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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JLIO DE MESQUITA FILHO
(UNESP), CAMPUS DE MARILIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO
DOUTORADO INTERINSTITUCIONAL EM EDUCAO
ENTRE A TEORIA E A PRTICA: O PROJETO POLTICO-
PEDAGGICO DO CURSO DE MEDICINA DA UFMA
Caio Jos de Carvalho Filho
Orientadora: Prof Dr Hlia Snia Raphael
Marlia SP
2011
2
CAIO JOS DE CARVALHO FILHO
ENTRE A TEORIA E A PRTICA: O PROJETO POLTICO-
PEDAGGICO DO CURSO DE MEDICINA DA UFMA
Tese apresentada Universidade Estadual Paulista
Jlio de Mesquita Filho - UNESP,
para a obteno do grau de Doutor em Educao.
rea de concentrao: Polticas Pblicas e
Administrao da Educao Brasileira
Orientadora: Prof Dr Hlia Snia Raphael
Marlia SP
2011
3
Ficha catalogrfica elaborada pelo
Servio Tcnico de Biblioteca e Documentao UNESP Campus de Marlia
Carvalho Filho, Caio Jos de.
C331e Entre a teoria e a prtica: o projeto poltico-
pedaggico do curso de medicina da UFMA / Caio Jos
de Carvalho Filho. Marlia, 2011
242 f.; 30 cm.
Tese (doutorado - Educao) Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Filosofia e Cincias, 2011
Bibliografia: f. 222-242
Orientadora: Hlia Snia Raphael
1. Educao mdica. 2. Aprendizagem baseada em
problemas (PBL). 3. Projeto poltico-pedaggico.
4. Mdicos Formao. 5. Escolas mdicas. I. Autor.
II. Ttulo.
CDD 371.3
4
Para Clarissa, uma imprevista verdade
Para Tereza Cristina, companheira em alegrias e tristezas
Para Valdemira, Michol, Alba e Arlindo,
pelos antigos sonhos
Para Guilherme, Delmar e Elizabeth,
pela amizade
5
Escreves para quem? Escreves para os mortos,
para aqueles que amas no passado. Sren Kierkegaard, Temor y temblor, p. 7
memria de:
Caio e Margarida Carvalho,
Maria Clia,
Jos de Pinho,
Durval Fonseca,
Lourival Boga.
6
Pudesse eu no ter laos nem limites,
vida de mil faces transbordantes,
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Poesia, 1944
Unesp, Campus de Marlia,
onde ganhei um amor no tempo de madureza a educao
e despertei um amor do tempo de juventude a filosofia.
7
Breve comunicado aos possveis leitores:
Clarissa Soares da Fonseca Carvalho no tem nenhuma responsabilidade pelo que escrevi neste
trabalho, mas, sem sua presena e seu afeto, esse texto simplesmente no seria o que , talvez, sequer
existiria.
8
AGRADECIMENTOS
minha orientadora, Prof Dr HLIA SONIA RAPHAEL, mestra e amiga, que me cercou
de talento, competncia, tolerncia e delicadeza, tornando possvel a elaborao deste
trabalho.
Prof Dr ALBA MARIA PINHO DE CARVALHO, amiga e companheira destas e de
outras lutas, pela fora cada vez mais imprescindvel.
Ao Prof. Dr. JOS ERASMO CAMPELLO, pela amizade, incentivo e inestimveis
contribuies tericas.
Aos Profs. Drs. PEDRO ANGELO PAGNI e PASCHOAL QUAGLIO, por suas
importantes sugestes na avaliao de qualificao desta tese.
Aos alunos do Curso de Medicina da Universidade Federal do Maranho.
9
Entre a teoria e a prtica h o mundo da vida. A teoria racional, busca coerncia,
consistncia e a vida nem sempre [...]. A vida integra crenas histricas, s vezes
contraditrias, e que provm de diversas sistematizaes enraizadas na cultura; que se
transformam no modo de pensar e so reforadas, diariamente, pela estrutura social e
educacional [...]. Esses princpios se tornam evidentes quando se contrapem princpios que
os questionam e propem um modo diferente de pensar
Sommerman A, Santos AC, Santos A, Yukizaki, S. Complexidade e Transdisciplinaridade: em busca da totalidade perdida
10
RESUMO
A presente investigao discute o processo de implantao do novo Projeto Poltico
Pedaggico do Curso de Medicina da Universidade Federal do Maranho (UFMA). Apresenta
uma pesquisa com os estudantes das quatro primeiras turmas que freqentaram este novo
currculo. A partir do trabalho de campo, objetiva: discutir as bases tericas do novo projeto,
incluindo a Pedagogia das Competncias, as Metodologias Ativas de Aprendizagem e a
Aprendizagem baseada em Problemas; analisar o percurso da implantao, englobando as
suas redefinies e dificuldades; contextualizar as mudanas do ensino mdico na UFMA
com a histria e as grandes questes colocadas no campo da Educao Mdica. Numa
investigao de cunho quali-quantitativo, utiliza-se da anlise de contedo para investigar os
discursos dos alunos captados em questionrios, em perguntas abertas, fechadas, baseadas na
escala de Likert e em comentrios livres. A anlise dos resultados produziu como concluses:
o processo de implantao do novo projeto pedaggico encontrou graves dificuldades,
levando redefinio das suas diretrizes metodolgicas, em razo de condies estruturais do
curso e da universidade deficientes, com precrio apoio de laboratrio e de suporte pesquisa,
imprescindveis para a utilizao das novas metodologias; dificuldades inerentes
implantao de um sistema baseado em diretrizes construtivistas, que determina mudanas
nas teorias implcitas de ensino e aprendizagem de professores e alunos; fraco envolvimento
de professores e alunos no processo; apoio pedaggico e programas de capacitao docente
insuficientes; falhas na elaborao, discusso e do projeto curricular com a comunidade
universitria; suporte financeiro insuficiente; e questes estruturais do Curso de Medicina e da
Universidade. Finalmente, o trabalho discute o futuro das redefinies do ensino mdico na
UFMA, propondo possveis caminhos para sua continuidade.
Palavras-chave: Educao Mdica Aprendizagem baseada em Problemas Metodologias
Ativas de Aprendizagem Pedagogia das Competncias Projeto Poltico-Pedaggico
Currculo.
11
ABSTRACT
This investigation approaches the process for the implantation of the new Political
Pedagogic Project for the Medical Course at the Federal University of Maranho
(UFMA). It presents a research involving students from the first four classes that
attended this new curriculum. From the starting point of field work it aims at:
discussing the new projects theoretical bases, including Competence-based Pedagogy,
Active Learning Methodologies and Problem-based Learning; evaluating the
implantation path, encompassing its redefinitions and difficulties; and contextualizing
changes within medical teaching in the UFMA by means of exploring history and major
issues that were advanced in the field of Medical Education. In a quality-quantitative
investigation, researchers resorted to the content analysis of questionnaires bearing data
from students in open and closed questions based on Likert scale and free
commentaries. Analysis of results provided the following conclusions: the implantation
process of the new pedagogical project was hampered by serious issues, which led to
the redefinition of its methodological guidelines due to the courses structural
conditions and ill-functioning universities lacking laboratorial support to research, an
item of invaluable importance to include new methodologies; detection of inherent
difficulties to the implantation of a system based on constructivist guidelines which
determine changes within implicit theories for teaching and learning directed to teachers
and students; uninspired participation of teachers and students in the process;
inadequate pedagogical support and faculty development programs in order to improve
teachers performance; failure in the elaboration e discussion of curricular project with
the academic community; insufficient financial support; and structural issues related to
the Medical Course and the University. Finally, the work discusses how redefinitions of
medical teaching at UFMA will work in the future and advances possible paths in order
to secure continuity.
