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RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.2,45-53·2010 45

É preciso ser psicanalista. É preciso?

JulioFrochtengarten,1SãoPaulo

Resumo:Oautor,convidadoparaparticipardemesa-redondasobotítuloViolações do setting,retomaoconceitooriginalqueessetermotemempsicanálisepara,emseguida,desmembrá-loemsuasdimen-sões:osaspectosformaisligadosàscondiçõesexternasemqueapsicanálisesedáeosaspectosligadosaopsiquismodoanalistaquetemométodopsicanalíticoincorporadoemsi.Aoprivilegiarestasegun-dadimensão,ressaltaaspectosligadosàatualidadedaclínicaesuarelaçãocomométodoanalítico.Aideiadeviolação éexaminadaapartirdealgunsfragmentosdocotidianoanalítico.Palavras-chave:setting analítico;métodoanalítico.

i.

Emespanhol,paraxícarasediztaza;parataçasedizcopa;paracoposedizvasoeparavasoflorero(quandoasfloresficamnaágua)oumaceta(quandoplantadasnaterra).Emespanhol,parasacolasedizbolsa,parabolsasedizcarteraeparacarteirabilletera,poissedizbilletes àsnotas.Enotasaosbilhetes.Assimcomosedizapellido aosobrenomeeso-brenomeaoapelido.Emalgunscasosasdiferençasseanulam:“Vocêencontrouanotaquedeixeicomobilhete?”;“Si, claro, la nota que me dejaste con el billete. Gracias”.

Essaslínguas,quenasceramdeumamesmafonteepassaramséculossendoames-ma,foramaospoucosgerandoasdiferençasquehojeasseparam.Outrascomidas,outroshábitos,outraspaisagensqueexigiamoutrosnomesdesembocaramempalavrasnovasenovossons.Eháusosquevãomoldandoaspalavrasetransformandoossignificadosdeacordocomacompreensãoquedelasofereceaexperiência.Umexemploclássicoéoparesquisito/exquisito.Parasimplificaroprocessohistórico,podemosimaginarduaspessoasnummesmobanqueteemqueambasprovamamesmaiguariaquejamaistinhamprovadoantes.“Exquisito”,dizoconvivadeascendênciahispânica.“Esquisito?”,perguntaseucole-galusitano.“Si, exquisito!”;“Hum,sim,esquisito.”Eambosconcordamemqualificarcomamesmapalavraaquelesaborquelhestrazsensaçõestãodiversas.

ii.

EmFreudnãoseencontraumadescriçãoamplaegeraldoquepoderíamoschamardetécnicaanalítica.Mesmooschamados“Artigossobretécnica”,publicadosentre1911e1915,dificilmentepoderiamserreferidoscomoumaexposiçãosistemáticadetécnicapsi-canalítica.Emumdeles,Freudesclarecequealcançouestasregrasnodecursodemuitosanosepelaprópriaexperiência,enfatizandoseucaráterindividual:

Devo,contudo,tornarclaroqueoqueestouasseverandoéqueestatécnicaéaúnicaapropriadaàminhaindividualidade;nãomearriscoanegarqueummédicoconstituídodemodointeiramente

1 MembroefetivoeanalistadidatadaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSP.

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diferentepossaver-selevadoaadotarumaatitudediferente emrelaçãoaseuspacienteseàtarefaqueselheapresenta.(Freud,1912/1969,p.149)

Emváriosdestes artigos,Freudenfatizaquenãodescreve regras e simrecomen-dações.não reivindica sua aceitação incondicional e as compara às recomendações dosmanuaisdexadrez:

Todoaquelequeespereaprenderonobrejogodoxadreznoslivros,cedodescobriráquesomenteasaberturaseosfinaisdejogoadmitemumaapresentaçãosistemáticaexaustivaequeainfinitavariedadedejogadasquesedesenvolvemapósaaberturadesafiaqualquerdescriçãodestetipo.Estalacunanainstruçãosópodeserpreenchidaporumestudodiligentedosjogostravadospe-losmestres.Asregrasquepodemserestabelecidasparaoexercíciodotratamentopsicanalíticoacham-sesujeitasalimitaçõessemelhantes.(Freud,1913/1969,p.164)

CitoFreudnovamente:

