anastasia gritou em vão
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F A C U L D A D E C Á S P E R L Í B E R O
Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross
gritou em vão
Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade
São Paulo, SP
2013
Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross
gritou em vão
Monografia apresentada junto ao curso de
Comunicação Social com habilitação em
jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
como requisito parcial à obtenção do título
de bacharel
Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade
São Paulo, SP
2013
Helena Bulhões Carvalho da Fonseca Dutt-Ross
gritou em vão
Monografia apresentada junto ao curso de
Comunicação Social com habilitação em
jornalismo da Faculdade Cásper Líbero
como requisito parcial à obtenção do título
de bacharel
Orientador: Prof. Dr. Welington Andrade
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________________
Prof. José Augusto Dias Jr.
Faculdade Cásper Líbero
__________________________________
Prof. João Baptista Natali
Faculdade Cásper Líbero
__________________________________
Prof. Bruno Barreto Gomide
Universidade de São Paulo
São Paulo, __/__/____
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, ao meu orientador, Welington Andrade, que aceitou meu pedido
de orientação tão cedo e que suportou com infinita paciência as minhas infinitas
perguntas. Enfim, que apostou em mim.
Cabe agradecer também ao qualificador do projeto, José Augusto Dias, pelas
indicações de bibliografia e observações que foram tão cuidadosas e valiosas.
Agradeço também a Laura de Mello e Souza, Lilia Schwarcz e Helen Rappaport, pelas
entrevistas tão gentilmente concedidas e por todas as dicas.
E agora, em nenhuma ordem em particular: aos meus pais Clara Carvalho e
Brian Penido Ross (pelo apoio de sempre), Lucas Bulhões (que leu tantas versões e
deu tantas opiniões), Marília de Azevedo Corrêa e Nuria Pratginestós (pelo apoio, pela
hospitalidade e, bom, por tudo) e a turma da Coordenadoria de Cultural Geral, que
acompanhou o projeto desde seus primeiros dias de vida: André Silva, Elzie Barbosa,
Fernanda Coppedê, Gabriela Colicigno, Guilherme Aleixo, Patrícia Homsi e Roberto
Fideli. E ao professor Adalton Diniz pela paciência que teve com todos nós.
Agradeço ainda: Christian e Ana Cristina Dunker (donos de todo e qualquer
livro sobre psicologia que figure nestas páginas), Inês Corrêa (que defendeu seu
mestrado no mesmo ano em que defendi meu TCC, e que por isso pôde me dar tantas
dicas) e aos professores Cláudio Arantes e Luís Mauro Sá Martino.
Os franceses têm uma expressão de que gosto muito: l’esprit de l’escalier.
Significa, literalmente, “o espírito da escada”. É a representação de todas os
comentários os respostas inteligentes que a gente só pensa em dizer depois que já é
tarde demais – depois que já está na escada, indo embora. Tenho certeza de que
estou esquecendo de agradecer a pelo menos uma pessoa, e que só vou me lembrar
depois que o trabalho já estiver pronto e impresso. Então, a essa pessoa, e a todas
as outras que fizeram parte disso: obrigada, obrigada, obrigada.
Ao meu pai, que adorava me contar histórias,
E à minha mãe, que foi quem primeiro me contou esta.
RESUMO Anastásia Romanov é uma das relativamente poucas personagens
históricas que foi pinçada do mundo dos fatos e incorporada ao da ficção. Esta
pesquisa tem por objetivo analisar o fenômeno cultural que se tornou Anastásia
Romanov, cuja tão esperada "ressureição" (o nome Anastásia significa literalmente
"aquela que se ergue novamente") inspirou diversas obras de ficção, inclusive um
filme ganhador do Oscar (Anastásia, de 1956) e um desenho animado (Anastásia, de
1997). Buscaremos a forma e os motivos por que a mais jovem das Grã-Duquesas
russas foi selecionada para se tornar imortal, um autêntico ícone pop - comparável a
Cleópatra, César, Maria Antonieta e D. Sebastião, em Portugal. Enfim, o trabalho irá
investigar por que, e de que maneira, uma personagem histórica foi aos poucos
perdendo seus contornos reais e adentrando o universo ficcional, tornando-se uma
personagem narrativa nos moldes dos contos tradicionais. Deste modo, o trabalho
tratará dos métodos da investigação histórica em contrataste com os recursos da
fantasia e da imaginação - e como estas duas coisas trabalham juntas para fazer
história e História.
Palavras chave: história cultural, ficção, Anastásia Romanov
ABSTRACT Anastasia Romanov is one of the relatively few historical characters that
was brought from the world of facts and incorporated to the world of fiction. This
research’s objective is analyzing the cultural phenomenon that became of both her and
her awaited "resurrection" (the name Anastasia means literally "that who will rise
again"), inspiring many works of fiction, including and Academy-Award winning movie
(Anastasia, 1956) and cartoon (Anastasia, 1997). We will search for the ways and the
reason why the youngest of the Russian Grand-Duchesses was the one selected to
become immortal, an authentic pop icon - comparable to Cleopatra, Cesar, Marie
Antoinette and D. Sebastian, in Portugal. The bottom line of this research is an
investigation as to why and how a historical character slowly loses her real contours
and enters a world of fiction, becoming a narrative character in the patters of traditional
storytelling. Thus, we will work with the methods of historical investigation as a
counterpoint of the resources of fantasy and imagination - and with how these two
things work together to make for story and History.
Keywords: cultural history, fiction, Anastasia Romanov
I stuck around St. Petersburg
When I saw it was a time for a change
Killed the tsar and his ministers
Anastasia screamed in vain
Pleased to meet you
Hope you guess my name
(Eu fiquei por São Petersburgo
Quando vi que era hora de mudança
Matei o czar e seus ministros
Anastásia gritou em vão
Prazer em conhecê-lo
Espero que adivinhe meu nome)
Rolling Stones, Sympathy for the Devil, 1968
SUMÁRIO
NOTAS ........................................................................................................................ 9
1 DE IPATIEV A IPATIEV ......................................................................................... 10
1.1 IMPÉRIO .......................................................................................................... 10
1.2 GUERRA E REVOLUÇÃO ............................................................................... 18
1.3 EXECUÇÃO ..................................................................................................... 22
1.4 A IMPOSTORA ................................................................................................ 25
1.5 FICÇÃO............................................................................................................ 36
1.6 OS OSSOS ...................................................................................................... 37
1.7 FRANZISKA ..................................................................................................... 39
2 O MITO POLÍTICO-HEROICO ............................................................................... 42
3 HELENA, A BELA E BABA YAGA ....................................................................... 58
3.1 CONCLUSÃO .................................................................................................. 77
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 81
ANEXOS ................................................................................................................... 84
ANEXO A – Entrevista com Laura de Mello e Souza ............................................ 84 ANEXO B – Entrevista com Lilia Schwarcz ........................................................... 92 ANEXO C – Entrevista com Helen Rappaport ....................................................... 95
9
NOTAS
A respeito da escolha de uso de títulos, nomes e datas neste trabalho.
O título formal de Nicolau II era Imperador, embora ele mesmo usasse a forma
eslava czar. Sua esposa, Alexandra, era Imperatriz, mas também usava a forma
eslava czaritsa. Talvez alguns leitores estejam familiarizados com a forma traduzida
czarina, mas o termo não existe em língua russa.
Seu filho, Alexei, tinha o título de czarevitch, e as irmãs dele eram grã-duquesas
(velikaya knyazhna, em russo. Uma tradução mais exata seria grã-princesa) e não
propriamente princesas. Em termos de significação, entretanto, os termos podem ser
vistos como equivalentes: o objetivo era meramente lhes conferir um nível mais
elevado do que das demais princesas europeias.
Os russos têm sempre três nomes: o de batismo, o patronímico e o sobrenome.
O patronímico é, como o nome indica, sempre derivado do nome de batismo paterno.
Na forma masculina, ele é a junção do nome do pai com o sufixo –vitch (filho de).
Alexei se chamava Alexei Nikolaevitch: filho de Nicolau. Nicolau, por sua vez, era
Nicolau Alexandrovitch: filho de Alexandre. Na forma feminina, o patronímico tem o
sufixo –evna ou –ovna (filha de). Anastásia é, portanto, Anastásia Nikolaevna.
Os nomes dos membros das famílias reais, quando possível, foram traduzidos
para formas mais familiares. Então, temos Nicolau em vez de Nikolai, Miguel em em
vez de Mikhail e o kaiser Guilherme em vez do kaiser Wilhelm. Nomes de plebeus,
entretanto, foram mantidos: Sergei Prokofiev não é chamado de Sérgio e Franziska
Schanzkowska são é chamada de Francisca.
Na Rússia pré-Revolucionária, utilizava-se o calendário juliano, atrasado treze
dias em relação ao gregoriano (que utilizamos hoje). Aqui, as datas utilizadas estão
de acordo com o calendário gregoriano.
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DE IPATIEV A IPATIEV
1.1 Império
Moscou, 18 de junho de 1901. Era madrugada quando começaram os tiros de
canhão que anunciavam o nascimento de mais um filho do czar Nicolau II. Sua
esposa, a czaritsa Alexandra, estava grávida pela quarta vez após ter dado à luz três
meninas: Olga, Tatiana e Maria. As leis de sucessão ao trono russo, entretanto, eram
diferentes das da maior parte das monarquias. Os historiadores Greg King e Penny
Wilson explicam em seu A Ressureição dos Romanov:
O czar Paulo, que odiava sua mãe, Catarina a Grande,
ditou que mulheres só poderiam herdar o trono russo
depois de todos os outros membros da dinastia Romanov.
Se Nicolau e Alexandra não tivessem um filho, a coroa
passaria para o irmão dele, o Grão-Duque Miguel
Alexandrovitch, e depois para seus tios e os filhos deles,
para tios-avôs e primos em segundo grau; só a morte
destes quarenta e poucos herdeiros homens permitiria a
sucessão do novo bebê ou suas irmãs. (Tradução nossa)1
Havia muita expectativa, então, em torno desta criança. Se trezentos tiros de
canhão fossem disparados, a Rússia saberia que seu novo herdeiro tinha nascido.
Soaram cento e um. A czaritsa tinha dado à luz mais uma menina.
A Grã-Duquesa Xênia Alexandrovna, irmã mais nova do czar, escreveu em seu
diário: “Alix se sente esplêndida – mas meu Deus! Que desapontamento... Uma quarta
menina” (excerto do diário de Xênia, citado em ROUNDING, V.). O próprio Nicolau,
que tinha celebrado em seu diário o nascimento das outras três filhas, teve de deixar
1 Emperor Paul, who hated his mother, Catherine the Great, dictated that females could inherit the Russian throne only after all male members of the Romanov dinasty, If Nicholas and Alexandra had no son, the crown would pass to his brother, Grand Duke Michael Alexandrovitch, then to his uncles and to their sons, to great-uncles and to second cousins, only the deaths of all these forty or so male relatives would allow for the succession of the new infant or her sisters. (KING, e WILSON, 2011, p. 16)
11
o palácio e dar uma longa volta no jardim antes de conseguir encarar sua esposa e o
novo bebê pela primeira vez. Em seu diário, registrou apenas “um sentimento de
calma”. O tom difere bastante daquele com que descreveu a chegada de sua primeira
filha, Olga: “Um dia inesquecível para mim (...). Às nove, exatamente, ouvimos o
vagido de um bebê e respiramos aliviados. Uma filha enviada por Deus. Em preces,
nós lhe demos o nome de Olga” (excerto do diário de Nicolau, citado em RADZINSKI,
E.).
Esta quarta menina foi a última Grã-Duquesa da Rússia imperial, Anastásia,
nascida no primeiro ano do novo século.
