É preciso ser psicanalista. É preciso? - periódicos...

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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 44, n. 2, 45-53 · 2010 45 É preciso ser psicanalista. É preciso? Julio Frochtengarten, 1 São Paulo Resumo: O autor, convidado para participar de mesa-redonda sob o título Violações do setting, retoma o conceito original que esse termo tem em psicanálise para, em seguida, desmembrá-lo em suas dimen- sões: os aspectos formais ligados às condições externas em que a psicanálise se dá e os aspectos ligados ao psiquismo do analista que tem o método psicanalítico incorporado em si. Ao privilegiar esta segun- da dimensão, ressalta aspectos ligados à atualidade da clínica e sua relação com o método analítico. A ideia de violação é examinada a partir de alguns fragmentos do cotidiano analítico. Palavras-chave: setting analítico; método analítico. I. Em espanhol, para xícara se diz taza; para taça se diz copa; para copo se diz vaso e para vaso florero (quando as flores ficam na água) ou maceta (quando plantadas na terra). Em espanhol, para sacola se diz bolsa, para bolsa se diz cartera e para carteira billetera, pois se diz billetes às notas. E notas aos bilhetes. Assim como se diz apellido ao sobrenome e so- brenome ao apelido. Em alguns casos as diferenças se anulam: “Você encontrou a nota que deixei com o bilhete?”; “Si, claro, la nota que me dejaste con el billete. Gracias”. Essas línguas, que nasceram de uma mesma fonte e passaram séculos sendo a mes- ma, foram aos poucos gerando as diferenças que hoje as separam. Outras comidas, outros hábitos, outras paisagens que exigiam outros nomes desembocaram em palavras novas e novos sons. E há usos que vão moldando as palavras e transformando os significados de acordo com a compreensão que delas oferece a experiência. Um exemplo clássico é o par esquisito/exquisito. Para simplificar o processo histórico, podemos imaginar duas pessoas num mesmo banquete em que ambas provam a mesma iguaria que jamais tinham provado antes. “Exquisito”, diz o conviva de ascendência hispânica. “Esquisito?”, pergunta seu cole- ga lusitano. “Si, exquisito!”; “Hum, sim, esquisito.” E ambos concordam em qualificar com a mesma palavra aquele sabor que lhes traz sensações tão diversas. II. Em Freud não se encontra uma descrição ampla e geral do que poderíamos chamar de técnica analítica. Mesmo os chamados “Artigos sobre técnica”, publicados entre 1911 e 1915, dificilmente poderiam ser referidos como uma exposição sistemática de técnica psi- canalítica. Em um deles, Freud esclarece que alcançou estas regras no decurso de muitos anos e pela própria experiência, enfatizando seu caráter individual: Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente 1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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RevistaBrasileiradePsicanálise·Volume44,n.2,45-53·2010 45

É preciso ser psicanalista. É preciso?

JulioFrochtengarten,1SãoPaulo

Resumo:Oautor,convidadoparaparticipardemesa-redondasobotítuloViolações do setting,retomaoconceitooriginalqueessetermotemempsicanálisepara,emseguida,desmembrá-loemsuasdimen-sões:osaspectosformaisligadosàscondiçõesexternasemqueapsicanálisesedáeosaspectosligadosaopsiquismodoanalistaquetemométodopsicanalíticoincorporadoemsi.Aoprivilegiarestasegun-dadimensão,ressaltaaspectosligadosàatualidadedaclínicaesuarelaçãocomométodoanalítico.Aideiadeviolação éexaminadaapartirdealgunsfragmentosdocotidianoanalítico.Palavras-chave:setting analítico;métodoanalítico.

i.

Emespanhol,paraxícarasediztaza;parataçasedizcopa;paracoposedizvasoeparavasoflorero(quandoasfloresficamnaágua)oumaceta(quandoplantadasnaterra).Emespanhol,parasacolasedizbolsa,parabolsasedizcarteraeparacarteirabilletera,poissedizbilletes àsnotas.Enotasaosbilhetes.Assimcomosedizapellido aosobrenomeeso-brenomeaoapelido.Emalgunscasosasdiferençasseanulam:“Vocêencontrouanotaquedeixeicomobilhete?”;“Si, claro, la nota que me dejaste con el billete. Gracias”.