Keywords: Medical Education - Problem-based Learning - Active Learning
Methodologies - Competence-based Pedagogy - Political Pedagogic Project -
Curriculum
12
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Currculo orientado para desenvolvimento de
competncias profissionais ................................................................ 134
Figura 2 PPP centrado na interdisciplinaridade .................................................. 136
Figura 3 Integrao Curricular na formao mdica .......................................... 138
Figura 4 Integrao Curricular na implantao do PPP ...................................... 139
Figura 5 Conhecimento estudantil acerca do novo PPP ..................................... 142
Figura 6 Formao mdica orientada para o SUS ............................................... 147
Figura 7 Direcionamento da Formao Mdica para a
Ateno Bsica Sade ...................................................................... 149
Figura 8 Insero na rede de sade municipal ao longo
de toda a formao mdica ................................................................... 151
Figura 9 Capacitao do estudante para formao continuada ............................. 155
Figura 10 Metodologias Ativas de Aprendizagem na formao
Mdica ................................................................................................. 157
Figura 11 Experincia com Metodologias Ativas no novo PPP ............................ 159
Figura 12 Alternativa pedaggica na conduo da formao
Mdica ................................................................................................... 166
Figura 13 Avaliao da implantao do PPP .......................................................... 170
Figura 14 Participao estudantil na implantao do PPP ...................................... 171
Figura 15 Contedo curricular no novo PPP ........................................................... 175
Figura 16 Laboratrios Morfofuncionais no Curso de Medicina ............................. 180
Figura 17 Biblioteca no curso de Medicina .............................................................. 185
13
Lista de abreviaturas e siglas
ABEM Associao Brasileira de Educao Mdica
ABP Aprendizagem baseada em Problemas
CINAEM Comisso Interinstitucional de Avaliao do Ensino
Mdico
CNE Conselho Nacional de Educao
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
EMA Educao Mdica nas Amricas
FENAPEM Federao Pan-Americana de Associaes de Faculdades
de Medicina
HU Hospital Universitrio
IES Instituio de Ensino Superior
IDA Integrao Docente-Assistencial
LDB Lei de Diretrizes e Bases
LH Laboratrio de Habilidades
MEC Ministrio da Educao e Cultura
MS Ministrio da Sade
OCDE Organizao para Cooperao e Desenvolvimento
Econmico
OMS Organizao Mundial de Sade
PBL Aprendizagem baseada em Problemas
PP Projeto Pedaggico
PPP Projeto Poltico-pedaggico
PROMED Programa de Incentivo s Mudanas Curriculares nas
Escolas Mdicas
PRO-SADE Programa Nacional de Reorientao da Formao
Profissional em Sade
PSF Programa Sade da Famlia
OPAS Organizao Pan-Americana de Sade
RPG Reunies de Pequenos Grupos
SeSu Secretaria de Educao Superior
UBS Unidade Bsica de Sade
UFAL Universidade Federal de Alagoas
UFMA Universidade Federal do Maranho
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UNB Universidade de Braslia
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a
Cincia e a Cultura
UNESP Universidade Estadual Paulista
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia
UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNIDA Rede Unida de Desenvolvimento dos Profissionais de
Sade
USP Universidade de So Paulo
14
SUMRIO
INTRODUO
1 Razes do estudo: a educao mdica em questo ............................................. 16
2 O pesquisador e o objeto de investigao ......................................................... 18
3 O processo metodolgico: as diferentes dimenses da pesquisa ...................... 20
4 A dinmica expositiva da tese ........................................................................... 36
Captulo 1 - Educao Mdica no Brasil e seus caminhos, tendncias e paradigmas .......................................................................................... 38
1.1 Um resgate da Histria ..................................................................................... 22
1.2 Paradigma Flexneriano ..................................................................................... 23
1.3 Paradigma da integralidade: para alm das dicotomias..................................... 40
1.4 A educao mdica no Maranho nos circuitos da redefinio curricular ........ 41
Captulo 2 - Teoria das Competncias como base analtica da Reforma Curricular da Educao Mdica na contemporaneidade ................ 77
2.1 Teoria das Competncias: fundamentos tericos e concepo do saber .............................................................................................. 80
2.2 A noo de competncia como princpio de organizao curricular ........................................................................................... 85
2.3 Metodologias Ativas de Aprendizagem: PBL como alternativa pedaggica ....................................................................... 100
Captulo 3 - Redefinies do Ensino Mdico no cenrio brasileiro
contemporneo: uma questo poltico-estratgica .............................. 118
3.1 Nova formao mdica: exigncia da revoluo na sade................................... 118
3.2 O paradoxo da Educao Mdica na atualidade: teoria das competncias
no contexto da Reforma Sanitria ................................................................... 121
Captulo 4 - A Educao Mdica na UFMA em meio disputa
contempornea de paradigmas e direcionamentos:
olhares dos alunos .................................................................................. 128
4.1 A experincia de redefinio da Educao Mdica na UFMA ............................. 129
4.2 Relao teoria-prtica na Educao Mdica na UFMA ........................................ 132
4.3 Construo Curricular ........................................................................................... 141
4.4 Experincia de implantao do PPP na UFMA .................................................... 169
15
4.5 Questes emergentes ........................................................................................... 177
Consideraes Finais .............................................................................................. 198
Referncias Bibliogrficas ......................................................................................... 222
Apndice (CD em anexo)
Questionrio de Pesquisa - Alunos
Anexos (CD em anexo)
1. Projeto Pedaggico do Curso de Medicina da UFMA, 2007 2. Projeto Pedaggico do Curso de Medicina da UFMA, 2009
16
INTRODUO:
O desafio contemporneo de pensar a Educao Mdica
1. Razes do estudo: a educao mdica em questo
A docncia na Universidade ocupa um lugar de destaque nas minhas quase trs
dcadas de atuao profissional. Comecei na monitoria e consolidei um percurso como
professor nos cursos da rea da Sade, desempenhando funes que me provocavam pensar a
formao profissional em Medicina. Assim, questes da educao mdica vm constituindo
objeto de interesse e discusso no meu percurso acadmico.
A partir do final da primeira dcada dos anos 2000, mais precisamente em
2007, na Universidade Federal do Maranho (UFMA), em consonncia com as redefinies
da educao mdica no Brasil, vivencia-se, no curso de graduao em Medicina, o processo
de implantao de um novo projeto poltico-pedaggico, buscando viabilizar diretrizes
curriculares nacionais. De fato, esta uma tendncia geral nos cursos de Medicina que a
UFMA est a assumir com relativo atraso.
Esta experincia de mudana de currculo, no mbito de um novo projeto
poltico pedaggico, exige uma avaliao do processo que possibilite refletir sobre
questes/dilemas e perspectivas da educao mdica. esta uma demanda de pesquisa,
destacada por analistas do campo da Educao em Sade, como Laura Feuerwerker autora
referencial neste campo que, em editorial de 2007, na Revista Brasileira de Educao
Mdica, sustenta que existe pouca sistematizao do conhecimento produzido nas
experincias inovadoras nessa rea, com poucas iniciativas de avaliao que dem conta da
complexidade dos processos (FEUERWERKER, 2007).
Na perspectiva de inserir-me neste campo de saberes e de prticas sociais da
educao em sade, em processo de constituio, desenvolvi uma avaliao do processo de
implantao do novo Projeto Poltico-Pedaggico (PPP) do curso de graduao em Medicina
da UFMA, incidindo o foco analtico na concepo norteadora da experincia, nas diretrizes
poltico-pedaggicas, na integrao curricular e nas metodologias ativas de aprendizagem.
Em verdade, no campo da educao mdica, a integrao curricular constitui
uma temtica nuclear. Nos currculos de medicina, construdos na viso tradicional, a
17
desintegrao entre contedos ministrados e, especificamente, entre ciclo bsico e ciclo
profissional, um dos grandes dilemas a ser enfrentado.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduao em Medicina,
vigentes desde 2001, como parmetro norteador da educao mdica, enfatizam como
elementos centrais: a) promover a integrao e a interdisciplinaridade em coerncia com o
eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimenses biolgicas, psicolgicas,
sociais e ambientais; b) utilizar metodologias que privilegiam a participao ativa do aluno na
construo do conhecimento e a integrao entre os contedos, alm de estimular a integrao
entre o ensino, a pesquisa e a extenso/assistncia (BRASIL, 2001).
Particularmente, no contexto da UFMA, nos eventos de discusso do currculo
do curso de Medicina, foram sempre destacados como problemas recorrentes que
comprometem a qualidade da formao profissional: a) a dicotomia existente entre o ciclo
bsico e o profissionalizante, que apresentam contedos no integrados e, muitas vezes, no-
correlacionados; b) a falta de integrao entre as disciplinas do ciclo bsico; c) tendncia
especializao crescente no ciclo profissionalizante, no contemplando as necessidades de
formao do mdico capaz de responder s exigncias da realidade de sade no Brasil.
Estes problemas revelam diferentes expresses da desintegrao curricular a
serem superadas em um novo currculo, fundado em um projeto poltico-pedaggico que
viabilize a integrao de contedos e, particularmente, a integrao entre ciclo bsico e ciclo
profissional.
Cabe ressaltar que a prpria experincia de implantao do novo currculo vem
sendo perpassada por essas marcas histricas da desintegrao e da tendncia
especializao, numa tenso permanente entre o que podem ser denominados o velho
paradigma curricular flexneriano e o novo paradigma curricular da integralidade1.
Ao longo de todo o processo de implantao do novo currculo no curso de
Medicina da UFMA, percebe-se uma lacuna de reflexo e discusso sobre a prpria educao
mdica, incidindo as acirradas polmicas nas questes operacionais de composio da
chamada grade curricular. Fica evidente que o corpo docente do curso de Medicina da
1 Esses dois paradigmas curriculares em disputa no campo da Educao Mdica sero devidamente configurados
e discutidos no Captulo 1 desta tese.
18
UFMA ressente-se de uma formao pedaggica a alicerar o ser professor, predominando
uma viso pragmtica e reducionista do trabalho docente, restrita transmisso de contedos
cientficos peculiares rea mdica, sem a adequada elaborao de uma pedagogia de ensino
e aprendizagem. De fato, a questo pedaggica permanece no mbito das intuies, da
sensibilidade e do aprender a ensinar com a prpria prtica.
Assim, o trabalho de anlise do Projeto Poltico-Pedaggico do curso de Medicina
da UFMA, consubstanciado na Tese que ora apresento, representa, antes de tudo, uma
contribuio no sentido da construo de um Ncleo de Estudos sobre Educao Mdica, que
desenvolva uma produo crtica sobre os processos que presidem esta forma especfica de
educao, refletindo e discutindo questes poltico-pedaggicas centrais e encaminhando
alternativas de superao de novos e velhos problemas que marcam o trabalho de formao
dos mdicos na Universidade Federal do Maranho.
2. O pesquisador e o objeto de investigao:
Seguindo as trilhas de Pierre Bourdieu (2007), em suas lies metodolgicas,
considero a construo do objeto a operao mais importante no exerccio do ofcio da
pesquisa, embora nem sempre assim considerada na tradio dominante. Ensina-nos
Bourdieu, que esta construo eminentemente processual, a efetivar-se por uma srie de
aproximaes. Em uma de suas lies magistrais, afirma o mestre francs:
[...] antes de mais, a construo do objecto pelo menos na minha
experincia de investigador no uma coisa que se produza de uma
assentada, por uma espcie de acto terico inaugural, e o programa de
observaes ou de anlises por meio do qual a operao se efectua no um
plano que se desenhe antecipadamente, maneira de um engenheiro: um
trabalho de grande flego, que se realiza pouco a pouco, por retoques
sucessivos, por toda uma srie de correces, de emendas, sugeridos por o
que se chama o ofcio. (BOURDIEU, 2007, p.26-27)
Como pesquisador, a sempre aprender o ofcio da pesquisa, assumi, como norte
metodolgico, as lies bourdienianas e vivenciei de fato esta dinmica processual de
construo do objeto nesses trs anos de doutorado. Assim, em uma reflexo epistemolgica,
identifico em meu percurso, momentos de redefinio a partir das demandas da prpria
realidade de implantao do novo currculo no curso de medicina da UFMA e das inspiraes
19
orientadoras das teorias de construo curricular de que fui me apropriando ao longo do curso
nas diferentes disciplinas desenvolvidas. Seno, vejamos!
