enfocá‐las. —Somente agora, com a ajuda do nagual, consigo recordar fatos e aspectos de
seus ensinamentos, que tiveram lugar há muitos anos — disse. —Como te ajuda? — perguntei. —Te hipnotiza? —Me fez mudar os níveis de consciência e, ao fazê‐lo, não só lembro
acontecimentos passados como também os revivo. —E como faz isso? Me refiro a fazer‐lhe mudar seus níveis de consciência. —Até a bem pouco tempo achava que se conseguia com uma forte palmada
nas costas,
entre
os
ombros,
mas
agora
estou
seguro
que
o consegue
com
sua
mera
presença. —Então, não te hipnotiza? Sacudiu a cabeça. —Os feiticeiros são experts em mudar seus próprios níveis de consciência.
Alguns o são tanto que conseguem mudar os níveis de outros. Eu fervia de perguntas, mas com um gesto ele me pediu paciência. —Os feiticeiros nos fazem ver que a natureza total da realidade é diferente de
nosso conceito dela, ou seja, o que nos foi ensinado a acreditar que é a realidade. Intelectualmente estamos dispostos a brincar com a idéia de que a cultura
predetermina
nossa
existência,
nossa
conduta,
o
que
estamos
preparados
a
aprender
e o que podemos sentir. Mas não estamos dispostos a dar corpo a esta idéia, aceitá‐la
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como uma proposta prática e concreta, e a razão é que não queremos aceitar que a
cultura também predetermina o que somos capazes de perceber. —A feitiçaria — continuou — nos faz dar conta de diferentes realidades,
diferentes possibilidades, não só acerca do mundo e sim sobre nós mesmos, ao
extremo de nos fazer entrar num estado no qual já não estamos em condições de
acreditar sequer
nas
mais
sólidas
convicções
a nosso
respeito
e ao
nosso
entorno.
Surpreendeu‐me poder absorver suas palavras com tanta facilidade, visto que
na realidade não as compreendia. —Um feiticeiro não só tem consciência de diferentes realidades — continuou
— como usa a esse conhecimento com um sentido prático. Os feiticeiros sabem, não
só intelectualmente, e sim praticamente, que a realidade, ou o mundo, tal como o
conhecemos, consiste apenas de um acordo extraído a cada um de nós. Se poderia fazer que esse acordo se derrube, dado que é apenas um fenômeno social, e quando
se derruba, todo o mundo se derruba com ele. Ao ver que eu não conseguia seguir seus argumentos, tratou de apresentá‐los
por outro
ângulo.
Disse
que
o mundo
social
nos
define
a percepção
em
proporção
à
sua utilidade em nos guiar através da complexidade da experiência na vida diária. O
mundo social fixa limites ao que percebemos e ao que somos capazes de perceber. Para um feiticeiro a percepção pode exceder esses parâmetros acordados. Estes parâmetros estão feitos e respaldados por palavras, pelo idioma, por pensamentos, ou
seja, por acordos. —E os feiticeiros não têm acordos? — perguntei, fazendo um esforço para
compreender sua premissa. —Sim, eles os têm — respondeu —, mas seus acordos são diferentes. Os
feiticeiros quebram o acordo normal, não só intelectual como física ou praticamente.
Os feiticeiros
derrubam
os
parâmetros
da
percepção
socialmente
determinada,
e para
compreender o que querem dizer os feiticeiros com isso, a pessoa deve converter‐se
em um praticante, ela precisa comprometer‐se, ela precisa empregar tanto a mente
como o corpo. Precisa ser uma rendição consciente e sem medo. —O corpo? — perguntei, de imediato desconfiada a respeito do tipo de ritual
que isso poderia exigir. —O que é que querem com meu corpo? —Nada, Nibelunga — esclareceu rindo. Depois, num tom sereno embora
bondoso, acrescentou que nem meu corpo nem minha mente se encontravam ainda em condições de seguir o árduo caminho de feiticeiro, e ao perceber minha intenção
de protestar, se apressou a assegurar‐me que nem meu corpo nem minha mente
sofriam de
falha
alguma.
—Um momento! — interrompi. Isidoro Baltazar ignorou minha interrupção e prosseguiu seu discurso para dizer
que o mundo dos feiticeiros era um mundo sofisticado, e que não era suficiente compreender seus princípios de maneira intuitiva. Também era necessário assimilá‐los intelectualmente.
—Contrariamente ao que as pessoas acreditam — explicou —, os feiticeiros não são praticantes de obscuros e esotéricos ritos, e sim que estão à frente de nosso
tempo. E a modalidade de nosso tempo é a razão. Em geral somos homens razoáveis. Não obstante os feiticeiros são homens de razão, o que é totalmente diferente: têm
um
romance
com
as
idéias,
cultivam
a
razão
até
seus
limites,
pois
crêem
que
unicamente compreendendo plenamente o intelecto podem corporificar os princípios
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da feitiçaria sem perder sua própria integridade e sobriedade. Aqui reside a drástica diferença entre os feiticeiros e nós. Nós possuímos pouca sobriedade e ainda menos integridade.
Lançou‐me uma olhada furtiva e sorriu. Eu sentia a desagradável impressão de
que ele sabia com exatidão o que eu estava pensando nesse momento, ou melhor, que
me encontrava
incapacitada
para
pensar.
Havia
entendido
suas
palavras,
mas
não
seu
significado. Não sabia o que dizer nem sequer o que perguntar, e pela primeira vez em
minha vida me senti uma estúpida total. Contudo não me incomodei, pois não podia
negar que ele tinha razão. Meu interesse em assuntos intelectuais foi sempre muito
superficial, e para mim pensar em ter um romance com idéias era totalmente insólito. Chegamos à fronteira em poucas horas, mas a viagem acabou sendo
extremamente cansativa. Eu queria falar, mas não sabia o que dizer, ou melhor, não
encontrava as palavras para expressar‐me. Sentia‐me intimidada, uma sensação nova
para mim! Isidoro Baltazar notou minha insegurança e meu mal‐estar, e se apropriou da
palavra. Com
candidez
admitiu
que
até
esse
mesmo
momento
o mundo
dos
feiticeiros
o desorientava, apesar dos muitos anos de estudar e agir com eles. —E quando digo estudar, falo muito à sério — esclareceu. —Esta mesma
manhã esse mundo me avassalou de uma maneira impossível de descrever. Falava num tom que era meio afirmação e metade queixa, apesar do qual sua
voz estava carregada de tal alegria e potência interior que me senti exaltada. Me
transmitiu uma sensação de onipotência e de capacidade para tolerar tudo sem deixar que nada importasse, e constatei uma vontade e habilidade para sobrepor‐se a todos os obstáculos.
—Imagine: pensei que minha viagem com o nagual havia sido de só dois dias —
e virando
‐se
para
mim,
e rindo,
me
sacudiu
com
sua
mão
livre.
Eu estava tão absorta pela vitalidade de sua voz que não compreendi o
significado de suas palavras. Pedi a ele para repetir o que dissera: ele o fez, e continuei sem compreender.
—Não entendo o que é que te excita tanto — disse repentinamente irritada por minha incapacidade para entender o que pretendia dizer‐me. —Esteve ausente um par de dias, e daí?
—Como? — gritou, e seu grito fez com que eu saltasse em meu banco e batesse com a cabeça no teto do veículo.
Seu olhar penetrou até o fundo de meus olhos, mas não pronunciou uma só
palavra. Sabia
que
não
me
acusava
de
nada,
mas
sim
que
zombava
de
minha
aspereza,
meus humores variantes e minha falta de atenção. Parou o veículo às margens do
caminho, desligou o motor, e se acomodou para ficar de frente para mim. —Agora quero que me conte todas as suas experiências — sua voz transmitia
excitação nervosa, inquietação e vitalidade, ao assegurar‐me que a ordem dos acontecimentos não importava em absoluto, e seu sorriso me tranquilizou ao extremo
de fazer‐me contar em detalhes tudo o que recordava. Escutou com atenção, rindo de
tanto em tanto e animando‐me com um gesto de sua testa cada vez que eu vacilava. —De modo que… tudo isto te aconteceu em… dois dias? —Sim — rebati com firmeza.
Cruzou
os
braços
sobre
seu
peito.
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—Tenho uma notícia para você — e a luz divertida de seus olhos traiu a
seriedade de sua voz e a firmeza de sua boca quando acrescentou: —Eu estive ausente doze dias, mas achei que foram só dois. Pensei que iria apreciar a ironia de meu erro
por ter mantido um melhor controle do tempo, mas não foi assim. É igual a mim: perdemos dez dias.
—Dez dias
—
murmurei
perplexa,
e meu
olhar
se
perdeu
na
paisagem
que
estava além da janela. Não pronunciei uma só palavra durante o resto da viagem. Não era que não lhe
acreditasse, nem que não quisesse falar. Simplesmente nada tinha para dizer, nem
sequer depois de ter comprado o Los Ângeles Times e corroborado a verdade sobre a
perda dos dez dias. Contudo, estavam de verdade perdidos? Me fiz essa pergunta sem
desejar obter uma resposta.
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CAPÍTULO DOZE
A oficina‐estúdio de Isidoro Baltazar consistia em um quarto retangular, que
dava sobre uma praça de estacionamento, uma pequena cozinha e um banheiro de
azulejos rosados. Levou‐me para ali na noite que voltamos de Sonora. Eu, por demais
exausta para
notar
algo,
o segui
dois
pisos
acima
por
um
corredor
acarpetado
de
cor
escura até o apartamento 8. Assim que minha cabeça entrou em contato com o
travesseiro caí adormecida, e sonhei que seguíamos pela rota. Havíamos viajado sem
parar desde Sonora, alternando ao volante, parando somente para comer e para
colocar combustível. O apartamento estava mobiliado apenas com o imprescindível. Junto ao beliche
havia uma longa mesa dobrável que servia de escrivaninha, uma cadeira, também
dobradiça, e dois arquivos de metal para suas anotações. Vários ternos e meia dúzia de
camisas pendiam em dois guarda‐roupas junto ao banheiro. O resto do espaço era
ocupado por livros, pilhas de livros. Não havia estantes, e os livros davam a impressão
de nunca
ter
sido
abertos,
menos
ainda
lidos.
Também
os
armários
da
cozinha
estavam
repletos de livros, salvo um reservado para um prato, um jarro, um jogo de garfos e
facas, e uma colher. Sobre o fogão havia uma chaleira para ferver água e uma caçarola. Em três semanas encontrei um apartamento novo para mim, a mais ou menos
uma milha da universidade e virando a esquina do escritório‐estudio de Isidoro
Baltazar, apesar do qual continuava passando a maior parte de meu tempo em sua casa. Ele instalou uma segunda cama para mim, uma mesa daquelas que se usa para
jogar cartas, e uma cadeira dobrável idêntica à sua, no outro extremo do quarto. Nos seis meses seguintes, Sonora se converteu para mim num lugar mítico. Não
desejando já bloquear minhas experiências juntei as lembranças das duas
oportunidades em
que
estive
lá,
mas
por
mais
que
o intentasse
não
consegui
recordar
absolutamente nada dos onze dias perdidos: um na primeira e dez na segunda oportunidade.
Isidoro Baltazar recusou de imediato qualquer menção à perda desses dias. Por momentos eu concordava plenamente com ele: o absurdo de considerar perdidos esses dias, simplesmente porque não podia recordá‐los, se me fez tão evidente que
muito lhe agradeci por não conceder importância ao assunto. Estava claro que me
protegia. Não obstante, em outras oportunidades, e sem que me desse razão para isso, me dominava um forte ressentimento. Era seu dever ajudar‐me, esclarecer‐me o
mistério, repetia a mim mesma, até convencer‐me de que deliberadamente me
escondia coisas.
—Você vai ficar louca se continuar com isso — disse‐me um dia —, e toda sua preocupação será em vão porque nada resolverá. — titubeou um momento, como não
se animando a por em palavras o que desejava dizer, depois encolheu de ombros e
acrescentou num tom desafiante: —Por que não usa essa mesma energia de modo
mais prático, como para enumerar e examinar seus maus hábitos? Eu, em lugar de admitir a sabedoria da sugestão, de imediato contra‐ataquei
com a outra queixa que se aninhava em mim, que ainda não havia conhecido às outras mulheres jovens encomendadas a ele pelo velho nagual. Me havia falado tanto delas que sentia que já as conhecia, pois cada vez que fiz perguntas ele me respondeu em
detalhes.
Falava
delas
extasiado,
com
profunda
e
pelo
visto
sincera
admiração,
dizendo que alguém de fora as descreveria como atraentes, inteligentes e exitosas.
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Todas possuíam títulos universitários e eram seguras de si mesmas, e ferozmente independentes. Mas para ele eram muito mais que isso: eram seres mágicos que
compartilhavam seu destino, unidas a ele por laços de afeto e compromisso que nada
tinham a ver com a ordem social. Compartilhavam a comum busca pela liberdade. Certa vez até lhe dei um ultimato:
—Tem que
me
levar
para
conhecê
‐las,
ou
do
contrário…
Isto provocou risos em Isidoro Baltazar. —Tudo o que posso lhe dizer é que não é o que você imagina, e não há forma
de determinar quando as conhecerá. Simplesmente terá que esperar. —Já esperei o bastante! — gritei, e ao não receber reação de sua parte,
acrescentei: —Está louco se acha que poderei encontrar a um grupo de mulheres em
Los Ângeles. Nem sequer sei por onde começar a buscar. —As encontrará como encontrou a mim, e como encontrou ao nagual Mariano
Aureliano. Olhei‐o com desconfiança. Não podia menos que suspeitar que abrigava uma
certa e secreta
malícia.
—Não te andava buscando — respondi com impertinência — nem tampouco a
Mariano Aureliano. Acredite em mim que, em ambos os casos, nossos encontros foram
fortuitos. —Não existem os encontros fortuitos no mundo dos feiticeiros — disse, e já
estava a ponto de dizer‐lhe que não precisava deste tipo de conselho, quando ele
acrescentou seriamente: —As conhecerá quando chegar o momento adequado. Não
tem que andar em busca delas. De cara para a parede contei até dez, depois o enfrentei para dizer com
suavidade.
—O problema
contigo
é que
é um
típico
latino.
Amanhã
sempre
é perfeito
para
você. Não tem conceito de apressar ou fazer as coisas — elevei a voz para impedir que
me interrompesse, e terminei dizendo: —Minha insistência em conhecer às suas amigas é um exemplo de apressar as coisas.
—De apressar as coisas? — repetiu sem compreender. —Qual é a afobação? —Você vem me dizendo, quase que diariamente, que resta muito pouco tempo
— recordei‐lhe. —Você mesmo sempre fala do importante que é para mim o conhecê‐
las, e no entanto age como se tivesse a eternidade pela frente. Tornou‐se impaciente. —Te digo isto constantemente porque desejo que se apresse a limpar seu ser
interno, não
porque
quero
que
se
levem
a cabo
com
rapidez
atos
sem
importância
como pretende você. Não é meu dever o apresentá‐las a você; se assim fosse, não
estaria sentado aqui, escutando suas tolices. — Fechou os olhos e suspirou de modo
exagerado, num gesto de fingida resignação, mas em seguida acrescentou com um
doce sorriso: —É demasiado tonta para dar‐se conta do que acontece. —Não acontece nada — retruquei, doída pelo insulto. —Não sou tão estúpida
como acha. Tenho notado o ar de ambivalência que envolve suas reações para comigo. Às vezes tenho a clara impressão de que não sabe o que fazer comigo.
—Sei exatamente o que devo fazer — assegurou. —Se é assim, por que reage sempre de maneira tão indecisa quando proponho
algo?
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120
Isidoro Baltazar me lançou um olhar severo, e por um instante pensei que me
atacaria utilizando essas palavras ásperas que costumava usar para demolir‐me com
alguma crítica aguda, mas quando falou para conceder razão sobre minha opinião o fez com suavidade.
—Sempre espero até que os acontecimentos decidam por mim — afirmou. —
Depois me
movo
com
velocidade
e com
vigor.
Se
não
se
cuidar
te
deixarei
para
trás.
—Já estou muito atrás — disse lamentando‐me. —Dado que não me ajudará a
encontrar a essas mulheres estou condenada a continuar atrasada. —Mas não é esse o verdadeiro problema. O mal é que você ainda não se
decidiu — e levantou as sobrancelhas como se estivesse à espera de um rompante de
minha parte. —Não sei o que quer dizer com isso. O que é que devo decidir? —Não se decidiu a juntar‐se ao mundo dos feiticeiros. Está parada no umbral,
observando, à espera do que está por acontecer. Está à espera de algo prático que lhe
possa ser lucrativo.
Palavras de
protesto
se
formaram
em
minha
garganta,
mas
antes
que
pudesse
manifestar minha profunda indignação, ele acrescentou que eu tinha a errônea idéia de que o ter‐me mudado a um novo apartamento e deixado para trás minha velha forma de vida significavam uma mudança.
—E o que é então uma mudança? — perguntei com sarcasmo. —Não deixou nada para trás exceto seus pertences — respondeu, ignorando
meu tom. —Para certas pessoas isso significa um passo gigantesco, mas para você isso
não é nada. Você não se interessa em possuir coisas. Estava de acordo. —Não, não me interessa — disse, e depois insisti que, não obstante seu juízo,
eu me
havia
decidido
a juntar
‐me
ao
mundo
dos
feiticeiros
há
muito
tempo.
—Por
que
acha que estou aqui se ainda não me decidi? —Sem dúvida o fez corporalmente, mas não em espírito. Agora está esperando
que te dêem um mapa, algum plano reconfortante, antes de tomar sua decisão final. Entretanto seguirá dando‐lhes corda. Seu principal problema é que necessita estar convencida de que o mundo dos feiticeiros tem algo para lhe oferecer.
—E então ele não tem?
Isidoro Baltazar me encarou com o rosto estampado por um sorriso. —Sim, tem algo muito especial para oferecer. Chama‐se liberdade, mas não há
garantia alguma de que a obtenha, ou que algum de nós tenha êxito nesta empresa.
Digeri suas
palavras,
e depois
lhe
perguntei
o que
devia
fazer
para
convencê
‐lo
de que já me havia unido ao seu mundo. —Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a
porta atrás de você. —Que porta? —A que você mantém aberta; a que te permitirá escapar se as coisas não são
de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. —Está dizendo que deserdarei? Olhou‐me com uma expressão enigmática, depois deu de ombros. —Isso fica
entre o espírito e você.
—Mas
se
você
mesmo
acha
que…
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121
—Eu não acho nada — interrompeu. —Entrou neste mundo da mesma maneira que todos os outros. Ninguém teve nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou
qualquer outro decide se retirar. Olhei‐o, confusa. —Mas suponho que tentará me convencer… se eu… — gaguejei.
Sacudiu a cabeça
antes
que
eu
terminasse
de
falar.
—Não convencerei a você nem a ninguém. Sua decisão carecerá de poder se
precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou duvidar. —Quem me ajudará então? — perguntei alarmada. —Eu; eu sou seu servidor — respondeu com um sorriso doce e tímido, por
completo desprovido de cinismo. —Mas antes sirvo ao espírito. Um guerreiro não é
um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos não tomam decisões, os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente.
—E minha ajuda não entra no cálculo — continuou. —Não posso investir em
você e, claro, tampouco você pode investir em mim ou no mundo dos feiticeiros. Esta
é a premissa
básica
desse
mundo:
nada
se
faz
que
possa
ser
catalogado
como
útil.
Só
se permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como
vivo. O feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas. Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.
Sobreveio um longo silêncio; eu mudei de posição sobre a cama em que me
achava sentada. Minha mente se encheu de pensamentos. Talvez nenhum dos feiticeiros poderia chegar a acreditar‐me, mas sem dúvida alguma eu havia mudado, imperceptivelmente a princípio. Eu o notava porque tinha a ver com um dos problemas mais difíceis que uma mulher pode enfrentar: os ciúmes e a necessidade de
saber.
Meus ataques
de
ciúmes
eram
um
pretexto,
não
necessariamente
um
pretexto
consciente, mas contudo havia neles algo de posse. Algo em mim exigia que tivesse ciúmes de todas as outras mulheres que formavam parte da vida de Isidoro Baltazar, mas de igual maneira algo me fazia perceber que a vida do novo nagual não era a de
um homem comum, nem sequer de quem pudesse ter muitas esposas. Nossa relação, se assim se podia chamá‐la, não se encaixava em nenhum dos
moldes habituais e conhecidos, apesar de meus esforços por conseguir inseri‐la num
contexto. Para que os ciúmes e o sentido de posse tenham sustentação é necessário
um espelho, não só um próprio, como também um do companheiro, e Isidoro Baltazar já não refletia os impulsos, os sentimentos, as necessidades e as emoções de um
homem. Minha necessidade de conhecer a vida de Isidoro Baltazar era opressora, e me
amargava o fato de que não me dava acesso a seu mundo privado. Não obstante, eu
não lutava contra isso. Teria sido fácil segui‐lo ou revisar seus papéis para descobrir de
uma vez por todas quem era ele de verdade, mas não pude fazê‐lo. Algo me dizia que
com ele eu não podia proceder como estava acostumada; e o que me inibia, mais que
um sentido de decência, era a confiança que havia depositado em mim. Isidoro
Baltazar me havia dado livre acesso a seus pertences, e isso para mim o tornava inviolável.
Ri forte. Entendia qual era o ato estratégico do guerreiro. Isidoro Baltazar
estava
equivocado;
confundia
meu
inveterado
mau
humor
e
minha
afetação
alemã
com falta de decisão. Não importava. Eu sabia que pelo menos havia começado a
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122
compreender e praticar a estratégia do guerreiro, ao menos enquanto ele se
encontrava presente. Não obstante, na sua ausência, com frequência eu fraquejava, e
quando isso acontecia costumava dormir em seu estúdio. Certa noite, enquanto enfiava a chave na fechadura, apareceu um braço e, sem
mais nem menos, me levou ao interior do estúdio. Gritei aterrorizada, e comecei a
balbuciar “quê…”,
quando
a mão
que
apertava
meu
braço
me
soltou.
Para
recuperar
meu equilíbrio e acalmar meu coração que galopava, recostei‐me contra a parede, e ali surgiu uma figura conhecida.
—Florinda! — gritei, ainda confusa. Ela vestia uma longa bata, presa na cintura, e seus cabelos pendiam por suas costas e por ambos os lados de seu rosto. Duvidando
se era na verdade ela ou uma aparição, ressaltada por uma suave luz atrás de suas costas, me aproximei para tocar sua manga.
—É você, Florinda, ou estou sonhando? —Eu em pessoa, querida. O produto autêntico. —Como chegou aqui? Está sozinha? — perguntei tontamente, e em seguida,
procurando sorrir,
acrescentei:
—Se
eu
soubesse
que
você
viria
teria
iniciado
a limpeza
mais cedo. Eu adoro limpar o estúdio de Isidoro Baltazar de noite. Sempre o faço de
noite. Em vez de responder Florinda se situou de maneira que a luz iluminava seu
rosto, e um sorriso perverso brilhou em seus olhos. —Eu lhe adverti que nunca deveria seguir a nenhum de nós, ou apresentar‐se
sem ser convidada. Tem sorte de que não foi outra pessoa quem te conduziu para dentro esta noite.
—E que outra pessoa poderia ter sido? — perguntei com um tom desafiante que estava longe de sentir.
Florinda me
contemplou
um
instante,
depois
se
virou
e me
deu
sua
resposta
por cima do ombro. —Alguém a quem não lhe teria importado que você morresse de susto. —
agitou uma mão no ar como para afastar suas palavras enquanto atravessava o quarto
procurando a pequena cozinha. Não parecia caminhar, e sim deslizar num tipo de
dança não premeditada que balançava seus longos cabelos brancos, semelhantes a
uma cortina prateada tocada por uma luz indefinida. Eu a segui, parodiando seu gracioso andar. —Saiba que tenho a chave — informei‐lhe. —Tenho vindo aqui todos os dias, a
qualquer hora, desde que regressamos de Sonora. Na verdade eu praticamente vivo
aqui. —Isidoro Baltazar não te disse para não vir aqui enquanto ele está no México?
— o tom de Florinda era suave, quase casual. Não me acusava, mas eu senti como se o
fizesse. —Talvez tenha dito algo — respondi com estudada indiferença, e vendo que
franzia o cenho me senti obrigada a me defender. Confessei‐lhe que muitas vezes eu
estava sozinha no apartamento, e achava que não importava muito se Isidoro Baltazar estava a cinco ou quinhentas milhas de distância, e alentada por sua aparente aprovação às minhas palavras admiti que, além de fazer ali minhas tarefas escolares, passava horas pondo em ordem seus livros, classificando‐os por tema e por autor. —
Alguns
deles
são
tão
novos
que
as
páginas
nem
sequer
foram
cortadas
—
expliquei.
—Eu os estou abrindo. Isso é o que vim fazer esta noite.
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—Às três da manhã? Não pude evitar de ficar vermelha ao responder: —É, sim. Há muito por fazer. Quando se é cuidadosa e não se deseja danificar
as páginas, este é um trabalho de nunca acaba. Mas é tranquilizante, e a mim me
ajuda a dormir bem.
O comentário
de
Florinda
se
reduziu
a uma
palavra,
apenas
modulada:
—Extraordinário. Animada por sua aparente aprovação continuei falando. —Tenho certeza de que você entende o que estar aqui significa para mim.
Neste apartamento me sinto livre de minha antiga vida, de todos e de tudo, salvo
Isidoro Baltazar e seu mundo mágico. O próprio ar me enche de um sentido de entrega total. — suspirei profundamente. —Aqui nunca me sinto sozinha, apesar da maior parte do tempo o estar. Há algo na atmosfera que me lembra a casa das feiticeiras. Essa mesma frieza e ausência de sentimentos banais, que a princípio tanto me
incomodavam, se aderem a estas paredes, e é precisamente essa distância, essa falta
de calidez,
o que
busco
dia
e noite.
Eu
a acho
curiosamente
reconfortante,
me
dá
forças. Enquanto se dirigia à pia da cozinha com o bule na mão, Florinda meneou a
cabeça como se duvidando, murmurou “incrível” e depois algo que não alcancei ouvir, afogadas as palavras pelo ruído da água.
—Fico muito feliz de saber que se sente confortável aqui — suspirou
dramaticamente e completou: —Deve sentir‐se muito segura neste ninhozinho, sabendo que têm um companheiro — e terminou num tom jocoso, aconselhando‐me a
fazer todo o possível por fazer feliz a Isidoro Baltazar, mencionando práticas sexuais, que descreveu com horrenda grosseria.
Contemplei‐a boquiaberta,
espantada
pelo
que
acabara
de
ouvir,
enquanto
ela,
com a segurança e a eficiência de alguém conhecedora da disposição da cozinha, pegava duas xícaras, meu bule de chá favorito e o pacote de biscoitos de chocolate que eu mantinha escondido por trás dos dicionários de idiomas alemão e francês.
Com um sorriso Florinda virou‐se para mim e perguntou: —A quem esperava encontrar aqui esta noite? —Não a você — respondi abruptamente, percebendo tarde demais que minha
resposta me delatava, e me lancei numa extensa e elaborada explicação de por que
esperava encontrar ali, se não a todas, pelo menos a uma das outras jovens mulheres. —Cruzarão seu caminho quando chegar o tempo adequado — respondeu
Florinda. —Não
é sua
obrigação
forçar
um
encontro
com
elas.
De repente, sem poder controlar minhas palavras, me encontrei culpando a ela, a Mariano Aureliano e a Isidoro Baltazar por minha atitude furtiva. Disse‐lhe que era impraticável, para não dizer impossível, pretender que eu esperasse a que umas mulheres desconhecidas cruzassem meu caminho, e achar que eu as reconheceria por algo tão inconcebível como sua radiação interna, e como de costume, quanto mais me
queixava, melhor me sentia. Florinda me ignorou, e com exagerado acento britânico cantarolou — uma,
duas colheradas, e uma para a chaleira — à medida que colocava o chá. Depois, de
maneira casual, observou que a única coisa caprichosa e impraticável era que eu
pensasse
em
Isidoro
Baltazar
como
homem,
e
o
tratasse
como
tal.
—Não sei o que me quer dizer com isso — rebati na defensiva.
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Olhou‐me com tal intensidade que corei. —Sabe perfeitamente o que quero dizer — retrucou enquanto servia o chá nas
xícaras, e com um rápido gesto de sua testa indicou qual das duas era a minha. Com o
pacote de biscoitos na mão, sentou na cama de Isidoro Baltazar, e sorveu seu chá, enquanto eu, sentada ao seu lado, fazia o mesmo.
De improviso
me
lançou
uma
acusação:
—Você não mudou nada. —Isso é exatamente o que me disse Isidoro Baltazar faz uns dias — repus —,
mas eu sei que mudei muito. Disse‐lhe que meu mundo havia mudado totalmente desde a volta de Sonora, e
expliquei em detalhes sobre a troca de apartamento, minha mudança, deixando para
trás todas minhas posses. Escutou com glacial indiferença, dura como uma pedra. —Na verdade não posso me atribuir muito crédito por romper rotinas e fazer‐
me inacessível — admiti, sentindo‐me incômoda ante seu silêncio. —Qualquer um que
esteja em estreito contato com Isidoro Baltazar deve esquecer que há limites entre o
dia e a noite,
entre
jornadas
de
trabalho
e feriados.
O
tempo
flui
e…
—
não
pude
terminar minha frase, pois me assaltou um estranho pensamento. Que eu lembrasse, ninguém me havia falado de romper rotinas e fazer‐me inacessível. Olhei fixo para Florinda, e meu olhar fraquejou. Seria coisa dela? De onde me vinham essas idéias? E o
mais desconcertante era que eu sabia com exatidão o que era que essas idéias significavam.
—Isso deveria servir para advertir‐lhe que algo está por acontecer em você —
sentenciou Florinda, como se tivesse seguido o fluxo de meus pensamentos, e
acrescentou que tudo o que foi feito por mim em ensonhos, até esse momento, ainda não havia imbuído minhas horas de vigília com a dureza e a autodisciplina necessária
para atuar
no
mundo
dos
feiticeiros.
—Nunca fiz algo assim em minha vida — protestei. —Dê‐me uma oportunidade. Sou nova nisto.
Estava de acordo nisso. —Naturalmente — disse, e reclinou sua cabeça na almofada e fechou os olhos.
Foi tão longo seu silêncio que pensei que tivesse dormido, e por conseguinte me
assustei quando falou. —Uma mudança verdadeira não inclui mudança de ânimo, atitude ou ponto de vista, e sim uma transformação total do ser — e ao ver que eu
estava a ponto de interrompê‐la, tapou meus lábios com seus dedos e acrescentou: —O tipo de mudança ao qual aludo não se consegue em três meses, um ano ou dez.
Toma toda
a vida
—
e terminou
dizendo
que
era
sumamente
difícil
converter
‐se
em
algo diferente ao que alguém havia sido destinado a ser. —O mundo dos feiticeiros é
um ensonho, um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos os dias —
prosseguiu. “Para perceber e funcionar nesse mundo devemos nos despojarmos da
máscara cotidiana que levamos aderida aos nossos rostos desde o dia em que
nascemos, e colocarmos a segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso
entorno como realmente são: acontecimentos extraordinários que florescem só uma vez, adquirem existência transitória e nunca se repetem. Essa máscara você mesma terá que confeccionar.”
—Como
a
faço?
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125
—Ensonhando seu outro ser — murmurou. —Certamente não adquirindo
novas roupas, novos livros e uma nova direção e, — acrescentou sarcasticamente —
por certo não acreditando que tem um novo homem. Antes que eu pudesse desmentir sua brutal acusação disse que externamente
eu era uma pessoa fluida, capaz de mover‐me a grande velocidade, mas por dentro era
rígida e dura.
Como
já
o havia
assinalado
Isidoro
Baltazar,
ela
também
sustentava
que
era enganoso acreditar que adquirir um apartamento novo e dar de presente tudo o
que possuía era uma mudança. Curvei a cabeça em sinal de que aceitava sua crítica. Sempre senti uma
inclinação a despojar‐me de coisas e, tal como ela o apontou, isso representava basicamente uma compulsão. Para incômodo de meus pais, e desde que era muito
nova, eu periodicamente me desfazia de minhas roupas e meus brinquedos, e a
felicidade de ver meu quarto e meus armários ordenados e quase vazios ultrapassava a
de adquirir posses. Às vezes minha compulsão se fazia tão intensa que também dizimava os
armários de
meus
pais
e de
meus
irmãos,
fato
que
costumava
passar
inadvertido,
pois
tomava o cuidado de se desfazer de roupas que haviam caído em desuso. Contudo, de
tarde em tarde, a casa explodia quando meu pai percorria os cômodos abrindo guarda‐
roupas e vociferando, em busca de uma determinada camisa ou calça. A Florinda isto lhe causou graça e, de pé junto à janela que dava a uma viela,
fixou sua vista na grossa cortina negra que servia para se ter escuridão total, como se
pudesse ver através dela, e opinou que era muito mais fácil para uma mulher que para
um homem cortar amarras com a família e o passado. —As mulheres — manteve — não são responsáveis, e esta falta de
responsabilidade lhes dá uma grande medida de fluidez que, lamentavelmente, raras
vezes aproveitam
—
e enquanto
falava
percorreu
o aposento
acariciando
a mobília.
—
O mais difícil de compreender a respeito do mundo dos feiticeiros é que ele oferece a
liberdade, mas… — e ao dizer isto se virou para ficar de frente a mim — a liberdade não se obtém gratuitamente.
—O que custa essa liberdade? — perguntei. —A liberdade lhe custará a máscara que leva posta: essa tão cômoda e difícil de
descartar, não por ser cômoda, mas sim porque a tem estado usando tanto tempo… —
com isto deixou de percorrer o quarto e veio a instalar‐se frente à mesa. —Sabe o que
é a liberdade? É a total ausência de preocupação acerca de si mesma — disse, sentando‐se junto a mim sobre a cama — e a melhor maneira de deixar de preocupar‐
se com
sua
pessoa
é preocupando
‐se
por
outros.
—Eu me preocupo — assegurei‐lhe. —Penso constantemente em Isidoro
Baltazar e suas mulheres. —Não me cabe dúvida — concordou, sacudindo a cabeça e bocejando. —Já é
hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém mais que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em você, e haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente, muito fria… — e prosseguiu enumerando uma série de insólitas incomodidades.
Caímos em um longo silêncio, depois do qual, com a mesma voz sonolenta, Florinda prosseguiu seu discurso:
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—Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve
agir nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Tem ensonhado desperta desde seu
regresso? Precisei admitir que não o havia feito. —Então ainda não se decidiu — observou com severidade. —Não está talhando
sua máscara.
Não
está
ensonhando
seu
outro
ser.
Os
feiticeiros
estão
comprometidos
com seu mundo somente através de sua impecabilidade — e os olhos de Florinda brilharam ao completar: —Os feiticeiros não têm interesse em converter a outros às suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por saber mais, ou ser melhores feiticeiros que os outros, e sim por simplesmente possuir mais energia, e não me refiro necessariamente à força física, e sim a certa configuração de seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da
percepção. —Se aos feiticeiros não lhes interessa converter ao próximo, por que Isidoro
Baltazar é aprendiz do nagual velho?
—Isidoro Baltazar
apareceu
no
mundo
dos
feiticeiros
do
mesmo
modo
em
que
você apareceu. Não importa o que o trouxe, o certo é que não pôde ser ignorado por Mariano Aureliano, e ensinar‐lhe tudo o referente ao mundo feiticeiro se converteu
em obrigação para ele. — Depois explicou que ninguém nos andou buscando, nem a
Isidoro Baltazar e a mim. Nosso ingresso nesse mundo não foi obra nem desejo de
ninguém. —Nenhum de nós faria nada por mantê‐los neste mundo mágico contra sua vontade — acrescentou sorrindo — mas sim faríamos o possível e o impossível para
ajudá‐los a permanecer nele. Florinda se virou como se desejasse esconder seu rosto de mim, e um instante
depois me olhou por cima de seu ombro. Havia em seu olhar algo frio e remoto, e a
mudança de
expressão
era
tal
que
me
inspirou
temor.
Instintivamente
me
afastei
dela.
—A única coisa que nem eu nem Isidoro Baltazar faríamos nem quiséramos fazer é ajudar‐lhe a que continue com sua existência disforme, voraz e complacente. Isso seria uma fraude — e como para suavizar o insulto me abraçou.
—Te direi o que necessita… — e esteve calada por tão longo tempo que pensei que havia esquecido o que estava por me dizer. Finalmente murmurou: —O que você
precisa é de uma boa noite de sono. —Não estou nada cansada — respondi, resposta automática como todas as
minhas, sempre contrárias ao que se estava dizendo. Para mim ter a razão era uma questão de princípios.
Florinda riu
e me
abraçou
de
novo.
—Não seja tão alemã, e não espere a que tudo seja soletrado com precisão
para seu benefício. — acrescentou que nada no mundo deles era tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta. —Isidoro Baltazar te ajudará — me
assegurou — mas é necessário que lembre que não te ajudará do modo que você
espera que o faça. —O que quer dizer com isso? — perguntei, livrando‐me de seu abraço para
poder olhá‐la. —Não lhe dirá as coisas que deseja ouvir, nem te dirá como deve se comportar
pois, como sabe, em nosso mundo não existem regras nem regulamentos. — Pelo visto
minha
crescente
frustração
lhe
causava
graça,
pois
riu
com
vontade.
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—Lembre‐se sempre que só existem improvisações… — e com isso e um grande
bocejo, se estendeu na cama, depois de pegar uma das mantas empilhadas no piso. Mas antes de cobrir‐se se ergueu sobre um de seus cotovelos para dirigir‐me um olhar penetrante, e numa voz sonolenta e levemente hipnótica, me aconselhou a ter sempre
presente que a minha era a mesma senda guerreira que a de Isidoro Baltazar. Com os
olhos fechados,
e num
tom
apenas
audível,
completou:
—Nunca o perca de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que você
nem sequer se perceberá disso. Isidoro Baltazar é um guerreiro impecável e
incomparável. Sacudi seu braço, temendo que dormisse antes de terminar com o que tinha
que dizer‐me, e sem abrir os olhos continuou seu discurso. —Se o observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação.
Verá que permanece impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está
disposto a dar tudo de si mesmo. Aguarda permanentemente um sinal do espírito, na
forma de uma palavra amável ou um gesto apropriado, e quando o recebe, expressa
seu agradecimento
redobrando
seus
esforços.
Continuou dizendo que Isidoro Baltazar não julgava. —Se reduziu ele mesmo a nada para escutar e observar, para assim poder
conquistar e ser humilhado na conquista, ou ser derrotado e enaltecido na derrota. Se
observar com cuidado verá que Isidoro Baltazar não se rende. Podem vencê‐lo, mas não se renderá e, acima de tudo, Isidoro Baltazar é livre.
Eu me morria por interrompê‐la, por dizer‐lhe que tudo isso já o havia me
contado, mas antes que pudesse falar Florinda já havia adormecido, e temendo não
dar com ela de manhã, caso voltasse ao meu apartamento, sentei‐me sobre a outra cama.
Estranhos pensamentos
me
invadiram.
Me
relaxei
e me
deixei
ir,
ao
compreender que estavam desconectados do resto de meus pensamentos normais, vistos como raios de luz e relâmpagos de intuição. Seguindo um destes relâmpagos intuitivos decidi sentir a cama com minhas nádegas, e para minha grande surpresa foi como se minhas nádegas se tivessem fundido na própria cama. Por uns momentos eu
era a cama que se esforçava por tocar minhas nádegas. Durante um bom tempo gozei esta situação. Sabia que ensonhava, e compreendi com absoluta claridade que acabara de experimentar o que Esperanza havia descrito como “minha sensação sendo
devolvida como um eco”. Depois todo meu ser se derreteu ou, melhor dizendo, explodiu.
Teria querido
rir
de
felicidade,
mas
não
desejei
despertar
a Florinda.
Eu
me
lembrava de tudo! E não tive dificuldade alguma em lembrar o que havia feito na casa
das feiticeiras durante aqueles dez dias perdidos. Havia ensonhado! Sob o olhar vigilante de Esperanza eu ensonhei sem deter‐me, despertando na casa das bruxas, na
de Esperanza, ou em outros lugares irreconhecíveis no momento. Clara havia insistido que antes que um fato particular pudesse se fixar na
memória de modo permanente, era necessário tê‐lo visto um par de vezes, e sentada ali na cama, observando a Florinda dormir, lembrei às outras mulheres do grupo dos feiticeiros, com quem havia convivido em ensonhos durante esses dias esquecidos. Eu
as vi com claridade, como se tivessem se materializado diante de mim, ou melhor,
como
se
eu
houvesse
sido
fisicamente
transportada
de
volta
a
essas
circunstâncias.
