bobbio - ideologias e poder em crise
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Norberto Bobbio
As ideologias e o poderem crise
4edio
Traduo
Joo Ferreira
Reviso tcnica
Gilson Cesar Cardoso
EDITORA
UnB
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7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise
6/240
Direitos exclusivos para esta edio:EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASLIASCS Q. 02 Bloco C N 78 Ed. OK 2 andar70300-500 Braslia DFFax:(061)225-5611
Copyright 1982 byCasa Editrice Le Monnier-Firenzi
Ttulo original: Ideologie e il potere in crisi
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao poderser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizaopor escrito da Editora.
Impresso no BrasilIMPRENSA OFICIAL
EDITORAOEWANDRO MAGALHES JNIOR E REGINA COELI ANDRADE MARQUES
REVISOFTIMA REJANE DE MENESES E WILMA GONALVES ROSAS SALTARELLI
CAPACRISTINA GOMIDE (FORMATOS DESIGN E INFORMTICA)
ISBN: 85-230-0262-6
Ficha catalogrfica elaborada pelaBiblioteca Central da Universidade de Braslia
Bobbio, NorbertoC 392 As ideologias e o poder em crise / Norberto
Bobbio: traduo de Joo Ferreira; reviso tcnicaGilson Csar Cardoso. - Braslia : EditoraUniversidade de Braslia. 4a edio, 1999.
240 p.
340.11Ttulo original: Ideologie e il potere in crisi.301.152.4 32
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Sumrio
Nota preliminar
PRIMEIRA PARTEPLURALISMO
O que o pluralismo?
Entendemos a mesma coisa?
Karl Marx era pluralista?
Nem tudo que reluz ouro
SEGUNDA PARTEO QUE O SOCIALISMO?
Mais igualdade
Mais iguais ou mais livres?
Existe consenso e consenso
H dissenso e dissenso
O barrete de Lenin
Lenin era marxista?
Mas que tipo de socialismo?
Uma sociedade jamais vista?
A Unio Sovitica um pas socialista?
Os parentes difceis
O intelectual desobediente
As liberdades so solidrias
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TERCEIRA PARTEOS FINS E OS MEIOS
Se a lei ceder
A lgica da guerraFria destrutiva
Os fins justificam os meios?
Os homens como coisas
Dois cdigos diferentes mas necessrios
A poltica no pode absolver o crime
A conscincia moral perante a violncia
O brao armado da tiraniaO pacto dos violentos
QUARTA PARTEEXISTE A TERCEIRA VIA?
A terceira via no existe
A via democrtica
A via e a meta
Quem deixa a via velha
A via intermediria
Um aplogo
Vida difcil para a "terceira fora"
QUINTA PARTEO MAU GOVERNO
O dever de sermos pessimistas
A lio da histria
A Constituio no tem culpa
Partidos ou faces?
preciso governar
Quem governa?
Os meandros do poder
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O poder invisvel
Um sistema descentralizado
APNDICETRS PERSONAGENS DA "ITLIA CIVIL"
Salvatorelli: o educador antifascista
Bauer: a f na democracia
Jemolo: um mestre
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Nota preliminar
Devo ao meu amigo Giovanni Spadolini a idia de reunir num
volume da coletnea Quaderni di Storia, por ele dirigida, os artigos
que publiquei em La Stampae Avanti!nos ltimos quatro anos. Devo
ao diretor de ento, Arrigo Levi, e ao inesquecvel amigo Cario
Casalegno o fato de ter-me decidido a aceitar o convite de colaborar
periodicamente num jornal.
H trinta anos no escrevia regularmente num jornal, desde
os tempos de Giustizia e Libert, jornal esse dirigido por Franco
Venturi e que circulou por alguns meses em Turim, logo aps a
Libertao. O motivo deste retorno foi o debate que mantive com
alguns intelectuais comunistas sobre o pluralismo: Aldo Tortorella,
Nicola Badaloni e Biagio De Giovanni, no Festival Nacional da Unit
em Npoles, em setembro de 1976.
O diretor de La Stampa mandou a Npoles Gaetano
Scardocchia e publicou, assinado por este, um artigo intitulado
"Trs perguntas de Bobbio ao PCI" (17 de setembro de 1976). O
artigo atravs do qual se iniciou minha colaborao no jornal (e
tambm o primeiro desta coletnea) e que foi publicado com um ttulo
um pouco didasclico "O que o pluralismo" continha a
essncia desse debate. Enviado pelo diretor do jornal a eminentes
polticos de diversos partidos, intervieram, para esclarecer suas
respectivas posies, Antonio Giolitti, Ingrao, Ugo La Malfa, Zanone e
Zaccagnini. Em seguida, o debate se estendeu a outros jornais com
artigos de filsofos, historiadores, socilogos e cientistas polticos,
como Cerroni, Farneti, Ferrarotti, Fisichella, Galasso, Lucio
Lombardo Radice, Alessandro Passerin d'Entrves, Spriano e Tullio
Altan. Respondi com outros artigos sobre o tema: juntamente com o
primeiro, representavam a nova proeza de minha carreira de
jornalista e constituem agora a primeira parte desta coletnea.
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Terminado (mas no esgotado) o debate sobre o pluralismo, o
curso dos acontecimentos no deixou de oferecer-me outras
oportunidades para dialogar ou induzir o diretor do jornal a dialogar
comigo. Escrevi, por este motivo, outros artigos. Ao recolh-los,
percebi que poderia dividi-los em quatro temas principais (sem contar
o pluralismo que vai guisa de introduo): o socialismo e suas
relaes com o inimigo-irmo (umas vezes mais irmo, outras mais
inimigo, de acordo com as circunstncias), o comunismo; a violncia
e o problema, a esta estreitamente associado, da relao entre
Estado e fora e entre moral e poltica; a terceira via, que no deve ser
confundida com a terceira fora; e a crise das instituies. Intitulei as
diversas partes: 1. O que o socialismo?2. Os fins e os meios. 3. Existe
a terceira via?4. O mau governo.
A conselho do diretor da coletnea, so publicados em apndice
trs retratos de personagens que nos so caros como representantes
daquela Itlia ideal, a "sua" Itlia da razo e a "minha" Itlia civil, a
que ficamos fiis na lembrana e firmes na esperana.
Reconheo que a republicao de artigos de jornal um ato
discutvel. Tenho uma nica atenuante: quase sempre me esforcei
por ligar o problema quotidiano a um tema geral ou de filosofia
poltica ou de cincia poltica, duas disciplinas a que dediquei boa
parte de meus estudos e de minhas prelees universitrias.
Em resumo, quase sempre busquei em minhas intervenes
uma oportunidade para tentar aproximar o leitor comum de alguns
problemas fundamentais da poltica; de forma particular, dos
grandes temas das ideologias polticas e da organizao do Estado.
A princpio encontram-se os artigos sobre liberdade e igualdade
e suas inter-relaes, e tambm os que dizem respeito distino
entre socialismo e comunismo; posteriormente, os que se referem
relao entre Estado e fora, entre Estado e violncia, entre Estado e
guerra, assim como governabilidade das sociedades complexas e s
caractersticas especficas da crise italiana. Por uns e por outros
perpassa o tema da relao entre moral e poltica. Todos, enfim,
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giram em torno de um problema central, que a democracia:
pluralismo e democracia, socialismo (ou comunismo) e democracia,
violncia e democracia, terceira via e democracia, bom governo (ou
mau governo) e democracia. Na verdade, so variaes sobre um
mesmo tema, que a atormentada democracia italiana, frgil, mas,
apesar de tudo, viva.
No preciso lembrar que os anos em que apareceram estes
artigos, de fins de 1976 a fins de 1980, so anos de permanente e
sucessivo agravamento da instabilidade poltica. Em julho de 1976,
teve incio a stima legislatura, que durou apenas trs anos, foi
sucedida pela oitava, com os dois governos de Cossiga, seguidos do
breve governo de Forlani. Essa fase se caracteriza pela tentativa
abortada dos governos de coligao nacional e do retorno s velhas
coligaes, assim como pela mais temerria e clamorosa ao
terrorista, na qual se destaca o assassinato de Aldo Moro em 9 de
maio de 1978.
Retomando o ttulo de um livro de Julien Benda, publicado logo
aps a Libertao, poderia definir nosso estado de coisas como uma
"democracia posta prova". esta prova difcil, incerta e no-
resolvida que me fez falar num dos artigos no "dever de ser
pessimista". Desejaria, por agora, acrescentar apenas que tal dever
no exclui o desejo e a esperana de que a prova seja superada.
Setembro de 1981 Norberto Bobbio
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O que o pluralismo?
candente a discusso em torno do pluralismo. Trinta anos
atrs ramos todos democratas. Hoje somos todos pluralistas. Mas
estaremos certos de saber o que se entende por pluralismo?
O termo novo, mas o conceito no. Que uma sociedade tanto
melhor governada quanto mais repartido for o poder e mais
numerosos forem os centros de poder que controlam os rgos do
poder central uma idia que se encontra em toda a histria dopensamento poltico. Uma das formas tradicionais para distinguir um
governo desptico de um governo no-desptico observar a maior ou
menor presena dos chamados corpos intermedirios e, mais
precisamente, a maior ou menor distribuio do poder territorial e
funcional entre governantes e governados. A alta concentrao de
poder que no tolera a formao de poderes secundrios e
interpostos entre o poder central e o indivduo, e que anula toda aoposio ao arbtrio do governante, caracteriza essencialmente todo
governo desptico.
Neste critrio baseava-se a distino que Maquiavel fazia entre o
reino turco e o reino da Frana. Enquanto a monarquia turca "
governada por um senhor, com os outros como servos", o rei da
Frana "est no meio de uma multido antiga de senhores
reconhecidos e amados no pas por seus sditos, que o rei no pode
eliminar sem correr riscos".
A Montesquieu se deve, como sabemos, a anlise mais ampla e
profunda do despotismo, o qual se distingue dos governos no-
despticos pela ausncia dos corpos intermedirios: "O governo
monrquico tem uma grande vantagem sobre o governo desptico.