No projeto original, elaborado em 2007, como requisito para seleo do curso
de doutorado, centrei o foco analtico na interdisciplinaridade, traduzida na integrao
curricular, no mbito de contedos e disciplinas e dos ciclos de formao bsica e
profissional.
No processo de estudos, sobretudo no estgio na Universidade Estadual
Paulista (UNESP), em Marlia, e, particularmente, no esforo de construir o instrumental de
investigao, fui, processualmente, percebendo que, neste momento, ainda inicial de
implantao do PPP no curso de Medicina da UFMA - apenas cinco semestres letivos - se
mostrava invivel incidir o foco analtico na interdisciplinaridade.
Na convivncia diria com professores e alunos, as questes que mobilizam
estes dois atores decisivos na experincia, no incidiam - e continuam a no incidir -
prioritariamente, na interdisciplinaridade. As discusses, as polmicas e as questes apontadas
voltam-se para o prprio processo de implantao do novo PPP, discutindo-se, sobremodo, a
organizao do currculo e as metodologias de aprendizagem, bem como as prprias
condies objetivas, em nvel de estrutura, de equipamentos e de cenrios da prtica mdica.
Assim, de fato, a realidade atual do curso de Medicina da UFMA apontou que
o eixo de analise deveria incidir no processo de implantao do PPP ao longo da experincia
em curso, considerando-se as perspectivas dos sujeitos que fazem a formao mdica. Logo, a
interdisciplinaridade compe uma das importantes dimenses no conjunto da implantao do
PPP, sem, no entanto, constituir-se no foco central das anlises.
Desta forma, efetivei um ajuste de foco, uma correo de rota, redefinindo o
objeto e, consequentemente, os eixos analticos e os objetivos da tese.
No esforo analtico de avaliar o processo de implantao do novo PPP no
curso de Medicina, delineei, como foco, a concepo norteadora da experincia, as diretrizes
poltico-pedaggicas, a integrao curricular baseada na interdisciplinaridade e as
metodologias ativas de aprendizagem. Em verdade, esta uma aproximao a circunscrever o
objeto de estudo, em resposta s exigncias do fenmeno emprico e alicerada nas
orientaes das teorias curriculares que inspiram o meu raciocnio problematizador.
20
Nessa perspectiva, defini como Objetivo Geral: Avaliar o processo de
implantao do novo Projeto Poltico-pedaggico (PPP) do curso de Medicina da UFMA,
focalizando a concepo norteadora da experincia, as diretrizes poltico-pedaggicas e a
integrao curricular baseada nas metodologias ativas de aprendizagem.
A partir deste horizonte, delineei os seguintes Objetivos Especficos: discutir as
bases de sustentao terica do novo projeto poltico-pedaggico (PPP) da Medicina da
UFMA; analisar o desenvolvimento das diretrizes poltico-pedaggicas e das estratgias e dos
mecanismos de implantao do PPP; avaliar o desenvolvimento das metodologias ativas de
aprendizagem no processo de implantao do PPP; discutir as condies objetivas de
implantao da redefinio curricular no curso de Medicina da UFMA.
Considero que esta redefinio do objeto permitiu-me visualizar, com maior
clareza, as relaes e questes centrais nos processos de mudana dos padres da educao
mdica, em meio a polmicas e tenses.
Para trabalhar este objeto defini, de inicio, como tarefa investigativa, o resgate
da viso dos dois sujeitos que fazem a formao mdica, quais sejam, professores e alunos.
No entanto, nos percursos investigativos, sobremodo do trabalho de campo2, percebi a
amplitude e a abrangncia da tarefa investigativa de avaliar a tica de alunos e professores.
Assim, optei por centrar o estudo emprico no resgate da viso dos estudantes neste meu
esforo de anlise da implantao do PPP no curso de Medicina da UFMA. esta uma
primeira aproximao a exigir a necessria incurso no universo docente, como objeto de uma
investigao especfica, que pretendo assumir no mbito de um ncleo de estudos sobre
educao mdica na UFMA.
Deste modo, o objeto da presente tese incide na anlise da formao mdica,
resgatando concepes curriculares em disputa neste campo, privilegiando, no estudo
emprico, os delineamentos da concepo dos estudantes sobre este processo peculiar, vivido
no curso de Medicina da UFMA, de redefinir o seu processo de formao profissional.
2 Esses percursos investigativos que me levaram a redefinir o locus do estudo emprico sero narrados no
prximo item desta Introduo, que discute, especificamente, o processo metodolgico
21
3. O processo metodolgico: as diferentes dimenses da pesquisa
3.1. Opes terico-metodolgicas e dinmica investigativa
No mbito de um racionalismo crtico3, retomo, como inspirao fundante, a
tese de Pierre Bourdieu (2007) da pesquisa como ofcio, implicando em um modus
operandi que se aprende, exercita-se no fazer, incorporando princpios, prticas, operaes,
estratgias. De fato, nestes mais de trs anos de doutorado, exercitei este ofcio da pesquisa no
campo da educao, no sentido do desvendamento dos enigmas da educao mdica no Brasil
em seus percursos de redefinio, tendo, como referncia emprica, processos vivenciados no
curso de Medicina da UFMA, no perodo 2007-2010.
No exerccio desse ofcio, fui tecendo as relaes e mediaes entre teoria e
metodologia, alicerado na convico de que as opes tcnicas mais empricas so
inseparveis das opes mais tericas (BOURDIEU, 2007, p.24).
Assim, trabalhei a metodologia da pesquisa como caminho processual de
construo do conhecimento, em estreita vinculao com as concepes tericas
movimentadas nos processos de reflexo e anlise, operando um conjunto de estratgias e
utilizando o instrumental tcnico que se mostrou mais fecundo para circunscrever o objeto.
Nesta empreitada terico-metodolgica de demarcao de caminhos, apoiei-me
nas indicaes de Minayo (2007) que, no assumir do desafio do conhecimento, demarca a
natureza e os meandros da pesquisa qualitativa. Esta autora, hoje referncia nas pesquisas na
rea de Sade Coletiva, ao delinear as configuraes da pesquisa qualitativa, abriu-me um
horizonte de possibilidades para atender s demandas do objeto que estava, ento, a
interpelar-me como professor do curso de medicina: a educao mdica e seus percursos
contemporneos. Afirma Minayo (2007, p.57):
O mtodo qualitativo o que se aplica ao estudo da histria, das relaes,
das representaes, das crenas, das percepes e das opinies, produtos das
interpretaes que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem
3 Circunscrevo Racionalismo Crtico como uma perspectiva de produo cientfica que entende a cincia como
produto da Razo Crtica, em resposta s interpelaes da realidade, em suas conexes de espao e tempo. Nesta
perspectiva, a pesquisa um trabalho racional de descobertas, mediante desvendamento processual da realidade,
circunscrita no objeto investigativo. Sobre esta perspectiva do Racionalismo Crtico, ver CARVALHO (2009),
em seu artigo O exerccio do ofcio da pesquisa e o desafio da construo metodolgica, publicado no livro
Cultura: metodologias e investigao. Neste artigo, a autora, fundada na epistemologia de Gaston Bachelard,
constri o racionalismo crtico como alternativa do fazer cientfico, a partir do dilogo entre trs vertentes
racionalistas: a de Karl Marx, a de Pierre Bourdieu e a de Boaventura de Sousa Santos.
22
seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam [...]; as abordagens
qualitativas se conformam melhor a investigaes de grupos e segmentos
delimitados e focalizados, de histrias sociais sob a tica dos atores, de
relaes e para anlises de discursos e de documentos.
Logo, a pesquisa qualitativa apresentou-se como minha opo preferencial para
pensar e discutir a educao mdica no contexto brasileiro, no tempo presente, na medida em
que o desvendar desse objeto pressupe trabalhar percepes, opinies, representaes, no
esforo de demarcar momentos na histria da formao profissional em medicina, focando o
presente e suas articulaes com o passado.
Para traar caminhos nesta aventura de produo do conhecimento, mediante a
construo de uma cartografia com potencial de orientao para conduzir-me no desvendar
dos enigmas e paradoxos das redefinies da educao mdica, tomei a deciso de investir, de
forma intensa e sistemtica, na apropriao de teorias no campo da educao. De fato, ao
elaborar o projeto inicial para a seleo no doutorado, tive clareza de que no podia discutir a
educao mdica a partir da prpria experincia em curso.
Neste sentido, cabe retomar a preciosa indicao de Deslauriers e Krisit
(2008, p.134) a respeito da necessidade de uma pesquisa bibliogrfica revisada e exaustiva:
possvel construir um objeto de pesquisa de forma puramente emprica,
baseandose unicamente nos dados do campo? A resposta usualmente
negativa: preciso ler o que os outros escreveram antes de ns; de certa
forma, subir sobre seus ombros para conseguir ver mais alm.
Assim, na minha condio de pesquisador na rea bsica das cincias da
sade4, colocou-se a exigncia de construo de uma base, relativamente slida, nas
teorizaes da educao.
Desse modo, nos processos da pesquisa bibliogrfica, fui configurando minha
prpria cartografia conceitual-analtica, adentrando, com prudncia e ousadia, em um campo
cientfico novo. E aqui, ao delinear os meus percursos metodolgicos, delineio este
mapeamento que desenvolvi ao longo do tempo do doutorado. Cabe sublinhar que cheguei a
estes mapas tericos - aqui apresentados - por vias que se entrecruzam em minha trajetria
como doutorando: as prprias indicaes decorrentes das bases tericas de sustentao do
4 Ao longo da minha trajetria de docente da Universidade Federal do Maranho atuei sempre na rea bsica dos
cursos da rea da sade, mais especificamente em Farmacologia, com trabalhos em pesquisa quantitativa, como
o desenvolvido em funo da minha dissertao de Mestrado em Cincias da Sade: Efeito de dietas ricas em
carboidratos sobre autoimunidade em camundongos.
23
novo PPP; as disciplinas desenvolvidas ao longo do curso no Programa de Ps-Graduao em
Educao e pistas apontadas nos processos de orientao. Seno, vejamos!