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Para mim a mais chamativa era Nélida, que se parecia tanto a Florinda que a
princípio pensei que fossem gêmeas. Não só era alta e delicada como Florinda, como
tinha a mesma cor de olhos, cabelo e pele. Até suas expressões eram idênticas. Também se pareciam no temperamento, apesar de que se poderia dizer que Nélida que era mais suave, menos dominante. Dava a impressão de não possuir a sabedoria e
a força
energética
de
Florinda,
mas
sim
uma
energia
paciente
e silenciosa,
muito
reconfortante. Quanto à Hermelinda, com muita facilidade poderia ter passado por irmã
menor de Carmela. Seu corpo pequeno e delicado, de apenas um metro e cinquenta e
sete centímetros, era delicadamente arredondado, e seus modos esquisitos. Dava a
impressão de possuir menos autoconfiança que Carmela. Sua fala era doce, e se movia
com meneios rápidos e bruscos, não livre de graça. Suas companheiras me confiaram
que sua timidez e sossego faziam com que aqueles que lidavam com ela tendessem a
se mostrar sob suas melhores luzes, e também que não poderia manejar a um grupo, nem sequer a duas pessoas por vez.
Clara e Delia
formavam
um
estupendo
par
de
travessas.
A
princípio
pareciam
ser de grande tamanho, mas era sua robustez, vigor e energia o que se fazia pensar nelas como em mulheres gigantescas e indestrutíveis. Dedicavam‐se a jogos deliciosamente competitivos, e com o menor pretexto exibiam vestimentas excêntricas. Ambas tocavam muito bem o violão, possuíam lindas vozes, e rivalizavam
cantando não só em espanhol como em inglês, alemão, francês e italiano. Seu
repertório incluía baladas, canções folclóricas e todo tipo de canção popular, inclusive
os mais recentes sucessos pop. Não era necessário mais que cantarolar a primeira linha de uma canção, e já Clara e Delia a completavam. Também organizavam competições poéticas, escrevendo versos para as ocasiões em que se apresentavam.
A mim
me
haviam
dedicado
poemas
que
depois
atiravam
embaixo
da
minha
porta sem assinar, devendo eu adivinhar quem o havia escrito, e ambas sustentavam
que se a amava como ela a mim, a intuição se encarregaria de revelar‐me o nome da
autora. O atraente destas competições era a ausência de segundas intenções. Seu
objetivo era entreter, não o de vencer o oponente, e desnecessário dizer que Clara e
Delia se divertiam junto com quem as assistia. Se alguém lhes caía nas graças, como
parecia ter‐lhes caído eu, seu afeto e lealdade não tinham limite. Ambas me
defenderam com assombrosa perseverança, ainda que eu estivesse errada, pois para
elas eu era perfeita e incapaz de errar. Elas me ensinaram que manter essa confiança significava para mim uma dupla responsabilidade, e não foi propriamente o meu temor
em decepcioná
‐las
e sim
que,
para
mim,
acabou
sendo
natural
acreditar
‐me
perfeita,
o que fez com que me comportasse com elas de maneira impecável.
A mais estranha das mulheres feiticeiras era minha suposta professora na arte
de ensonhar, Zuleica, que nunca me ensinou nada. Jamais me dirigiu a palavra, e talvez nem sequer chegou a reparar em minha existência. Zuleica, assim como Florinda, era muito bonita, talvez não tão chamativa mas sim bela, num sentido mais etéreo. Era pequena, e seus olhos escuros com suas sobrancelhas aladas, e sua boca e nariz, perfeitos, estavam emoldurados por cabelos escuros e ondulados, próximos do
grisalho, que acentuavam sua aura de ser de outro mundo. Não era a sua uma beleza normal, e sim sublime, moderada por seu implacável autocontrole. Possuía plena
consciência
do
cômico
que
era
ser
linda
e
atraente
aos
olhos
de
terceiros.
Havia
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aprendido a admiti‐lo, e o usava como se fosse um prêmio que havia ganhado, tudo o
qual a fazia “não‐igual” a todos e a tudo. Zuleica havia aprendido a arte do ventriloquismo, levando‐o a níveis excelsos, e
sustentava que as palavras enunciadas pelo movimento dos lábios se tornavam mais confusas do que na realidade eram. A mim me encantava o modo em que Zuleica
como ventríloqua
fazia
falar
as
paredes,
as
mesas,
os
pratos
ou
qualquer
objeto
que
tivesse diante de si, e eu havia pego o costume de segui‐la pela casa. Mais que
caminhar Zuleica parecia flutuar sem tocar o solo e sem mover o ar, e quando
perguntei às outras feiticeiras se isto representava uma ilusão, me responderam que
era porque Zuleica detestava deixar suas pegadas no chão. Depois de conhecer e lidar com todas, as mulheres me explicaram a diferença
entre ensonhadoras e espreitadoras. Chamavam a esta diferença “os dois planetas”. Florinda, Carmela, Zoila e Delia eram espreitadoras: seres fortes dotados de grande
energia física; agressivas, trabalhadoras incansáveis, e especialistas nesse extravagante estado de consciência que chamavam ensonhar desperto.
O outro
planeta,
as
ensonhadoras,
era
composto
pelas
outras
quatro
mulheres:
Zuleica, Nélida, Hermelinda e Clara. Sua qualidade era mais etérea, não por ser menos forte ou enérgica, mas simplesmente porque sua energia era menos aparente. Projetavam uma imagem de não ser deste mundo, ainda quando ocupadas com
tarefas mundanas, e eram especialistas em outro estado especial de consciência, que
chamavam “ensonhar em mundos outros que este mundo”. Me informaram que este
era o estado de consciência mais complexo que uma mulher podia alcançar. Quando todas elas trabalhavam juntas, as espreitadoras representavam uma
cortiça exterior, dura e protetora, que ocultava um núcleo profundo: as ensonhadoras. Elas eram a matriz suave que acolchoava a dura cortiça exterior.
Durante esses
dias
na
casa
das
feiticeiras
elas
cuidaram
de
mim
como
se
eu
fosse algo precioso. Fui adulada e mimada, cozinharam para mim seus pratos favoritos, e me fizeram a roupa mais elegante que jamais tive. Me atordoaram com presentes, coisas bobas e jóias preciosas que guardaram, segundo disseram, para o dia do meu
despertar. Havia outras duas mulheres no mundo dos feiticeiros, ambas espreitadoras,
ambas gordas, e de nome Marta e Teresa. As duas eram bonitas e possuíam fabulosos apetites. No armário tinham escondido um sortido de biscoitos, chocolates e doces, muito convencidas de que somente elas conheciam sua localização, e me agradou e
alegrou sobremaneira que desde a primeira hora me fizeram partícipe deste tesouro,
habilitando‐me
para
fazer
uso
dele
ao
meu
prazer,
o qual,
é claro,
não
deixei
de
fazer.
Das duas, Marta era a maior, uma exótica mistura de índia e alemã de vinte e
tantos anos. Sua tez, se bem não de todo branca, era pálida; seu magnífico cabelo
negro era suave e ondulado, e emoldurava um rosto cheio com maçãs do rosto altas. Os olhos amendoados eram de um verde azulado, e suas pequenas e delicadas orelhas pareciam, por ser de um rosado quase transparente, as de um gato. Marta era muito
dada a emitir longos e tristes suspiros, segundo ela devido a sua origem alemã, e a
melancólicos silêncios, herança de sua alma indígena. Há pouco tempo havia
começado a tomar lições de violino, e praticava a qualquer hora do dia, mas longe de
criticá‐la ou irritarem‐se com ela, a reação unânime era que Marta tinha um fabuloso
ouvido
musical.
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Teresa media apenas um metro e cinquenta, mas sua robustez a fazia parecer mais alta. Mais que mexicana, parecia uma índia da Índia. Sua pele perfeita era de uma cremosa cor cobre claro, seus olhos puxados, escuros e líquidos, tinham por complemento cílios enrolados de tal peso que mantinham baixas as pálpebras, dando‐
lhe uma expressão distante e sonhadora. Seu caráter doce e gentil nos convidava a
protegê‐la.
Também em Teresa jazia um temperamento artístico. Pintava aquarelas ao cair da tarde. Diante de seu cavalete, com todos seus elementos prontos, sentava‐se
durante horas no pátio à espera de que a luz e as sombras alcançassem seu ponto
ideal, e então, com um controle e uma fluidez que pareciam ditados pela filosofia Zen, fazia entrar em ação seus pincéis, e dava vida às suas telas.
O grosso de minhas memórias ocultas havia alcançado a superfície. Estava
exausta. O ritmo dos leves roncos de Florinda, crescendo e diminuindo como um eco
distante, tinha um poder hipnotizante. Quando abri os olhos meu primeiro ato foi pronunciar seu nome. Não recebi resposta. A cama estava vazia. Os lençóis
cuidadosamente esticados
não
mostravam
sinais
de
que
alguém
tivesse
sentado
sobre
eles, e muito menos dormido. Os dois travesseiros se encontravam em sua posição
original, contra a parede, e a manta que ela usou, dobrada junto com as outras, empilhadas sobre o piso. Ansiosa, revistei o apartamento em busca de algum indício
de sua presença. Não encontrei nada, nem sequer um cabelo grisalho no banheiro.
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131
CAPÍTULO TREZE
Nos momentos em que me encontrava totalmente desperta, não recordava muito bem esses dias perdidos, apesar de saber sem espaço a dúvidas, que não eram
dias perdidos. Algo me havia acontecido nesse tempo, algo com um significado interior
que me
escapava.
Não
realizei
nenhum
esforço
consciente
para
recapturar
todas
essas
memórias vagas: sabia que estavam ali, semi‐ocultas, como essas pessoas a quem
alguém conhece apenas, e cujos nomes não se consegue lembrar. Nunca fui de dormir bem, mas dessa noite em diante, desde a aparição de
Florinda no estúdio de Isidoro Baltazar, eu dormia a toda hora com o exclusivo
propósito de ensonhar. Adormecia com inteira naturalidade cada vez que me
encostava, e por longos períodos. Inclusive engordei, por desgraça não nos lugares apropriados. No entanto jamais ensonhei com os feiticeiros.
Uma tarde um forte ruído de lata me despertou. Isidoro Baltazar havia deixado
cair a chaleira na pia da cozinha. Doía‐me a cabeça, suava copiosamente e tinha a vista
nublada. Restou
‐me
a lembrança
de
um
sonho
terrível,
que
se
desvaneceu
muito
rápido. —É culpa sua! — gritei‐lhe. —Se apenas me ajudasse não desperdiçaria minha
vida dormindo. — Desejava ceder à minha frustração e à minha impaciência mediante
um protesto retumbante, mas rapidamente me dei conta de que isso era impossível, pois já não desfrutava protestando como antes.
O rosto de Isidoro Baltazar exteriorizava sua satisfação, como se eu tivesse expressado meus pensamentos em voz alta. Pegou uma cadeira e, cavalgando‐a, disse:
—Sabe que não posso lhe ajudar. As mulheres possuem uma rota diferente para seus ensonhos. Nem sequer posso conceber o que fazem as mulheres para
ensonhar. —Deveria saber — retruquei de mau modo —, com tantas mulheres em sua
vida…
Minha réplica provocou sua risada. Nada parecia perturbar seu bom ânimo. —Não posso conceber o que fazem as mulheres para ensonhar — repetiu. —Os
homens precisam lutar incessantemente para enfocar sua atenção nos sonhos. As mulheres não lutam, mas precisam adquirir disciplina interna. Há algo que pode lhe
ajudar — agregou sorrindo —, trate de não ensonhar com sua acostumada atitude compulsiva. Deixe que o ensonho venha a ti.
Abri e fechei a boca, e rapidamente meu assombro se trocou por fúria.
Esquecida minha
recente
lucidez,
calcei
meus
sapatos
e abandonei
a casa,
batendo
a porta ao sair. Sua risada me seguiu até onde se encontrava estacionado meu carro.
Deprimida, sentindo que não me amavam, sozinha e, acima de tudo, com pena de mim
mesma, me dirigi à praia. Estava deserta, e chovia mansamente. A ausência de vento
era total. O som das ondas lambendo a praia, e o da chuva golpeando as águas, atuaram sobre mim como um calmante. Tirei os sapatos, arregacei minhas calças, e
caminhei até ficar limpa de meus caprichosos arranques. Reconheci estar limpa, pois o
sussurro das ondas me trouxe as palavras de Florinda: “É uma luta solitária”. Não me
senti ameaçada, simplesmente aceitei minha solidão, e foi esta aceitação o que me
deu a convicção do que precisava fazer; e posto que não sou dada às postergações, agi
de
imediato.
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Deixei um bilhete sob a porta de Isidoro Baltazar (não queria que ele me
dissuadisse) e tomei rumo à casa das feiticeiras. Dirigi toda a noite. Em Tucson me
registrei num motel, dormi a maior parte do dia, e retomei minha viagem ao cair da
tarde, seguindo a mesma rota que tomou Isidoro Baltazar em nossa viagem de
regresso.
Meu sentido
de
direção
é pobre,
mas
tinha
bem
gravada
essa
rota.
Com
segurança assombrosa soube quais caminhos tomar, onde virar, e em escasso tempo
cheguei ao destino. Não me incomodei em consultar meu relógio, pois não queria perder a sensação de que o tempo não se havia movido entre minha partida de Tucson
e minha chegada à casa das feiticeiras. Não me incomodou não encontrar a ninguém na casa, pois tinha bem presente
que não me havia se estendido nenhum convite formal, mas lembrava muito bem que
Nélida, ao esconder numa gaveta uma pequena cesta contendo os presentes que me
fizeram, me disse que devia voltar todas as vezes que quisesse. Suas palavras soavam
em meus ouvidos: “De dia ou de noite esta cesta te ajudará a que chegue bem.”
Com uma
segurança
à qual
normalmente
se
chega
com
a prática,
fui
diretamente ao quarto que Esperanza me designara, onde a rede branca com franjas parecia estar me esperando. Finalmente me invadiu uma vaga inquietude, mas não o
medo que deveria ter sentido. Um pouco inquieta, instalei‐me na rede, deixando uma perna para fora, com a qual balançar‐me.
—Ao diabo com meus temores — gritei, e em seguida recolhi a perna, e
totalmente instalada na rede me estirei com a voluptuosidade de um gato, fazendo
estalar todas as minhas articulações. Uma voz me saudou vinda do corredor: —Vejo que chegou sã e salva.
Não precisei
vê
‐la
para
reconhecer
a voz.
Sabia
que
era
Nélida,
e esperei
em
vão a que entrasse no quarto. Eu a ouvi dizer “sua comida está na cozinha”, e depois seus passos se afastaram pelo corredor. Abandonei a rede e corri atrás dela, mas não
havia ninguém no corredor nem nos quartos que passei a caminho da cozinha. Na
verdade não havia ninguém em toda a casa. Contudo, eu tinha a certeza de que se
encontravam ali. Escutei suas vozes, suas risadas e o ruído de pratos e panelas. Meus dias seguintes transcorreram em permanente estado de antecipação, em
esperar a que algo importante ocorresse. Não imaginava o quê, mas tinha a certeza de
que esse algo estava ligado às mulheres. Por alguma razão insondável as mulheres não
desejavam ser vistas, e esse insólito comportamento furtivo me manteve nos
corredores a toda
hora,
espreitando
silenciosa
como
uma
sombra,
mas
apesar
de
meus engenhosos estratagemas me foi impossível surpreendê‐las, ou obter sequer uma fugaz visão de seus corpos. Se deslizavam invisíveis por toda a casa, entravam e
saíam de seus quartos como se fosse entre diferentes mundos, deixando o rastro de
suas vozes e seus risos. Houve momentos em que duvidei de sua presença na casa, e até cheguei a
suspeitar que os ruídos de passos, murmúrios e risos não passavam de ser fruto de
minha imaginação; e quando me encontrava a ponto de aceitar como válida esta
suspeita, escutava a alguma delas fazendo algo no pátio, e então, plena de expectativa e de fervor renovado, corria até a parte posterior da casa para topar‐me com a
realidade
de
ter
sido
enganada
mais
uma
vez.
Nesses
momentos
me
convencia
de
que
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133
elas, sendo como eram, verdadeiras bruxas, possuíam algum tipo de sistema de eco
interno, parecido ao dos morcegos, que as alertava a respeito de minha aproximação. Meu desencanto ao não poder surpreendê‐las junto ao fogão sempre
desaparecia ante as exóticas comidas que me deixavam, e cujo delicioso sabor compensava a mesquinhez das porções. Com enorme prazer comia sua magnífica
comida, apesar
do
qual
sempre
sentia
fome.
Certo dia, um pouco antes do crepúsculo, escutei a voz de um homem, pronunciando meu nome com suavidade, vinda dos fundos da casa. Saltei da rede e
corri até lá, e me produziu tal felicidade encontrar ao cuidador que saltei sobre ele
como salta um cachorro. Incapaz de conter minha alegria o beijei em ambas as bochechas.
—Cuidado, Nibelunga — disse com a mesma voz e modo de Isidoro Baltazar. Minha surpresa me fez dar um salto e abrir os olhos surpreendida. Com uma piscada me formulou uma maliciosa advertência:
—Controle‐se, pois se não me cuido é capaz de se aproveitar de mim.
Por um
momento
não
soube
como
interpretar
suas
palavras,
mas
ao
ver
que
ria, e sentir que me espalmava as costas para me animar, relaxei por completo. —Me alegra muito ver você — disse‐me com suavidade. —E eu — respondi alegremente — me alegro muitíssimo de ver você! — depois
lhe perguntei onde estavam os demais. —Oh, andam por aí — respondeu de maneira ambígua. —Neste momento,
misteriosamente inacessíveis, mas sempre presentes — e percebendo minha
desilusão, acrescentou: —Tenha paciência. —Sei que andam por aí, pois me deixam comida — confessei —, mas sempre
tenho fome, já que as porções são muito pequenas.
Em sua
opinião
essa
era
a condição
natural
das
iguarias
que
conferiam
poder:
nunca se recebia o suficiente. Disse que cozinhava sua própria comida, arroz e feijões com pedaços de porco, vaca ou frango uma vez ao dia, mas nunca à mesma hora. Depois me levou a seu aposento. Vivia num quarto grande e desordenado atrás da
cozinha, entre as estranhas esculturas de ferro e de madeira, onde o ar impregnado de
jasmim e eucalipto pairava imóvel ao redor das cortinas fechadas. Dormia sobre uma
cama portátil, que mantinha dobrada dentro de um armário quando não estava em
uso, e comia sobre uma pequena mesa Chippendale de pernas frágeis. Confessou‐me que assim como as misteriosas mulheres, detestava a rotina.
Para ele tanto importava o dia como a noite, a manhã como a tarde. Mantinha limpos
os pátios
e se
ocupava
de
varrer
quando
sentia
vontade
de
fazer,
indiferente
a se
o que jazia no chão eram folhas ou flores.
Nos dias subseqüentes tive grandes problemas para ajustar‐me a este tipo de
vida desarticulada. Mais por compulsão que por desejo de ser útil, ajudei ao cuidador em suas tarefas, e também aceitei seus convites de compartilhar suas comidas, que se
mostraram ser tão deliciosas como sua companhia. Convencida de que ele era algo
mais que um cuidador, tentei, com perguntas manhosas, surpreendê‐lo desprevenido; técnica inútil, que não produziu respostas satisfatórias.
—De onde você é? — perguntei‐lhe a queima‐roupa certo dia enquanto
comíamos.
Levantou
a
vista
do
prato
e
apontou
com
o
dedo
em
direção
às
montanhas,
que
a janela aberta emoldurava como se fosse um quadro.
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—El Bacatete? — perguntei, revelando no tom de voz minha incredulidade. —Mas você não é índio — murmurei desconcertada. —De acordo com como eu vejo tais coisas, somente o nagual Mariano Aureliano, Delia e Genaro Flores são índios — e
encorajada pela expressão de surpresa e expectativa refletida em seu rosto
acrescentei que, sempre em minha opinião, Esperanza transcendia as categorias
raciais. Aproximando
‐me,
e baixando
a voz
a um
nível
de
conspirador,
confessei
‐lhe
o
que já havia confiado a Florinda. —Esperanza não nasceu como ser humano. Foi estabelecida por um ato de bruxaria. É o diabo em pessoa.
Afastando sua cadeira para trás, o cuidador extravasou sua alegria. —E o que me diz de Florinda? Sabia que é francesa? Ou melhor, que seus pais
eram franceses, das famílias que vieram ao México com Maximiliano e Carlota. —É muito bonita — murmurei, tratando de lembrar em que momento exato do
século passado Napoleão havia enviado o príncipe austríaco ao México. —Não a viu quando se enfeita toda… — acrescentou o cuidador. —É outra
pessoa, para quem a idade não conta.
—Carmela me
disse
que
eu
sou
como
Florinda
—
me
aventurei
a dizer,
num
ataque de vaidade e anseio ilusório. Impulsionado pelo riso que fervia em seu interior, o cuidador saltou de sua
cadeira. —Bem que você gostaria que fosse… — comentou sem maior ênfase, como se
não lhe interessasse a repercussão que teriam em mim suas palavras. Irritada por seu comentário e sua falta de sensibilidade olhei‐o com um
aborrecimento mal disfarçado. Depois, ansiosa por mudar de assunto, lhe fiz uma pergunta relacionada com o nagual Mariano Aureliano:
—E ele, exatamente de onde provém?
—Quem sabe
de
onde
provém
os
naguais
—
contrapôs,
e aproximando
‐se
da
janela fixou sua vista durante um longo período nas montanhas distantes. Depois completou: —Há quem diga que os naguais vêm do próprio inferno. Eu acredito. Alguns dizem que nem sequer são humanos… — houve uma nova pausa que me fez perguntar‐me se o longo silêncio seria repetido, ao fim do qual, como se tivesse
intuído minha impaciência, sentou‐se a meu lado e continuou: —Se perguntassem a
mim eu diria que os naguais são super‐humanos. Por essa razão conhecem tudo acerca
da natureza humana. Não se pode mentir a um nagual. Vêem através de ti. Até vêem
através do espaço os outros mundos além deste, e outras eras deste mundo. Me senti incômoda, e essa incomodidade me pôs inquieta. Desejava que
deixasse de
falar,
e lamentei
tê
‐lo
levado
a essa
conversa.
Tinha
a certeza
de
que
o homem estava louco.
—Não, não estou louco — assegurou, e ao escutar essas palavras soltei um
grito. —Simplesmente estou falando de coisas que você nunca escutou antes. Colocada na defensiva, meus olhos piscaram repetidas vezes, mas essa
inquietação me proporcionou a coragem necessária para perguntar‐lhe sem
preâmbulo algum: —Por que se escondem de mim? —É óbvio — respondeu. Depois, ao ver que para mim não era tão óbvio,
acrescentou: —Deveria saber. Você, e os que são como você, constituem a tripulação,
não
eu.
Não
sou
um
deles,
sou
apenas
o
cuidador,
o
que
azeita
a
máquina.
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—Está me confundindo cada vez mais — respondi irritada. Depois tive um
momento de intuição. —Quem são os da tripulação à qual se referiu? —Todas as mulheres que conheceu da última vez que esteve aqui. As
espreitadoras e as ensonhadoras. Me disseram que você pertence às espreitadoras. Após servir‐se de um copo de água se dirigiu à janela, levando consigo o copo.
Bebeu uns
goles
antes
de
me
informar
que
o nagual
Mariano
Aureliano
havia
posto
à
prova minhas condições de espreitadora em Tucson, quando me fez entrar na cafeteria para por uma barata na comida. Depois, encarando‐me, anunciou:
—Você falhou. Eu o interrompi, pois não desejava escutar o resto dessa estória. —Não quero escutar essa bobagem. Enrugou o rosto, prelúdio nele de alguma travessura. —Mas depois do fracasso você se reabilitou, gritando e chutando ao nagual
Mariano Aureliano sem vergonha nem consideração alguma — e ressaltou que as espreitadoras são pessoas que possuem a habilidade de lidar com outras pessoas.
Abri a boca,
a ponto
de
dizer
‐lhe
que
não
entendera
uma
só
palavra,
mas
a
fechei de novo. —O desconcertante é que também é uma grande ensonhadora. Se não fosse
por isso seria como Florinda, naturalmente sem sua estatura e sua beleza. Sorrindo venenosamente, maldisse em silêncio ao velho debochado. De
repente me disparou uma pergunta. —Lembra quantas mulheres havia no piquenique? Fechei os olhos para visualizar melhor o acontecimento. Vi com clareza a seis
mulheres sentadas em torno da lona estendida sob os eucaliptos. Esperanza não
estava presente, mas sim Carmela, Zoila, Delia e Florinda.
—Quem eram
as
outras
duas?
—
perguntei,
mais
confusa
que
nunca.
—Ah — murmurou, apreciando minha pergunta, a julgar pelo brilhante sorriso
que enrugou seu rosto. —Essas eram duas ensonhadoras de outro mundo. Você as viu
claramente, mas logo desapareceram, e sua mente não as registrou, pois lhe pareceu
completamente inconcebível. Aceitei sua explicação sem lhe prestar demasiada atenção, incapaz de conceber
como havia visto somente quatro mulheres, quando sabia que eram seis. Minha dúvida deve de ter‐se transparecido a ele, pois explicou que era muito natural que eu
tivesse me concentrado somente em quatro. —As outras duas são sua fonte de energia. São incorpóreas, e não pertencem a
este mundo.
Perdida e desconcertada, não pude atinar, senão olhá‐lo fixo. Se me haviam
esgotado as perguntas. —Dado que você não está no planeta das ensonhadoras, seus sonhos são
pesadelos, e suas transições entre ensonhos e realidade lhe acabam sendo muito
instáveis e perigosas, a você e às demais ensonhadoras. Por conseguinte, Florinda assumiu a tarefa de apoiar‐lhe e proteger‐lhe.
Fiquei de pé com tal ímpeto que minha cadeira foi ao chão. —Não quero saber mais! — gritei, e justo a tempo me abstive de acrescentar
que estava melhor assim, sem conhecer seus loucos costumes e explicações.
O
cuidador
me
pegou
pela
mão
e
me
conduziu
para
fora,
através
do
pátio
e
do
chaparral, até a parte traseira da casa pequena.
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—Preciso da sua ajuda com o gerador — pediu. —Tem que repará‐lo. Seu pedido me causou graça. Respondi que ignorava tudo a respeito de
geradores, e assim que abriu a portinhola de uma pequena casinha de cimento, me dei conta de que a corrente elétrica para as luzes da casa se gerava ali. Até então presumi que as luzes e eletrodomésticos do México rural eram os mesmos que na cidade.
Deste dia
em
diante
procurei
não
fazer
‐lhe
demasiadas
perguntas,
pois
não
me
sentia preparada para suas respostas. Então nossa relação adquiriu contornos de
ritual, onde eu me esmerava por igualar o esquisito domínio que o velho possuía do
idioma espanhol. Dediquei horas à consulta de vários dicionários, buscando palavras novas e quase sempre arcaicas, com as quais impressioná‐lo.
Certa tarde em que esperava que o cuidador trouxesse a comida, (era a
primeira vez desde que conheci seu quarto que me encontrava sozinha nele) lembrei do velho e estranho espelho, e me dediquei a examinar sua superfície brumosa e
manchada. —Cuidado. Esse espelho te prenderá se você se contemplar muito nele —
aconselhou uma
voz
em
minhas
costas.
Minhas esperanças de ver ao cuidador se frustraram pois, ao virar‐me, o quarto
estava deserto de presença humana, e em meu precipitado afã por alcançar a porta
esbarrei numa das esculturas. Automaticamente estirei a mão para estabilizá‐la, mas antes sequer de que pudesse aproximar‐me, a figura pareceu afastar‐se com um
estranho movimento rotativo, para depois retomar sua posição original após emitir um
suspiro quase humano. —O que acontece? — perguntou o cuidador, entrando no quarto. Colocou uma
grande bandeja sobre a mesinha frágil e, reparando em meu rosto, que devia de estar verde, insistiu em sua questão.
Respondi assinalando
a escultura.
—Há momentos em que sinto que essas monstruosidades têm vida própria e
me espiam — disse, e ao observar a expressão séria e chateada de seu rosto me
apressei em assegurar‐lhe que por “monstruosidade” não me referia à feiúra e sim ao
tamanho das peças. Após respirar profundamente repeti minha impressão de que
estavam vivas, o qual, depois de olhar furtivamente em torno dele, e com apenas um
fio de voz, o cuidador confirmou com seu “Têm vida”. Me senti tão incômoda que comecei a tagarelar acerca da tarde em que
descobri seu quarto, de como me senti atraída a ele por um inquietante murmúrio que
no fim era obra do vento empurrando a cortina através de uma janela quebrada.
—Sem dúvida
nesse
momento
achei
que
se
tratava
de
um
monstro
—
confessei
entre risinhos nervosos —, uma presença estranha alimentada pelas sombras do
crepúsculo. Fui objeto do olhar penetrante do cuidador, que mordeu seu lábio inferior e
depois deixou que esse olhar vagasse em torno do aposento antes de chegar a uma decisão.
—É melhor que nos sentemos à mesa antes que a comida se esfrie. —
ofereceu‐me uma cadeira, e assim que me sentei acrescentou em tom vibrante: —Tem
muita razão em chamá‐las presenças, pois não são esculturas, são invenções. Foram
concebidas segundo modelos vistos em outro mundo por um grande nagual.
—Por
Mariano
Aureliano?
—Não, por um nagual muito mais velho, chamado Elías.
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—E por que estão estas invenções em seu quarto? Esse grande nagual as fez para você?
—Não — respondeu —, eu só cuido delas — e pondo‐se de pé, tirou um lenço
branco de um bolso e começou a limpar com ele a invenção mais próxima. —Dado que
sou o cuidador, me corresponde cuidar delas. Algum dia, com a ajuda dos feiticeiros
que você
conheceu,
entregarei
estas
invenções
ao
lugar
onde
lhes
corresponde.
—E onde é isso? —O infinito, o cosmos, o vazio. —E como pretende levá‐las até lá? —Mediante o mesmo poder que as trouxe: o poder de ensonhar desperto. —Se você ensonha como ensonham estes feiticeiros — disse com cautela,
procurando evitar que minha voz adquirisse um tom triunfalista —, então você
também há de ser um feiticeiro. —Eu sou, mas não sou como eles. Sua ingênua admissão me confundiu.
—Qual é a diferença?
—Ah! — exclamou com ar sabichão. —Existe uma enorme diferença, que não
posso lhe explicar agora. Se o fizesse, te afetaria muito, e te poria mais triste que
nunca. No entanto chegará o dia em que o saberá sozinha, sem necessidade de que
alguém o revele a você. Senti em minha mente girar as rodas do esforço enquanto buscava algo novo
para dizer, alguma outra pergunta para fazer. —Pode me dizer como chegaram essas invenções ao poder do nagual Elías? —Ele as viu em seus ensonhos e as capturou. Algumas são cópias feitas por ele,
cópias de invenções que não pôde transportar. Outras são o produto verdadeiro;
invenções que
o nagual
trouxe
até
aqui.
Não lhe acreditei nem em uma só palavra, contudo não pude evitar outra pergunta.
—Por que o nagual Elías as trouxe? —Porque as próprias invenções lhe pediram. —E por quê? O cuidador me silenciou com um gesto de sua mão, e me instou a comer, e essa
renúncia a satisfazer minha curiosidade serviu como incentivo para meu interesse. Não
podia imaginar os motivos que lhe impediam de falar dos artefatos, quando era tão
hábil em matéria de respostas evasivas. Poderia ter me respondido a primeira coisa
que lhe
ocorresse.
Nem bem terminamos nossa refeição me pediu que tirasse sua cama do
armário, e conhecendo suas preferências, eu a armei em frente à porta francesa que
tinha uma cortina. Com um suspiro que demonstrava seu bem‐estar estendeu‐se nela, descansando a cabeça sobre uma pequena almofada presa num dos extremos. A
almofada havia sido recoberta com feijões secos e grãos de milho e, segundo ele, garantia‐lhe sonhos felizes.
—Já estou pronto para minha siesta (cochilo da tarde) — anunciou, enquanto
afrouxava sua cinta. Era sua maneira discreta de pedir‐me que me retirasse. Aborrecida por sua
negativa
de
falar
das
invenções,
empilhei
os
pratos
sobre
a
bandeja
e
abandonei
o
quarto, escoltada por seus roncos, que me seguiram até a própria cozinha.
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Essa noite me despertou os acordes de um violão. Automaticamente busquei a
lanterna que guardava junto à minha rede e consultei meu relógio: apenas passava da
meia‐noite. Enrolei‐me numa coberta e, na ponta dos pés, saí ao corredor que
conduzia ao pátio interior. Ali, sentado sobre uma cadeira de junco, um homem tocava o violão. Apesar de não poder ver seu rosto sabia que era o mesmo que Isidoro
Baltazar e eu
havíamos
visto
e escutado
na
ocasião
de
minha
primeira
visita.
Como
naquela oportunidade, parou de tocar assim que me viu, ficou de pé e entrou na casa. Assim que cheguei de volta ao meu quarto a música recomeçou, e estava a
ponto de dormir quando o escutei cantar com voz clara e firme. A melodia era uma invocação ao vento, um convite a cruzar milhas e milhas de silêncio e de vazio, e como
se fosse em resposta a essa convocação, o vento ganhou força, silvou através do
chaparral, arrancou as folhas secas das árvores e as depositou em montões contra as paredes da casa.
Num impulso abri a porta que dava ao pátio, e o vento se introduziu e encheu o
quarto de profunda tristeza; não a tristeza das lágrimas, e sim a da melancólica solidão
do deserto,
a poeira
e as
sombras
velhas.
O
vento
percorreu
o quarto
como
se
fosse
uma fumaça. Eu o aspirei com cada inalação, e o senti pesado nos pulmões, apesar do
qual cada profunda aspiração me fez sentir mais aliviada. Fui para fora, e deslizando‐me por entre os altos arbustos, cheguei à parte de
trás da casa cujas paredes caiadas captavam o brilho da lua, para refletí ‐lo sobre o
descampado, varrido pelo vento. Temendo ser vista corri de árvore em árvore, aproveitando as sombras para ocultar‐me, até chegar aos dois pés‐de‐laranja guardiões do caminho que levava à casa pequena. O vento me trouxe o rumor de
risinhos e vagas murmurações, e em sua procura, numa atitude decidida, me lancei pela trilha para só me acovardar ao chegar à porta da casinha escura. Tremendo, me
aproximei pouco
a pouco
da
janela
aberta.
Reconheci
as
vozes
de
Delia
e Florinda,
mas
a altura da janela me impediu de ver o que faziam. Escutei, à espera de algo profundo, de ser transportada a alguma revelação
transcendente capaz de me ajudar a resolver o porquê de minha presença ali, minha inabilidade para ensonhar, mas unicamente escutei fofocas, e me prendi de tal maneira a suas maliciosas insinuações que ri forte várias vezes, esquecendo de minha
situação. Inicialmente achei que falavam de terceiros, mas depois compreendi que
falavam das ensonhadoras, e que seus comentários mais insidiosos eram dirigidos a
Nélida. Disseram que até o momento, apesar dos anos transcorridos, não havia
conseguido desprender
‐se
da
atração
do
mundo.
Não
só
era
vaidosa,
pois
segundo
elas passava o dia inteiro em frente ao espelho, como também era impudica, já que
fazia todo o possível para ser sexualmente atrativa a fim de agarrar ao nagual Mariano
Aureliano, e uma vez até chegou a contar que era a única capaz de acomodar seu
enorme e intoxicante órgão. Depois foi a vez de Clara. A apelidaram de elefante pomposo, que se achava
encarregada de distribuir bênçãos a todos. O receptor de sua atenção era nesse
momento o nagual Isidoro Baltazar, e o prêmio, seu corpo desnudo, prêmio que o
nagual podia contemplar mas não possuir. Uma vez, de manhã e de novo à noite, presenteava‐lhe o espetáculo de sua nudez, convencida de que ao fazê‐lo se
assegurava
a
potência
sexual
do
novo
nagual.
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139
A terceira mulher de quem falaram foi Zuleica. Disseram que tinha aspirações de santa, de ser a Virgem Maria, e que sua assim chamada espiritualidade não passava de ser loucura. Periodicamente perdia o rumo, e em seus ataques de insânia lhe
ocorria por limpar a casa de ponta a ponta, as rochas do pátio e inclusive as dos terrenos vizinhos.
Depois Hermelinda,
a quem
descreveram
como
muito
sensata
e decorosa,
um
perfeito modelo dos valores da classe média. Assim como Nélida, era incapaz de cessar de ambicionar ser a mulher perfeita, a perfeita dona de casa. Apesar de não saber cozinhar, costurar, bordar ou tocar piano para entreter aos hóspedes, Hermelinda desejava ser conhecida — e isto o disseram entre acessos de risinhos debochados —
como o modelo de perfeição da casta feminina, assim como Nélida aspirava a ser o
paradigma da mulher libidinosa. Escutei uma voz lamentar‐se do fato de que ambas não combinassem seus
talentos, pois se o fizessem chegariam a constituir a mulher perfeita, capaz de agradar ao amo: perfeita na cozinha e na sala, quer seja vestindo avental ou traje de noite, e
perfeita na
cama,
com
as
pernas
abertas
quando
assim
o desejasse
seu
amo.
Quando se calaram voltei à casa, ao meu quarto e à minha rede, onde apesar de meus esforços não pude recuperar o sono. Sentia que algum tipo de cápsula protetora havia se arrebentado, destruindo o encanto e a felicidade de encontrar‐me
na casa das feiticeiras. Somente podia pensar em que, desta vez por escolha própria, me achava presa em Sonora com uma coleção de velhas loucas, cujo único
entretenimento era a fofoca, ao invés de estar me divertindo em Los Ângeles. Vim em busca de conselhos, e ao invés de achá‐los fui ignorada e reduzida à
companhia de um velho senil de quem suspeitava que fosse mulher, e quando chegou
a manhã e o momento de sentar‐me para comer com o velho cuidador, eu havia
levado meu
sentido
de
legítima
indignação
a tal
ponto
que
não
pude
comer
nada.
—O que se passa? — perguntou o velho, olhando‐me nos olhos, quando
normalmente evitava este tipo de contato direto. —Está sem apetite? Eu lhe devolvi um olhar venenoso, e abandonando todo intento de controlar‐
me, descarreguei minha raiva e frustração acumuladas. Enquanto o fazia prevaleceu
por um momento meu sentido de moderação: disse‐me que era injusto culpar ao
velho, que me havia tratado com todo carinho. Devia lhe estar agradecida, mas já não
podia me conter. Minhas pequenas queixas haviam adquirido vida própria, e minha
voz se fazia cada vez mais aguda à medida que exaltava e distorcia os fatos dos últimos dias. Com maliciosa satisfação, confessei ter escutado a conversa das mulheres.
—Elas não
têm
nenhuma
intenção
de
ajudar
‐me
—
assegurei.
—Não
fazem
outra coisa que falar mal das ensonhadoras, de quem disseram coisas horríveis. —O que as escutou dizer? Com gosto lhe relatei tudo, surpreendendo a mim mesma pela fidelidade com
que lembrei de cada um dos maliciosos comentários. —Obviamente falavam de você — declarou, nem bem havia finalizado minha
exposição. —Logicamente que em sentido figurado. — esperou que suas palavras ganhassem peso em mim, e antes que eu pudesse protestar, perguntou
inocentemente: —Não é você muitissimamente assim? —Como se atreve! — explodi —, e não me venha com essa merda psicológica.
Não
a
aceito
de
um
homem
educado,
menos
ainda
de
você,
peão
de
merda.
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140
Meu ataque súbito o pegou de surpresa. Abriu bem os olhos, e seus frágeis ombros se encolheram. Não senti nenhuma pena por ele, só lástima de mim mesma. Comunicar‐lhe o que ouvi havia sido uma perda de tempo. Estava a ponto de lhe dizer que ter feito essa longa e árdua viagem havia sido um erro da minha parte, quando me
olhou com tal desprezo que senti vergonha de minha explosão.
—Se controlar
seu
gênio
se
dará
conta
de
que
nada
do
que
fazem
estes
feiticeiros é para entreter‐se ou para impressionar a alguém, ou dar livre vazão às suas compulsões. Tudo o que fazem ou dizem tem uma razão, um propósito — e me olhou
com tal frieza que senti vontade de me afastar. —Não vá pensando que está aqui de
férias — insistiu. —Para estes feiticeiros as férias não existem. —Por que me disse isto? — perguntei irritada. —E não fique dando voltas. Diga. —Não vejo como posso dizê‐lo mais claramente — respondeu. Sua voz era
enganosamente suave, carregada de uma intenção cujo alcance eu não conseguia decifrar. —As bruxas já te disseram de noite o que você é. Usaram as quatro mulheres do planeta das ensonhadoras como fachada para descrever você, para fazer saber, a
quem estava
escondida
atrás
da
janela,
o que
é:
uma
puta
com
delírios
de
grandeza.
