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ENSINO DE HISTÓRIA, CURRÍCULO E NARRATIVAS IDENTITÁRIAS
MOZART LINHARES DA SILVA Doutor em História pela PUCRS e professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGEDU) e do Departamento de História e Geografia da Universidade de Santa
Cruz do Sul.
mozartt@terra.com.br
CAROLINA DE FREITAS CORRÊA SIQUEIRA
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação – PPGEdu da Universidade de Santa
Cruz do Sul e Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares - PROSUP da CAPES.
carolinafcsiqueira@gmail.com
1. Introdução:
Neste artigo, problematizamos o material pedagógico produzido pelo Ministério da
Educação (MEC), como um dos desdobramentos da Lei 10.639 de 2003 (BRASIL,
2003), que institui uma reforma curricular com obrigatoriedade de História e Cultura
Afro Brasileira e Africana na educação básica. A partir das leituras de Michel Foucault,
analisamos a determinação legal supracitada, bem como o material publicado e indicado
pelo MEC, enquanto dispositivos políticos que incidem nos processos de subjetivação e,
portanto, na produção de sujeitos sociais, no caso, sujeitos étnicos, e implicam numa
releitura da ideia de população no Brasil, estratégica na construção de biopolíticas.
Consideramos, nesse sentido, o currículo como um dispositivo a partir do qual se
articulam ações de governamento biopolíticos, implicadas na construção de “verdades”
produtoras de sentido no que se refere a população e, por desdobramento, das narrativas
identitárias nacionais.
No material analisado o currículo é estruturado de forma estratégica para a produção
de narrativas identitárias de cunho étnico/racial dos sujeitos negros no Brasil a partir de
uma nova proposição do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Ao nos
determos no currículo do ensino da História, estamos também inquirindo como a
educação e a narrativa histórica se constituem como instrumentos de governamento.
Nessa mesma direção é relevante apontar para a campo da História como estratégico na
produção dos regimes de verdade, o que significa pensa-la a partir das condições
externas a sua própria produção, ou seja, a partir das condições de possibilidade de suas
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narrativas, o que nos obriga a considerar a epismete de sua produção, com seus filtros e
intencionalidades.
2. Currículo como dispositivo
Visando instrumentalizar intelectual e didaticamente os profissionais da educação
básica frente as alterações curriculares expressas na lei 10.639 de 2003, o MEC, através
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
desenvolveu e publicou um material de suporte pedagógico vinculado à Coleção
Educação para Todos, intitulado Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei
Federal nª 10.639/2003 (BRASIL, 2005). Este material, publicado na forma de livro,
reúne artigos de pesquisas referentes à:
histórica orientação eurocêntrica da educação brasileira; à ausência da
história do continente africano e dos africanos no Brasil e/ou da produção
historiográfica sobre esse continente produzida por brilhantes intelectuais
africanos; à aspectos fundamentais da geografia africana; e à concepção de
mundo africana (BRASIL, 2005, p. 8).
A partir de algumas das “categorias” foucaultianas, como dispositivo, saber-
poder, biopolítica e governamentalidade, consideramos que os documentos analisados
neste estudo se constituem como estratégias de governamento a partir da reforma
curricular. Por meio da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana instituído pela Lei 10.639/2003(BRASIL, 2003), das determinações para as
reformas curriculares das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2004 (BRASIL, 2004),
bem como da produção intelectual sugerida pelo MEC (BRASIL, 2005),
compreendemos que o currículo se apresenta aqui como um instrumento que possibilita
uma releitura histórica e social da sociedade brasileira, o que sugere a construção de
novos regimes de verdade sobre as relações étnico-raciais do Brasil que estão, vale
notar, na “base” da construção das narrativas identitárias da nação. Ou seja, a estratégia
de governamento está justamente na possibilidade de incitar novos processos de
subjetivação, ou seja, produzir novos sujeitos (negros) a partir das reformas curriculares
que se propõem “redentoras” de uma História negada, em detrimento de uma “falsa”
História eurocêntrica. Como lembra Berino: “Nas escolas, um caminho para alcançar a
governamentabilidade é o currículo” (2008, p. 71). É preciso notar que ao propor novas
narrativas históricas sobre as relações étnico-raciais e, assim promover a produção de
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novos sujeitos sociais/raciais constituídos a partir da produção de novas narrativas
identitárias, o material pedagógico do MEC aponta para a legitimação do saber
histórico.