J que sua natureza requer que o Prncipe tenha subordinadas a ele
vrias ordens conexas com a Constituio, o Estado fica mais firme,
a Constituio menos abalvel e a pessoa dos governantes mais
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segura".
Hegel, aplaudido ou censurado como o terico do Estado total,
e sob influncia direta de Montesquieu, retoma muitas vezes o
conceito da pluralidade das "esferas particulares" que Se
desenvolvem nas sociedades mais avanadas como nica garantia
contra o poder absoluto do monarca, mais uma Vez como critrio de
distino entre governo livre e governo desptico. A mais antiga forma
de domnio, que , segundo uma tradio secular, o despotismo
oriental, caracteriza-se pela "totalidade da vida estatal... ainda
involuda, uma vez que suas esferas particulares ainda no
alcanaram autonomia prpria". A forma mais moderna de domnio,
que pra Hegel como para a maior parte dos filsofos da restaurao
ainda a monarquia constitucional, caracteriza-se por um poder de
natureza tal que "fora dele as diversas esferas devem ter sua prpria
autonomia".
Quando hoje se fala de pluralismo ou de concepo pluralista
da sociedade, ou coisa semelhante, entendem-se mais ou menos
claramente essas trs coisas. Antes de tudo, uma constatao de
fato: nossas sociedades so sociedades complexas. Nelas se formaram
esferas particulares relativamente autnomas, desde os sindicatos at
os partidos, desde os grupos organizados at os grupos no-
organizados, etc. Em segundo lugar, uma preferncia: o melhor modo
para organizar uma sociedade desse tipo fazer com que o sistema
poltico permita aos vrios grupos ou camadas sociais que se
expressem politicamente, participem, direta ou indiretamente, na
formao da vontade coletiva. Em terceiro lugar, uma refutao:
uma sociedade poltica assim constituda a anttese de toda forma
de despotismo, em particular daquela verso moderna do despotismo
a que se costuma chamar totalitarismo.
No que toca, porm, teoria tradicional dos corpos inter-
medirios, o pluralismo contemporneo exprime uma tendncia no
somente antidesptica, mas tambm antiestatal, entendido o Estado,
todo Estado, como um momento necessrio mas no exclusivo da
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evoluo histrica. Comum a todas as correntes pluralistas existe
uma forte polmica contra o Estado moderno, ou seja, contra o
Estado que aps a dissoluo da sociedade feudal e a decomposio
da autoridade imperial foi-se formando com base na necessidade de
um poder forte para se opor aos mpetos destrutivos que provm
contemporaneamente da sociedade religiosa e da sociedade civil,
ameaando a paz social que s o Estado pode garantir na guerra de
todos contra todos.
Com as teorias pluralistas da sociedade e do Estado acontece
uma autntica inverso na interpretao do desenvolvimento
histrico: enquanto da sociedade medieval at o grande Leviatobserva-se um processo de concentrao do poder, de estatizao da
sociedade, com o advento da sociedade industrial est acontecendo
um processo inverso, com fragmentao do poder central, exploso
da sociedade civil e posterior socializao do Estado.
So trs as correntes que se autodefiniram como pluralistas e
das quais convm partir para evitar a confuso das lnguas, to
freqente nas discusses polticas. As trs nascem no seio dos trs
mais importantes sistemas ideolgicos do nosso tempo: o socialismo,
o cristianismo social e o liberalismo democrtico, que correspondem,
grosso modo, s trs culturas de que tanto se fala hoje em dia.
O socialismo que se autodefine como pluralista o do ingls
Hobson, de Cole, do jovem Laski, conhecido principalmente como
guild-socialism, ou socialismo sindicalista, que tem uma de suas
matrizes no socialismo autonomista e libertrio de Proudhon. Num
ensaio de 1941, Cole escreve: "A democracia real que existe na Gr-
Bretanha deve ser procurada no no Parlamento, nem nas
instituies do governo local, mas nos grupos menores, formais e
informais... nessas comunidades, na capacidade de se formarem
rapidamente sob a presso das necessidades imediatas, que reside o
verdadeiro esprito da democracia". Segue-se da que a
descentralizao territorial de onde deriva a distino entre governo
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central e governo local deve ser complementada pela descentralizao
funcional, atravs da qual o indivduo protegido no mais como
mero cidado, mas como produtor e consumidor.
O pluralismo da doutrina crist-social est bem definido no
Cdice di Malines, onde se l que "a vida humana se desdobra num
certo nmero de sociedades", as quais so, alm do Estado que
constitui a sociedade poltica , a famlia, as associaes
profissionais e de qualquer outra natureza, a Igreja e a sociedade
internacional. A multiplicidade das sociedades naturais e no-
naturais aduzida como uma prova contra as duas falsas doutrinas
opostas entre si: o individualismo que deifica o indivduo e o
coletivismo que deifica o Estado.
A forma como essa concepo foi acolhida no art. 2 da
Constituio italiana, segundo o qual a Repblica reconhece e garante
os direitos inviolveis do homem enquanto indivduo e enquanto
membro das formaes sociais onde sua personalidade se
desenvolve, bem conhecida. Foi por ocasio do debate deste artigo
na Assemblia Constituinte que os jovens doutores da democracia
crist, La Pira e Dossetti, falaram oficialmente, pela primeira vez, em
pluralismo, e Dossetti, referindo-se ao "pluralismo social",
acrescentou que "deveria ser agradvel s correntes progressistas
aqui representadas".
Enfim, o pluralismo liberal-democrtico , nem mais nem
menos, a ideologia mais representativa da sociedade norte-
americana, apesar de contestado muitas vezes naquele pas. Um dos
mais autorizados cientistas polticos americanos, Robert Dahl,
entende que a Constituio americana se inspirou nestes trs
princpios: a autoridade limitada, a autoridade equilibrada e o
pluralismo poltico. Em seguida, define este ltimo: "Uma vez que os
prprios mecanismos jurdicos e constitucionais podem ser
subvertidos quando alguns cidados ou grupos de cidados ganham
parcelas desproporcionadas de poder em relao a outros cidados, o
poder potencial de um grupo deve ser controlado pelo poder potencial
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de outro grupo". E enuncia-lhe o princpio fundamental com estas
palavras: "Em lugar de um centro singular de poder soberano, devem
existir muitos centros, mas nenhum deles deve ou pode ser
inteiramente soberano. Na perspectiva do pluralismo norte-
americano, o nico soberano legtimo o povo, mas o povo no deve
nunca ser um soberano absoluto... A teoria e a prtica do pluralismo
norte-americano tendem a afirmar que a existncia de uma
multiplicidade de centros de poder, sem que nenhum deles seja
inteiramente soberano, ajuda a controlar o poder e a assegurar o
consentimento de todos para a soluo pacfica dos conflitos".
Como se v, h pluralismo e pluralismo. Frente a essa
pluralidade de pluralismos, a pergunta inicial: "Estaremos certos de
saber o que se entende por pluralismo?" pode ser reformulada deste
modo: "Estamos certos de que, falando de pluralismo, entendemos a
mesma coisa?".
21 de setembro de 1976
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Entendemos a mesma coisa?
H pluralismo e pluralismo. Como todas as palavras da
linguagem poltica, tambm "pluralismo" uma hidra de muitas
cabeas. As vrias formas de pluralismo, respeitando a base comum
que a valorizao dos grupos sociais que integram o indivduo e
desintegram o Estado , podem ser identificadas com base em dois
critrios.
Antes de tudo, existe um pluralismo arcaizante e outro
modernizante. A polmica contra o Estado-Leviat pode ser mantida
com o olhar voltado para o passado ou para o futuro. Olhando o
passado, descobrimos a pequena comunidade, a corporao dos
artesos, o ncleo familiar ainda estreitamente agregado, numa
palavra, o particularismo. Olhando o futuro, descobrimos a fora
brotando de novas formaes sociais produzidas pela sociedade
industrial, a vitalidade perene da sociedade civil que tende a absorver
a sociedade poltica.
Nem sempre fcil separar, em cada corrente pluralista, a
nostalgia pelo passado da projeo para o futuro, a reproduo do
antigo da formulao do novo, at porque a histria,
independentemente do que pensam seus atores-expectadores, avana
no por vias retas, mas em serpentina, como na subida das estradas,
onde para avanar preciso, em certos trechos, caminhar em sentido
oposto. Descobrimos o bairro, mas na realidade estamos descobrindo
a vizinhana. Queremos destruir o universo concentracionista das
grandes cidades e achamos o burgo. Queremos romper o domnio
inteiramente avassalador do poder pblico e camos na "selvageria"
dos poderes privados, naquela privatizao do pblico de que falou
recentemente Pizzorno.
Da mesma forma, se estes dois aspectos do pluralismo so
freqentemente inseparveis, tambm so, por outro lado,
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perfeitamente distinguveis. O critrio de diferenciao deve ser
buscado, mais uma vez, na oposio existente entre uma concepo
catastrfica da histria, que em cada etapa vive dramaticamente o
contraste entre a necessidade e a impossibilidade do retorno, e uma
concepo pragmtica, que considera a histria como um processo em
contnuo desenvolvimento mediante a insero do novo no velho.
Essa diferenciao entre o retorno puro e simples e a laboriosa e
fecunda recuperao divide cada uma das grandes correntes
ideolgicas do nosso tempo. Constant distinguia a liberdade dos
antigos da liberdade dos modernos. O prprio Marx distinguia o
socialismo reacionrio do socialismo crtico e revolucionrio. Nada de
estranho, por conseguinte, na oposio que existe, no seio das
correntes pluralistas, entre um pluralismo reacionrio e antigo e um
pluralismo crtico e moderno.
O segundo critrio de distino entre os vrios pluralismos de
natureza estrutural. Baseia-se na forma de conceber a estrutura da
sociedade, interpretada ou projetada antes como um multiverso do
que como um universo. Confrontando as diversas doutrinas
pluralistas, achamos a distino entre os dois modelos tradicionais
do sistema social, o modelo orgnico e o modelo mecnico. Existe
um pluralismo organicista e funcionalista, de um lado, e um
pluralismo mecanicista e conflitualista, do outro. Enquanto
pluralismos, os dois partem da constatao ou da exigncia da
sociedade desarticulada, mas a articulao feita de maneira
diferente.