Comecei minhas incurses tericas pela Pedagogia das Competncias,
trabalhando fundamentalmente o pensamento de Philippe Perrenoud, articulando-o com as
elaboraes de outros analistas, como Marisa Ramos, Antoni Zabala, Philippe Zarifian,
Bernard Rey, Joan Ru, ngel Prez Gomes, Jurjo Torres Santom. Tais teorizaes
remeteram-me, necessariamente, ao estudo do Construtivismo, pela via fundante de Jean
Piaget, construindo interlocues com Csar Coll, Jean-Louis Le Moigne, Fernando Becker.
Nestes percursos de estudo bibliogrfico mergulhei nas crticas Teoria das Competncias e
ao Construtivismo, trabalhando a produo da Escola Histrico-Cultural, sobremaneira pelos
trabalhos de Newton Duarte e de seu grupo, enveredando, igualmente, pelas vias da Teoria
Crtica, mediante as leituras dos grupos de Teoria Crtica em Educao.
Um outro mapa terico de destaque na minha cartografia refere-se s
Metodologias Ativas de Aprendizagem, principalmente o Aprendizado Baseado em
Problemas (PBL), apropriando-me das elaboraes dos grupos dos especialistas das
Universidades McMaster e Maastricht, atravs dos peridicos Higher Education, Medical
Teacher, Medical Education e Academic Medicine, bem como das produes dos estudiosos
brasileiros, publicadas sobremodo na Revista Brasileira de Educao Mdica.
Trabalhei, de forma sistemtica, a questo da formao dos professores,
resgatando os trabalhos de: Maurice Tardif, Jos Contreras, Nildo Alves Batista; Selma
Garrido Pimenta, La Anastasiou, Maria Isabel Cunha. Nesta direo centrei os meus estudos
nas teorizaes acerca do Professor Reflexivo, retomando, principalmente, os trabalhos de
Donald Schn, Isabel Alarco, Antonio Nvoa e Kenneth Zeichner.
Cabe destacar as minhas incurses nas teorizaes sobre o Currculo, pela vias
das obras de Gimeno Scristan, Michael Apple, Henry Giroux, Tomaz Tadeu da Silva e Jos
Augusto Pacheco.
Neste itinerrio, cabe sublinhar os meus estudos em um campo de fronteira
entre a educao, filosofia e sociologia, qual seja, o campo da Interdisciplinaridade,
principalmente pelas vias das produes de trs dos seus formuladores de referncia: Edgar
Morin, Olga Pombo e Ivani Fazenda.
24
Na composio desta cartografia conceitual-analtica afirmou-se a exigncia de
adentrar no campo especfico da Educao Mdica, a partir dos trabalhos de duas autoras
referenciais: Laura Feuerwekwer e Jadete Lampert, resgatando tambm as produes de Jos
Venturelli, Kenneth Ludmerer, dos grupos da Faculdade de Medicina de Marlia (FAMEMA)
e da Universidade Estadual de Londrina (UEL), alm dos trabalhos pioneiros de Juan Csar
Garcia e do grupo do Movimento da Reforma Sanitria Brasileira.
As bases tericas no campo da educao e, especificamente, na educao
mdica, construdas nos percursos desta cartografia constituem o sustentculo da produo
cientfica, consubstanciada na tese que ora apresento. Em verdade, a apropriao destas
teorias permitiu-me, na condio de pesquisador, problematizar os percursos de redefinio da
educao mdica, chegando, por um processo de sucessivas aproximaes, formulao do
objeto de investigao.
A rigor, tenho como fio condutor desta minha produo cientfica a disputa
contempornea de paradigmas5 no campo da educao mdica, mais especificamente no
sculo XXI. Em termos empricos, trabalho esta disputa de paradigmas nos processos de
implantao do chamado novo currculo no curso de Medicina da UFMA, a partir de 2007.
Assim, iluminado pelas teorizaes, a jogar luzes em campos de sombras,
vivenciei os percursos exigentes do trabalho de campo, buscando aproximar-me, de forma
metdica e sistemtica do universo de percepes, concepes e representaes dos
estudantes sobre esta experincia de implantao do novo currculo, ou mais especificamente,
do novo Projeto Poltico-pedaggico.
Merece destaque o fato de que esta aproximao do universo estudantil foi
deveras surpreendente, pela riqueza do material emprico que ela me proporcionou para
sistematizao, discusso e anlise. Assim, nos percursos do campo, precisei efetivar mais
uma redefinio de objeto e de caminhos investigativos: centrar a pesquisa no universo
5 Lampert (2009) e Chaves (1996), embora ressalvando que o conceito de paradigma, stricto sensu, tal como
definido por Kuhn (2006), no seja aplicvel educao das profisses da sade, ou mesmo educao mdica
em particular, utilizam, como a maioria dos pesquisadores e estudiosos da Educao Mdica, o termo paradigma,
lato sensu, para designar o modelo dominante de educao mdica embasado no Relatrio Flexner, designando
como um movimento prodrmico de um novo paradigma da Integralidade - o modelo que vem sendo
construdo a partir das duas ltimas dcadas do sculo XX.
25
estudantil, deixando para um outro momento de pesquisa o adentrar, metodicamente, no
universo onde estou inserido: o dos professores do curso de Medicina da UFMA6.
digna de registro esta minha insero na condio de professor neste
universo especfico do corpo docente que apresenta um nvel de complexidade pelo prprio
perfil do conjunto dos professores do curso de Medicina da UFMA. De fato, percebo a
exigncia de desenvolver distintas estratgias de investigao para aproximar-me de tal
universo, no sentido de configurar concepes no-explicitadas, valores, representaes,
atitudes, posicionamento desses sujeitos nesta disputa de paradigmas que marca a implantao
do novo PPP. Assim, essa aproximao analtica do universo docente exige tempo e
determinadas condies que no disponho neste perodo investigativo, considerando,
inclusive, o investimento necessrio para trabalhar o material emergente do trabalho de campo
com os estudantes.
Assim, de forma processual, constru um percurso de pesquisa para adentrar
nas configuraes objetivas e subjetivas da experincia de implementao do projeto poltico-
pedaggico no curso de medicina da UFMA, fazendo o devido ajuste de trilhas a partir das
demandas da prpria dinmica investigativa.
Um movimento exigido pelo prprio objeto de estudo foi a pesquisa
documental, trabalhando como material bsico o projeto poltico-pedaggico em suas duas
verses: a original implantada a partir do primeiro semestre de 2007 at o segundo semestre
de 2008 (UFMA, 2007) e verso revista a partir do primeiro semestre de 2009 (UFMA, 2009),
redefinindo a organizao curricular e o encaminhamento metodolgico. Por considerar que
estas duas verses consubstanciam encaminhamentos distintos para a educao mdica na
UFMA, desenvolvi uma leitura sistemtica e metdica, cotejando as duas proposies de
formao profissional. Para fundamentar-me melhor nesta discusso comparativa, estudei
projetos pedaggicos de diferentes escolas de medicina que incluam em seus currculos a
Aprendizagem Baseada em Problemas, tais como: Universidade Federal da Bahia (UFBA,
2006; FORMIGLI et al, 2010), Universidade Federal de Santa Catarina (PEREIMA;
COELHO; DA ROS, 2005), Universidade Estadual Paulista, Campus de Botucatu (UNESP,
6 Cabe aqui registrar que j havia iniciado o processo de trabalho de campo com o professores quando fiz a
opo metodolgica de centrar a investigao, para efeito desta tese, no universo estudantil. Assim, disponho de
questionrios respondidos por professores que me oferecem um fecundo material para a construo de um objeto
especfico a ser trabalhado em investigaes no Ncleo de Estudos em Educao Mdica, que pretendo,
coletivamente, constituir, de imediato, no Curso de Medicina da UFMA.
26
2005), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2008), Universidade Federal de So
Paulo (UNIFESP, 2002; 2006), Universidade Federal de Alagoas (UFAL, 2006),
Universidade Federal de Roraima (UFRR, 2002) e Universidade Estadual de Cincias da
Sade de Alagoas (UNCISAL, 2008).
Busquei ainda bases analticas no estudo dos documentos bsicos que
propugnam as mudanas na educao mdica, cumprindo destacar Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduao em Medicina. Relatrios da CINAEM, Relatrios das
Conferncias Nacionais de Sade, os Programas de incentivo reestruturao curricular nos
cursos da rea da sade PROMED (Brasil, 2002) e PROSADE (Brasil, 2005) - e
documentos oficiais dos Ministrios da Educao e da Sade referentes educao mdica.
Uma outra via de acesso ao objeto consistiu em processo de observao
sistemtica da dinmica da experincia de implantao do PPP. De fato, a minha condio de
professor permitia-me uma aproximao cotidiana dos percursos da redefinio curricular em
curso, participando de reunies de discusses no Colegiado do Curso, de avaliaes do
processo e, ainda, contactando informalmente professores e alunos. Com a pretenso de
objetivar o meu olhar, como observador de um universo do qual fao parte, adotei a
sistemtica de registro em um dirio de campo, o que me permitia reflexes sobre minhas
prprias observaes.
Buscando ampliar o meu horizonte de avaliao, aproveitei o perodo do
estgio curricular na UNESP Campus de Marlia para vivenciar uma experincia de
conhecimento do projeto pedaggico da Faculdade de Medicina de Marlia (FAMEMA). Em
verdade, foi este um momento especfico e muito rico do meu estgio curricular, considerando
que nesta escola de Medicina desenvolve-se uma das mais bem-sucedidas experincias de
implantao da Aprendizagem Baseada em Problemas no Brasil. Assim, a observao in loco
da dinmica de funcionamento da referida experincia e os contatos com estudantes e
professores da FAMEMA propiciaram-me um referencial para refletir as condies objetivas
e subjetivas que permitem a implementao de mudanas efetivas na educao mdica.
Ressaltem-se as dificuldades burocrticas de permisso e oficializao deste proveitoso
estgio, que s pode concretizar-se graas aos esforos persistentes da minha orientadora,
Prof Dr Hlia Sonia Raphael.
27
O meu desafio de pesquisa incidia em desvendar o universo dos sujeitos que
fazem a educao medica na UFMA. Particularmente, as redefinies do objeto demandavam
circunscrever a viso dos estudantes acerca da implantao do novo projeto poltico-
pedaggico, configurando percepes, concepes, opinies e avaliaes.