Não pensamos o currículo como uma ferramenta organizacional de conteúdos
tão somente, mas sim, como instrumento que constitui e regula, assim como delineia as
concepções dos sujeitos acerca dos outros e de si, sempre propensas a naturalização.
Nessa direção destacamos a compreensão de Popkewitz, que diz que o currículo
constitui “formas de regulação social, produzidas através de estilos privilegiados de
raciocínio. Aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação – a
organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e
‘ver’ o mundo e o ‘eu’ ” (2010, p. 174). A guisa de problematizações futuras, pode-se
afirmar que o currículo não é uma forma de representação, e sim uma forma de
produção, constituição de sujeitos e da própria “realidade”. Um instrumento articulador
de práticas discursivas que constrói e não apenas revela ou traz ao presente uma
ausência.
Na medida em que as alterações curriculares propostas para análise pressupõem
a redefinição (ou reconstrução) de quem é o sujeito negro brasileiro por meio da
reescrita histórica da identidade étnica, percebemos que a narrativa histórica ocupa
espaço tático na constituição do currículo enquanto um dispositivo de governamento
social.
A narrativa histórica pode funcionar como produtora de uma historicidade
legitimadora dos jogos de poder, como é o caso da (re)escrita histórico-identitária que
visa o desenvolvimento de orgulho étnico e o redimensionamento do papel do negro na
História do Brasil. A partir das leituras de Michel Foucault acerca do saber histórico
como um campo de tensões políticas, destacamos que as narrativas históricas são
constituídas como dispositivos estratégicos de distanciamento ou de pertencimento no
campo das ações políticas.
A narrativa histórica possui um amplo poder de produzir e/ou legitimar os jogos
de verdade e os espaços de poder. Uma narrativa histórica consagrada como História-
Verdade, ou seja, aquela que denuncia outra(s) História(s) distorcida(s), delimita as
ancestralidades, assim como age taticamente na naturalização dos discursos
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(FOUCAULT, 2010). Uma vez consolidada, uma narrativa verdadeira assume um
caráter fundamental na politização do campo do saber histórico: a capacidade de ela
mesma não ser mais historicizada, pois é naturalizada. Dessa forma, os discursos
histórico-identitários oriundos do dispositivo do saber histórico, possuem o “atestado” e
a solidez de verdades sobre determinado campo, o que possibilita-nos compreender a
produção da História como um espaço importante para as disputas políticas de naturezas
discursivas distintas. Segundo Rago: “Foucault defendia, na introdução de A
arqueologia do saber, uma postura historiográfica preocupada não mais em revelar e
explicar o real, mas em desconstruí-lo enquanto discurso” (1995, p. 71), o que nos
permite tratar a História para além dos pressupostos do cientificismo moderno e sim
como um campo a mais das relações de força da ordem discursiva.
Nossos apontamentos fundamentam-se justamente na perspectiva de uma
produção histórica não salvacionista, mas sim, antiessencialista e descontínua. O saber
histórico “não significa ‘reencontrar’ e sobretudo não significa ‘reencontrar-nos’. A
História será ‘efetiva’ na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso
próprio ser”. (FOUCAULT, 1979, p. 27).