Essaslínguas,quenasceramdeumamesmafonteepassaramséculossendoames-ma,foramaospoucosgerandoasdiferençasquehojeasseparam.Outrascomidas,outroshábitos,outraspaisagensqueexigiamoutrosnomesdesembocaramempalavrasnovasenovossons.Eháusosquevãomoldandoaspalavrasetransformandoossignificadosdeacordocomacompreensãoquedelasofereceaexperiência.Umexemploclássicoéoparesquisito/exquisito.Parasimplificaroprocessohistórico,podemosimaginarduaspessoasnummesmobanqueteemqueambasprovamamesmaiguariaquejamaistinhamprovadoantes.“Exquisito”,dizoconvivadeascendênciahispânica.“Esquisito?”,perguntaseucole-galusitano.“Si, exquisito!”;“Hum,sim,esquisito.”Eambosconcordamemqualificarcomamesmapalavraaquelesaborquelhestrazsensaçõestãodiversas.

ii.

EmFreudnãoseencontraumadescriçãoamplaegeraldoquepoderíamoschamardetécnicaanalítica.Mesmooschamados“Artigossobretécnica”,publicadosentre1911e1915,dificilmentepoderiamserreferidoscomoumaexposiçãosistemáticadetécnicapsi-canalítica.Emumdeles,Freudesclarecequealcançouestasregrasnodecursodemuitosanosepelaprópriaexperiência,enfatizandoseucaráterindividual:

Devo,contudo,tornarclaroqueoqueestouasseverandoéqueestatécnicaéaúnicaapropriadaàminhaindividualidade;nãomearriscoanegarqueummédicoconstituídodemodointeiramente

1 MembroefetivoeanalistadidatadaSociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPauloSBPSP.

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diferentepossaver-selevadoaadotarumaatitudediferente emrelaçãoaseuspacienteseàtarefaqueselheapresenta.(Freud,1912/1969,p.149)

Emváriosdestes artigos,Freudenfatizaquenãodescreve regras e simrecomen-dações.não reivindica sua aceitação incondicional e as compara às recomendações dosmanuaisdexadrez:

Todoaquelequeespereaprenderonobrejogodoxadreznoslivros,cedodescobriráquesomenteasaberturaseosfinaisdejogoadmitemumaapresentaçãosistemáticaexaustivaequeainfinitavariedadedejogadasquesedesenvolvemapósaaberturadesafiaqualquerdescriçãodestetipo.Estalacunanainstruçãosópodeserpreenchidaporumestudodiligentedosjogostravadospe-losmestres.Asregrasquepodemserestabelecidasparaoexercíciodotratamentopsicanalíticoacham-sesujeitasalimitaçõessemelhantes.(Freud,1913/1969,p.164)

CitoFreudnovamente:

Aextraordináriadiversidadedas constelaçõespsíquicas envolvidas, aplasticidadede todososprocessosmentaiseariquezadosfatoresdeterminantesopõem-seaqualquermecanizaçãodatécnica;eocasionamqueumcursodeação,queviaderegraéjustificado,possaàsvezesmostrar-seineficaz,enquantooutroquehabitualmenteéerrôneopossa,devezemquando,conduziraofimdesejado.Essascircunstâncias,contudo,nãonosimpedemdeestabelecerparaomédicoumprocedimentoque,emmédia,éeficaz.(Freud,1913/1969,p.164)

Todoesteconjuntodeconsideraçõeserecomendaçõesescritas–esempreexamina-dasquantoàssuassignificaçõesejustificativaspsíquicas–formaramoquehojedenomi-namossetting:aspectosformaisedisposiçõesdoanalista,incorporadaseencarnadasporele.