A dinmica da experincia de implantao do PPP do curso de Medicina da
UFMA revelava-me, poca do estudo, um nvel de insatisfao e descrena com o projeto
pedaggico ora em curso7.
Desse modo, a pesquisa qualitativa impunha-se como a alternativa com maior
potencial explicativo. Tinha clareza, no entanto, que precisava ampliar esse potencial da
pesquisa qualitativa com recorrncia ao quantitativo. De fato, o desafio de investigar a
perspectiva de 140 estudantes que vivenciaram a experincia de implantao do novo projeto
pedaggico do curso de Medicina exigiu-me recorrer ao quantitativo, como apoio
investigao de carter qualitativo. Nesse sentido, oriento-me, mais uma vez, pelas indicaes
de Ceclia Minayo (2007, p.76):
Em sntese, as experincias de trabalho com as abordagens quantitativas e
qualitativas mostra que: elas no so incompatveis e podem ser integradas
num mesmo projeto de pesquisa; [...] que em lugar de se oporem, os estudos
quantitativos e qualitativos, quando feitos em conjunto, promovem uma mais
elaborada e completa construo da realidade, ensejando o desenvolvimento
de teorias e de novas tcnicas cooperativas.
Assim, considerando os percursos investigativos por mim trilhados no
exerccio do ofcio da pesquisa, desde a pesquisa bibliogrfica at a sistematizao e anlise
do material emprico, caracterizo o meu trabalho como uma pesquisa quali-quantitativa, ou
melhor delineando, uma investigao de carter qualitativo com apoio em recursos da
abordagem quantitativa.
Ao lanar um olhar reflexivo sobre os processos desta investigao quali-
quantitativa, cabe fazer demarcaes bsicas, construindo, assim, uma narrativa
metodolgica.
A primeira demarcao quando ao pblico investigado. A rigor, delimitei este
pblico considerando a experincia vivenciada na implantao do PPP no curso de Medicina.
7 Uma expresso inconteste desta insatisfao e descrena do alunado materializava-se na prpria redefinio do
PPP do Curso de Medicina da UFMA, logo ao final do segundo ano, a partir de demandas estudantis. Este processo de redefinio curricular, em meio prpria implantao do projeto, configurado no Captulo 1,
quando trato da educao mdica no Maranho.
28
Deste modo, foram escolhidos como participantes da pesquisa, os alunos das quatro primeiras
turmas do curso de Medicina da UFMA aps o inicio da implantao do novo Projeto
Pedaggico, a partir do primeiro semestre de 2007. Logo, trabalhei com o alunado que,
poca 1 semestre de 2010 -, cursava do 3 ao 6 perodo do curso. Decidi no incluir alunos
dos dois primeiros perodos, considerando a sua condio de estudantes iniciantes, ainda sem
uma vivncia consolidada na experincia em pauta.
Definido o pblico, coube-me delimitar a estratgia de pesquisa a ser
desenvolvida para circunscrever o objeto de estudo. Tendo em vista a minha pretenso de
chegar ao maior nmero possvel de estudantes, optei comear pela investigao via
questionrios, incluindo questes abertas e fechadas.
Uma das primeiras tarefas desenvolvidas foi a construo deste questionrio.
Para tanto, pautei-me nas configuraes do objeto amadurecidas ao longo das redefinies do
meu projeto de investigao8. Em busca de referncias norteadoras, fiz um mapeamento de
questes relevantes e aspectos centrais a serem investigados. Assim, elaborei um questionrio
com perguntas fechadas e abertas, circunscrevendo diferentes dimenses da educao mdica
no mbito do PPP. Para materializar a avaliao de nveis de concordncia ou discordncia
com dimenses-chave deste Projeto Pedaggico - diretrizes, organizao curricular,
experincias com metodologias e cenrios de prtica - utilizei a Escala de Likert9.
Seguindo as exigncias do rigor metodolgico, no sentido de uma aproximao
mais fecunda do universo pesquisado, encaminhei processo de validao deste instrumento de
pesquisa, que consistiu na aplicao do questionrio a um pequeno nmero de alunos
participantes do universo da pesquisa.
Assim, este instrumento foi aplicado a uma amostra de 16 alunos (quatro de
cada turma escolhida), durante o inicio do primeiro semestre de 2010.
8 Cabe aqui esclarecer que, ao longo do curso de Doutorado em Educao, trabalhei, de forma sistemtica, o
projeto de investigao em diferentes momentos: no decorrer da disciplina Metodologia Cientfica; em funo da
apresentao no Seminrio de Pesquisa do programa de Ps-Graduao em Educao; no processo de discusso
com a orientadora Prof Dr Hlia Sonia Raphael. Nestes momentos pude desenvolver um olhar epistemolgico
sobre a minha proposta, redefinindo os recortes do prprio objeto e aprimorando dimenses terico-
metodolgicas.
9 Escala de Likert: escala de classificao cuja caracterstica bsica o grau de concordncia em uma escala 1
(discordncia total) a 5 (concordncia total); esse instrumento permite que o pesquisado possa expressar, com
relativa facilidade, a intensidade de sua opinio, sendo utilizada para questes onde a medida da intensidade
relevante. Sobre as caractersticas desta escala ver: MALHOTRA, 2006.
29
Segundo Lima (2008), a amostra para efeito de testes deve contemplar pelo
menos 10% (dez por cento) do total de entrevistados projetados inicialmente para a pesquisa,
o que permite identificar eventuais falhas e efetuar os ajustes necessrios no instrumento.
Nesta aplicao experimental do questionrio, guisa de um projeto-piloto, a
maioria dos respondentes solicitou que fossem acrescentados s questes de mltipla escolha
e s baseadas na Escala Likert espaos para comentrios opcionais, conferindo ao instrumento
um potencial de anlise qualitativa, a partir de depoimentos, narrativas e crticas. Na verdade,
tendo em vista o nvel de insatisfao, decorrente da implantao do novo projeto pedaggico,
os alunos desejavam expressar, de forma mais ampla, suas opinies e avaliaes sobre os
diferentes aspectos do processo.
Solicitei aos alunos participantes deste grupo piloto de teste de validao do
instrumento, que apresentassem suas apreciaes acerca de determinados aspectos
operacionais: tempo empregado para as respostas ao questionrio; formato e organizao do
questionrio; nvel de interesse provocado pelas questes; clareza e objetividade das
perguntas. Na busca de chegar a um instrumento adequado que propiciasse melhor trabalhar o
objeto, submeti essa primeira verso do questionrio a especialistas, visando avaliar o seu
potencial no registro de informaes e as alternativas para sistematizao e interpretao.
A partir das apreciaes e sugestes do grupo-piloto e da avaliao dos
especialistas, fiz uma reviso do instrumento de pesquisa, efetuando os devidos ajustes. Em
sua verso final, o questionrio possui oito pginas, constando de trinta questes, sendo que
nove utilizam a Escala de Likert, oito so testes de mltipla escolha e treze so questes
abertas. Vale ressaltar que, nas questes de mltipla escolha e nas baseadas na Escala de
Likert, foram abertos espaos para comentrios dos estudantes participantes da pesquisa.
Com o questionrio devidamente construdo, dei inicio ao processo de coleta
de dados, contando com o apoio de dois estudantes do curso de Medicina, que foram
devidamente capacitados para a tarefa de distribuio do questionrio ao alunado.
necessrio sublinhar que os questionrios foram auto-aplicveis, ou seja,
foram entregues aos estudantes, pessoalmente, com explicaes acerca a pesquisa e de sobre
como preencher o instrumento, com devoluo marcada para sete dias aps. Esta estratgia de
auto-aplicabilidade do questionrio e entrega pessoal, com tempo necessrio para devoluo,
visou evitar a interferncia de fatores, como pressa, fadiga, desconcentrao, presena de
30
outras pessoas durante o perodo de resposta, viabilizando ao estudante possibilidades de
responder ao instrumento dentro de seu tempo disponvel e em condies de reflexo.
O processo de aplicao dos questionrios se deu no primeiro semestre de
2010, englobando - conforme o previsto alunos do terceiro ao sexto perodos do curso de
Medicina da UFMA. Assim, foram distribudos questionrios para o maior nmero possvel
de alunos, aproximando-se da totalidade dos 140 estudantes. Foram respondidos oitenta e trs
questionrios, perfazendo um total de 60% do universo pesquisado. Assim, delineou-se uma
amostra que se revelou significativa, considerando os critrios apontados pelos especialistas.
Segundo Minayo (2007, p.197), uma amostra qualitativa ideal que reflete a
totalidade das mltiplas dimenses do objeto de estudo. E esta autora explicita que o
dimensionamento da quantidade de tal amostra deve seguir o critrio de saturao, entendido
como o conhecimento formado pelo pesquisador, no campo, de que conseguiu compreender a
lgica interna do grupo ou da coletividade em estudo, medida que consiga o entendimento
das homogeneidades, da diversidade e da intensidade das informaes necessrias para o seu
trabalho (p.198).
Assim, ao longo da apurao dos questionrios, constatei que esta amostra de
60% (sessenta por cento) mostrava-se satisfatria, refletindo as mltiplas concepes e
percepes do universo estudantil sobre a implantao do PPP. De fato, observei que o
critrio de saturao foi atingido, na medida em que as respostas comearam a se mostrar
recorrentes, repetindo perspectivas e pontos de vista, praticamente sem agregar novos dados
qualitativos.
3.2. Processo de sistematizao e construo da anlise do material emprico: a
construo da anlise de contedo
O processo de investigao em campo junto aos estudantes do curso de
Medicina da UFMA que vivenciaram a experincia de implantao do Projeto Poltico-
Pedaggico foi deveras surpreendente pelo acervo de depoimentos, opinies, crticas e
sugestes que emergiram quando do trabalho de apurao ou mais que isso do trabalho de
resgate a partir dos questionrios. Neste processo efetuei um cuidadoso mapeamento de todas
31
estas mensagens escritas, resgatando as expresses de cada respondente, explorando cada
questionrio.