As novas bases para essa reescrita histórica da identidade negra expressas nos
documentos, apontam para uma espécie de “denúncia” da hegemonia da História
eurocêntrica em detrimento de uma História Afro-brasileira e Africana que seria a
verdadeira e não privilegiada nas narrativas históricas sobre o Brasil. A questão que se
coloca aqui é que o uso do dispositivo do saber histórico pode agir na legtimação ou
descredibilização de um mesmo discurso, e a nova produção das identidades étnico-
históricas dos sujeitos negros no Brasil está sendo pensada exatamente nas mesmas
bases normalizadoras e de filtragens de qualquer outro discurso histórico. O que
queremos dizer, é que o fato de se tratar de uma História “redentora” (que se apresenta
como verdadeira) por dar conta da reconstrução histórica da identidade negra, não a
torna menos estratégica ou menos política, intencional e, no limite, menos verdadeira. O
que também não implica em dizê-la ruim, mas sim, que perceber esse processo, permite-
nos ver o dispositivo histórico enquanto uma estratégia importante na (re)produção de
narrativas sobre o negro no Brasil, e forçosamente dizer, da “identidade nacional”.
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Em diferentes momentos da trajetória histórica brasileira, a chamada identidade
nacional foi sendo constituída a partir da compreensão da miscigenação enquanto um
elemento importante (por vezes problemático) na configuração populacional. O
fenômeno da miscigenação apresentou-se como balizador das discussões acerca da
composição da sociedade brasileira enquanto uma unidade, o que era fundamental
segundo o paradigma nacional oriundo do século XIX. Ora como problema e
“explicação” para o anunciado fracasso brasileiro, ora como “cimento” da unificação
nacional, o caráter híbrido da população atravessou os discursos sobre a brasilidade em
diferentes momentos da trajetória histórica brasileira. Preocupações com a composição
da população nacional já apareciam formuladas desde a Constituinte de 1823, revistas
sobre o prisma evolucionista a partir dos anos de 1870, com o processo abolicionista e
republicano e, sobretudo, com a emergência do Estado Novo, nos anos 1930, quando o
discurso racialista brasileiro passou a construir a matriz da democracia racial pela via do
Estado. Segundo Silva, “os Estados-nação, nesse processo de construção de suas
narrativas identitárias, com maior ou menor intensidade, foram racializados” (2012, p.
196).
Os discursos constituintes do Estado-nação brasileiro buscaram, ao longo do
século XX, dar conta da grande massa heterogênea que é a população. As estratégias de
governamento biopolítico, doravante, passaram a incidir sobre a população a partir de
táticas homogeneizadoras atenuantes dos conflitos sociais e raciais, que possibilitaram
uma produção “unitária” do “ser” brasileiro a partir dos anos 1930.
No centro dos debates desse contexto, sobre a constituição da chamada
“identidade nacional”, estão as discussões sobre o negro e o seu papel na composição
antropológica e ontológica da sociedade brasileira. O papel do negro, constituído a
partir das narrativas histórico-identitárias da nação, sustentou e sustenta uma série de
regimes de verdade constituintes dos sujeitos sociais. Nessa direção, destacamos que
uma reestruturação curricular que produz, revisa e reescreve a História Afro-brasileira,
produz também novos sujeitos negros a partir da produção do orgulho étnico-identitário.
Assim, redimensionar a História do Brasil para narrativas históricas afrocêntricas
implica, sem dúvida, em uma reconfiguração das matrizes identitárias da nação.
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As análises do material publicado pelo MEC permitem-nos dizer que a História
do Brasil traçada nas produções indicadas aos docentes da Educação Básica para o
Ensino das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2005) propõem uma reescrita histórica
“revisionista”, que visa romper com o padrão “hegemônico” de escrita e ensino de
História tradicionalmente aceitos. O que problematizamos não diz respeito
necessariamente a atestar legitimidade ou não-legitimidade de uma História
Antirracista. A questão que colocamos aqui é uma possibilidade analítica que tensiona o
funcionamento do dispositivo do saber histórico e os jogos de verdades produzidos pela
historiografia que vem se moldando nesse cenário. Problematizamos a “denúncia” da
História tradicional que permeia os dispositivos legais analisados, enquanto que a nova
História que se pretende, desagua em estruturas de narrativas tão normalizadoras e
homogeneizantes quanto às repudiadas. Ou seja: seria menos estratégica, uma História
que desloca a narrativa eurocêntrica para narrativas histórico-identitárias afrocêntricas?