Era uma época conturbada e decisiva – para o mundo e particularmente para
a Rússia. Em meio às crescentes tensões revolucionárias, o país entraria na Guerra
Russo-Japonesa em 1904 pelo controle da Manchúria – o que se provaria um enorme
erro militar que quase aniquilou as forças armadas russas e levou o país à fome. Em
1905 houve o incidente do “Domingo Sangrento”, quando os trabalhadores iniciaram
uma marcha para entregar uma petição ao czar no Palácio de Inverno e foram
massacrados pelas tropas que acharam que a turba não era pacífica: os mortos
somaram 92. Ainda em 1905 haveria a primeira tentativa de revolução comunista, o
famoso “Ensaio Geral”.
Estas tensões levaram o czar a criar a Duma, uma espécie de órgão
conselheiro com poderes legislativos. A autocracia continuava, mas ao menos agora
havia um mínimo de participação popular no governo. A eficácia deste órgão,
entretanto, permanecia duvidosa, uma vez que o primeiro-ministro era apontado pelo
próprio czar.
Porém, se social e politicamente a Rússia era caótica, ao menos culturalmente
ela passou por um período de efervescência, como descreve Robert Massie em
Nicolau e Alexandra:
Em 1898, Constantine Stanislavski inaugurou o famoso
Teatro de Arte de Moscou, e a estreia de sua segunda
direção, A Gaivota de Chekov, escrita em 1896,
determinou seu sucesso. Em seguida, a publicação de Tio
Vânia (1899) e O Jardim das Cerejeiras (1904)
confirmaram a inauguração de um novo conceito de
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representação naturalista e uma nova era na história do
teatro. Em 1902, Stanislavski dirigiu Os Pequenos
Burgueses, um realismo sombrio de Máximo Gorki. (...) Em
1904, os poemas do famoso discípulo de Solov’ev,
Alexander Blok, começaram a aparecer (...)
[Alexander] Serov, influenciado pelos impressionistas
franceses, pintou retratos evocativos de muitos de seus
contemporâneos russos incluindo, em 1900, o czar. Em
1896, Vassily Kandinsky, um advogado de Moscou,
desistiu de sua carreira e deixou a Rússia para começar a
pintar em Munique. Em 1907, Marc Chagall chegou a São
Petersburgo para estudar com seu famoso
contemporâneo, [o cenógrafo] Lev Bakst (...)
No Balé Imperial, Marius Petipa estava no meio de um
reinado de meio século como coreógrafo... Foi Petipa que
pôs no palco a parada cintilante de dançarinos russos que
incluiu Mathilde Kschessinska, Tamara Karsavina, Anna
Pavlova e Vaslav Nijinsky.
Nikholai Rimsky-Korsakov era o condutor da Sinfônica de
São Petersburgo... [e] instruía um jovem Igor Stravinsky.
Depois, em 1914, outro dos pupilos de Rimsky-Korsakov,
Sergei Prokofiev, se formaria no conservatório. Entre os
violinistas e pianistas treinados na Rússia imperial
estavam Sergei Rachmaninov, Vladimir Horowitz, Efrem
Zimbalist, Mischa Elman e Jascha Heifetz. (Tradução
nossa)2
2 In 1898, Constantine Stanislavsky first opened the doors to the famous Moscow Art Theatre, and it’s second play, Chekov’s The Sea Gull, written in 1896, determined it’s success. Thereafter, the appearance of Uncle Vanya (1899), and The Cherry Orchard (1904) confirmed the arrival of a new concept of naturalistic acting and a new era in the history of theatre. In 1902, Stanislavsky directed The Lower Depths, a grimly realistic play by Maxim Gorky. (…) In 1904, the poems of Solov’ev’s famous disciple Alexander Blok began to appear. [Alexander] Serov, influenced by the French Impressionists, painted evocative portraits of many contemporary Russians, including, in 1900, the Tsar. In 1896, Vassily Kandinsky, a lawyer in Moscow, gave up his career and left Russia to begin painting in Munich. In 1907, Marc Chagall arrived in St. Petersburg to study with the famous contemporary painter Lev Bakst (…) At the Imperial Ballet, Marius Petipa was in the midst of a half-century reign as choreographer… It was Petipa who thrust onto stage the glittering parade of Russian dancers, which included Mathilde Kschessinska, Tamara Karsavina, Anna Pavlova and Vaslav Nijinsky.
13
Este boom cultural, juntamente com a situação sócio-política quase feudal da
Rússia no começo do século, são as bases do que viria a ser a Revolução. Segundo
Steinberg e Khrüstalev, em seu A Queda dos Romanov: “As políticas trabalhistas do
governo, que combinavam medidas paternalistas para aliviar a situação dos pobres
com medidas firmes para manter a ordem e o controle tendiam, por sua parte, a
encorajar os trabalhadores a considerar o Estado e, portanto, a política, como fator
decisivo para mudança econômica e social.” (p. 48) Assim, a “florescente imprensa e
literatura popular”, juntamente com aumento na alfabetização começaram a difundir
ideias sobre igualdade de direitos e mutabilidade das ordens políticas. Além disso,
“mais sutil, mas não menos subversivo, o próprio ato de ler e tornar-se alguém mais
‘culto’ conferia a muitos homens do povo um senso de autoestima que tornava mais
difícil de suportar as humilhações e dificuldades de vida comuns à classe baixa”. Os
camponeses e operários se tornavam mais intelectualizados sem se tornarem mais
ricos: eis o princípio da Revolução de Março.
Mas 1904, finalmente, trouxe uma boa notícia para a política russa, que
contribuiu, ainda que temporariamente, para o aumento da popularidade da
monarquia: o nascimento do herdeiro do trono, Alexei Nikolaevitch Romanov.
Nicolau escreveu em seu diário “Um dia glorioso para nunca ser esquecido,
quando a misericórdia do Senhor nos visitou tão claramente. Alix deu à luz um filho à
uma da tarde. Chamamos a criança de Alexei.”
Soaram os trezentos tiros de canhão, o bebê foi batizado perante toda a
nobreza europeia. O tom do diário só muda seis semanas depois do nascimento: “Alix
e eu estamos muito preocupados. Uma hemorragia começou nesta manhã, sem
causa nenhuma, no umbigo do nosso pequeno Alexei.” No dia seguinte: “Nesta manhã
novamente havia um pouco de sangue na bandagem mas o sangramento parou ao
meio dia.” (excerto do diário citado em MASSIE, R.). Conforme a criança crescia e
tentava sentar, rolar ou ficar de pé, as pancadas apareciam com muita facilidade,
Nikholai Romsky-Korsakov was the conductor of the St. Petersburg Symphony… [and] he was instructing a youthful Igor Stravinsky. (…) Later, in 1914, another of Rimsky-Korsakov’s pupils, Sergei Prokofiev, was to graduate from the conservatory. Among the violinists and pianists trained in Imperial Russia were Sergei Rachmaninov, Vladimir Horowitx, Efrem Zimbalist, Mischa Elman and Jascha Heifetz. (MASSIE, 1967, p. 68-70)
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deixando marcas azuis na sua pele. O sangue do garoto coagulava com extrema
dificuldade. Era hemofilia.
A hemofilia foi chamada de “doença de reis” por sua disseminação entre as
casas reais europeias na segunda metade do século XIX. Trata-se de uma doença
genética recessiva associada ao cromossomo X, o que significa que pode ser
transmitida por mulheres que não necessariamente apresentam os sintomas. A rainha
Vitória da Inglaterra é a primeira portadora do gene que se pode localizar: seu filho
Leopoldo era hemofílico e ao menos duas de suas cinco filhas carregavam o gene.
Como as casas reais comumente se casavam entre si, a doença logo se espalhou.
Até a descoberta de um tratamento eficaz com plasma, na década de 1960, a
expectativa de vida de um hemofílico era de 11 anos. Alexei viveu até os 13, mas nos
últimos dois anos não conseguia andar: diversas pancadas nos joelhos ao longo de
sua vida tinham preenchido as juntas de sangue seco. Uma vez, no inverno de 1910,
o czarevitch, ao espirrar, teve uma hemorragia nasal que quase o matou, pois não
havia como pôr bandagens na área. O herdeiro de um sexto das terras emersas do
mundo podia morrer de um simples resfriado.
A hemofilia, mesmo hoje, não tem cura; até cinquenta anos atrás, também não
tinha nenhum tratamento eficaz. Nada além de morfina podia ser administrado no
garoto – mesmo assim, em doses baixas, para evitar o vício. Para o historiador Robert
Massie, a hemofilia de Alexei foi um dos fatores mais importantes para a Revolução
Russa: foi por causa dela que Rasputin foi inicialmente trazido ao palácio. E, como
disse o próprio Kerensky “Sem Rasputin, não haveria Lênin”. Massie adiciona: “Se
isso é verdade, se não houvesse hemofilia, não haveria Rasputin”.
Grigori Efimovitch Rasputin era um mujique siberiano semianalfabeto que
chegou a São Petersburgo em 1903, quando foi apresentado às princesas
montenegrinas: Milista e Anastásia, filhas do rei Nicolau I de Montenegro. As duas
princesas eram famosas por seu interesse em misticismo e o levaram à czaritsa. Até
hoje, a eficácia deste monge sobre o garoto permanece envolta em mistério. Os
relatos são muitos, nas mais diversas vozes. Anna Vyrubova, a amiga mais próxima
da czaritsa, descreveu posteriormente em sua autobiografia, Memórias da Corte
Russa, um incidente em 1910:
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A criança parecia estar em boas condições, mas algumas
horas depois... seu nariz começou a sangrar.
Normalmente, esta é uma manifestação inofensiva, mas
em alguém que sofre do mal incurável de Alexei era uma
coisa muito séria. Os médicos tentaram todos os remédios
conhecidos, mas a hemorragia ficou pior até ameaçar
morte por exaustão e perda de sangue. (...) Os médicos
mantiveram seus medicamentos, exaurindo todos os
meios conhecidos pela ciência para parar o sangramento
incessante. Desesperada, a Imperatriz chamou Rasputin.
Ele entrou no quarto, fez o sinal da cruz sobre a cama e,
olhando atentamente para a criança quase moribunda,
sussurrou... “Não se alarme. Nada vai acontecer.” Depois
ele saiu do quarto.
Isso foi tudo. A criança dormiu, e no dia seguinte estava
tão bem que o Imperador partiu (...) O dr. Derevenko e o
prof. Feodorov me disseram depois que não podiam nem
arriscar uma explicação para a cura. (Tradução nossa)3
A teoria mais aceita sobre estes “milagres” seria que o monge, cujos olhos
penetrantes e voz profunda foram descritos por tantos, hipnotizava o garoto. Estudos
conduzidos pelo dr. Oscar Lucas no Hospital Jefferson, na Filadélfia, entre 1961 e
1964, indicam que a hipnose pode ser muito eficaz para controlar hemorragia em
hemofílicos. Em circunstâncias normais, extrair dentes de hemofílicos é uma operação
complicada, que exige uma grande quantidade de sangue e plasma para transfusão.
No entanto, o dr. Lucas extraiu mais de 150 dentes de pacientes hemofílicos
hipnotizados sem uma única transfusão.