Foi tal o impacto que fiquei momentaneamente aturdida. Depois a fúria, quente como lava, tomou posse de meu corpo.
—Miserável, insignificante pedaço de merda — gritei‐lhe, chutando‐o na virilha. Não havia chegado meu chute ao alvo e já me deparava com a imagem do pequeno
bastardo retorcendo‐se no chão de dor, e contudo o destino de meu chute acabou
sendo o ar. Com a velocidade de um boxeador ele o havia evitado. Sorriu com a boca, mas não com os olhos, que, frios e inexpressivos,
contemplaram minhas investidas e lamentos. —Está fazendo ao nagual Isidoro Baltazar vítima de tudo o que disseram as
bruxas. Treinaram
você
para
isso.
Pense
nisso,
e não
se
limite
apenas
em
irritar
‐se.
Abri a boca para dizer algo, mas não emiti som. Não eram tanto suas palavras que me deixaram sem fala, e sim seu tom indiferente, gelado e demolidor. Teria
preferido que me gritasse, já que assim saberia como reagir: teria gritado mais forte. Não tinha sentido enfrentá‐lo, disse a mim mesma. Não tinha razão. Era
simplesmente um velhinho senil com uma língua de víbora. Não, decidi, não me
irritaria com ele, mas tampouco o levaria a sério. —Espero que não vá começar a chorar — me advertiu, ainda antes que me
recobrasse. Decidi não exteriorizar minha raiva, contudo não pude evitar que enrubescesse
o rosto
quando
mencionei
que
nem
pensava
fazê
‐lo,
e que
dada
sua
condição
de
pobre servente, merecia ser açoitado por sua impertinência; mas seu olhar duro me
aplacou, e finalmente, persistindo em seu trato cortês mas inexpressivo, conseguiu me
convencer de que devia desculpar‐me. —Eu sinto muito — e na verdade o sentia —, meu mau gênio e maus modos
sempre terminam por vencer‐me. —Eu sei, todos me advertiram a seu respeito — disse muito sério, mas em
seguida seu sorriso reapareceu quando me convidou a comer. Sentia‐me incomodada durante a refeição. Mastigando com lentidão o observei
sub‐repticiamente, e constatei que apesar de não se esforçar por mostrar‐se amável
sua
raiva
havia
desaparecido.
Tentei
sem
êxito
consolar‐
me
com
esse
pensamento,
e
percebi que sua falta de interesse em mim não era algo deliberado nem estudado. Não
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141
me castigava, pois nada do que foi dito ou feito por mim podia afetá‐lo. Terminei minha comida, e disse a primeira coisa que me ocorreu com uma segurança que não
deixou de me assombrar. —Você não é o cuidador. Reapareceu seu sorriso quando perguntou:
—E quem
acha
que
sou?
Esse sorriso me fez abandonar toda precaução, e com um tremendo descaro e, naturalmente com intenção de insulto, disse‐lhe que era uma mulher: Esperanza. O
fato de ter‐me descarregado dessa suspeita me trouxe alívio. Suspirei e completei: —Por isso somente você tem espelho. Quer seja como mulher ou como
homem, precisa soar convincente. —O ar de Sonora deve ter lhe afetado. É bem sabido que o ar rarefeito do
deserto afeta às pessoas de maneira peculiar — e agarrou meu pulso quando
acrescentou: —Ou talvez seja normal em você ser mesquinha e chata, e dizer o que lhe
convém com ar de absoluta autoridade.
Em seguida
mudou
de
atitude,
e rindo
me
propôs
compartilhar
sua
siesta.
—Nos fará muito bem. Ambos somos chatos. —De modo que assim são as coisas — acusei, não muito segura de se devia me
ofender ou rir. —Quer dormir comigo, é? Esperanza já me havia advertido disto. —E por que razão se opõe a sestear comigo se acha que sou Esperanza? —
perguntou, acariciando minha nuca com uma mão tíbia e apaziguante. Minha defesa foi frágil. —Não me oponho. Acontece que odeio as siestas. Nunca durmo a siesta, e me
disseram que até quando era criança as odiava. — me defendi falando com rapidez, gaguejando, repetindo palavras. Desejava abandonar o quarto, mas a leve pressão de
sua mão
sobre
minha
nuca
me
impedia
disso.
—Sei
que
é Esperanza
—
repeti.
—
Reconheço esse tato. Possui o mesmo efeito sedante que o seu. — senti que minha cabeça se bamboleava e que meus olhos se fechavam contra minha vontade.
—Assim é — concordou. —Te fará bem recostar‐se mesmo que não seja mais que por uns minutos — e interpretando meu silêncio como sinal de aceitação, tirou do
armário sua cama dobrável e um par de mantas, uma das quais me cedeu. Continuaram as surpresas. Sem saber por que, e sem protestar, me deitei, e
através das pálpebras entreabertas o observei estirar‐se até fazer estalar cada uma de
suas articulações, tirar as botas, desajustar a cinta e encostar‐se ao meu lado. Já
coberto pela manta se desfez de suas calças, que depositou no chão junto às suas
botas, depois
do
qual
levantou
a manta
e se
mostrou.
Roxa
de
vergonha,
comprovei
que seu corpo desnudo, igual ao de Esperanza, era a antítese do imaginado. Era um
corpo flexível, imberbe e limpo; delicado como um junco, mas por sua vez musculoso
e, definitivamente masculino e jovem! Não me parei para pensar. Prendendo a
respiração levantei cautelosamente minha própria manta. Um risinho feminino me fez fechar os olhos e fazer de conta que dormia, mas
me aquietou o saber que quem se ria não entraria no quarto. Apoiei a cabeça em meus braços, e me absorveu a sensação de que o cuidador e os risinhos haviam
restabelecido um equilíbrio, e recriado em torno de mim a borbulha mágica. Não sabia com exatidão qual significado lhe dava a isto, mas sim que quanto mais meu corpo se
relaxava
mais
me
aproximava
a
uma
resposta.
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142
CAPÍTULO CATORZE
Do meu regresso da casa das feiticeiras já não necessitei ser persuadida ou
animada. As mulheres haviam conseguido infundir‐me uma estranha coerência, uma certa estabilidade emocional como nunca antes possuí. Não me converti da noite para
o dia
em
outra
pessoa,
mas
minha
existência
adquiriu
um
propósito
definitivo,
meu
destino estava traçado: devia lutar para livrar minha energia. Simples assim. Porém não podia recordar, quer fosse clara ou mesmo vagamente, tudo o que
aconteceu nos três meses transcorridos nessa casa. Tal tarefa me demandou anos de
esforço e determinação. Contudo, o nagual Isidoro Baltazar me advertiu acerca da
falácia das metas definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que
careciam de valor, pois o verdadeiro cenário de um feiticeiro é a vida cotidiana, e ali as motivações conscientes superficiais não aguentam as pressões.
As feiticeiras haviam expressado mais ou menos o mesmo, só que de um modo
mais harmonioso. Explicaram que dado que as mulheres estão habituadas a serem
manipuladas, elas
acediam
com
facilidade,
e que
suas
conformidades
eram
simplesmente ocas adaptações à pressão. Mas de ser na verdade factível convencer à
mulher da necessidade de mudar seus hábitos, então metade da batalha estava ganha; ainda sem sua conformidade, seu êxito é infinitamente mais durável que o dos homens.
Podia optar entre as duas opiniões, ambas a meu ver acertadas. De tanto em
tanto, todas as razões fundamentais da feitiçaria que eu havia aprendido sucumbiam
sob a pressão do mundo diário, mas minha entrega ao mundo dos feiticeiros nunca foi posta no tapete da dúvida.
Pouco a pouco comecei a adquirir a energia necessária para ensonhar, o que
significava que
por
fim
havia
compreendido
o que
me
disseram
as
mulheres:
Isidoro
Baltazar era o novo nagual, e havia deixado de ser um homem. Compreender isto me
deu suficiente energia para regressar periodicamente à casa das feiticeiras. Essa casa era propriedade de todos os pertencentes ao grupo de Mariano
Aureliano, grande e encorpada vista de fora, mas indistinguível de outras; apenas visível, apesar da exuberante primavera florida que pendia sobre o muro que
circundava a propriedade. A razão pela qual as pessoas passavam sem vê‐la, diziam os feiticeiros, residia na tênue névoa que a cobria, delicada como um véu, visível ao olho, porém impossível de perceber para a mente.
Não obstante, uma vez dentro da casa, tinha‐se a aguda sensação de ter
ingressado em
outro
mundo.
Os
três
pátios,
sombreados
por
árvores
frutíferas,
conferiam uma luz de ensonho aos escuros corredores e aos muitos aposentos que se
abriam sobre eles, e impressionavam os pisos de tijolos e lajotas, com seus intrincados desenhos.
Não era um lugar cálido, mas sim acolhedor, e de nenhuma maneira um lar, dada sua onipresente personalidade e sua implacável austeridade. Era o lugar onde o
velho nagual Mariano Aureliano e seus feiticeiros concebiam seus ensonhos e
realizavam seus propósitos, e dado que suas inquietudes nada tinham a ver com o
mundo cotidiano, essa casa era o reflexo de suas preocupações não humanas, e
refletia a autêntica medida de sua individualidade, não como pessoas, mas como
feiticeiros.
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143
Nessa casa me relacionei e lidei com todas as feiticeiras do grupo do nagual Mariano Aureliano, que não me ensinaram feitiçaria, nem sequer a ensonhar. Segundo
elas, não havia nada para ensinar. Disseram que minha tarefa era recordar de tudo o
que aconteceu entre elas e eu durante esses momentos iniciais de nossa convivência, em especial tudo o que Zuleica e Florinda me fizeram ou disseram, mas Zuleica nunca
me havia
dirigido
a palavra.
Quando tentava pedir‐lhes ajuda recusavam fazê‐lo. Seu argumento era que
sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham
de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois de um tempo abandonei toda tentativa de indagá‐las, e me dediquei a
desfrutar de sua presença e de sua companhia. Cheguei assim a aceitar sua razão para
não querer jogar nosso jogo intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela
verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.
Não obstante,
graças
a essa
diária
inter
‐relação,
cheguei
a compreender
muitas
coisas acerca de seu mundo. As ensonhadoras e as espreitadoras representavam duas formas de comportamento entre mulheres, muito distintas entre si. Inicialmente me
perguntei se o grupo que me havia sido descrito como ensonhadoras: Nélida, Hermelinda e Clara, eram na realidade as espreitadoras pois, até onde eu podia
determinar, minha relação com elas era sobre uma base estritamente mundana e
superficial. Somente mais tarde pude dar‐me conta de que sua mera presença provocava em mim uma nova maneira de comportamento. Com elas não necessitava reafirmar‐me. De minha parte não existiam dúvidas nem perguntas. Possuíam a
singular habilidade de fazer‐me ver, sem necessidade de verbalizá‐lo, o absurdo de
minha existência,
apesar
do
qual
não
achava
necessário
defender
‐me.
Talvez fosse esta ausência de esforço o que me levou a aceitá‐las sem
resistência, e não levei muito tempo para dar‐me conta de que as ensonhadoras, ao
tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o modelo necessário para recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou ganhar a vida. Disseram‐me
que essas tarefas deviam fazer‐se com distintos auspícios, não como tarefas mundanas, e sim como esforços artísticos, todos de igual importância.
Sobretudo foi sua mutua inter‐relação, e sua relação com as espreitadoras, o
que me deu a pauta do quão especial eram. Em seu trato habitual careciam de falhas
humanas. Seu
sentido
de
dever
coexistia
facilmente
com
suas
características
individuais, fossem estas o mau gênio, a irritabilidade, grosseria, loucura ou doçura excessiva. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu experimentava a
rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia do “eu”.
Na casa delas conheci a Vicente e Silvio Manuel, os outros dois feiticeiros do
grupo de Mariano Aureliano. Vicente era obviamente de origem espanhola, e soube
que seus pais eram oriundos da Catalunha. Era magro, de aspecto aristocrático, com
mãos e pés que davam uma errônea impressão de fragilidade. Andava sempre em
alpargatas, e preferia blusas de pijamas (pendiam abertas sobre suas calças caqui) a
camisas.
Suas
bochechas
eram
rosadas
apesar
de
sua
palidez.
Ostentava
uma
barbinha
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144
que cuidava com esmero, a qual lhe conferia um toque de distinção a seu porte
abstraído. Não só parecia, como era de fato um erudito; os livros no quarto que eu
ocupava eram seus, ou melhor, era ele quem os colecionava, lia e cuidava. O atraente de sua erudição (sabia de tudo) era que se portava como se fosse um perpétuo
aprendiz. Eu
tinha
a certeza
de
que
não
era
assim,
pois
era
óbvio
que
sabia
mais
que
os
outros, e seu espírito generoso o levava a compartilhar seus conhecimentos com
magnífica naturalidade e humildade, já que jamais envergonhava a terceiros por saber menos que ele.
Silvio Manuel era de média estatura, corpulento, sem pelos e moreno. Um
índio sinistro e misterioso, perfeito exemplo da imagem que eu me havia formado do
que deveria ser um bruxo. Sua aparente taciturnidade me assustava, e suas lacônicas respostas revelavam o que eu suspeitava ser uma natureza violenta. Somente ao
conhecê‐lo melhor compreendi o muito que gozava cultivando essa imagem. Acabou
se mostrando ser o mais aberto e, para mim, o mais encantador de todos os feiticeiros.
As intrigas
e os
segredos
eram
sua
paixão,
fossem
ou
não
autênticos,
e era
a maneira
em que os contava o que, para mim e para todos, não tinha preço. Além disso, possuía um inextinguível repertório de piadas, a maioria delas pesadas, sujas. Era o único que
se divertia vendo TV, e portanto sempre estava em dia com as notícias do mundo, as quais transmitia aos outros, grosseiramente exageradas e temperadas com uma
grande dose de malícia. Silvio Manuel era um excelente bailarino, e era legendária sua habilidade e seus
conhecimentos das várias danças sagradas indígenas. Se movia com extático
abandono, e com frequência me pedia que dançasse com ele. Fosse a dança um joropo
venezuelano, uma cumbia, um samba, um tango, o twist, rock and roll ou um bolero
dos que
se
dançam
de
rosto
colado,
conhecia
a todas.
Também interagi com John, o índio que me apresentou o nagual Mariano
Aureliano em Tucson, Arizona. Seu aspecto rotundo, inalterável e jovial não era outra coisa que uma fachada, pois era o menos abordável dos feiticeiros. Conduzindo sua
camionete se encarregava dos recados de todos, e também reparava o que precisava ser consertado dentro e ao redor da casa.
Se me mantinha em silêncio, não o incomodando com perguntas e
comentários, John me permitia acompanhá‐lo em suas viagens, e me ensinava a
consertar coisas: banheiros, torneiras e máquinas de lavar roupas, e também como
reparar uma placa, comutadores elétricos, e lubrificar e mudar as velas de meu
automóvel. Ensinada
por
ele,
o uso
de
martelos,
chaves
‐de
‐fenda
e serras
se
converteu
em tarefa fácil para mim. A única coisa em que não me ajudaram foi em responder às minhas perguntas e
averiguações acerca de seu mundo, e quando intentava comprometê‐los se referiam
ao nagual Isidoro Baltazar. Sua recusa usual era: “Ele é o novo nagual, e é missão dele
lidar com você. Nós somos meramente seus tios e tias”. Inicialmente o nagual Isidoro Baltazar representava para mim algo mais que um
mistério. Não tinha bem claro onde residia, pois indiferente a horários e rotinas, aparecia e desaparecia do estúdio a toda hora. O dia e a noite lhe eram indiferentes. Dormia quando estava cansado, quase nunca, e comia quando tinha fome, quase
sempre.
Em
meio
às
suas
frenéticas
idas
e
vindas
trabalhava
com
uma
concentração
na
verdade assombrosa, sendo sua capacidade para esticar ou comprimir o tempo
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incompreensível para mim. Tinha a certeza de ter passado horas, e até dias inteiros com ele, quando na realidade poderiam ter sido só momentos, furtados aqui e ali, seja lá durante o dia ou a noite, ou a outras de suas desconhecidas atividades.
Sempre me considerei uma pessoa ativa, cheia de energia, mas descobri que
me era impossível manter‐me a par de seu ritmo. Vivia em permanente movimento —
ou assim
parecia
—,
ágil
e ativo,
sempre
pronto
para
encarar
algum
projeto.
Seu
vigor
era permanente e francamente incrível. Muito tempo depois cheguei a compreender que a fonte da inesgotável energia
de Isidoro Baltazar residia em sua falta de preocupação por si mesmo, e foi seu
permanente apoio, suas imperceptíveis e por sua vez hábeis maquinações, as que me
mantiveram na senda correta. Residia nele uma alegria, um gozo em sua sutil e
contudo poderosa influência, que me levou a mudar sem que eu notasse que estava sendo conduzida por um novo caminho, um caminho em que já não valiam os jogos, os pretextos ou o uso de minhas argúcias femininas para conseguir meus propósitos.
O que tornou tão urgente sua guia e conselhos era o fato de que não o
abrigavam motivos
ulteriores.
Não
era
possessivo,
e sua
diretiva
não
se
via
adulterada
por promessas ou atos de sentimentalismo. Não me empurrou em nenhuma direção
precisa, ou seja, não me aconselhou a respeito do rumo a se tomar ou aos livros que
devia ler. Nisso tive caminho livre. Somente impôs uma condição: eu devia trabalhar exclusivamente em favor do
edificante e agradável processo de pensamento. Uma proposta estremecedora! Eu
nunca havia entrevisto o pensar nesses ou em outros termos, e apesar de que não me
desagradava estudar, jamais havia considerado as tarefas escolares como algo
prazeroso, e sim como algo que eu era obrigada a fazer, no geral às pressas e
empregando nele um mínimo de esforço.
Não pude
evitar
o estar
de
acordo
com
o que
Florinda
e seus
companheiros,
tão sem delicadeza, me haviam dito na ocasião de nosso primeiro encontro: que eu
havia ido ao colégio não para aprender, e sim para divertir‐me, e o fato de ter‐me
distinguido obedecia mais a uma questão de sorte e loquacidade do que por ter estudado. Eu possuía uma memória bastante boa, sabia falar, e sabia convencer a
terceiros. Uma vez superada a vergonha inicial de ver‐me forçada a aceitar e admitir
minhas limitações intelectuais, e que só sabia pensar de maneira superficial, me senti aliviada, pronta para colocar‐me sob a tutela dos feiticeiros e seguir o plano de estudos de Isidoro Baltazar. Me desiludiu descobrir que tal plano não existia, e que sua única
insistência era
que
eu
deixasse
de
estudar
e ler
ao
ar
livre,
como
era
meu
costume.
Isidoro Baltazar sustentava que o processo de pensar era um rito privado, quase
secreto, que não podia realizar‐se em público. Comparou esse processo ao da
levedura, que só fermenta dentro de um recinto fechado. “O melhor lugar para compreender algo é naturalmente a cama”, me disse
certa vez. Se estirou na sua, reclinou a cabeça contra várias almofadas, e cruzou sua
perna direita sobre a esquerda, descansando o tornozelo sobre o joelho elevado de
sua perna esquerda. Não me impressionou essa absurda posição para a leitura, mas a
pratiquei sempre que estava só. Me fazia cair num profundo sono, e dada minha sensibilidade e até minhas tendências à insônia, gozava mais com o sono que com o
conhecimento.
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Às vezes, no entanto, sentia como se umas mãos se enroscassem ao redor de
minha cabeça, pressionando suavemente minhas têmporas. Então automaticamente olhava a página aberta ainda antes de ter consciência do que estava fazendo, e
captava parágrafos inteiros do papel, cujas palavras bailavam ante meus olhos até
fazer que conjuntos de conhecimento explodissem dentro de meu cérebro
semelhantes a revelações.
Ansiosa por desenterrar esta nova possibilidade que se abria diante de mim, insisti nela como se me impulsionasse um professor desapiedado, e houve momentos em que este esforço me esgotou tanto física como mentalmente. Nesses momentos perguntava a Isidoro Baltazar acerca do conhecimento intuitivo, esse brilho de
percepção interior e de compreensão que se supõe cultivam os feiticeiros com
preferência a todos os demais. Nesses momentos costumava dizer‐me que conhecer algo somente de maneira
intuitiva não tem valor algum. Essas centelhas de percepção interna, que comparava com visões de fenômenos inexplicáveis, precisam ser transformadas em pensamentos
coerentes. Tanto
um
como
outro
se
desfazem
tão
rápido
como
surgem,
e se
não
são
reforçados continuamente sobrevêm à dúvida e o esquecimento, pois a mente é
condicionada para ser prática e aceitar unicamente o verificável e factível. Explicou que os feiticeiros são homens de conhecimento antes que homens de
razão, e como tal estão adiantados em relação aos intelectuais do Ocidente, que
assumem que a realidade (frequentemente equiparada com a verdade) se conhece através da razão. Um feiticeiro mantém que a única coisa que se pode conhecer mediante a razão são nossos processos de pensamento, mas que é só mediante o ato
de compreender nosso ser total, em seu nível mais sofisticado e intrincado, que
poderemos apagar os limites com os quais a razão define a realidade.
Isidoro Baltazar
me
explicou
que
os
feiticeiros
cultivam
a totalidade
de
seu
ser,
ou seja, que não necessariamente fazem uma distinção entre os aspectos racionais e
intuitivos do homem. Utilizam ambos para chegar ao reino da consciência, que
chamam de “conhecimento silencioso”, o qual existe mais além da linguagem e mais além do pensamento.
Uma e outra vez, Isidoro Baltazar ressaltou que para que alguém possa silenciar seu lado racional, primeiro deve compreender os processos do pensamento em seu
nível mais sofisticado e complexo. Acreditava que a filosofia, começando com o
pensamento clássico grego, forneceu a melhor maneira de iluminar este processo. Nunca se cansava de repetir que, seja como eruditos ou como leigos, somos membros
e herdeiros
da
tradição
cultural
do
Ocidente,
significando
que,
independente
de
nosso
nível de educação e sofisticação, somos prisioneiros dessa tradição e de sua maneira de interpretar a realidade.
Isidoro Baltazar sustentava que somente de maneira superficial estamos dispostos a aceitar que aquilo que chamamos de realidade é algo culturalmente determinado, e o que precisamos é aceitar, ao nível mais profundo possível, que a
cultura é o produto de um processo longo, cooperativo, altamente seletivo e
desenvolvido, e por último, mas para ele não menos importante, altamente coercitivo, que culmina num acordo que nos desvia e nos afasta de outras possibilidades. Os feiticeiros procuram, de forma ativa, desmascarar o fato de que a realidade é ditada e
mantida
por
nossa
razão:
que
as
idéias
e
os
pensamentos
surgidos
da
razão
se
convertem em regimes de conhecimento que ordenam a forma como vemos e
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atuamos no mundo; e que todos estamos sujeitos à uma incrível pressão para
assegurar que certas ideologias nos sejam aceitáveis. Ressaltou que os feiticeiros estão interessados em perceber o mundo de
maneira diferente ao culturalmente definido, e o culturalmente definido é que nossa experiência pessoal, mais um acordo social compartilhado acerca do que nossos
sentidos são
capazes
de
perceber,
determinam
o que
percebemos.
Qualquer
coisa
fora
deste reino perceptual, sensorialmente convencionado, é automaticamente encapsulado e posto de lado pela mente racional, e desta maneira nunca se danifica o
frágil manto das presunções humanas. Os feiticeiros ensinam que a percepção ocorre em um lugar fora do reino
sensorial; sabem que existe algo mais vasto que o que nossos sentidos podem captar. Dizem que a percepção tem lugar em um ponto fora de nosso corpo, fora dos sentidos, mas não é suficiente acreditar meramente nesta premissa. Não é apenas questão de
ler acerca disso, ou escutá‐lo da boca de terceiros. Para transformá‐lo em algo
corpóreo, a pessoa precisa tê‐lo experimentado.
Isidoro Baltazar
disse
que
os
feiticeiros
lutam
ativamente
durante
todas
suas
vidas para quebrar esse débil manto das presunções humanas. Contudo, não
mergulham cegamente na escuridão. Estão preparados; sabem que quando se lançam
ao desconhecido necessitam dispor de uma bagagem racional bem desenvolvida. Somente então poderão explicar e dar sentido ao que trouxerem de volta de suas viagens ao ignoto.
Acrescentou que eu não devia entender a feitiçaria através da leitura dos filósofos, e sim compreender que tanto a filosofia como a feitiçaria são formas altamente sofisticadas de conhecimento abstrato. Tanto para o feiticeiro como para o
filósofo a verdade de nosso ser‐no‐mundo não permanece impensada. Não obstante, o
feiticeiro vai
um
passo
além:
atua
à base
de
seus
achados
que
já
estão,
por
definição,
fora de nossas possibilidades culturalmente aceitadas. Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar
disso, suas buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos somente podem atuar no mundo que tão bem entendem e explicam da maneira cultural já concordada. Eles se somam a um já existente corpo de conhecimento. Interpretam e reinterpretam textos filosóficos. Novos pensamentos e idéias resultantes deste intenso estudo não os mudam exceto, talvez, num sentido
psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou
talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam filosoficamente mudará sua
percepção sensorial
do
mundo,
pois
os
filósofos
trabalham
de
dentro
da
ordem
social,
à qual apóiam, ainda que intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados.
Os feiticeiros também constroem sobre um já existente conjunto de
conhecimento. Contudo, não o fazem aceitando o já provado e estabelecido por outros feiticeiros. Devem provar de novo a si mesmos que aquilo que já se dá por aceitado na verdade existe, e se submete à percepção. Para conseguir cumprir esta
tarefa monumental, precisam de uma extraordinária capacidade de energia, a qual obtêm apartando‐se da ordem social sem retirar‐se do mundo. Os feiticeiros rompem
a convenção que tem definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo.
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CAPÍTULO QUINZE
A incerteza se apoderou de mim pouco antes de cruzar a fronteira em Mexicali. Minha justificativa para ir ao México com Isidoro Baltazar, que a princípio se me
pareceu brilhante, agora só parecia uma pálida desculpa para forçá‐lo a levar‐me. Já
abrigava dúvidas
sobre
se
poderia
ler
teorias
sociológicas
na
casa
das
feiticeiras,
tal
como disse que faria. Sabia que lá me dedicaria a fazer exatamente o mesmo que em
todas as ocasiões anteriores: dormir muito, ensonhar ensonhos estranhos, e tentar desesperadamente decifrar o que as pessoas desse mundo pretendiam que eu fizesse.
—Algum remorso? — perguntou Isidoro Baltazar, surpreendendo e fazendo‐me
saltar. Olhava‐me de soslaio, e provavelmente havia me estado observando por um
longo período. —Mas é claro que não — respondi de maneira apressada, na dúvida de se ele
se referia a meu estado geral ou a meu silêncio. Murmurei algumas tolices acerca do
calor, para depois dedicar‐me a olhar pela janela.
Não voltei
a abrir
a boca,
principalmente
porque
sentia
medo
e me
encontrava
triste, e porque a ansiedade me eriçava a pele como se um punhado de formigas estivesse caminhando em mim. Isidoro Baltazar, por sua parte, se encontrava de muito
bom humor; cantou e contou piadas bobas, recitou poemas em inglês, castelhano e
português, mas nem isso nem seus suculentos comentários acerca de pessoas que
ambos conhecíamos na universidade conseguiram dissipar minha melancolia. O fato
de não constituir eu um público apreciativo não influiu nele, e nem sequer meus gritos exigindo que me deixasse em paz conseguiram aplacar sua euforia.
—Se alguém estivesse nos observando, juraria que estamos casados há anos —
comentou em meio às suas gargalhadas, enquanto eu pensava que se fossem
feiticeiros que
nos
observavam,
diriam
que
algo
não
andava
bem.
Saberiam
que
Isidoro Baltazar e eu não estávamos em plano de igualdade. Eu sou precisa e
categórica a respeito de meus atos e decisões, enquanto que para ele atos e decisões são coisas fluidas, seja qual for seu resultado, e sua finalidade está medida pela plena responsabilidade que assume por eles, quer sejam triviais ou significativos.
Viajamos rumo ao sul e não nos distraímos em inúteis meandros como
costumávamos fazer para chegar à casa das feiticeiras. Quando deixamos Guaymas para trás — nunca havíamos estado tão ao sul — perguntei‐lhe para onde me levava.
Respondeu como ao acaso. —Estamos seguindo o caminho longo. Não se preocupe. — A mesma resposta
me deu
quando
repeti
minha
pergunta
enquanto
comíamos
em
Navojoa.
Deixamos para trás Navojoa e seguimos em direção ao sul, rumo a Mazatlán. Minha preocupação era crescente. Cerca de meia‐noite Isidoro Baltazar abandonou a
estrada internacional para enfiar‐se num estreito caminho de terra, cujos buracos e
pedras fizeram que a perua se bamboleasse e rangesse sua carroceria. Às nossas costas a estrada principal, visível uns instantes graças ao débil reflexo das luzes traseiras, desapareceu tragada pelos arbustos que a flanqueavam. Depois de uma longuíssima e incômoda viagem fizemos uma parada repentina, e Isidoro Baltazar apagou os faróis.
—Onde estamos? — perguntei, olhando em torno sem distinguir nada.
Logo
meus
olhos
se
habituaram
à
escuridão,
e
vi
pequenos
pontos
brancos
em
frente a nós e a curta distância. Pareciam pequenas estrelas caídas do céu. A
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exuberante fragrância das matas de jasmim, que trepavam ao alto e caíam sobre a
ramada, se havia apagado a tal ponto de minha mente, que quando a reconheci senti como se tivesse inalado esse ar perfumado só em um sonho anterior. Comecei a rir, pois tudo me brindava uma alegria quase infantil. Estávamos na casa de Esperanza. “É
aqui onde vim pela primeira vez com Delia Flores”, disse a mim mesma, e de imediato
busquei a mão
de
Isidoro
Baltazar
a quem
perguntei,
dominada
pela
ansiedade:
—Mas, como pode ser possível…? Sua resposta revelava um estado de confusão e agitação, e sua mão, sempre
cálida, estava fria. —O que? —Esta casa estava nos arredores de Ciudad Obregón, há mais de cem milhas ao
norte — gritei. —Eu mesma conduzi meu carro até aqui, e nunca abandonei o caminho
asfaltado. — Olhei em torno e recordei que também havia viajado desde lá até Tucson, e jamais havia estado perto de Navojoa em minha vida.
Isidoro Baltazar guardou silêncio durante uns minutos: parecia estar buscando
uma resposta.
Eu
sabia
que
nenhuma
me
seria
satisfatória.
Encolhendo
‐se
de
ombros
virou‐se para mim, e com uma energia semelhante à do nagual Mariano Aureliano
opinou que sem dúvida alguma eu ensonhava desperta quando, junto com Delia, deixamos Hermosillo rumo à casa da curandeira.
—Sugiro que o deixe assim — foi seu conselho. —Sei por experiência pessoal como pode chegar a confundir‐se a mente quando busca explicar o inexplicável.
Eu estava a ponto de protestar quando ele me cortou, assinalando uma luz que
se aproximava, e sorriu como se soubesse de antemão a quem pertencia a enorme
sombra que se aproximava bamboleando‐se. —É o cuidador — murmurei surpreendida, e quando o tive ante mim lhe rodeei
o pescoço
com
os
braços
e o beijei
em
ambas
as
bochechas.
—Não
esperava
encontrar
você aqui. Sorriu envergonhado, sem responder. Abraçou a Isidoro Baltazar, palmeando‐
lhe repetidas vezes as costas como fazem os homens latinos ao saudarem‐se, murmurando algo que apesar de meus esforços não consegui entender. Depois nos conduziu até a casa.
Encontramos a imponente porta principal fechada, assim como as janelas entreliçadas. Nenhuma luz, nenhum som escapava das grossas paredes. Rodeamos a
casa até alcançar o pátio traseiro, cercado por uma alta grade, e à porta que conduzia a um quarto retangular, o mesmo ao qual me havia levado Delia Flores, tão
espartanamente mobiliado
como
então:
cama
estreita,
mesa
e várias
cadeiras.
Tranquilizou‐me reconhecer suas quatro portas. O cuidador colocou a lamparina sobre a mesa e me convidou a tomar assento:
virando‐se até Isidoro Baltazar lhe rodeou os ombros com seu braço e o conduziu ao
escuro corredor. A repentina partida me aturdiu, mas antes que conseguisse me repor da surpresa o cuidador reapareceu, trazendo uma manta, uma almofada, uma lanterna e um pinico (urinol).
—Prefiro usar o toalete — anunciei. Se encolheu de ombros e empurrou o pinico sob a cama. —Para se precisar dele durante a noite — e com esse olhar travesso que eu
bem
conhecia,
acrescentou
que
lá
fora
montava
guarda
o
cachorrão
negro
de
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Esperanza. —Ele não gosta que gente desconhecida ande por aí de noite — e como por combinação se ouviu um forte latido.
—Não sou uma desconhecida, conheço o cão — retruquei, ao que o cuidador por sua vez respondeu com outra pergunta.
—E o cachorro, conhece você?
Lancei‐lhe
um
de
meus
piores
olhares,
e o cuidador,
emitindo
um
suspiro,
recolheu a lamparina e se dirigiu para a porta. —Não leve a luz — ordenei, bloqueando sua passagem. Tentei sorrir, mas meus
lábios ficaram grudados em meus dentes. Finalmente pude perguntar: —Onde estão
todos? Onde estão Esperanza e Florinda? —Neste momento sou o único que se encontra aqui. —Onde está Isidoro Baltazar? — insisti alarmadíssima. —Prometeu levar‐me à
casa das feiticeiras. Tenho que trabalhar em um ensaio — e confundida quanto a meus pensamentos e minhas palavras, próxima das lágrimas, revelei a ele minhas razões para acompanhar a Isidoro Baltazar em sua viagem ao México, e o importante que era
para mim
terminar
meu
trabalho.
O cuidador palmeou minhas costas e fez ruídos semelhantes aos usados para se
acalmar a um bebê. —Isidoro Baltazar está dormindo. Você sabe como é: assim que sua cabeça toca
o travesseiro ele está roncando — e completou —, deixarei minha porta aberta para se
precisar de mim, para se tiver pesadelos ou algo parecido. Chame‐me e virei de
imediato. — e antes que eu pudesse dizer‐lhe que desde minha chegada à Sonora os pesadelos eram coisas do passado, a escuridão do corredor o engoliu.
A lamparina de azeite sobre a mesa começou a falhar e logo se apagou, deixando o quarto às escuras. Deitei‐me totalmente vestida, e fechei os olhos. Tudo
ficou em
silêncio,
salvo
um
respirar
suave
e entrecortado
que
vinha
de
muito
longe,
e devido a esse ruído e à dureza de minha cama, logo abandonei todo intento de dormir.
Com a lanterna na mão me arrastei em silêncio pelo corredor, esperando
encontrar o cuidador ou Isidoro Baltazar. Com toques suaves bati em cada uma das portas. Ninguém respondeu. Silêncio absoluto em cada um dos aposentos. Essa
mesma quietude, quase opressiva, dominava o resto da casa, e até cessaram os sussurros e gorjeios do exterior.
Tal como suspeitava, tinha ficado outra vez sozinha, mas em lugar de
preocupar‐me por isso, decidi inspecionar os diferentes quartos. Eram oito os dormitórios, do mesmo tamanho e disposição: retangulares, de médio a pequenos, e
mobiliados somente
com
uma
cama
e uma
mesa
de
noite.
As
paredes
e as
duas
janelas
das quais cada quarto dispunha estavam pintadas de branco, e as lajotas do piso
ostentavam um intrincado desenho. Abri as portas corrediças dos painéis empurrando
com suavidade sua parte inferior esquerda com o pé, sabendo, sabe‐se lá como, que
um toque ou um suave chute nesse lugar liberava um mecanismo que abria as portas. Movi umas cobertas empilhadas sobre o piso de um deles, e descobri uma
pequena porta secreta. Liberei a trava que simulava ser um interruptor de luz e, já
mais além de toda possibilidade de surpresa, aceitei a existência da porta secreta, conhecimento logicamente inadmissível à minha consciência. Abri a pequena porta, me deslizei através da estreita abertura, e me encontrei no painel do aposento
contíguo
e,
sem
maravilhar‐
me
por
isso,
descobri
que
me
escorrendo
por
esses
corredores secretos poderia ir de um a outro dos oito cômodos.
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Praguejei quando a lanterna se apagou, e na esperança de reavivar as baterias, as tirei e logo as recoloquei. Trabalho inútil: estavam esgotadas. A escuridão desses quartos era tão intensa que não conseguia ver minhas próprias mãos, e então, tateando, tratei de voltar sobre meus passos, em busca do corredor. O esforço foi tal que acabei tremendo e ofegando. Recostada contra uma parede, permaneci ali um
longo período,
tratando
de
decidir
a direção
em
que
ficava
meu
quarto.
De longe chegavam fragmentos de vozes, e ao não poder precisar se provinham
do interior da casa ou do exterior, segui o som até chegar ao pátio, que eu lembrava vivamente como algo verde e quase tropical, cheio de brotos e folhagem densa, e
perfumado pela fragrância de jasmins e madressilvas. Apenas havia ensaiado uns passos quando vi a enorme silhueta de um
cachorro, recortada contra a parede. Depois vieram um grunhido e a luz queimante de
seus olhos, para fazer que um calafrio percorresse minha coluna vertebral. Em lugar de
sucumbir ao temor, ou talvez por causa dele, senti que acontecia algo muito estranho. Era como se sempre tivesse estado dobrada como um leque japonês ou uma figurinha
de cartolina,
e de
repente
me
abrisse.
A
sensação
física
era
quase
dolorosa.
O cachorro me observou, confuso. Começou a chorar como um cachorro faz, moveu as orelhas e se agachou no piso. Eu, tensa em meu lugar. Não sentia medo; simplesmente não podia mover‐me. Depois, como se fosse o mais natural do mundo, voltei a me juntar, dei as costas ao cão e me retirei. Desta vez não tive dificuldade em
achar meu quarto. Despertei com uma dor de cabeça e a sensação de não ter dormido em
absoluto, sensação que como insone conhecia muito bem. Sentia os músculos de meu
corpo como desconectados: soltei um gemido, e senti abrir‐se a porta do quarto e meu
rosto ser inundado pela luz. Tentei inverter minha posição sem cair da cama.
—Bom dia!
—
exclamou
Esperanza,
ingressando
com
um
frufru
de
saias
e anáguas — ou melhor dizendo, boa tarde — se corrigiu, assinalando o sol visível
através da porta aberta. Transbordava de alegria, e uma força deliciosa dominava sua
voz ao dizer‐me que foi ela quem resgatou meus livros e papéis da perua antes que
Isidoro Baltazar partisse com o velho nagual. Levantei‐me abruptamente, desperta de tudo. —Por que não veio saudar‐me o nagual Mariano Aureliano, e por que Isidoro
Baltazar não me avisou de sua partida? — e acrescentei que agora não poderia terminar meu trabalho e ingressar num curso superior.
Esperanza me observou com uma expressão de curiosidade, e comentou que se
escrever meu
ensaio
era
um
ato
tão
mercenário,
nunca
chegaria
a completá
‐lo,
e antes
que eu pudesse dizer‐lhe que pessoalmente não me interessava se nunca completasse meus estudos, acrescentou:
—Você não escreve esse trabalho para ingressar nesse curso superior, e sim
porque te encanta fazê‐lo, porque não há nada que neste momento preferiria fazer. —Há muitas coisas que preferiria fazer. —Como o que? — desafiou‐me. Pensei, mas não pude rebater nada específico. Precisei admitir, se bem que só a
mim mesma, que nunca um trabalho deste tipo me havia brindado tanto prazer. Uma vez na vida havia começado com as leituras e as investigações a começos do ano letivo,
em
lugar
de
esperar,
como
costumava
fazer,
a
que
faltassem
apenas
uns
dias
para
a
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entrega do trabalho. Mas foi só saber que representava minha passagem ao curso de
pós‐graduação, e se arruinou o prazer. Esperanza, como sempre confidente de meus pensamentos, opinou que eu
deveria esquecer‐me do curso de pós‐graduação e pensar somente em fazer um bom
trabalho.
—Uma vez
que
fizer
parte
do
mundo
dos
bruxos
e comece
a entender
a
natureza dos ensonhos, já estará a caminho de entender o que é a feitiçaria. Além do
mais, esse entendimento vai te liberar. Olhei‐a, intrigada. Não conseguia entender o que queria me dizer. —Isso te libera de desejar algo — e Esperanza enunciou a frase com muito
cuidado, como se eu fosse surda. Depois emendou: —Cobiça é seu segundo nome, apesar de você não precisar nem desejar nada… — e sua voz se apagou ao dedicar‐se a
pôr ordem em meus livros, papéis e pilhas de anotações sobre a mesa. Parecia radiante quando se virou para mostrar‐me vários lápis. —Apontei‐os com uma lâmina
de barbear — disse —, e o farei cada vez que se gastem as pontas. — Colocou os lápis
junto a um
de
meus
cadernos,
e depois
abriu
bem
os
braços
como
para
abarcar
a
totalidade do quarto e disse: —Este é um lugar maravilhoso para trabalhar. Aqui ninguém lhe incomodará.