noiníciodeminhaformaçãoouviadizerquesetting éalgointernoaoanalistaenãooaspectoformaldasala,consultório,neutralidadedoambientecriado,usododivã,dura-çãodassessões,horáriosestabelecidos…Estadiscriminaçãofezsentidoparamim,adotei-aemteoria,emeparecehavercertoconsensoquantoaela.napráticapercebo,porém,queemmuitosmomentosmepreocupocomaspectosformaiscomoseelespudessemgarantirosetting,algumaestabilidadeparamimcomoanalista.Certamente,estesaspectosformaissãoimportantes,masconstituemapartemaisfácildeidentificarnosetting,enquantoeste“algointerno”ébemmaisdifícildeserdefinido,construídoemantido.

iii. sete situações da clínica psicanalítica

1.Oanalisandosolicitaaoanalistaquetroqueohoráriodesuapróximasessão.In-dagado,justificaopedidoalegandoquererestarlivrenocomeçodatarde,poisnessediatinhaagendadoumalmoçocomumacolegadetrabalhoe,nãoterasessão,lhedariaumaoportunidadediscreta,eporissoconveniente,paraqueoencontroseprolongassenumaaventurasexual.Oanalisandodizcontarcomaajudadoanalistaatravésdesta trocadehorário,eestehesitaporsentir-seusadoparaumasituaçãodestanatureza;porfim,atende

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aopedidodatrocadehorário.Estariaoanalistaviolandoosetting?Ouoanalisando,porquerersubstituirasessãopelaaventurasexualproibida?

2.Ojovemanalisandochegaàsessãoeentregaopagamentodomês,emdinheiro,enviadopelopai.Duranteasessãolamenta-seque,maisumavez,chegouaofinaldomêssemnenhumdinheirodamesadaquelhepermitarealizaroexamelaboratorialparaAids.Dizterqueadiarsuaintençãoparaopróximomês,voltando,apartirdaí,adiscorrersobreasdificuldadesquetemcomopai,afaltadeliberdadecomeleparaconversarsobreesteeoutrosassuntos.Oanalista,queacabaradereceberopagamento,experimentaumcons-trangimentonasituação,etambémcompaixãopelojovem–masnadadistoécomunicado.Conformedecidiraaolongodahora,aofinaldasessãoentregaaeleaquantiaqueconsi-derasuficienteparaarealizaçãodoexame,dizendoquenopróximomêsesperavaqueestevalorlhefossedevolvido.Estariaoanalistaviolandoosetting?

3.Otema“cães”propiciaparaumajovemadolescenteaformadeserelacionarcomsuaanalista:ocãoquequeriaterequefinalmenteganha,osqueaanalistatemequesãopressentidospelos latidosqueouvedasaladeanálise,as inúmerasconversassobresuasqualidades,ostratos,asdiferençasentreeles.Apósalgunsmesesaanalistadecideatendê-lanodesejoinsistentedeconhecerseuscães.Assim,osintroduz,umporvezacadasessão,nasaladeanálise.Bomtemposepassacomoatendimentosedandoatrês,oquefacilitasignificativamenteacomunicaçãoentreambas.Edepoisdesseperíodo,assessõespassamasedarnapraçaemfrenteàcasadaanalista,ambasacompanhadasdeseusrespectivoscães.Estariahavendoaíviolaçãodosetting?(Minerbo,2005)

4.Aanalisanda,portadoradediversasesucessivasdoençasfísicas,frequentementeprecisaserinternadaouficaracamada,semcondiçõesdevirparaassessões.Asituaçãoédetalordemqueoanalistasevêconfrontadocomadecisãodenãoatendê-lanessesmo-mentos–edestaforma,pelafrequênciadessesepisódios,inviabilizaraanálise–ouatendê-latantoemcasacomonoshospitais.Decidepelasegundapossibilidade,atendendoassimaodesejodaanalisanda–eseupróprio–decontinuidadedaanálise,apesardeexperi-mentardesconfortonessassituações:acabatendoqueseconfrontarcomfamiliareseami-gosdaanalisanda,aduraçãodassessõesficacomprometida,osambientesdeatendimentofrequentementevariam–situaçõesestasquehabitualmentenãoocorremnoconsultório.Estariaosettinganalíticosendoviolado?