Aextraordináriadiversidadedas constelaçõespsíquicas envolvidas, aplasticidadede todososprocessosmentaiseariquezadosfatoresdeterminantesopõem-seaqualquermecanizaçãodatécnica;eocasionamqueumcursodeação,queviaderegraéjustificado,possaàsvezesmostrar-seineficaz,enquantooutroquehabitualmenteéerrôneopossa,devezemquando,conduziraofimdesejado.Essascircunstâncias,contudo,nãonosimpedemdeestabelecerparaomédicoumprocedimentoque,emmédia,éeficaz.(Freud,1913/1969,p.164)

Todoesteconjuntodeconsideraçõeserecomendaçõesescritas–esempreexamina-dasquantoàssuassignificaçõesejustificativaspsíquicas–formaramoquehojedenomi-namossetting:aspectosformaisedisposiçõesdoanalista,incorporadaseencarnadasporele.

noiníciodeminhaformaçãoouviadizerquesetting éalgointernoaoanalistaenãooaspectoformaldasala,consultório,neutralidadedoambientecriado,usododivã,dura-çãodassessões,horáriosestabelecidos…Estadiscriminaçãofezsentidoparamim,adotei-aemteoria,emeparecehavercertoconsensoquantoaela.napráticapercebo,porém,queemmuitosmomentosmepreocupocomaspectosformaiscomoseelespudessemgarantirosetting,algumaestabilidadeparamimcomoanalista.Certamente,estesaspectosformaissãoimportantes,masconstituemapartemaisfácildeidentificarnosetting,enquantoeste“algointerno”ébemmaisdifícildeserdefinido,construídoemantido.

iii. sete situações da clínica psicanalítica

1.Oanalisandosolicitaaoanalistaquetroqueohoráriodesuapróximasessão.In-dagado,justificaopedidoalegandoquererestarlivrenocomeçodatarde,poisnessediatinhaagendadoumalmoçocomumacolegadetrabalhoe,nãoterasessão,lhedariaumaoportunidadediscreta,eporissoconveniente,paraqueoencontroseprolongassenumaaventurasexual.Oanalisandodizcontarcomaajudadoanalistaatravésdesta trocadehorário,eestehesitaporsentir-seusadoparaumasituaçãodestanatureza;porfim,atende

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aopedidodatrocadehorário.Estariaoanalistaviolandoosetting?Ouoanalisando,porquerersubstituirasessãopelaaventurasexualproibida?

2.Ojovemanalisandochegaàsessãoeentregaopagamentodomês,emdinheiro,enviadopelopai.Duranteasessãolamenta-seque,maisumavez,chegouaofinaldomêssemnenhumdinheirodamesadaquelhepermitarealizaroexamelaboratorialparaAids.Dizterqueadiarsuaintençãoparaopróximomês,voltando,apartirdaí,adiscorrersobreasdificuldadesquetemcomopai,afaltadeliberdadecomeleparaconversarsobreesteeoutrosassuntos.Oanalista,queacabaradereceberopagamento,experimentaumcons-trangimentonasituação,etambémcompaixãopelojovem–masnadadistoécomunicado.Conformedecidiraaolongodahora,aofinaldasessãoentregaaeleaquantiaqueconsi-derasuficienteparaarealizaçãodoexame,dizendoquenopróximomêsesperavaqueestevalorlhefossedevolvido.Estariaoanalistaviolandoosetting?

3.Otema“cães”propiciaparaumajovemadolescenteaformadeserelacionarcomsuaanalista:ocãoquequeriaterequefinalmenteganha,osqueaanalistatemequesãopressentidospelos latidosqueouvedasaladeanálise,as inúmerasconversassobresuasqualidades,ostratos,asdiferençasentreeles.Apósalgunsmesesaanalistadecideatendê-lanodesejoinsistentedeconhecerseuscães.Assim,osintroduz,umporvezacadasessão,nasaladeanálise.Bomtemposepassacomoatendimentosedandoatrês,oquefacilitasignificativamenteacomunicaçãoentreambas.Edepoisdesseperíodo,assessõespassamasedarnapraçaemfrenteàcasadaanalista,ambasacompanhadasdeseusrespectivoscães.Estariahavendoaíviolaçãodosetting?(Minerbo,2005)