O primeiro concebe os vrios entes dispostos num sistema
hierrquico e finalstico. Cada parte tem sua colocao no todo a
partir da funo que nele desenvolve com base numa ordem e num
grau. O segundo os concebe na relao de conflito que existe entre
eles e considera o todo como o resultado jamais definitivo de um
equilbrio de foras que se cindem e se recompem continuamente. No
primeiro caso, a ordem social , por assim dizer, preestabelecida. o
caso do organismo humano, onde cada rgo executa a funo que
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lhe prpria sem poder assumir outra, sob pena de destruir o todo de
que faz parte. No segundo, a ordem social o efeito do movimento
interno dos corpos que o compem e o renovam continuamente. O
primeiro modelo mais esttico, o segundo, mais dinmico.
O pluralismo da doutrina crist-social , pelo menos na origem,
do primeiro tipo; o pluralismo liberal-democrtico, do segundo. La
Pira, que defendeu na Constituinte os direitos dos grupos primrios,
particularmente os da famlia, comenta: "O ideal a ser proposto numa
sociedade pluralista precisamente este ideal orgnico onde cada
homem tenha uma funo e um lugar no corpo social, funo e lugar
que deveriam ser definidos pelo assim chamado estado profissional
que fixa a posio de todos no corpo social".
Por outro lado, se remontarmos a uma das matrizes da
ideologia pluralista norte-americana a teoria dos grupos elaborada
por Bentley no princpio do sculo, sem falarmos no mito do
associacionismo americano derivado de Tocqueville , descobriremos
que a sociedade americana interpretada como um viveiro de grupos
sociais interpenetrados que permitem a manifestao dos diversos
interesses e cujo antagonismo regulado pelo grupo universal, o
grupo em rigoroso sentido poltico, cujo objetivo principal no
permitir a alterao das regras do jogo.
A utilidade dessas distines est em permitir traar as linhas
divisrias no universo dos pluralismos e fazer compreender a razo
pela qual em cada forma de pluralismo podem verificar-se juzos de
valor contrastantes. Os conceitos polticos so no s descritivamente
ambguos, mas tambm emotivamente polivalentes.
Pluralismo evoca positivamente um estado de coisas no qual
no existe um poder monoltico e no qual, pelo contrrio, havendo
muitos centros de poder bem distribudos territorial e
funcionalmente, o indivduo tem a mxima possibilidade de participar
na formao das deliberaes que lhe dizem respeito, o que a
quintessncia da democracia. Negativamente, d a imagem de um
estado de coisas caracterizado, de um lado, pela falta de um
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verdadeiro centro de poder e, de outro, pela existncia de inmeros
centros de poder continuamente em luta entre si e o poder central, ou
seja, pela prevalncia dos interesses particulares, setoriais e grupais
sobre o interesse geral, das tendncias centrfugas sobre as
centrpetas, pela fragmentao do corpo social em vez de sua
benfica desarticulao.
Pluralismo ou particularismo? Pluralismo ou neofeudalismo?
Pluralismo ou corporativismo? Sociedade pluralista ou sociedade
policrtica? S para dar um exemplo que nos toca de perto, o que foi
e o que hoje a polmica contra a "partidocracia" seno a
interpretao da nossa sociedade como sociedade policrtica e no
como sociedade pluralista?
Comecei esta exposio sobre o pluralismo dizendo: "Hoje todos
somos pluralistas". Diz-se pluralista e apresenta-se como corifeu
do pluralismo um partido como o partido comunista, que, se fosse
examinado quer em sua matriz cultural, quer no que so e como
agem os partidos comunistas que esto no poder, deveria ser
colocado no plo oposto de uma concepo pluralista da sociedade e
da histria. No mistrio para ningum que a temtica pluralista foi
posta em circulao tanto pelas correntes leigas que defendem um
pluralismo antagnico quanto pelas correntes catlicas que
defendem um pluralismo orgnico, com objetivos anticomunistas e
particularmente anti-soviticos. Por outro lado, quem conhece um
pouco da histria das doutrinas pluralistas sabe bem que elas se
formaram fora do raio de influncia do marxismo em suas vrias
espcies e subespcies. uma questo de entendimento, portanto.
Foi com este objetivo de entendimento que me pareceu que a primeira
coisa a fazer era explorar com ateno o territrio que no mapa da
teoria geral da poltica aparece com o nome de pluralismo.
Dessa primeira e sumria explorao apareceu um territrio
com fronteiras ainda indefinidas, acidentado, de clima inconstante,
onde se alternam florestas misteriosas e terrenos cultivados e, o que
mais grave, disputado por grupos rivais que se atribuem o domnio
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exclusivo sobre ele. Voltando, pois, pergunta com que
terminamos o primeiro artigo: "No, no estou inteiramente certo
de que entendemos a mesma coisa quando falamos de pluralismo".
22 de setembro de 1976
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um "ismo" no pode ser corrigido ou revisto seno atravs da
contraposio de outro "ismo". Para aqueles que por sua vez consideram
Marx como um cientista, a reviso ou o resultado de sua pesquisa um
fato natural, no-catastrfico; a cincia procede atravs de contnuas
revises sem nunca dar lugar oposio frontal entre ortodoxos e
revisionistas. Pelo contrrio, aquele que rev considerado um benemrito
e no um traidor.
No que se refere relao entre pluralismo e teoria (e prtica) dos
partidos comunistas, sei que nos ltimos anos, no mbito da cincia
poltica norte-americana, foram feitas algumas tentativas de interpretao
pluralista do novo curso do Estado sovitico, conforme podemos ler nos
artigos contidos no fascculo do outono de 1975 dos Studies in
Comparative Communism. Tambm no ignoro que o maior inqurito-
anlise sobre a Unio Sovitica do perodo stalinista, escrito por ocidentais
e traduzido para o italiano em 1950, era uma tentativa, para dizer a
verdade, temerria, de apresentar a sociedade sovitica como uma
"democracia multiforme" ou como "um novo tipo de organizao social, na
qual os prprios indivduos que dela fazem parte, na sua trplice
qualidade de cidados, produtores e consumidores, se unem para
conseguir uma vida melhor".1
Mas o contraste fundamental, independentemente das palavras
usadas, entre os sistemas polticos dos pases comunistas e dos pases de
democracia representativa, mediante a interpretao da qual foi forjada a
categoria do pluralismo, permanece. No obstante os esforos dos atuais
liberaisnorte-americanos e dos dois ilustres fabianos de quarenta anos
atrs, so os mesmos escritores e polticos soviticos que considerariam a
interpretao pluralista do seu sistema como um disfarce, seno uma
aberrao.
(1) Refiro-me a O comunismo sovitico: uma nova civilizao, de Beatriz e SidneyWebb, II, p. 708. (N. A.)
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O partido socialista do tempo da "fuso" deu muitos e talvez at
demasiados saltos, mas ningum o crucifica por isso.
O tema da relao entre pluralismo e compromisso histrico foi
o assunto principal da interveno de Antonio Giolitti.4 O problema
pode ser colocado atravs da pergunta: o compromisso histrico
uma proposta poltica pluralista? J tive ocasio de dizer em vrias
oportunidades que o compromisso histrico, se destinado a ser
verdadeiramente histrico, terminaria por bloquear o
desenvolvimento de uma sociedade pluralista, e que, portanto, ele
sugerido pela preocupao frente ao aparecimento dos elementos
negativos do pluralismo mais que pelos elementos positivos.
La Malfa de opinio diferente, assim como Ingrao. Contrrios,
alm de Giolitti, so Orlandi e Zanone. Giolitti acha que no se deve
correr o risco da falta de alternativas, porque sem alternativa e sem a
possibilidade de uma oposio capaz de substituir pacificamente o
governo em exerccio "teramos um pluralismo social preso a um
totalitarismo poltico". Esse argumento me parece difcil de refutar.
No me oponho, observe-se, a que algum venha me dizer que
numa sociedade que apresenta sintomas de desagregao, como a
italiana, insistir no desenvolvimento do pluralismo, em vez de sua
momentnea suspenso, um erro. Parece-me, pelo contrrio, pouco
convincente que se agite a bandeira do pluralismo para fazer uma
poltica que, com toda a sua boa vontade em no fazer polmica por
polmica, no se pode considerar seno antipluralista em todos os
sentidos at agora descritos deste to maltratado termo. No Festival
de Npoles foi-me objetado: "O fato de que ns, os comunistas, no
s no rejeitamos mas procuramos a aliana com outros a prova de
que no somos exclusivistas, que somos pluralistas". Respondo: a
prova do pluralismo no nunca a formao de um novo bloco
histrico, mas, como notou d'Entrves, a liberdade do dissenso, ou
seja, a condio reservada queles que no fazem parte do bloco.
(4) "Pluralismo e compromisso", 12 de outubro.
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O ltimo tema pluralismo e futura sociedade socialista
aquele sobre o qual, se devesse ater-me s intervenes, nada teria a
dizer. La Malfa colocou em forma de pergunta este tema, mas
ningum o colocou em forma de resposta. A razo pela qual no foi
dada uma resposta clara a essa pergunta est no fato de uma
sociedade ao mesmo tempo socialista e democrtica ainda no ter
sido vista at hoje por ningum. Uma sociedade que seja ao mesmo
tempo socialista e democrtica pertence categoria dos eventos
desejveis. Mas nem todos os eventos desejveis so possveis.
Assim como o pluralismo comeou, nos tempos atuais, por
fazer parte do nosso conceito de democracia, sabemos tambm que
uma sociedade socialista, para ser democrtica, ter de ser
pluralista. Mas ainda no sabemos como.