3 The child seemed to be in good condition, but a few hours after leaving the palace he was taken with a nosebleed. This is ordinarily a harmless enough manifestation, but in one suffering from Alexei's incurable malady it was a very serious thing. The doctors tried every known remedy, but the hemorrhage became steadily worse until death by exhaustion and loss of blood was threatened. (…) The physicians kept up their ministrations, exhausting every means known to science to stop the incessant bleeding. In despair the Empress sent for Rasputin. He came into the room, made the sign of the cross over the bed and, looking intently at the almost moribund child, said quietly to the kneeling parents: "Don't be alarmed, Nothing will happen." Then he walked out of the room and out of the palace. That was all. The child fell asleep, and the next day was so well that the Emperor left (...) Dr. Derevenko and Professor Fedoroff told me afterwards that they did, not even attempt to explain the cure. (VYRUBOVA, 1920)
16
Mas se, por um lado, os feitos “milagrosos” de Rasputin entraram para a
história, o mesmo aconteceu com a vida devassa que ele levava em particular – foi
justamente o que lhe rendeu o apelido de “demônio santo”.
O mujique assumiu, para a Rússia, um papel social tão importante que havia
uma Comissão Extraordinária da polícia encarregada de vigiar seus passos e,
posteriormente, durante o Governo Provisório, interrogar todos que tiveram contato
com ele. São dos registros reunidos por esta comissão que vem os numerosos relatos
de que teria ido a algum banho público com prostitutas: “Ele foi para Nevsky, contratou
a prostituta Petrova e foi a um banho público com ela”, “Ele visitou os banhos públicos
de Konyushenny com uma prostituta contratada perto da Ponte Politsesky”, “Com as
prostitutas Botvinina e Kozlova ele foi para a casa dos Golovin. Saiu às duas e meia,
e novamente contratou uma prostituta e foi para os banhos”. Também são vários os
registros de que saiu à noite e ficou bêbado ou acossou mulheres na rua com
“sugestões vis” (Parte do arquivo Rasputin, citado em RADZINSKI, 2000, p. 159). Uma
das babás das Grã-Duquesas, Maria Ivanona Vishnyakova, disse ter sido estuprada
por Rasputin, em 1910, durante uma das visitar do mujique ao palácio, mas a czaritsa
se recusou a acreditar nela e o caso nunca foi investigado
Um episódio em particular, relatado pelo oficial Dzhunkovsky, ficou famoso. É
o “incidente do restaurante Yar”:
Em 26 março por volta das 11 horas da noite, G.
Rasputin... chegou ao restaurante [Yar] com Anisia
Ivanova Reshetnikova, viúva de um cidadão respeitável,
Nikolai Nikititch Soedov, um contribuinte de jornais de
Moscou e Petrogrado, e uma jovem não identificada.
Todos já estavam bêbados. (...) Evidentemente, o grupo
também conseguiu vinho lá, já que um Rasputin ainda
mais bêbado... falou francamente com as cantoras dessa
maneira: “Essa capa me foi dada pela ‘velha senhora’ [a
Imperatriz], ela mesma a costurou .(...) Oh, o que ela diria
se me visse agora?” O comportamento subsequente de
Rasputin assumiu características infelizes de um tipo de
patologia sexual. Ele evidentemente expôs seu órgão
sexual e nessa condição continuou a conversa com as
17
cantoras, presentando algumas delas com notas escritas
à mão a respeito de ‘amor altruísta’. (Tradução nossa)4
Livros sobre Rasputin, o ‘monge louco’, já venderam milhões de cópias. Foi ele
e sua aparentemente inexplicável relação com a família real (já que a hemofilia de
Alexei era segredo de Estado) quem mais contribuiu para, aos olhos da maior parte
dos russos, arruinar a imagem na monarquia. Na época, não faltaram boatos de que
Rasputin teria seduzido tanto a czaritsa quanto suas quatro filhas.
Mas, na verdade, em comparação com as demais famílias reais europeias, os
Romanov eram pessoas relativamente simples. Os diários de Alexandra mostram
como a Imperatriz era extremamente dedicada à família: durante o primeiro ano de
vida de cada um dos filhos, ela mantinha o berço dentro de seu próprio quarto, que
dividia com Nicolau (o que era incomum entre a nobreza da época, famosa por seus
casamentos arranjados). Ela também os amamentava, banhava e cuidava deles, em
vez de delegar estas tarefas a babás e amas de leite. Quando cresceram, as meninas
dividiam os quartos – Olga e Tatiana em um, Maria e Anastásia em outro – e faziam
as próprias camas elas mesmas, toda manhã.
Olga, a mais velha, era também a mais estudiosa, religiosa e sensível das
garotas. Tatiana, a segunda, era a mais austera das irmãs, e ganhou o apelido de “a
governanta”. Segundo Pierre Gilliard, era bastante talentosa no piano, embora não
gostasse de estudar. Maria, a terceira, era amorosa e extremamente simples em seus
gostos, sonhava em casar e ter uma família grande. Anastásia, por outro lado, divergia
inteiramente das irmãs.
Sua tia, a Grã-Duquesa Olga Alexandrovna, a apelidou de “shvibzik” – diabrete,
em russo – e Anastásia aparentemente fez de tudo para fazer jus à designação.
Desaparecia no jardim por várias horas, divertindo-se em ver os sentinelas procurando
4 On 26 March around 11:00 p.m., G. Rasputin… arrived at the restaurant [Yar] with Anisia Ivanova Reshetnikova, the widow of a respected citizen, Nikolai Nikititch Soedov, a contributor do Moscow and Petrograd newspapers, and an unidentified young woman. The whole parte was already tipsy. (…) Evidently, the group had been abke to drink wine there, too, since an even drunker Rasputin… began to speak frankly with the girl singers in this manner: ‘This cloak was given to me by the ‘old woman [the Empress], she swewd it. (…) Oh, what would ‘she herself’ say if she saw me now?’. Rasputin’s subsequent behavior assumed the disgraceful character of a kind of sexual psychopathology. He evidently exposed his sexual organ and in that condition continued his conversation with the girl singers, presenting a few of them with hand-written notes on the order of ‘love unselfishly’. (Testemunho de Dzhunkovsky, citado em RADZINSKI, 2000, p. 296)
18
por ela; subia muito alto nas árvores e se recusava a descer até que o pai em pessoa
viesse tirá-la; fazia caretas para os guardas sérios do portão.
Pierre Gilliard, tutor de francês das meninas, relembra a jovem Anastásia em
uma passagem de Treze Anos na Corte Russa:
Anastásia Nikolaevna (…) era muito desordeira e quase
uma palhaça. Ela tinha um senso de humor muito afiado,
e suas alfinetadas frequentemente atingiam os pontos
fracos das pessoas. Era uma enfant terrible [criança
terrível, em francês], embora este defeito tendesse a ser
corrigido com a idade. Também era muito preguiçosa,
embora fosse a preguiça de uma criança talentosa. Seu
sotaque francês era excelente, e ela encenava cenas de
comédia com um talento impressionante. Ela era tão vivaz,
e sua alegria tão contagiante, que vários membros do
castelo começaram a chamá-la de “Sunshine” [raio de sol,
em inglês]. (Tradução nossa)5
As Grã-Duquesas e o czarevitch tinham aulas de história, aritmética, geografia,
ciências, literatura, religião, dança, pintura e música, mas as meninas sabiam, assim
como sua mãe, que o importante era saber idiomas. Afinal, como explicam King e
Wilson em seu A Ressureição dos Romanov, “o que se esperava dela[s] além de que
se casasse[m] com algum príncipe apropriado e tivesse[m] filhos?” Com o pai elas
falavam russo; com a mãe, inglês, pois Alexandra jamais aprendeu a língua do marido
com fluência. Além disso, recebiam aulas de francês e alemão.
1.2 Guerra e Revolução
Enquanto os Romanov viviam esta rotina que mais parecia pequeno-burguesa
do que propriamente monárquica, a Rússia passava por momentos conturbados. Mal
se recuperara do massacre da Guerra Russo-Japonesa quando o Arquiduque
Francisco Ferdinando, da Áustria, foi assassinado em Sarajevo. Exércitos de
5 Anastasia… was very roguish and almost a wag. She had a strong sense of humour and the darts of her wit often found sensitive spots. She was rather an enfant terrible, although this fault tended to correct itself with age. She was extremely idle, though with the idleness of a gifted child. Her French accent was excellent, and she acted scenes from comedy with remarkable talent. She was so lively, and her gaiety so infectious, that several members of the suite had fallen into the way of calling her 'Sunshine’. (GILLIARD, 1921)
19
mobilizaram, embaixadores apresentaram ultimatos. A Rússia veio em defesa de seus
protegidos sérvios e, no dia 29 de junho de 1914, entrou oficialmente na guerra contra
a Alemanha. Diante das notícias, tanto Alexandra quanto as Grã-Duquesas choraram:
a czaritsa, afinal, nascera Alix de Hesse-Darmstad, um ducado do Império Alemão.
Apesar de algumas ofensivas iniciais bem sucedidas, a Primeira Guerra
Mundial foi um fardo extremamente pesado para a Rússia, principalmente devido ao
seu escasso sistema ferroviário, que demandava muito tempo para levar novos
soldados ao front. Enquanto isso, os transportes de bens, como alimento e carvão,
ficavam cada vez mais difíceis para o resto do território, e revoltas populares
começaram novamente a eclodir. Alexandra, Olga e Tatiana, já maiores de idade,
treinaram como enfermeiras da Cruz Vermelha e trabalhavam diariamente em um
hospital. Já Anastásia e Maria, que tinham respectivamente treze e quinze anos
quando a guerra começou, se limitavam a servir de acompanhantes para os feridos
do hospital, lendo para eles, conversando, escrevendo cartas ou jogando. Os
historiadores King e Wilson também ressaltam que: “Anastásia mantinha seus bolsos
cheios de doces: bombons redondos recheados de crème brûléé, que distribuía
livremente aos pacientes mas também, rememorou um deles, ‘os comia ela mesma o
tempo todo’” (KING, G e WILSON, P.)
As perdas foram catastróficas. Morreram entre 900 mil e 2 milhões de russos
na guerra, e 5 milhões foram feridos. Os débitos somaram mais de $8 bilhões de
rublos e a inflação subiu verticalmente. E, no meio deste período conturbado, uma
morte em especial atraiu a atenção: a de Rasputin, assassinado pelo príncipe Felix
Yassupov.
O príncipe posteriormente forneceu em sua autobiografia Esplendor Perdido
uma versão bastante melodramática deste dia. Em 16 de dezembro de 1916,
Yassupov e o Grão-Duque Dimitri Pavlovitch organizaram uma conspiração. Levaram
o monge a uma festa fictícia na casa do príncipe e misturaram no seu vinho e no bolo
“veneno o bastante para matar cinco homens”. O monge bebeu “sem alteração
alguma”. O príncipe, então, atirou na vítima, que caiu. Quando Yassupov abaixou para
ver se ainda respirava, Rasputin abriu os olhos e tentou estrangulá-lo: ele disparou,
então, outros três tiros. Vendo que ainda estava vivo, os príncipes amarraram-no e o
atiraram no Rio Neva semicongelado. Quando o corpo foi descoberto, dois dias
20
depois, a autópsia revelou que Grigori Rasputin tinha morrido não afogado, mas de
frio.
Esta versão é, no mínimo, bastante exagerada, mas foi a que entrou para a
história. Radzinski desmistifica vários pontos em seu O Arquivo Rasputin: em primeiro
lugar, o monge provavelmente não morreu envenenado porque não tomou veneno
algum. Segundo sua filha Maria, o mujique não comia doces (de forma que não
chegou a ingerir o bolo envenenado) e, no caso do vinho, o testemunho do Grão-
Duque Nicolau Mikhailovitch, um dos nobres assassinos, explica: “O fato de que o
cianureto não funcionou eu posso explicar facilmente... já usei esse recurso várias
vezes para envenenar insetos. A solução estava fraca demais.” A explicação faz
sentido: nenhum dos envolvidos na conspiração era assassino profissional, e “em sua
ansiedade e pressa fizeram a solução fraca demais para diluir em vinho”.