—Estou certa disso — concordei, e ao observar que estava a ponto de retirar‐se, perguntei‐lhe onde havia dormido Isidoro Baltazar na noite anterior.
—Em sua cama de armar. Em onde mais? — respondeu, e entre risos recolheu
suas saias e anáguas e saiu ao pátio. Eu a segui com o olhar até vê‐la desaparecer atrás do arco de pedra. Fiquei com os olhos doloridos por causa da intensa luz.
Momentos depois houve uma forte batida sobre uma das portas que se abriam
ao corredor.
—Está decente?
—
perguntou
o cuidador,
empurrando
a porta
antes
que
eu
tivesse oportunidade de dizer que estava. —Alimento para seu cérebro — anunciou, colocando uma bandeja de bambu sobre a mesa. Me serviu uma tigela de caldo, e
depois recomendou comer a niachaca sonorense, feita por ele. Essa mistura de ovos mexidos, carne picada, cebola e chilis calientes era deliciosa.
—Quando terminar eu a levarei ao cinema. —Quando terminar de comer? — perguntei excitada, metendo uma tortilha
inteira em minha boca. —Quando terminar com seu trabalho — esclareceu. Ao terminar a comida o cuidador opinou que eu deveria fazer amizade com o
cachorro. —Se não o fizer, não poderá sair da casa. Nem sequer para ir ao toalete.
Estava a ponto de lhe confessar que já me havia encontrado com o cão, e que
havia visitado o toalete na noite anterior, quando um ligeiro gesto de sua testa me
convidou a acompanhá‐lo ao pátio. O enorme cachorro estava deitado à sombra de um
alto cercado de varas. O cuidador foi até ele para ajoelhar‐se a seu lado, coçá‐lo atrás das orelhas e lhe sussurrar algo.
Abruptamente o cuidador ficou de pé. Surpreendida, eu dei um passo e cai sentada. O cachorro soltou um gemido, e o cuidador, com um salto incrível, passou ao
outro lado do cercado. Eu me levantei, disposta a correr, mas o cão esticou suas patas
dianteiras
e
as
colocou
sobre
meus
pés,
fazendo‐
me
sentir
a
pressão
de
suas
garras.
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Olhou‐me e abriu a boca num monumental bocejo, revelando suas gengivas negras e
língua de igual cor. —Isso é sinal de um pedigree muito bom. Me surpreendeu essa voz às minhas costas, e me virei para ela. Ao fazê‐lo perdi
de novo o equilíbrio e cai sobre o animal. Permaneci quieta, sem animar‐me a tentar
um movimento,
e depois
afastei
minha
cabeça.
Os
olhos
cor
de
âmbar
do
cachorro
estavam fixos em mim, e mostrou seus dentes, mas não para grunhir, e sim para dar‐me um amistoso sorriso canino.
—Agora são amigos — disse o cuidador, ajudando‐me a se levantar —, e é hora de que comece a trabalhar.
Os três dias seguintes foram inteiramente dominados pelo desejo de terminar com minha tarefa. Trabalhei longas horas sem notar a passagem do tempo, mas não
devido à concentração em meu trabalho, e sim ao fato de que o tempo parecia ter se
transformado em uma questão de espaço. Comecei a considerar o tempo como
interlúdios entre minhas visões de Esperanza.
Todos os
dias,
por
volta
do
meio
‐dia,
enquanto
eu
desjejuava
o que
ela
me
havia deixado na cozinha, Esperanza fazia sua aparição. Sem ruído, parecia emergir do
permanente fumo azulado que impregnava a cozinha, e invariavelmente penteava meus cabelos com um tosco pente de madeira, sem pronunciar uma só palavra. Eu
tampouco. Eu a via de novo nas horas da tarde. Tão silenciosa como quando aparecia na
cozinha, se materializava no pátio para sentar‐se em sua cadeira de balanço, sob um
arco de pedra. Durante horas sua vista se perdia no espaço, como se seus olhos transcendessem os limites da visão humana, mas fora um movimento de cabeça ou um
sorriso, nada se passava entre nós. No entanto me sentia protegida por seu silêncio.
Se diria
que
o cachorro
obedecia
ordens
do
cuidador,
pois
jamais
se
separava
de mim. Me seguia de dia e de noite, inclusive até ao toalete. Eu aguardava impaciente nossos passeios, feitos ao cair da tarde, quando ambos atravessávamos correndo os campos, em busca de uma fileira de árvores que dividia os lotes de terreno. Ali buscávamos uma sombra e permanecíamos horas olhando o vazio, tal qual fazia
Esperanza. Às vezes dava a impressão de que com só um esticar de mão se poderia tocar as montanhas distantes. Escutava o rumor da brisa entre as folhas, aguardando o
momento em que a luz amarela do sol poente convertia essas folhas em ouro, folhas que logo se tornavam azuis e finalmente negras. Chegado este momento, o cão e eu
corríamos de volta à casa para escapar da débil voz do vento, que falava da solidão
destas terras
áridas.
Ao quarto dia despertei sobressaltada. Alguém gritava: —É hora de levantar‐se, preguiçosa — era a voz do cuidador. —Por que não entra? — perguntei. —Onde esteve todo este tempo? Não recebi resposta. Permaneci sentada na cama, envolta numa coberta, demasiado tensa e
adormecida para sair ao pátio e averiguar por que o cuidador se escondia. Depois, quando me decidi a deixar a cama, encontrei o pátio vazio, e num esforço por afastar minha sonolência joguei em mim balde atrás de balde de água fria na cabeça.
Nesta manhã variou meu desjejum. Esperanza não apareceu, e quando acabei
de
me
sentar
para
trabalhar,
notei
o
desaparecimento
do
cachorro.
Encarei
minha
tarefa com ânimo escasso. Tinha pouca energia, e ainda menos desejo de trabalhar, e
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o resultado foi que permaneci horas sentada, contemplando as montanhas distantes através da porta aberta.
O silêncio transparente da tarde era quebrado de tanto em tanto pelo cacarejar das galinhas, que siscavam a terra em busca de sementes, e pelo grito penetrante das cigarras vibrando na clara luz azul como se ainda fosse meio‐dia. Estava a ponto de
dormir quando
escutei
um
barulho.
De
imediato
prestei
atenção
e vi
o cuidador
e o
cachorro estendidos sobre uma esteira à sombra do cercado. Me chamou a atenção
sua total quietude; davam a impressão de estar mortos. Preocupada e curiosa me aproximei na ponta dos pés. O cuidador se deu conta
de minha presença antes que o cão. Abriu bem os olhos num gesto exagerado, e com
um rápido movimento se levantou para sentar‐se com as pernas cruzadas e perguntar: —Sentiu minha falta? Pareceu‐me uma pergunta estranha, e ri nervosa, após admitir que sim. —Por que não entrou em meu quarto esta manhã? — emendei, e ao observar a
falta de expressão em seu rosto, insisti: —Por onde tem estado nestes últimos três
dias?
Em lugar de responder me fez uma nova pergunta, desta vez em tom áspero: —Como andam seus estudos? Foi tal minha surpresa que não soube o que responder. Não sabia se lhe dizia
que a marcha de meus estudos não era assunto de sua incumbência, ou confessar que
me encontrava obstruída. —Não se incomode em tratar de pensar numa resposta — disse. —Diga‐me a
verdade. Admita que precisa de minha opinião de expert sobre seu trabalho. Temendo não poder dominar minha vontade de rir, me ajoelhei junto ao
cachorro para acariciar sua cabeça.
—E então?
—
exigiu.
—Não
vai
admitir
que
sem
mim
está
perdida?
Indecisa sobre sua saúde mental, decidi que era melhor agradá‐lo que
contradizê‐lo, e admiti não ter escrito uma só linha em todo o dia. Disse‐lhe que o
havia estado esperando, pois somente ele podia salvar‐me, e lhe assegurei que a ele, e
não a meus professores, competia decidir minha sorte como aspirante a graduar‐se. Visivelmente satisfeito, pediu meu trabalho para “dar‐lhe uma olhada”. —Está em inglês — adverti com toda a malícia. —Não poderá entendê‐lo — e
engoli meu desejo de agregar que, ainda estando em castelhano, superaria sua
capacidade. Insistiu em sua solicitação e eu cumpri. Esparramou as folhas em torno dele,
algumas sobre
a esteira,
outras
sobre
o chão
empoeirado,
e tirou
do
bolso
de
sua
camisa uns óculos de armação de metal, e então os colocou. —É importante parecer educado — disse em voz baixa, dirigindo‐se ao cão, que
levantou uma orelha e grunhiu como para manifestar seu acordo. Em seguida o cão
mudou de lugar e o cuidador me convidou com um gesto a sentar‐me entre ele e o
animal. Parecia uma coruja, austera e doutoral, olhando as folhas dispersas. Emitiu
sons de desaprovação, estalando com a língua, coçou a cabeça e embaralhou repetidas vezes as folhas, ao parecer em busca de certa ordem que parecia escapar‐lhe.
Ao fim de um bom período de estar sentada nessa postura, começaram a me
doer
os
músculos
de
meu
pescoço
e
de
meus
ombros.
Suspirei,
impaciente,
e
me
reclinei contra o cercado, fechei os olhos, e apesar de minha crescente irritação, devo
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ter dormido, pois me sobressaltou um suave porém insistente zumbido. Abri os olhos, e sentada ante mim descobri uma mulher alta e linda, esplendidamente vestida, que
me disse algo que não entendi. Aumentou o zumbido em meus ouvidos. A mulher se aproximou de mim, e em voz alta e clara perguntou: —Não vai me cumprimentar?
—Nélida! —
gritei.
—Quando
chegou?
Estou
tentando
me
desfazer
de
um
zumbido em meus ouvidos. Recolheu suas longas e bem torneadas pernas sob a saia e me abraçou. —Que bom lhe ver. Entretanto o cuidador franziu o cenho, e murmurou seus comentários: —Seus garranchos não só são difíceis de entender como além do que, ainda por
cima, não têm muito sentido. Os olhos de Nélida pareciam incitar‐me a contradizê‐lo. Eu, ansiosa por escapar
da intensidade de seu olhar, me remexia, incomodada, até que ela cutucou meu braço
com firmeza.
O cuidador
começou
a ler
o conteúdo
das
páginas
com
uma
lentidão
exasperante, e se bem o que dizia soava familiar, eu não captava se na verdade seguia
o texto, pois me era impossível concentrar‐me. Me irritava sua maneira caprichosa de
mutilar as frases, e as vezes até as palavras. —Em suma — sentenciou ao terminar a última página —, trata‐se de um mau
trabalho. — Ordenou os papéis, formando com eles uma pilha, e se recostou contra o
cercado, adotando a mesma posição que me ensinou Isidoro Baltazar: a perna direita cruzada sobre a outra, com o tornozelo apoiado sobre a coxa esquerda e os olhos fechados.
Manteve silêncio por tão longo tempo que achei que havia dormido, e portanto
me assustou
quando,
com
voz
lenta
e moderada,
começou
a falar
de
antropologia,
história e filosofia. Seus pensamentos pareciam formar‐se à medida que falava, e as palavras fluíam de maneira clara e precisa, com uma simplicidade fácil de seguir e
compreender. Escutei‐o com atenção, mas ao mesmo tempo não deixava de intrigar‐me o fato
de que soubesse tanto acerca das tendências intelectuais de Ocidente. Que grau de
educação possuía? Quem na verdade era ele? —Poderia repetir tudo de novo? — perguntei nem bem ele havia terminado. —
Gostaria de tomar algumas notas. —Tudo o que disse está em seus papéis — assegurou‐me. —Enterrado sob
excessivas citações,
anotações
ao
pé
da
página
e idéias
mal
desenvolvidas.
—
Aproximou‐se até que nossas cabeças quase se tocaram. —Não basta citar obras alheias para dar a seu trabalho a veracidade que lhe falta.
—Me ajudaria a refazê‐lo? — perguntei desorientada. —Não, não posso fazer isso. Precisa fazê‐lo você mesma. —Mas é que não posso — objetei. —Você mesmo acaba de assinalar o mal que
está meu trabalho que, acredite‐me, é o melhor que pude fazer. —Não é verdade! — contradisse‐me de maneira veemente, para depois olhar‐
me com uma expressão que misturava surpresa e ternura. —Não duvido de que seus professores aceitariam seu trabalho, uma vez que o tenha passado a limpo, mas eu
não
o
faria.
Carece
de
originalidade.
A
única
coisa
que
faz
é
parafrasear
o
que
já
leu,
e
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eu exijo que você dependa mais de suas próprias opiniões, ainda que contradigam o
que se espera de você. —Trata‐se apenas de um trabalho de composição — disse para defender‐me.
—Sei que pode ser melhorado, só que também preciso agradar a meus professores, independente de se estou ou não de acordo com o expressado. Preciso ser aceita no
curso de
pós
‐graduação,
e isso,
de
certo
modo,
requer
satisfazer
a meus
professores.
Em contestação recebi uma rajada de críticas, advertências e sugestões da
parte do cuidador. —Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros já não pode trabalhar com
essas premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se
quer graduar‐se, deve se comportar como um guerreiro, não como uma mulher treinada para agradar, pois você, ainda quando se põe bestialmente desagradável, procura agradar. Agora, no que se refere a escrever, já que não foi treinada para isso, quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro.
—O que quer dizer com isso de a modalidade do guerreiro? Devo lutar com
meus professores?
—Não com seus professores, e sim consigo mesma, a cada centímetro do
caminho, e precisa fazê‐lo com tal arte e inteligência que ninguém notará sua luta. Não estava muito segura do que queria dizer com tudo isso, e tampouco me
interessava, de modo que antes que pudesse acrescentar algo perguntei‐lhe como era que sabia tanto acerca de antropologia, história e filosofia. Sorriu e sacudiu a cabeça.
—Não se deu conta de como o fiz? — e logo passou a responder à sua própria pergunta. —Apanhei os pensamentos no ar. Estendi minhas fibras energéticas e
pesquei esses pensamentos, tal como se pesca um peixe com uma vara, num imenso
oceano de pensamentos e idéias que há ali — e traçou um amplo gesto com os braços,
como para
captar
o ar
que
o rodeava.
—Para apanhar pensamentos Isidoro Baltazar me disse que a pessoa precisa saber quais deles podem ser úteis —argumentei —, de modo que você deve ter estudado história, filosofia e antropologia.
—Talvez o fiz alguma vez — respondeu, não muito decidido, coçando a cabeça, perplexo. —Sim, devo de tê‐lo feito.
—Tem que tê‐lo feito! — insisti, como se tivesse feito uma grande descoberta. Suspirando de maneira audível, o cuidador se recostou contra o cercado e
fechou os olhos. —Por que insiste em ter sempre a razão? — perguntou Nélida.
Surpreendida, olhei
boquiaberta
como
os
cantos
de
seus
lábios
se
curvavam
num provocante e misterioso sorriso. Em seguida, com um gesto, me ordenou fechar a
boca. Eu havia estado tão pendente dos comentários do cuidador a respeito de meu
trabalho que a havia esquecido, apesar de tê‐la em frente a mim. Ou talvez não fosse
assim. Quem sabe não estivera ali, e a idéia de que podia ter se ausentado e
regressado, sem que eu o percebesse, me provocou ansiedade. —Não deixe que isso te preocupe — consolou‐me Nélida, como se eu tivesse
exteriorizado meu pensamento. —Nós estamos habituados a ir e vir sem que as pessoas o notem.
O tom de sua voz teve o efeito de suavizar a contundência da revelação, e
olhando
a
um
e
logo
ao
outro,
me
perguntei
se
de
fato
seriam
capazes
de
desaparecer
diante de meus olhos sem que esse ato fosse notado. Tratei de segurá‐los para que
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isso não acontecesse. Me estendi sobre a esteira, e esticando‐me em atitude gatuna, avancei meu pé até a roda do vestido de Nélida, que roçava o chão, e movi a mão em
busca do casaco do cuidador, que deve ter sentido o puxão na manga, pois se levantou
abruptamente e me olhou. Eu fechei os olhos, mas continuei observando‐os através das pálpebras entreabertas. Não se moveram. Suas posturas sacerdotais não
revelavam fadiga,
no
entanto
eu
precisei
lutar
para
manter
os
olhos
abertos.
Uma brisa fresca, com fragrância de eucaliptos, começou a soprar; pedaços de
nuvens coloridas sulcaram o céu, e o profundo e transparente azul se fez mais difuso, dissolvendo‐se de maneira tão lânguida que se tornou impossível distinguir entre céu e
nuvem, entre dia e noite. Adormeci com o pé na roda do vestido de Nélida e aferrada ao casaco do
cuidador, como se minha vida dependesse disso, e quando alguém tocou meu rosto
tive a impressão de que havia transcorrido apenas uns momentos. —Florinda? — perguntei, sabendo instintivamente que a mulher sentada a meu
lado era outra. Murmurava algo, e tive a sensação de que levava um bom tempo
fazendo‐o,
e eu
acabara
de
acordar
para
escutá
‐la.
Quis sentar‐me, mas com uma suave pressão sobre meu ombro a mulher o
impediu. Em algum lugar, na escuridão, uma pequena chama tremulava insegura, iluminando a palidez de seu rosto, conferindo‐lhe um aspecto fantasmal. À medida que
ela se aproximava parecia agigantar‐se, e também seus olhos se aumentaram quando
se fixaram nos meus. O arco de suas sobrancelhas, como um arco traçado por um
marcador negro, se via concentrado num gesto de preocupação. Suspirei aliviada quando pronunciei seu nome. —Nélida! Ela aceitou meu reconhecimento com um leve sorriso e um gesto da cabeça.
Queria fazer
‐lhe
perguntas
acerca
do
cuidador
e meus
escritos,
mas
ela
me
silenciou
colocando um dedo sobre meus lábios, e continuou com suas murmurações, que se
foram fazendo mais e mais distantes até cessar por completo. Depois ficou de pé e me
indicou fazer o mesmo. Obedeci, e notei que já não estávamos no pátio e sim num dos dormitórios vazios sobre o corredor.
—Onde está meu trabalho? — perguntei, alarmada ante a possibilidade de que
o vento pudesse ter esparramado as páginas. A idéia de ter que recomeçá‐lo do zero
me aterrorizava. Com um gesto imperioso de sua testa Nélida indicou que devia segui‐la. Era
muito mais alta que eu, idêntica a Florinda, e a não ser por sua especial delicadeza,
não teria
podido
diferenciá
‐las.
Nesse
momento,
parecia
uma
versão
inacabada
de
Florinda, uma Florinda jovem. Havia nela algo tão delicado, etéreo, e por sua vez atraente, que eu costumava brincar com Isidoro Baltazar dizendo que, se eu fosse
homem, ficaria louco por ela, ao qual ele respondia que talvez fosse essa a razão pela qual ela raramente me dirigia a palavra.
Nos dirigimos a meu quarto. Escutava passos, passos que vinham de todas as direções, que não podiam ser obra de Nélida, pois ela caminhava com tal delicadeza que não parecia tocar o chão. A absurda noção de que escutava meus próprios passos me fez caminhar com a suavidade de um gato, apesar do qual o ruído não cessou. Os passos de alguém se moviam em uníssono com os meus, o mesmo ritmo repicava
sobre
o
piso
enlajotado.
Várias
vezes
olhei
para
trás
mas,
é
claro,
sem
encontrar
a
ninguém. Finalmente, na esperança de poder afugentar meu temor, ri forte.
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A maneira abrupta em que Nélida se virou me fez temer uma reprimenda, mas ao invés disso, abraçando‐me, soltou o riso, e não dei importância ao fato de que sua
carícia não fosse quente nem suave. Eu gostava de Nélida, e o toque de suas mãos me
reconfortava. Rindo, e acompanhadas pelo ruído dos passos, entramos em meu
quarto.
Um estranho
brilho
se
aderia
às
paredes,
semelhante
a uma
névoa
que
se
tivesse introduzido através das quatro portas, agora invisíveis. Além disso havia
modificado o formato do quarto, conferindo‐lhe um aspecto quase quadrado. Apesar de minhas repetidas piscadas não podia ver outro objeto além da mesa, sobre a qual havia trabalhado nos últimos três dias. Me aproximei, e me aliviou ver meus papéis ordenados e, junto a eles, meus lápis, todos apontados.
—Nélida! — exclamei excitada, mas ela já não estava ali. A névoa se havia feito mais espessa, se aproximava com cada inalação de meus
pulmões e se infiltrou dentro de mim, enchendo‐me de uma sensação agradável de
lucidez e frivolidade. Guiada por alguma força invisível me sentei à mesa, esparramei
os papéis,
e sob
meus
olhos
vigilantes
surgiu
a estrutura
total
de
meu
trabalho,
sobrepondo‐se ao original, como a dupla exposição de uma película. Me perdi admirando o hábil desdobramento dos temas, e como se tivessem sido manipulados por alguma mão invisível, pensante e escritora, os parágrafos se recolocaram impondo
uma nova ordem. Tudo era tão maravilhosamente claro e simples que ri de puro gozo. —Escreve‐o. As palavras repercutiram suavemente no aposento. Olhei ao redor sem ver
ninguém, e sabendo que isso que agora vivia era definitivamente mais que um sonho, lancei mão de meu caderno e a um lápis, e comecei a escrever a toda velocidade. As idéias me chegavam com incrível claridade e facilidade, e inundavam minha cabeça e
meu corpo
como
ondas
de
som.
Simultaneamente
via
e escutava
as
palavras,
mas
não
eram meus olhos e meus ouvidos os que as percebiam, e sim, melhor dizendo, filamentos internos que se estendiam e, como um silencioso aspirador, chupavam as palavras que brilhavam ante mim como partículas de poeira.
Depois de um tempo, a ordem sobreposta começou a opacar‐se. Uma a uma, as linhas empalideceram. Com desespero procurei aferrar‐me a esta esplêndida estrutura, ainda sabendo que tudo desapareceria sem deixar rastro. Só restou a
memória dessa magnífica lucidez, e depois também isso se extinguiu, como uma
lâmpada que alguém tivesse apagado. Um resto de névoa, delicada como um
filamento, permaneceu flutuando no quarto para depois desaparecer em pequenas
ondas, e deixar
uma
escuridão
opressiva
que
se
fechava
sobre
mim.
Senti
‐me
tão
extenuada que soube que ia desmaiar. —Deite‐se! Não me incomodei em olhar. Sabia que não veria a ninguém. Com um grande
esforço, abandonei a cadeia e me arrastei até minha cama.
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CAPÍTULO DEZESSEIS
Por um momento permaneci na cama, recordando vagamente meu
assombroso ensonho, tão diferente de qualquer outro. Pela primeira vez tinha
pleno conhecimento de tudo o que havia feito.
—Nélida? —
perguntei,
ao
escutar
um
suave
murmúrio
que
chegava
do
outro extremo do quarto. Tentei levantar‐me, mas caí de novo sobre a cama. O
quarto girava. Minutos depois o tentei de novo. Fiquei de pé e ensaiei uns passos vacilantes, que terminaram quando caí ao chão e dei com a cabeça contra a
parede. —Merda! — gritei. —Estou desmaiando. —Não seja tão dramática — foi Florinda quem disse isso, e riu ao ver‐me
tão desconcertada. Tocou primeiro minha testa, depois meu pescoço, e ao
comprovar que não tinha febre pronunciou sua sentença: —Não está
desmaiando. O que precisa é repor sua energia.
Perguntei por
Nélida,
e enquanto
me
ajudava
a voltar
para
a cama,
Florinda quis saber se havia estranhado a ela. —Está fraca porque está com fome — disse. —Não tenho fome — a contradisse, mais por hábito que por convicção,
sem duvidar de que minha tontura se devia a não ter comido nada o dia todo, salvo o desjejum.
—Nos perguntamos por que não comeu — confessou Florinda, respondendo a meus inexpressados pensamentos. —Havíamos lhe preparado um
guisado tão delicioso. —Quando chegou? — quis saber. —Tenho estado lhe chamando em
silêncio durante
dias.
Florinda semicerrou os olhos, e emitindo um som sussurrante, ao que
parecia destinado a ajudá‐la a recordar, respondeu que acreditava estar a vários dias na casa.
—Acredita? — perguntei impaciente, perto de uma exteriorização de mau
gênio que consegui controlar. —Por que não me fez saber que estava aqui? —
mais que ofendida me intrigava não ter notado sua presença. —Como pude não
me dar conta? — murmurei, mais para mim que para seus ouvidos. A curiosa expressão de seus olhos denotava que a Florinda lhe surpreendia
meu desconcerto, e sua sagaz resposta foi que, se tivessem me revelado sua
presença, eu
não
teria
podido
me
concentrar
em
minha
tarefa.
—Como bem sabe, em lugar de ocupar‐se de seu ensaio, estaria pendente
de nossas idas e vindas. Toda sua energia estaria concentrada em averiguar o que
nós fazíamos, não é assim? Deliberadamente decidimos que você deveria
trabalhar sem distrações — explicou, para depois agregar que o cuidador me
havia ajudado somente depois de ter comprovado que o feito por mim até aquele
momento era satisfatório, e que em ensonhos ele havia encontrado a ordem
inerente de minhas anotações. —Eu também os achei em ensonho — confessei. —Naturalmente — concordou Florinda. — Nós te fizemos ensonhar para
que
pudesse
trabalhar.
—Vocês me fizeram ensonhar? — repeti.
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Sem dúvida sua declaração era chamativamente normal, mas não deixava
de causar‐me apreensão. Me dominou a misteriosa sensação de estar por fim a
ponto de compreender o que significava o ensonhar desperto, embora sem
conseguir captá‐lo por completo, e esforçando‐me por ser clara, revelei a Florinda
tudo o que aconteceu desde o momento em que vi ao cuidador e ao cachorro no
pátio.
Não me foi fácil ser coerente, pois eu mesma não conseguia decidir quando estive desperta e quando adormecida, e aumentava minha confusão o
fato de poder recordar o exato contorno de meu trabalho tal como o vi, sobreposto ao texto original.
—Minha concentração era demasiado intensa para pensar que pudesse
estar ensonhando — resumi. —É disso, precisamente, que se trata o ensonhar desperto. Por isso o
lembra tão bem — e o modo em que Florinda disse isto me lembrou uma
professora impaciente, explicando algo simples a uma criança retardada. —Já te
disse que
o
ensonhar
desperto
não
tem
nada
a ver
com
dormir
e sonhar.
—Tomei notas — acrescentei, como se isso pudesse invalidar o que ela
acabara de dizer, e ao ver que concordava com um movimento de cabeça, perguntei‐lhe se encontraria algo sobre a matéria, escrito de meu punho e letra, entre minhas notas.
—Sim — me assegurou —, mas antes terá que comer. — Ficando de pé, estendeu‐me a mão e me ajudou a se levantar.
Para ajeitar‐me um pouco acomodou a camisa dentro de meus jeans e
tirou os pedaços de palha aderidos a meu suéter. Depois me afastou um pouco
para inspecionar sua obra. Não satisfeita, encarou o aspecto de meu cabelo,
acomodando os
fios
esticados
e rebeldes.
—Você fica horrível com o cabelo desgrenhado. —Estou acostumada a uma ducha quente ao levantar‐me — e saí atrás dela
ao corredor. Ao ver que se dirigia à cozinha lhe informei que antes precisava ir ao
toalete. —Te acompanho — ofereceu, e ao notar meu gesto de recusa, explicou
que só desejava assegurar‐se de que eu não me desmaiaria e cairia pelo buraco. Aceitei agradecida o apoio de seu braço, e quase cai de bruços ao sair ao
pátio, não tanto por causa de minha debilidade e sim pela surpresa que me
causou comprovar o tarde que era.
—O que
acontece?
—
perguntou
Florinda.
—Se
sente
fraca?
Apontei o céu. Apenas sobrava um resto de luz. —Não é possível que tenha perdido um dia — disse com voz apagada. Lutei
por assimilar a idéia de que haviam transcorrido toda uma noite e todo um dia, mas minha mente não o aceitou. O fato de não poder calcular o tempo de acordo
com os cânones normais me desorientava. —Os feiticeiros quebram o fluir do tempo — explicou Florinda,
interpretando meus pensamentos. —O tempo, tal como nós o medimos, não
existe quando se ensonha como o fazem os feiticeiros. Eles o estendem ou
condensam à vontade, e não o consideram em termos de horas ou minutos. Ao
ensonhar
despertos,
aumentam
suas
faculdades
perceptuais
—
prosseguiu
em
tom paciente e medido. —Não obstante, com o tempo acontece algo por intero
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distinto. A percepção do tempo não aumenta, e sim que fica totalmente
cancelada. — Acrescentou que o tempo é sempre um fator de consciência, ou
seja, que sua percepção é um estado psicológico, automaticamente transformado
por nós em medidas físicas. É algo que levamos tão gravado que, ainda quando
não o percebamos, um relógio soa em nosso interior, marcando subliminarmente
o tempo.
—No ensonhar desperto — enfatizou — essa capacidade está ausente. Uma estrutura por completo nova e nada familiar assume o controle; uma
estrutura que de alguma maneira não é para ser interpretada ou entendida como
normalmente fazemos com o tempo. —Ou seja, que tudo o que saberei conscientemente acerca do ensonhar
desperto é que, com relação ao tempo, ele poderá ter sido estendido ou
comprimido — disse, procurando entender à explanação. —Compreenderá muito mais que isso — me assegurou com ênfase. —
Quando for expert em penetrar na consciência intensificada, como a chama
Mariano Aureliano,
terá
consciência
de
tudo
o
que
deseje,
pois
os
feiticeiros
não
estão envolvidos com medir o tempo e sim em usá‐lo, em estendê‐lo ou
comprimi‐lo à vontade. —A pouco você disse que todos me ajudaram a ensonhar — afirmei. —
Neste caso, alguém deve saber o quanto durou meu ensonho. Florinda respondeu que ela e seus companheiros viviam permanentemente
num estado de ensonhar desperto, e que era precisamente seu esforço conjunto
o que me fez ensonhar, mas que jamais levavam conta de sua duração. —Quer inferir que posso estar ensonhando desperta agora? — perguntei,
sabendo de antemão o que responderia. —Se é assim, o que fiz para alcançar este
estado? Quais
passos
tomei?
—Os mais simples imagináveis — respondeu Florinda. —Não se permitiu
ser seu ser usual. Esta é a chave que abre portas. Muitas vezes, e de diferentes maneiras, temos lhe dito que a feitiçaria não é o que pensa que é. Dizer que não
permitir‐se ser seu ser usual é o segredo mais complexo da feitiçaria; soa bobo
mas não o é. É a chave ao poder, e portanto o mais difícil que faz um feiticeiro; e
não obstante, não é algo complexo, impossível de entender. Não confunde a
mente, e por tal razão ninguém pode sequer suspeitar sua importância ou tomá‐
lo a sério. A julgar pelo resultado de sua última sessão de ensonhar desperta, posso dizer que você acumulou suficiente energia mediante o ato de impedir‐se
ser seu
ser
usual.
Deu um tapinha em meu ombro e sussurrou. —Te verei na cozinha. A porta da cozinha estava entreaberta, mas nenhum som provinha do
interior. —Florinda? — perguntei em voz baixa. Me respondeu um riso suave, mas não vi ninguém. Quando meus olhos se
acostumaram à penumbra divisei a Florinda e a Nélida sentadas a uma mesa, seus rostos estranhamente vívidos nessa tênue luz, assim como seus olhos, cabelos, nariz e bocas. Diria‐se que as iluminava uma luz interior, e me impressionou
comprovar
o
quanto
eram
exatas
eram
entre
si.
—Vocês duas são tão lindas que assusta — disse, aproximando‐me.
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Olharam‐se uma à outra e soltaram um riso, francamente perturbador. Senti que um calafrio percorria minha coluna, e antes que eu pudesse ensaiar comentário algum, ambas se calaram, e Nélida me convidou a ocupar a cadeira
vazia junto a ela. Respirei fundo. “Precisa manter a calma”, me disse ao ocupar o assento.
Havia em
Nélida
uma
secura
e um
tensionamento
que
me
enervava.
Da
sopeira
no meio da mesa me serviu um prato de espessa sopa. —Quero que coma tudo — disse, aproximando de mim uma cesta com
tortilhas quentes, e também a manteiga. Eu estava morta de fome, e ataquei o que me deram como se não tivesse
comido um só bocado em muitos dias. Esgotei o conteúdo da sopeira, e
acompanhei as tortilhas com três canecas de chocolate quente. Saciada, me
acomodei em minha cadeira. A porta que conduzia ao pátio estava aberta de par em par, e uma brisa fresca reacomodou as sombras que invadiam a cozinha. O
crepúsculo parecia eterno, e no céu languideciam grossas capas de cor:
vermelhão, azul
escuro,
ouro
e violeta,
e tanto
o
ar,
dotado
de
uma
qualidade
transparente, parecia aproximar as montanhas distantes. Como impulsionada por uma força interior a noite dava a impressão de surgir do chão, e o ensombrecido
movimento das árvores frutíferas, impulsionado pelo vento rítmico e cheio de
graça, arrebatava a escuridão e a elevava até o céu. Esperanza entrou na cozinha portando uma lamparina de azeite que
colocou sobre a mesa, olhando‐me sem piscar, como se tivesse problemas para
enfocar a vista. Dava a impressão de continuar preocupada por algum mistério de
outro mundo, mas aos poucos seus olhos se descongelaram, e sorriu, como
sabendo que havia regressado de algum lugar muito distante.
—Meu ensaio!
—
gritei,
ao
ver
as
folhas
soltas
e meu
caderno
sob
seu
braço. Com um grande sorriso os entregou a mim. Sem dissimular minha impaciência, examinei as folhas, rindo feliz ao poder
constatar as páginas do caderno cobertas de precisas e detalhadas instruções, a
metade em espanhol e a outra metade em inglês, sobre como proceder com meu
trabalho, sendo a caligrafia indiscutivelmente minha. —Está tudo aqui! — exclamei muito excitada. —Assim o vi em meu
ensonho — e de pensar que poderia me livrar do curso de pós‐graduação sem ter que esforçar‐me em excesso, esqueci toda minha ansiedade anterior.
—Não se escrevem bons ensaios recorrendo a atalhos — advertiu
Esperanza. —Nem
sequer
com
a ajuda
da
feitiçaria.
Deveria
saber
que
sem
as
leituras prévias e a coleta de notas, o fato de escrever e de revisar o escrito, nunca teria conseguido reconhecer a estrutura e a ordem de seu trabalho em
seus ensonhos. Assenti sem falar. Ela havia dito isso com autoridade incontestável,
deixando‐me sem palavras. —E o que acontece com o cuidador? Foi professor em sua juventude?
Nélida e Florinda se viraram na direção de Esperanza, como se a ela
coubesse responder. —Isso não o saberia dizer — respondeu, de maneira evasiva. —Não te
disse
que
era
um
feiticeiro
enamorado
das
idéias?
Manteve silêncio por um momento, para depois completar:
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163
—Quando não cuida de nosso mundo mágico, como cabe a um cuidador, ele lê.
—Além de livros — ampliou Nélida — lê uma extraordinária quantidade de
revistas culturais. Fala vários idiomas, de modo que está atualizado com o último
em tudo. Delia e Clara são suas ajudantes. Ele as ensinou a falar inglês e alemão.
Perguntei se
a biblioteca
da
casa
pertencia
a ele.
—É de todos — respondeu Nélida. —Contudo estou segura de que, tirando
Vicente, ele é o único que leu todos os livros que contêm as estantes — e ao
observar minha expressão incrédula me advertiu que o aspecto das pessoas desse
mundo não deveria enganar‐me. —Para alcançar um certo nível de
conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do que o fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo cotidiano como ao
mágico. Para conseguir isso devem ser muito preparados e sofisticados, tanto
mental como fisicamente. —Durante três dias trabalhou em seu ensaio. Trabalhou duro, não é
verdade? —
aguardou
a que
eu
me
manifestasse
de
acordo,
e depois
acrescentou
que, enquanto ensonhava desperta, lhe dediquei ainda maior esforço que
estando desperta. —Não estou de acordo — contradisse. —Tudo foi muito simples e carente
de esforço — e expliquei que a única coisa que fiz foi ver uma nova versão de meu
trabalho sobreposta à antiga, a qual copiei. —Fazer isso demandou toda a força que você possuía — sustentou Nélida.
—Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só
propósito. Toda sua preocupação e esforço se destinaram a terminar seu
trabalho. Nada mais importava. Nenhum outro pensamento interferiu com sua
meta. —O cuidador ensonhava desperto quando leu meu ensaio? Viu o que eu
vi?
Nélida ficou de pé e caminhou lentamente até a porta. Durante um longo
tempo olhou para fora, em direção à escuridão. Depois voltou à mesa, segredou
algo com Esperanza, e tornou a sentar‐se. Esperanza riu quando me disse que o
que o cuidador viu em meu trabalho era diferente ao que foi visto e escrito por mim.
—E é natural que assim fosse, pois o conhecimento dele é muito mais vasto que o seu. Você, guiada por suas sugestões, e de acordo com sua
capacidade, captou
como
devia
parecer
seu
trabalho,
e isso
foi
o
que
você
escreveu. Por sua vez Nélida explicou que enquanto ensonhamos despertos temos
acesso a recursos ocultos que de ordinário não empregamos. Disse que nem bem
eu vi meu trabalho lembrei dos pontos‐chave que me havia fornecido o cuidador. Ao notar que minha expressão incrédula persistia, lembrou o que foi dito
pelo cuidador sobre meu ensaio. “Demasiadas notas ao pé da página, citações demais e idéias desenvolvidas com descuido.” Seus olhos irradiavam simpatia e
um ar divertido ao acrescentar que, dado que eu ensonhava e não era tão
estúpida como alegava ser, de imediato percebi toda sorte de enlaces e conexões
não
notados
antes.
Depois
se
aproximou
sorridente
à
espera
de
minha
reação.
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164
—É hora de que saiba o que te fez ver uma melhor versão de seu trabalho
original. — Esperanza me piscou um olho como para enfatizar que estava por revelar‐me um segredo retumbante.
—Quando ensonhamos despertas, nós temos acesso ao conhecimento
direto.
Observou‐me
um
longo
período,
e havia
desencanto
em
seus
olhos.
—Não seja tão densa! — Nélida me cutucou impaciente. —Ensonhar desperta deveria ter lhe demonstrado que possui, como todas as mulheres, uma
capacidade sem igual para receber conhecimentos diretos. Com um gesto Esperanza me indicou guardar silêncio e disse: —Sabia que
uma das diferenças básicas entre homens e mulheres é a maneira em que
encaram o conhecimento?
Eu não tinha idéia do que queria dizer. De maneira lenta e deliberada
arrancou uma folha em branco de meu caderno e desenhou duas figuras humanas, uma das quais coroou com um cone e disse que era um homem. Sobre
a outra
cabeça
desenhou
o
mesmo
cone,
só
que
invertido,
e o
declarou
ser
a
mulher. —Os homens constroem seu conhecimento passo a passo — explicou com
o lápis apontando à cabeça coroada pelo cone. —Tendem para cima, trepam em
direção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram como
um cone em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento limita
até onde podem chegar — repassou com o lápis as linhas do cone da primeira
figura. —Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa altura, e seu
caminho termina no ápice do cone. —Preste atenção — advertiu, apontando com o lápis à segunda figura. —
Como poderá
ver
o
cone
está
invertido,
aberto
como
um
funil.
As
mulheres
possuem a faculdade de abrir‐se diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte
lhes chega de maneira direta, na base larga do cone. Os feiticeiros dizem que a
conexão das mulheres com o conhecimento é expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva.
“Os homens se conectam com o concreto — prosseguiu —, e apontam ao
abstrato. As mulheres se conectam com o abstrato, e contudo tratam de
entregar‐se ao concreto”. —Por quê? — perguntei —, sendo as mulheres tão abertas ao
conhecimento ou ao abstrato, são consideradas como inferiores?
Esperanza me
contemplou
fascinada.