4.Aanalisanda,portadoradediversasesucessivasdoençasfísicas,frequentementeprecisaserinternadaouficaracamada,semcondiçõesdevirparaassessões.Asituaçãoédetalordemqueoanalistasevêconfrontadocomadecisãodenãoatendê-lanessesmo-mentos–edestaforma,pelafrequênciadessesepisódios,inviabilizaraanálise–ouatendê-latantoemcasacomonoshospitais.Decidepelasegundapossibilidade,atendendoassimaodesejodaanalisanda–eseupróprio–decontinuidadedaanálise,apesardeexperi-mentardesconfortonessassituações:acabatendoqueseconfrontarcomfamiliareseami-gosdaanalisanda,aduraçãodassessõesficacomprometida,osambientesdeatendimentofrequentementevariam–situaçõesestasquehabitualmentenãoocorremnoconsultório.Estariaosettinganalíticosendoviolado?

5.Oanalisandoraramentecomeçaafalarnasessãoenquantoseuanalistanãofazalgummovimentoinicial.Oanalistadeveriaaguardarosilêncioserrompidopeloanali-sando?Interpretarosilêncio?Interpretaradificuldadedoanalisandodetomariniciativa?Romperosilêncioseriaumaviolaçãoderegrasbásicas?Sãoquestõesquesecolocamnocotidianoanalítico.

6.Desdeoiníciodaanálise,oanalisandovaicriandosituaçõesdeconfrontocomaanalistaecomoambientedaanálise:brigacomosporteirosdoedifícioporquerersubirantesdoseuhorário;fazexigênciasàanalistaquantoaopreçodassessões,queconsideraalto,eàfrequênciadelas,queconsiderabaixa,umavezque“embreveaanalistasairádeférias”;batenaportadoconsultórioantesdeseuhorário,poisquerseratendidoimediata-

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mente.Essasatitudes,peloforteapeloemocionalenvolvido,poderiamserqualificadasdepsicopáticase,porisso,consideradasviolaçõesdosetting porseremdesrespeitosasàpessoadaanalista,àanálise,àrealidade.Porém,estaéumavisão“defora”dasituaçãocriada,“defora”daexperiênciaemocionaldefatovividapelaanalista.Assinalarcomoviolaçãoajudaclassificar,masnãoparececontribuirparaoprosseguimentodaanálise.

7.Apósumperíodocomquatrosessõessemanaisoanalisandocomunicaàanalistaque,emfunçãodeviagensdetrabalho,pretendemanterfixosapenasosdoisprimeirosho-ráriosdasemana;quantoaosoutros,combinaráacadavez.Aanalistanãosesentedispostaaenfrentá-lonessadecisãounilateral.Eassimaanáliseprossegue,comoanalisandope-dindoosdemaishoráriosquasetodasemana,masdeixandonaanalistaumsentimentodeestarhavendoumarupturadosetting. Apósumlongoperíodoseguindoessepadrão,eemfunçãodasdificuldadesqueseapresentam,tantoemtermosdeagendacomodedesconfor-todaanalista,estavoltaainsistirnoritmodasquatrosessõessemanais.Aconcordânciadopacientedeixaaanalistaconfortável,mas,apartirdaí,sentearelaçãoanalíticadefinhando.Transcorridomaisumanonesse clima, epor considerarque ele sópodevirquandoodesejoesuarealizaçãoestãoemsuasmãos–padrãojáenunciadoemnarrativasquere-velavamsuaintolerânciaàsinvestidassexuaisdasnamoradas–aanalistaéquempropõequeretornemaoritmodopaciente.Oqueanteriormentetinhasidovistocomorupturadosetting, passouaseragora–pelonovosentidoqueseformou–aserconsideradocondiçãodepossibilidadeparaaanáliseprosseguirdeformaprodutiva(Blucher,2007).