Por que, afinal, esta versão dramática da morte? É simples: “Felix inventou a
história [do veneno] posteriormente para fazer parte de sua fábula sobre um demônio
que pessoas comuns tinham destruído heroicamente”. O objetivo, claramente, é
provar que estava lidando com um monstro – o que automaticamente coloca essa
nobreza assassina em um papel de heroísmo.
Pode até ser verdade que, se não houvesse Rasputin, não haveria Lênin, mas
também é difícil imaginar a Revolução Russa sem a Primeira Guerra Mundial. A fome
começou a se alastrar e a inflação, a subir. Segundo Massie, um ovo custava quatro
vezes o preço de 1913; farinha, cinco. Outra das consequências da Guerra foi o forte
sentimento anti-germânico que gerou nos russos: Beethoven e Brahms foram
proibidos na Orquestra Sinfônica, lojas alemãs foram incendiadas e, claro, a czaritsa
era intensamente odiada. Na época, somaram-se às acusações de que teria sido
amante de Rasputin diversas outras: desde que era espiã dos alemães até de estar
sabotando a guerra internamente.
Em março de 1917, Petrogrado (ex-São Petersburgo) tinha chegado ao seu
limite. A Revolução foi tão imprevisível que Lênin ainda estava em Zurique quando ela
começou. No dia 8, uma revolta começou em uma das enormes filas para comprar
pão que tinham se tornado constantes e os cidadãos invadiram padarias. A multidão
só se tornava mais numerosa à medida que os dias passavam: no dia 9 mais
estabelecimentos foram saqueados, no dia 10 a maior parte dos trabalhadores entrou
21
em greve. No dia 11, o Gabinete Imperial teve sua última reunião e a Duma assumiu
a frente do governo. O primeiro ministro foi preso e Kerensky se tornou uma figura de
liderança. As tropas citadinas já não lutavam contra a multidão, mas juntavam-se a
ela. O czar foi retirado, às pressas, do front de batalha e embarcou em um trem rumo
à capital, informado de que havia distúrbios nas ruas da cidade.
Nicolau II abdicou no dia 15, ainda no trem. Neste seu último documento oficial
como czar, Nicolau passou o trono ao seu irmão mais novo:
Nestes dias decisivos para a Rússia, pensamos ser um
dever da consciência facilitar a união e consolidação do
povo com todas as forças nacionais (...) e, em acordo com
a Duma Imperial, pensamos ser melhor abdicar do trono
do Estado Russo, e deixar o poder supremo.
Como não queremos ser separados de nosso querido filho,
entregamos nossa herança ao nosso irmão, o Grão-Duque
Miguel Alexandrovitch, e lhe damos nossa bênção para
ascender ao trono (...)
Que Deus abençoe a Rússia!
Nicolau
(Tradução nossa)6
A Duma e os antigos ministros se reuniram com Miguel, então com 39 anos e
casado com uma plebeia. Kerensky lhe informou que, caso aceitasse o trono, “não
poderia responder sua vida”. O que era provavelmente verdade, dada a onda anti-
monárquica que tomava Petrogrado. Miguel, também, abdicou, e assim terminou a
dinastia de mais de 300 anos dos Romanov. Edvard Radzinski faz uma breve análise
deste momento:
6 In these decisive days in the life of Russia, We thought it Our duty of conscience to facilitate for Our people the closest union possible and a consolidation of all national forces (…) In agreement with the Imperial Duma We have thought it well to renounce the Throne of the Russian Empire and to lay down the supreme power. As We do not wish to part from Our beloved son, We transmit the succession to Our brother, the Grand Duke Michael Alexandrovich, and give Him Our blessing to mount the Throne of the Russian Empire. (…) May the Lord God help Russia! Nicholas (Citado em MASSIE, 1967, p. 415)
22
O misticismo da história: o monastério de onde retiraram o
primeiro Romanov para governar a Rússia foi o de Ipatiev;
a casa onde o último governante Romanov, Nicolau II,
perdeu a vida, era a Casa de Ipatiev, assim chamada por
causa do proprietário do prédio, o engenheiro N. N. Ipatiev.
Um Miguel foi o primeiro czar da dinastia Romanov; um
Miguel foi também o último, em favor de quem Nicolau II
tentou inutilmente abdicar. (RADZINSKI,1992, p. 19.)
1.3 Execução
Após a Revolução, em março de 1917, Nicolau, Alexandra e as crianças foram
aprisionados no palácio de Tsarskoe Selo – o que, no caso deles, significava “prisão
domiciliar”. Todo o pessoal do castelo foi dispensado, sobrando apenas os que se
dispuseram voluntariamente a ficar: entre eles o professor de francês Pierre Gilliard e
o marinheiro Nagorny, encarregado de proteger e carregar Alexei, que já era incapaz
de andar. Agora, a família era cercada de guardas “bastante rudes” e o antigo
imperador de mais de 17 milhões de km² agora podia passear por não mais que alguns
metros de jardim – mas fora isso, segundo Gilliard, “a rotina foi majoritariamente
mantida”.
Em 14 de agosto do mesmo ano, entretanto, os “cidadãos Romanov” foram
exilados em Tobolsk, na Sibéria, dentro dos limites da abandonada Casa do
Governador. Em abril de 1918, foram novamente removidos, desta vez para uma área
ainda mais oriental da Sibéria: a Casa de Ipatiev em Ecaterimburgo. Lá, finalmente,
tornaram-se prisioneiros de verdade.
Do grupo original, sobravam apenas doze pessoas: Nicolau, Alexandra, seus
cinco filhos, a dama de companhia Demidova, o médico Eugênio Botkin, o mordomo
Trup, o cozinheiro Karitonov e o Nargony, o marinheiro.
O jornalista Robert Wilton, correspondente do The Times na Rússia, foi o
primeiro a publicar sobre este período. Sua reportagem, de 1920, ajudou a construir o
mito de horror que se tornou a estadia em Ecaterimburgo: “Antes de suas mortes, os
prisioneiros foram alvo de maus-tratos, chegando a torturas horríveis, mentais senão
físicas”. A realidade era bem menos dramática, mas bastante tensa. Segundo King e
23
Wilson: “Duas gerações passariam antes que essas histórias de terror fossem
reveladas como fabricações atrapalhadas e imprecisas, repetidas e recicladas por
diversas vezes para aumentar a aura dos Romanov como mártires”.
A família não tinha privacidade alguma. Os guardas entravam e saíam dos
quartos na hora que queriam; toda a correspondência era lida e a família era obrigada
a falar o tempo todo em russo para que não pudessem conspirar. Havia desenhos
obscenos da czaritsa com Rasputin no banheiro. Nagorny foi preso após atritos com
os guardas.
Na madrugada do dia 16 para 17 de julho, quase exatamente um mês após do
aniversário de 17 anos da jovem Anastásia, as onze pessoas restantes no grupo dos
prisioneiros foram acordadas às pressas pelos bolcheviques. Yurovski, líder da
guarda, explicou que o Exército Branco se aproximava e que precisavam tirá-los dali.
Os Romanov e seus quatro criados se vestiram e desceram até o porão. Havia duas
cadeiras: Alexandra sentou-se em uma; Alexei, na outra, pois já não conseguia ficar
de pé. Depois entrou a guarda. Yurovski declarou rapidamente: “seus parentes
tentaram salvá-los. Eles falharam, e agora devo matá-los”.
Nas palavras secas, de soldado, do próprio comandante Yurovski:
Ele perguntou “O quê?” e voltou-se para Alexei. Naquele
momento eu atirei e o matei instantaneamente. Ele não
teve tempo de se virar para nós para conseguir uma
resposta. (…) Começou um tiroteio caótico,
desorganizado. (...) As balas começaram a ricochetar
porque as paredes eram de tijolo. O tiroteio se intensificou
quando começaram os gritos das vítimas. (...) Quando
parou, as filhas, Alexandra Feodorovna e, aparentemente,
Demidova e Alexei também, estavam vivos. Acho que
caíram de medo, ou talvez intencionalmente. Então
procedemos para finalizar a execução (Previamente, eu
tinha sugerido que mirássemos no coração para evitar
muito sangue). Alexei permaneceu sentado, paralisado.
Eu o matei. Eles atiraram nas filhas, mas não as mataram.
Então Yermakov partiu para usar o cabo da baioneta, mas
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isso também não funcionou. Finalmente elas morreram
com tiros na cabeça. (Tradução nossa)7
Depois, os corpos foram embalados em lençóis e levados para uma
caminhonete. Todo o procedimento, disse Yurovski, “levou vinte minutos”. Os corpos
foram levados para uma mina a 20 quilômetros de distância de Ecaterimburgo e lá
foram despidos, cortados em pedaços, desfigurados com ácido e queimados. Foi
então que os executores compreenderam porque fora tão difícil matar as Grã-
Duquesas. “As meninas vestiam espartilhos feitos quase inteiramente de diamantes e
[outras] pedras preciosas”, lembra Yurovski. As joias tinham sido costuradas lá nos
meses de encarceramento para o caso de conseguirem fugir.
Este “Relatório Yurovski”, hoje tão citado, só foi publicado nos anos 1990. Até
então, a execução dos Romanov era envolta numa aura de mistério. O governo
soviético declarou oficialmente que executara o czar, mas mentiu a respeito do destino
de sua mulher e filho e, sobre as meninas, nem uma palavra. O anúncio oficial foi
reproduzido em periódicos pelo mundo todo. Abaixo, uma notícia do New York Times,
jornal mais importante da época, em 20 de julho de 1918:
Recentemente, Ecaterimburgo, capital dos Urais
Vermelhos, foi seriamente ameaçada pela aproximação
Tchecoslovaca e uma conspiração anti-revolucionária foi
descoberta (...) À vista disso, o Presidente do Conselho
Regional dos Urais decidiu executar o ex-czar, e a decisão
foi posta em prática em 16 de julho.
A mulher e filho de Nicolau Romanov foram enviados para
um local seguro. (Tradução nossa)8
7 He asked "What?" and turned toward Alexei. At that moment I shot him and killed him outright. He did not get time to face us to get an answer. At that moment disorganized, not orderly firing began. (…) Bullets began to ricochet because the wall was brick. Moreover, the firing intensified when the victims shouts arose. (…)When the firing stopped, it turned out that the daughters, Alexandra Feodrovna and, it seems, Demidova and Alexei too, were alive. I think they had fallen from fear or maybe intentionally, and so they were alive. Then we proceeded to finish the shooting. (Previously I had suggested shooting at the heart to avoid a lot of blood). Alexei remained sitting petrified. I killed him. They shot the daughters but did not kill them. Then Yermakov resorted to a bayonet, but that did not work either. Finally they killed them by shooting them in the head. (Extrato do Relatório Yurovski) 8 Recently Yekaterinburg, the capital of the Red Urals, was seriously threatened by the approach of Czechoslovak hands and a counter-revolutionary conspiracy was discovered (…). In view of this fact, the President of the Ural Regional Council decided to shoot the ex-Czar, and the decision was carried out on July 16.
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O Exército Branco chegou a Ecaterimburgo oito dias após o massacre e,
embora fosse óbvio que alguém morrera ali (havia, afinal, marcas de sangue e balas
no porão), era impossível determinar o número exato de vítimas. Em janeiro de 1919,
o investigador Nicolau Sokolov foi contratado para descobrir o que fora feito da família
real. Ele localizou e catalogou centenas de pequenos vestígios: uma cruz de
esmeralda que a czaritsa sempre usava, a fivela do cinto do czar, seis sets de
espartilhos, os óculos do Dr. Botkin, partes de ossos com marcas de machado, balas
parcialmente derretidas por ácido e mesmo um dedo decepado – “longo e manicurado
como o da czaritsa”.