Ficou
de
pé,
esticou
‐se
como
um
gato, fazendo estalar todas suas articulações, e recuperou seu assento. —Que sejam consideradas inferiores ou, no melhor dos casos, que suas
características femininas sejam consideradas complementares às dos homens, têm a ver com a maneira em que uns e outros se aproximam do conhecimento. Em geral à mulher lhe interessa mais dominar‐se a si mesma que a outros, um
tipo de domínio claramente ambicionado pelo homem. —Inclusive entre os feiticeiros — acrescentou Nélida para satisfação das
mulheres. Esperanza expressou sua crença em que originalmente as mulheres não
consideravam
necessário
explorar
essa
facilidade
para
unir‐
se
direta
e
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amplamente ao espírito. Não achavam necessário falar ou intelectualizar acerca
desta sua capacidade, pois lhes bastava acioná‐la para saber que a possuíam. —A incapacidade do homem para unir‐se diretamente ao espírito é o que
os impulsionou a falar do processo de alcançar o conhecimento — explicou. —Não pararam mais de falar disso, e é precisamente essa insistência em saber
como se
esforçam
por
alcançar
o
espírito,
esta
insistência
por
analisar
o
processo,
o que lhes deu a certeza de que o ser racional é uma conquista tipicamente
masculina. Esperanza explicou que a conceitualização da razão tem sido obtida
exclusivamente pelos homens, e isto lhes têm permitido minimizar os dons e as conquistas da mulher e, pior ainda, excluir as características femininas da
formulação dos ideais da razão. —É claro que na atualidade a mulher acredita no que lhe tem sido fixado
— enfatizou. —A mulher tem sido criada para crer que só o homem pode ser racional e coerente, e agora o homem é portador de um capital que o torna
automaticamente superior,
seja
qual
for
sua
preparação
ou
capacidade.
—Como foi que as mulheres perderam sua conexão direta com o
conhecimento? — perguntei. —Não a perderam — corrigiu Esperanza. —Ainda têm uma conexão direta
com o espírito, só que esqueceram como usá‐la, ou melhor, copiaram a condição
masculina de não possuí ‐la. Durante milhares de anos o homem tem se ocupado
de que a mulher o esqueça. Pegue a Santa Inquisição, por exemplo: esse foi um
expurgo sistemático para erradicar a crença de que a mulher tem uma conexão
direta com o espírito. Toda religião organizada não é outra coisa que uma
manobra muito exitosa para colocar à mulher no nível mais baixo. As religiões
invocam uma
lei
divina
que
mantém
que
as
mulheres
são
inferiores.
Olhei‐a assombrada, perguntando‐me como podia ser tão erudita. —Os homens necessitam dominar a outros, e a falta de interesse das
mulheres por expressar ou formular o que conhecem, e como o conhecem, tem
constituído uma nefasta aliança — continuou Esperanza. —Tem tornado possível que a mulher seja forçada, desde seu nascimento, a aceitar que a plenitude
encontra‐se no lar, no amor, no casamento, em parir filhos e negar‐se a si mesma. A mulher tem sido excluída das formas dominantes de pensamento abstrato e
educada para a dependência. Têm sido tão bem treinadas para aceitar que os homens devem pensar por elas que terminaram por não pensar.
—A mulher
é perfeitamente
capaz
de
pensar
—
disse.
Esperanza me corrigiu. —A mulher é capaz de formular o que aprendeu, e o que tem aprendido
tem sido definido pelo homem. O homem define a natureza intrínseca do
conhecimento, e dele tem excluído tudo aquilo que pertence ao feminino ou, se o
há incluído, é sempre de maneira negativa. E a mulher o tem aceitado. —Está atrasada em anos — objetei. —Hoje em dia a mulher pode fazer o
que deseja. Em geral têm aceso a todo centro de aprendizagem, e a quase todos os trabalhos que desempenha o homem.
—Mas isso não tem sentido, a menos que possuam um sistema de apoio,
uma
base
—
argumentou
Esperanza.
—De
que
serve
ter
aceso
ao
que
possuem
os
homens, quando ainda se as consideram seres inferiores, obrigadas a adotar
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atitudes e comportamentos masculinos para conseguir o êxito? As que na
verdade conseguem alcançar o êxito são as perfeitas convertidas, e elas também
depreciam às mulheres. —De acordo com os homens o útero limita à mulher tanto mental como
fisicamente. Esta é a razão pela qual às mulheres, apesar de seu acesso ao
conhecimento, não
lhes
tem
sido
permitido
determinar
o
que
é este
conhecimento. Pegue, por exemplo, aos filósofos — propôs Esperanza. —Os pensadores puros. Alguns deles são encarniçadamente contra a mulher. Outros são mais sutis, no sentido de que estão dispostos a admitir que a mulher poderia
ser tão capaz como o homem, se não fosse porque não lhe interessam as investigações racionais, e no caso de estar interessadas, não deveriam estar. Pois lhe cai melhor à mulher ser fiel à sua natureza: uma companheira nutriente e
dependente do macho. Esperanza expressou tudo isto com inquestionável autoridade. No entanto,
em poucos minutos, a mim já me assaltavam as dúvidas. —Se o conhecimento
não é outra
coisa
que
um
domínio
masculino,
a quê
se
deve
então
sua
insistência
em que eu vá à universidade? — perguntei. —Porque você é uma bruxa, e como tal precisa saber o que te afeta, e
como te afeta — respondeu. —Antes de recusar algo deve saber por que o recusa. “Sabe, o problema é que o conhecimento em nossos dias se deriva
simplesmente de pensar nas coisas, mas as mulheres têm um caminho distinto, nunca antes levado em consideração. Esse caminho pode contribuir ao
conhecimento, mas teria que ser uma contribuição que nada tem a ver com
pensar nas coisas”. —Com o que teria que ver então?
—Isso é para
que
você
o
decida,
depois
de
ter
dominado
as
ferramentas
do
raciocínio e da compreensão. Minha confusão era muito grande. —O que propõem os feiticeiros — continuou Esperanza — é que os
homens não podem possuir o direito exclusivo ao raciocínio. Parecem possuí ‐lo
agora porque o terreno sobre o qual o aplicam é um terreno onde prevalece o
masculino. Apliquemos então a razão a um terreno onde prevalece o feminino, e
esse é, naturalmente, o cone invertido que te descrevi: a conexão feminina com o
próprio espírito. Desviou apenas a cabeça, como decidindo o que estava por dizer.
—Essa conexão
deve
enfrentar
‐se
com
outro
tipo
de
raciocínio,
algo
nunca
antes empregado: o lado feminino do raciocínio. —E qual é o lado feminino do raciocínio, Esperanza?
—Muitas coisas; uma delas é definitivamente ensonhar. — olhou‐me de
maneira questionante, mas eu nada tinha a dizer. Sua profunda gargalhada me pegou de surpresa. —Eu sei o que espera você dos feiticeiros: rituais e encantamentos, cultos
raros, misteriosos. Quer que cantemos. Quer fundir‐se com a natureza; estar em
comunhão com os espíritos da água; quer paganismo, uma visão romântica do
que fazemos. Muito germânico.
“Para
submergir‐
se
no
desconhecido
precisam
de
coragem
e
mente.
Somente com isso poderá explicar a você mesma e a outros os tesouros que
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poderá encontrar.” — Esperanza chegou perto de mim, ansiosa ao que parecia, por confiar‐me algo. Coçou a cabeça e bufou repetidas vezes, cinco vezes como o
fazia o cuidador. —Precisa agir a partir de seu lado mágico — disse. —E isso o que é?
—O útero — e o disse com tanta calma, e em tom tão baixo, como se não
lhe interessasse
minha
reação,
que
quase
não
lhe
ouvi.
Depois,
ao
dar
‐me
conta
do absurdo de suas palavras, me endireitei e olhei para as outras mulheres. —O útero — repetiu Esperanza — é o órgão feminino fundamental, o que
dá às mulheres esse poder, essa força extra para canalizar sua energia. Explicou que o homem, em sua busca pela supremacia, tem conseguido
reduzir esse misterioso poder, o útero, ao nível estrito de um órgão biológico cuja
única função é reproduzir, abrigar a semente do homem. Como se obedecesse a um chamado, Nélida ficou de pé, rodeou a mesa e
veio parar‐se atrás de mim. —Conhece a estória da Anunciação? — murmurou quase pegado a meu
ouvido.
—Não — respondi, rindo. Com esse mesmo sussurro confidencial me disse que na tradição judaico‐
cristã os homens são os únicos que escutam a voz de Deus. As mulheres, salvo a
Virgem Maria, foram excluídas deste privilégio. Nélida disse que um anjo
sussurrando à Maria era, logicamente, algo natural. Não o era em troca de que a
Única coisa que pôde dizer‐lhe foi que daria a luz ao filho de Deus. O útero não
recebeu conhecimento e sim, melhor dizendo, a promessa da semente de Deus. Um deus masculino, que por sua vez gerava outro deus masculino.
Eu queria pensar, refletir acerca de tudo o que se havia dito, mas minha
mente estava
em
total
confusão.
—E o que acontece com os feiticeiros homens? — perguntei. —Eles não
têm útero e, contudo, estão claramente conectados com o espírito. Esperanza me olhou com uma satisfação que não tentou dissimular; depois
olhou por cima de seu ombro como temerosa de que alguém a escutasse. Num
murmúrio, apenas disse: —Os feiticeiros podem alinhar‐se com o espírito pois abandonam o que
especificamente define sua masculinidade. Já não são homens.
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168
CAPÍTULO DEZESSETE
A maneira em que Isidoro Baltazar percorria o aposento diferia da que
usualmente empregava para cobrir o espaço de seu estúdio retangular. Antes sempre
me acalmava seu andar, mas desta vez possuía uma qualidade incômoda e
ameaçadora, trazendo
à minha
mente
a imagem
de
um
tigre
que
espreita
entre
o
mato, ainda não preparado para saltar sobre sua vítima, mas consciente de que algo
anda mal. Deixei de lado o que estava lendo, a fim de averiguar a natureza de sua
preocupação, quando ele disse: —Nós vamos ao México. O modo em que o disse me causou graça, e o tom sombrio e sério justificou
minha risonha pergunta: —Vai se casar comigo lá? Deteve‐se de imediato.
—Este não
é um
gracejo
—
disse
irritado.
—Isto
é coisa
séria
—
e nem
acabou
de dizê‐lo e sorriu, e com um gesto desvaído perguntou a si mesmo: —O que estou
fazendo? Estou me irritando com você, como se dispusesse de tempo para isso. Que
vergonha! O nagual Juan Matus já me havia advertido que somos uma merda até o
momento final. Abraçou‐me com força, como se voltasse de uma longa ausência. —Não creio que seja uma boa idéia que eu vá ao México. Sua resposta foi como a de um militar dando ordens. —Cancele tudo. Já não resta tempo. Eu, feliz, respondi:
—Jawoh! Mein
Gruppenführer!
Distendido, ele riu. Enquanto viajávamos pelo Arizona me assaltou uma estranha sensação, uma
sensação física parecida a um calafrio, que se estendia desde o útero a todo o corpo, eriçando a pele; a sensação de que algo andava mal, misturada com um elemento
totalmente novo: certeza absoluta. —Acabo de ter uma intuição. Algo está mal! — disse, e minha voz se tornou
aguda contra minha vontade. Como se fosse o mais natural do mundo, e depois de assentir com um
movimento de cabeça, Isidoro Baltazar me informou que os feiticeiros estavam de
partida do
mundo.
—Quando?! — perguntei, deixando escapar um grito involuntário. —Talvez amanhã, ou passado ou dentro de um mês, mas sua partida é
iminente. Com um suspiro de alívio me acomodei no assento e me relaxei
conscientemente. —Estão dizendo que vão partir desde o dia em que os conheci, já faz mais de
três anos — murmurei, com a sensação de que não deveria tê‐lo dito. Isidoro Baltazar se virou para olhar‐me, seu rosto tinha por um lado uma
expressão de desprezo, e por outro de empenho em se livrar dessa expressão. Sorriu,
bateu
em
meu
joelho
e
disse
com
suavidade
que
no
mundo
dos
feiticeiros
não
se
deveria tomar as coisas tão ao pé da letra.
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169
—Se os feiticeiros lhe repetem algo até te fartar é porque desejam preparar‐te
para isso — e acrescentou, com um olhar sério: —Não confunda seus procedimentos mágicos com suas bobagens.
Suas palavras não provocaram raiva em mim. Meu medo era demasiado
intenso para permitir‐me esse luxo. Aceitei‐as em silêncio.
A viagem
foi
muito
rápida,
ou
ao
menos
assim
me
pareceu.
Nós
revezamos
na
direção e no descanso, e ao meio‐dia do dia seguinte chegamos à casa das bruxas. Não
perdemos tempo. Nem bem desligou‐se o motor do carro o abandonamos para correr até a casa.
—O que aconteceu? — perguntou o cuidador, surpreendido por nossa abrupta e ruidosa chegada. —O que fazem vocês, estão brigando ou estão se perseguindo um
ao outro? —Quando se vão? Quando se vão? — repeti mecanicamente, incapaz de conter
minha ansiedade e temor. Rindo, o cuidador espalmou minhas costas e pronunciou palavras de ânimo.
—Não vou
a nenhum
lado.
Não
vai
se
livrar
de
mim
tão
facilmente.
—
Apesar
de soar genuínas, suas palavras não eliminaram minha ansiedade. Examinei seu rosto e seus olhos, procurando descobrir algum indício de
mentira, mas só vi sinceridade e bondade. Quando notei que Isidoro Baltazar já não
estava ao meu lado me dominou de novo a tensão. Havia desaparecido veloz e
silencioso como uma sombra. O cuidador percebeu essa agitação, e com um gesto
assinalou a casa. Ouvi a voz de Isidoro Baltazar, ao que parecia em tom de protesto, e
logo sua risada. —Estão todos aqui? — perguntei, tentando abrir passagem. —Estão lá dentro — respondeu o cuidador, e abriu os braços para deter‐me. —
Não podem
receber
você
neste
momento.
Não
te
esperavam
—
incrementou,
ao
ver
que eu estava por protestar. —Querem que eu te fale antes de receber‐te. — Pegou
minha mão e me afastou da porta. —Vamos aos fundos para recolher folhas — propôs. —Nós as queimaremos e deixaremos as cinzas às fadas aquáticas. Talvez as transformem em ouro.
Não pronunciamos uma só palavra enquanto recolhíamos monte após monte
de folhas, mas a atividade física e o som do rastelo que raspava a terra me
tranquilizaram. Me pareceu que leváramos horas recolhendo folhas, quando de
repente soube que não estávamos sozinhos no pátio, e ao dar uma volta vi a Florinda. Vestida de camisa e calças brancas, parecia uma aparição. Um chapéu de palha
protegia seu
rosto,
de
aba
muito
larga,
na
mão
levava
um
leque
de
renda,
e sua
atitude era tão remota que parecia não ser de todo humana. Eu, imóvel, observei‐a
fascinada. Perguntando‐me se repararia em minha presença, e com passos vacilantes, me
aproximei a ela, e ao perceber que, de nenhuma maneira, registrava minha
proximidade, me detive indecisa. Não se tratava de um intento de proteger‐me contra uma rejeição, nem de temor em ser desdenhada. Uma indeterminada e contudo
aceitada norma que impediu que lhe exigisse prestar‐me atenção. Não obstante, quando o cuidador se sentou junto a ela no banco, peguei o rastelo apoiado contra uma árvore e aos poucos fui me aproximando. O cuidador, atento às palavras de
Florinda,
apenas
acusou
meu
propósito
com
um
distraído
sorriso.
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170
Falavam um idioma desconhecido para mim, apesar do qual os escutei fascinada, sem poder determinar se era essa língua ou o afeto de Florinda pelo velho o
que conferia à sua voz rouca uma qualidade por sua vez terna, suave e estranha. De repente Florinda ficou de pé, e como se a impulsionasse alguma mola
invisível, percorreu o terreno com os movimentos ziguezagueantes de um beija‐flor,
fazendo uma
parada
junto
a cada
árvore,
tocando
aqui
uma
folha
e ali
uma
flor.
Levantei minha mão para atrair sua atenção, mas me distraiu uma mariposa, que tecia sombras azuis no ar, e que pousou depois sobre minha mão para projetar sua sombra escura sobre meus dedos. Depois esfregou a cabeça contra as patas, abriu
e fechou várias vezes as asas, e retomou seu vôo, deixando sobre meu dedo médio um
anel em forma de mariposa triangular. Segura de que se tratava de uma ilusão de
óptica, sacudi repetidas vezes minha mão. —É um truque, não é? — perguntei ao cuidador. —Uma ilusão de óptica? Negou com a cabeça, seu rosto se enrugou num radiante sorriso, e tomando
minha mão comentou:
—É um
lindo
anel;
um
esplêndido
presente.
Repeti suas palavras: “um presente”. Tive um breve lampejo de intuição, que
desapareceu para deixar‐me desorientada. —Quem colocou esse anel em meu dedo? — perguntei, observando a jóia. As
antenas e o delicado corpo que dividiam o triângulo eram de filigrana de ouro branco, e eram encravados com pequenos diamantes.
—Não havia percebido antes esse anel? — perguntou o cuidador. —Antes? — repeti desconcertada. —Antes de quê? —Tem estado usando esse anel desde que Florinda o deu de presente a você. —Mas, quando? — perguntei, tapando minha boca com a mão para aplacar
minha sensação
de
choque.
—Não
lembro
que
Florinda
tenha
me
dado
de
presente
um anel — sussurrei —, e por que não o notei antes? O cuidador deu de ombros, e ao não poder explicar‐se minha confusão, sugeriu
que talvez eu não havia reparado no anel devido a ele se encaixar tão bem em meu
dedo. Pareceu a ponto de acrescentar algo, desistiu, e em troca me sugeriu continuar com o recolhimento de folhas.
—Não posso — disse. —Preciso falar com Florinda. —Precisa falar com ela? — perguntou, como se eu tivesse enunciado algo
ridículo e insano. —Ela saiu para dar um passeio — explicou, e apontou com o dedo à
trilha que conduzia aos montes.
Consegui distinguir
sua
figura
branca,
que
por
momentos
aparecia
e logo
tornava a submergir‐se no chaparral. —Eu a alcançarei — disse. —Ela já está longe… — advertiu o cuidador. —Isso não é problema. Corri atrás de Florinda, e antes de alcançá‐la diminui meu passo para admirar a
elegância de seu andar, seus movimentos vigorosos, atléticos, realizados sem esforço, com as costas retas. Quando percebeu minha presença, Florinda se deteve
abruptamente e se virou, estendendo‐me as mãos. —Como está, querida? — perguntou, sua voz clara, alegre e muito suave.
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Em minha ansiedade por averiguar o referente ao anel, omiti saudá‐la como é
devido, e com palavras confusas perguntei‐lhe se havia sido ela quem colocou a jóia
em meu dedo. —É minha agora? — perguntei. —Sim, é sua por direito — respondeu, e havia algo em seu tom, uma
segurança, que
por
sua
vez
me
emocionou
e aterrorizou.
E no
entanto
nem
me
ocorreu recusar esse presente, sem dúvida valioso. —Possui poderes mágicos? — perguntei, deixando que a luz realçasse o brilho
de cada pedra. —Não — respondeu rindo. —Não possui nenhum tipo de poder, apesar de ser
um anel muito especial. Não por seu valor, ou porque tenha pertencido a mim, e sim
porque a pessoa que o fez era alguém muito especial. —Era joalheiro? A mesma pessoa que fez essas estranhas figuras que estão no
quarto do cuidador? —A mesma, mas não era joalheiro, e tampouco escultor, e teria rído se alguém
o chamasse
de
artista.
Sem
dúvida,
quem
via
sua
obra
não
podia
deixar
de
proclamá
‐lo
como tal, pois unicamente um artista podia ter produzido as maravilhas que ele
produziu. Florinda se afastou uns passos e deixou vagar seu olhar pelos montes, como se
a distância contivesse memórias que ela necessitava. Depois, devolvendo‐me sua
atenção, e numa voz apenas audível, revelou que tudo o que fazia esse nagual, fosse
um anel, uma parede de tijolos, lajotas para o piso, as invenções maravilhosas ou uma simples caixa de papelão, se convertia em uma peça esquisita, não só em termos de
maravilhoso artesanato, e sim pela marca inefável com a qual os imbuía. Insisti que se
o anel havia sido confeccionado por um indivíduo tão extraordinário, devia possuir
algum tipo
de
poder.
—O anel em si não possui poder algum — assegurou Florinda — independente de quem o fez. O poder participou de sua gestação. O nagual estava tão intimamente compenetrado com o que os feiticeiros chamam de intento, que pôde confeccionar este lindo anel sem ser joalheiro. O anel representa um ato de puro intento.
Resistindo a mostrar‐me como estúpida, não me animei a admitir que não tinha a menor idéia do que ela queria significar com intento, de modo que me limitei a
perguntar‐lhe o que a havia movido a fazer‐me tão maravilhoso presente. —Não creio merecê‐lo — acrescentei. —Usará o anel para alinhar‐se com o intento — foram suas instruções,
acompanhadas por
um
sorriso
perverso
—,
mas
naturalmente
você
já
sabe
como
fazer
esse alinhamento. —Não sei nada desse assunto — respondi defensivamente, e em seguida
confessei minha ignorância sobre o tema. —Talvez não conheça o significado da palavra, mas sua intuição sabe como
fazer uma conexão com essa força. — Aproximou sua cabeça à minha, e me fez saber que eu sempre havia usado do intento para mover‐me dos ensonhos à realidade, ou
para fazer realidade meu ensonho, fosse qual fosse. Olhou‐me de forma expectativa, sem dúvida esperando que eu chegasse a conclusões óbvias, e ao constatar minha
expressão desorientada, acrescentou:
—Tanto
as
invenções
que
viu
no
quarto
do
cuidador
como
o
anel
foram
feitos
em ensonhos.
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—Continuo sem compreender — lamentei‐me. —As invenções te assustam, e o anel te encanta, e dado que ambos são
ensonhos poderia ser o oposto…
—Você me assusta, Florinda. O que quer dizer com isso? —Este, querida, é um mundo de ensonhos. Te estamos ensinando a consegui‐
los por
sua
conta
—
manteve
seus
olhos
escuros
e brilhantes
fixos
nos
meus
por
uns
instantes, e depois prosseguiu: —Neste momento todos os feiticeiros do grupo de
Mariano Aureliano te ajudam a entrar neste mundo, e também a permanecer nele… —
guardou silêncio uns momentos e depois concedeu que minha energia era agora maior que antigamente. —Energia que vem de suas economias, e do empréstimo que todos te fizemos. — Sua metáfora bancária era bem clara, mas ainda não compreendia sua
referência ao anel e ao quarto do cuidador. —Olhe ao seu redor! — exclamou, estendendo os braços. —Este não é o
mundo cotidiano! — de novo observou um silêncio, desta vez longo, e depois perguntou em voz baixa se no mundo dos afazeres diários era factível que as
mariposas se
transformassem
em
anéis.
—Um
mundo
—
disse
—
seguro
e
rigorosamente estruturado pelas regras que nos foram designadas não permite esses prodígios.
Eu carecia de resposta. Olhei em volta: as árvores, os arbustos, as montanhas distantes. Continuava me escapando sua dedução. O que ela queria indicar, concluí, teria que ser algo puramente subjetivo.
—Não o é! — insistiu Florinda, lendo meus pensamentos. —Este é o ensonho
de um feiticeiro. É algo real. Você entrou nele pois possui a energia necessária. Me observou resignada e disse: —Não existem maneiras para ensinar à mulher a ensonhar. O único que se
pode fazer
é apoiá
‐las
para
que
recebam
o tremendo
potencial
de
que
dispõe
seu
organismo. “Posto que para uma mulher o ensonhar é questão de dispor de energia, o
importante é convencê‐la da necessidade de modificar sua profunda socialização a fim
de adquirir essa energia. O ato de fazer uso dela é automático; as mulheres ensonham
ensonhos de feiticeiros no instante que têm à sua disposição essa energia.” Confessou que uma questão séria acerca dos ensonhos dos feiticeiros,
verificada em suas próprias experiências, era a dificuldade de imbuir às mulheres de
valor necessário para abrir novos caminhos. A maioria delas — e confessou ser uma delas — prefere suas cadeias conhecidas ao terror do novo.
—O ensonhar
é unicamente
para
mulheres
valentes
—
me
sussurrou
ao
ouvido.
Depois riu forte e agregou: —Ou para aquelas que não têm outra opção, pois suas circunstâncias são intoleráveis, uma categoria à qual pertence a maioria do sexo
feminino, sem sabê‐lo. O som de sua risada rouca teve um raro efeito em mim, algo assim como se
tivesse despertado de um longo sono e recordado algo esquecido enquanto dormia. —Isidoro Baltazar me falou da iminente partida. Quando é que partem? —Ainda não vou a parte alguma — disse com voz firme, mas tingida por uma
infinita tristeza. —Sua mestra de ensonhos e eu ficaremos. O resto se dissipa. Não compreendi o significado de sua explicação, e visando ocultar minha
confusão
recorri
a
um
comentário
jocoso.
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173
—Em três anos minha mestra de ensonhos, Zuleica, não me dirigiu a palavra. Você e Esperanza são as únicas que me têm guiado e ensinado.
As gargalhadas de Florinda reverberaram em torno de nós, um som alegre que
por sua vez me produziu um intenso alívio e desconcerto. —Explique‐me algo, Florinda. Quando me deu este anel? Como é que passei de
recolher folhas
a possuir
esta
beleza?
O rosto de Florinda resplandecia de contentamento ao explicar que o
recolhimento de folhas pode muito bem ser tomado como um dos acessos ao ensonho
dos feiticeiros, sempre e quando se dispunha da suficiente energia como para cruzar o
umbral. Tomando minha mão acrescentou: —Eu te dei o anel enquanto estava cruzando, e no entanto sua mente não
registrou o feito. De repente, quando já estava dentro do ensonho, o descobriu em seu
dedo. Olhei‐a com curiosidade. Havia algo incompreensível em sua explicação, algo
vago e confuso.
—Regressemos à casa — sugeriu — e cruzemos de novo esse umbral. Talvez agora o reconheça.
Voltamos sem pressa pelo mesmo caminho, aproximando‐nos da casa por trás. Eu tomei a dianteira para ter a perfeita noção de tudo, e com olhos bem alertas, inspecionei as árvores, as lajotas e as paredes em busca de algum indício de mudança, ou algo que me permitisse interpretar a transição. O único ponto destacável acabou
sendo a ausência do cuidador, e quando me virei para informar a Florinda que nada
havia percebido a respeito da transição, ela já não estava ali. Havia desaparecido, deixando‐me sozinha.
Entrei na
casa,
e mais
uma
vez
a encontrei
vazia,
mas
esta
sensação
de
solidão
já não me assustava. O temor do abandono havia perdido sua validade. Automaticamente me encaminhei à cozinha e comi os tamales de frango que haviam
sobrado dentro de um cesto. Depois busquei minha rede e tentei por ordem em meus pensamentos.
Ao despertar encontrei‐me sobre uma cama num quarto pequeno e escuro. Olhei ao redor, desesperada, em busca de uma explicação, e ao detectar umas sombras grandes que se agitavam perto da porta, me levantei. Em meu afã entre
descobrir se a porta estava aberta, e com as sombras dentro do quarto, busquei o
pinico sob a cama que, de alguma maneira, sabia que se encontrava ali, e o joguei. O
pinico caiu
do
lado
de
fora,
rasgando
o silêncio
com
seu
ruído.
As sombras desapareceram, e para assegurar‐me de que não foram simples produto de minha imaginação, abandonei o recinto. Desorientada, fixei a vista no alto
cercado de algarobo, e de repente reconheci estar na parte posterior da casa pequena. Tudo isto ocupava minha mente enquanto buscava o pinico, que havia rodado até
alcançar o cercado de algarobo. Quando me inclinei para recuperá‐lo, um coiote se aproveitou para escapulir, e
num gesto automático eu o joguei. O pinico errou o alvo e repicou numa pedra, mas o
animal, indiferente ao ruído e à minha presença, prosseguiu seu caminho, e teve a
audácia de virar várias vezes a cabeça para olhar‐me. Sua pele tinha o brilho prateado,
e
sua
espessa
cauda,
convertida
em
varinha
mágica,
despertava
cada
pedra
ao
tocá‐
la,
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174
e estas, ao adquirir vida, lábios falantes e olhos que brilhavam, formulavam estranhas perguntas em vozes demasiado frágeis para ser escutadas.
Meu alarme se fez grito, enquanto as pedras se aproximavam velozes. De
imediato soube que estava ensonhando. —Este é um de meus costumeiros pesadelos — murmurei. —Com seus
monstros, seus
medos
e todos
os
demais.
Convencida de que uma vez reconhecido e enunciado o problema seus efeitos eram neutralizados, me resignei a viver o terror do pesadelo, quando ouvi a uma voz dizer: —Tente o caminho dos ensonhos.
Ao virar‐me encontrei a Esperanza parada sob a ramada, cuidando de um fogo
acendido sobre uma plataforma elevada, feita de varas e revestida de barro, e sob cuja
luz ela se mostrava estranha e distante, separada de mim por uma distância em nada relacionada com o espaço.
—Não tenha medo — ordenou, e depois em voz mais baixa —, todos compartilhamos nossos ensonhos, mas agora não está ensonhando — declaração que
precisou repetir
ao
ver
a dúvida
estampada
em
meu
rosto.
Cheguei mais perto dela. Não só sua voz havia perdido seu toque familiar, assim
como ela mesma parecia diferente. De onde eu me encontrava era Esperanza, apesar do qual se parecia com Zuleica. Ao me aproximar mais comprovei que era Zuleica, jovem, forte e linda, com não mais de quarenta anos. Seu rosto ovalado tinha por marco cabelos negros e ondulados, que começavam a ficar grisalhos, com um
semblante pálido e coroado por olhos escuros e úmidos, bem separados um do outro, e seu olhar abstraído, enigmático e muito puro. Seu lábio superior, muito fino, insinuava severidade, enquanto o inferior, quase voluptuoso, falava de doçura e
também de paixão.
Fascinada pela
mudança
operada
nela
não
pude
tirar
os
olhos
de
cima
dela,
e concluí que, sem dúvida, ensonhava. Seu riso revelou que havia lido meus
pensamentos. Pegou minha mão e me falou com doçura: —Não está ensonhando, querida. Este é meu verdadeiro eu. Sou sua mestra de
ensonhos, sou Zuleica. Esperanza é meu outro eu. Os feiticeiros o chamam “o corpo
energético ou o corpo de ensonhos”. Meu coração batia com uma violência tal que me doía o peito, e a ansiedade e
a agitação por pouco me afogaram. Tentei retirar minha mão, que ela retinha com tal firmeza que não pude quebrar. Fechei os olhos com força, pois mais que nada não
desejava vê‐la ao abri‐los novamente mas, é claro, ali estava, com os lábios abertos
num radiante
sorriso.
Fechei
de
novo
os
olhos
e saltei
socando
o ar
como
se
tivesse
ficado louca, e com minha mão livre me esbofeteei repetidas vezes até causar‐me
intensa dor. De nada serviu; não conseguia despertar. Cada vez que abria os olhos foi para me ver de frente a ela.
—Me parece que já teve o bastante — disse rindo, quando lhe ordenei que me
golpeasse, e apesar disso me obedeceu, administrando‐me dois fortes golpes na parte
superior de meus braços com seu bastão. —De nada serve, querida — disse com uma voz que soava cansada; suspirou
fundo e soltou minha mão. —Não está ensonhando, e eu sou Zuleica, mas quando
ensonho sou Esperanza e algo mais também, mas melhor deixarmos isso para outra
oportunidade.
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Eu queria dizer algo, não importava o que, mas não podia falar. Minha língua estava paralisada, e só emiti um lamento mirrado. Procurei relaxar‐me mediante certo
modo de respirar aprendido numa aula de yoga. Meus esforços lhe causaram graça, e
sua risada surtiu o efeito de acalmar‐me, tal era seu calor e a confiança que irradiava. Instantaneamente meu corpo se relaxou.
—Você é uma
espreitadora,
e por
direito
pertence
à Florinda
—
disse,
e sua
voz
não admitia discussão ou contradição. —Também é sonâmbula e uma grande
ensonhadora natural, e em virtude disso também pertence a mim. Gostaria de ter rido e dizer‐lhe que estava completamente louca, porém outro
aspecto meu estava em completo acordo com sua declaração. —Como quer que eu lhe chame? — perguntei. —Como quero que me chame? — repetiu, olhando‐me como se a pergunta
fosse absurda. —Eu sou Zuleica. O que acha que é isto? Um jogo? Aqui não nos dedicamos aos jogos.
Surpreendida por sua veemência, apenas me ocorreu murmurar que não havia
pensado que
fosse
um
jogo.
—Quando ensonho sou Esperanza — continuou. Ela parecia séria, mas ao
mesmo tempo radiante, a voz incisiva e intensa. —Quando não ensonho sou Zuleica, mas ser Esperanza, Zuleica ou qualquer outra não diz respeito a você. Sigo sendo sua
mestra de ensonhos. Só pude assentir com um desvaído movimento de cabeça. Ainda se tivesse tido
algo para dizer não teria podido fazê‐lo. Senti que um suor frio me escorria pelo corpo, minhas entranhas se afrouxaram e minha bexiga estava a ponto de estourar. Queria ir ao banheiro para aliviar‐me e vomitar. Não pude resistir; era questão de me
emporcalhar ali mesmo ou correr ao toalete. Por sorte reuni a suficiente energia para
optar pelo
último.
A
risada
juvenil
de
Zuleica
me
acompanhou
por
todo
o trajeto.
Quando voltei me convidou a sentar‐me junto a ela em um banco de madeira. Obedeci automaticamente, sentando‐me na borda e pregando minhas mãos nervosas sobre os joelhos.
Em seus olhos se refletia uma dureza que, mitigada pela bondade, me levou à
certeza de que era, antes de tudo, um expoente de disciplina interna. Seu implacável autocontrole havia estampado todo seu ser com um atrativo selo ao mesmo tempo
fugidio e esotérico, mas não o esoterismo de comportamento oculto e furtivo, mas sim
o do misterioso e desconhecido, e por tal razão, cada vez que a via, a seguia como um
cachorro segue a seu dono.
—Hoje você
experimentou
duas
transições
—
explicou.
—Uma,
do
estado
de
estar normalmente desperta ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta a estar normalmente desperta. A primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda um pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira.
Consegui dar um sorriso forçado. —Mas ainda não sei o que foi que fiz. Não guardo memória de meus passos. As
coisas me acontecem, e me encontro em meio de um ensonho sem saber como
cheguei ali. —O normal é começar a ensonhar dormindo numa rede ou algum utensílio
similar, pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos
contato
com
o
chão.
O
sólo
nos
captura,
não
esqueça
disso.
Suspendido
assim,
um
ensonhador novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de
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ensonhar um ensonho a ensonhar desperto. Tudo isto, como já lhe disse Florinda, é
questão de energia. Assim que a tem, você voa. “Agora seu problema será se conseguirá armazenar suficiente energia por você
mesma, pois os feiticeiros já não poderão emprestá‐la — e Zuleica elevou suas sobrancelhas exageradamente antes de agregar: —Veremos. Eu tratarei de relembrar‐
lhe isso
na
próxima
vez
em
que
nós
compartilharmos
nossos
ensonhos
—
e riu
como
uma criança ao observar o desconcerto que refletia meu rosto. —Como fazemos para compartilhar nossos ensonhos? — perguntei, buscando a
resposta nesses olhos incomparáveis, escuros e brilhantes, cujas pupilas irradiavam
uma intensa luz. Em lugar de responder Zuleica adicionou um par de lenhas ao fogo que, ao
reavivar‐se, intensificou a luz circundante. Por um instante permaneceu imóvel, com
os olhos fixos nas chamas, como recolhendo a luz, e depois de dirigir‐me um breve e
pungente olhar, sentou‐se em cócoras e envolveu seus joelhos com seus fortes e
musculosos braços, e contemplando a escuridão, atenta ao crepitar do fogo, começou
a balançar
‐se
de
lado
a lado.
—Como compartilhamos nossos ensonhos? — repeti. Zuleica deteve seu movimento oscilante, sacudiu a cabeça, e depois levantou a
vista, surpreendida, como se acabasse de acordar. —Por agora me é impossível explicar isso. O ensonhar é incompreensível. Tem
que vivê‐lo, não discuti‐lo, assim como no mundo diário, onde antes de explicar ou
analisar algo tem que tê‐lo experimentado. — disse isto de maneira lenta e deliberada, admitindo a importância de explicar os passos à medida que se davam. —Contudo, as explicações são às vezes prematuras, e este é um desses casos. Algum dia verá o
sentido de tudo isto — concluiu, ao notar o desencanto que transmitia meu rosto.
Com um
movimento
rápido
ficou
de
pé
e voltou
à contemplação
do
fogo,
como
se seus olhos necessitassem nutrir‐se de sua luz. Sua sombra projetada pelas chamas se fez enorme contra o teto e a parede da ramada, e sem sequer se despedir, recolheu
suas amplas saias e buscou o refúgio da casa. Incapaz de mover‐me, fiquei pregada ao chão, apenas respirando à medida que
o ressoar de suas sandálias se afastava. —Não me deixe! — gritei aterrada —, há coisas que preciso saber. Zuleica reapareceu de imediato. —O que precisa saber? — perguntou em tom distraído. —Sinto muito — me desculpei —, não foi minha intenção gritar. Achei que
havia entrado
em
um
dos
quartos
—
e meu
olhar
implorante
esperou
conseguir
dela
a almejada explicação.
Não explicou nada, limitando‐se a repetir sua pergunta. Perguntei a primeira coisa que me ocorreu:
—Falará de novo comigo quando eu voltar a lhe ver? — temerosa de que se
não falasse ela tornaria a desaparecer. —Quando te ver de novo não estaremos no mesmo mundo de antes —
respondeu. —Quem sabe o que faremos lá? —Mas a pouco — insisti — você me disse que é minha mestra de ensonhos.
Não me deixe no escuro. Explique‐me as coisas. Não aguento mais este tormento;
estou
partida
em
dois.
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—Assim é — concordou. —Por certo está dividida — e me olhou com infinita bondade —, mas isso se deve a que não abandona seus velhos hábitos. É uma boa
ensonhadora. O cérebro dos sonâmbulos possui um potencial formidável; isso é… se
você se decide a cultivar seu caráter. Apenas escutei o que dizia. Tentei em vão por em ordem meus pensamentos.
Uma sucessão
de
imagens
de
acontecimentos
não
bem
recordados
desfilou
por
minha
mente com incrível rapidez, mas minha vontade não conseguia controlar sua ordem
nem sua natureza. Depois estas imagens se transformaram em sensações, as quais, não obstante sua precisão, recusavam definir‐se, recusavam transformar‐se em
palavras ou nem sequer em pensamentos. Obviamente consciente de minha incapacidade, o rosto de Zuleica se iluminou
com um sorriso. —Todos, e a todo o momento, temos ajudado ao nagual Mariano Aureliano a
empurrar você à segunda atenção. Ali encontramos continuidade e fluidez, assim
como na vida diária. Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente
neles. No
entanto,
o que
não
podemos
conseguir
na
segunda
atenção
é esmiuçar
nossa experiência para manejá‐la, nos sentirmos seguros e entendê‐la. Enquanto falava eu pensava comigo: “Está perdendo seu tempo dizendo‐me
tudo isto… Não sabe por acaso que sou por demais estúpida para entender suas explicações?”, mas ela continuou falando, sorrindo, obviamente sabendo que se eu
admitisse não ser muito esperta, isso equivaleria a também admitir que em algo eu
havia mudado; caso contrário, não me concederia tal fato nem a mim mesma. —Na segunda atenção — continuou — ou como eu prefiro chamá‐la, quando
ensonhamos despertos, a pessoa deve crer que o ensonho é tão verdadeiro como no
mundo real. Em outras palavras, devemos aceder . Para os feiticeiros todo negócio
mundano ou
extramundano
está
regido
por
seus
atos
irretocáveis,
e detrás
de
todo
ato irretocável está o aceder , que não é aceitação passiva. O aceder inclui um
elemento dinâmico: inclui ação — e sua voz se fez suave, e havia em seus olhos um
brilho febril quando terminou dizendo: —No momento em que começamos a
ensonhar desperto se nos abre um mundo de incitantes e inexploradas possibilidades, onde a última audácia se converte em realidade, onde se espera o inesperado. Esse é o
momento em que começa a aventura definitiva do homem, e o universo se converte em um lugar de possibilidades e maravilhas ilimitadas.
Seguiu‐se a isto um longo silêncio, durante o qual Zuleica pareceu estar ponderando suas próximas palavras.
—Com a ajuda
do
nagual
Mariano
Aureliano
você
chegou
a contemplar
o resplendor dos surem — começou, com voz suave e séria —, essas criaturas mágicas,
que existem somente nas lendas dos índios, e que os feiticeiros podem ver unicamente quando ensonham despertos ao nível mais profundo. São seres de outro mundo, que
brilham como seres humanos fosforescentes. Em continuação me deu um boa‐noite e entrou na casa, e após um momento
de desconcerto corri atrás dela, mas antes de alcançar o umbral ouvi a voz de Florinda dizendo:
—Não a siga! A presença de Florinda me foi tão inesperada que precisei apoiar‐me contra a
parede
até
que
as
batidas
de
meu
coração
se
normalizassem.