Evidentemente, os jogos de saber-poder que gravitam em torno dessas questões
também evidentemente fundacionais, já não centram-se na consolidação dos Estados-
nação unificados, mas dizem respeito à politização do campo histórico, e à
ressignificação dos espaços sociais e recriação das identidades (não mais nacionais, e
sim dos grupos multiculturais). Embora a emergência desses processos de
criação/reescrita das novas identidades se dê a partir das reivindicações e lutas,
destacamos Bauman (2003), quando atenta para os riscos de assumir um caráter
conservador por parte do “nós” em relação à “eles”, que ocasiona a criação de uma
espécie de “comunidade identitária” essencializada, homogênea e exclusivista.
Considerando as análises acima, discutiremos a revisão curricular calcada nas
produções indicadas pelo Ministério da Educação, chamando a atenção para o papel da
História como propositora de narrativas histórico-identitárias negadas em uma História
oficial.
3. Narrativa histórica brasileira: novas filtragens
Entendemos os materiais didáticos desdobrados da a Lei 10.639/03, sugeridos pelo
MEC, como corpus discursivo a partir do qual procuraremos apontar para os enunciados
que passam a organizar as novas narrativas da nação, ou melhor, as narrativas que visam
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redimensionar o “papel” do negro na construção social e histórica na nação.
Destaquemos o volume dois da coleção “Educação para Todos”, intitulado “Educação
anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nª 10.639/2003” (BRASIL, 2005).
O material organiza a narrativa histórica visando a construção da identidade negra,
ou ainda, afro-brasileira, tendo como ponto de partida a História da África. É através da
“África”, como espaço fundante, que se institui o lastro genealógico que aponta para o
pertencimento étnico-racial do negro brasileiro. Sobre o continente africano enquanto
único berço genitor de toda a espécie humana, “essa situação deve ser celebrada”
(BRASIL, 2005, p.137). Com isso em destaque, passa-se a apontar como esse
continente por vezes desconhecido ou ignorado em suas virtudes primeiras, se
caracteriza. O material do MEC organiza os conteúdos de ensino de História da África
sugerindo o seguinte:
A porta de entrada para o ensino de História da África passa pelo
reconhecimento das singularidades desse continente, tais como:
- berço da humanidade em todas as configurações tanto antiga (Homo Hablis,
Homo Erectus e Homo Neanderthalensis) como moderna (Homo Sapiens
Sapiens);
-lugar a partir do qual se efetuou todo o povoamento do planeta, a partir de
100 a 80 mil anos;
- berço das primeiras civilizações agro-sedentárias e agro-burocráticas do
mundo ao longo do Nilo (Egito, Kerma, Maroé) (BRASIL, 2005, p. 137).
O que problematizamos aqui não são os conteúdos especificamente, mas sim, as
narrativas que atravessam a forma de ensino sugerida nos documentos legais. O que
queremos pensar com isso é de que forma essa História constitui necessariamente uma
identidade africana, ou constrói uma ideia essencialmente africanizada do que é ser
negro. Não está dito, em momento algum dessa História da África, que o continente
africano e sua História constituem-se a partir de uma unidade negra, por exemplo. O que
produz essa ideia é justamente o uso do campo histórico como dispositivo de saber-
poder, neste caso, sobre o negro no Brasil. Não há uma “verdade” histórica que, se
desvendada, apontará para uma África que é sinônimo da negritude ou de uma
solidariedade negra/africana/afro-brasileira de sujeitos que identificam-se em sua
comunidade identitária imaginada.