Sokolov deduziu o que havia acontecido com a família e estabeleceu: não havia
corpos. Nada tinha sobrevivido às balas, ao machado, ao ácido e ao fogo. Durante a
maior parte do século XX, foi nisso que o mundo acreditou.
1.4 A impostora
A confusão que se instalou após a morte da família, a ausência de corpos, as
diversas versões ocasionalmente fornecidas pelo governo soviético – tudo contribuiu
para que os impostores fossem quase inevitáveis. Foram dezenas, alguns burlescos,
ridículos, outros um tanto trágicos.
Em 1919, um vilarejo nos Urais deu abrigo às “duas filhas mais novas do czar”
que viveram como freiras “em uma pobreza terrível, com medo todos os dias”. Elas
foram enterradas como “Maria Nikolaevna” e “Anastásia Nikolaevna”.
Uma mulher chamada Nadezha Vasilyeva apareceu na Sibéria, tentando entrar
ilegalmente na China, em 1920. Ela foi presa e escreveu diversas cartas ao rei Jorge
V da Inglaterra, que ela chamava de “Tio Jorge”, em nome de Anastásia. Ela morreu
no asilo de Kazan em 1971. Na Itália, Marga Boodts disse ser a Grã-Duquesa Olga.
Outro italiano, Alexis d’Anjou, disse ser filho de Maria.
Nos Estados Unidos, a “Anastásia” de Eugenia Smith atraiu alguma atenção da
mídia, chegando mesmo a publicar uma “autobiografia”: Eu, Anastásia. Um polonês
chamado Michael Goloniewski trabalhou na CIA alguns anos e alegou ser o czarevitch
The wife and the son of Nicholas Romanoff have been sent to a place of security. (The New York Times, 20/07/1918)
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Alexei – o que parecia extremamente improvável uma vez que que Goloniewski não
era hemofílico. Ainda assim, estes dois foram capa da revista americana Life em 1963.
Até mesmo o Brasil teve seus impostores. Em 1963, a revista O Cruzeiro
noticiou que a princesa Anastásia tinha fugido para o Brasil e estava vivendo em
Poços de Caldas, sustentada pela caridade de um advogado chamado Dr. Jair de
Moura Pinto. A historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista concedida
especialmente a esta pesquisa, relembra do caso como lhe foi contado pelo seu pai,
o Professor Antonio Candido, que conheceu a suposta “Anastásia”: era uma mulher
com olhos grandes (“redondos de coruja”) que andava sempre com um capote verde,
fizesse inverno ou verão. A gola do capote, assim como o seu chapéu, eram de
astracã, e ela tinha um cabelo comprido e pintado de vermelho.
Nem todos os impostores foram assim tão pitorescos. Uma das requerentes,
na verdade, conseguiu criar um dos mistérios mais duradouros do século XX. Ao longo
dos anos, esta mulher foi chamada de muitos nomes: Fräulein Unbekannt, Sra.
Alexander Tchaikowski, Anna Anderson, Franziska Schanzkowska, Anastásia
Manahan. Para todos os efeitos, sua história começa no dia 17 de fevereiro de 1920,
em Berlin, quando tentou cometer suicídio atirando-se no canal Landwehr.
Ela foi levada naquela noite para... o Hospital Elizabeth,
em Lützowstrasse (...). [Ela não tinha] nenhuma bolsa nem
documentos, nenhuma identificação de nenhum tipo. As
enfermeiras procuraram por iniciais, marcas de lavanderia,
etiquetas, qualquer coisa que pudesse ajudar a polícia...
Não havia nada a fazer. Por ora, a deixaram dormir.
No dia seguinte, os médicos e a polícia a encontraram
mais forte. (...) Não, ela declarou, ela não diria quem era,
ou qual era sua família, de onde vinha, ou com o que
trabalhava. (Tradução nossa)9
9 She was taken that night to... the Elizabeth Hospital, in Lützowstrasse (…). But [she had] no purse and no papers, no identification of any kind. The nurses looked for initials, laundry marks, labels, anything that could help the police… There was nothing to be done. For now they let her sleep. The next morning the doctors and the police found her stronger. (…) No, she declared, she would not tell her who she was, where she had come from, or what she did for a living. (KURTH, 1983, p. 04)
27
Sua mudez a levou a ser internada no asilo Dalldorf, com “depressão”. Cartazes
foram espalhados pela cidade, mas ninguém se manifestou para buscá-la. Era a
Berlim pós-Guerra, e havia mais desaparecidos do que a polícia podia se dedicar a
encontrar. Para começar, a mulher tinha um “sotaque completamente estrangeiro” e
provavelmente sequer era alemã. Foi internada sob o nome de Fräulein Unbekannt –
Senhorita Desconhecida.
Ela ficou em Dalldorf por mais de dois anos. Existe alguma divergência sobre
quando teria se “autoproclamado” Anastásia. Segundo King e Wilson: “Depois,
nenhuma das quatro enfermeiras de Dalldorf conseguiu se lembrar exatamente
quando Fräulein Unbekannt começou a dar pistas sobre sua suposta identidade ou o
que fora dito.” Peter Kurth, no que provavelmente é o livro mais completo sobre o caso
Anna Anderson, cita diversos trechos dos relatórios das enfermeiras nestes dois anos
em que a paciente ficou internada: “Pela sua postura e maneira de falar temos que
concluir que ela vem de um bom círculo social... Em todos os seus trejeitos ela dá a
impressão de ser uma dama aristocrática”, relatou uma; “[A paciente] tem medo de
ser reconhecida e enviada de volta para a Rússia Soviética” e “medo de ser tocada”.
E por fim, que “enquanto dorme, ela fala russo com boa pronúncia, principalmente
coisas irrelevantes”.
Aparentemente, o nome Anastásia foi mencionado pela primeira vez quando a
paciente viu a edição de outubro da revista Berliner Illustrirte Zeitung de 1921 – que
tinha na capa uma das últimas fotos conhecidas de Maria, Tatiana e Anastásia e a
manchete “Uma das filhas do czar ainda está viva?”. Dentro da revista, a matéria trazia
uma descrição bastante imprecisa do encarceramento em Ecaterimburgo e “até hoje,
não foi possível estabelecer definitivamente se, durante o massacre, uma das Grã-
Duquesas não foi apenas muito ferida, e continuou viva.” (Berliner Illustrirte Zeitung,
citado em KING, G e WILSON, P.)
Segundo Kurth, a enfermeira Bertha Waltz teve a ideia de levar a revista para
a paciente, que, quando a viu, ficou “muito triste, pálida, e disse ‘eu conheço todas
essas pessoas’.” “No dia seguinte ela ficou completamente prostrada e deprimida.”
Outra enfermeira, Thea Malinovski, declarou em um artigo de jornal publicado
em 1927 que a paciente, nesta época, trouxe a revista até ela, de noite, e teve uma
reação curiosa:
28
Na capa estava uma fotografia da família imperial russa.
Ela pôs a revista na minha frente e perguntou se alguma
coisa não me chamava a atenção. (...) Eu fingi não ver
nada em particular, e em seguida ela apontou para a jovem
e perguntou se eu ainda não notava nada. Eu disse que
não. Ela perguntou ‘Você não vê nenhuma semelhança
entre nós duas?’ (...) Eu perguntei se era ela. Ela se virou,
não querendo dizer mais nada. Eu disse que ela não devia
ter ido tão longe se não queria me contar o resto.
Foi aí, no outono de 1921, que ela declarou ser Sua Alteza
Imperial a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna. (Tradução
nossa)10
A paciente pediu discrição das enfermeiras, e talvez o segredo jamais tivesse
saído de Dalldorf se uma outra paciente, Marie Clara Peuthert, não tivesse ficado tão
animada com a história. Ao deixar o asilo em janeiro do ano seguinte, Peuthert
começou a contatar imigrantes russos para contar sua descoberta. Fräulein
Unbekannt passou a receber visitantes que “tentavam fazer perguntas, encaravam, e
a encheram de doces, flores e livros”. Dois desses visitantes foram o Barão e a
Baronesa Von Kleist que, apesar de jamais terem conhecido Anastásia, estavam
convencidos da identidade desta paciente e a convidaram para morar no seu enorme
apartamento em Berlim: foi lá que ela contou a história de sua milagrosa fuga.
“Histórias de sua fuga”, na verdade, seria uma expressão mais precisa, pois o
conto de Fräulein Unbekannt foi alterado diversas vezes. Todas elas, entretanto, têm
o começo em comum: após o tiroteio em Ecaterimburgo, um soldado chamado
Alexander Tchaikowski tinha percebido que Anastásia não estava morta, apenas
desmaiada, e conseguiu resgatá-la da casa. Os Tchaikowski (“sua mãe, Maria; sua
irmã, Veronica; e seu irmão, Sérgio”) a levaram para a Romênia em uma carroça e
10 On the cover was a photograph of the Russian imperial Family. She put the magazine down in front of me and asked if I was not struck by something in the picture. (…) I pretended that I couldn’t see anything in particular, whereupon she pointed to the young girl and asked if I still didn’t notice anything. I said no. She asked, “Then you don’t see any resemblance between the two of us?” (…)I asked her if it was she. She turned away, not wanting to let out any more. I told her that she shouldn’t have come this far unless she was prepared to tell me the rest. It was then, in the autumn of 1921, that Fräulain Unbekannt declared outright that she was Her Imperial Highness the Grand Duchess Anastasia Nikolaevna. (Depoimento de Thea Malinowski citado em KURTH, 1963, p. 12)
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cuidaram dela, e lá ela ficou ilegalmente até 1920. A história continha diversos
detalhes vagos: aparentemente, durante as semanas de transporte que ela passou
inconsciente quase o tempo inteiro, este Alexander a teria estuprado, e ela deu à luz
um filho alguns meses depois. O Barão Von Kleist, um dos primeiros a ouvir esta
história, afirmou que Fräulein Unbekannt teria dito que o bebê – que ela chamara de
Alexei – teria nascido em 5 de dezembro. Isso causava um certo problema, pois a
criança, mesmo prematura, teria que ter sido gerada antes do massacre em
Ecaterimburgo para que a data procedesse. Posteriormente, a própria requerente
negou esse dois detalhes, dizendo que “a criança foi batizada com o nome do pai,
Alexander” e que ela “Não tinha ideia de quando tinha nascido”. De qualquer forma, o
bebê fora levado a um orfanato com poucos dias de vida e ela nunca mais o viu.
(KURTH, P.)
Depois disso, ela e Alexander Tchaikowski teriam se casado em uma igreja
católica e, no fim de 1919, ele morrera com um tiro em uma briga de rua. Foi aí que
ela, agora sra. Tchaikowski, decidiu ir até Berlim, pedir ajuda de sua tia, a princesa
Irene da Prússia. Cruzou a fronteira a pé, para evitar chamar a atenção. Mas, quando
chegou ao palácio, concluiu, em desespero, que nunca seria reconhecida e atirou-se
no canal.