Pensoqueo tratamentodadoaessasdiversas situaçõesdeveriaestarapoiadoemalgo maisalémdascondiçõesexternas,ambientais, formais.Comisso,osetting poderiaserconsideradoacondiçãopreservadadepensamentodentrodaturbulênciaemocionaldasessão.Assim,compreendoqueumapossívelviolaçãodomesmoteriaqueserconsi-deradaacontecendoa partir do analista,umavezqueédeleocompromissocomatarefaanalítica.Se,comoanalista,nãoencontropossibilidadesparaumfuncionamentodentrodeumvérticepsicanalítico,fazendointervençõesmoraisenormativas,contribuo,ameuver,paraumaviolaçãodaquelaanálise.Meuanalisandonãotem,a priori,compromissocomapsicanáliseeseusetting,poisestesótemvalorparaelequandoseucontatocomarealidadeestiversuficientementepreservado.Istopressupõeumfuncionamentomentalcomrazoá-veldiscriminaçãoeu-outro,sujeito-objeto,dentro-fora,presença-ausência,impulso-ação.Emoutraspalavras,quandohácapacidadeepossibilidadedesonhar.nestesentido,paraoanalisandoosettingépontodechegadaenãodepartida.

iv.

Entendoainstauraçãodosetting estandoaserviçodométodoanalítico.nãooconsi-dero,portanto,umconjuntoderegrasouumamoldura,massimumareferência,umeixo,umsuporteouambienteondesedáaanálise.Suasvariaçõesprecisamsercompreendidasepensadasdentro daexperiênciaemocional queoanalistavivecomaquelepacientenaquelemomento.Apartefixa,formal,resultadeumasériedeexperiênciasqueforamseconfi-gurandoeestabilizandoapartirdoprópriotrabalho,etambémdasexigênciaspessoaisdo

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próprioFreud,eemmuitosaspectossãoatualizadaspornós.Jáapartementalnãoéfixa,variacomascondiçõesemocionaisdoanalistaecomoqueopacientefazcomele.

Comoanalista,estareiviolandoosetting–enãofazendovariaçõesdele–seestiverarrastadopelasemoçõeseimpossibilitadodepensamento.

Sehácondiçõesdeexperimentaremoçõesecomelasdesenvolverpensamentosemambososparticipantesdadupla–ouaomenosnoanalista–oambientedaanáliseestápreservado.Masseoanalisandoatribuiaomundoexterno–dentroouforadasaladeaná-lise–qualidadesquesãosuas,atravésdochamadomecanismodeidentificaçãoprojetiva–eofazcomexcessivacrença–istoafetaintensamenteoambientedaanálise.Ouniversomentalpodeseexpandirdetal formaquenãoficamaiscontidoemsuaprópriamente,nemnarelaçãocomoanalistaenemnasala.Oambienteanalíticosetransformaepassaa ser infinito.Emfunçãodométodoanalítico internalizadoemmim,ocompromissoedisposiçãopermanentesemcriarumambienteparaqueoanalisandotranspareça,esperoestaremcondiçõesdepercebereevitarqueessemovimentodeexpansão infinitasedêcomigo;ou,sepercebê-loatrasado,conseguirretomarorumodaanáliseaproveitandooocorridoparapensarcomoelesedeu.Jáoanalisandonãotemessecompromisso,epodenãoteressacondição.Senãopodelevaremcontaosetting, seráproveitosoqueaparteexcluídadoanalisando,cindidaeprojetada,sejaabrigadapelaanálise,eosetting evidenciaessaspossibilidadeseesseslimites.nessesmomentos,espero,comoanalista,sercapazdeencontrarformasalternativasdeaproximação,fazendoobservaçõesarespeito,comomododeparticiparefavorecercrescimento.

O setting se instala inicialmentecomoconvenção,umareferênciaquefixaalgunselementoscomosuportesfavoráveisàinvestigaçãoqueseiniciaeàelaboraçãoconsequen-te.Comestaconvençãonossainvestigaçãoestácomprometidaatéumlimiteemque–porcontadopar–elaserompe.Possotomarrupturacomoperturbação,interferência,perigo,oucomoaberturaparasondagemdeumariquezacomunicativa.Istoofareiemfunçãodomeugraudetolerânciaecapacidadededarsignificado,oumelhor,àsvezesdesuspenderosignificado.

O setting se justificapor favorecer e sustentar ométodo analítico.Aí, então, estáencarnadonamentedoanalista,seconfundindocomela.Emminhaformadepensar,osettingé,porexcelência,umestadodedisposiçãoparaexaminar,dedentro,aexperiênciaemocionalpresenteeseusmovimentosnodecorrerdotempo.“Osetting podeserconside-radocomoclaustro(Meltzer,1992)oucomocontinentecomqualidadesdeelasticidadeerobustez(Bion,1962).”(Ferro,1998).

