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Elio Gaspari faz história Livros do jornalista retratam período crucial da história do Brasil A Ditadura Envergonhada 424 páginas / R$ 40,00 A Ditadura Escancarada 512 páginas / R$ 44,00 JOSÉ ARTHUR GIA OTTI D e uma série de cinco volumes programados para explorar o regi- me militar, Elio Gaspari escreveu os dois primeiros, A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, que a Companhia das Letras acaba de publicar. A primeira edição, em novembro, foi de 50 mil exemplares e ambos já foram reimpressos em quantidades semelhantes. É de bom augú- rio o fantástico êxito editorial de um livro sério, em contras- te com a banalidade da maio- ria dos lançamentos atuais. Por certo, há várias explica- ções para o fenômeno; para todos nós que vivemos o regime militar, o livro faz emergir, quase de modo sub-reptício, uma angústia difícil de nomear. Não há dúvida de que a democracia está razoavelmente im- plantada no Brasil, mas, além da memória da ditadura, é como se ainda residisse no horizonte de nossas expe- riências a suspeita de que sempre é possível o ataque de uma burrice abissal a ameaçar as instituições demo- cráticas. O exercício da democracia implica certa dose de racionalidade e o regime militar mostrou que somos bem capazes de chafurdar no irracionalismo. Se o totalitarismo estetiza a política, é de esperar que a encene com perversa grandeza. Um congresso do partido nazista em Nuremberg ou uma fala do Duce na varanda do Palácio Veneza tinham garbo, embora, para um olhar mais crítico, rapidamente se traduzissem em farsa. A nossa ditadura (como pode ser nossa?) desde o início foi farsa bruta, chinfrim, e seria antes de tudo ri- dícula, se não tivesse sido cruel. Esse tom já marca seu início. Na madrugada de 1 0 de abril de 1964, em Juiz de Fora, o general Olympio Mourão Filho, ainda na cama, de pijama e roupão de seda vermelho, inicia suas atividades revolucionárias telefonando para os conspiradores mais próximos e comunicando estar pronto para o golpe. Mais tarde, em suas memórias, se gabará de ter sido o único ho- mem no mundo (ou pelo menos no Brasil, ressalva) que desencadeou uma revolução nesses trajes. O episó- Elio Gaspari Companhia das Letras dio é apenas o começo de uma comédia de enganos que derru- ba um governo, aliás tão ridícu- lo como seus adversários, insta- la um regime militar e termina sendo dissolvido com a partici- pação decisiva de alguns de seus parteiros. Para não dar a impressão de que a farsa se desenrolou no grande palco de Brasília e dos quartéis, não resisto à oportuni- dade de também contar um epi- sódio. Logo depois de 64 se ins- tala, na USP, um inquérito para investigar atividades subversi- vas. Obviamente, livros como O Vermelho e o Negro são apreendi- dos; no entanto, humilhante era os professores serem convoca- dos para comprovar seu civismo, muitas vezes lhes sendo pedido que cantassem o Hino Nacional. Qual foi a resposta bem-humorada de João Cruz Costa? "Se o senhor tenente assobiar, eu canto:' Não se imagine, porém, que tudo se resumiu nessa mistura de comédia e tragédia. Houve muito heroísmo e algumas traições intempestivas. A Gangrena, parte fi- nal de A Ditadura Escancarada, começa contando co- mo grupos de repressão, militares e paramilitares, à medida que vão se isolando do controle do Estado, tor- nam-se cada vez mais violentos, arbitrários, até caírem na marginalidade. Do outro lado do conflito, os grupos guerrilheiros, cada vez mais reduzidos, cada vez mais isolados da população urbana e rural, vão sendo cruel- mente massacrados pelas Forças Armadas. O livro termina historiando a guerrilha do Ara- guaia e sua dizimação. Um punhado de aproximada- mente 80 jovens, fiéis ao radicalismo abstrato do PC do B, mas sem experiência da mata e de lidar com as po- pulações locais, se dispersa em volta de Marabá na es- perança de, a partir daí, iniciar a guerra popular. Esses grupos isolados, porém, vão sendo progressivamente capturados ou dizimados pelo Exército, a despeito da desorganização dos militares. Estes contaram, às vezes, com a sorte. Conseguiram, por exemplo, que o Velho Cid (João Amazonas), um dos maiores responsáveis da operação, se mantivesse fora da área da guerrilha no período mais crítico. E da forma mais surpreendente. Dona Maria (Elza de Lima Monnerat) vinha de São PESQUISA FAPESP 86 • ABRIL DE 2003 • 93

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  • Elio Gaspari faz históriaLivros do jornalista retratam período crucial da história do Brasil