Percebemos que os grupos étnicos considerados em uma História essencialmente
africana não são, necessariamente, todos os povos que habitaram o continente. Ou seja,
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apenas as comunidades étnicas nomeadas como “negras” são pertencentes ao berço da
africanidade, dessa forma, as demais etnias (as que não se enquadram nas bases que
fundam a identidade negra) são invasoras, estrangeiras, conquistadoras e dizem respeito
aos “misteriosos povos ‘de pele branca’, supostamente vindos do Oriente Médio”
(BRASIL, 2005, p. 139). Suspeitamos dessas narrativas, sobretudo pelo fato de que o
currículo proposto nos documentos legais, chama atenção intensamente para a
importância de celebrar e valorizar o fato de o continente africano (negro) ter sido palco
das primeiras civilizações mundiais, entre elas, a mais rica e complexa, que é a
civilização do Egito Antigo. Atentamos para o fato de que, ao falar nas parcelas
territoriais do continente africano de ocupação árabe, fala-se em “invasores” (p. 138)
porém, ao enaltecer a História do Egito Antigo como forma de positivar a História do
continente africano, é preciso restabelecer algumas “verdades negadas”. O caso, a
indicação, controversa, de que os egípcios fossem, na realidade, pertencentes ao povo
negro. A História tradicional, por exemplo, ao tratar do Egito lança mão de descrições
comparativas e racializadas como: ‘egípcios e negros’ ou ‘núbios e negros’ (como se os
egípcios e núbios da antiguidade não tivesses sido negros)” (p. 140).
Apontamos aqui novamente para a tentativa de produção de uma África única,
que implica nessa constituição de uma nova narrativa histórico-identitária do negro em
uma unidade. Ou seja, a África que deve ser destacada nas disposições do currículo
precisa ser sinônimo de povo negro em todas as suas configurações históricas, o que
implica que se considere todas as etnias não negras como invasoras e estrangeiras.
Outro ponto de grande importância na constituição das novas narrativas
históricas sobre a História da África é a forma como se propõe que seja tratada a
escravidão. A singularidade da escravidão no continente africano tem extrema
importância para a compreensão dos desdobramentos socioeconômicos e políticos,
assim como o impacto negativo cumulativo tanto nos povos africanos, como dos que
descenderam e descendem do continente.
A sugestão de novas bases para o ensino de História da África aponta para uma
narrativa histórica que divide a escravidão transoceânica e escravidão autóctone: a
escravidão transoceânica, ou seja, a escravidão extracontinental, deu origem aos
sistemas escravistas raciais que predominaram as plantations no Oriente Médio e mais
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tarde nas Américas (BRASIL, 2005). Já a escravidão autóctone, diz respeito a um dos
pontos mais complexos e de certa forma contornado nas análises historiográficas
africanistas, que é a escravidão africana intracontinental. Percebemos que a proposta de
ensino sugere que a escravidão dentro do continente africano seja abordada a partir da
ideia de um escravismo “doméstico-serviçal, com pouca extensão para a esfera da
produção econômica” (BRASIL, 2005, p. 155), ou ainda que a “condição de escravo
correspondeu a uma categoria social entre várias outras, e não foi de nenhum modo
socialmente dominante, nem demograficamente preponderante” (2005, p. 155). Dessa
forma, a escravidão praticada dentro do continente africano não seria responsável em
nenhuma escala, pelos sistemas escravistas raciais consolidados fora do continente
africano, uma vez que foi concebida em todos os episódios históricos da África, em um
âmbito social ou de formação cultural da sociedade. Como se a cultura escravista
africana fosse um dado cultural que estaria amparado pelo relativismo histórico-
antropológico. É claramente um juízo de valor que implica a comparação entre um
escravismo nocivo e um amortecido pela cultura autóctone.