Não foi encontrado nenhum registro de nenhuma Tchaikowski entre os guardas
de Ipatiev, nem nenhum registro de uma família com este nome vivendo em Bucareste
– incluindo nenhum nascimento, nenhum casamento, nenhuma morte. Mas eram
tempos de guerra, e imigrantes ilegais não eram incomuns. Segundo Massie:
No fundo, “a fuga” era um dos capítulos menos verificáveis
da lenda de Anastásia; tinha que ser aceita pela fé – como
foi pelos seus apoiadores – ou rejeitada como muito
improvável – como foi pelos seus opositores. No fim,
deixou de ser um problema. Nenhum dos dois lados estava
interessado em como ela escapara. Eles queriam saber
quem ela era. (Tradução nossa)11
11 All in all, “the escape” was perhaps the least verifiable of the chapters of the Anastasia legend.; it had to be accepted on faith – as it was by her supports – or rejected as wildly improbable – as it was by her opponents. In the end, it was no longer an issue. Those on either side of the argument were not interested in how she got away from the cellar. They wanted to know who she was. (MASSIE, 1995, p. 165)
30
As testemunhas mais importantes do caso seriam, é claro, os Romanov. A
maior parte deles se recusou a vê-la, mas a irmã do czar Nicolau, a Grã-Duquesa
Olga, não quis ignorar a requerente. Quando recebeu as notícias, ela escreveu para
o antigo tutor das meninas, Pierre Gilliard: “Por favor, vá para Berlim ver a pobre moça.
Imagine que ela seja a pequenina... Seria uma desgraça se ela estivesse vivendo
sozinha em sua tristeza.”
E Gilliard foi, juntamente com sua esposa Alexandra – ou Shura – que tinha
sido babá das Grã-Duquesas. Estas visitas se tornariam algumas das partes mais
famosas da lenda de Anastásia. Quando os Gilliard chegaram a Berlim, Fräulein
Unbekannt estava com uma infecção tubercular grave que a fazia arder em febre a
ponto de ter alucinações. A primeira coisa que Shura pediu ao médico foi para ver os
pés da paciente. Anastásia tinha sofrido de uma má-formação chamada hallux valgus:
joanete intrínseca. O lençol foi retirado. “Os pés parecem os da Grã-Duquesa. Com
ela era a mesma coisa: o pé direito era pior do que o esquerdo”, declarou Shura.
Na segunda visita, três meses depois, a paciente já estava melhor e podia
conversar. Gilliard pediu que ela contasse tudo que lembrava do seu passado. Ela
respondeu que “Não sei conversar. Você acha que se alguém tentasse te matar, como
tentaram comigo, você lembraria de muita coisa de antes?” Gilliard partiu e chamou a
Grã-Duquesa Olga. A jornalista alemã Harriet Rathlef-Keilmann, “sempre muito
ansiosa para publicar evidência favorável à requerente” (KING, G e WILSON, P.),
estava presente e deixou um relato detalhado deste encontro. A primeira coisa que a
requerente perguntou a Olga foi “Como está a vovó? Como está o coração dela?”
Vovó estava bem, foi o que Olga respondeu, e as duas começaram a conversar. Shura
apareceu pouco depois e, segundo o relato de Rathlef-Keilmann:
Ela não conseguia tirar os olhos [de Shura]. Então ela
pegou uma garrafa de água de colônia e pôs um pouco
sobre a mão de Shura. Ela pediu que molhasse sua testa...
[Shura] riu com lágrimas nos olhos. Era assim que
costumava fazer a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna,
que era louca por perfume. (Tradução nossa)12
12 She would not take her eyes off her. Then she grasped her bottle of eau de cologne and poured some of it into Shura’s hand. She asked her to moisten her forehead… [Shura] laughed with tears in her eyes.
31
A Grã-Duquesa Olga, depois, teria dito para a jornalista que “nossa pequenina
e Shura parecem muito felizes de terem se reencontrado.” O próprio Gilliard, Rathlef-
Keilmann escreveu, teria dito “Meu Deus, que horror! O que aconteceu com a Grã-
duquesa Anastásia? Ela está destruída, completamente destruída!”
No dia seguinte, entretanto, quando o trio voltou para visitar e Gilliard tentou
fazer algumas perguntas sobre a Sibéria, a paciente se recusou a responder,
alegando uma dor de cabeça. No dia seguinte, Olga e os Gilliard tiveram que partir.
Por dois meses, foram trocadas cartas amistosas, incluindo quatro da própria Olga,
que chegou a mandar uma echarpe de seda de presente. Depois, em janeiro de 1926,
um artigo foi publicado no National Tidende, em Copenhague:
Podemos declarar, com o apoio de fontes de autoridade,
que não há marcas de identificação entre a Grã-Duquesa
Anastásia, filha do czar Nicolau II, e a dama de Berlim
conhecida como Tchaikowski, que diz ser a Grã-Duquesa
(...). Para esta negação categórica, e para resolver a
questão de uma vez por todas, podemos revelar que a
Grã-Duquesa Olga foi para Berlim para ver Frau
Tchaikowski, mas que nem ela nem ninguém que
conheceu a filha mais nova do czar Nicolau foi capaz de
identificar a menor semelhança entre a Grã-Duquesa
Anastásia a pessoa que diz se chamar Frau Tchaikowski.
(Tradução nossa)13
Então, afinal, o que aconteceu naquele hospital? Como aquela aceitação tão
pronta se converteu nessa rejeição categórica? Para Peter Kurth, o primeiro biógrafo
de Frau Tchaikowski, era óbvio que Olga e os Gilliard tinham sido persuadidos pelos
outros Romanov – especialmente a Imperatriz-viúva, Marie – e pelo Grão-Duque de
Hesse, irmão de Alexandra. Ele definiu a situação como “uma embaraçosa questão
That was just like Grand Duchess Anastasia Nikolaevna, who was mad about perfume. (citado em KURTH, 1983, p. 110) 13 We are able to state, with support from the most authoritative source, that there are no common identifying marks between Grand Duchess Anastasia, daughter of Tsar Nicholas II, and the lady in Berlin known under the name of Tschaikowsky, who claims to be the Grand Duchess (…). By way of a categorical denial, in order to settle the matter once and for all, we can disclose that Grand Duchess Olga went to Berlin to see Frau Tschaikowsky, but neither she, nor anyone else who knew Tsar Nicholas’ youngest daughter, was able to find the slightest resemblance between Grand Duchess Anastasia and the person who calls herself Frau Tschaikowsky. (citado em KURTH, 1983, p. 114)
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de família” – afinal tratava-se de aceitar como parente uma mulher doente, sem dentes
da frente e aparentemente com falhas na memória. Robert Massie, escrevendo com
uma distância histórica maior, defendeu que na verdade Olga “não tinha certeza” e
cita uma carta que a Grã-Duquesa escreveu para o embaixador Zahle pouco depois
de partir: “Não posso descrever como me apeguei a ela [à paciente] – quem quer que
ela seja. Meu sentimento é que ela não é quem pensa ser – mas não dá para dizer
que não é com certeza – pois ainda há muitos fatos estranhos e inexplicados.”
Quem conseguiu explicar esta contradição da forma mais sólida, mais uma vez,
foram King e Wilson:
O mistério não é sem solução, e esta solução pode ser
encontrada não respondendo a pergunta “Frau
Tchaikowski era Anastásia?” mas sim “Olga Alexandrovna
e os Gilliard chegaram a acreditar que era?”
Como mais explicar (...) o desabafo emocional do antigo
tutor, “Que horror! O que aconteceu com a Grã-Duquesa
Anastásia? Ela está destruída, completamente destruída!
Quero fazer tudo que puder para ajudar a Grã-Duquesa”.
Isso é mais que sugestivo, é prova. Mas é verdade? Zahle
[embaixador holandês em Berlim na época, também
presente na visita] leu o manuscrito de Rathlef-Keilmann e
disse que a versão dela ‘condiz com minhas memórias e
anotações’. Mas ele se contradisse. Segundo o ministro, o
que Gilliard disse foi ‘Ah, pobre Grã-Duquesa’, um
comentário que pode ter se referido à posição difícil de
Olga Alexandrovna. E Rathlef-Keilmann também
contribuiu para a confusão porque as palavras efusivas
que ela atribuiu a Gilliard em seu livro... não constam nas
primeiras declarações e cartas a respeito do caso. Na
declaração de março de 1926, ela citou Gilliard dizendo ‘é
terrível, é terrível. Quero fazer tudo que puder para ajudar
a Grã-Duquesa’. Não há menção ao nome Anastásia aqui.
Ele só foi adicionado no livro, em 1928.
33
(...) [Sobre as cartas de Olga] Embora a Grã-Duquesa
possa ter agido de forma apressada ao despachar cartas
e presentes, ela quase certamente o fez, como
posteriormente insistiu, mais por compaixão do que por
reconhecimento. De fato, em nenhuma das cartas ela se
refere à requerente como ‘Anastásia’, nem indica que
aceitou qualquer parentesco familiar com ela, nem assina
como ‘Tia Olga’. Ao escrever para Frau Tchaikowski em
russo, empregava o ‘você’ da maneira formal, se dirigindo
a ela não como íntima mas como uma estranha. (Tradução
nossa)14
Casos como estes seriam recorrentes ao longo de toda a história de Frau
Tchaikowski, durante os 64 anos que viveu depois de ser resgatada do canal.
Somente dois Romanov a reconheceram como Anastásia: um foi o Grão-Duque
Andrei, primo de Nicolau II, que tinha convivido com a jovem Grã-Duquesa em alguns
almoços familiares, e a outra foi a princesa Xênia da Rússia, que vira Anastásia pela
última vez em 1913 – dez anos antes. Nenhum dos dois fora íntimo da família.
Outra questão que jamais foi totalmente resolvida era a dos idiomas: Frau
Tchaikowski não falava russo, embora aparentemente pudesse compreendê-lo. Se
ela se recusava a falar – porque russo, para ela, se tornara uma língua de humilhação,
como alegavam seu defensores – ou se era incapaz de fazê-lo – como alegavam seus
14 Yet the mystery is not without a solution, and that solution can be found not in answering the question Was the claimant Anastasia? but rather in the more complex Did Olga Alexandrovna and the Gilliards, as the evidence suggests, ever believe that she might be? How else, for example, to explain (…) the former tutor’s startling outburst on his visit “ How horrible! What has happened to Grand Duchess Anastasia? She is a wreck, a complete physical wreck! I want to do everything I can to assist the Grand Duchess”. This is more then suggesting; it is compelling. But is it true? Zahle read Rathlef-Keilmann’s manuscript and said that her vision ”agrees with my memories and notes”. And yet he contradicted himself. According to the minister, what Gilliard had in fact said was “Oh, the poor Grand Duchess”, a remark that may have meant to indicate Olga Alexandrovna’s difficult position. And the Rathlef-Keilmann added to the confusion because the effusive words the attributed to Gilliard in her book… [were] missing from her earliest statements and letters concerning the visit. In a March 1926 statement, she quoted Gilliard as saying “It’s terrible, so terrible. I want to do everything I can to help the Grand Duchess.” There was no mention of the name Anastasia here. That addition seemed to first appear in the pages of Rathlef-Keilmann’s 1928 book. [About Olga’s letters] While the Grand Duchess may have acted rashly in dispatching letters and gifts, she almost certainly did so, as she insisted, out of compassion rather then recognition. Indeed, in none of the letters did she address the claimant as “Anastasia”, indicate that she accepted any family relationship with her, nor sign herself as “Aunt Olga”. In writing to Frau Tschaikowsky in russian, she employed the forml form of “you”, addressing her not as an intimate but as a stranger. (KING e WILSON, 2011, p. 131-132)
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opositores – estava aberto a debate. Além disso, as famosas acusações de que Anna
Anderson sabia de coisas que só a verdadeira Anastásia poderia saber também
geram polêmica até hoje.
Os casos são inúmeros: talvez o mais famoso deles seja de quando Gleb Botkin
(filho do dr. Botkin, médico que morreu junto com os Romanov) foi visitá-la e ela
perguntou se ele tinha trazido “Seus animais engraçados”. Tratava-se de uma
referência a desenhos de animais que um pequeno Gleb enviava para a família
durante o cativeiro na Sibéria, por intermédio de seu pai. A evidência parece forte,
mas King e Wilson, mais uma vez, a colocam em xeque em seu A Ressureição dos
Romanov:
A história não é tão convincente quanto este relato sugere.