—Vem, faça‐me companhia — sugeriu.
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Estava sentada no banco, alimentando o fogo, e a luz esquiva de seus olhos e a
brancura fantasmal de seus cabelos eram mais uma memória que uma visão. Deitei‐me sobre o banco como se fosse o mais natural, e coloquei minha cabeça em sua saia.
—Nunca siga a Zuleica ou a nenhum de nós, a menos que se te peça que o faça — advertiu Florinda, penteando meus cabelos com seus dedos. —Como você sabe
muito bem,
Zuleica
não
é o que
parece
ser.
Sempre
é mais,
muito
mais
que
isso.
Nunca
trate de defini‐la, pois quando achar ter esgotado todas as possibilidades, te fará em
pedaços ao ser mais do que você pode imaginar em suas mais delirantes fantasias. —Eu sei — respondi, acompanhando minhas palavras com um suspiro de alívio.
Sentia que a tensão abandonava meu rosto e também meu corpo. —Zuleica é um
surem das montanhas do Bacatete — disse com absoluta convicção —, faz tempo que
conheço a existência dessas criaturas — e ao notar a surpresa no rosto de Florinda me
encorajei. —Zuleica não nasceu como qualquer ser humano. Ela foi estabelecida, foi criada. É a própria encarnação da feitiçaria.
—Não… — e a contradição de Florinda foi enfática. —Zuleica nasceu, mas
Esperanza não.
Pense
neste
enigma.
—Creio compreender — murmurei —, mas sou muito insensível e não posso
formular o que entendo. —Vai indo por um bom caminho — comentou risonha. —Sendo como é,
normalmente insensível, deve esperar a estar bem desperta, cem por cento desperta, para poder entender. Neste momento só alcança os cinquenta por cento. O segredo
está em permanecer em estado de consciência acrescentada, onde nada nos é
impossível compreender — e ao adivinhar minha intenção de interrompê‐la, cobriu
minha boca com sua mão. —Não pense nisso agora. Lembre‐se sempre que é
compulsiva, ainda que em estado de consciência acrescentada, e que seus
pensamentos não
são
profundos.
Ouvi que algo se movia nas sombras que os arbustos projetavam, e levantando‐
me exigi que, quem quer que fosse, se identificasse. Me responderam risos femininos. —Não pode vê‐las — anunciou Florinda. —E por que se escondem de mim? —Não se escondem de ti — explicou Florinda com um sorriso. —É só que você
não pode vê‐las sem a ajuda do nagual Mariano Aureliano. Não soube o que dizer. Por um lado, as palavras de Florinda tinham sentido,
apesar ao qual me encontrei meneando a cabeça num gesto negativo. —Pode me ajudar a vê‐las?
—Mas seus
olhos
estão
cansados
—
objetou
Florinda
—,
cansados
de
ver
em
excesso. Precisa dormir. Deliberadamente mantive os olhos bem abertos, temerosa de perder o que
emergisse dos arbustos assim que eu diminuísse minha atenção, e fiquei olhando as sombras e os arbustos sem poder determinar qual era qual, até cair num sono
profundo.
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CAPÍTULO DEZOITO
O cuidador se encontrava cochilando sobre seu banco favorito à sombra do
sapoti. Sua atividade se havia reduzido a isso nos últimos dois dias. Já não varria os pátios nem recolhia as folhas; em troca dedicava horas a dormitar ou contemplar os
arredores, como
se
tivesse
um
secreto
entendimento
com
algo
que
só
ele
podia
ver.
Tudo havia mudado na casa, e de maneira incessante me perguntava se não
tinha sido um erro de minha parte ter vindo visitá‐los. Como de costume me sentia culpada e na defensiva, e dedicava meu tempo a dormir durante horas. Não obstante, quando estava desperta, me perturbava comprovar que já nada era igual, e percorria a
casa sem um propósito fixo. Mas tudo era inútil. Algo parecia ter fugido dessa casa. Um prolongado e sonoro suspiro do cuidador interrompeu minhas reflexões, e
já incapaz de conter durante mais tempo minha ansiedade, deixei o livro que lia, fiquei de pé e, aproximando‐me, o convidei a recolher e queimar folhas. Minha pergunta pareceu sobressaltá‐lo, mas não respondeu a ela. Era impossível captar a expressão de
seus olhos
devido
aos
óculos
escuros
que
usava,
e não
soube
se
permanecia
ali
à
espera de sua resposta ou se me afastava, e temendo que tornasse a dormir, liberei minha impaciência para perguntar‐lhe se existia uma razão para ter abandonado a
coleta e a queima das folhas. Desviou minha pergunta com uma própria. —Tem visto ou escutado cair uma folha nestes últimos dois dias? — e tirando
as lentes escuras me perfurou com o olhar. Seu porte e a severidade com que me falou, antes que as palavras em si, que
considerei ridículas, me moveram a dar‐lhe uma resposta negativa. Convidou‐me a
compartilhar seu banco, e aproximando‐se me sussurrou no ouvido:
—Estas árvores
sabem
exatamente
quando
devem
desprender
‐se
de
suas
folhas… — olhou ao redor como se temesse ser escutado, e em seguida acrescentou: —E sabem que agora não é necessário.
—As folhas secam e caem, apesar de tudo — anunciei pomposamente. —É uma lei da natureza.
—Estas árvores são muito caprichosas — manteve, teimoso —, têm mente
própria, não respeitam as leis da natureza. —E o que é que as levou a não descartar suas folhas? —Essa é uma boa pergunta — sussurrou, coçando sua barbinha em atitude
pensativa. —Lamento ainda não conhecer a resposta; as árvores não me disseram
pois, como
já
te
falei,
estas
são
árvores
temperamentais
—
e antes
que
eu
pudesse
responder me surpreendeu com algo totalmente inesperado: —Já preparou sua
comida? A abrupta mudança de tema me desorientou. Admiti ter‐me preparado o
almoço, depois do qual se apoderou de mim um humor quase desafiante, que me fez dizer:
—Não é que a comida me interesse tanto. Estou acostumada a comer o
mesmo, dia após dia, e se não fosse que o chocolate e as nozes me produzissem
espinhas na cara, viveria sempre disso… — depois abandonei toda precaução, e
comecei a queixar‐me. Disse ao cuidador que desejava que as mulheres me falassem.
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—Apreciaria de que me mantivessem a par do que está acontecendo, pois a
ansiedade está me matando — e ao descarregar‐me me senti melhor, muito aliviada. —É verdade que se vão para sempre?
—Já partiram para sempre — informou o cuidador, que ao ver minha expressão
desconcertada, acrescentou: — Mas você já sabia, não é? Está falando só para puxar
conversa, não
é verdade?
Antes que eu conseguisse me refazer do choque, perguntou num tom de
autêntica perplexidade: —Por que isso te afeta? — e respondeu a si mesmo após uma pausa: —Já sei!
Já o tenho! Está furiosa porque levaram a Isidoro Baltazar com eles. — Deu‐me um
tapa nas costas como para enfatizar cada palavra, seu olhar me dizia que pouco lhe
importava que eu desembocasse em lágrimas ou em um de meus ataques de raiva. Saber que carecia de público me serenou de imediato o ânimo. —Isso eu não sabia — murmurei —, juro que não o sabia. — Senti meu rosto
exausto, dor nos joelhos e uma tremenda opressão no peito, e sentindo‐me próxima
de desmaiar,
aferrei
ambas
as
mãos
ao
banco.
As palavras do cuidador me chegaram de muito longe: —Ninguém sabe se
regressará, nem sequer eu. Minha impressão pessoal é que se foi com eles temporariamente, mas voltará, se não logo, então algum dia. Essa é minha opinião.
Tentei descobrir em seus olhos algum sinal de fingimento, mas seu rosto
irradiava bondade e honestidade, e seus olhos brilhavam sinceros como os de uma criança.
—Não obstante — advertiu o cuidador —, quando regressar, já não será Isidoro
Baltazar, o Isidoro Baltazar que você conheceu. Esse se foi, e sabe o que é o mais triste? — e de novo, após uma pausa, respondeu sua própria pergunta. —Você o
aceitou como
algo
tão
natural
que
nem
sequer
lhe
agradeceu
por
seus
cuidados,
sua
ajuda e seu afeto por você. Nossa grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a
tudo salvo nossa bufonaria. Eu me sentia oprimida demais até para emitir palavra. Com um de seus usuais
movimentos abruptos, o cuidador ficou de pé e caminhou em direção ao caminho que
conduzia à outra casa. Diria‐se que era como se estivesse envergonhado demais para permanecer comigo.
—Não pode me deixar aqui, sozinha! — gritei‐lhe. Virou‐se para me fazer sinais com a mão, e depois começou a rir, com uma
risada alegre que ressoava no chaparral. Agitou sua mão pela última vez, e depois
desapareceu como
se
os
arbustos
o
tivessem
tragado.
Incapaz de segui‐lo, aguardei seu regresso, ou uma de suas súbitas aparições para assustar‐me. Já estava me preparando para tal susto, intuído em meu corpo, mais que antecipado mentalmente. Como já havia acontecido anteriormente, não vi nem
escutei a Esperanza aproximar‐se, ainda que tenha percebido sua presença. Eu me
virei, e ali estava, sentada no banco sob o sapoti, e o simples fato de vê‐la me encheu
de alegria. —Pensei que nunca te veria de novo — suspirei. —Quase me havia resignado a
isso. Pensei que havia partido. —Santo Deus! — comentou com um toque jocoso.
—Você
é
na
verdade
Zuleica?
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—Nem sonhe isso. Sou Esperanza. E você, o que faz? Está se pondo maluca, fazendo perguntas às quais ninguém pode responder?
Jamais em minha vida estive tão perto de um colapso total como nesse
momento. Senti que minha mente não aguentaria tanta pressão, e que minha angústia e minha inquietação me destruiriam.
—Força, garota
—
ordenou
Esperanza
com
dureza
—,
ainda
falta
o pior,
mas
não podemos ter piedade contigo. Parar a pressão porque está por vir abaixo não é
coisa de feiticeiros. Seu desafio é o de ser posta à prova hoje. Ou vive ou morre, e não
o digo metaforicamente. —Já não verei mais a Isidoro Baltazar? — perguntei através das lágrimas que
me tornavam difícil o falar. —Não posso mentir para lhe evitar a dor. Não, nunca regressará. Isidoro
Baltazar é só um momento de feitiçaria. Um ensonho que passou depois de ser ensonhado. Isidoro Baltazar, assim como o ensonho, já se dissipou.
Um leve sorriso, quase nostálgico, curvou seus lábios.
—O que
ainda
não
sei
é se
este
homem,
o novo
nagual,
também
se
foi
definitivamente. Logicamente você entende que, mesmo se ele voltar, não será Isidoro
Baltazar. Será outra pessoa, que você terá que conhecer de novo. —Será um desconhecido para mim? — perguntei não muito segura de querer
sabê‐lo. —Não o sei, filha — respondeu com o desânimo próprio da incerteza. —
Sinceramente não o sei. Eu mesma sou um ensonho, como também o é o novo nagual. Ensonhos como nós têm a marca de não ser permanentes, pois é nossa impermanência o que nos permite existir. Nada nos retém exceto o ensonho.
Cegada por minhas lágrimas me era quase impossível vê‐la.
—Para aliviar
sua
pena
afunde
‐se
em
si
mesma
—
aconselhou.
—Sente
‐se
com
os joelhos elevados, tomando seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo
direito com a mão esquerda. Descansa sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a terra te acalme, que sua força curativa venha a ti.
Sentei‐me no chão da maneira aconselhada, e num curto tempo minha tristeza havia se dissipado, substituída por uma sensação corporal de bem‐estar. Perdi a noção
de mim mesma, salvo em relação com o momento que estava vivendo. Desprovida de
minha memória subjetiva a dor não existia. Com a mão, Esperanza assinalou o lugar junto a ela no banco, e assim que o
ocupei, ela pegou minha mão para esfregá‐la um momento, como se a estivesse
massageando. Depois
comentou
que
por
ser
uma
mão
tão
ossuda
até
que
tinha
bastante carne. Virou a palma para cima e a estudou com detenção, para terminar, sem dizer uma palavra, fechando‐a num punho. Permanecemos um longo período em
silêncio. Caía a tarde, e nada se escutava, além do rítmico som das folhas agitadas pelo
vento. Observando‐a, se apoderou de mim uma estranha certeza: sabia que Esperanza e eu havíamos falado muito a respeito de minha vinda à casa e da partida dos feiticeiros.
—O que está acontecendo comigo, Esperanza? Estou ensonhando? —Bom… — rebateu, e com olhos chispantes me recomendou submeter o
ensonho a uma prova. —Sente‐se no chão e comprove‐o.
Assim
fiz,
mas
a
única
coisa
que
senti
foi
o
frio
da
rocha
sobre
a
qual
me
sentei.
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—Não estou ensonhando — assegurei — em tal caso, por que sinto que já
falamos disso? — e estudei seu rosto a procura de algum indício que resolvesse meu
dilema. —Esta é a primeira vez que te vejo desde minha chegada, mas sinto que temos estado juntas todos os dias — disse, mais para consumo próprio que para ser escutada por Esperanza. —Já são sete dias.
—Muito mais
que
isso
—
respondeu
—,
mas
é algo
que
precisa
resolver
sozinha, com um mínimo de ajuda. Manifestei meu acordo. Era muito o quê queria perguntar, mas sabia e aceitava
que falar seria inútil. Sabia, sem saber como o sabia, que já havíamos tocado em todos esses temas, e que me encontrava saturada de respostas. Esperanza me observou
pensativa e duvidosa. Depois, muito lentamente, enunciando suas palavras com
cuidado, disse: —Devo advertir‐lhe que a consciência que tenha adquirido, não importa quão
profunda e permanente te possa parecer a ti, é só temporária, e logo regressará às suas bobagens. Essa é a sina de nós, mulheres: ser singularmente difíceis.
—Acho que
está
equivocada
—
protestei.
—Não
me
conhece
em
absoluto.
—É precisamente porque te conheço que digo isto — e após uma pausa acrescentou com voz áspera e séria: —As mulheres são muito astutas. Lembre‐se que, ao ser criadas para ser serventes, elas se tornam extremamente furtivas e astutas — e
seu riso explosivo apagou qualquer desejo meu de protestar. “O melhor que pode fazer é não dizer nada…” — disse, e tomando minha mão
me ajudou a pôr de pé, e sugeriu entrar na casa pequena para termos uma longa e
muito necessária conversa. Não entramos na casa, e sim nos sentamos em um banco junto à porta
principal. Ficamos ali em silêncio quase uma hora, depois do qual Esperanza virou‐se
para mim.
Parecia
não
ver
‐me,
e cheguei
a perguntar
‐me
se
não
haveria
esquecido
que
eu tinha vindo com ela, e que me encontrava sentada ao seu lado. Sem reparar em
minha existência, ficou de pé para afastar‐se uns passos, olhar a outra casa, e depois de um longo período dizer:
—Vou te levar longe. Não poderia dizer se foi a esperança, a excitação ou o temor o que me
provocou uma estranha sensação desagradável na boca do estômago. Sabia que ela não se referia à distância em termos de milhas, e sim aludindo a outros mundos.
—Não me importa se é longe onde vamos — disse, bravata que estava longe de
sentir. Desesperadamente desejava saber, mas não me animava a perguntar qual seria
o destino
final
de
nossa
viagem.
Esperanza sorriu e abriu bem os braços, como para abraçar o sol poente que
morria num declínio em meio a um incêndio. As montanhas distantes eram de um
púrpura escuro, e uma leve brisa se infiltrava por entre as árvores fazendo mexer as folhas. Seguiu uma hora silenciosa e depois tudo se deteve quando o encanto do
crepúsculo imobilizou o mundo ao redor. Cessaram todos os sons e cada movimento, e
os contornos dos arbustos, das árvores e das serras se viam definidos de maneira tão
precisa que se diria que haviam sido recortados contra o céu. Me aproximei de Esperanza a medida que as sombras nos rodeavam, e o céu se
desvanecia. A visão da outra casa, silenciosa, com suas luzes brilhando como vaga‐
lumes
na
escuridão,
evocou
em
mim
uma
profunda
emoção
sepultada
em
meu
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interior, e não ligada a nenhuma vivência de momento, e sim a uma vaga, triste e
nostálgica lembrança juvenil. Devo ter estado profundamente imersa em meus pensamentos, pois de
repente me encontrei caminhando junto a Esperanza. Meu cansaço e anterior ansiedade haviam desaparecido, e cheia de uma nebulosa sensação de vigor,
marchava em
uma
espécie
de
êxtase
e de
felicidade
silenciosa,
meus
pés
impulsionados por algo superior à minha vontade. Nosso caminho terminou abruptamente. O terreno era uma ladeira, e as
árvores se estendiam bem alto sobre nossas cabeças. Grandes rochas estavam
esparramadas aqui e ali, e de longe chegava o som de águas que corriam, som
parecido a um suave e reconfortante canto. Com um suspiro, repentinamente fatigada, recostei‐me contra uma das rochas e desejei que este fosse o final de nossa viagem.
—Não chegamos ainda ao nosso destino! — gritou Esperanza, que já, movendo‐se com a agilidade de uma cabra, havia escalado a metade de um trajeto
rochoso. Não
me
esperou,
nem
sequer
voltou
seu
olhar
para
constatar
se
eu
a seguia.
Meu curto descanso me havia despojado de minha última fortaleza, e apenas pude segui‐la com dificuldade, a respiração entrecortada, resvalando entre as pedras. Na metade do caminho a trilha continuava contornando uma pedra enorme, e a
vegetação seca e quebradiça cedeu lugar a plantas frondosas, escuras na prematura luz crepuscular. Também mudou o ar, agora úmido e para mim mais respirável. Esperanza se movia com segurança pela estreita trilha cheia de sombras, silêncios e
sussurros. Conhecia os sons misteriosos da noite, e identificou em voz forte cada um
de seus gritos, chamados, coaxares e assobios. Uns degraus cortados na rocha, que
conduziam a um oculto montículo de pedras, interromperam nosso caminho.
—Recolha uma
e guarde
‐a em
seu
bolso
—
ordenou.
À primeira vista todas as pedras pareciam iguais, lisas como as de um córrego, porém uma inspeção mais detalhada revelava suas diferenças. Algumas eram tão lisas e brilhantes que pareciam ter sido lustradas. Me tomou tempo escolher uma de meu
gosto; pesada, mas que encaixava com perfeição na palma de minha mão; de uma cor marrom claro, forma de cunha e entrecruzada por veias leitosas quase translúcidas. Um ruído me sobressaltou e quase soltei a pedra.
—Alguém nos segue — adverti em voz baixa. —Ninguém está nos seguindo! — respondeu Esperanza, entre incrédula e
divertida, e riu ao ver que me refugiava atrás de uma árvore. —Possivelmente seja um
sapo saltando
entre
o matagal.
Teria querido dizer‐lhe que os sapos não saltam na escuridão, mas não estava muito certa disso, e me surpreendeu não tê‐lo dito espontaneamente, e com absoluta certeza, como era habitual em mim.
—Algo anda mal em mim, Esperanza — disse, alarmada. —Não sou a de
sempre. —Nada anda mal, querida — me assegurou. —Na verdade é mais você mesma
que nunca. —Me sinto estranha… — e minha voz se perdeu. Pela primeira vez desde minha
chegada à casa das bruxas começava a perceber uma configuração reconhecível no
que
estava
me
acontecendo.
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—É muito difícil ensinar algo tão insubstancial como ensonhar — disse
Esperanza. —Especialmente às mulheres, que somos tão preparadas e esquivas. Além
do mais, temos sido escravas toda a vida, e sabemos manipular muito bem as coisas quando não queremos que nada transtorne aquilo pelo qual tanto temos trabalhado: nosso status quo.
—Quer dizer
que
os
homens
não
fazem
o mesmo?
—Eles o fazem, contudo são mais abertos. As mulheres lutam com
subterfúgios. Sua técnica preferida é a manobra do escravo: desconectar a mente. Escutam sem prestar atenção, e olham sem ver. — Acrescentou que ensinar à mulher era tarefa digna de elogios.
—Nós gostamos da franqueza de sua forma de lutar, e temos muitas esperanças em ti. O que mais tememos é à mulher agradável, que não se opõe ao novo
e faz tudo o que lhe pedem, para depois se recriminar assim que se aborrece da
novidade. —Acho que começo a compreender — respondi, um tanto insegura.
—Mas é claro
que
começou
a compreender!
—
e sua
segurança
era
tão
comicamente triunfalista que provocou risos em mim. —Inclusive começou a entender o que é o intento.
—Quer dizer que começo a ser uma feiticeira? — perguntei, e todo meu corpo
se sacudiu quando tratei de evitar o riso. —Desde sua chegada tem estado, por momentos, ensonhando desperta. É por
isso que você dorme com tanta facilidade — e apesar de sorrir não havia em seu rosto
sinal algum de ironia ou condescendência. Caminhamos um tempo em silêncio, e depois ela disse que a diferença entre
um feiticeiro e uma pessoa comum era que o feiticeiro podia voluntariamente entrar
num estado
de
ensonhar
desperto.
Tocou
meu
braço
repetidas
vezes,
como
para
enfatizar suas palavras, e então acrescentou num tom confidencial: —E ensonha desperta porque, para ajudar‐lhe a aguçar sua energia, criamos
uma bolha em torno de ti desde a primeira noite que chegou aqui. Acrescentou que desde que me conheceram me haviam dado o sobrenome de
fosforita. —Você se queima rápido demais e de forma desnecessária. — Com um gesto
me ordenou tranquilizar‐me, e opinou que eu não sabia enfocar minha energia. —Você a desdobra para proteger e apoiar a idéia de ti mesma. — de novo seu
gesto ordenou silêncio, e disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na
realidade só uma idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia
defendendo essa
idéia.
As sobrancelhas de Esperanza se elevaram um pouco quando sorriu e disse: —O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que
pode ser mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando se afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar‐se com o
intento, e ser mais do que acreditamos constituir o normal. —As mulheres, por possuir um útero, podem enfocar sua atenção com grande
facilidade em algo fora de seus ensonhos enquanto ensonham. Isso é precisamente o
que você vem fazendo todo este tempo sem sabê‐lo. Esse objeto se converte em uma ponte que te conecta com o intento.
—E
qual
objeto
eu
uso?
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Captei um toque de impaciência em seus olhos. Depois disse que usualmente era uma janela, uma luz ou ainda uma cama.
—É tão destra nisso que o consegue naturalmente — assegurou. —Por isso tem
pesadelos. Tudo isso eu lhe disse estando você num profundo estado de ensonhar desperta, e você entendeu que, sempre e quando recuse enfocar sua atenção em
qualquer objeto
antes
de
adormecer,
conseguirá
evitar
os
pesadelos.
Está
curada,
não
é mesmo? É claro que minha reação inicial foi contradizê‐la, mas depois de pensar um
segundo não pude fazer menos que estar de acordo. Após conhecer a esta gente em
Sonora havia ficado relativamente livre de pesadelos. —Nunca estará verdadeiramente livre se persistir em ser a mesma de sempre
— declarou. —É óbvio que o que deveria fazer é explorar seus talentos para ensonhar de maneira deliberada e inteligente. Para isso está aqui, e a primeira lição é que a
mulher deve, através de seu útero, enfocar sua atenção sobre um objeto. Não um
objeto de ensonho em si, e sim um objeto independente, pertencente ao mundo
anterior ao
ensonho.
—Contudo — complementou —, não é o objeto o que importa, e sim o ato
deliberado de enfocá‐lo à vontade, antes e durante o ensonho. — Advertiu‐me que
apesar de parecer simples, tratava‐se de uma tarefa formidável, que poderia levar‐me
anos para dominá‐la. —O que normalmente acontece é que a pessoa desperta no
instante em que enfoca sua atenção num objeto externo. —O que significa usar o útero? — perguntei. —E como se consegue? —Você é mulher, e sabe sentir com o seu. Desejava contradizê‐la, dizer‐lhe que não tinha a mais remota idéia, mas antes
que pudesse fazê‐lo, ela explicou que na mulher o sentir emana do útero.
—No homem
se
origina
no
cérebro
—
e depois
de
dar
‐me
um
suave
golpe
no
estômago me recomendou pensar sobre isto. —A mulher é desapiedada exceto com
sua prole, pois seus sentimentos vêm do útero. Para enfocar sua atenção através do
útero coloque um objeto sobre seu estômago, ou esfregue‐o com seu órgão oco — e
riu com gosto ao observar a expressão de meu rosto. Então, entre risos, me
repreendeu: —E olha que não fui tão má. Podia dizer‐lhe que era necessário untar o
objeto com suas secreções, mas não o fiz. Uma vez estabelecida uma estreita afinidade com o objeto — continuou, agora séria —, sempre estará presente para servir‐lhe
como ponte. Caminhamos um trecho em silêncio, ela parecendo profundamente imersa em
seus pensamentos.
Eu
fervia
por
dizer
algo,
apesar
de
saber
que
nada
tinha
para
dizer.
Quando Esperanza finalmente falou, seu tom era sério. —Já não lhe sobra tempo para desperdiçar. É muito natural que devido à nossa
estupidez nós fodemos com as coisas, e isto os feiticeiros o sabem melhor que
ninguém. Mas igualmente sabem que não existem segundas oportunidades. Deve
aprender controle e disciplina, pois já não há margem para erros. —Você fodeu a si mesma, sabia? — disse ela. —Nem sequer sabia que Isidoro
Baltazar havia partido. O dique etéreo que continha a avalanche de sentimentos se desmoronou.
Reapareceu minha memória, e de novo me dominou a tristeza, fazendo‐se tão intensa
que
nem
me
dei
conta
de
ter‐
me
sentado
e
estar
afundando‐
me
no
chão
como
se
este
fosse de esponja. Em última instância o sólo me tragou. Não resultou ser uma
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experiência sufocante ou claustrofóbica, pois a sensação de estar sentada na superfície coexistiu com a de ser tragada pela terra, uma sensação dual que me fez gritar: “Estou
ensonhando!”, e este anúncio em voz alta desatou algo dentro de mim, uma nova avalanche de memórias diferentes me invadiu.
Cada noite, desde minha chegada, havia ensonhado o mesmo ensonho, o qual
até esse
momento
havia
esquecido.
Ensonhei
que
todas
as
feiticeiras
vinham
ao
meu
quarto para instruir‐me, e me diziam uma e outra vez que ensonhar era a função
secundária do útero, sendo a primeira a reprodução e tudo o relativo a ela. Me
disseram que ensonhar era nas mulheres uma função natural, um puro corolário de
energia. Dotado de suficiente energia o corpo da mulher, por si só, desperta as funções secundárias do útero, e a mulher ensonha ensonhos inconcebíveis.
Não obstante, essa energia necessária se assemelha à ajuda a países subdesenvolvidos: nunca chega. Algo na ordem geral de nossa estrutura social impede
que essa energia se libere para que as mulheres possam ensonhar. Segundo as feiticeiras, se essa energia fosse liberada de uma forma clara e tangível, derrubaria a
ordem “civilizada”
das
coisas.
A
grande
tragédia
da
mulher
é que
sua
consciência
social
domina por completo a individual. A mulher teme ser diferente, e não gosta de
afastar‐se por demais da comodidade do conhecido. As pressões sociais às quais se
vêem submetidas para não se afastar são simplesmente fortes demais, e ao invés de
mudar se rendem ao estabelecido: a mulher existe para estar a serviço do homem, e
portanto não pode ensonhar ensonhos de feiticeiros, apesar de possuir a disposição
orgânica para isso. O feminismo tem destruído as oportunidades da mulher, e quer seja por seu
apego religioso ou científico, marca‐as por igual com o mesmo selo: sua principal função é reproduzir, e em última análise, pouco importa se a mulher tenha alcançado
um nível
de
igualdade
política,
social
ou
econômica.
As mulheres me repetiam isto cada noite, e quanto mais recordava e entendia suas palavras, maior era minha tristeza; não só a título pessoal como por todas nós, uma raça de seres esquizofrênicos aprisionada em uma ordem social que nos amarra às nossas próprias incapacidades. Se conseguimos nos libertar, é somente por momentos, uma claridade efêmera vivida antes de cair de novo, de forma involuntária ou deliberadamente, em um poço de obscuridade.
Escutei uma voz que dizia “basta com essa faxina sentimental”, uma voz de
homem que percebi ser a do cuidador, que me olhava. —Como chegou aqui? — perguntei, perplexa e um pouco confusa. —Você
estava me
seguindo?
—
a qual,
mais
que
uma
pergunta,
era
uma
acusação.
—Sim, eu venho seguindo a você em especial — e me presenteou com um de
seus olhares maliciosos. Estudei seu rosto. Não acreditava nele; sabia que estava brincando, apesar do
qual não me aborrecia ou assustava essa intensa luz que irradiavam seus olhos. —Onde está Esperanza? — perguntei ao comprovar que havia desaparecido. —
Onde…? — não pude superar o gaguejo. As palavras se recusavam a sair. —Anda por aí — respondeu com um sorriso. —Não fique aflita. Eu também sou
seu mestre. Está em boas mãos. Vacilante lhe estendi uma mão, e sem esforço algum ele me ajudou a trepar
numa
rocha
plana,
situada
sobre
uma
pequena
lagoa
ovalada,
que
era
alimentada
por
um riacho de sons relaxantes, vindo de algum ponto entre as trevas.
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—E agora tire suas roupas — ordenou. —É hora de seu banho cósmico! —Meu quê? — e certa de que se tratava de uma piada comecei a rir. Não era piada. Me deu uma série de golpezinhos no braço, tal qual fazia
Esperanza, e repetiu a ordem. Antes que eu me desse conta de seus atos ele já havia
desatado os cordões de meu calçado.
—Não temos
muito
tempo
—
me
admoestou,
fixando
‐me
com
seu
olhar
frio,
clínico e impessoal, como se eu fosse o sapo ao qual havia aludido Esperanza. A simples idéia de introduzir‐me nessas águas frias e escuras, sem dúvida
infestadas por todo tipo de pestes viscosas, me horrorizava, e com ânimo de por fim a
tão ridícula situação me deslizei pela pedra e meti os dedos na água. —Não sinto nada! — gritei, retrocedendo atemorizada. —O que acontece? Isto não é água!
—Não seja infantil. Naturalmente que é água, só que você não a sente. Abri a boca para lançar um insulto, mas consegui me frear a tempo. Meu horror
havia desaparecido. —Por que não sinto a água? — perguntei numa tentativa de ganhar tempo,
apesar de
saber
que
esse
era
um
truque
inútil,
e que
terminaria
metendo
‐me
nessas
águas, quer eu as sentisse ou não. Contudo, não era minha intenção ceder com tanta facilidade. —É este algum tipo de fluido purificador? — perguntei.
Após um longo silêncio, carregado de possibilidades ameaçantes, admitiu que
poderia chegar a dizer‐se que se tratava de um líquido purificante. —Não obstante — disse —, devo advertir‐lhe que não existe ritual capaz de
purificar a ninguém. A purificação deve vir de dentro; é uma luta privada e solitária. —Então por que quer que me meta nesta água que é viscosa, ainda que não a
sinta? — perguntei do modo mais irado possível. Seus lábios se moveram num indício de riso, mas manteve a seriedade.
Anunciou que
mergulharia
comigo,
e sem
mais
trâmites
se
desnudou
por
completo.
Parou frente a mim, a pouca distância, totalmente nu, e nessa estranha e indefinida luz pude reconhecer cada centímetro desse corpo, cuja nudez não tentou dissimular. Ao
contrário, parecia orgulhoso ao extremo de sua masculinidade, a qual exibia com
desafiante insolência. —Apresse‐se e tire as roupas. Não temos muito tempo — insistiu. —Não farei isso. É coisa de louco! —Você fará. É uma decisão que você mesma tomará — e se bem que o disse
com veemência, não demonstrou raiva. —Esta noite, neste mundo estranho, entenderá que só lhe enquadra um tipo de comportamento: o dos feiticeiros.
Com um
sorriso
destinado
a trazer
‐me
tranquilidade,
porém
sem
sucesso,
me
disse que o mergulho me sacudiria, modificando algo dentro de mim. —Esta mudança lhe servirá mais adiante, para entender o que somos e o que
fazemos. Um sorriso passageiro iluminou seu rosto quando se apressou a esclarecer‐me
que o mergulhar nessas águas não me proporcionaria energia para ensonhar desperta por minha conta. Preveniu‐me que transcorreria muito tempo até que eu acumulasse e aguçasse minha energia, e que talvez nunca chegaria a consegui‐lo. —Não existem
garantias no mundo dos feiticeiros — disse, e depois concedeu que talvez a imersão
desviasse minha atenção das preocupações diárias, as esperadas de uma mulher de
minha
idade
e
de
meu
tempo.
—É este um lago sagrado? — perguntei.
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Arqueou as sobrancelhas, revelando surpresa. —É um lago de feiticeiros — explicou, olhando‐me fixo. Ele deve ter percebido
que minha decisão já estava tomada, pois passou a desatar meu relógio de pulso para
então colocá‐lo no seu. —Não é sagrado e nem o oposto — disse. —Agora olhe seu
relógio. Tem sido seu durante muitos anos. Sinta‐o em meu pulso… — soltou uma
gargalhada contida,
ameaçou
dizer
algo
e preferiu
se
calar.
—Bom,
vamos,
tire
a
roupa. —Acho que vou entrar com roupa — murmurei. Apesar de não ser nenhuma puritana, resistia à idéia de exibir‐me desnuda ante
ele. Assinalou que eu precisaria de roupas secas para quando saísse da água. —Não quero que pegue uma pneumonia — disse enquanto um sorriso malvado
assomava em seus olhos. —Isto é água de verdade, apesar a que não a sinta assim. De má vontade tirei a camisa e os jeans. —Suas calcinhas também — ordenou. Caminhei pela borda do lago perguntando‐me o que seria melhor, se atirar‐me
e acabar
de
uma
vez
por
todas
com
a questão,
ou
molhar
‐me
aos
poucos,
recolhendo
a água em minhas mãos para deixar que se escorresse por meus braços, pernas e
estômago, e por último sobre o coração, tal qual havia visto fazer as velhas na Venezuela antes de meter‐se ao mar.
—Aqui vou eu! — gritei, mas antes de saltar me virei para olhar ao cuidador. Sua imobilidade me assustou. Parecia ter se convertido em pedra, tão quieto e
ereto sobre o penhasco. Apenas seus olhos pareciam ter vida, brilhando de maneira estranha sem haver uma luz que o justificasse, e me surpreendeu, antes que
entristeceu, ao ver lágrimas rolarem por suas bochechas. Sem saber por que, eu
também comecei a chorar em silêncio. Pensei que suas lágrimas chegavam e se
introduziam em
meu
relógio
colocado
em
seu
pulso.
Senti
o atemorizante
peso
de
sua
convicção, e de repente, vencidos meu temor e minha indecisão, me joguei na água. Não era espessa, e sim transparente como a seda. Não senti frio, e tal qual
aduziu o cuidador, tampouco senti a água. Na verdade não senti nada. Era como se eu
fosse uma consciência incorpórea, que nadava no centro de um espelho aquático ao
qual sentia ser líquido mas não molhado. Percebi uma luz que emanava do fundo, e
me impulsionei para cima, como um peixe procurando ímpeto, para depois mergulhar em busca dessa luz. Quando ressurgi necessitada de ar, perguntei:
—Que profundidade tem este poço? —A mesma que ao centro da Terra — respondeu a voz clara e potente de
Esperanza, com
tal
segurança
que,
somente
para
ser
fiel
a mim
mesma,
a quis
contradizer. Contudo, certa inquietude que flutuava no ar me impediu: uma calma artificial, uma tensão de súbito quebrada por um som raspante, um sussurro que
advertia que algo estava errado. De pé no exato lugar antes ocupado pelo cuidador se encontrava Esperanza,
totalmente nua. —Onde está o cuidador? — perguntei alarmada. —Eu sou o cuidador — respondeu. Convencida de que ambos me faziam vítima de uma horrenda piada, me
aproximei, graças a fortes braçadas, à rocha sobre a qual se encontrava Esperanza.
—O
que
está
acontecendo?
—
perguntei,
minha
voz
ainda
frágil
por
causa
do
esforço realizado.
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189
Tranquilizando‐me com um gesto, aproximou‐se com esse andar desengonçado, tão característico nela, e depois exibiu meu relógio.
—Sou o cuidador — repetiu. Aquiesci automaticamente, mas em seguida, frente a mim, em lugar de
Esperanza surgiu o cuidador, despido como antes, assinalando meu relógio. Não olhei
o relógio;
minha
atenção
se
centrou
em
seus
órgãos
sexuais.
Estendi
minha
mão
para
tocá‐los, para descobrir se era hermafrodita. Não o era. Segui tentando, e senti, mais que vi, como seu corpo se dobrou dentro de si, e que o que eu tocava era uma vagina. Separei os lábios vaginais para assegurar‐me que dentro dela não estivesse oculto um
pênis. —Esperanza… — consegui dizer, e minha voz se desvaneceu quando algo se
prendeu à minha garganta. Tive consciência de que as águas se abriam e que algo me atraía em direção às
profundezas da lagoa. Senti frio, não um frio físico, e sim algo mais como a sensação
de falta de calor, de luz e de som, nesse mundo misterioso do lago.
Me despertou
um
suave
ronco;
Zuleica
dormia
ao
meu
lado
sobre
uma
esteira
desdobrada no chão. Estava bonita como sempre, jovem, forte, e ao mesmo tempo
vulnerável, apesar da harmonia e do poder que exalava, diferente das outras feiticeiras. A observei um momento para depois levantar‐me, quando os acontecimentos da noite me aturdiram. Queria sacudi‐la, despertá‐la e exigir que
explicasse o acontecido, quando notei que já não estávamos junto à lagoa na
montanha, e sim no lugar exato onde estivemos sentadas anteriormente, junto à porta
principal da casa das bruxas. Perguntando‐me se tudo não havia sido mais que um
sonho, sacudi com suavidade seu ombro. —Ah, já despertou… — murmurou.
—O que
aconteceu?
Tem
que
me
contar
tudo.
—Tudo? — repetiu, com um bocejo. —Tudo o que aconteceu junto ao lago — rebati impaciente. Bocejou de novo, riu, e estudando meu relógio (que continuava em seu pulso),
disse que algo em mim havia mudado mais além do antecipado. —O mundo dos feiticeiros dispõe de uma barreira natural que dissuade as
almas tímidas — explicou. —Os feiticeiros necessitam de uma força tremenda para
poder manejá‐lo. Está povoado por monstros, dragões voadores e seres demoníacos, que naturalmente não são outra coisa que energia impessoal. Nós, impelidos por nosso medo, convertemos essa energia em seres infernais.
—Mas o que
houve
com
Esperanza
e o cuidador?
—
interrompi.
—Ensonhei
que ambos eram na verdade você. —Eles são — respondeu, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. —
Acabei de lhe dizer. Você mudou mais do que eu antecipei, e entrou no que os ensonhadores chamam ensonhar em mundos que não são este.
—Você e eu ensonhávamos em um mundo diferente, e por isso não sentia a
água. Aquele é o mundo onde o nagual Elías encontrou todas suas invenções. Nesse
mundo se pode ser homem ou mulher, e assim como o nagual Elías trouxe suas invenções a este mundo, eu trago a Esperanza ou o cuidador, ou melhor, minha energia impessoal o faz.
Eu
não
conseguia
traduzir
meus
sentimentos
ou
pensamentos
em
palavras:
me
dominava uma incrível necessidade de fugir aos gritos, que não podia transformar em
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190
ação. Meu controle motriz já não era voluntário, e em meu intento de pôr de pé e
gritar, desabei. A Zuleica não lhe comoveu nem preocupou minha condição. Seguiu falando
como se meus joelhos não tivessem cedido, como se eu não estivesse esparramada pelo chão igual a uma boneca de trapo.
—É uma
boa
ensonhadora.
Afinal
de
contas,
passou
a vida
sonhando
com
monstros. Agora é chegado o momento de adquirir a energia para ensonhar como o
fazem os feiticeiros, ensonhar com energia impessoal. Desejava interrompê‐la, dizer‐lhe que não havia nada impessoal em meu
ensonho de Esperanza e o cuidador, e que na verdade aquilo havia sido pior que os monstros de meus pesadelos, porém não podia falar.
—Esta noite seu relógio te trouxe de volta do ensonho mais profundo que já
teve — continuou Zuleica, indiferente aos sons raros que surgiam de minha garganta. —E tem a rocha para prová‐lo.
Chegou aonde eu me encontrava prostrada, observando‐a boquiaberta, e
procurou em
meu
bolso.