A proposta de apresentar uma História Total da África, que faça eco às
demandas de orgulho étnico ancestral, necessita de uma narrativa histórica que torne
homogêneas as estruturas sociais disformes impossíveis de serem massificadas, como é
o caso da catalogação/classificação de povos/tribos/clãs africanas. O que analisamos
aqui, é a historiografia sendo constituída em instrumento de filtragem discursiva
produtora das narrativas sobre a ancestralidade africana: diante da impossibilidade de
classificar os povos africanos dentro de uma “unidade” negra, percebemos que se lança
mão de inspiração historiográfica do materialismo histórico, afinal, uma vez
comprometido com um edifício teórico que “dê conta de tudo”, de alguma forma, a
narrativa tende a “se encaixar” na teoria. Por exemplo, é através da “análise societária
no modo de produção, nas estruturas políticas e nas relações segmentadas” (BRASIL,
pág. 147) que percebemos novamente o funcionamento do dispositivo histórico que cria
única África, uma vez que as estruturas sociais africanas podem ser mapeadas e
catalogadas compondo uma totalidade que engloba inclusive as fronteiras, diferenças e
fatores históricos controversos. É enaltecido e celebrado o respeito às peculiaridades
locais de cada povo, porém, evidencia-se que há um esforço para que eles constituam
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por fim, uma teia histórica contínua e coerente. O que queremos dizer é que, traçar uma
tipologia total dos modos de produção africanos, significa, inevitavelmente, abordar as
divergências sociais e políticas intracontinentais. Neste caso, destacamos que são
narradas como políticas expansionistas de um povo em detrimento do outro (BRASIL,
2005), enquanto que as divergências políticas extracontinentais são narradas sempre
como invasivas e violentas.
Centramos aqui outro ponto que consideramos importante na nossa análise: a
conotação branda e quase positivadora dos aspectos controversos intracontinentais da
História da África, que indica uma filtragem das práticas da escravidão como regime de
servidão praticada no continente, ou das disputas políticas de conquista e invasão de um
povo africano sobre o outro. No mesmo sentido, o tráfico extracontinental e a
escravidão racial são de “responsabilidade” estrangeira, assim como o caráter invasivo e
violento dos processos de conquista estrangeiro em detrimento dos povos autóctones.
Esses invasores estrangeiros são aqueles que rompem com as tradições e distorceram a
essência dos povos africanos conquistados (negros). Destacamos aqui para o alerta de
Foucault (2010), quando atenta para a importância dos mitos e das narrativas sobre o
invasor estrangeiro e do autóctone selvagem como símbolo de uma essência de
liberdade. Para Foucault, esses elementos que constituem a História como um campo de
lutas políticas e conduzem as narrativas legitimadoras ou descredibilizadoras de uma
mesma ancestralidade construída nas bases do dispositivo do saber histórico
(FOUCALT, 2010).
Controversamente, a proposta de currículo de História da África se enquadra em
todos os momentos nas mais clássicas estruturas curriculares da modernidade que
produziu a História eurocêntrica. O dispositivo da História aqui permanece, inclusive,
em suas bases normalizadoras. O que muda são os filtros, e o que eles produzem.
Colocamos sob suspeita a produção dessa História redentora, uma vez que essa
busca por um passado pressupõe que há de fato uma essência histórica do que é ser
negro. Essa matriz primeira, ou seja, a pedra fundamental da identidade negra, pode ser
resgatada sob um olhar redentor, e até romantizado, da História da África, pois é no
berço das matrizes africanas e/ou das estruturas sociais escravocratas no Brasil, que se
reconstrói e (re)funda uma (nova) identidade negra. Questionamos aqui, o fato de que
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essa História da África proposta, assim como a identidade negra que se molda daí, estão
sendo pensadas a partir de matrizes que não quebram com os paradigmas de uma
História chamada tradicional/inverídica. O que queremos dizer com isso, é que a ideia
de identidade negra que atravessa os documentos legais não considera, em nenhum
momento, a compreensão de que as identidades são, em um olhar mais acuidado,
narrativas, pois existem em uma perspectiva muito mais fragmentada e instável do que
nesse plano coerente e permanente que se pretende.