Enquantomeupacientesemovecomo,eporondepode,seriaútilsesemprepudesseencontrar,emmim,oanalistaencarnado.Assim,aquiloquecomeçacomoconvençãopodedirecionarocontatoparasuadimensãoemocionalepsíquica.

v.

AhistóriadeBabelébemconhecida:apósodilúviobíblico,osdescendentesdenoéreconstruíramessaque foiumadasprimeiras cidadesquepertenceuao reinomesopo-tâmico.ConformemencionadonolivrobíblicodoGênesis,foiconstruídaaliumatorreenorme,finalizada em1792 aC, comafinalidadede chegar ao céu.Deus, irado comaousadiahumana,teriafeitocomqueostrabalhadoresdaobracomeçassemafalaridiomas

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diferentesunsdosoutros,demodoquenãopudessemseentender.Eassim,acabaramporabandonarasuaconstrução.Esteepisódio,segundoaBíblia,explicaaorigemdosidiomas(Gênesis10:10;11:1-9).Apesardeseuaspectomitológico,aTorredeBabelpodetersidorealmenteconstruída.

Brueghel, pintorflamengodo séculoXVI, pintouA construção da Torre de Babel,expostonoKunsthisriches Museum,emViena.Emseuquadro,aTorreapareceemformadeconchadecaramujoencobertaporumaestruturatelescópica.

Maisrecentemente,noséculoXX,oescritorespanholJeanBenet,falecidoem1993,escreveuumbelíssimoensaio,tambémchamadoA construção da Torre de Babel (Benet,1990),noqual fazumaanáliseminuciosadoquadrodeBrueghel.Ele,queera tambémengenheiro,examinacadaandardaTorrepintadaporBrueghelemostracomo,emfunçãodaestruturatelescópica,nãohácontinuidadeentreosandares,cadaumdelesrompecomoanterior,temnovoselementosoudimensõesquenãopodiamserprevistospelosandaresanteriores,oqueimpedeamemóriadoprojetoinicialeterminaporestabeleceraconfusãoeocaos.Paraentendermosmelhor:aestruturadatorrenoquadroédiversadacaracte-rísticaestruturahelicoidal–utilizadaempinturasanterioresoumesmocontemporâneassuas–emqueumarampaemespiralcontínua,comosmesmoselementoscomomódulos,serepeteatéotopocomoumadiretriz.noquadrodeBrueghelexisteaestruturahelicoidalapenasnaparteinternadatorre,comoseocaosaparenteencobrisseoprojetooriginaldeumedifícioperfeito.MasnaobradeBrueghelasuaconstruçãojápressupõearuína,sendooquadroumtestemunhodofracasso,umarepresentaçãodaimpossibilidadedeatingiraperfeiçãodoidiomaúnicoentendidoportodos.

Defato,éaousadiaarrogantedecriarumasociedadeperfeitaqueprovocaairadivi-na.AreaçãodeDeuséestabelecerentãoodesentendimento,criandoumamultiplicidadedeidiomaseimpossibilitandoaconstruçãodaTorre.MasaoimpedirqueoshomenslevemadianteoprojetodeumasociedadeperfeitarepresentadapelaTorre,comumalinguagemuniversal,DeusdeixadeseroTodo-Poderoso.Apartirdaí,cadalínguateráseuprópriodeus.Ohomemnãosaidaterraparaocéu,mastambémnãohádescidadocéuparaaterra;omundonãosereduz“àrazãopura”,mastambémnãopodeserreconduzidoaumagenealogiaúnica.Emvezde“Eisquetodosconstituemumsópovoefalamumasólíngua.”(Gênesis,11,antesdeJeováconfundiralinguagemdoshomens),encontramoso“cresceiemultiplicai-vos,povoaiaterra,andai”(omesmoGênesis,11).Comotalutopia,Babelnãoétantoumaréplicadoprojetodivino,masumaexpropriaçãodomesmo.

Haveriacertosucessohumanistanofracassoemalcançaralinguagemúnica,oDeusúnicoeopovounido.Comosenosprópriosatosestivessecontidaasuatraição.Alingua-gemtambémqueralcançarocéu,oproibido.Eédofracassodoprojetodaunificaçãodoshomensedasualinguagem,quenasceadiversidadeeacriatividade.

vi.