Ao contrário do que Gleb escreveu em seu livro de 1938
sobre o caso, Frau Tchaikovski nunca perguntou sobre
“seus animais engraçados” ou forneceu qualquer
evidência de que estava ciente da sua existência. Foi, na
verdade, Gleb quem levantou a questão, como ele mesmo
confirmou em três ocasiões diversas: primeiro para
Rathlef-Keilmann, depois em seu livro de 1931 sobre os
Romanov, e finalmente em sua declaração sobre o caso
da requerente. Só depois ele mudou sua história. Ele
mencionou os desenhos, disse, “para quebrar o gelo” (...)
Já foi sugerido que ela simplesmente adivinhou quais
desenhos tinham sido feitos na Sibéria, já que ‘ao menos
alguns’ tinham datas. (Tradução nossa)15
Em 1927, o caso deu uma nova reviravolta. O periódico alemão Berliner
Nachtausgabe foi visitado por uma mulher chamada Doris Windenger, que tinha
reconhecido nas reportagens sobre Anastásia uma mulher que costumava alugar um
apartamento na pensão de sua mãe. Esta mulher – uma polonesa chamada Franziska
15 Yet the story was not quite as convincing as this account suggests. Contrary to what Gleb wrote in his 1938 book on the case, Frau Tschaikowsky never asked about his “funny animals” or offered any evidence that she was aware of their existence. It was, in fact, Gleb who first raised the issue, as he confirmed on three separate ocasions: first to Rathlef-Keilmann, then in his 1931 book on the Romanovs, and finally in his affidavit on the claimant’s case.; only later did he change his story. He had mentioned the drawings, he said, “to break the ice” (…) It has been suggested that she simply guessed which pictures had been done in Siberia, as “at least some” bore dates at the bottom. (KING e WILSON, 2011, p. 175)
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Schanzkowska – tinha desaparecido no começo de 1920. Em 1922, retornara, muito
nervosa, e explicara que estava vivendo com alguns imigrantes russos “que
aparentemente a tinham confundido com alguém”.
Franziska tinha ficado três dias e, naquele meio tempo, as duas mulheres
trocaram as roupas: Doris ainda tinha o vestido cor de rosa, o casaco de pele de
camelo e a roupa de baixo com as iniciais AR bordadas. Para verificar a história, o
jornal tinha contratado um detetive que levou estas roupas à casa do Barão e
Baronesa Von Kleist, com quem Anna Anderson tinha morado em 1922. A Baronesa
as reconheceu: “Eu mesma comprei essa pele de camelo. E essa é a roupa de baixo,
eu mesma bordei as iniciais.”
Doris foi levada para confrontar a requerente algumas semanas depois e o
mesmo jornal noticiou que “a testemunha mal pôde desejar ‘Bom dia’ antes que
Franziska Schanzkowska levantasse [do divã onde estivera deitada] e gritasse em
uma voz carregada de sotaque ‘Tirem isso daqui!’. A súbita agitação, a ira em sua voz,
o horror em seus olhos, não deixam dúvidas: ela reconheceu a testemunha
Wingender” (citado em MASSIE, 1995, p. 180)
O irmão de Franziska Schanzkowska, Felix, foi trazido da Polônia para
identificar a requerente. Ao vê-la, disse “Essa é minha irmã Franziska”. Frau
Tchaikowski foi até ele e conversaram, em particular, em voz baixa. Depois, quando
entregaram a Felix uma declaração formal identificando a requerente como sua irmã,
ele se recusou a assinar, dizendo “Não, ela não é minha irmã”. Na opinião de King e
Wilson, o que aconteceu aqui foi claro: ele não quis atrapalhar a “carreira” da irmã
como Anastásia.
Apesar de todos estes indícios, o “caso Schanzkowska” foi
surpreendentemente pouco divulgado. Nesta época, Anderson morava no castelo de
Seeon, como hóspede do duque e duquesa Leuchtenberg. Ao longo dos anos, ela se
mudou bastante, fosse entre as casas de seus apoiadores mais ricos ou em outros
lugares financiados por eles, como a Clínica Stillachhaus, nos Alpes Bávaros, uma
casinha no vilarejo Unterlengenhardt e, por fim, a América, onde se casou com o
milionário Jack Manahan.
Foi na cidade de Charlottesville, na Virgínia, que ela morreu, em 1984. A causa
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foi pneumonia. Em sua morte, lhe foi concedida a identidade que ela requisitara por
63 anos: o certificado registra seu nome como “Anastasia Nikolaevna Manahan”, seu
pai como “Czar Nicolau”, mãe como “Alix de Hesse-Darmstad” e ocupação como
“realeza”.
Ela foi cremada e as cinzas, enterradas no castelo de Seeon, como ela pediu.
No túmulo há uma cruz ortodoxa e a inscrição “Nosso coração é inquieto até que
repouse no Senhor”.
1.5 Ficção
O primeiro filme baseado na história da suposta ressureição de Anastásia saiu
em 1928: um filme mudo americano chamado Clothes Make a Woman (As Roupas
Fazem a Mulher). No mesmo ano, estreou a produção alemã Anastasia: Die Falsche
Zarentochter (Anastásia: A Falsa Filha do Czar). Saíram mais dois filmes em 1930:
Secrets of the French Police (Segredos da Polícia Francesa) e o alemão Kampf und
Anastasia (Luta e Anastásia). Em 1954 estreou a peça Anastasia, levada para a
Broadway por Sir Lawrence Olivier. A produção alemã Anastasia: Die Letze
Zarentochter (Anastásia: A Última Filha do Czar) rendeu à atriz Lili Palmer o prêmio
de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Berlim em 1957.
Em 1956, estreou o famoso Anastásia da Fox, uma produção de mais de U$3
milhões. É a história de uma pobre moça amnésica que é resgatada de uma tentativa
de suicídio por um general russo. Este homem, o fictício príncipe Sergei Bounine,
decide treiná-la para se passar pela Grã-Duquesa Anastásia e obter uma recompensa
pelo resgate. Enquanto aprende mais sobre a vida da realeza, Anna começa a ter
recordações do seu passado. Quando finalmente é confrontada com a avó da Grã-
Duquesa, a Imperatriz-Viúva Marie, Anna se lembra de uma tempestade no iate
imperial, e avó e neta se abraçam em uma cena emocionante.
A ficção, somada às diversas reportagens em jornais ao redor do mundo
(principalmente as da pouco imparcial Rathlef-Keilmann), consolidou o mito. As provas
começaram a deixar de importar para o público: fosse provado ou não, Anna Anderson
tinha se tornado Anastásia.
Mas, sem saber, Anna Anderson deixara para trás evidência de sua verdadeira
identidade. Quase dez anos após sua morte, ela seria definitivamente desmascarada.
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1.6 Os Ossos
Em 1979, dois cientistas russos, Ryabov e Avdonin, visitaram o filho mais velho
de Yakov Yurovski e conseguiram a primeira cópia do que hoje é o famoso ‘Relatório
Yurovski’. Ele continha explicações detalhadas sobre onde estavam os ossos dos
Romanov. A tumba foi encontrada mas, com medo das consequências desta
descoberta, mantiveram segredo por mais de dez anos. Só em 1989 as informações
vieram a público e, em 1991, Boris Yeltsin autorizou a exumação.
Mas havia um problema: a tumba encontrada só continha nove esqueletos,
quando deveria conter onze. Havia dois corpos faltando. O DNA confirmou que
aqueles eram os quatro criados e cinco dos sete Romanov. Massie faz uma análise
bastante completa dos processos de identificação em Os Romanov – O Capítulo Final.
Duas equipes distintas trabalharam na identificação dos ossos, uma russa –
conduzida pelo dr. Abramov – e uma americana – conduzida pelo dr. Maples. Os dois
concordaram em uma coisa: não havia o corpo de nenhum garoto adolescente na
tumba, e portanto Alexei não estava lá. Mas também faltava uma das meninas.
O método de Abramov, por superimposição dos ossos a fotografias, identificou
a filha que faltava como Maria; o de Maples, que analisou o desenvolvimento de
dentes (principalmente os sisos) e da medula óssea, identificou a filha perdida como
Anastásia.
A notícia de que o corpo de Anastásia estava faltando “provocou desconforto
entre as famílias reais”, nas palavras de Massie, pois, afinal, “e se uma injustiça
moralmente terrível e politicamente embaraçosa tivesse sido cometida contra uma
prima nobre indefesa?”.
E então, localizou-se no hospital Martha Jefferson, onde Anna Anderson tinha
morrido, uma parte de tecido de intestino que tinha sido armazenada quatro anos
antes de sua morte, quando ela retirara um tumor no ovário. Era mais do que o
suficiente para testar. Após uma longa batalha legal sobre quem tinha os direitos sobre
o intestino, em 1994 o dr. Peter Gill realizou seus testes e apresentou seus resultados.
O método usado foi o de DNA mitocondrial, passado integralmente por
linhagem materna. Descendentes maternos diretos, sejam eles separados por uma
geração ou por cem, apresentam o mesmo DNA mitocondrial. Assim, comparou-se a
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amostra de Anna Anderson aos ossos das demais mulheres retiradas da tumba dos
Romanov. Havia seis pares de base diferentes, o suficiente para o dr. Gill concluir que
“o tecido que vem de Anna Anderson não pode ser associado com um parente
materno da Imperatriz... Isso é definitivo.” Além disso, testou-se o tecido com material
fornecido por um sobrinho-neto de Franziska Schanzkowska. O resultado foi “cem por
cento de encaixe, uma identidade absoluta”. Para King e Wilson:
Em um caso repleto de reviravoltas extraordinárias, esta
foi a mais extraordinária de todas, esta repentina mudança
genética, esta intrusão da ciência moderna no conto de
fadas (...) O mundo soube das notícias, e descobriu que
alguns poucos milímetros de tecido preservado tinham
destruído a mais perene das lendas reais. (Tradução
nossa)16
1.7 Franziska
Franziska Schanzkowska era uma operária polonesa, nascida no vilarejo de
Borowilhas. Ela pertencia a um povo chamado cassubiano, descendente dos eslavos
bálticos, e talvez fosse cassubiano o “dialeto totalmente estrangeiro” que tantos
descreveram no alemão de Anna Anderson. Após se formar no segundo grau,
Franziska foi para Berlim trabalhar nas fábricas, de forma a poder mandar dinheiro
para a família. Em 1916, ela desmaiou enquanto estava na linha de produção para
polir granadas na fábrica AEG, causando um acidente bastante grave. Foi ele que
matou um colega de trabalho, deu a Franziska as cicatrizes que posteriormente seriam
atribuídas ao massacre de Ecaterimburgo e, finalmente, a fez perder o emprego.
Berlim durante a guerra era um lugar muito difícil para uma camponesa pobre,
sozinha e desempregada. Ela voltou a trabalhar algumas vezes, inclusive em uma
fazenda com alguns imigrantes russos (onde ela aprendeu o pouco do idioma que era
capaz de compreender, presumivelmente) mas nunca mais teve um emprego fixo.
Entre o frio, a fome, a falta de perspectivas e sua personalidade já bastante bipolar,
não é difícil entender porque Franziska Schanzkowska decidiu cometer suicídio
16 In a case filled with extraordinary twists off ate, this was the most extraordinary of all, this genetic turn, thin intrusion of modern Science into the Edwardian fairy tale (...) The world learned the news, learned that a few millimeters of preserved tissue and loose strands of hair had destroyed the most enduring of royal legends. (KING e WILSON, 2011, p. 266)
39
atirando-se do canal Landwehr.