Para definir a democracia so necessrias duas negaes: a
negao do poder autocrtico, em que consiste a participao, e a
negao do poder monocrtico, em que consiste o pluralismo. Pode-se
pensar perfeitamente numa sociedade democrtica no-pluralista,
como a repblica de Rousseau; e existiram sociedades pluralistas
no-democrticas no regime feudal. Uma sociedade socialista, para
ser democrtica, deveria ser no-autocrtica e no-monocrtica. Os
esforos do pensamento socialista e democrtico voltaram-se para o
primeiro objetivo alargamento da participao do poder poltico
estreitamente ligado ao poder econmico e ainda no para o
segundo. Ficaramos satisfeitos se este debate servisse para
identificar um problema, pelo menos.
28 de novembro de 1976
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Nem tudo que reluz ouro
O incio do meu primeiro artigo sobre o assunto que nos ocupa
dizia: " candente a discusso sobre o pluralismo". Posso ter errado
em muitas coisas, mas no nessa constatao. A discusso que se
prolongou durante dois meses em vrios jornais prova disso. No
intervalo foram publicados dois livros que registro para os
interessados e sobre os quais poderemos falar em ocasio oportuna:
Unidade e pluralismo na Igreja5 e O pluralismo no liberalismo e no
socialismo.6O primeiro contm as atas de um seminrio de estudos
realizado em Roma, em maio de 1975, promovido pelo Comit Catlico
dos Professores Universitrios. No segundo, o jovem autor, ltimo
rebento da Escola de Frankfurt, faz do pluralismo, forando um
pouco, uma categoria histrica de longo alcance, considerando-o o
instrumento de anlise mais adequado para compreender a fase de
desenvolvimento da sociedade industrial, que superou o liberalismo e
est destinado a ser superado pelo socialismo.
O debate que se seguiu aos meus dois artigos concentrou-se
principalmente nestes dois pontos: 1. significado do pluralismo; 2.
aspectos positivos e negativos do pluralismo.
A minha descrio de pluralismo foi tida como limitativa
(Passerin d'Entrves) e enganosa (Ingrao). Provavelmente, os meus
crticos no consideraram que eu na verdade no havia pretendido
dar uma definio pessoal de pluralismo, mas me limitara a assumir
este termo em seu significado tcnico, que podia presumir ser
conhecido dos participantes do seminrio mais do que dos leitores de
um jornal.
(5)Unit e pluralismo nella Chiesa, Ed. Ares, Milo, 1976. No volume, GiovanniBognetti traa as linhas da doutrina e da prtica pluralista no Estadocontemporneo, num ensaio intitulado "Pluralismo na sociedade civil" (pp. 23-63).
(6)Rainer Eisfeld. Ilpluralismo fra liberalismo e socialismo, Il Mulino, Bolonha, 1976.
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Na histria do pensamento poltico do ltimo sculo so chamadas
pluralistas certas doutrinas, e outras no; e so chamadas assim
porque tm certas caractersticas e no outras. As doutrinas
pluralistas nascem da descoberta da importncia dos grupos sociais,
outrora chamados "corpos intermedirios", que se interpem entre o
indivduo e o Estado e tendem a considerar bem-organizada a
sociedade em que os grupos sociais gozam de uma certa autonomia
no que diz respeito ao poder central e tm o direito de participar,
mesmo concorrendo entre si, da formao das deliberaes coletivas.
No tenho dificuldade alguma em admitir e nisso estou de
acordo com Ingrao que algumas doutrinas histricas do pluralismo
esto atrasadas em alguns aspectos. Um exemplo desse atraso
encontramos no reconhecimento que Zaccagnini faz a propsito do
pluralismo orgnico dos catlicos. Apesar disso, a exigncia
fundamental de onde provm todas as variantes histricas do
pluralismo, de achar antdotos para a prepotncia do Estado na
oposio dos grupos, no s no foi desvalorizada, mas, exatamente
por aquilo que o prprio Ingrao diz sobre a formao das grandes
concentraes, sempre atual e at, deveria ser dito, cada vez mais
atual. Mas, se algumas formas de pluralismo so atrasadas, no
atrasado o mapa com que as descrevi. Quem escava runas no
ele mesmo uma runa, mas um arquelogo. O nico juzo legtimo
para uma descrio de um mapa como o meu "ser fiel ou no ser
fiel".
Dizendo que pluralismo um termo da linguagem tcnica, no
contesto seu uso cada vez mais freqente na linguagem comum.
Limito-me a advertir que no se pode encher ou esvaziar, a bel-prazer,
o termo de seu significado, como o faz por exemplo Cerroni num artigo
do Paese Sera,7 onde escreve que o pluralismo "alude por vezes ao
mtodo da democracia poltica", o que muito genrico, e, "por
(7) Pluralismo e democrazia socialista, 22 de setembro de 1976.
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vezes, existncia das relaes sociais tpicas do capitalismo", o que
uma distoro, e conclui que nesta segunda acepo "o pluralismo
termina por significar pura e simplesmente individualismo
dominante, liberdade de mercado e at de explorao", o que ao
mesmo tempo genrico e fora de propsito.
Considero um marco da passagem do termo de seu significado
tcnico para um significado mais genrico a citao feita por Ingrao
do art. 3 da Constituio italiana. O artigo que introduziu o
pluralismo no sentido tcnico, como teoria e ideologia dos grupos
sociais, o art. 2, que dispe que o indivduo seja tutelado no s
enquanto indivduo, mas enquanto membro das formaes sociais. O
pluralismo do art. 3 genrico, mas o do art. 2 especfico.
Sobre o pluralismo tambm se pode dizer que nem tudo que
reluz ouro. Eu prprio tenho dito que juntamente com o benefcio
que pode derivar da fragmentao do poder existe o malefcio da
desagregao. Quem reler o segundo artigo8 perceber que sobre o
mapa do pluralismo no tinha colocado uma bandeira, mas apenas
sinais. exceo de Orlandi9 e de Zaccagnini,10 que sabiamente
escrevem "que no preciso nunca acentuar o risco da desagregao
para diminuir ou desvalorizar o perigo da burocratizao
partidria", a maior parte de meus interlocutores pegou mais o
aspecto negativo que o positivo.
Sobre o aspecto negativo se deteve, de forma particular, C.
Tullio Altan.11 Mas houve outros que tambm chamaram a ateno,
como Ugo La Malfa12 e mais fortemente Valerio Zanone.13
(8)"Come intendere il pluralismo". 22 de setembro de 1976.(9)"Il pluralismo negato", 14 de outubro.(10)"Quale pluralismo?", 18 de novembro.(11)"Forze disgreganti nella societ italiana", 6 de outubro.(12)"Pluralismo e socialismo", 9 de outubro.(13)"Il pluralismo si basa sul dissenso", 20 de outubro.
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D'Entrves observou que o pluralismo de hoje, diferentemente do da
sociedade medieval, sempre "criao do Estado porque subsiste
enquanto o Estado... o permite e o tutela". Precisamente: o
pluralismo uma interpretao e tambm um projeto de reforma do
Estado moderno: nunca foi uma negao radical de toda a forma
possvel de Estado.
No Festival de Npoles, depois de ter indicado a tendncia das
nossas sociedades para a multiplicao dos grupos de interesse no
totalmente polticos e econmicos (os pais dos alunos de uma escola
no constituem nem um grupo poltico nem um grupo econmico),
havia dito: "No preciso, alm disso, esconder que esta tendncia
pode representar gravssimos perigos. No existe nenhum processo
linear na histria. Se a histria fosse linear seria menos complicada
do que parece a ns, que a fazemos ou suportamos. O perigo mais
grave o excesso oposto concentrao, a desagregao. Dito de
outra maneira, a reduo do interesse pblico a uma mirade
decomposta e no mais recomponvel de interesses privados. Ou seja:
o temvel ou evocado retorno Idade Mdia, onde em vez de contendas
entre famlias rivais (de resto, numa economia pr-capitalista a famlia
tambm o centro do poder econmico) surgem contendas entre
grupos de interesses opostos, que tornam impossvel a satisfao de
qualquer interesse coletivo".
O pluralismo nasce contra o Estado-totalidade e de fato
renasceu aps os vrios totalitarismos contemporneos; mas no
uma teoria evasiva. Reconhece a importncia dos grupos, das
sociedades parciais que o unitrio Rousseau pregava, mas no
desconhece a importncia decisiva e conclusiva daquele grupo
universal cujos membros so os indivduos enquanto cidados e que
constitui o Estado-sociedade, distinto do Estado-aparelho. Acentua,
por razes polmicas e em dadas circunstncias histricas, o
momento da redistribuio do poder, mas no recusa o da
reagregao. Convida a no esquecer que numa sociedade complexa
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como o Estado moderno, juntamente com o equilbrio entre o
momento da fora e o momento do consenso, nos quais habitualmente
se apiam os tericos da poltica, dever existir tambm um
equilbrio entre o momento da unidade e o da pluralidade. Quem tem
o costume de lidar com textos clssicos sabe que a discusso secular
pr e contra o governo misto se move entre os fautores da unidade e os
fautores da pluralidade do poder.
Constato, entretanto, que no foi retomada a referncia que fiz
sociedade policrtica, ou seja, ao aspecto negativo do pluralismo
que consiste no na impotncia do Estado, mas na prepotncia do
grupo sobre o indivduo. O pluralismo sempre foi bifrontal: uma face
voltada contra o estatismo totalizante e outra contra o individualismo
atomizante. Se, do ponto de vista do Estado, a acusao que pode
ser levantada contra o pluralismo a de enfraquecer a
compatibilidade e diminuir a fora unificante e necessria, do
ponto de vista do indivduo o perigo consiste na tendncia natural de
cada grupo de interesse endurecer suas estruturas medida que
cresce o nmero dos membros e se amplia o raio de ao, da
mesma forma que o indivduo que cr ter-se libertado do Estado-
patro torna-se escravo de muitos patres.