Em verdade, o trabalho com os oitenta e trs questionrios respondidos,
propiciou-me dados numricos, traduzidos em percentuais e discursos a expressar e/ou
indicar, esboar concepes e vises do alunado sobre a experincia em pauta. Como
pesquisador, vi-me, ento, diante de material emprico de uma dupla natureza - material
quantitativo e material qualitativo -, colocando-me o desafio de sistematizao e anlise.
Ao buscar uma alternativa metodolgica de trabalho, defino que o caminho
com maior potencial para efetivar este esforo sistematizador analtico a Anlise de
Contedo.
De fato, pelos encaminhamentos dos meus percursos neste ofcio da pesquisa,
este instrumental metodolgico da Anlise de Contedo pareceu-me perfeitamente
coadunante e pertinente. Senti-me contemplado com as configuraes de especialistas acerca
deste mtodo:
So perfeitamente possveis e necessrios o conhecimento e a utilizao da
anlise de contedo, enquanto procedimento de pesquisa, no mbito de uma
abordagem metodolgica crtica e epistemologicamente apoiada numa
concepo de cincia que reconhece o papel ativo do sujeito na produo do
conhecimento. (FRANCO, 2007, p.10)
[...] a anlise de contedo trabalha a palavra, quer dizer, a prtica da lngua
realizada por emissores identificveis. [...] A anlise de contedo procura
conhecer aquilo que est por trs das palavras sobre as quais se debrua.
(1973 PCHEUX, apud FRANCO, 2007, p.11)
[...] tudo o que dito ou escrito suscetvel de ser submetido a uma anlise
de contedo. (1968 HENRY & MOSCOVICI, apud BARDIN, 2008, p.34)
[...] a anlise de contedo deve comear onde os modos tradicionais de
investigao acabam. (1952 LASSWELL, LERNER & POOL, apud
BARDIN, 2008, p.15)
A anlise de contedo usada quando se quer ir alm dos significados, da
leitura simples do real. (FERREIRA, 2000, p.13)
A opo por esta via metodolgica exige, antes de tudo, configur-la, sendo
esta uma tarefa de extrema complexidade pela multiplicidade de alternativas de anlise de
contedo. Assim, recorro a Laurence Bardin autora referencial, recorrentemente citada por
especialistas que, no prefcio de sua obra Anlise de Contedo assim circunscreve:
32
O que anlise de contedo actualmente? Um conjunto de instrumentos
metodolgicos cada vez mais subtis, em constante aperfeioamento, que se
aplicam a discursos (contedos e continentes) extremamente
diversificados. O factor comum dessas tcnicas mltiplas e multiplicadas
desde o clculo das frequncias que fornece dados cifrados at a extraco
de estruturas traduzveis em modelos uma hermenutica controlada,
baseada na deduo: a inferncia. Enquanto esforo de interpretao, a
anlise de contedo oscila entre os dois plos do rigor da objectividade e da
fecundidade da subjectividade. Absolve e cauciona o investigador por esta
atraco pelo escondido, o latente, o no-aparente, o potencial de indito (do
no-dito), retido por qualquer mensagem. Tarefa paciente de desocultao,
responde a esta atitude de voyeur de que o analista no ousa confessar-se e
justifica a sua preocupao, honesta, de rigor cientfico. Analisar mensagens
por esta dupla leitura, onde uma segunda leitura se substitui leitura
normal do leigo, ser agente duplo, detetive, espio... (BARDIN, 2008,
p.11)
E, em uma sntese do campo, do objetivo e do funcionamento desse
instrumental metodolgico, afirma a autora:
Designa-se sob o termo de anlise de contedo um conjunto de tcnicas de
anlise das comunicaes visando obter, por procedimentos sistemticos e
objectivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores
(quantitativos ou no) que permitam a inferncia de conhecimentos relativos
s condies de produo/recepo (variveis inferidas) destas mensagens
(BARDIN, 2008, p.44).
A rigor, as elaboraes de Laurence Bardin fornecem-me uma configurao
primeira das operaes fundamentais na construo da anlise de contedo: descrio do
contedo das mensagens; inferncia baseada na deduo; desocultamento do latente, do
escondido, do aparente. Neste sentido, assinala Bardin, que este instrumental, ao propiciar
inferncia analtica, constitui uma segunda leitura, qualitativamente distinta, do que pode ser
considerada a leitura normal do leigo.
Fundado nestas configuraes bsicas da anlise de contedo, colocou-se o
desafio de delinear uma alternativa face s tcnicas mltiplas e multiplicadas que
constituem esse campo metodolgico. , justamente, neste sentido de sublinhar a pluralidade
de tcnicas possveis, que Bardin (2008, p.32) pondera que seria melhor falar de anlises de
contedo.
Face ao dilema de escolher a alternativa de anlise de contedo que mais se
coadunasse com a interpretao do material emprico exigida pelo objeto, Bardin ofereceu-me
uma pista decisiva: a tcnica de anlise de contedo adequada ao domnio e ao objectivo
pretendidos tem que ser reinventada a cada momento (BARDIN, 2008, p.32). esta uma
33
provocao que me fez buscar pesquisadores que reinventaram a anlise de contedo para
responder a desafios analticos.
Nesta busca, encontrei a tcnica de anlise de contedo na formulao de
Miriam Limoeiro Cardoso, interpretada pela pesquisadora Alba Carvalho que, em sua obra A
questo da transformao e o trabalho social: uma anlise gramsciana (1983), apresenta
detalhadamente a dinmica de anlise de contedo por ela construda, materializando a
perspectiva de Cardoso. Assim, esta autora explicita as bases, os princpios orientadores e a
dinmica da anlise de contedo, apresentando a seguinte configurao desta perspectiva
especfica:
Miriam Limoeiro Cardoso, partindo da constatao da insuficincia do
mtodo de anlise de contedo tradicional e do mtodo de anlise estrutural
em termos de capacidade explicativa, configura uma nova tcnica de anlise
de contedo, a partir de indicaes dos dois referidos mtodos, buscando
ultrapassar no processo de conhecimento o nvel de descrio para atingir o
nvel de anlise. Essa sua proposio metodolgica, fundada na tese do papel
decisivo da orientao terica na construo do conhecimento do real, faz a
ligao entre Teoria e Material Emprico. O processo metodolgico inicia-se
com a configurao de uma teoria no sentido da delimitao de categorias
fundamentais que precisam ser simples e suficientemente gerais para
orientar todo o processo de investigao. Tendo por base as categorias
tericas fundamentais e a especificidade do objeto de estudo, definem-se as
unidades de anlise que so os temas. Os temas, como unidades de anlise,
expressam feixes de relaes, ou seja, uma combinao de relaes. Os
temas so constitudos por tens que configuram determinadas relaes em
suas diferentes possibilidades, marcando assim os diversos posicionamentos
que podem ser assumidos em cada tema. (CARVALHO, 1983, p.18-19,
grifos da autora)
Inspirado nesta orientao metodolgica, fui construindo, pouco a pouco, por
correes, retoques e emendas, o quadro bsico norteador da anlise de contedo. Conforme a
perspectiva de Miriam Cardoso na interpretao de Alba Carvalho, parti de dois referenciais
fundantes: as bases tericas de sustentao da presente tese, circunscritas na cartografia
analtico-conceitual que perpassa a exposio ao longo de todos os captulos; a potencialidade
do material emprico decorrente do trabalho de campo a consubstanciar a viso dos alunos
sobre a experincia da implantao do PPP no curso de Medicina da UFMA. Na tessitura
entre teoria e empiria, delimitei eixos e temas. Os eixos so elementos-chave que
circunscrevem o campo da educao mdica. E, no interior desses eixos, os temas encarnam
dimenses centrais a serem consideradas e investigadas, constituindo as unidades de anlise.
34
Cabe aqui apresentar este quadro analtico, visando deixar explcitos os
referenciais assumidos na construo da anlise de contedo trabalhada nesta tese10
:
Eixo I: Relao Teoria-Prtica na Educao Mdica
Tema 1: Paradigmas em disputa
Formao cientificista especializada
Pedagogia das Competncias na tica do mercado
Pedagogia das Competncias em uma tica do privilegio do pblico-societal
Tema 2: Concepo do conhecimento no processo formativo
Concepo tradicional do conhecimento como acumulao do saber e especializao
Concepo pragmtica do conhecimento como saber fazer
Concepo reflexiva do conhecimento
Tema 3: Formas de encaminhamento do trabalho de formao
Currculo por disciplinas
Interdisciplinaridade: integrao curricular
Eixo II: Construo curricular
Tema 4: Viso de currculo no curso de Medicina
Currculo como uma proposta idealizada dentro de uma dada perspectiva a ser implantada
Currculo como construo coletiva
Currculo como um documento formal
Tema 5: Diretrizes da formao: que mdico formar?
Mdico com formao cientificista e especializao precoce
Mdico com formao para o SUS e PSF concepo operacional
Mdico com formao integral, capaz de insero na comunidade e com potencialidade de especializao
Tema 6: Posio do professor no processo formativo
Professor como detentor e transmissor de conhecimentos
Professor como facilitador/mediador/orientador
Professor reflexivo
Tema 7: Papel do aluno no processo formativo
Aluno como receptor de informaes
Aluno como construtor ativo de sua aprendizagem
Aluno como sujeito na relao de aprendizagem com o professor
Tema 8: Metodologias de aprendizagem no processo pedaggico
Aulas exclusivamente expositivas
Metodologias ativas de aprendizagem
Pedagogia com aulas expositivas e mtodos ativos de aprendizagem
10
Por questo de clareza no mtodo de exposio, decidi ser a melhor alternativa apresentar o referido quadro no
corpo desta introduo e no remet-lo para os apndices da tese.