5.Oanalisandoraramentecomeçaafalarnasessãoenquantoseuanalistanãofazalgummovimentoinicial.Oanalistadeveriaaguardarosilêncioserrompidopeloanali-sando?Interpretarosilêncio?Interpretaradificuldadedoanalisandodetomariniciativa?Romperosilêncioseriaumaviolaçãoderegrasbásicas?Sãoquestõesquesecolocamnocotidianoanalítico.

6.Desdeoiníciodaanálise,oanalisandovaicriandosituaçõesdeconfrontocomaanalistaecomoambientedaanálise:brigacomosporteirosdoedifícioporquerersubirantesdoseuhorário;fazexigênciasàanalistaquantoaopreçodassessões,queconsideraalto,eàfrequênciadelas,queconsiderabaixa,umavezque“embreveaanalistasairádeférias”;batenaportadoconsultórioantesdeseuhorário,poisquerseratendidoimediata-

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mente.Essasatitudes,peloforteapeloemocionalenvolvido,poderiamserqualificadasdepsicopáticase,porisso,consideradasviolaçõesdosetting porseremdesrespeitosasàpessoadaanalista,àanálise,àrealidade.Porém,estaéumavisão“defora”dasituaçãocriada,“defora”daexperiênciaemocionaldefatovividapelaanalista.Assinalarcomoviolaçãoajudaclassificar,masnãoparececontribuirparaoprosseguimentodaanálise.

7.Apósumperíodocomquatrosessõessemanaisoanalisandocomunicaàanalistaque,emfunçãodeviagensdetrabalho,pretendemanterfixosapenasosdoisprimeirosho-ráriosdasemana;quantoaosoutros,combinaráacadavez.Aanalistanãosesentedispostaaenfrentá-lonessadecisãounilateral.Eassimaanáliseprossegue,comoanalisandope-dindoosdemaishoráriosquasetodasemana,masdeixandonaanalistaumsentimentodeestarhavendoumarupturadosetting. Apósumlongoperíodoseguindoessepadrão,eemfunçãodasdificuldadesqueseapresentam,tantoemtermosdeagendacomodedesconfor-todaanalista,estavoltaainsistirnoritmodasquatrosessõessemanais.Aconcordânciadopacientedeixaaanalistaconfortável,mas,apartirdaí,sentearelaçãoanalíticadefinhando.Transcorridomaisumanonesse clima, epor considerarque ele sópodevirquandoodesejoesuarealizaçãoestãoemsuasmãos–padrãojáenunciadoemnarrativasquere-velavamsuaintolerânciaàsinvestidassexuaisdasnamoradas–aanalistaéquempropõequeretornemaoritmodopaciente.Oqueanteriormentetinhasidovistocomorupturadosetting, passouaseragora–pelonovosentidoqueseformou–aserconsideradocondiçãodepossibilidadeparaaanáliseprosseguirdeformaprodutiva(Blucher,2007).

Pensoqueo tratamentodadoaessasdiversas situaçõesdeveriaestarapoiadoemalgo maisalémdascondiçõesexternas,ambientais, formais.Comisso,osetting poderiaserconsideradoacondiçãopreservadadepensamentodentrodaturbulênciaemocionaldasessão.Assim,compreendoqueumapossívelviolaçãodomesmoteriaqueserconsi-deradaacontecendoa partir do analista,umavezqueédeleocompromissocomatarefaanalítica.Se,comoanalista,nãoencontropossibilidadesparaumfuncionamentodentrodeumvérticepsicanalítico,fazendointervençõesmoraisenormativas,contribuo,ameuver,paraumaviolaçãodaquelaanálise.Meuanalisandonãotem,a priori,compromissocomapsicanáliseeseusetting,poisestesótemvalorparaelequandoseucontatocomarealidadeestiversuficientementepreservado.Istopressupõeumfuncionamentomentalcomrazoá-veldiscriminaçãoeu-outro,sujeito-objeto,dentro-fora,presença-ausência,impulso-ação.Emoutraspalavras,quandohácapacidadeepossibilidadedesonhar.nestesentido,paraoanalisandoosettingépontodechegadaenãodepartida.

iv.