Valha a considerao de que, nas nossas sociedades
caracterizadas por grupos e organizaes sociais de grandes
dimenses, a reivindicao dos tradicionais direitos de liberdade,
como a liberdade de pensamento, de opinio, de reunio e at de
liberdade poltica, entendida como direito de participar da formao
da vontade coletiva, vai-se desviando do terreno tradicional do
Estado-aparelho para o das grandes organizaes que cresceram
dentro ou alm do Estado, como as empresas. O art. 1 do Estatuto
dos Trabalhadores Italianos, que proclama o direito de os
trabalhadores manifestarem livremente o prprio pensamento nos
locais de trabalho, demonstra que a liberdade do indivduo no se
defende apenas contrao Estado mas tambm dentroda sociedade, e
que, onde quer que se constitua um poder, este mostrar cedo ou
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tarde seu vulto "demonaco".
1 de dezembro de 1976
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SEGUNDA PARTE
O que o socialismo?
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Mais igualdade
A repercusso que teve e continua a ter o congresso do partido
socialista operrio na Espanha, que viu reunidos alguns dos maiores
lderes histricos e atuais do socialismo europeu entre os quais
Pietro Nenni, smbolo da unidade entre a velha e a nova Espanha ,
uma confirmao da extraordinria vitalidade daqueles ideais e
daquelas foras que se inspiram no socialismo como doutrina ou
concepo de vida e se movem em direo ao socialismo como novo
modelo de sociedade.
Nascido como movimento europeu, o socialismo tornou-se,
repartido em muitas formas, aspectos e perspectivas e nesse
contexto no distingo o socialismo do comunismo , um movimento
extra-europeu, tornando-se, sobretudo no mundo ocidental, o ideal
humano e a proposta poltica em que se espelham os movimentos de
libertao vitoriosos ou vencidos, j no poder ou em luta para
conquist-lo, do Terceiro Mundo. Nos Estados Unidos, o socialismo
inexistente como fenmeno politicamente relevante. Em toda parte,
onde tenham rudo imprios coloniais ou cado governos despticos, os
liberados pedem no apenas democracia, mas democracia com
socialismo. Em um sculo, o socialismo tornou-se, no obstante os
obstculos que teve de superar, a grande ofensiva de todos os
fascismos e de todos os regimes militares e policialescos do mundo,
um movimento universal, agrade a constatao ou no, o nico
movimento verdadeiramente universal desta segunda metade do
sculo XX.
Mas o que o socialismo? Uma pergunta como esta, quando a
palavra est na boca de todos, quando no h discurso poltico que
no acabe pedindo mais socialismo ou menos socialismo, quando
um dos problemas que mais interessam aos idelogos de todos os
grupos polticos se estamos ou no numa fase de transio para o
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socialismo e quais so "os elementos do socialismo" que se podem
introduzir numa sociedade capitalista, etc., pode parecer insolente.
Entretanto, uma pergunta sria, inevitvel e embaraosa.
Quantos so hoje os socialistas no mundo? O socialismo, dizia,
tornou-se um fenmeno universal, mas, ao universalizar-se, perdeu
toda a determinao especfica, tornando-se um imenso genus que
compreende uma mirade de species. Antigamente, quando se
entendia socialismo como doutrina e como sistema de idias
antes do advento de regimes que se autoproclamaram socialistas ,
os doutos divertiam-se em registrar as inumerveis definies de
socialismo: tenho a impresso de que Sombart catalogou duzentas e
sessenta. talvez exagerado afirmar que hoje, depois que o
socialismo passou de doutrina a movimento e regime, existem
duzentos e sessenta movimentos e regimes socialistas. Os partidos
socialistas so em nmero muito maior.
Antes do grande cisma que separou os partidos comunistas dos
socialistas, uma caracterizao satisfatria do socialismo era mais
fcil de encontrar: deixando de lado o debate entre meios e fins, que
sempre existiu at o momento presente, o socialismo podia ser
identificado como o programa poltico do movimento operrio.
Socialismo e movimento operrio cresceram ao mesmo tempo.
Digo que essa definio de socialismo era a mais fcil porque
procurava o elemento especfico numa temtica histrica a classe
operria , que qualquer coisa bem mais concreta que um sistema
de idias. Os dois grandes partidos socialistas do incio do sculo, o
partido trabalhista ingls e a social-democracia alem, eram os
partidos da classe operria, qual fosse o fim prximo e remoto, que
permitia definir imediatamente o socialismo tanto da parte daqueles
que eram contra como da parte daqueles que nele viam um
movimento, uma organizao, um corpo visvel ou um partido; no
precisamente um fim, sempre vago e interpretvel de mil maneiras
diferentes, mas o movimento, se quisermos usar a famosa
distino de Bernstein, embora em sentido diferente.
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Hoje, essa definio atravs do movimento operrio seria
limitativa e fora de propsito. Passaram a fazer parte do movimento
pelo socialismo as massas camponesas dos pases menos
desenvolvidos, muitos grupos de pequeno-burgueses nos pases mais
desenvolvidos, os marginais, os excludos, os sub-proletrios, as
vanguardas estudantis, as pontas avanadas dos movimentos
feministas.
O processo de universalizao do socialismo, de que falei,
depende em grande parte do crescente nmero de camadas, de
grupos sociais e classes que aspiram mais ou menos
conscientemente a uma mudana, a uma grande reforma, a uma
transformao da sociedade, a uma autntica virada do curso da
histria humana, que continua a chamar-se, em sentido eulgico, de
socialismo, no obstante os novos elementos com que se enriqueceu o
velho conceito e o contraste sobre tticas e estratgias que dividem
duramente os "sujeitos histricos", que de quando em vez se
consideram arautos exclusivos do socialismo apesar das diferenas
insuperveis sobre o que deveria servir para distinguir o socialismo
de qualquer outro ideal poltico, isto , sobre o modo de entender a
futura sociedade socialista.
Se algum me perguntasse hoje o que aproxima os vrios
socialismos, no tentaria responder recomeando um interminvel
debate sobre meios e fins. No me arriscaria sobretudo a descrever
uma sociedade que se pudesse chamar, em bom direito, de
socialista. No saberia por onde comear, tendo em vista os milhares
de autores que a ela se referiram. No saberia dizer a que ttulo uma
sociedade mais socialista que outra. A nica resposta que tenho
condies de dar que socialismo, em todas as suas diferentes e
contrastantes encarnaes, significa, antes de tudo, uma coisa: mais
igualdade.
Parece uma resposta um pouco pobre. Apesar de tudo, uma
das poucas coisas que apreendi da histria e da meditao atravs
dos livros com homens de todos os tempos que uma das maiores
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linhas de diviso entre os homens, em sua atitude para com seus
semelhantes, a que ocorre entre igualitrios e no-igualitrios, ou
seja, entre os que crem que os homens so iguais entre si, apesar
das diferenas, e os que crem que so desiguais, apesar das
semelhanas; ou ainda entre os que acham injustas as
desigualdades sociais porque os homens so mais iguais que
desiguais e os que pensam que todo o processo de encurtamento
das distncias entre classes e categorias no se justifica por serem os
homens mais desiguais que iguais.
Sei que estou simplificando a ponto de parecer uma pessoa que
em vez de cortar um fio de erva em quatro divide o mapa-mndi em
dois hemisfrios. Mas vou propor que se chame liberal aquele que
tende a colocar em evidncia no aquilo que os homens tm em
comum enquanto homens, mas aquilo que tm de diferente enquanto
indivduos. Daqui nasce a freqente reduo do liberalismo ao
individualismo. Proponho tambm que se chame socialista aquele que
tende a evidenciar no o que distingue os homens enquanto
indivduos, mas aquilo que tm em comum enquanto homens.
Daqui nasce o casamento do socialismo, em suas diferentes formas
de igualitarismo, com o solidarismo, com o comunitarismo, o
coletivismo, etc.
De um ponto de vista abstrato, ou seja, prescindindo de um
contexto histrico preciso, um sistema de idias vale o outro:
factualmente verdade que os homens so iguais, por exemplo,
frente morte, como tambm so diferentes em relao forma como
morrem, razo pela qual se verdade que todos os homens morrem,
tambm verdade que morrem de maneiras diferentes. Num
determinado contexto histrico, porm, onde existam dominadores e
dominados, opressores e oprimidos, exploradores e explorados, os
dois sistemas de idias no so mais indiferentes e equivalentes. A
ideologia daqueles que esto no poder geralmente no-igualitria,
enquanto a dos que servem geralmente igualitria.
Ao dizer "mais igualdade" quero dizer tambm mais liberdade.
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E por isso que, pessoalmente, acredito ser o ideal socialista
superior ao ideal liberal. O primeiro engloba o segundo, mas no
vice-versa. Sei que de maneira geral se pensa o contrrio, e embora
neste caso devesse alongar o discurso, tentarei desviar a gua para
meu moinho com dois argumentos.
Primeiro: a doutrina liberal clssica sempre defendeu que a
funo do Estado garantir a cada indivduo no apenas a liberdade,
mas a liberdade igualitria. Com isso deu a entender que um sistema
no pode considerar-se justo onde os indivduos so livres mas no
igualmente livres, mesmo quando entende por igualdade a igualdade
formal ou, nas formas mais avanadas, a igualdade de
oportunidades. Segundo: a maior causa da falta de liberdade
depende da desigualdade de poder, isto , depende do fato de haver
alguns que tm mais poder econmico, poltico e social do que
outros. Portanto, a igualdade do poder uma das maiores condies
para o crescimento da liberdade. Se por um lado no faria sentido
algum dizer que sem liberdade no h igualdade, por outro, perfei-
tamente legtimo dizer que sem igualdade (como reciprocidade de
poder) no h liberdade.
8 de dezembro de 1976
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Mais iguais ou mais livres?
Ao concluir o captulo anterior com alguns destaques imprudentes
reconheo-o sobre as relaes entre a liberdade e a igualdade, sabia
que estava levantando objees e dando margem a incompreenses. As
objees vieram de Luigi Firpo14 e o pedido de explicaes da parte de
Guido Calogero.15
A ttulo de premissa diria que o status e a hierarquia dos valores
ltimos so um terreno no qual no me sinto muito vontade, porque
quase sempre nos perdemos na selva sem sada das disputas
meramente verbais, dando lugar ao vanilquio cheio de fatuidade.