Não existem portanto, identidades acabadas, mas sim identidades imaginadas, da
mesma forma como não há nenhuma História possível de ser narrada como autêntica,
redentora ou imune aos jogos de poder aos quais as dinâmicas sociais estão,
inevitavelmente atreladas.
Considerações finais:
As análises realizadas neste artigo, não tiveram o objetivo de “propor” uma
outra História e Cultura Afro-brasileira e Africana, mas sim, de analisar a constituição
do dispositivo do saber histórico, que possibilita uma reflexão acerca da História como
um campo de disputas políticas de uso generalizado.
As demandas pelo reconhecimento das diferenças, as lutas dos movimentos
sociais antirracismo, assim como a importância de novas bases para o ensino de História
e Cultura afro-brasileira (em vista um redimensionamento do papel do negro na
sociedade brasileira) possuem um espaço amplo, legítimo e de grande importância no
Brasil contemporâneo. Todavia, o que problematizamos aqui são os dispositivos de
governamento biopolíticos que estão na base de novas configurações de saber sobre as
relações raciais no Brasil.
Os novos regimes de verdade constituídos a partir da perspectiva histórica, que
analisamos no material, ressignificam a identidade negra, agora fundamentada nas bases
de um elo africanista, de uma ancestralidade unificada e um lastro genealógico
legitimador da unidade afro-brasileira. O dispositivo histórico age como elemento
importante para essa nova estruturação da população brasileira, que “novamente passa a
ser objeto de regulação política” (SILVA, 2012, p. 207).
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Em História da Sexualidade II: o uso dos prazeres, Michel Foucault questiona
“se a filosofia não consiste, ao invés de legitimar aquilo que já se sabe, num
empreendimento de saber como e até que ponto seria possível pensar de outro modo?”
(1994, p.15). A partir dos estudos foucaultianos, propusemos neste texto, um
aprofundamento nas discussões a respeito da Educação das Relações Étnico-Raciais,
não sob uma perspectiva reducionista de negação ou aceitação do material proposto para
análise. Não assumimos aqui uma posição contrária às determinações legais, nem
elaboramos “novas sugestões” de ensino. O que também não significa dizer que
percebemos este estudo enquanto um instrumento favorável ou legitimador da
celebração das diferenças, enunciado tão presente nos debates em Educação. Como
estratégia analítica, adotamos o exercício de colocar sob suspeita aquilo que já foi
pensado, afinal, mesmo nas políticas públicas mais bem intencionadas e desejantes,
algo pode ser perdido. Para Foucault: “nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não
significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a
fazer” (1995, p. 256). São exatamente esses “espaços” abertos nas políticas
educacionais antirracismo que compreendemos, neste estudo, como possibilidades
analíticas importantes no campo da produção histórica e da educação.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. 2003.
BERINO, Aristóteles. Economia Política da Diferença. São Paulo: Cortez. 2008.
BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/03.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
BRASIL. Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Presidência da República Federativa do
Brasil, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 20 maio
2013.
13
BRASIL. Resolução n. 1, de 17 de junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial e Ministério da Educação, Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/DCN-s-Educacao-
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FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade - Curso dado no Collège de France
(1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. 2010.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro,
RJ: Graal, 1994.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder.
Organizado por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal. 1979.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In:
RABINOW, Paul e RABINOW, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica
(para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
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POPKEWITZ, Thomas. História do Currículo, Regulação Social e Poder. In SILVA,
Thomas Tadeu da (Org.), O Sujeito da Educação (pp. 173-210). Petrópolis: Vozes.
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RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social; Rev.
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SILVA, Mozart Linhares da. Miscigenação e Biopolítica no Brasil. Revista Brasileira de
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