Estava
certa,
ali
encontrou
a rocha
que
peguei
da
pilha
de
pedras.
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191
CAPÍTULO DEZENOVE
Levantei‐me quando um forte ruído me despertou, e esquadrinhando as sombras constatei que as persianas de madeira se encontravam abaixadas. Um vento
frio me envolveu, o mesmo que perseguia folhas no pátio, e uma tímida luz penetrou
no aposento,
aderindo
‐se
às
paredes
desnudas
como
se
fosse
névoa.
—Nagual! — gritei, e como se o tivesse conjurado, ali estava Isidoro Baltazar, de pé junto à minha rede.
Parecia um ser real, apesar desse algo indefinido que fazia que se lhe visse
como a uma imagem submergida. Limpei a garganta para falar, e só consegui emitir um débil coaxar. Depois se dissolveram: a imagem e em seguida a névoa.
Tensa demais para conseguir dormir, permaneci sentada, envolta num
cobertor, pensando se havia sido acertada minha decisão de buscar aqui a Isidoro
Baltazar. Não sabia de outro lugar. Havia esperado pacientemente durante três meses, depois do qual minha ansiedade se fez tão aguda que me vi obrigada a agir.
Uma manhã,
sete
dias
atrás,
havia
viajado
sem
paradas
até
a casa
das
feiticeiras, e naquele momento não abrigava dúvidas sobre se minha decisão era ou
não a correta: nem sequer depois de ver‐me obrigada a escalar o muro dos fundos da
casa, e entrar por uma janela entreaberta; mas ao fim de sete dias essa minha certeza havia começado a fraquejar.
Saltei da rede ao piso enlajotado, batendo fortemente no chão com meus calcanhares descalços. Sacudir‐me desse modo sempre me ajudou a afastar as dúvidas, mas desta vez não surtiu efeito, de modo que me deitei de novo. Se havia aprendido
algo nesses três anos de convivência com os feiticeiros, era que suas decisões são
finais, e minha decisão havia sido a de viver e morrer sob seu credo. Havia chegado o
momento de
colocá
‐lo
à prova.
Um riso nada comum interrompeu meus pensamentos, retumbou através da
casa e subitamente se extinguiu. Aguardei, tensa, mas só me chegava o ruído das folhas no corredor, movidas pelo vento. Esse som não só me adormeceu como que me
introduziu no ensonho que estava a sete noites ensonhando. Estou no deserto de Sonora. Meio‐dia. O sol, um disco que de tão brilhante era
quase indistinguível, está parado no meio do céu. Não se escuta um só som, nem
existe movimento ao redor. Os altos saguaros de braços espinhosos (cactos), elevados em direção a esse sol imóvel, são as sentinelas que guardam o silêncio e a quietude. O
vento, como se me tivesse seguido através do ensonho, começa a soprar com força
tremenda. Assovia
entre
os
galhos
dos
algarobeiros,
e os
sacode
com
fúria
sistemática.
Redemoinhos de poeira roxos surgem em torno de nós. Há um bando de corvos, que
pareciam pontos no céu; depois caem por terra um pouco mais além, como pedaços de um véu negro.
Tão abruptamente como surgiu, o vento se acalma. Dirijo‐me em direção às montanhas distantes, e parecia‐me que tinha caminhado horas antes de discernir uma enorme sombra negra no chão. Levanto o olhar. Um gigantesco pássaro negro pende
no ar com as asas abertas, imóvel, como se estivesse cravado ao céu, e só quando
reparo em sua sombra escura sobre o chão descubro que o pássaro se move. Lenta, imperceptivelmente, sua sombra se desliza diante de mim. Impelida por uma força
inexplicável,
tento
alcançar
a
sombra,
mas
independente
da
velocidade
em
que
corro,
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192
a sombra se afasta mais e mais. Atordoada por causa de meu esgotamento, tropeço
em meus próprios pés e caio ao chão. Enquanto procuro tirar a poeira de minhas roupas descubro ao pássaro parado
sobre um penhasco próximo, sua cabeça ligeiramente desviada para mim em aparente atitude convidativa. Me aproximo com cautela. É enorme e escuro, e suas plumas
brilham como
cobre
polido.
Seus
olhos
cor
âmbar
são
duros
e implacáveis,
determinantes como a própria morte. Retrocedo quando o pássaro abre bem suas asas e decola. Remonta vôo até converter‐se num ponto no céu, apesar do qual sua sombra sobre a terra é uma linha negra e reta, que se estende até o infinito, unindo o céu e a
terra. Confiante de que, se convoco ao vento, poderei alcançar ao pássaro, invoco
uma encantação, mas que carece de força e de poder. Minha voz se quebra em mil sussurros, absorvidos de imediato pelo silêncio. O deserto recupera sua estranha calma.
Começa a desmoronar‐se nas bordas; depois se desvanece lentamente ao
redor…
De maneira gradual adquiri consciência de meu corpo encostado na rede, e
através da inconstante neblina adivinhei as paredes do quarto, revestidas de livros. Logo despertei totalmente e me impactou, como acontecera toda a semana, a certeza de que este foi um ensonho, e que sei o que significa.
O nagual Mariano Aureliano me havia dito certa vez que os feiticeiros, quando
falam de feitiçaria, se referem a ela como a um pássaro, e o chamam o pássaro da
liberdade, pássaro que só voa em linha reta e nunca faz uma segunda visita. Também
dizem que é o nagual quem o atrai e o induz a lançar sua sombra sobre a trilha do
guerreiro. Sem essa sombra não existe direção.
O significado
de
meu
ensonho
era
que
eu
havia
perdido
ao
pássaro
da
liberdade. Havia perdido ao nagual, e com ele toda esperança e sensação de propósito, e o que mais penalizava meu coração era que o pássaro da liberdade se havia afastado
tão velozmente que nem tempo tive para expressar meu agradecimento a todos, além
de minha infinita admiração. A todo momento eu havia assegurado aos feiticeiros que nunca os havia
tomado, nem a eles nem a seu mundo, por dados, mas sim, o havia feito, especialmente a Isidoro Baltazar. Ele sem dúvida permaneceria comigo para sempre, pensei, e de repente se haviam ido todos, como estrelas fugazes ou sopros de vento, levando a Isidoro Baltazar.
Durante semanas
permaneci
sentada
em
meu
quarto,
fazendo
‐me
a mesma
pergunta: “Como era possível que desaparecessem desse modo?”, uma pergunta supérflua e carente de sentido, dado o que eu havia visto e experimentado nesse
mundo, e que a única coisa que revelava agindo assim era minha verdadeira natureza: submissa e insegura.
Os feiticeiros me haviam dito durante anos que sua meta final era arder, desaparecer tragados pela força da consciência. O velho nagual e seu grupo estavam
preparados, mas eu não sabia. Vinham se preparando quase todas suas vidas para a
audácia final: ensonhar despertos. A audácia de burlar a morte (tal como nós a
conhecemos) para internar‐se no desconhecido, aumentando, sem quebrá‐la, a
unidade
de
sua
energia
total.
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Meu pesar se fez mais intenso quando recordei que minha natureza incrédula reapareceria no momento menos pensado. Não era questão de não crer em sua estupenda meta, em seus propósitos extraterrenos, mas por sua vez práticos. Melhor preferia interpretá‐los e, de alguma maneira, integrá‐los ao mundo do sentido comum, não sempre, claro, de tudo, mas coexistindo com o que para mim era normal e
familiar.
Os feiticeiros intentaram preparar‐me para presenciar sua viagem definitiva: que num certo dia desapareceriam era algo quase aceitado por mim. Contudo, nada
poderia ter‐me preparado para a angústia e a desesperança resultantes. Caí em um
poço de tristeza do qual sabia muito bem nunca sairia, mas esse era um problema que
devia ser resolvido por conta própria. Temendo aumentar meu desespero se permanecesse estendida na rede,
levantei‐me para preparar o desjejum ou, melhor dizendo, a esquentar as sobras da
noite anterior: arroz, tortilhas e feijões, minha comida típica dos últimos sete dias, exceção feita no almoço ao qual juntara uma lata de sardinhas norueguesas
compradas no
armazém
de
um
povoado
vizinho.
Lavei a louça e conferi o piso, depois do qual, armada com a escova, percorri todos os quartos em busca de novas sujeiras, ou alguma teia de aranha esquecida num
canto. Desde minha chegada parecia não ter feito outra coisa que esfregar pisos, lavar paredes, janelas, e varrer pátios e corredores. As tarefas de limpeza sempre me
haviam trazido paz e me afastado de meus problemas, mas desta vez não foi assim. Apesar do interesse com que encarava a estes trabalhos, não conseguia acalmar com
eles minha angústia, nem encher o doloroso e opressivo vazio. Um barulho de folhas varridas pelo vento interrompeu minha atividade,
obrigando‐me a sair para investigar. Um vendaval, cuja força me sobressaltou, soprava
entre as
árvores,
e estava
eu
a ponto
de
fechar
as
janelas
da
casa
quando
abruptamente cessou. Uma profunda melancolia descendeu sobre tudo, pátio, árvores, flores e quintal, e até a primavera que ali morava se associou ao desassossego
geral. Acalmado o vento, caminhei até a fonte colonial no meio do pátio, me ajoelhei
sobre a larga borda de pedra, e quase sem pensar me dediquei a tirar as folhas e flores caídas na água. Depois me aproximei para buscar minha imagem na tranquila superfície, e descobri o belo e anguloso rosto de Florinda junto ao meu. Hipnotizada por seus grandes olhos escuros, que contrastavam com sua branca cabeleira, contemplei seu reflexo na água, e em nossos rostos nasceu um sorriso.
—Não te
ouvi
chegar
—
disse
em
voz
baixa,
temerosa
de
que
desaparecesse
sua imagem, de que tudo não fosse mais que um sonho. Pousou sua mão sobre meu ombro, e depois se sentou junto a mim sobre a
borda de pedra. —Estarei contigo apenas um momento — advertiu —, porém mais tarde
regressarei. Não pude conter‐me e dei vazão a toda a angústia e desespero acumulados.
Florinda me olhou, e seu rosto refletia uma profunda tristeza. Lágrimas assomaram a
seus olhos, para desaparecer com a mesma celeridade com que surgiram. —Onde está Isidoro Baltazar? — perguntei.
Sem
olhá‐
la
no
rosto
descarreguei
minhas
lágrimas,
não
provocadas
por
sentir
pena de mim mesma, nem sequer pela tristeza, e sim por uma sensação de fracasso,
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culpa e perda que me afogava. Tempos atrás Florinda já me havia advertido acerca
destes rompantes. —Para os feiticeiros as lágrimas carecem de sentido — disse. —Quando você se
uniu ao mundo dos feiticeiros lhe foi feito entender que os desígnios do destino, sejam
quais forem, são meros desafios que um feiticeiro deve enfrentar, sem ressentimento
nem pena
de
si
mesmo
—
fez
uma
pausa
para
repetir
que
já
em
outras
ocasiões
me
havia dito que Isidoro Baltazar já não era um homem, e sim um nagual. —Talvez ele
tenha acompanhado ao velho nagual, e neste caso nunca regressará, mas também
pode ser que não o tenha feito. —Mas, por que…? — não cheguei a completar a pergunta. —Desta vez realmente não sei — anunciou Florinda, levantando uma mão para
antecipar‐se ao meu protesto. —Se trata de um desafio que precisa vencer e, como
sabe, os desafios não são discutidos nem ressentidos, e sim enfrentados ativamente. Nisso os feiticeiros podem triunfar ou fracassar, e o resultado não interessa em
especial, sempre e quando dominem a situação.
—Como espera
que
a domine,
quando
a tristeza
me
mata?
Isidoro
Baltazar
se
foi para sempre — e em minha queixa ficou refletido meu ressentimento e minha raiva ante a trivialidade de sua atitude.
—Por que não escuta minhas sugestões, e se comporta impecavelmente deixando de lado seus sentimentos? — disse em som de reprovação. Seu gênio era tão
mutável como seu brilhante sorriso. —Como posso chegar a fazer isso? Sei que quando se ausenta o nagual o jogo
se acabou. —Não necessita do nagual para ser uma feiticeira impecável. Sua
impecabilidade deve conduzir‐lhe a ele, ainda se já não estiver no mundo. Seu desafio
é viver
impecavelmente
dentro
de
suas
circunstâncias,
e não
mudará
absolutamente
nada se ver a Isidoro Baltazar o ano que vem ou ao final de sua vida. Florinda me deu as costas e manteve um longo silêncio. Quando me encarou de
novo seu rosto mostrava‐se como uma máscara, como se estivesse fazendo um grande
esforço para controlar suas emoções, e havia tal tristeza em seus olhos que esqueci minha própria angústia.
—Deixe‐me lhe contar um conto — disse, e a dureza de seu tom talvez estivesse destinada a apagar a dor refletida em seus olhos. —Eu não viajei com o
nagual Mariano Aureliano e seu grupo, e tampouco o fez Zuleica. Sabe por quê? Boquiaberta, paralisada pelo temor, levei um tempo antes de poder dizer‐lhe
que não
o sabia.
—Estamos aqui porque não pertencemos a esse grupo de feiticeiros. Pertencemos, mas não pertencemos. Nossos sentimentos estão com outro nagual, o
nagual Julián, nosso mestre. O nagual Mariano Aureliano é nosso igual, e o nagual Isidoro Baltazar, nosso aluno. Como a ti, nos deixaram para trás. A ti, porque não
estava pronta para viajar com eles. A nós, porque necessitamos de mais energia para dar um grande salto, e talvez nos unirmos a um outro grupo de guerreiros, um grupo
mais antigo, o do nagual Julián. Podia sentir a solidão de Florinda como uma névoa fina que descia sobre mim,
e quase não tinha coragem de respirar por temor que ela emudecesse.
Explanou‐
se
acerca
de
seu
mestre,
o
nagual
Julián,
homem
de
grande
fama.
Suas descrições eram breves, e ao mesmo tempo tão evocativas, que pude vê‐lo ante
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meus olhos, o homem mais charmoso que jamais existiu. Gracioso, de rápida capacidade para criar e agir, um piadista incorrigível. Narrador e mago, capaz de
manejar a percepção como um mestre‐padeiro maneja a massa, modelando‐a sem
perdê‐la de vista. Estar com o nagual Julián, assegurou Florinda, era uma experiência inesquecível. Confessou amá‐lo mais além das palavras, dos sentimentos, assim como
também o amava
Zuleica.
Florinda caiu num novo e longo silêncio, a vista fixa nas montanhas distantes, como se com esse ato conseguisse extrair energias dos afilados picos. Quando falou de
novo sua voz era apenas um sussurro: —O mundo dos feiticeiros é um mundo de solidões, porém nele aninha‐se
eterno o amor. Como o meu pelo nagual Julián. Sozinhas, nos movemos neste mundo, contando somente com nossos atos e sentimentos, e com nossa impecabilidade —
disse, e moveu a cabeça como para enfatizar suas palavras. —Eu já não tenho
sentimentos. Os que tive foram levados pelo nagual Julián. Tudo o que me resta é meu
sentido de vontade, de propósito e de dever. Quem sabe você e eu tenhamos o
mesmo problema
—
e disse
isto
com
tal
doçura
que
se
desfez
antes
que
eu
entendesse
o que ela dizia. Fiquei observando‐a. Como sempre, sua esplêndida beleza chamava a atenção,
junto com essa mágica juventude, que os anos deixaram intacta. —Eu não, Florinda — rebati. —Você teve ao nagual Isidoro Baltazar e a mim, e
todos os outros discípulos dos quais me falaram. Eu não tenho nada, nem sequer meu
antigo mundo — não me estava lamentando; falava através da certeza de que a vida, tal como a havia conhecido até agora, era hoje coisa do passado. —O nagual Isidoro
Baltazar é meu pelo direito que me dá meu poder. Esperarei um tempo mais, como é
minha obrigação fazê‐lo, mas se já não está neste mundo, tampouco o estarei eu. Sei o
que tenho
que
fazer!
—
e minha
voz
foi
se
perdendo
ao
dar
‐me
conta
de
que
Florinda
já não me prestava atenção. Encontrava‐se absorta com um pequeno corvo que se
aproximava de nós pela borda da fonte. —Esse é Dionísio — anunciei, buscando em meus bolsos os pedaços de tortilha
que lhe guardava. Não os encontrei. Tão absorta estive em meus pesares que esqueci que, a essa hora, passado o
meio‐dia, o pequeno animal vinha por sua comida. —Está irritado o senhor! — observou Florinda, rindo dos furiosos reclamos do
pássaro. —Você e o corvo se parecem bastante. Ambos se irritam com facilidade, e o
proclamam de maneira muito sonora.
Consegui apenas
conter
meu
desejo
de
dizer
‐lhe
que
o mesmo
se
podia
dizer
dela, e ela riu como se soubesse do esforço que eu fazia para não chorar. O corvo
havia pousado sobre minha mão, e me olhava de canto com olhos brilhantes, que
pareciam seixos. Abriu suas asas, e seu reflexo azul cintilou à luz do sol. Com toda a calma disse à Florinda que as pressões do mundo dos feiticeiros
eram intoleráveis. —Bobagem! — respondeu, como se provocasse a uma criança malcriada. —
Olha só, nós assustamos o Dionísio — e fascinada, observou o vôo do pássaro que se
afastava, para depois centrar sua atenção em minha pessoa. Desviei o rosto, e não
saberia dizer o porquê, pois não havia hostilidade nesses olhos escuros e brilhantes
que
mostravam‐
se
calmos
e
indiferentes.
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—Se não conseguir alcançar a Isidoro Baltazar, então eu e os demais feiticeiros que te servimos de mestres teremos fracassado em nosso intento de impressionar‐lhe, e também de desafiar‐lhe. Não será uma perda decisiva para nós, mas sim o será para
você — e vendo que minhas lágrimas ameaçavam voltar a cair me desafiou de novo. —Onde está seu propósito impecável? O que aconteceu com tudo o que aprendeu de
nós?
—O que acontecerá se eu nunca alcançar a Isidoro Baltazar? —Pode seguir vivendo no mundo dos feiticeiros se não se esforça por averiguá‐
lo? — perguntou com severidade. —Este é um momento no qual necessito bondade — murmurei, fechando os
olhos para evitar que se derramassem minhas lágrimas. —Preciso da minha mãe. Oh, se pudesse estar com ela!
Minhas próprias palavras me surpreenderam, pronunciadas com inteira sinceridade, e já incapaz de reter as lágrimas, rompi a chorar. Florinda riu. Porém não
zombando, pois havia bondade em seus olhos.
—Está tão
longe
de
sua
mãe
que
nunca
voltará
a encontrá
‐la
—
disse
carinhosamente, e sua voz perdeu volume quando acrescentou que a vida do feiticeiro
constrói barreiras intransponíveis ao seu redor. —Os feiticeiros — recordou — não
encontram consolo na simpatia de outros, nem sentindo pena de si mesmos. —Você acha que todos meus tormentos se devem a que sinto pena de mim
mesma, não é verdade, Florinda? —Não. Não só isso, como também à morbidez — e rodeando‐me com os braços
me abraçou como se eu fosse uma criança. —A maioria das mulheres são mórbidas, estando você e eu entre elas.
Não estava de acordo, mas não desejava contradizê‐la. Seu abraço me enchia
de felicidade,
e apesar
de
estar
com
ânimo
decaído,
consegui
sorrir.
Florinda,
como
todas as mulheres desse mundo, careciam da capacidade para expressar sentimentos maternais, e apesar a que eu gostava de abraçar e beijar as pessoas que amava, não
tolerava estar nos braços de alguém por muito tempo. O abraço de Florinda não era morno e tranquilizador como o de minha mãe, mas era o único a que podia aspirar. Desfazendo o abraço Florinda entrou na casa.
Despertei de repente, e por um momento permaneci no chão aos pés da fonte, intentando recordar algo dito por Florinda antes que eu dormisse. Obviamente havia dormido horas, pois apesar da claridade do céu as sombras do entardecer já
começavam a invadir o pátio.
Estava a ponto
de
buscar
a Florinda
quando
um
riso
incomum
me
chegou
através do pátio, o mesmo que escutei durante a noite. Esperei e agucei o ouvido, em
meio a um silêncio estranho: nada se movia, nada zumbia, nenhum pássaro piava, apesar do qual intuía o movimento de passos silenciosos às minhas costas. Virei‐me, e
no extremo do pátio, quase oculta pela primavera florida, vi alguém sentado num
banco de madeira, e que reconheci apesar de dar‐me as costas. —Zuleica? — sussurrei, temendo que meus passos a afugentasse. —Que feliz me faz o fato de ver‐lhe de novo — respondeu, fazendo‐me sinais
para que me sentasse junto a ela. Sua voz clara, vibrante por causa do ar do deserto, parecia não provir de seu
corpo,
e
sim
de
muito
longe.
Desejei
abraçá‐
la,
mas
algo
me
aconselhou
a
não
fazê‐
lo.
A Zuleica não lhe gostava que a tocassem, de modo que tomei assento junto a ela, e
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manifestei por minha vez minha alegria por vê‐la. Mas ela me surpreendeu, tomando
minha mão na sua, uma mão pequena e delicada. Seu lindo rosto rosa bronzeado
carecia de expressão, e toda sua vida se concentrava nos olhos incríveis, nem negros nem marrons, e chamativamente claros, que se fixaram nos meus num longo olhar.
—Quando você chegou? — perguntei.
—Neste exato
momento
—
respondeu,
curvando
os
lábios
num
sorriso
angelical. —Como chegou? Florinda veio contigo? —Oh, você sabe, as feiticeiras vão e vêm sem que se o note. Ninguém se fixa
numa mulher, em especial se é velha. Não obstante, uma mulher jovem e bonita chama a atenção, e é por isso que as feiticeiras, se são bonitas, precisam adotar algum
tipo de disfarce. Se são meio feínhas não terão problemas. Um repentino golpezinho no ombro me sobressaltou. Zuleica pegou de novo
minha mão, como para dissipar minhas dúvidas, e disse: —Para viver no mundo dos feiticeiros deve‐se ensonhar livremente — e
desviou seu
olhar
para
a lua
quase
cheia,
que
parecia
pender
sobre
as
montanhas
distantes. —A maioria das pessoas não possui a engenhosidade nem a estatura espiritual necessária para ensonhar. Não podem evitar ver o mundo como algo
ordinário. E sabe por quê? Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade
ordinário. A maioria das pessoas vive tão preocupada consigo mesmas que se
idiotizaram, e os idiotas não desejam lutar para evitar a ordinariedade. Zuleica ficou de pé e calçou suas sandálias, atou seu chale em torno da cintura
para impedir que suas saias longas tocassem o chão, e caminhou em direção ao centro
do pátio. Soube o que faria antes mesmo que ela começasse. Ia girar; dançar para acumular energia cósmica. As feiticeiras acreditam que movendo seus corpos obtêm a
força necessária
para
ensonhar.
Com um gesto apenas perceptível de sua testa me convidou a segui‐la e imitar seus movimentos. Se deslizou sobre as lajotas e os tijolos escuros do chão, que
obedeciam a um velho desenho tolteca, colocado pelo próprio Isidoro Baltazar; desenho que unia a gerações de feiticeiros e ensonhadores através das eras num
emaranhado de segredos e façanhas de poder, às quais ele havia contribuído com toda sua força, sua intenção e sua entrega para torná‐los realidade.
Zuleica se movia com a competência e a agilidade de uma bailarina jovem, com
movimentos simples que no entanto requeriam tanta velocidade, equilíbrio e
concentração que me deixaram exausta. Com uma notável agilidade e presteza ela
girava, afastando
‐se
de
mim,
retendo
‐se
na
sombra
das
árvores
como
para
assegurar
‐se de que eu a seguia, e depois se dirigiu até o arco assentado sobre a parede que
rodeava as terras detrás da casa, e se deteve momentaneamente junto aos dois pés‐de‐laranja que cresciam do outro lado do muro, aqueles que pareciam sentinelas postadas de cada lado do caminho que levava à casa pequena além do chaparral.
Temendo perdê‐la de vista corri pelo escuro e estreito caminho, e depois entrei na casa para segui‐la até o quarto dos fundos onde, em lugar de acender a luz, Zuleica pegou uma lamparina de azeite que estava pendurada numa das vigas. Ao acender‐se, a lamparina emitiu um fulgor vacilante que deixou os cantos do aposento em sombras. Do único móvel, uma arca sob a janela, tirou uma esteira e um cobertor.
—Deite‐
se
de
barriga
para
baixo
—
ordenou,
estendendo
a
coberta
sobre
as
lajotas.
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Suspirei fundo e me afundei na prazerosa sensação de abandono que me
oferecia o fato de estar prostrada de bruços sobre a esteira. Uma impressão de paz e
bem‐estar impregnou todo meu corpo, e senti suas mãos sobre minhas costas, não me
massageando, mas sim dando ligeiros golpes. Apesar de ter estado muitas vezes na casa pequena, ainda não conhecia sua
disposição. Não
sabia
quantos
cômodos
tinha,
nem
como
estava
mobiliada.
Em
certa
oportunidade Florinda havia dito que essa casa constituía o centro de suas aventuras. Era ali, segundo ela, onde o velho nagual e seus companheiros teciam sua trama mágica, a qual, como uma teia de aranha invisível e resistente, os unia quando se
submergiam no desconhecido, na escuridão e na luz, atividade rotineira para os feiticeiros.
Também havia dito que a casa era um símbolo, e que os feiticeiros de seu
grupo não necessitavam estar dentro dela, nem sequer em suas vizinhanças, para submergir‐se no desconhecido graças ao ensonhar. Aonde quer que fossem levavam o
sentido e o humor da casa em seus corações, e isso, significasse o que significasse para
cada um
deles,
lhes
dava
a força
para
enfrentar
devidamente
o mundo
cotidiano.
Outro golpe em meu ombro por parte de Zuleica me sobressaltou: —Deite‐se de costas — ordenou. Obedeci. Seu rosto, ao aproximar‐se ao meu, irradiava energia e resolução. —Os mitos são ensonhos de grandes ensonhadores — disse. —É necessário
muito valor e concentração para mantê‐los e, acima de tudo, muita imaginação. Você é
um mito vivente, um mito que lhe foi encomendado para salvaguardar, para preservar. Falava num tom quase reverente: —Não pode receber esse mito a menos que seja irretocável. Se não o é, o mito
verdadeiramente se afastará de você.
Abri a boca
para
responder,
para
dizer
‐lhe
que
havia
compreendido
tudo,
mas
a dureza de seu olhar me deteve. Era evidente que não tinha intenção de dialogar
comigo. O ruído de galhos raspando a parede exterior da casa parou, e foi substituído
por um tipo de pulsação no ar, sentida antes que escutada. Estava por cair dormida quando Zuleica disse que eu devia seguir as ordens recebidas em meu ensonho
repetitivo. —Como sabe que tenho tido esse ensonho? — perguntei alarmada, tentando
levantar‐me. —Você se esqueceu que compartilhamos nossos ensonhos? — respondeu,
obrigando‐me
a recostar
de
novo.
—Eu
sou
a que
traz
os
ensonhos.
—Não foi mais que um ensonho sem importância, Zuleica — e minha voz tremeu, pois me assaltou um tremendo desejo de chorar. Sabia que não se tratava de
um mero ensonho, mas queria que ela me mentisse. Zuleica sacudiu sua cabeça. —Não, não era um simples ensonho, era um poderoso ensonho de feiticeiros,
uma visão. —O que devo fazer? —Não te o disse o ensonho? — perguntou em tom desafiante. —Não lhe o
disse Florinda? — observou‐me sem que sua expressão revelasse indício algum. Logo
sorriu, um sorriso tímido e infantil. —Precisa entender que não pode correr atrás de
Isidoro
Baltazar.
Ele
já
não
está
no
mundo.
Já
não
há
nada
que
possa
dar‐
lhe
nem
fazer
por ele. Não pode estar ligada ao nagual como pessoa, somente como um ser mítico.
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— Com voz suave mais autoritária, repetiu que eu estava vivendo um mito. —O mundo
dos feiticeiros é um mundo mítico separado do mundo diário por uma barreira misteriosa feita de ensonhos e obrigações.
“Somente se o nagual é apoiado por seus companheiros de ensonhos pode ele
conduzi‐los a outros mundos viáveis nos quais pode atrair ao pássaro da liberdade — e
suas palavras
se
fundiram
com
as
sombras
do
quarto
quando
acrescentou
que
o apoio
que Isidoro Baltazar necessitava era energia para ensonhar, não sentimentos e ações mundanas.”
Após um longo silêncio falou de novo. —Você viu como o velho nagual, assim como também Isidoro Baltazar,
mediante sua mera presença, afetam a tudo o que os rodeia, sejam estes seus companheiros feiticeiros ou gente comum e normal, deixando‐lhes claro que o mundo
é um mistério onde nada, sob nenhuma circunstância, pode ser dado como acabado
ou final. Concordei com um movimento de cabeça.
Durante um
longo
tempo
me
foi
difícil
compreender
como
os
naguais,
por
obra
de sua simples presença, influíam de maneira tão poderosa, e após observar cuidadosamente, trocar opiniões com outros e questionar‐me sem tréguas, cheguei à
conclusão de que sua influência era o resultado de sua renúncia às inquietações humanas.
Em nosso mundo ordinário também temos exemplos de semelhante renúncia por parte de homens e mulheres aos quais damos o nome de santos, místicos e
religiosos, mas os naguais não são santos, e por certo não são religiosos. Os naguais são homens do mundo, sem sinais de preocupação mundana.
Num nível subconsciente esta contradição tem enorme efeito sobre aqueles
que o rodeiam.
A
mente
daqueles
que
rodeiam
a um
nagual
não
pode
compreender
o que os está afetando, apesar do qual seus corpos sentem o impacto como uma
estranha ansiedade, uma urgência por libertar‐se, ou um sentido de imperfeição, como
se algo transcendental estivesse acontecendo em alguma parte, e do qual eles estão
excluídos. Mas a capacidade intrínseca de um nagual para afetar a terceiros não
depende, de maneira exclusiva, de sua ausência de preocupações mundanas, ou na
força de suas personalidades, e sim na força de seu comportamento impecável. Os naguais são irretocáveis em seus atos e sentimentos, independente das emboscadas —
mundanas ou não — que encontrem em sua senda interminável. E tampouco é
questão de que os naguais sigam um determinado conjunto de leis e regulamentos
para alcançar
esse
comportamento
irrepreensível,
pois
estes
não
existem.
Melhor
dizendo, usam sua imaginação para adotar ou adaptar‐se ao que seja necessário para
fazer que seus atos sejam fluidos. Os naguais, contrariamente ao comum dos mortais, não buscam aprovação,
respeito, elogio ou qualquer outro tipo de reconhecimento de ninguém, e isto inclui a
seus semelhantes. O único que ambicionam é seu próprio sentido de integridade e
inocência. É isto o que torna viciante a companhia de um nagual. A pessoa chega a
depender da liberdade de um nagual como o faria de uma droga. Para um nagual o
mundo é sempre inteiramente novo, e em sua companhia a pessoa começa a olhar o
mundo como se antes não houvesse existido.
—Isso
é
porque
os
naguais
quebram
o
espelho
da
auto‐
reflexão
—
informou
Zuleica, como se tivesse seguido o curso de meus pensamentos. —Os naguais podem
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ver‐se num espelho de névoa que reflete só o desconhecido, um espelho que já não
reflete nossa humanidade normal — expressada pela repetição — e sim que revela a
face do infinito. —Os feiticeiros acreditam que quando a face da auto‐reflexão se funde com a
face do infinito, um nagual está totalmente preparado para romper as fronteiras da
realidade e desaparecer
como
se
não
estivesse
constituído
por
matéria
sólida.
Isidoro
Baltazar já está há muito tempo preparado. —Não pode me deixar para trás! — gritei. —Isso seria injusto demais. —É bobo pensar em termos de justiça e injustiça — replicou Zuleica. —No
mundo dos feiticeiros só existe o poder. Por acaso cada uma de nós não lhe ensinamos isso?
—Aprendi muitas coisas — admiti com pesar, e após uns minutos murmurei entre os dentes —, mas nestes momentos nada disso tem valor.
—Agora valem mais do que nunca — me contradisse. —Se há algo que você
aprendeu é que nos piores momentos os guerreiros revivem suas forças para seguir
adiante. Um
guerreiro
não
sucumbe
ao
desespero.
—Nada do que foi aprendido e experimentado pode aliviar minha tristeza e
desespero. Cheguei a tentar até os cânticos espirituais que aprendi de minha ama‐de‐
leite. Florinda se ri de mim. Acha que sou uma idiota. —Florinda tem razão. Nosso mundo mágico não tem nada a ver com cânticos e
conjuros, com rituais e comportamentos estranhos. Nosso mundo mágico, que é um
ensonho, é feito realidade mediante o desejo concentrado daqueles que participam
dele. A todo momento o mantêm intacto a vontade tenaz dos feiticeiros, do mesmo
modo como o é o mundo diário pela vontade de todos. Se deteve abruptamente. Parecia ter surpreendido a si mesma em meio de um
pensamento que
não
desejava
expressar.
Depois
sorriu,
e com
um
cômico
gesto
de
impotência completou: —Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta. —Quer dizer com isso que me tenho que cair morta aqui mesmo, e neste
instante? — perguntei numa voz que começava a enrouquecer. —Sabe que para isso
estou completamente pronta. O rosto de Zuleica se iluminou, e riu como se eu tivesse contado a melhor das
piadas, mas ao notar que eu falava muito a sério se apressou a esclarecer. —Não, não. Morrer significa que cortamos todas as amarras, abandonamos
tudo o que temos, tudo o que somos.
—Isso não
tem
nada
de
novo
—
respondi.
—Eu
o fiz
no
momento
mesmo
em
que me incorporei ao mundo de vocês. —Obviamente não o fez, pois de ser certo não estaria no estado em que está.
Se tivesse morrido como o exige a feitiçaria agora não sentiria angústia. —O que sentiria, então? —Dever! Propósito! —Minha angustia nada tem a ver com meu sentido de propósito — gritei. —É
algo separado, independente. Estou viva e sinto tristeza e amor. Como posso impedi‐los?
—Não se espera que os evite — explicou Zuleica —, e sim que se sobreponha a
eles.
Se
os
guerreiros
não
possuem
nada,
nada
sentem.
—E que tipo de mundo vazio é esse? — perguntei desafiante.
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—Vazio é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos — e
me olhou de maneira ansiosa, como esperando que eu manifestasse meu acordo. —De
modo que temos um mundo desleixado, enfadonho, repetido. Para os feiticeiros o
antídoto é a morte, e não só pensam nela, e sim que morrem. Um calafrio percorreu minhas costas. Engoli a seco e permaneci em silêncio,
admirando a esplêndida
lua
que
brilhava
através
da
janela.
—Na realidade não entendo o que me diz, Zuleica. —Me entende perfeitamente bem. Seu ensonho começou quando me
conheceu. Agora chegou o momento de outro ensonho, mas desta vez ensonhe morta. Seu erro foi ensonhar viva.
—O que significa isso? — perguntei incômoda. —Não me atormente com
adivinhações. Você mesma me disse que somente os feiticeiros se atormentam com
adivinhações, e que as feiticeiras não, e agora está fazendo isso a mim. A risada de Zuleica rebateu de uma parede a outra, soando como as folhas
secas impulsionadas pelo vento.
—Ensonhar viva
significa
ter
esperanças,
que
se
aferra
a seu
ensonho
para
manter‐se viva. Ensonhar morta significa que abandonou a esperança, que não se
agarra a seu ensonho. Temendo não poder controlar minha voz ao responder, me limitei a mover
afirmativamente a cabeça. Florinda me havia dito que a liberdade é uma total ausência de preocupação por si mesmo, algo obtido quando a massa de energia aprisionada dentro de nós é liberada. Havia dito que esta energia somente podia liberar‐se quando
podemos reprimir o exaltado conceito que temos de nós mesmos, de nossa importância, essa importância que consideramos inviolável e livre de enganos.
A voz de Zuleica era clara, mas parecia vir de muito longe.
—O preço
da
liberdade
é muito
alto
—
disse.
—A
liberdade
unicamente
se
consegue ensonhando sem esperança, estando dispostos a perder tudo, inclusive o
próprio ensonho. Para alguns de nós ensonhar sem esperança, lutar sem meta, é a
única maneira de não ficar para trás do pássaro da liberdade.
FIM
Este livro foi digitalizado para distribuição livre e gratuita através da rede. Revisão e Edição Eletrônica de Hernán. / Rosário – Argentina. / 05 de Março de 2003
– 02:54
Tradução direta do espanhol, mantendo‐se ao mais próximo do texto original.
(Outubro/2008)
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202
NOTAS SOBRE A TRADUÇÃO
‐A
palavra
“cuidador”
foi
mantida,
ao
invés
de
zelador
(ou
vigilante,
sentinela,
guardião, tutor), por ser de fácil entendimento, e por diferenciação, como um nome
em si, sem contudo se utilizar letra maiúscula, por também designar sua função.
‐ Ponto de encaixe = ponto de aglutinação.
‐ Consciência acrescentada = consciência intensificada = ensonhar desperto.
‐ Irreprochable: impecável, irretocável, imaculável, irrepreensível.
‐ Buganvilla: conhecida também como primavera, um tipo de trepadeira florida.
‐ Azahar: tipo de laranjeira (Citrus Auratium): laranja‐amarga, laranja‐azeda, laranja‐
cavalo, morgote.
‐ Arvejilla: Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce.
‐ Mezquite: mesquite (do Nahuatl: mizquitl), gênero Prosopis. Algarobeira.
‐ Zapote: Sapoti, árvore frutífera, de cuja seiva se pode tirar o chiclé.
‐ Furgoneta (furgão, perua, van, camionete).
* Existem algumas referências no livro sobre o conceito de aceder . Os principais sinônimos ou contrapartes da palavra são: aceitar, concordar, (ter acesso), consentir,
acatar, submeter
‐se,
condescender,
aderir,
anuir,
aquiescer,
assentir,
compactuar.
Neste caso, as condições sobre aceder referem‐se a aceitar um fato ou circunstância, por concordância, e não por simples aceitação. É como se referir ao fato de que o fogo
queima. Não se trata de aceitar ou não esse fato, e sim de saber por si próprio sobre
esse fato, e se alguém se refere a ele, a nós só nos cabe aceder, concordar com o fato
por saber que é assim que funciona.
Anexo de reflexões informais sobre o livro, obtidas ao longo da tradução
“Conseguir ler
os
sinais
do
espírito
é conseguir
ler
o funcionamento
do
próprio
enredo.
É habilitar a capacidade de ver as engrenagens, e ver onde ela está atuando, e o que
ela está fazendo. E receber como eco nossa própria função no momento. O
funcionamento de todo o sistema não é velado, basta ter a atenção necessária para
afastar a névoa, e ele aparece sozinho.”
“A referência ao mundo dos feiticeiros não é metafórica, já que ele existe numa posição do ponto de encaixe. Ele existe junto ao mundo das pessoas, no mesmo lugar onde todos estão e vivem, e só difere com relação às possibilidades de ação e
percepção. No
mundo
comum,
a única
referência
a esse
mundo
está
nas
histórias
em
quadrinhos, e se fosse levado em consideração estaria, ao invés disso, em livros de
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203
estudo. Quando se diz que um feiticeiro vive neste mundo sem fazer parte dele é
porque seu ponto de encaixe está alinhado ao mundo dos feiticeiros, e não ao do
mundo comum. Nessa posição de alinhamento, ele pode agir como um bruxo, mas também lhe é exigido comportar‐se de acordo, além de ser capaz de lidar com os componentes próprios dessa posição, como a interação com seres inorgânicos, uma
percepção diferente
de
tempo
e espaço,
e suportar
pressões
diferentes
das
do
mundo
comum. As pressões do mundo cotidiano são relativas a empregos, a relacionamentos pessoais, e a auto‐imagem. Para se aproximar de um desses mundos, a pessoa precisa se afastar do outro, e é por isso que precisa escolher. Se está apegada aos elementos de um, não vai conseguir se afastar para alcançar e viver no outro. O mundo dos feiticeiros é uma posição de ensonho, e para se viver nele se precisa viver numa
posição permanente de consciência intensificada, de ensonho desperto.”