Naquela frase final "Se, por um lado, no faria sentido algum dizer
que sem liberdade no h igualdade, por outro perfeitamente legtimo
dizer que sem igualdade (como reciprocidade de poder) no h liberdade"
, no tive nenhuma inteno de fazer uma afirmao de carter geral
sobre as relaes entre liberdade e igualdade, Quis simplesmente chamar
a ateno para uma propriedade dos dois conceitos que geralmente no
relevada. Se no se pode definir a igualdade pela liberdade, h pelo
menos um caso em que se pode definir a liberdade pela igualdade. Essa
a situao, de resto extremamente importante na casustica da liberdade,
onde por liberdade se entende a eliminao da desigualdade de poder,
ou, por outras palavras, a condio em que todos os membros de uma
sociedade se consideram livresporque tm igualpoder.
Considero extremamente importante essa situao na
casustica da liberdade, porque ela que permite compreender,
melhor que qualquer outra, por que razo a democracia, a forma
de governo em que todos tm ou deveriam ter, em princpio, igual
poder a comear pelo poder poltico e a terminar pelo poder
(14)"Societ di eguali pu essere libera?", in La Stampa, 12 de dezembro de 1976.(15)"Quale socialismo fra i tanti?", in II Corriere della Sera, 28 de dezembro de 1976.
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econmico considerada comumente e justamente como uma
prtica da liberdade. Entre as mil definies que podem ser dadas ou
que foram dadas de democracia, uma das possveis e menos banais
a que a considera uma forma de governo onde todos so livresporque
so iguais. No consigo, por outro lado, imaginar uma forma de
governo que possa ser definida atravs da frmula oposta, ou seja,
onde todos so iguais porque so livres. Evidentemente, ao dizer que
na democracia todos so livres porque so iguais, no me refiro a
uma igualdade genrica que fosse uma caixa vazia (no estilo do
exagero da linguagem poltica) nem tampouco a uma igualdade
universal como ideal inalcanvel. Minha idia visa quela forma
determinada de igualdade que a igualdade do poder, conforme tive
o cuidado de precisar, juntando ao termo "igualdade", entre
parnteses, "como reciprocidade de poder".
Explico-me melhor. Objetivamente, uma das razes atravs
das quais numa sociedade existem pessoas livres e pessoas no-
livres, ou ainda, mais livres e menos livres, a pssima distribuio
do poder. Tem toda a razo Calogero ao dizer que neste debate deve
prevalecer a lgica do mais e do menos sobre a do sim e do no.
Subjetivamente, uma das razes pelas quais eu me considero menos
livre que outras pessoas porque estou convencido de que essas
pessoas tm mais poder que eu, o que significa que podem fazer
coisas que eu no posso fazer e at mandarem que eu faa coisas que
no posso mandar que elas faam. A famosa afirmao de Spinoza,
segundo a qual uma pessoa tem tanto mais direito quanto mais poder
tiver, pode reconverter-se perfeitamente nesta outra: uma pessoa
tem tanto mais liberdade quanto mais poder tiver. No limite
extremo, a liberdade absoluta coincide com o poder absoluto:
absolutamente livre s o onipotente. Podemos colocar o problema
partindo tambm do contrrio da liberdade, ou seja, da sujeio e da
dependncia. No-livre aquele que depende de outro. Isso significa que
existe algum que tem poder sobreele porque tem mais poder do queele,
exatamente porque o poder est mal distribudo.
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Mas o que significa dizer que o poder est mal distribudo seno
afirmar que est distribudo de forma desigual e que, portanto, nem todos
tm poder igual?
Na verdade, de qualquer lado que partirmos para colocar o
problema da liberdade, acabaremos sempre no reconhecimento de que
no possvel estender a liberdade. Isso significa, em outras palavras, que
no podemos passar da liberdade de poucos para a liberdade de muitos,
nem construir uma sociedade mais livre, at no sentido da doutrina
liberal, a no ser atravs de um processo de igualizao do que diferente
e atravs de uma operao que permita sustentar e entender melhor a
afirmao que fiz no captulo anterior, a qual pareceu errada e pouco
clara: quando se diz "mais igualdade" ("como reciprocidade de poder") diz-
se tambm "mais liberdade".
Com esse esclarecimento, que ao mesmo tempo uma delimitao
do mbito do meu discurso, espero ter atendido o pedido que
amigavelmente me foi dirigido por Calogero para que me explicasse melhor,
e tenho a iluso de ter respondido tambm objeo de Firpo, segundo o
qual a afirmao de que "a igualdade contm a liberdade talvez e
apenas um sonho generoso" por ser evidente "que a uniformidade sufoca o
pluralismo das culturas, as infinitas variedades dos modos de existncia,
etc." Firpo teria perfeitamente razo se eu tivesse dito que uma sociedade
de iguais, sem outras especificaes, por isso mesmo uma sociedade de
pessoas livres, se me tivesse perdido na vaguidade de uma nova sociedade
igualitria e depois acrescentasse que essa nova sociedade igualitria ao
mesmo tempo uma sociedade de pessoas livres (um belo exemplo de
sociedade igualitria para mim aquela que se acha descrita na
Conspirao pela igualdade, de Filipe Buonarroti). Na verdade, eu me
limitei a refletir e a fazer refletir sobre a forma especfica de no-liberdade
que consiste numa forma especfica de desigualdade, que a desigualdade
de poder e que, como tal, no pode ser corrigida a no ser atravs de
"maior igualdade".
Para isso devemos ter bem clara na mente a distino entre a
reivindicao desta ou daquela igualdade especfica e o ideal
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igualitrio, ou seja, a distino entre uma reforma igualitria, atravs
da qual passa a via para o socialismo, e o esvaziamento de uma
sociedade igualitria. Para definir o igualitarismo, que aquele tipo
de sociedade que Firpo justamente cita, apesar de eu achar que no
justo confundi-la com a "eterna repblica dos insetos felizes" que
igualitria certamente no , j me servi, em determinada ocasio,
de um expediente que vou passar a expor. Toda vez que se discute
liberdade e igualdade, para evitar o vanilquio a que me referi no
incio, importante colocar o problema de tal maneira que se possa
responder, no que toca liberdade, a estas duas perguntas:
"Liberdade para quem?" e "Liberdade de quem?", e no que toca
igualdade, a estas duas outras: "Igualdade entre quem?" e "Igualdade
a respeito de qu?". Deixando de lado as perguntas respeitantes
liberdade, acho que s perguntas relativas igualdade podem-se dar
pelo menos quatro respostas, na base das quais podem ser
classificadas as vrias teorias: 1. igualdade de todos em alguma
coisa; 2. igualdade de alguns em tudo; 3. igualdade de alguns em
alguma coisa; 4. igualdade de todos em tudo.
Pois bem: a resposta do igualitrio a ltima. O liberal e o
socialista, por sua vez, se encontram na primeira. A diferena entre o
liberal e o socialista est naquele "em alguma coisa". Socialista
aquele que tende a obter a igualdade de todos "em alguma coisa
mais", convencido de que em certos casos pedir mais igualdade, como
no caso da igualdade de poder, significa tambm pedir mais
liberdade. De passagem acrescento que a mesma diferena que existe
entre quem pede uma reforma igualitria e um igualitrio ocorre
entre quem pede uma reforma liberal e um libertrio, o qual poderia
ser definido, usando o mesmo expediente, como aquele que quer a
liberdade de todos em tudo.
Podemos dizer a mesma coisa de outra maneira. Uma reforma
igualitria, como a que estendeu o direito de voto s mulheres, uma
reforma que elimina uma desigualdade precedente, por achar que se
tornou irrelevante o motivo de discriminao que antes era considerado
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relevante: no caso especfico, por exemplo, o desinteresse das mulheres
pela coisa pblica. Uma sociedade igualitria, ao contrrio, uma
sociedade em que todos os possveis critrios de discriminao entre os
homens (melhor seria dizer entre homens e mulheres, j que as sociedades
igualitrias do passado, como a de Babeuf e companheiros, eram,
geralmente, como hoje se diz, machistas) so considerados irrelevantes sem
levar em conta as diferenas relevantes, nem todas eliminveis, que a
natureza criou e tambm as da histria, que elimina as velhas para
criar rapidamente outras novas. Em resumo, aquele que pede reformas
igualitrias de acordo com os tempos e as circunstncias, como o
socialista, baseia-se na histria. Aquele que defende a constituio de
uma sociedade igualitria, em que todas as diferenas so consideradas
irrelevantes no que diz respeito distribuio das vantagens e das
desvantagens, voa pelos cus da utopia.
E os reinos da utopia (um estudioso das utopias como Firpo sabe-o
melhor do que eu), alm de inexeqveis, seriam, se fossem colocados em
execuo, sociedades menos felizes do que seus criadores imaginaram.
Contrariamente aos utopistas de todos os tempos, estamos convencidos
hoje de que as utopias "felizmente" so inexeqveis.
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consenso"), tambm Alberoni caiu, em minha opinio, no excesso oposto
("a democracia fundada no dissenso"). A verdade que a democracia
no se funda apenas no consenso nem tampouco no dissenso, mas sobre
a simultnea presena de consenso e dissenso, ou mais precisamente
sobre um consenso que no exclua o dissenso e sobre um dissenso que
no exclua nem torne vo o consenso, dentro das regras do jogo,
claro que Alberoni queria dizer outra coisa, que pode ser lida nas
entrelinhas. No queria dizer que para haver um regime democrtico no
necessrio o consenso. Queria dizer, sim, que para a existncia de um
regime democrtico no necessrio seria at deletrio um
consenso unnime. Ora, o que distingue os regimes de democracia
ocidental dos de democracia chamada totalitria no o fato de uns
estarem fundados sobre o dissenso e outros sobre o consenso, mas sim
que nos primeiros existe um consenso, o qual, contentando-se em ser o
consenso dos mais ou da maior parte, baseado nas regras do jogo, admite
o dissenso dos menos ou da minoria, enquanto nos segundos h um
consenso que no admite o dissenso porque ou pretende ser o consenso
de todos. Como diz muito bem Alberoni, os regimes da democracia
totalitria, em vez de deixarem queles que a pensam diferentemente o
direito de oposio, ou, em outras palavras, o direito de dissenso,
querem reeduc-los de tal modo que se tornem, por amor ou pela fora,
consencientes.