35
Eixo III: Experincia de implantao do PPP/UFMA
Tema 9: Avaliao da implantao do PPP
Satisfatria
Insatisfatria
Satisfatria, com restries importantes
Insatisfatria, reconhecendo avanos importantes
Tema 10: Avaliao do contedo curricular
Contedo satisfatrio s exigncias da formao do mdico
Contedo reduzido com retirada de temticas importantes / abordagem superficial
Eixo IV: Questes emergentes na implantao do PPP
Tema 11: Questes relacionadas com a estrutura da UFMA
Condies financeiras
Laboratrios morfofuncionais
Biblioteca
Cenrios de prtica
Tema 12: Questes relacionadas com a estruturao do curso de Medicina
Departamentalizao e isolamento departamental
Poltica de Capacitao
Desorganizao no contexto universitrio
Falta de planejamento na viabilizao da integrao curricular
Fragilidades na organizao interna do PPP / Sistemtica de coordenao dos perodos
Sistema de avaliao
Tema 13: Questes relacionadas com os professores
Profissionalizao docente: o mdico que d aulas
Capacitao para o trabalho com as metodologias ativas
Comprometimento com a formao
Expectativas do trabalho docente
Condies de trabalho
Rejeio/resistncias ao papel de tutor/facilitador
Tema 14: Questes relacionadas com os alunos
Expectativas em relao formao
Experincias de aprendizagem anteriores
Dificuldades com mtodos de aprendizagem
Nvel de conhecimento da proposta curricular
Participao pontual e limitada na construo da experincia de redefinio curricular
Resistncias s metodologias ativas, particularmente PBL
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4 A dinmica expositiva da tese
O presente trabalho estrutura-se em quatro captulos, incluindo, ainda, a
Introduo e Concluses.
Na Introduo, justifiquei meu interesse pelo objeto de estudo e relatei a
trajetria metodolgica este estudo, com uma descrio metodolgica do caminho trilhado
durante a pesquisa. Apresentei a abordagem quali-quantitativa como a opo adotada para o
desenvolvimento do estudo, descrevendo, ainda, o processo de sistematizao e anlise dos
dados empricos coletados no campo emprico.
No Captulo 1, intitulado Educao Mdica no Brasil e seus caminhos,
tendncias e paradigmas, efetuei uma abordagem histrica deste processo, com a anlise dos
movimentos e tendncias que influenciaram os modelos de formao do profissional mdico
em nosso pas e na Amrica Latina. Neste captulo, tambm, apresentei o Projeto Poltico-
Pedaggico do Curso de Medicina da UFMA, analisando seus referenciais tericos, dados
tcnicos e opes metodolgicas. Na concluso deste captulo, procedi a uma anlise
comparativa dos dois momentos desse projeto, apontando as mudanas de percurso
produzidas na alterao curricular do curso de Medicina.
No Captulo 2, denominado Teoria das Competncias como base analtica da
Reforma Curricular da Educao Mdica na contemporaneidade, discuti os fundamentos
tericos, a concepo do saber e a insero curricular da Pedagogia das Competncias;
analisei, tambm, as Metodologias Ativas de Aprendizagem, bases dos novos currculos em
Medicina, principalmente, a Aprendizagem baseada em Problemas (PBL).
No Captulo 3 - Redefinies do Ensino Mdico no cenrio brasileiro
contemporneo: uma questo poltico-estratgica - analisei a nova formao mdica como
uma exigncia das novas polticas de sade no Brasil e descrevi o que considero um paradoxo
da educao mdica brasileira na atualidade: conciliar a poltica pedaggica adaptativa da
Pedagogia das Competncias e as polticas sociais de sade do pas.
No Captulo 4, intitulado A Educao Mdica na UFMA em meio disputa
contempornea de paradigmas e direcionamentos: olhares dos alunos, apresentei a pesquisa
de campo realizada com os estudantes das quatro primeiras turmas aps a implantao do
novo currculo, relatando anlises sobre os diferentes aspectos desse processo, procurando
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compreender os motivos e as razes das dificuldades encontradas na implementao do novo
projeto pedaggico.
Nas Consideraes Finais procurei responder s questes colocadas pela
pesquisa de campo e pela observao do processo de implantao do novo Projeto
Pedaggico, tentando apontar caminhos para a redefinio do ensino mdico na Universidade
Federal do Maranho.
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Captulo 1
Educao Mdica no Brasil e seus caminhos, tendncias e paradigmas: os percursos do
Maranho na contemporaneidade
1.1. Um resgate da Histria: marcos e referncias no sculo XIX e limiar do sculo XX
A histria da educao mdica no Brasil iniciou-se logo aps a chegada da
corte portuguesa em nosso pas, quando D. Joo VI criou, por sugesto do cirurgio-mor do
Reino, o brasileiro Jos Correia Picano (1745-1823), em Salvador, Bahia, ento uma cidade
de aproximadamente 60.000 habitantes, a Escola de Cirurgia da Bahia, primeiro
estabelecimento de ensino da medicina em nosso pas (AMARAL, 2007). Ainda em 1818, no
dia 5 de novembro, com a denominao de Escola Anatmica, Cirrgica e Mdica do Rio de
Janeiro, foi iniciado o ensino mdico na cidade escolhida como sede do governo portugus no
exlio. J aps a Independncia, essas duas Academias de Medicina e Cirurgia foram
transformadas, em outubro de 1832, nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro
(FONSECA, 1995), devendo observar-se que a precariedade dessas primeiras escolas era a
norma: as aulas no eram obrigatrias, sendo administradas para poucos alunos e sem ensino
prtico (ARAJO et al, 2008).
Com a preocupao de discutir e disciplinar as formas de ensino mdico, surgiu,
em 1929, a Academia Imperial de Medicina, que se constituiu, na poca, no principal foco de
debates sobre a educao mdica, sendo a principal defensora da necessidade da adoo do
modelo anatomoclnico, de origem francesa, nos cursos brasileiros (EDLER, 2000).
Realmente, nessa poca, a Frana e a Alemanha estavam implantando as duas
principais inovaes que iriam revolucionar o ensino mdico, a Medicina Anatomoclnica e a
Medicina Experimental. A Medicina Anatomoclnica ou Hospitalar o modelo francs -,
adotada pelos brasileiros, caracterizava-se por uma retrica anti-racionalista, que atribua
todos os problemas da prtica mdica aos sistemas racionalistas do sculo XVIII,
estabelecendo a dicotomia entre racionalismo e empirismo, que teria longa tradio no
pensamento mdico dos sculos XIX e XX. Sobre esses conceitos, Edler e Fonseca (2006,
p.13), assim se colocam:
O primeiro seria assimilado s hipteses aprioristicas e aos grandes sistemas
unificados de patologia e teraputica. O segundo, associado observao,
pressupondo uma concepo mais limitada de verdade que compreendia uma
atitude ctica em relao ao conhecimento j estabelecido e uma hostilidade
face teoria. O sensualismo clnico, que se espalhou mundo afora a partir da
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prtica hospitalar francesa, enraizava-se na crena de que a observao direta
dos sintomas nos pacientes, vinculada observao da leso patolgica nos
cadveres, seria a instncia cognitiva que transformaria a medicina.
A adoo do modelo francs tambm trouxe os seus elementos instrumentais
para o exerccio profissional da medicina, como o estetoscpio e a tcnica de auscultao dos
pacientes, a patologia tissular, a instruo clnica sistemtica, a autpsia, o ceticismo clnico e
a estatstica. No entanto, o seu apego observao metdica e a sua resistncia especulao
terica, s discusses das causas patolgicas, aos estudos microscpicos e experimentao
animal constituram um foco de resistncia introduo e hegemonia das disciplinas
mdicas experimentais.
Mas, no incio do sculo XX, mais precisamente em 1910, nos Estados Unidos,
realizou-se um processo de completa reforma das escolas mdicas, derivado do modelo da
medicina experimental da Alemanha modelo germnico -, a partir do Relatrio Flexner
(FLEXNER, 1910/2009), que se tornou modelo de formao nas faculdades de medicina em
todo o mundo, inclusive no Brasil.11
1.2. Paradigma Flexneriano: excelncia cientfica e especializao no contexto
universitrio
1.2.1. O modelo educacional americano antes do Relatrio Flexner: indefinies e
disputas de modelo
At a metade do sculo XIX, o ensino mdico nos Estados Unidos era
extremamente precrio e desordenado. As escolas mdicas eram pequenas, mantidas por
particulares, no existindo requisitos para admisso dos alunos. Os cursos eram superficiais e
breves, com o patamar do grau mdico consistindo de dois perodos de 16 semanas de
estudos, com instrues quase inteiramente didticas, incluindo leituras, anotaes de livros-
texto e a memorizao forada de inumerveis dados. No se desenvolviam trabalhos
11 A influncia do modelo de formao mdica derivado desse Relatrio, que levou formulao do adjetivo
flexneriano, como definidor do tipo de ensino mdico produzido no Brasil, significativa e muito ampla,
centralizando as discusses posteriores a ele, em tentativas de sua reforma ou transformao, que devemos
discuti-lo com maior profundidade neste captulo. Em verdade, o paradigma flexneriano a grande referncia da
formao mdica brasileira, perpassando o debate contemporneo, tanto no sentido de sua afirmao e
legitimao, como da sua crtica, em busca de rupturas e redefinies.
40
laboratoriais e/ou clnicos e as escolas mdicas eram isoladas, sem filiao a universidades,
sendo que nenhuma dessas faculdades estava envolvida em atividades de pesquisa.
As mudanas nesse modo de ensino comearam com o nascimento da medicina
experimental na Europa e com a migrao de mdicos norte-americanos recm-graduados
para a Frana e a Alemanha, visando a aquisio dos conhecimentos cientficos mais recentes,
que acabaram absorvendo e valorizando a compreenso da tcnica e da metodologia
cientfica.
Esse processo de reoxigenao culminou com a fundao da Escola de
Medicina da Universidade Johns Hopkins, que se tornou imediatamente o modelo pelo qual as
outras escolas mdicas eram medidas. Nela, requeria-se diploma de ensino mdio para
admisso, foi adotado um currculo de quatro anos, as turmas eram pequenas, os estudantes
eram frequentemente testados e o laboratrio era o instrumento primrio de ensino. E, neste
contexto, pela primeira vez, a pesquisa e o ensino mdico faziam parte de uma destacada
faculdade de medicina, caracterizando uma revoluo nas propostas e mtodos da educao
mdica (LUDMERER, 1996).