“Todos os medos em se fazer qualquer coisa se resumem no medo de perder nossa importância, seja ela qual for. Seja aos nossos próprios olhos, ou a importância que
pensamos ter
para
os
outros,
e até
mesmo
para
o mundo,
achando
que
se
morrermos,
tudo vai parar, e ninguém mais vai fazer nada só porque não estamos mais ali. Talvez tenhamos medo de perceber que não é nada assim, que não temos importância, e não
queremos fazer nada para não correr o risco de perceber o que no fundo nós já
sabemos. O medo que temos é o de encarar esse fato. Achamos que se de alguma forma não formos importantes, então nossa existência também não será importante, e
que por isso poderemos ser descartados. Se não somos importantes, então porque
continuaríamos existindo? Temos medo de ser descartados pela própria vida, e então
passamos a vida inteira tentando enganar a vida, buscando e acumulando valores que
nos tornem tão importantes a ponto da vida não poder abrir mão de nós. E neste
ponto caímos
no
medo
de
morrer,
de
não
ser
nada,
e por
isso
ser
jogado
no
nada,
em
dissolver‐se no nada. Precisamos urgente e terrivelmente sermos importantes de
alguma maneira. Esse é o medo infundido em nós, que nos leva a ter essa linha de
raciocínio e de ação. E o medo vem justamente por sabermos que não somos nada, não importa o que a gente faça ou pense. Somos nada, mas queremos fechar os olhos para isso, pois constatar é confirmar, e o que se busca é enganar tanto a si mesmo
como à vida. E no entanto, a liberdade está aqui, neste ponto, quando constatamos que não somos nada, e ainda assim podemos fazer tanto.”
“A energia que se consegue é sentida como poder. Pode‐se conseguir poder fazendo
coisas no
mundo
ou
nos
ensonhos.
Quando
se
faz
algo,
e o fato
de
ter
feito
esse
algo
nos dá confiança ou ímpeto para fazer outras coisas, então isso significa que
conseguimos poder pelo simples fato de ter feito esse algo. O simples fato de viver certas experiências nos confere poder.”
“Só somos Superman quando estamos completamente limpos, livres de desejos, de
ganas, limpos de consciência, quando nossa energia não está fugindo, se projetando
em busca de ‘quereres’, e quando temos apenas a alegria de um menino, que é capaz de fazer uma travessura admirável e completamente inesperada pelos outros, sem
esperar nada por fazer isso, a não ser a alegria de ser livre e de poder estar fazendo
isso.”
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204
“Por que é que nós temos que querer sempre as coisas do nosso jeito? Por que é que
não nos contentamos simplesmente com as coisas do jeito que elas se apresentarem, ou conforme aconteçam? Por que é que nos permitimos ser tão mimados, a ponto de
se irritar e não querer viver ou desfrutar de momentos, quando eles não são
exatamente do jeito que imaginamos que deveriam ser?
“Existem muitos
conceitos
a serem
assimilados,
e muitos
levam
anos
até
serem
processados e chegar a nos fazer sentido, na forma de uma sensação direta que já não
precisa de ser acompanhada de uma explicação para que possamos entendê‐lo e senti‐lo de forma clara em nós mesmos, em todo o nosso ser.” “Quantos bombons precisamos comer até chegar a realmente reconhecer seu sabor? Teríamos que não só saber, mas sentir que a vida é rara, que é curta, e que cada coisa que fazemos nela também é rara, para que bastasse um único bombom? Ou antes teríamos que comer muitos, de muitos tipos, para poder comparar, ou também
teríamos que passar um tempo sem sequer poder sentir o cheiro de um, para que
quando se voltasse a provar um, saber o quanto é raro tanto a sua própria existência
como um
ser,
como
a existência
do
bombom,
e o fato
de
que
os
dois
pudessem
existir
juntos num mesmo lugar e tempo, a ponto de poderem entrar em contato? Uma vez que se saiba de tudo isso, bastará um bombom, e não dez, para se conseguir apreciar o
bombom e se sentir saciado em seu desejo de querer mais, e satisfeito com o próprio
fato, por saber quantas coisas precisaram estar envolvidas para que esse fato
acontecesse.”
‐ No filme Indiana Jones e a Última Cruzada, no final do filme, todos estão num templo, e uma fenda se abre no chão, formando um abismo. O cálice (Graal) cai no buraco e
fica numa beirada. Uma mulher tenta pegá‐lo, cai, e Indiana a segura pela mão, mas
ela, na
ambição
de
tentar
alcançar
o cálice,
se
solta
e cai
no
abismo.
O
mesmo
acontece com Indiana, que então é seguro por seu pai. Ele também tenta alcançar o
cálice. No ápice da situação, quando sua mão também está por se soltar, seu pai, que
dedicou sua vida inteira na busca desse cálice, olha para ele e diz calmamente: “Deixa”. Mesmo um cálice mágico e único não valia tanta ganância. ‐ Toda a gana de possuir um objeto sagrado, com poderes mágicos, e o medo de se
deixar perder para sempre um objeto tão importante, precisa ser deixada de lado num
instante de desapego. Para a mulher que caiu, a aflição e loucura em se ter algo tão
valioso foi maior até que seu instinto de sobrevivência. E não é o mesmo que acontece conosco? Algumas coisas brilham mais que o ouro aos nossos olhos, e nos agarramos
com tanta
força
à idéia
de
possuir
tal
coisa
de
deixamos
todo
o resto
de
lado.
Deixamos de lado o bom senso, a sobriedade, passando por cima de tudo e de todos para tentar conseguir nosso objeto sagrado. Quase nunca ouvimos, ou damos atenção, à voz interior que nos diz: “Deixa”. ‐ É característica do ego possuir uma insatisfação sem fim. Ele é como um rei que, não
importa o que ou o tanto se faça por ele, ou quais presentes se possa lhe dar, ele
nunca se dará por satisfeito. O universo inteiro não seria suficiente. Ele é personificado
no mito dos vilões, que querem conquistar primeiro seu país, depois o mundo, ou até
como Darth Vaider, todo o Universo. ‐ Quando nos referimos ao espírito, sempre parece ser algo externo, mas o espírito é
uma
coisa
só.
Ele
é
a
soma
total
das
energias.
A
porção
de
energia
que
está
em
nós,
concentrada em nosso ser, que nós chamamos de nosso espírito ou alma, não deixa de
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205
ser parte do espírito total. Ouvir o espírito não é necessariamente ouvi‐lo de fora. A
porção de espírito que está em nós é o que nos permite estar em contato com todo o
resto. Os anseios do espírito, diferentes dos do ego, se dão por satisfeitos quando são
alcançados. Quando se fala sobre as exigências ou requisitos do espírito, fica parecendo que temos que fazer coisas para agradar algo fora de nós, a uma entidade
que só
nos
permite
continuar
quando
cumprimos
suas
solicitações.
Mas
essas
necessidades brotam diretamente em nós. É o que chamamos de consciência. São
aquelas necessidades de espírito que precisamos fazer ou cumprir para estarmos em
paz e satisfeitos conosco mesmos. E esta é a única satisfação real e possível. Trechos Compilados
(15) ‐ “Ensonhar tem um propósito; os sonhos comuns não o têm. O ensonho sempre
tem um propósito prático, e serve ao ensonhador de maneira simples ou intrincada. Ele serviu a você para superar seus pesadelos, serviu às bruxas que lhe fizeram a
comida para conhecer sua essência, e serviu a mim para fazer com que o guarda da
fronteira, que
lhe
pediu
seu
visto
de
turista,
não
estivesse
consciente
de
mim.
Você
mesma, com pouco esforço, pode entrar no que você chama de um estado hipnótico. Nós o chamamos ensonhar um sonho que não é um sonho, mas um ensonho no qual podemos fazer quase tudo o que alguém deseje.” ‐ “Não é uma mulher alta, mas tampouco é tão pequena como você a viu. Em seu
ensonho curativo, ela projetou sua pequenez para benefício seu e, ao fazê‐lo, apareceu pequena. Essa é a natureza da magia. Deve ser aquilo cuja impressão deseja dar.”
(18) ‐ “Para mim, entender a filosofia dos feiticeiros (que a liberdade não significava
ser o eu
que
era
meu
ser)
foi
quase
a morte.
Ser
eu
mesma
significava
afirmar
minha
feminilidade, e consegui‐lo consumia todo meu tempo, esforço e energia. Ao
contrário, os feiticeiros entendem a liberdade como a capacidade para fazer o
impossível, o inesperado; ensonhar um ensonho que carece de base e de realidade na
vida cotidiana. O excitante e novo é o conhecimento dos feiticeiros, e imaginação é o
que a mulher necessita para mudar seu ser e converter‐se numa ensonhadora.”
(23) ‐ “Os ensonhadores se ocupam de ensonhos. Obtêm seu poder e sua sabedoria dos ensonhos. Os espreitadores, por sua parte, tratam com gente, com o mundo
cotidiano, e obtêm sua sabedoria e seu poder através do comércio com seus
semelhantes.”
(29) ‐ “Meu pai nunca me disse que temos uma testemunha permanente, e não o fez porque não o sabia. Estou me referindo a uma força, a uma entidade, uma presença
que não é força, entidade nem presença. Os feiticeiros chamam‐no o espírito, nosso
observador pessoal, nossa testemunha permanente. Essa força não é Deus, nem tem
nada a ver com a religião ou a moral, e sim é uma força impessoal, um poder à nossa disposição para ser utilizado somente se conseguíssemos nos reduzir a nada.”
(38) ‐ “Seja você mesma, mas você mesma sob controle. O que não se deve fazer é
fazer
algo
e
depois
se
arrepender.”
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206
(43) ‐ “Os acontecimentos de nossa vida cotidiana são fáceis de recordar. Temos muita prática nela, mas os que vivemos em ensonhos são farinha de outro saco. Precisamos lutar muito para recuperá‐los, simplesmente porque o corpo os armazena em
diferentes lugares. Com mulheres que não possuem seu cérebro de sonâmbula, as instruções para ensonhar começam por fazer com que desenhem um mapa de seus
corpos, um
trabalho
cuidadoso
que
revela
onde
as
visões
dos
ensonhos
são
armazenadas. Esse mapa é traçado percorrendo e investigando cada polegada do
corpo. Recomenda‐se um martelinho de madeira para golpear o corpo e tatear somente as pernas e os quadris, pois muito raramente o corpo armazena estas memórias no peito ou no ventre. O que se guarda no peito, costas e ventre são as lembranças da vida diária, mas esse é outro assunto. A única coisa que diz respeito a
você agora é que recordar ensonhos tem a ver com a pressão física sobre o ponto
específico onde está armazenada essa visão.”
(52) ‐ “Caminhará mais aliviada quando se der completamente conta de que não pode
voltar à sua
antiga
vida.
Regressará
ao
mundo,
mas
não
ao
seu
mundo,
à sua
antiga
vida. É muito excitante fazer algo sem saber o porquê, e ainda o é mais, se você se
decide a fazer algo sem saber qual será o resultado.” ‐ “A liberdade causa muito temor. A liberdade requer atos espontâneos. Não tem idéia do que significa o abandonar‐se espontaneamente... seus atos de espontaneidade se
devem mais à sua falta de avaliação que a um ato de abandono. Um ato
verdadeiramente espontâneo é aquele no qual você se abandona por completo, mas só depois de uma profunda deliberação, um ato onde todos os prós e os contra foram
devidamente levados em conta e descartados, pois nem se espera nada nem se
lamenta nada. Com atos dessa natureza os bruxos convocam a liberdade.”
(59) ‐ “Não é a mim a quem precisa convencer, e sim ao espírito. Deve fechar a porta atrás de você, a que você mantém aberta, a que te permitirá escapar se as coisas não
são de seu agrado, ou não se encaixam em suas expectativas. Deserdar desse mundo
fica entre o espírito e você. Entrou neste mundo da mesma maneira que todos os outros. Ninguém teve nada a ver com isso, e tampouco o terá se você ou qualquer outro decide se retirar.” ‐ “Sua decisão carecerá de poder se precisar ser encorajada cada vez que fraquejar ou
duvidar. Um guerreiro não é um escravo, e sim um servidor do espírito. Os escravos não tomam decisões, os servidores sim. Sua decisão é servir impecavelmente. Esta é a
premissa básica
desse
mundo:
nada
se
faz
que
possa
ser
catalogado
como
útil.
Só
se
permitem atos estratégicos. Assim me ensinou o nagual Juan Matus, e é assim como
vivo. O feiticeiro pratica o que predica. E no entanto nada se faz por razões práticas. Quando chegar a compreender e praticar isto, terá fechado a porta atrás de você.”
(61) ‐ “Uma mudança verdadeira não envolve mudança de ânimo, atitude ou ponto de
vista, e sim uma transformação total do ser. O tipo de mudança ao qual aludo não se
consegue em três meses, um ano ou dez. Toma toda a vida. É sumamente difícil converter‐se em algo diferente ao que alguém havia sido destinado a ser. O mundo
dos feiticeiros é um ensonho, um mito, e no entanto tão real como o mundo de todos
os
dias.”
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207
‐ “Para perceber e funcionar nesse mundo devemos nos despojarmos da máscara cotidiana que levamos aderida aos nossos rostos desde o dia em que nascemos, e
colocarmos a segunda, a que nos permite vermos a nós mesmos e a nosso entorno
como realmente são: acontecimentos extraordinários que florescem só uma vez, adquirem existência transitória e nunca se repetem. Essa máscara você mesma terá
que fazê
‐la.
Isso
se
faz
ensonhando
seu
outro
ser.”
‐ “A liberdade não se obtém gratuitamente; ela lhe custará a máscara que leva posta: essa tão cômoda e difícil de descartar, não por ser cômoda, mas sim porque a tem
estado usando tanto tempo. Sabe o que é a liberdade? É a total ausência de
preocupação acerca de si mesma, e a melhor maneira de deixar de preocupar‐se com
sua pessoa é preocupando‐se por outros.” ‐ “Já é hora de que comece a modelar sua máscara, a que não tem a marca de ninguém
mais que não a sua. Precisa ser esculpida em solidão, se não for assim não servirá em
você, e haverá momentos em que a sentirá muito ajustada, muito solta, muito quente, muito fria…”
‐ “Escolher o mundo dos feiticeiros não é questão de declarar que já o fêz: deve agir nesse mundo. Em seu caso deve ensonhar. Se não está ensonhando, então ainda não
se decidiu. Não está talhando sua máscara. Não está ensonhando seu outro ser. Os feiticeiros estão comprometidos com seu mundo somente através de sua
impecabilidade. Os feiticeiros não têm interesse em converter a outros às suas idéias. Entre eles não há gurus nem sábios, só naguais. Eles são os líderes, não por saber mais, ou ser melhores feiticeiros que os outros, e sim por simplesmente possuir mais energia, e não me refiro necessariamente a força física, e sim a certa configuração de
seu ser que lhes permite ajudar a outros a quebrar os parâmetros da percepção.”
(62) ‐ “Não espere que tudo seja soletrado com precisão para seu benefício. Nada no
mundo dos feiticeiros era tão claro e preciso. As coisas se desenvolviam de maneira vaga e lenta. Nesse mundo não existem regras nem regulamentos. Lembre‐se sempre
que só existem improvisações.”
‐ “Nunca perca Isidoro Baltazar de vista. Suas ações te guiarão de maneira tão sutil que
nem sequer se dará conta disso. Ele é um guerreiro impecável e incomparável. Se o
observar cuidadosamente verá que ele não busca amor nem aprovação. Verá que
permanece impávido sob qualquer situação. Não pede nada, mas está disposto a dar
tudo de
si
mesmo.
Aguarda
permanentemente
um
sinal
do
espírito,
na
forma
de
uma
palavra amável ou um gesto apropriado, e quando o recebe, expressa seu
agradecimento redobrando seus esforços. Ele não julga. Se reduziu ele mesmo à nada
para escutar e observar, para assim poder conquistar e ser humilhado na conquista, ou
ser derrotado e enaltecido na derrota. Se observar com cuidado verá que Isidoro
Baltazar não se rende. Podem vencê‐lo, mas não se renderá e, acima de tudo, Isidoro
Baltazar é livre.”
(69) ‐ “O nagual Isidoro Baltazar havia me advertido acerca da falácia das metas definidas e das conquistas emocionalmente carregadas. Disse que careciam de valor,
pois
o
verdadeiro
cenário
de
um
feiticeiro
é
a
vida
cotidiana,
e
ali
as
motivações
conscientes superficiais não aguentam as pressões.”
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(70) ‐ “Quando tentava pedir‐lhes ajuda recusavam fazê‐lo. Seu argumento era que
sem a necessária energia de minha parte só lhes sobrava repetir‐se, e não dispunham
de tempo para isso. A princípio sua negativa me pareceu injusta e nada generosa, mas depois de um tempo abandonei toda tentativa de indagá‐las, e me dediquei a
desfrutar de
sua
presença
e de
sua
companhia.
Cheguei
assim
a aceitar
sua
razão
para
não querer jogar nosso jogo intelectual predileto, esse de pretextar interesse nas assim chamadas perguntas profundas, que usualmente nada significam para nós pela
verdadeira razão de que não possuímos a energia para utilizar com proveito a resposta que possamos receber, exceto para estar ou não de acordo com ela.”
‐ “As ensonhadoras, ao tratar‐me num nível mundano, me estavam proporcionando o
modelo necessário para recanalizar minhas energias. Desejavam que eu mudasse
minha maneira de enfocar assuntos cotidianos tais como cozinhar, limpar, estudar ou
ganhar a vida. Disseram‐me que essas tarefas deviam fazer‐se com distintos auspícios,
não como
tarefas
mundanas,
e sim
como
esforços
artísticos,
todos
de
igual
importância. Na presença e companhia de qualquer destas feiticeiras eu
experimentava a rara sensação de estar em férias permanentes, só que isso era uma miragem, pois elas viviam em permanente estado de guerra, sendo o inimigo a idéia do eu.”
(72) ‐ “Isidoro Baltazar acreditava que os filósofos são feiticeiros intelectuais. Apesar disso, suas buscas e ensaios ficam sempre em empenhos mentais. Os filósofos somente podem atuar no mundo que tão bem entendem e explicam da maneira cultural já concordada. Eles se somam a um já existente corpo de conhecimento.
Interpretam e reinterpretam
textos
filosóficos.
Novos
pensamentos
e idéias
resultantes deste intenso estudo não os mudam exceto, talvez, num sentido
psicológico. Podem chegar a converter‐se em pessoas mais compreensivas e boas, ou
talvez em seu oposto. No entanto, nada do que façam filosoficamente mudará sua percepção sensorial do mundo, pois os filósofos trabalham de dentro da ordem social, à qual apoiam, ainda que intelectualmente possam não estar de acordo com ela. Os filósofos são feiticeiros frustrados.”
‐ “Os feiticeiros também constroem sobre um já existente conjunto de conhecimento. Contudo, não o fazem aceitando o já provado e estabelecido por outros feiticeiros.
Devem provar
de
novo
a si
mesmos
que
aquilo
que
já
se
dá
por
aceitado
na
verdade
existe, e se submete à percepção. Para conseguir cumprir esta tarefa monumental, precisam de uma extraordinária capacidade de energia, a qual obtêm apartando‐se da
ordem social sem retirar‐se do mundo. Os feiticeiros rompem a convenção que tem
definido a realidade sem destruir‐se no processo de fazê‐lo.”
(76) ‐ “Se deseja receber forças do mundo dos feiticeiros já não pode trabalhar com
essas premissas. Em nosso mundo mágico os motivos ulteriores não são aceitáveis. Se
quer graduar‐se, deve se comportar como um guerreiro, não como uma mulher treinada para agradar, pois você, ainda quando se põe bestialmente desagradável,
procura
agradar.
Agora,
no
que
se
refere
a
escrever,
já
que
não
foi
treinada
para
isso,
quando o fizer, deverá adotar uma nova modalidade: a modalidade do guerreiro. Deve
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lutar consigo mesma, a cada centímetro do caminho, e precisa fazê‐lo com tal arte e
inteligência que ninguém notará sua luta.”
(79) ‐ “Para alcançar certo nível de conhecimentos os feiticeiros trabalham o dobro do
que o fazem outros. Os feiticeiros devem encontrar e dar sentido tanto para o mundo
cotidiano como
ao
mágico.
Para
conseguir
isso
devem
ser
muito
preparados
e
sofisticados, tanto mental como fisicamente.” ‐ “Enquanto ensonhava desperta você canalizou toda sua energia em um só propósito. Toda sua preocupação e esforço se destinaram a terminar seu trabalho. Nada mais importava. Nenhum outro pensamento interferiu com sua meta.” (80) ‐ “Os homens constroem seu conhecimento passo a passo. Tendem para cima, trepam em direção ao conhecimento. Os feiticeiros dizem que os homens se estiram
como um cone em direção ao espírito, para o conhecimento, e este procedimento
limita até onde podem chegar. Como poderá ver, os homens só podem alcançar certa altura, e seu caminho termina no ápice do cone. No caso das mulheres o cone está
invertido, aberto
como
um
funil.
As
mulheres
possuem
a faculdade
de
abrir
‐se
diretamente à fonte, ou melhor dizendo, a fonte lhes chega de maneira direta, na base
larga do cone. Os feiticeiros dizem que a conexão das mulheres com o conhecimento é
expansiva, enquanto a dos homens é bastante restritiva”. “Os homens se conectam
com o concreto, e apontam ao abstrato. As mulheres se conectam com o abstrato, e
contudo tratam de entregar‐se ao concreto”
(82) ‐ “Por você ser uma bruxa, precisa saber o que te afeta, e como te afeta. Antes de
recusar algo deve saber por que o recusa.”
(85) ‐
“Você experimentou
duas
transições:
uma,
do
estado
de
estar
normalmente
desperta ao de ensonhar desperta, e a outra de ensonhar desperta a estar normalmente desperta. A primeira foi suave e quase imperceptível, a segunda um
pesadelo. Isso é normal, e todos a experimentamos dessa maneira.” ‐ “O normal é começar a ensonhar dormindo numa rede ou algum utensílio similar, pendurado em alguma viga, ou em uma árvore. Assim suspendidos não temos contato
com o chão. O sólo nos captura, não esqueça disso. Suspendido assim, um ensonhador novato aprende como a energia muda de estar desperto a ensonhar, e de ensonhar um ensonho a ensonhar desperto. Tudo isto, como já lhe disse Florinda, é questão de
energia. Assim que a tem, você voa.”
(86) ‐ “Na segunda atenção encontramos continuidade e fluidez, assim como na vida
diária. Em ambos estados domina o prático, e atuamos eficientemente neles. No
entanto, o que não podemos conseguir na segunda atenção é esmiuçar nossa experiência para manejá‐la, e com isso nos sentirmos seguros para então tentar entendê‐la.”
‐ “Na segunda atenção, ou como eu prefiro chamá‐la, quando ensonhamos despertos, a pessoa deve crer que o ensonho é tão verdadeiro como no mundo real. Em outras palavras, devemos aquiescer . Para os feiticeiros todo negócio mundano ou extra‐
mundano
está
regido
por
seus
atos
irretocáveis,
e
detrás
de
todo
ato
irretocável
está
o
aceder , que não é aceitação. O assentir inclui um elemento dinâmico: inclui ação. No
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momento em que começamos a ensonhar desperto se nos abre um mundo de
incitantes e inexploradas possibilidades, onde a última audácia se converte em
realidade, onde se espera o inesperado. Esse é o momento em que começa a aventura definitiva do homem, e o universo se converte em um lugar de possibilidades e
maravilhas ilimitadas.” (aceder : aceitar, aderir, anuir, aquiescer, assentir, concordar,
acatar, consentir,
condescender,
compactuar).
(88) ‐ “Nossa grande tragédia é a de ser bufões, indiferentes a tudo salvo nossa
bufonaria.” ‐ “Para aliviar sua pena afunde‐se em si mesma. Sente‐se com os joelhos elevados, tomando seus tornozelos com os braços cruzados: o tornozelo direito com a mão
esquerda. Descansa sua cabeça sobre os joelhos e deixe que a pena se vá. Deixe que a
terra te acalme, que sua força curativa venha a ti.”
(90) ‐ “Você se queima rápido demais e de forma desnecessária”. Disse que eu não
sabia enfocar
minha
energia.
“Você
a desdobra
para
proteger
e apoiar
a idéia
de
ti
mesma”. “Disse que o que pensamos ser nosso eu pessoal é na realidade só uma idéia, e manteve que a maior parte de nossa energia se consumia defendendo essa idéia.” ‐ “O chegar a um ponto de abandono onde o eu é tão somente uma idéia que pode ser mudada à vontade, é um verdadeiro ato de feitiçaria, o mais difícil de todos. Quando
se afasta a idéia de eu, os feiticeiros têm a energia para alinhar‐se com o intento, e ser mais do que acreditamos constituir o normal.”
(96) ‐ “Para viver no mundo dos feiticeiros deve‐se ensonhar amplamente. A maioria das pessoas não possui a engenhosidade nem a estatura espiritual necessária para
ensonhar. Não
podem
evitar
ver
o mundo
como
algo
ordinário.
E sabe
por
quê?
Porque se você não luta para evitá‐lo o mundo é na verdade ordinário. A maioria das pessoas vive tão preocupada consigo mesmas que se idiotizaram, e os idiotas não
desejam lutar para evitar a ordinariedade.”
(97‐98) ‐ “É bobo pensar em termos de justiça e injustiça. No mundo dos feiticeiros só
existe o poder. Nos piores momentos os guerreiros revivem suas forças para seguir adiante. Um guerreiro não sucumbe ao desespero.” ‐ “Nosso mundo mágico, que é um ensonho, é feito realidade mediante o desejo
concentrado daqueles que participam dele. A todo momento o mantêm intacto a
vontade tenaz
dos
feiticeiros,
do
mesmo
modo
como
o é o mundo
diário
pela
vontade
de todos. Para ensonhar nosso ensonho você tem que estar morta. ‐ “Morrer significa que cortamos todas as amarras, abandonamos tudo o que temos, tudo o que somos. Se tivesse morrido como o exige a feitiçaria agora não sentiria angústia. Sentiria dever, propósito! Não se espera que se evite a tristeza ou o amor, e
sim que se sobreponha a eles. Se os guerreiros não possuem nada, nada sentem. Vazio
é o mundo dos que se entregam ao vício do amor por si mesmos. De modo que temos um mundo esfarrapado, surrado, aborrecido, repetido. Para os feiticeiros o antídoto é
a morte, e não só pensam nela, e sim que morrem.” ‐ “Ensonhar viva significa ter esperanças, que se aferra a seu ensonho para manter‐se
viva.
Ensonhar
morta
significa
que
abandonou
a
esperança,
que
não
se
agarra
a
seu
ensonho. Florinda havia dito que a liberdade é uma total ausência de preocupação por
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si mesmo, algo obtido quando a massa de energia aprisionada dentro de nós é
liberada. Havia dito que esta energia somente podia liberar‐se quando podemos reprimir o exaltado conceito que temos de nós mesmos, de nossa importância, essa
importância que consideramos inviolável e livre de enganos.”
“O preço
da
liberdade
é muito
alto.
A
liberdade
unicamente
se
consegue
ensonhando
sem esperança, estando dispostos a perder tudo, inclusive o próprio ensonho. Para alguns de nós ensonhar sem esperança, lutar sem meta, é a única maneira de não ficar para trás do pássaro da liberdade.” DICIONÁRIO (ESP‐PORT) EM ORDEM ALFABÉTICA
Abrumar: atordoar, enevoar, obscurecer Acertijo: charada, enigma, adivinhação
Acceder: concordar, aceder (ter acesso), aceitar, consentir, acatar, submeter‐se,
condescender
Además: além
Adictiva: viciante
Afición: afeição
Agazapada: escondida, encoberta, oculta Agujero: buraco, rombo, perfuração, vazar, fenda Ahorrar: conservar, conter, manter. Ahorro: poupança, economia Alacena: armário, buffet
Alfombra: tapete,
carpete
Alimañas: animália, feras, pragas, pestes, pequenos predadores Almendra: amêndoa (almendrado) Amago: demonstrar a intenção de (sinal), indício, ameaçar fazer Amanerado: cortês, boas maneiras, fresco
Ancha: longa, ampla, larga, extensa Anhelante: ávido, ansioso, interessadíssimo
Anhelos: anseios, desejos, vontades,
pretensão Añadir: (add, anex, increment) completar
Añicos: fragmentos, pedacinhos Anidaba: aconchegava, aninhar, acomodar Antojó: sentir o gosto, agradar, parecer Apantallar: impressionar, surpreender Aplastar: comprimir, abrir, esmagar, pressionar, apertar Apuesto: charmoso
Arpillera: estopa, aniagem, tecido rústico
Arreglar:
remediar,
reparar,
arranjar,
dispor, organizar, arrumar; saldar, ajustar
Comisuras: cantos Contestó: respondeu
Contrarrestado: balanceado, neutralizado, compensado,
contrabalançado, agir
contra
Conque: então (so then) Cornisa: beira, borda Crobizo: avermelhado, acobreado
Crujir: ranger, estalar Cuchara: colher Cuchillo: faca
Cuello: garganta
Defraudar: decepcionar, desapontar,
fraudar
Dejo: toque, dica, pitada Derriban: derrubam, demolem, destrõem. Derrotero: curso, caminho, direção, plano de ação
Desayunaba: pequeno almoço, desjejum
Desconchinflar: desmontar, descompor Desenfado: naturalidade, simplicidade,
singeleza,
despreocupação, impulsividade, desebinição, desprezo
Desgano: tédio, falta de gana, de
vontade, repúdio
Desmandarme: ir longe demais, exagero, descontrolar‐se
Desmenuzar: esmiuçar, especificar, esmigalhar Desparpajo: atrevimento, dispersão
Desplegar: dispersar, empregar
(esforços),
desdobrar
Despliegue: revelação, demonstração,
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212
contas; acalmar. Arrojar: jogar, lançar, atirar Asidero: pretexto (para fazer algo), ponto
de apoio, suporte, aderência, maçaneta, aperto de mão, sacada (entender),
anteparo
Asignado: atribuído, designado
Asomo: aparecer, mostras, sinal (marcas) Atañe: concerne, diz respeito, ter relação
Atemperado: moderado (ânimo), aclimatado
Atrapar: prender, apanhar, capturar Atrapada: pêga, capturada, aprisionada Aunar: juntar, unir, ligar, atar, prender; acrescentar; combinar, concordar
Aunque: embora
Basura: varredura, limpeza, rápido, faxina Borrar: apagar, desvanecer Brindó: trouxe, ofereceu
Broma: piada, gracejo, anedota Burla: iludir, fingir, simular, enganar, trapacear, tapear Burlona: jocosa, irônica, pilhéria, espirituosa, mordaz, satírica, picante,
irreverente, cáustica,
sarcástica,
pungente,
cínica, ferina.
Cacerola: caçarola, panela grande
Calidez: entusiasmo, cordialidade, quente, calor humano, ternura Calzones: calcinha Cantarín: melodioso, suave e agradável de
ouvir Cargoso: chato, aborrecido / teimoso,
persistente Celos: ciúmes
Chaqueta: casaco, blusa, paletó, camisa Chillona: chorosa Chisme: boato, fofoca, intriga, rumor; invento, engenhoca, artefato
Cholos: mestiços Codicia: cobiça, avareza, mesquinharia, voracidade, desejo, ansiar Colgar: pendurar, trepar, pender, suspenso
Colmado:
coberto,
forrado,
cheio,
oprimido
amostra, exibição
Desplomaba: desmoronava, despencava Destartalado: esfarrapado, decrépito, deselegante, surrado, desleixado,
desmantelado
Desvaído: esvaído, desbotado, desanimado, apagado
Echar: jogar, atirar, expulsar, rejeitar, lançar Eludir: evitar, escapar, evadir Encomio: elogio, aplauso, louvor, parabenizar Empiece: começar, iniciar, principiar,
lançar
Empecinada: obstinada, persistente Emplear: empregar, ativar, utilizar, empenhar Empotrado: encaixado, integrado, alojado, assentado
Enano: anão
Enfado: tédio, raiva, zanga, irritação, aborrecimento, indignação, importuno. Enfurruñada: furiosa, raivosa
Enojo: raiva,
irritação
Ensanchar: alargar, ampliar, dilatar, expandir Ensayé: testar, tentar, experimentar Enrejado: grade, treliça Escenas: cenas, visões Estancia: estada
Estallido: explosão, estouro, rompante
Escurrir: deslizar, passar entre
Espeté: espetar, mencionar, cutucar
Esquizoide: dividido,
esquizofrênico
Estallé, estallido: explodir, rompante
Exangüe: débil, exausto, esgotado, pálido
Exhumé: desenterrei
Factótum: faz‐tudo
Falda: saia
Flanquar: ladear Frazada: cobertor, manta
Hallar: encontrar, achar, buscar,
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213
averiguar, localizar Hallazgos: achados, descobertas. Serendipity: capacidade de fazer descobertas importantes por acaso, sorte.
Halagó: lisonjeou, agradar, adular Haragán: preguiçoso, pessoa suja (slob) Hecho: evento, fato, feito, realização
Helecho: samambaia Hembra: (relativo ao sexo) feminino
Honda: profunda, intensa Huella: pegada, pista, marca deixada, rastro
Huidizo: fugidio (huir), ou breve, fugaz
Hundir: afundar
algo,
cravar,
desabar,
submergir Hurtadillas: furtivamente, secretamente
Infructuosamente: sem efeito, em vão
Ingenio: brilhantismo, engenhosidade, capacidade Ingle: virilha
Involucra: envolve, implica, inclui Irreprochable: irrepreensível
Jadear: ofegar, arquejar, engasgar, inspirar fundo
Jarras: xícaras, canecas Jerigonza: linguajar complicado, confuso
(galimatías) Joder: foder, ferrar, irritar. No me jodas! (Está de sacanagem?). Hay que joderse
(Tem que ter saco). Juguetón: divertido
Lacio: em linha reta, retilíneo
Ladrillo: tijolo
Lampiño: careca; audacioso, cara‐de‐pau, descarado
Lechuga: alface, salada, folhas Lechuza: coruja, pessoa não sociável, heremita Liviana: leviano, superficial, leve, ligeiro
Lóbregas: obscuras, sombrias
Lucir: parecer,
exibir
‐se,
mostrar
‐se
Peatonal: de pedestres Percatar: estar ciente
Pícaro: atrevido, imoral, travesso, debochado, provocante, malicioso, maldoso
Picardia: malandragem, baixaria, desonestidade, travessura Plañidera: trêmula Plegadiza: dobradiço, dobrável
Pómulos: maçãs
do
rosto,
pômulos
Por lo bajo: em segredo, silenciosamente Posadera: nádegas
Reanudar: recomeçar, renovar, retomar, reiniciar Recelosa: desconfiada, receosa (distrustful) Rechazo: rejeição, recusa, repúdio
Regaño: repreender, censurar
Remilgué,
remilgado:
esmerado,
dengoso, melindroso, delicado em
excesso, recatado. Reñir: brigar, argumentar, alegar, defender Resultó: era Rezagada: retardado, retardatário, lerdo, atrasado, preguiçoso
Rienda suelta: livre fluxo, vazão, liberar Roto: quebrado
Quedar: restar, sobra, fica, cair, manter
Sencillamente: verdadeiramente, sinceramente Sendero: caminho, trilha, pista Sienes: têmporas Sin alento: sem fôlego, ofegante
Sin tacha: impecável, completo, sem
defeito (flawless)
Sortija: anel
(mais
os
com
algum
adorno
ou pedra preciosa)
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Majadería: estupidez, bobagem, idiotice, tolice, burrice
Manchón: manto, capa
Manojo: feixe, punhado, porção
Marchitar: degenerar, murchar,
desaparecer, desvanecer,
esvair,
dissipar
‐
se, fenecer, esmorecer, desfazer‐se, definhar, enfraquecer, debilitar; encolher‐se; prejudicar Me echaste de menos? ‐ Sentiu minha
falta? Menudo: ligeiro, breve, ágil, destreza, leve, portátil (a menudo: constantemente, frequentemente)
Mitigar: abrandar,
serenar,
suavizar,
aplacar, aliviar, saciar Mofar: zombar, judiar, brincar, gracejo, escarnecer Mojigata: puritana (ou modos femininos) Mohín: careta, trejeito
Muchacha: garota, menina Musitó: sussurrou, cochichou
Muslo: coxa
Nalgas: nádegas,
bunda
Necedades: tolices, burrices Nudillos: nós dos dedos, juntas
Ocaso: declínio
Ominoso: agourento, mau presságio
Oquedad: buraco, cavidade, oco, vazio
Paladeándola (paladear): saborear, aprecisar, desfrutar, gozar
Parejo: uniforme,
paralelo,
alinhado
Parroquianos: clientes, fregueses Pasillo: corredor Patada: chute, pontapé
Patraña: estórias (manjadas, pra boi dormir), contos Patane: grosseria, deselegante, rústico, desajeitado
Sostuvo: manteve, sustentou, conservou
Suministrado: fornecido, suprido, fonte, supply Sueles: acostumado a
Suspicaz: desconfiado, duvidoso, receoso
Tacón: salto (de sapatos) Taladró: perfurou, broca; ferir, magoar Tararear: cantarolar Taza: cálice, taça, copo, tigela, xícara Temprana: cedo
Teñida: tingida, pintada Terminante: categórico, preciso, definitivo, inquestionável Testarudo: tenaz, perseverante, teimoso
Tetera: bule
de
chá,
chaleira
Tibio: morno
Tirón: puxão súbito, tranco
Tobillo: tornozelo
Todavía: ainda
Trampa: armadilha; alçapão; engano, trapaça, subterfúgio
Trasfondo: conotação, matiz, base, formação, antecedentes Trinchante: faca de carne, cinzel
Trizas: pedaços,
cacos
Trozos: peças, pedaços, partes
Ubicada: localizada, situada Uno: pessoa, aquele que
Valedero: válido, legitimado, executável, forçado
Viandas: comidas, iguarias, petiscos Vindicada: justiçada, vingada, desforra
Zambullir: mergulhar Zanjó: escavou
Consultas para a Tradução e Guias de Referência
“Así
habla
el
mexicano:
Dicionário
Básico
de
Mexicanismos” ‐
Jorge
Mejía
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215
http://www.babylon.com/definition http://www.diccionarioweb.org/p/ES/desco http://www.wordreference.com
http://www.woxikon.com.br/espanhol/ http://pt.wiktionary.org/wiki/
http://www.plantamed.com.br/glossario/index.html (Plantas medicinais, descrição de doenças e usos de cada planta para tratamento) http://www.jardineiro.net
Al fin y al cabo: (quando tudo é dito e pronto) afinal; no fim das contas. A la par de: junto com, assim como, ao mesmo tempo que. Tirando a: tendendo a, viés (tirando a pequeños ‐ de médio a pequenos). Fade: desbotar, fazer desaparecer a cor e o brilho; esvair‐se; murchar; encarquilhar;
desaparecer; amortecer;
perder
a força.
Sanseacabó: ponto final, fim de papo, assunto encerrado (expressão coloquial). Brinco: salto, pirueta, pulo.
A sus anchas (locução adverbial ‐ coloquial). (Pág. 24) Me puso tan a mis anchas: deixou‐me tão à vontade, tão cheia de si. ‐ Con entera liberdad. Se usa com: estar, quedarse, sentirse y vivir. “Cuando ao fin
todos se fueron, ella se quedó a sus anchas.” ‐ Orgulloso, ufano. Se usa mais com: estar, ponerse y quedarse. “Le insultó y se quedó
tan ancho.”
Antojar: desejo intenso e passageiro (mulher grávida), capricho; suposição, “a mim me
parece”. ‐Fazer‐se objeto de veemente desejo, ainda mais se só por capricho. “No hace mas que
lo que se le antoja”. ‐Fazer uma consideração como algo provável. “Se me antoja que va a llover”. “Se me
antoja que aquí sucede algo raro”.
Santurronería (nome feminino) despectivo. Atitude ou comportamento que se
caracteriza por dar grandes mostras de devoção religiosa, geralmente de maneira
exagerada e hipócrita.
Fanatismo,
extremismo,
intransigência,
religiosismo,
beato.
(pág. 5)
Panocha (nome feminino) ‐ pág. 38
1. Espiga grande, formada por grãos grossos e apertados, assim como o milho. 2. Palavrão (xulo) Méx. ‐ Parte externa do aparelho genital feminino (boceta, perereca). 3. Colomb ‐ Tipo de pan grande, hecho con maíz tierno: crió a sus dos hijos con la venta
de panochas y tamales. 4. Méx ‐ Raspadura de azúcar que se prepara sólida en trozos (rapadura).
Arvejilla, Sweet Pea (Lathyrus Odoratus): Ervilha‐de‐cheiro, Ervilha‐doce.
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É uma trepadeira anual de inverno. Apresenta caule herbáceo, áspero e ascendente por meio de gavinhas que se desenvolvem nas pontas das folhas compostas. Suas flores são muito vistosas, perfumadas, solitárias e podem ser de cores e matizes variados, com degradés e combinações entre o azul, branco, amarelo, laranja, rosa e
vermelho. Após a polinização formam‐se vagens curtas, com sementes semelhantes a
ervilhas, porém
venenosas.
A
ervilha
‐de
‐cheiro
é uma
excelente
trepadeira
para
pequenos suportes, como treliças e até mesmo cercas. Sua altura não ultrapassa os dois metros. A floração ocorre na primavera e verão.
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