Entendoainstauraçãodosetting estandoaserviçodométodoanalítico.nãooconsi-dero,portanto,umconjuntoderegrasouumamoldura,massimumareferência,umeixo,umsuporteouambienteondesedáaanálise.Suasvariaçõesprecisamsercompreendidasepensadasdentro daexperiênciaemocional queoanalistavivecomaquelepacientenaquelemomento.Apartefixa,formal,resultadeumasériedeexperiênciasqueforamseconfi-gurandoeestabilizandoapartirdoprópriotrabalho,etambémdasexigênciaspessoaisdo

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próprioFreud,eemmuitosaspectossãoatualizadaspornós.Jáapartementalnãoéfixa,variacomascondiçõesemocionaisdoanalistaecomoqueopacientefazcomele.

Comoanalista,estareiviolandoosetting–enãofazendovariaçõesdele–seestiverarrastadopelasemoçõeseimpossibilitadodepensamento.

Sehácondiçõesdeexperimentaremoçõesecomelasdesenvolverpensamentosemambososparticipantesdadupla–ouaomenosnoanalista–oambientedaanáliseestápreservado.Masseoanalisandoatribuiaomundoexterno–dentroouforadasaladeaná-lise–qualidadesquesãosuas,atravésdochamadomecanismodeidentificaçãoprojetiva–eofazcomexcessivacrença–istoafetaintensamenteoambientedaanálise.Ouniversomentalpodeseexpandirdetal formaquenãoficamaiscontidoemsuaprópriamente,nemnarelaçãocomoanalistaenemnasala.Oambienteanalíticosetransformaepassaa ser infinito.Emfunçãodométodoanalítico internalizadoemmim,ocompromissoedisposiçãopermanentesemcriarumambienteparaqueoanalisandotranspareça,esperoestaremcondiçõesdepercebereevitarqueessemovimentodeexpansão infinitasedêcomigo;ou,sepercebê-loatrasado,conseguirretomarorumodaanáliseaproveitandooocorridoparapensarcomoelesedeu.Jáoanalisandonãotemessecompromisso,epodenãoteressacondição.Senãopodelevaremcontaosetting, seráproveitosoqueaparteexcluídadoanalisando,cindidaeprojetada,sejaabrigadapelaanálise,eosetting evidenciaessaspossibilidadeseesseslimites.nessesmomentos,espero,comoanalista,sercapazdeencontrarformasalternativasdeaproximação,fazendoobservaçõesarespeito,comomododeparticiparefavorecercrescimento.

O setting se instala inicialmentecomoconvenção,umareferênciaquefixaalgunselementoscomosuportesfavoráveisàinvestigaçãoqueseiniciaeàelaboraçãoconsequen-te.Comestaconvençãonossainvestigaçãoestácomprometidaatéumlimiteemque–porcontadopar–elaserompe.Possotomarrupturacomoperturbação,interferência,perigo,oucomoaberturaparasondagemdeumariquezacomunicativa.Istoofareiemfunçãodomeugraudetolerânciaecapacidadededarsignificado,oumelhor,àsvezesdesuspenderosignificado.

O setting se justificapor favorecer e sustentar ométodo analítico.Aí, então, estáencarnadonamentedoanalista,seconfundindocomela.Emminhaformadepensar,osettingé,porexcelência,umestadodedisposiçãoparaexaminar,dedentro,aexperiênciaemocionalpresenteeseusmovimentosnodecorrerdotempo.“Osetting podeserconside-radocomoclaustro(Meltzer,1992)oucomocontinentecomqualidadesdeelasticidadeerobustez(Bion,1962).”(Ferro,1998).