Havia uma variedade de modelos de educao mdica em acirrada competio,
cada qual com teses e defensores responsveis. Os sistemas de ensino da medicina, na poca,
compreendiam, em geral, trs modalidades: um aprendizado quase artesanal, no qual os
estudantes recebiam ensinamentos diretamente de um profissional mais prtico e experiente;
um sistema de escolas privadas, onde os alunos seguiam cursos de leituras com mdicos,
geralmente proprietrios dessas organizaes; e um sistema universitrio, em que os
estudantes recebiam um misto de aulas e treinamento clnico em escolas e hospitais ligados a
universidades; essas escolas mdicas ensinavam diversos tipos de medicina: cientfica,
osteoptica, homeoptica, quiroprtica, ecltica, fisiomdica, botnica e thomsoniana. Os
estudantes mais ricos, alm disso, suplementavam sua formao mdica com estgios clnicos
e laboratoriais em hospitais e universidades da Europa, principalmente na Inglaterra, Esccia,
Frana e Alemanha (BECK, 2004). Este foi o contexto em que surgiu o Relatrio Flexner
(1910/2009).
Abraham Flexner (1866-1959), que no era mdico e, sim, um educador, com
trabalhos publicados sobre o ensino superior americano, foi convidado pela Fundao
41
Carnegie para o Desenvolvimento do Ensino para conduzir uma avaliao das escolas
mdicas na Amrica do Norte.
Ele o fez visitando pessoalmente todas as 155 escolas mdicas existentes nos
Estados Unidos e Canad, em uma viagem de estudos, realizada entre novembro de 1908 e
dezembro de 1909, que durou cento e oitenta dias. Seus mtodos de avaliao e a curta
durao das visitas a cada escola so atualmente criticados (HIATT, 1999), mas seu relatrio,
publicado em 1910, dirigido primariamente ao pblico, mudou a face da educao mdica.
Incide seu olhar crtico no cenrio da formao mdica americana no limiar do sculo XX,
formulando duras crticas mediocridade da maioria das escolas mdicas, aos currculos
inadequados e abordagem no-cientfica da preparao para a profisso.
Flexner recomendou uma drstica reduo no nmero de escolas nos Estados
Unidos e Canad, de 155 para 31, propugnando que a grande maioria das instituies
existentes deveria ser eliminada ou consolidada em unidades mais fortes. Todas as escolas
sobreviventes deveriam ser de um nico tipo: escolas ligadas a universidades e
comprometidas com pesquisa mdica e excelncia acadmica (HIATT & STOCKTON,
2003).
Em sua viso institucional, definiu as escolas mdicas como um monoplio
pblico, isto , como corporaes de servio pblico a serem desenvolvidas em benefcio da
sociedade, no admitindo que elas fossem tratadas como negcios privados operados para o
lucro de seus proprietrios.
Com a publicao, em 1910, do Relatrio Flexner, na verdade um estudo
denominado Medical Education in the United States and Canada (FLEXNER, 1910/2009),
Abraham Flexner assumiu o papel do mais proeminente educador medico americano e tornou-
se o rbitro inquestionvel da reforma educacional na Amrica, ajudando a criar um sistema
que ainda hoje associado ao seu nome.
1.2.2. Bases Tericas: princpios norteadores, delineamentos fundamentais e crticas
O paradigma flexneriano, baseado na medicina experimental alem
(AMORIM, 2009), defende a relevncia da excelncia mdica e a especializao. Funda-se
nos delineamentos circunscritos no Relatrio Flexner, consubstanciando uma concepo de
42
educao mdica assentada na prtica do mtodo cientfico, com investimento preponderante
do tempo dos estudantes em laboratrios e em hospitais. O relatrio explicita com clareza:
No aspecto pedaggico, a medicina moderna, como todo o ensino cientfico,
caracterizado pela atividade. O Estudante no apenas observa, ouve,
memoriza; ele faz. (FLEXNER, 1910/2009, p. 53)
Neste sentido, o modelo de educao mdica flexneriano privilegia a pesquisa
como dimenso bsica na formao do mdico. Para ele, os melhores professores eram
aqueles engajados na pesquisa. Assim, sua escola mdica ideal tinha de fazer parte de uma
universidade forte, com um grande grupo de professores em tempo integral, distribudos em
departamentos clnicos e cientficos.
Segundo Kenneth M. Ludmerer12
(LUDMERER, 2010), os principais
componentes da viso educacional de Flexner, demarcados em seu Relatrio, podem ser
resumidos em determinados pontos essenciais: a) Positivismo Mdico: Flexner descrevia a
medicina como uma disciplina experimental, governada pelas leis da biologia geral; b)
mtodos rigorosos de seleo dos candidatos s escolas mdicas; c) Mtodo Cientfico: para
Flexner, o diagnstico clnico era equivalente hiptese dos cientistas e ambos - diagnstico
e hiptese - necessitavam ser submetidos ao teste de um experimento; d) aprender na prtica:
na tica flexneriana, s havia um mtodo confivel para os estudantes aprenderem a realidade
mdica e o mtodo cientfico de pensar - investir muito mais de seu tempo no laboratrio e na
clnica do que nas salas de aula; e) Pesquisa Original: na viso de Flexner, essa era a
atividade bsica da escola mdica, concebendo a pesquisa como uma atividade crtica, no
apenas pelos novos conhecimentos que ela poderia produzir, mas tambm pelo estimulo, pela
excitao e pelo rigor critico que acrescentaria ao ensino.
Refletindo sobre as proposies e delineamentos flexnerianos em cotejo com as
abordagens do ensino mdico americano, constata-se que o Relatrio Flexner refletiu idias j
vigentes nos meios acadmicos de como os mdicos deviam ser formados. No entanto, ele
levou as preocupaes sobre a educao mdica para a ateno do pblico em geral,
preocupaes essas estavam restritas apenas ao interior da profisso mdica. Em outras
palavras, Flexner e seu relatrio tornaram pblicas as questes-chave da educao mdica no
12
Kenneth M. Ludmerer (1947), professor de histria e bioestatstica na Universidade de Washington, autor de dois dos mais influentes e premiados livros sobre a histria da educao mdica nos Estados Unidos: Learning
to Heal: The Development of American Medical Education (The Johns Hopkins University Press, 1996) e
Time to Heal: American Medical Education from the Turn of the Century to the Era of Managed Care (Oxford
University Press, 2005) ambos ainda no traduzidos para o portugus.
http://www.amazon.com/Learning-Heal-Development-American-Education/dp/0801852587/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1281396148&sr=1-1http://www.amazon.com/Learning-Heal-Development-American-Education/dp/0801852587/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1281396148&sr=1-1http://www.amazon.com/Time-Heal-American-Medical-Education/dp/0195181360/ref=sr_1_2?s=books&ie=UTF8&qid=1281396148&sr=1-2
43
incio do sculo e no contexto americano. E mais, Flexner viabilizou uma dimenso indita no
mbito da formao profissional em medicina: relacionar a discusso da educao mdica
com a discusso da educao pblica.
Flexner, que estudou filosofia e psicologia, tinha familiaridade com a obra de
John Dewey (1859-1952) e suas idias no campo da educao. Assim, compreendeu que
Dewey estava defendendo para o ensino elementar a mesma abordagem que os educadores
mdicos estavam tentando levar para o ensino da Medicina e, quando descreveu os modernos
princpios do ensino mdico, citou Dewey como sua principal influncia. Em verdade, como
estudioso dos processos educativos, percebeu que a educao pragmtica defendida por
Dewey envolvia conceitos que podiam ser generalizados para todos os nveis educacionais,
inclusive o ensino mdico (LUDMERER, 2010).
A influncia do Relatrio Flexner na medicina americana foi avassaladora,
transformando completamente o cenrio da educao mdica neste pas e produzindo
influncias profundas e duradouras nos sistemas de ensino mdico em todo o mundo. Entre
essas modificaes positivas, encontramos o estabelecimento da passagem de tempo parcial
para o de tempo integral na jornada de trabalho dos professores, que constitui uma marca
histrica na moderna escola mdica norte-americana (AMORIM, 2009).
No entanto, a anlise crtica do relatrio e de suas conseqncias aponta para o
desenvolvimento de vrios problemas surgidos a partir das recomendaes flexnerianas.
Uma das principais crticas ao Relatrio Flexner centra-se em seus aspectos
elitistas e preconceituosos, responsabilizando-o por efeitos devastadores sobre as escolas
mdicas para negros (SAVITT, 2006)13
e sobre as escolas mdicas de base alternativa.
O Relatrio, entre outros pontos, anunciava a existncia das escolas mdicas
negras que formavam mdicos negros, at ento um assunto pouco tratado oficialmente pelas
organizaes mdicas e educacionais americanas, e refletia uma viso negativa sobre a
educao mdica negra, que a Associao Mdica Americana (AMA) aceitou prontamente e
aplicou em suas formulaes de poltica educacional.
13
Abraham Flexner and the Black Medical Schools, publicado inicialmente em: Barzansky B.; Gevitz, N. (org). Beyond Flexner: Medical Education in the Twentieth Century (1992), sendo, posteriormente,
republicado em livro do prprio Todd Saviit, Race and Medicine in Nineteenthand Early-Twentieth-Century
America (2006) e em um nmero especial do Journal of the National Medical Association, de setembro de
2006, que a fonte de nossas referncias.
44
Flexner fez, tambm, uma opo radical pela medicina aloptica, tarefa que
considerava necessria para a viabilizao da medicina cientfica, condenando
definitivamente as escolas que transmitiam formas alternativas de medicina, como a
Quiropraxia, a Homeopatia e a Osteopatia. Os termos do Relatrio utilizados para descrever
essas escolas variam de totalmente impossveis e absurdamente inadequadas at
irremediavelmente defeituosas. Considerou indefensveis as concepes alternativas na
era da nova medicina cientfica (FLEXNER, 1910/2009). Realmente, devido enorme
influncia do Relatrio Flexner, as escolas e os mdicos alternativos passaram a ser vistos
pelo mundo mdico e, em certo grau, pelo grande pblico, como incompetentes ou, no pior
dos casos, como fraudes.
No entanto, apesar de seu carter elitista e cientificista e dos interesses
embu
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