Apropostadeumsettingpré-formadoouprefixado,prontoeaplicávelatodopa-ciente,evocaaimagemdatorredeBabeleoprojetodeumalínguaúnica,universal.ComonoquadrodeBrueghel,umsetting assimconfiguradojácontém,emsi,apossibilidadedofracasso.Prefiropensaremsettingcomooconjuntodecondiçõesminhasquemepossibi-litamfazerobservaçõespsicanalíticas,incluindoaíosmomentosemqueoaspectoexterno

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e formal é respeitado eosmomentos emque este sofredesorganizações.E tambémnainvestigaçãodasignificaçãopsíquicaenvolvidaemsuapreservação:poraçãosuperegoicaouegoica,porpensamentoouporautomatismo?nãopensoemobediênciaaumsettingparaquesedêanálise;massimumsettingnoanalistaquelhedêcondiçõesdeparticipardaquelaanálise.Énesteambientequesedáoatendimentopsicanalíticodeumanalisandoparticular,singular,noqualeletransparececomoserhumanoemrelaçãocomooutro.

namentehumana–enuncaédemaislembrarqueistovaleparaanalistaseanali-sandos–predominaosistemainconsciente,territóriodoinfinitoincognoscíveleinefável.Amente,porsuanaturezaemododefuncionar,porsinãorespeitaenquadres,podendoexpandir-separaesteinfinito,comoseevidencianasalucinoses.CitoBion(1965)

Asituaçãodopsicanalistalidandocomtransformaçõespsicóticasésimilaràquelaatribuídaaosfísicosnucleares.Eletemquelidarcomrelacionamentosdeumdomínioquenãotemlimitaçõesfinitas.(p.62)

Assim,amentenãopodesemanterlimitadaporaçãodeumaorganizaçãoexternafixaeestruturada.Ésomenteemnomedométodoanalítico,dadisciplinaimpostaparaconseguirobservardentrodeumcamponoqualestamosinseridos,quedeveríamosman-terumsetting.

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Estardentrodeumamolduranãoé,porsisó,umaformadofuncionamentohu-mano;éumapossibilidadequeocorrenadependênciadacapacidadedepensardentrodeexperiênciasemocionaisvividas.Opensamentopermitediferenciações,discriminações,diferençase semelhanças.Onãopensamentohomogeneiza,apagaasdiferenças,padro-niza.Eaexperiênciaanalítica envolvetantoopensamentoquantoonãopensamento.Avisãoquesimplesmenteopõepreservaçãoeviolaçãodosetting nosafastadeinvestigarasignificaçãodecadaumadestassituações:caímosnadimensãodapolaridadevalorização/desvalorização.Porém–eesteéopontoquevenhodesdeo iníciodestacando–nãosedeveatribuireesperardosanalisandosestecompromissocomaatividadedopensamento,apsicanáliseouseumétodo.

Settingpressupõeatentativadediscriminaçãoentrerealidadeinternaeexterna.Paratantodevehavernamentecertadivisão(splitting)interna;sóassimpodeexistirumacon-sideraçãopelarealidadecomoalgoalheioamim.nestesentido,paradoxalmente,pode-sedizerqueosettingestabelecido,aoserdesconsiderado,permitequesedêapsicanálise.nãoapsicanálisesustentadapelasteoriasclássicas,masapsicanálisedaquiloaindadesconheci-doereal,aqualvaisefazendoapartirdepequenasobservaçõespontuais,assinalamentos,desdobramentos,rudimentosdecomunicação,relações…

Écomopsicanalistaqueprocuroestarpresentenasituaçãoatualquesedánasala,entreeueopaciente,naquelemomento.Istoenvolveadifícildisciplinadeescapardopas-sadoedofuturo;emoutraspalavras,nãomedeixarguiarpelasmemóriasedesejos.

Acolheraexperiênciaemocionalquevouvivendocomopacientenasessãoeapren-dercomela–ouutilizarafunçãoα,sepreferirmosestaterminologia–éoinstrumentoque,comoanalista,meproponhoausar.Sensívelaomaiornúmerodefenômenos,nesteprocessovouobtendodados–dedentroparaforaedeforaparadentro,internoseexter-nos,sensoriaisepsíquicos–quevãoengendrandopensamentosarespeitodoqueocorre.Posteriormentenovosdadosseacrescentam,emuitasvezesmodificamaformadeverasituação,numprocessoalheioàscontradições,àlógica,àssequênciaseàcausalidade.Paramim,estaéumadasmarcascentraisdacontribuiçãodeBion.