Enquantomeupacientesemovecomo,eporondepode,seriaútilsesemprepudesseencontrar,emmim,oanalistaencarnado.Assim,aquiloquecomeçacomoconvençãopodedirecionarocontatoparasuadimensãoemocionalepsíquica.

v.

AhistóriadeBabelébemconhecida:apósodilúviobíblico,osdescendentesdenoéreconstruíramessaque foiumadasprimeiras cidadesquepertenceuao reinomesopo-tâmico.ConformemencionadonolivrobíblicodoGênesis,foiconstruídaaliumatorreenorme,finalizada em1792 aC, comafinalidadede chegar ao céu.Deus, irado comaousadiahumana,teriafeitocomqueostrabalhadoresdaobracomeçassemafalaridiomas

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diferentesunsdosoutros,demodoquenãopudessemseentender.Eassim,acabaramporabandonarasuaconstrução.Esteepisódio,segundoaBíblia,explicaaorigemdosidiomas(Gênesis10:10;11:1-9).Apesardeseuaspectomitológico,aTorredeBabelpodetersidorealmenteconstruída.

Brueghel, pintorflamengodo séculoXVI, pintouA construção da Torre de Babel,expostonoKunsthisriches Museum,emViena.Emseuquadro,aTorreapareceemformadeconchadecaramujoencobertaporumaestruturatelescópica.

Maisrecentemente,noséculoXX,oescritorespanholJeanBenet,falecidoem1993,escreveuumbelíssimoensaio,tambémchamadoA construção da Torre de Babel (Benet,1990),noqual fazumaanáliseminuciosadoquadrodeBrueghel.Ele,queera tambémengenheiro,examinacadaandardaTorrepintadaporBrueghelemostracomo,emfunçãodaestruturatelescópica,nãohácontinuidadeentreosandares,cadaumdelesrompecomoanterior,temnovoselementosoudimensõesquenãopodiamserprevistospelosandaresanteriores,oqueimpedeamemóriadoprojetoinicialeterminaporestabeleceraconfusãoeocaos.Paraentendermosmelhor:aestruturadatorrenoquadroédiversadacaracte-rísticaestruturahelicoidal–utilizadaempinturasanterioresoumesmocontemporâneassuas–emqueumarampaemespiralcontínua,comosmesmoselementoscomomódulos,serepeteatéotopocomoumadiretriz.noquadrodeBrueghelexisteaestruturahelicoidalapenasnaparteinternadatorre,comoseocaosaparenteencobrisseoprojetooriginaldeumedifícioperfeito.MasnaobradeBrueghelasuaconstruçãojápressupõearuína,sendooquadroumtestemunhodofracasso,umarepresentaçãodaimpossibilidadedeatingiraperfeiçãodoidiomaúnicoentendidoportodos.

Defato,éaousadiaarrogantedecriarumasociedadeperfeitaqueprovocaairadivi-na.AreaçãodeDeuséestabelecerentãoodesentendimento,criandoumamultiplicidadedeidiomaseimpossibilitandoaconstruçãodaTorre.MasaoimpedirqueoshomenslevemadianteoprojetodeumasociedadeperfeitarepresentadapelaTorre,comumalinguagemuniversal,DeusdeixadeseroTodo-Poderoso.Apartirdaí,cadalínguateráseuprópriodeus.Ohomemnãosaidaterraparaocéu,mastambémnãohádescidadocéuparaaterra;omundonãosereduz“àrazãopura”,mastambémnãopodeserreconduzidoaumagenealogiaúnica.Emvezde“Eisquetodosconstituemumsópovoefalamumasólíngua.”(Gênesis,11,antesdeJeováconfundiralinguagemdoshomens),encontramoso“cresceiemultiplicai-vos,povoaiaterra,andai”(omesmoGênesis,11).Comotalutopia,Babelnãoétantoumaréplicadoprojetodivino,masumaexpropriaçãodomesmo.

Haveriacertosucessohumanistanofracassoemalcançaralinguagemúnica,oDeusúnicoeopovounido.Comosenosprópriosatosestivessecontidaasuatraição.Alingua-gemtambémqueralcançarocéu,oproibido.Eédofracassodoprojetodaunificaçãodoshomensedasualinguagem,quenasceadiversidadeeacriatividade.

vi.