Podemos dizer a mesma coisa de outra forma: como numa
sociedade cada vez mais complexa como a nossa o consenso unnime
improvvel, para no dizer impossvel (a unanimidade possvel em
pequenssimos grupos ou em momentos de grande tenso ideal), um
regime que se contenta com o consenso da maioria pode deixar livres seus
cidados para consentir ou dissentir, porque a formao de uma maioria
e no apenas possvel mas provvel, no importando se a maioria de
consencientes ou de dissidentes. Ao contrrio, um regime que exige
um consentimento unnime ou que defende que um sistema poltico
para ser legtimo deve fundar-se no consenso de todos, sem excluir
ningum, no pode chegar a esse resultado, admitida a
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improbabilidade da unanimidade numa sociedade complexa, a menos
que consiga esse consenso de forma obrigatria.
Ora, no h dvida de que o consenso se torna obrigatrio
onde o dissenso proibido, e, em conseqncia, sempre que a
proibio for violada, haver punio. Consenso e dissenso so dois
comportamentos opostos: quando nos encontramos frente a dois
comportamentos opostos, sem a alternativa de uma terceira via
(tertium non datur), no h dvida de que a proibio de um implica
a obrigatoriedade do outro.
As coisas se complicam um pouco se admitirmos que entre o
consenso e o dissenso h a possibilidade de um terceiro
comportamento, que no nem consenso nem dissenso e se chama
absteno, com a conseqncia de que a proibio do dissenso
implica a obrigatoriedade ou do consenso ou da absteno. Mas no
que diz respeito ao problema especfico que aqui nos interessa, que
o problema do direito ao dissenso, este negado mesmo quando
existe uma alternativa para manifestao do consenso, mas se limita
no-manifestao do dissenso. De fato, aquilo que em tal regime se
chama consenso geralmente, salvo casos excepcionais de
mobilizao de massa como cortejos, desfiles, demonstraes e
semelhantes, um comportamento negativo e at falta de dissenso
mais do que um comportamento positivo ou a declarao explcita do
consenso.
Mas o consenso obrigatrio, ou, mais precisamente, o consenso
resultante da proibio do dissenso, pode ainda chamar-se consenso?
Os juristas consideram como vcio de consenso num negcio jurdico a
violncia, entendida como ameaa de um mal injusto e notrio. No caso
de um consenso extorquido ao cidado com a ameaa de um mal
injusto e notrio para o dissidente, no se deveria falar de consenso
"vicioso" no cumprimento daquele contrato social que vincula os
governantes aos governados?
Um dos mais conhecidos tericos do direito contemporneo
identificou certa vez, nos possveis comportamentos do cidado frente
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lei, a diferena entre obedincia e aceitao. Obedecemos lei
apenas quando nos conformamos, quer por hbito quer por medo de
sano. Aceitamo-la quando estamos convencidos de sua excelncia.
O consenso obrigatrio ou vicioso revela-se na obedincia, no na
aceitao. A propsito do fascismo, foi usada, como se sabe, a
expresso "organizao do consenso". Mas seria muito mais exato e
menos fora de propsito falar de "organizao da obedincia". O que
aconteceu em 25 de julho de 1943 prova que a atitude da maior
parte dos italianos perante o fascismo era de obedincia e no de
aceitao.
A diferena entre o consenso obrigatrio e o consenso livre
importante porque o consenso foi usado como prova da excelncia de
um regime. Ora, o consenso obrigatrio, enquanto vicioso e fictcio,
no prova absolutamente nada, Na verdade, que valor pode ser
atribudo ao consenso quando o dissenso no permitido, ou
quando o cidado no livre para escolher entre consenso e
dissenso, ou quando se chama "consenso" simples obedincia lei
escrita ou no-escrita, vigente e eficaz, que pune o dissidente? E que
valor pode ter um consenso tambm quando no h um verdadeiro
consenso, mas simplesmente uma absteno coagida de dissentir?
O consenso obrigatrio, alm disso, no prova nada porque no
permite avaliar o consenso real, ou seja, se h ou no h um
consenso que seja aceitao e no mera obedincia. A nica forma
de avaliar o consenso real avaliar o seu contrrio, que o dissenso.
Mas, como podemos avali-lo se o proibimos? Como podemos avaliar
se existe o dissenso a partir do momento em que o dissenso
qualquer coisa que no deve existir? E, para no deixar que ele
exista, o punimos? Ora, se no podemos medir a entidade real do
dissenso, como podemos medir a entidade real, no a fictcia, do
consenso?
Falei at agora dos regimes em que o dissenso proibido e de
outros em que o dissenso livre. Para evitar equvocos e fceis
objees, devo acrescentar que, na realidade histrica, como no
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existe um sistema onde todas as formas de dissenso sejam proibidas
ou pelo menos onde vrias formas de dissenso deixem de transparecer
apesar das limitaes, assim tambm no existe um sistema onde
no haja limites jurdicos para o dissenso, no obstante as
proclamadas liberdades de opinio, de imprensa, etc. A realidade
histrica no conhece tipos ideais, mas apenas diversas
aproximaes de um ou de outro tipo. Existe tambm uma diferena
entre admitir todas as ideologias e todas as formas de organizao
poltica menos aquelas ditas subversivas (so consideradas
subversivas geralmente as que no respeitam as regras do jogo) e
excluir todas as ideologias e todas as formas de organizao poltica
exceto a oficial (que a que impe no apenas as regras do jogo,
mas at o modo como se deve jogar).
Entre o despotismo em estado puro e a democracia em estado
puro existem cem formas diferentes mais ou menos despticas e mais
ou menos democrticas. E pode at acontecer que uma democracia
controlada seja o incio do despotismo, como tambm que um
despotismo frouxo seja o germe de uma democracia. Mas o critrio
discriminativo existe: o maior ou menor espao reservado ao
dissenso, que pode ser sintetizado nestas duas frmulas: "Toda
forma de dissenso admitida, exceto as expressamente proibidas"
ou "Toda forma de dissenso proibida, exceto as expressamente
permitidas". A primeira frmula a das democracias liberais e a
segunda prpria das democracias totalitrias.
15 de fevereiro de 1977
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dissenso, no admite que o direito ao dissenso seja exercido de modo
a impedir o direito igual e contrrio de no estar de acordo com o
desacordo.
Por isso afirmo que h dissenso e dissenso. O critrio que
permite distinguir um do outro o mesmo que nos permitiu
distinguir, no artigo anterior, o consenso de uma democracia liberal
do consenso de uma democracia totalitria. Com base no princpio de
que s existe democracia quando existe consenso e dissenso livres, to
pouco democrtico o sistema poltico que impede o dissenso como o
movimento poltico de dissencientes que no tolera os consencientes.
Da mesma forma que o consenso exclusivista prprio dos sistemas
polticos autoritrios, tambm o dissenso exclusivista prprio dos
movimentos revolucionrios.
Um movimento revolucionrio, j em seu germe (e no h dvida
de que os movimentos estudantis so tanto no bem como no mal
movimentos revolucionrios), funda-se e deve fundar-se no princpio
da unanimidade, ou seja, num princpio que contrasta com a regra
da maioria, base de todo o sistema democrtico, e que se fosse
aplicado colocaria todo regime democrtico na condio de no poder
funcionar. De resto, assim como o movimento revolucionrio quase
sempre a nica resposta possvel, ainda que nem sempre eficaz, a um
regime autoritrio, assim tambm entende-se perfeitamente por que
o consenso exclusivista e o dissenso exclusivista existem em relao
recproca. Para voltar aos fatos da Universidade de Roma, os grupos
que impuseram seu dissenso recorrendo at violncia sustentam
que no tinham outro meio para afastar um consenso que no era
proposto atravs de uma discusso aberta, mas imposto atravs de
um comcio no-solicitado.
No que se refere ao tema do princpio da maioria como regra
urea da democracia, foram abordadas infinitas variaes. Num
discurso como o presente, em que por democracia se entende o
sistema poltico que consente ao cidado a livre escolha entre
consenso e dissenso, o princpio da maioria revela toda a sua
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importncia. Na verdade, ele o nico princpio que permite aos
consencientes e aos dissencientes que se exprimam livremente, e por
isso mesmo torna possvel a contempornea presena de consenso e
dissenso. Pelo menos, por duas razes.
Antes de tudo, a regra segundo a qual num corpo poltico se
considera vlida a deliberao que goza do consenso da maioria
apenas uma regra de procedimento. Ela no diz nada sobre o quese
deve decidir mas limita-se a dizer como se deve decidir. Em outras
palavras, no estabelece o que bom ou mau, mas prescreve que se
aceite como boa uma deliberao qualquer que ela seja, votada de
um certo modo. Mesmo enquanto regra de procedimento, isto ,
enquanto regra que no impe um comportamento bom em
contraposio a um comportamento mau, o princpio da maioria
permite considerar o dissenciente no como um rprobo, mas como
algum que, tendo refutado o bem e optado pelo mal, merece ser
interpelado, reeducado ou talvez punido e posto em condies de no
mais pecar. Induz a consider-lo pura e simplesmente como algum
que, tendo aceito certas regras do jogo, perdeu a partida, embora
possa venc-la ainda numa segunda rodada.
Em segundo lugar, o princpio da maioria apia-se na
presuno de que aquilo que agrada maioria corresponde ao
interesse coletivo mais do que aquilo que agradou minoria. Tirania
por tirania, a tirania da maioria, contra a qual os reacionrios de
todos os tempos dirigiram seus raios, menos tirnica do que a
tirania da minoria ou de um s. A maioria torna-se tirnica quando
se aproveita da prpria maioria para mudar as regras do jogo, entre
as quais, precisamente, fundamental a da maioria, fazendo passar
a maioria para a unanimidade, que, como tal, no reconhece mais a
minoria. A importncia dessa presuno est no fato de colocar o
dissenciente na condio de que no se sinta vtima de um abuso,
ou, para continuar a usar a metfora do jogo, que no se sinta como
algum que perdeu porque os outros jogaram melhor. Enquanto, com
base na considerao precedente, o dissenciente no um herege,
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violncia. Trata-se de uma daquelas conquistas cvicas que
desejaramos jamais fosse questionada ou repudiada pelos fatos. Para
defender essa conquista, mesmo com o risco de passarmos por
repetidores de coisas bvias, gastas e consabidas, devemos insistir em
rejeitar qualquer sistema onde o no-reconhecimento da oposio
deixe como alternativas unicamente a aquiescncia ou a rebelio.
