elio gasparifaz história - pesquisa fapesp · 2015. 4. 23. · nesto geisel e a papelada de...

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  • Elio Gaspari faz históriaLivros do jornalista retratam período crucial da história do Brasil

    A Ditadura Envergonhada424 páginas / R$ 40,00

    A Ditadura Escancarada512 páginas / R$ 44,00

    JOSÉ ARTHUR GIA OTTI

    De uma série de cincovolumes programadospara explorar o regi-me militar, Elio Gaspari jáescreveu os dois primeiros, ADitadura Envergonhada e ADitadura Escancarada, que aCompanhia das Letras acabade publicar. A primeira edição,em novembro, foi de 50 milexemplares e ambos já foramreimpressos em quantidadessemelhantes. É de bom augú-rio o fantástico êxito editorialde um livro sério, em contras-te com a banalidade da maio-ria dos lançamentos atuais.Por certo, há várias explica-ções para o fenômeno; para todos nós que vivemos oregime militar, o livro faz emergir, quase de modosub-reptício, uma angústia difícil de nomear. Não hádúvida de que a democracia está razoavelmente im-plantada no Brasil, mas, além da memória da ditadura,é como se ainda residisse no horizonte de nossas expe-riências a suspeita de que sempre é possível o ataque deuma burrice abissal a ameaçar as instituições demo-cráticas. O exercício da democracia implica certa dosede racionalidade e o regime militar mostrou que somosbem capazes de chafurdar no irracionalismo.

    Se o totalitarismo estetiza a política, é de esperarque a encene com perversa grandeza. Um congresso dopartido nazista em Nuremberg ou uma fala do Duce navaranda do Palácio Veneza tinham garbo, embora, paraum olhar mais crítico, rapidamente se traduzissem emfarsa. A nossa ditadura (como pode ser nossa?) desde oinício foi farsa bruta, chinfrim, e seria antes de tudo ri-dícula, se não tivesse sido cruel.

    Esse tom já marca seu início. Na madrugada de 10

    de abril de 1964, em Juiz de Fora, o general OlympioMourão Filho, ainda na cama, de pijama e roupão deseda vermelho, inicia suas atividades revolucionáriastelefonando para os conspiradores mais próximos ecomunicando estar pronto para o golpe. Mais tarde,em suas memórias, se gabará de ter sido o único ho-mem no mundo (ou pelo menos no Brasil, ressalva)que desencadeou uma revolução nesses trajes. O episó-

    Elio GaspariCompanhia das Letras

    dio é apenas o começo de umacomédia de enganos que derru-ba um governo, aliás tão ridícu-lo como seus adversários, insta-la um regime militar e terminasendo dissolvido com a partici-pação decisiva de alguns de seusparteiros.

    Para não dar a impressão deque a farsa se desenrolou nogrande palco de Brasília e dosquartéis, não resisto à oportuni-dade de também contar um epi-sódio. Logo depois de 64 se ins-tala, na USP, um inquérito parainvestigar atividades subversi-vas. Obviamente, livros como OVermelho e o Negro são apreendi-dos; no entanto, humilhante eraos professores serem convoca-dos para comprovar seu civismo,

    muitas vezes lhes sendo pedido que cantassem o HinoNacional. Qual foi a resposta bem-humorada de JoãoCruz Costa? "Se o senhor tenente assobiar, eu canto:'

    Não se imagine, porém, que tudo se resumiu nessamistura de comédia e tragédia. Houve muito heroísmoe algumas traições intempestivas. A Gangrena, parte fi-nal de A Ditadura Escancarada, começa contando co-mo grupos de repressão, militares e paramilitares, àmedida que vão se isolando do controle do Estado, tor-nam-se cada vez mais violentos, arbitrários, até caíremna marginalidade. Do outro lado do conflito, os gruposguerrilheiros, cada vez mais reduzidos, cada vez maisisolados da população urbana e rural, vão sendo cruel-mente massacrados pelas Forças Armadas.

    O livro termina historiando a guerrilha do Ara-guaia e sua dizimação. Um punhado de aproximada-mente 80 jovens, fiéis ao radicalismo abstrato do PC doB, mas sem experiência da mata e de lidar com as po-pulações locais, se dispersa em volta de Marabá na es-perança de, a partir daí, iniciar a guerra popular. Essesgrupos isolados, porém, vão sendo progressivamentecapturados ou dizimados pelo Exército, a despeito dadesorganização dos militares. Estes contaram, às vezes,com a sorte. Conseguiram, por exemplo, que o VelhoCid (João Amazonas), um dos maiores responsáveis daoperação, se mantivesse fora da área da guerrilha noperíodo mais crítico. E da forma mais surpreendente.Dona Maria (Elza de Lima Monnerat) vinha de São

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  • Paulo trazendo novos combatentes, entregou dois nocaminho e seguiu seu destino de ônibus. Foram inter-ceptados por uma patrulha militar e um dos rapazesfoi preso. Dona Maria voltou sozinha para Anápolis eencontrou o Velho Cid na estação rodoviária. Basta-lheum sinal do olhar para indicar que a coisa estava preta.O Amazonas tomou um café ao lado e voltou para SãoPaulo, deixando os rapazes do Araguaia ao deus-dará.