Essespensamentosvãocriandoumambientereceptivoparaosurgimentodeumfato selecionado.Bion(1963)oconceituacomo“aquiloqueemprestacoerênciaesignifica-doaeventosconhecidos,cujorelacionamentoaindaseignorava”(p.153);ele“éonomedaexperiênciaemocional,aexperiênciaemocionaldasensaçãodedescobertadecoerência.Suasignificaçãoé,porconseguinte,epistemológicaenãoseacreditaquesejalógicaacor-relaçãodosfatosselecionados”(Bion,1962,p.91).

Esteprocessovaimedandoumadireção,umapossibilidadededizeralgoaopacien-te,“criando”uminterlocutorparamimnaquelaanálise;paraisto,dependodehaverumadivisãonopacientequepossibilitequeelevejaoqueestásepassando.

Osetting écondiçãoparaotrabalhoanalítico,masnãoseusubstituto.Podeserpro-postocomooterrenoondeocorremtodasasmodalidadesdetransformações (Bion,1965).Éapreservaçãodométodoanalíticoou,dizendodeoutraforma,éapresençadaminhacapacidadedepensarqueafastaaameaçadedispersãoeconfusãobabeliananapsicanálise,respeitandoadiversidadepsíquicaeculturaldaraçahumana.

Háumprovérbiolatinoquediz:

Oqueérígidodesabaeoqueestáemconstantemovimentopersiste.

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¿Es necessario ser psicoanalista? ¿Es esto preciso?

Resumen: Invitado a participar de la Mesa redonda titulada: Violaciones del Setting, el autor restablece la concepción original de ese concepto. En seguida, lo desmiembra en algunas dimensiones: los aspectos formales relacionados a las condiciones externas donde el psicoanálisis tiene lugar; los aspectos vinculados en el psiquismo del analista que tiene el método psicoanalítico incorporado. Privilegiando esa segunda dimensión, se destacan aspectos relacionados a la actualidad de la práctica clínica y su relación con el método analítico. El autor investiga la idea de violación desde algunos fragmentos de la rutina analítica.Palabras clave: setting analítico; método analítico.

We must be psychoanalysts. Is that exact?

Abstract:The author, invited to participate in a roundtable discussion entitled Violations of the Setting, returns to the original concept of this term in psychoanalysis, in order to then dissect it into its different dimensions: the formal aspects related to the external conditions whereby psychoanalysis occurs; the aspects related to the psyche of the psychoanalyst who has incorporated the analytic method unto himself. Due to the special attention given to this second dimension, aspects related to the currency of clinical practice are highlighted, along with its relation with the analytic method. The idea of violation is examined through the consideration of some fragments of daily analytic practice. Keywords: psychoanalytic setting; psychoanalytic method.

Referências

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emReuniãoCientíficadaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPaulo.Brueghel,P.http://www.passeiweb.com/saiba_mais/biografias/p/pieter_brueghel.Ferro,A.(1998).Na sala de análise.RiodeJaneiro:Imago.Freud,S.(1969).Recomendaçõesaosmédicosqueexercempsicanálise. InS.Freud, Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.(J.Salomão,trad.,Vol12,p.149).RiodeJaneiro:Imago.(Trabalhooriginalpublicadoem1912)

Freud,S.(1969).Sobreoiníciodotratamento(novasrecomendaçõessobreatécnicadapsicanáliseI). InS.Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.(J.Salomão,trad.,Vol.12,p.164).RiodeJaneiro:Imago.(Trabalhooriginalpublicadoem1913)

Minerbo,M.(2005).Formarumanalistacriativo.Jornal de Psicanálise,38(69),179.Zaccagnini,C.(2006).Polissemiose.Folder da exposição de Amílcar Parker.CentroCulturalBancodo

Brasil.SãoPaulo,10/12/2006a18/02/2007.

[Recebidoem29.4.2010,aceitoem28.5.2010]

JulioFrochtengarten[SociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPaulo]RuaJanuárioMiraglia,99–VilanovaConceição04507-020SãoPaulo,SPTel:113885-8725juliofro@uol.com.br

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