    A Ditadura Envergonhada424 páginas / R$ 40,00

    A Ditadura Escancarada512 páginas / R$ 44,00

    JOSÉ ARTHUR GIA OTTI

    De uma série de cincovolumes programadospara explorar o regi-me militar, Elio Gaspari jáescreveu os dois primeiros, ADitadura Envergonhada e ADitadura Escancarada, que aCompanhia das Letras acabade publicar. A primeira edição,em novembro, foi de 50 milexemplares e ambos já foramreimpressos em quantidadessemelhantes. É de bom augú-rio o fantástico êxito editorialde um livro sério, em contras-te com a banalidade da maio-ria dos lançamentos atuais.Por certo, há várias explica-ções para o fenômeno; para todos nós que vivemos oregime militar, o livro faz emergir, quase de modosub-reptício, uma angústia difícil de nomear. Não hádúvida de que a democracia está razoavelmente im-plantada no Brasil, mas, além da memória da ditadura,é como se ainda residisse no horizonte de nossas expe-riências a suspeita de que sempre é possível o ataque deuma burrice abissal a ameaçar as instituições demo-cráticas. O exercício da democracia implica certa dosede racionalidade e o regime militar mostrou que somosbem capazes de chafurdar no irracionalismo.

    Se o totalitarismo estetiza a política, é de esperarque a encene com perversa grandeza. Um congresso dopartido nazista em Nuremberg ou uma fala do Duce navaranda do Palácio Veneza tinham garbo, embora, paraum olhar mais crítico, rapidamente se traduzissem emfarsa. A nossa ditadura (como pode ser nossa?) desde oinício foi farsa bruta, chinfrim, e seria antes de tudo ri-dícula, se não tivesse sido cruel.

    Esse tom já marca seu início. Na madrugada de 10

    de abril de 1964, em Juiz de Fora, o general OlympioMourão Filho, ainda na cama, de pijama e roupão deseda vermelho, inicia suas atividades revolucionáriastelefonando para os conspiradores mais próximos ecomunicando estar pronto para o golpe. Mais tarde,em suas memórias, se gabará de ter sido o único ho-mem no mundo (ou pelo menos no Brasil, ressalva)que desencadeou uma revolução nesses trajes. O episó-

    Elio GaspariCompanhia das Letras

    dio é apenas o começo de umacomédia de enganos que derru-ba um governo, aliás tão ridícu-lo como seus adversários, insta-la um regime militar e terminasendo dissolvido com a partici-pação decisiva de alguns de seusparteiros.

    Para não dar a impressão deque a farsa se desenrolou nogrande palco de Brasília e dosquartéis, não resisto à oportuni-dade de também contar um epi-sódio. Logo depois de 64 se ins-tala, na USP, um inquérito parainvestigar atividades subversi-vas. Obviamente, livros como OVermelho e o Negro são apreendi-dos; no entanto, humilhante eraos professores serem convoca-dos para comprovar seu civismo,

    muitas vezes lhes sendo pedido que cantassem o HinoNacional. Qual foi a resposta bem-humorada de JoãoCruz Costa? "Se o senhor tenente assobiar, eu canto:'

    Não se imagine, porém, que tudo se resumiu nessamistura de comédia e tragédia. Houve muito heroísmoe algumas traições intempestivas. A Gangrena, parte fi-nal de A Ditadura Escancarada, começa contando co-mo grupos de repressão, militares e paramilitares, àmedida que vão se isolando do controle do Estado, tor-nam-se cada vez mais violentos, arbitrários, até caíremna marginalidade. Do outro lado do conflito, os gruposguerrilheiros, cada vez mais reduzidos, cada vez maisisolados da população urbana e rural, vão sendo cruel-mente massacrados pelas Forças Armadas.

    O livro termina historiando a guerrilha do Ara-guaia e sua dizimação. Um punhado de aproximada-mente 80 jovens, fiéis ao radicalismo abstrato do PC doB, mas sem experiência da mata e de lidar com as po-pulações locais, se dispersa em volta de Marabá na es-perança de, a partir daí, iniciar a guerra popular. Essesgrupos isolados, porém, vão sendo progressivamentecapturados ou dizimados pelo Exército, a despeito dadesorganização dos militares. Estes contaram, às vezes,com a sorte. Conseguiram, por exemplo, que o VelhoCid (João Amazonas), um dos maiores responsáveis daoperação, se mantivesse fora da área da guerrilha noperíodo mais crítico. E da forma mais surpreendente.Dona Maria (Elza de Lima Monnerat) vinha de São

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  • Paulo trazendo novos combatentes, entregou dois nocaminho e seguiu seu destino de ônibus. Foram inter-ceptados por uma patrulha militar e um dos rapazesfoi preso. Dona Maria voltou sozinha para Anápolis eencontrou o Velho Cid na estação rodoviária. Basta-lheum sinal do olhar para indicar que a coisa estava preta.O Amazonas tomou um café ao lado e voltou para SãoPaulo, deixando os rapazes do Araguaia ao deus-dará.