Apropostadeumsettingpré-formadoouprefixado,prontoeaplicávelatodopa-ciente,evocaaimagemdatorredeBabeleoprojetodeumalínguaúnica,universal.ComonoquadrodeBrueghel,umsetting assimconfiguradojácontém,emsi,apossibilidadedofracasso.Prefiropensaremsettingcomooconjuntodecondiçõesminhasquemepossibi-litamfazerobservaçõespsicanalíticas,incluindoaíosmomentosemqueoaspectoexterno

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e formal é respeitado eosmomentos emque este sofredesorganizações.E tambémnainvestigaçãodasignificaçãopsíquicaenvolvidaemsuapreservação:poraçãosuperegoicaouegoica,porpensamentoouporautomatismo?nãopensoemobediênciaaumsettingparaquesedêanálise;massimumsettingnoanalistaquelhedêcondiçõesdeparticipardaquelaanálise.Énesteambientequesedáoatendimentopsicanalíticodeumanalisandoparticular,singular,noqualeletransparececomoserhumanoemrelaçãocomooutro.

namentehumana–enuncaédemaislembrarqueistovaleparaanalistaseanali-sandos–predominaosistemainconsciente,territóriodoinfinitoincognoscíveleinefável.Amente,porsuanaturezaemododefuncionar,porsinãorespeitaenquadres,podendoexpandir-separaesteinfinito,comoseevidencianasalucinoses.CitoBion(1965)

Asituaçãodopsicanalistalidandocomtransformaçõespsicóticasésimilaràquelaatribuídaaosfísicosnucleares.Eletemquelidarcomrelacionamentosdeumdomínioquenãotemlimitaçõesfinitas.(p.62)

Assim,amentenãopodesemanterlimitadaporaçãodeumaorganizaçãoexternafixaeestruturada.Ésomenteemnomedométodoanalítico,dadisciplinaimpostaparaconseguirobservardentrodeumcamponoqualestamosinseridos,quedeveríamosman-terumsetting.

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Estardentrodeumamolduranãoé,porsisó,umaformadofuncionamentohu-mano;éumapossibilidadequeocorrenadependênciadacapacidadedepensardentrodeexperiênciasemocionaisvividas.Opensamentopermitediferenciações,discriminações,diferençase semelhanças.Onãopensamentohomogeneiza,apagaasdiferenças,padro-niza.Eaexperiênciaanalítica envolvetantoopensamentoquantoonãopensamento.Avisãoquesimplesmenteopõepreservaçãoeviolaçãodosetting nosafastadeinvestigarasignificaçãodecadaumadestassituações:caímosnadimensãodapolaridadevalorização/desvalorização.Porém–eesteéopontoquevenhodesdeo iníciodestacando–nãosedeveatribuireesperardosanalisandosestecompromissocomaatividadedopensamento,apsicanáliseouseumétodo.

Settingpressupõeatentativadediscriminaçãoentrerealidadeinternaeexterna.Paratantodevehavernamentecertadivisão(splitting)interna;sóassimpodeexistirumacon-sideraçãopelarealidadecomoalgoalheioamim.nestesentido,paradoxalmente,pode-sedizerqueosettingestabelecido,aoserdesconsiderado,permitequesedêapsicanálise.nãoapsicanálisesustentadapelasteoriasclássicas,masapsicanálisedaquiloaindadesconheci-doereal,aqualvaisefazendoapartirdepequenasobservaçõespontuais,assinalamentos,desdobramentos,rudimentosdecomunicação,relações…

Écomopsicanalistaqueprocuroestarpresentenasituaçãoatualquesedánasala,entreeueopaciente,naquelemomento.Istoenvolveadifícildisciplinadeescapardopas-sadoedofuturo;emoutraspalavras,nãomedeixarguiarpelasmemóriasedesejos.