1 de maro de 1977
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O barrete de Lenin
A relao entre o partido comunista e o marxismo-leninismo na
Itlia no apenas um problema de estatuto de partido. Permanea
ou caia a diretriz dada aos inscritos pelo art. 5 de "adquirir e
aprofundar o conhecimento do marxismo-leninismo, aplicando os
ensinamentos soluo das questes concretas" (ressalvadas as
disposies do art. 2), a relao de fatoentre o partido comunista e
o marxismo-leninismo j no atualmente o que era quando o
estatuto hoje em vigor foi aprovado. De um lado, a conscincia sempre
mais aguda da degenerao do Estado-guia que se inspira naqueles
princpios, e, de outro, a impossibilidade de fugir luta de idias
que mantm viva e vigilante a cultura das democracias ocidentais
induziram o partido comunista j h muito a refletir criticamente
sobre o prprio passado.
Entretanto, a primeira observao a fazer que o dever de
aprofundar o conhecimento do marxismo-leninismo e agir em
conseqncia disso diz respeito apenas aos inscritos no partido.
Todavia, o partido se tornou sempre, nos ltimos anos,
especialmente nas ltimas eleies, um partido eleitoral, ou seja, um
partido que foi aumentando o abismo entre inscritos e eleitores.
Aqueles que votam pelos comunistas sem serem inscritos e sem
inteno de o fazer no s no tm nenhuma obrigao de estudar os
sagrados textos mas, tambm, ignoram em sua grande maioria que
exista o art. 5. E, ainda que o soubessem, no lhes importaria nada.
A segunda observao que o mesmo art. 5 ressalva "as
disposies do art. 2", que so as daquele famoso artigo em que se
diz que para algum se inscrever num partido precisa aceitar seu
programa poltico "independentemente... da f religiosa e das
convices filosficas"; e como o marxismo-leninismo sempre foi
considerado, alm de programa poltico, como uma "convico
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filosfica", segue-se necessariamente que o dever de ser bom
marxista-leninista no conhecimento e na ao no diz respeito a
todos os inscritos, dos quais alguns podem ser membros do partido
sem estarem "convencidos" da excelncia do marxismo-leninismo. Se,
j no momento da reestruturao, Togliatti achava oportuno deixar
aberta a porta aos que pensavam de outra maneira, natural que
hoje, vinte anos depois, tendo o partido conquistado nova fora
poltica graas queles que nele votam sem estarem inscritos e sem
terem a mais plida idia do que seja o marxismo-leninismo, os
dirigentes se preocupem, ou pelo menos comecem a se preocupar ou a
pensar que seria bom preocupar-se, em adequar a doutrina
realidade.
Em terceiro lugar, no podemos deixar de observar que o tempo
passa e que um acontecimento grandioso como a Revoluo de
Outubro no pode ser um modelo de ao poltica e termina por
tornar-se um objeto de reflexo histrica. Conversando com jovens,
conforme acontece freqentemente at por razes profissionais, tive
inmeras ocasies para espantar-me com o desinteresse que eles
demonstram em relao ao passado, com o fato de no se sentirem
vinculados aos mitos, s crenas arraigadas, aos dios e aos amores
das geraes passadas, a comear pela Resistncia. No mais, foi
precisamente a gerao que precedeu a minha a que comeou a
criticar o mito do Risorgimento.
A maior parte dos comunistas militantes de hoje nasceram aps
a guerra, nasceram e cresceram no "partido novo": um deles me dizia
tempos atrs que o problema de que o partido fosse ou devesse ainda
ser leninista, ou em que medida o fosse ou devesse s-lo, era-lhe
indiferente. Com o passar do tempo este afastamento tende a
aumentar, especialmente num partido dinmico, voltado
impetuosamente para o futuro, como o partido comunista italiano.
Tentativas de retorno s origens, ao marxismo-leninismo na sua
pureza ideal, como corpo doutrinai e como cdigo tico, foram
verificadas nestes anos, mas certamente no devidas aos jovens
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comunistas. Um grande partido moderno no uma seita.
At aqui minhas observaes se fundaram em dados de fato
impugnveis: a transformao do partido comunista em grande
partido tambm eleitoral, a comprovada abertura do partido de
Togliatti para os infiis, a natural desconfiana dos jovens em relao
aos ideais de seus pais. Mas o problema do marxismo-leninismo hoje,
em sua significao atual, ou como valor de modelo terico e prtico,
muito mais complexo e no pode ser resolvido nem com ligeiras
declaraes nem com apaixonadas e autorizadas profisses de f.
Constata-se que as ciladas, para um partido em movimento
como o partido comunista italiano, que pretende proclamar-se
tambm marxista-leninista, embora com todas as atenuantes,
atualizao e desenvolvimento interno que a linha poltica do
eurocomunismo requer, podem surgir de dois lados: um deles o fato
de o marxismo-leninismo ser a doutrina oficial dos pases do
"socialismo realizado", em particular da Unio Sovitica, com os quais
as contas esto em aberto (uma das contas a encerrar diz respeito
atualidade do pensamento de Lenin); o outro ter-se tornado o
leninismo, enquanto teoria e prxis da revoluo, uma bandeira da
maior parte dos movimentos da nova esquerda que opem ao realismo
poltico do PCI a sua intransigncia revolucionria.
Tenho comigo um pequeno volume de Mikhail Suslov, que
passa por ser o maior terico do partido comunista sovitico. O
livrinho intitula-se Il marxismo-leninismo. Dottrina internazionalistica
della classe operaia. Os danos que um livrinho destes pode fazer a um
partido como o italiano, que procura congregar os intelectuais, tem
cartas regulares para o fazer e apesar de tudo desejaria ainda ser
chamado de marxista-leninista, so incalculveis. Basta dizer que,
em comparao, as Questes de leninismo de Stalin, to
desconsideradas, so uma obra-prima de finura terica e densidade
conceptual. Difcil imaginar uma seqela mais montona de frases
feitas, de juzos convencionais, de elogios descomedidos e repetidos
at saturao e ao ridculo dos grandes fundadores (Stalin no
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citado nunca) e de invectivas contra os adversrios, to exageradas e
vulgares que no provocam nenhum movimento de indignao.
Numa palavra, um monumento de retrica celebrativa e mentirosa.
Uma prova, se ainda fosse necessrio demonstrar, dos tristes efeitos da
falta de dissenso, a nica coisa a manter vigilante a inteligncia crtica e
tambm um argumento que no podia ser mais convincente em favor da
fecundidade do debate. Uma demonstrao de como se pode transformar
uma obra de pensamento, que precisa ser continuamente colocada em
discusso para provar a prpria vitalidade e o prprio ncleo de verdade,
em puro instrumento de domnio.
Sobre a vertente oposta vejamos o que escreve sobre Lenin e o queentende por leninismo Antnio Negri, terico da nova esquerda
revolucionria,16 em seu livro La fabbrica della strategia. Como se percebe
pelo ttulo, o autor v em Lenin mais do que o fundador de um novo
Estado o famoso Estado de transio que depois se tornou permanente.
Negri v em Lenin o primeiro grande criador de uma estratgia
revolucionria (Lenin como o Napoleo da Revoluo, que espera ainda seu
Clausewitz), cujo escopo seria o de colocar no o problema do Estado masat o prprio oposto que o problema da destruio do Estado, onde a
vontade de subverso e de poder " o elemento que caracteriza de maneira
definitiva o leninismo e o transforma em categoria permanente, em
marco diferencial entre o que revolucionrio e o que no ".17 No ficam
dvidas contra quem dirigido o discurso de Negri e no precisamos
coment-lo.
Com isso no quero dizer que no existam outras possveisinterpretaes dos escritos e das obras de Lenin: ou catecismo do Estado
ou manual do perfeito revolucionrio.
.
(16) Negri, Antnio, La fabbrica della strategia. 33 lezionisu Lenin, Padova, 1976(17) Idem, ibidem, p. 64.
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Pois bem: as duas imagens que primeiro nos aodem mente quando
pensamos no grande protagonista da Revoluo de Outubro so ou a do
corpo embalsamado no museu da Praa Vermelha ou a do homem com o
barrete de operrio que discursa para a multido, incitando-a revolta.
No desejaria enganar-me, mas tenho a impresso de que ao partido
que abriu caminho para o eurocomunismo no se aplica nem a
primeira nem a segunda.
27 de setembro de 1977
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Lenin era marxista?
Ao ler a reportagem do encontro organizado pelo Manifestoem
Veneza sobre "Poder e represso nas sociedades ps-revolucionrias"
e ao participar do debate promovido pela Bienal sobre "Dissenso
cultural", convenci-me de que a discusso que hoje se verifica no seio
da esquerda histrica e no-histrica, a uma distncia de sessenta
anos da Revoluo de Outubro, no muito diferente da que se
desenvolveu sessenta anos atrs quando a revoluo ainda estava em
curso. Com uma diferena: as crticas que ento se dirigiam ao
modo como era conduzida a revoluo dos bolcheviques e aos
resultados que dela derivavam provinham de inimigos do leninismo;
hoje, pelo contrrio, as mesmas crticas freqentemente provm de
leninistas e por vezes at de marxistas desiludidos e arrependidos.
Entre os vrios argumentos que foram adotados a favor e contra
a revoluo sovitica tiveram destaque especial os doutrinais. Chamo
doutrinais aos argumentos fundados sobre a conexo entre a prtica
da revoluo e a teoria do marxismo, ou seja
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