    Os dois livros de Elio Gaspari seriam muito en-graçados se fossem apenas ro-mances, mera ficção. Por certoromance realista, com o rigor eas miudezas de Gustave Flaubertao contar as trapalhadas de Bou-vard e Pécuchet. Mas Gaspari le-vanta uma quantidade impres-sionante de informações. Noinício, herda os arquivos de Er-nesto Geisel e a papelada de Gol-bery do Couto e Silva, cuidado-samente preservada por HeitorFerreira, secretário de ambos, evai aos poucos colecionando pa-péis, entrevistas e outros docu-mentos, formando assim, prova-velmente, o mais rico arquivo doperíodo militar.

    O projeto inicial era estudarcomo fora possível que Geisel eGolbery, tendo sido responsáveispela instalação do regime militar, terminassem porajudar sua derrubada. Gaspari explicitamente nega quepretenda escrever a história da ditadura, pois, diz ele,falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige e hánele a preponderância daqueles dois personagens. Mas,dotado de memória prodigiosa e de paciência infinita,reconstrói minuciosamente os motivos e o dia-a-diados revolucionários, a amplitude de suas ações, de sor-te que, embora consiga manter o elo narrativo na óticados personagens eleitos, não é por isso que lhe faltarávisão panorâmica.

    Depois de 18 anos de trabalho, o projeto atual é deescrever, no primeiro lance, quatro volumes. Nos doisprimeiros conta o período de 31 de março de 1964 aofmal do governo do general Emílio Médici, no início de74. Apresenta, como ele indica, um preâmbulo à histó-ria do Sacerdote e do Feiticeiro, como Geisel e Golberyeram chamados. Nos dois seguintes espera contar avida deles, a trama que os levou de volta ao Planalto eos quatros primeiros anos do governo Geisel. De novo,esse período é pontuado por uma farsa: na noite de 11de outubro de 1977, o ministro do Exército, generalSylvio Frota, responsável pelo aparelho repressivo e es-perando concorrer à Presidência da República, foi dor-mir, depois de ter visto um filme de [ames Bond, semsaber que o presidente o acordaria para demiti-Ia. Nãoporque o general presidente era contra a tortura, masantes de tudo porque os grupos torturadores estavamameaçando a disciplina e a hierarquia das Forças Ar-madas. O feitiço de Geisel e Golbery aí termina, mas

    Gaspari, no quinto volume, prolongará a história até omomento em que Geisel, no dia 15 de março de 1979,tendo acabado com a ditadura do AI-5, deixa o gover-no e se retira para Teresópolis.

    Não há dúvida de que esses cinco volumes não pre-tendem contar a história da ditadura como Iules Mi-chelet escreveu a história da Revolução Francesa, massua narração não se limita aos jogos de Geisel e de Gol-bery, pois, conforme seu contexto vai se ampliando, o

    vasto panorama resulta num mo-delo de Histoire événementielle,dessa história que se dedica à nar-ração cuidadosa dos acontecimen-tos. E não é estranho que os pró-ximos volumes se anunciem comobiografias. Por certo, de dois per-sonagens intrigantes, metidos, po-rém, numa encenação grotesca.

    Ao terminar A Ditadura Escan-carada, ao ler a destruição do mo-vimento guerrilheiro, meu nó nagarganta virou engasgo. Comotanta violência fora desencadeadasob nossos olhos, sem que dela to-mássemos conhecimento, nós, quetrabalhávamos pela instauraçãodo Estado de Direito? Por que tan-tos de nossos alunos se meteramheroicamente nessas aventuras,obstinando-se em não ver que o

    "milagre brasileiro" bloqueava qualquer revolução dotipo cubano ou chinês? Como esse heroísmo pôde setornar ridículo ao seguir os compassos de uma marchamilitar? Por que tantos amigos meus e muitos outros,que se tornaram amigos por terem comungado a tor-tura e o desfazimento de suas vidas, foram levados poruma ventania aparentemente sem sentido?

    Gaspari "não pretende encontrar o sentido subja-cente aos acontecimentos que ele narra. Esse cuidadode permanecer rente aos fatos pode despertar a des-confiança, se não a ira, daqueles historiadores que es-tão sempre nos ensinando que um fato só se individua-liza e ganha sentido tanto no seu contexto como emvista daquelas matrizes que o sustentam. Seria ingê-nuo, porém, imaginar que Gaspari não passa de jorna-lista. Seus livros não vão para o lixo no dia seguinte,mas desenham o panorama événementiel de um perío-do crucial de nossa história, talvez o momento máxi-mo de um rosário de farsas que se inicia com o Desco-brimento, como se tudo fosse obra do acaso. Que oriso, porém, seja breve, apenas para adoçar a tristeza dese sentir sempre à margem daqueles centros onde sedecidem nossos destinos.

    "ElioGaspari

    não pretendeencontraro sentido

    subiacente aosacontecimentos

    que elenarra"

    JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, é professor eméritoda Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanasda USP e coordenador da área de filosofia do CentroBrasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

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