Acolheraexperiênciaemocionalquevouvivendocomopacientenasessãoeapren-dercomela–ouutilizarafunçãoα,sepreferirmosestaterminologia–éoinstrumentoque,comoanalista,meproponhoausar.Sensívelaomaiornúmerodefenômenos,nesteprocessovouobtendodados–dedentroparaforaedeforaparadentro,internoseexter-nos,sensoriaisepsíquicos–quevãoengendrandopensamentosarespeitodoqueocorre.Posteriormentenovosdadosseacrescentam,emuitasvezesmodificamaformadeverasituação,numprocessoalheioàscontradições,àlógica,àssequênciaseàcausalidade.Paramim,estaéumadasmarcascentraisdacontribuiçãodeBion.

Essespensamentosvãocriandoumambientereceptivoparaosurgimentodeumfato selecionado.Bion(1963)oconceituacomo“aquiloqueemprestacoerênciaesignifica-doaeventosconhecidos,cujorelacionamentoaindaseignorava”(p.153);ele“éonomedaexperiênciaemocional,aexperiênciaemocionaldasensaçãodedescobertadecoerência.Suasignificaçãoé,porconseguinte,epistemológicaenãoseacreditaquesejalógicaacor-relaçãodosfatosselecionados”(Bion,1962,p.91).

Esteprocessovaimedandoumadireção,umapossibilidadededizeralgoaopacien-te,“criando”uminterlocutorparamimnaquelaanálise;paraisto,dependodehaverumadivisãonopacientequepossibilitequeelevejaoqueestásepassando.

Osetting écondiçãoparaotrabalhoanalítico,masnãoseusubstituto.Podeserpro-postocomooterrenoondeocorremtodasasmodalidadesdetransformações (Bion,1965).Éapreservaçãodométodoanalíticoou,dizendodeoutraforma,éapresençadaminhacapacidadedepensarqueafastaaameaçadedispersãoeconfusãobabeliananapsicanálise,respeitandoadiversidadepsíquicaeculturaldaraçahumana.

Háumprovérbiolatinoquediz:

Oqueérígidodesabaeoqueestáemconstantemovimentopersiste.

Page 9: É preciso ser psicanalista. É preciso? - Periódicos ...pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v44n2/a07.pdf · antes. “Exquisito ... técnica; e ocasionam que um curso de ação ... É preciso

Éprecisoserpsicanalista.Épreciso?JulioFrochtengarten 53

¿Es necessario ser psicoanalista? ¿Es esto preciso?

Resumen: Invitado a participar de la Mesa redonda titulada: Violaciones del Setting, el autor restablece la concepción original de ese concepto. En seguida, lo desmiembra en algunas dimensiones: los aspectos formales relacionados a las condiciones externas donde el psicoanálisis tiene lugar; los aspectos vinculados en el psiquismo del analista que tiene el método psicoanalítico incorporado. Privilegiando esa segunda dimensión, se destacan aspectos relacionados a la actualidad de la práctica clínica y su relación con el método analítico. El autor investiga la idea de violación desde algunos fragmentos de la rutina analítica.Palabras clave: setting analítico; método analítico.

We must be psychoanalysts. Is that exact?

Abstract:The author, invited to participate in a roundtable discussion entitled Violations of the Setting, returns to the original concept of this term in psychoanalysis, in order to then dissect it into its different dimensions: the formal aspects related to the external conditions whereby psychoanalysis occurs; the aspects related to the psyche of the psychoanalyst who has incorporated the analytic method unto himself. Due to the special attention given to this second dimension, aspects related to the currency of clinical practice are highlighted, along with its relation with the analytic method. The idea of violation is examined through the consideration of some fragments of daily analytic practice. Keywords: psychoanalytic setting; psychoanalytic method.

Referências

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[Recebidoem29.4.2010,aceitoem28.5.2010]

JulioFrochtengarten[SociedadeBrasileiradePsicanálisedeSãoPaulo]RuaJanuárioMiraglia,99–VilanovaConceição04507-020SãoPaulo,SPTel:[email protected]