    Os dois livros de Elio Gaspari seriam muito en-graçados se fossem apenas ro-mances, mera ficção. Por certoromance realista, com o rigor eas miudezas de Gustave Flaubertao contar as trapalhadas de Bou-vard e Pécuchet. Mas Gaspari le-vanta uma quantidade impres-sionante de informações. Noinício, herda os arquivos de Er-nesto Geisel e a papelada de Gol-bery do Couto e Silva, cuidado-samente preservada por HeitorFerreira, secretário de ambos, evai aos poucos colecionando pa-péis, entrevistas e outros docu-mentos, formando assim, prova-velmente, o mais rico arquivo doperíodo militar.

    O projeto inicial era estudarcomo fora possível que Geisel eGolbery, tendo sido responsáveispela instalação do regime militar, terminassem porajudar sua derrubada. Gaspari explicitamente nega quepretenda escrever a história da ditadura, pois, diz ele,falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige e hánele a preponderância daqueles dois personagens. Mas,dotado de memória prodigiosa e de paciência infinita,reconstrói minuciosamente os motivos e o dia-a-diados revolucionários, a amplitude de suas ações, de sor-te que, embora consiga manter o elo narrativo na óticados personagens eleitos, não é por isso que lhe faltarávisão panorâmica.

    Depois de 18 anos de trabalho, o projeto atual é deescrever, no primeiro lance, quatro volumes. Nos doisprimeiros conta o período de 31 de março de 1964 aofmal do governo do general Emílio Médici, no início de74. Apresenta, como ele indica, um preâmbulo à histó-ria do Sacerdote e do Feiticeiro, como Geisel e Golberyeram chamados. Nos dois seguintes espera contar avida deles, a trama que os levou de volta ao Planalto eos quatros primeiros anos do governo Geisel. De novo,esse período é pontuado por uma farsa: na noite de 11de outubro de 1977, o ministro do Exército, generalSylvio Frota, responsável pelo aparelho repressivo e es-perando concorrer à Presidência da República, foi dor-mir, depois de ter visto um filme de [ames Bond, semsaber que o presidente o acordaria para demiti-Ia. Nãoporque o general presidente era contra a tortura, masantes de tudo porque os grupos torturadores estavamameaçando a disciplina e a hierarquia das Forças Ar-madas. O feitiço de Geisel e Golbery aí termina, mas

    Gaspari, no quinto volume, prolongará a história até omomento em que Geisel, no dia 15 de março de 1979,tendo acabado com a ditadura do AI-5, deixa o gover-no e se retira para Teresópolis.

    Não há dúvida de que esses cinco volumes não pre-tendem contar a história da ditadura como Iules Mi-chelet escreveu a história da Revolução Francesa, massua narração não se limita aos jogos de Geisel e de Gol-bery, pois, conforme seu contexto vai se ampliando, o

    vasto panorama resulta num mo-delo de Histoire événementielle,dessa história que se dedica à nar-ração cuidadosa dos acontecimen-tos. E não é estranho que os pró-ximos volumes se anunciem comobiografias. Por certo, de dois per-sonagens intrigantes, metidos, po-rém, numa encenação grotesca.

    Ao terminar A Ditadura Escan-carada, ao ler a destruição do mo-vimento guerrilheiro, meu nó nagarganta virou engasgo. Comotanta violência fora desencadeadasob nossos olhos, sem que dela to-mássemos conhecimento, nós, quetrabalhávamos pela instauraçãodo Estado de Direito? Por que tan-tos de nossos alunos se meteramheroicamente nessas aventuras,obstinando-se em não ver que o

    "milagre brasileiro" bloqueava qualquer revolução dotipo cubano ou chinês? Como esse heroísmo pôde setornar ridículo ao seguir os compassos de uma marchamilitar? Por que tantos amigos meus e muitos outros,que se tornaram amigos por terem comungado a tor-tura e o desfazimento de suas vidas, foram levados poruma ventania aparentemente sem sentido?

    Gaspari "não pretende encontrar o sentido subja-cente aos acontecimentos que ele narra. Esse cuidadode permanecer rente aos fatos pode despertar a des-confiança, se não a ira, daqueles historiadores que es-tão sempre nos ensinando que um fato só se individua-liza e ganha sentido tanto no seu contexto como emvista daquelas matrizes que o sustentam. Seria ingê-nuo, porém, imaginar que Gaspari não passa de jorna-lista. Seus livros não vão para o lixo no dia seguinte,mas desenham o panorama événementiel de um perío-do crucial de nossa história, talvez o momento máxi-mo de um rosário de farsas que se inicia com o Desco-brimento, como se tudo fosse obra do acaso. Que oriso, porém, seja breve, apenas para adoçar a tristeza dese sentir sempre à margem daqueles centros onde sedecidem nossos destinos.

    "ElioGaspari

    não pretendeencontraro sentido

    subiacente aosacontecimentos

    que elenarra"

    JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, é professor eméritoda Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanasda USP e coordenador da área de filosofia do CentroBrasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

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