Quando foi levada para o asilo de Dalldorf, a decisão de não dar seu nome nem
nenhuma outra informação foi calculada. King e Wilson argumentam: “Enquanto a sua
identidade permanecesse um mistério, ela tinha certeza de que seria cuidada: não
tinha que trabalhar por horas, não tinha que se preocupar em ficar em pé, no frio, por
horas para obter comida, não tinha que se preocupar com as exigências da vida na
tumultuosa Berlim pós-guerra”.
As evidências sugerem que a história toda começou apenas como um pequeno
esquema para ganhar atenção dentro do asilo, para que lhe fossem dispensados
alguns poucos privilégios extras para a mulher que poderia ser Anastásia. Se não
fosse Marie Clara Peuthart, talvez a história jamais tivesse saído de Dalldorf.
Franziska Schanzkowska nunca fez nenhum esforço para que sua causa fosse
publicada, nem para que parentes da verdadeira Anastásia viessem vê-la: o caso
simplesmente espiralou para fora do seu controle e foi ganhando dimensões que ela
não previu.
O que não sabemos é se Franziska Schanzkowska, após passar mais de
sessenta anos fingindo ser outra pessoa, por vezes não cruzou a linha da crença ela
mesma. Quando perguntada sobre o massacre de Ecaterimburgo, Anna Anderson o
descreveu como “Um acidente, um terrível acidente. Eu desmaiei, tudo ficou azul, e
eu vi estrelas dançando e um grande zumbido nos ouvidos... meu vestido ficou
ensanguentado. Tudo ficou cheio de sangue.” Esta descrição, especialmente a opção
pela palavra “acidente”, parece, na opinião de King e Wilson “uma escolha estranha
de palavras para descrever as execuções brutais”. Entretanto, seria uma
representação precisa do que ela pode ter sentido no acidente da fábrica da AEG em
1916, quando derrubou uma granada. Talvez a escolha do nome Tchaikowski para
seu fictício marido seja mais uma evidência desta confusão entre quem ela era e quem
fingia ser – o nome é sonoramente muito parecido com o nome da família de
Franziska, Schanzkowski (versão germanizada do polonês Czentskowski). Assim,
esta “Anastásia” que ela se tornou era também uma “sra. Schanzkowski”. Mas, por
outro lado, talvez fosse uma mera técnica mnemônica, um nome que ela não fosse
esquecer. De uma forma ou de outra, sugere uma crescente aproximação entre fato
e ficção na cabeça da requerente.
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Mas como Schanzkowska, esta camponesa da Polônia, esta operária
imigrante, conseguiu convencer tantas pessoas ao longo de tanto tempo de que era
da realeza? Esta foi a questão central pesquisada por King e Wilson, que oferecem
uma análise psicológica da requerente em seu A Ressureição dos Romanov. É
verdade que Schanzkowska foi muito habilidosa, recusando-se a responder a
qualquer pergunta quando o visitante parecia hostil e sendo vaga ou culpando sua
“memória despedaçada” e sua “má saúde” quando era amistoso. Ela jamais tentou
provar ao mundo que era Anastásia, apenas “se cercou de dúvidas o suficiente para
que pudesse existir no éter da perpétua incerteza”.
Em duas ocasiões, ela chegou mesmo a admitir ser uma farsa. Em 1927,
quando Doris Windenger foi levada para confrontá-la no castelo de Seeon, Anderson
provavelmente pensou que a farsa tinha acabado, pois se voltou para o duque e
perguntou “Você pensou mesmo que estava abrigando a filha do seu czar?” (ao que
o duque respondeu “Mesmo Franziska Schanzkowska pode ficar na minha casa. Eu
nunca tive certeza se você era ou não a filha do czar. Apenas te tratei com a simpatia
que qualquer um teria por um doente.”, segundo a mesma matéria do Berniner
Nachtausgabe). Depois, em 1967, conversando com Alexei Miliukov, ela falou de
“quem eu sou, e quem eu finjo ser”. Mas estas duas afirmações tão importantes
passam quase despercebidas no caso Anna Anderson.
A maior força de Schanzkowska, o que a tornou a mais famosa de todas as
impostoras Romanov (a revista Times a colocou no Top 10 Impostores de todos os
tempos), foi que a requerente soube usar os desejos do público a seu favor. Qualquer
informação errada que ela fornecesse colocaria a caridade da qual ela vivia a perder
– mas na ausência de informação o público tendia a ficar a seu favor. Em
retrospectiva, é evidente que Franziska Schanzkowska e Anastásia Romanov não são
a mesma pessoa, e uma comparação fotográfica muito simples deveria ter sido o
suficiente para comprová-lo.
As bases para o caso de Anderson, quando examinadas a fundo, são na
verdade bastante fracas (King e Wilson descrevem o episódio longamente em seu A
Ressureição dos Romanov). Então a questão é: por que tamanha notoriedade? O mito
que se tornou o nome Anastásia Romanov pode ser atribuído à existência de sua
impostora? Ou esta relação se dá no sentido contrário: o caso de Anna Anderson só
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tamanha dimensão por suprir uma necessidade imaginária que já existia?
Então a verdadeira pergunta não é “como Franziska Schanzkowska conseguiu
convencer o mundo de que era Anastásia?” e sim “Por que o mundo quis se deixar
convencer de que ela era?”. São essas forças, maiores e mais antigas que a própria
Anastásia, que são o tema central aqui.
42
Charges distribuída entre tropas russas em 1916, mostrando Rasputin e o casal real (Fotos:
Getty Images)
Acima, à esquerda, capa da revista O Cruzeiro em 1963. À direita, capa da Berliner Illustrirte
Zeitung em outubro de 1921, com Anastásia, Maria e Tatiana.
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Comparação fotográfica feita dos perfis de Anastásia Romanov e Franziska Schanzkowska
por Pierre Gilliard em seu livro A Falsa Anastásia
À esquerda, as fotos tiradas quando a paciente foi internada em Dalldorf, 1920 (Fotos: Ian
Lilburn Collection). À direita, foto de Anastásia em 1916 e sua última foto conhecida, em 1917.
(Fotos: Arquivo de Estado Russo)
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O MITO POLÍTICO-HEROICO
O mundo não é apenas o que é. Ele é o que
entendemos, não é? E no ato de entender alguma
coisa, nós trazemos algo de nós, não é? Isso não
torna a vida uma história?
Yann Martel, A Vida de Pi
Por que Anastásia? Por que esta princesa russa pouco importante, que morreu
antes de completar a maioridade e que nada de relevante fez em vida, hoje habita o
mesmo reino que figuras lendárias, de contos de fada e mitos? Para compreendermos
este fenômeno, precisaremos analisá-lo sob uma ótica dupla: a política e a mística.
Comecemos pela primeira.
Tanto regimes monárquicos quanto situações revolucionárias são terrenos
extremamente férteis para a germinação de mitos. Para a socióloga Claire Gaspard,
“qualquer historiador que vise estudar o fenômeno revolucionário terá, inicialmente,
de eliminar os mitos que marcaram os fatos” (p. 800). O mesmo se aplica às
monarquias, embora de forma diferente. Os heróis de Revolução (Guilherme Tell,
Pancho Villa, Zapata, Garibaldi, Che Guevara, e ocasionalmente vilões – como
Robespierre ou Napoleão) geralmente se sobressaem “pois a esperança de criar na
Terra dias melhores está sempre viva; e o mito revolucionário é portador de
esperança”. Já os heróis-reis são dotados de outras características, geralmente não
de ruptura, mas de tradição.
Ernst Kantorowicz argumenta extensamente em seu O Corpo Duplo do Rei a
respeito do porquê monarquias são mais propensas à mitificação do que repúblicas.
Os reis, ao contrário dos presidentes, não têm o respaldo do voto pala legitimar seu
poder de mando. Era necessário que houvesse algum tipo de justificativa para o fato
de um indivíduo ser rei e o outro, servo. No século XVII, na França, Boullain-Villiers
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foi o responsável por difundir a ideologia do “sangue azul”, por exemplo. Ele
provavelmente se referia ao fato de que a nobreza não precisava trabalhar e, portanto,
não ficava exposta ao sol, o que significava que em seus pulsos era possível ver as
pequenas veias azuis. Mas o termo teve um efeito colateral: ele tornava o direito de
mandar quase fisiológico.
A história é interessante, mas este não era o primeiro nem o principal
argumento que justificava o poder de mando do rei: eles recorreram, primeiramente,
ao teatro. A monarquia é o único sistema político em que a pompa e a circunstância
não são decorrências do poder e sim suas causas: a encenação é parte fundamental
do poder monárquico, como explica a antropóloga Lilia Schwarcz em sua tese de
doutorado, As Barbas do Imperador: “É apenas na monarquia que a etiqueta alcança
tal importância que realidade e representação confundem-se em um jogo intrincado”.
Para ela, o argumento cênico é parte integral e essencial do poder monárquico. Ela
não está sozinha: Peter Burke argumenta em seu A Fabricação do Rei, livro que
destrincha a figura pública de Luís XIV:
O palácio do Louvre imprimia respeito aos povos do
mundo. Provavelmente referia-se aos povos da Europa,
não apenas da França. Como, por sua vez, Luís XIV (ou,
mais precisamente, um de seus secretários) explicou ao
Delfim, os festivais agradam aos súditos e dão aos
estrangeiros “uma impressão extremamente vantajosa de
magnificência, poder, riqueza e grandeza”. (...) O teórico
social Montesquieu, que cresceu no reinado de Luís XIV,
fez um comentário parecido: “O fausto e o esplendor que
cercam os reis são parte de seu poder”. (BURKE, p. 17)
Luís XIV é o maior exemplo do rei que se mostra, e seu modelo foi muito
exportado. Pedro, o Grande, esteve na França em 1717 e, segundo Burke, ao voltar
o czar criou “um jornal oficial segundo o modelo da Gazette, uma fábrica de tapetes
nos moldes dos Gobelins” além de “uma academia de ciências nos moldes da
Académie de Sciences”. Além disso, ao voltar, o czar Pedro ergueu o palácio de
Peterhof, que “poderia ser visto como um novo Versailles, senão na aparência ao
menos na função”. Por fim, “Os appartements [recepções caseiras para divertimentos,
como bilhar, para as classes altas] de Luís também tinham seu equivalente russo nas
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assembleias de São Petersburgo, embora o objetivo destas fosse bem diverso –
ensinar as maneiras ocidentais à aristocracia russa”.
Mostrar o rei é, parcialmente, legitimar seu poder. Desenvolveu-se na Europa
uma sociedade que, entre outras coisas, ditava quem podia ou não olhar para o rei e
em que circunstâncias. Um bom exemplo é o despertar real (ou a cerimônia da levée),
na França: Einhard, um escrivão do século VIII, descreveu como o Carlos Magno
resolvia pequenas disputas camponesas enquanto se vestia, logo após despertar.
Este momento foi se formalizando ao longo do tempo: ele chegou ao ápice no tempo
de Luís XIV, quando a corte inteira era formalmente convidada a aguardar na
antecâmara do quarto do rei para saudá-lo quando acordasse. Nobert Elias descreve
longamente este cerimonial em A Sociedade de Corte, e como ele era parte de um
intrincado jogo de poder envolvendo quem podia entrar antes ou depois no quarto do
rei.
Na Inglaterra, até hoje, não se pode virar as costas para a rainha: é necessário
deixar o recinto onde ela está andando de costas. Existe, portanto, uma etiqueta – e
uma importância – em torno do ato de se ver o monarca. O antropólogo americano
Clifford Geertz também corroborou com esta ideia ao afirmar que “Quando os reis
percorrem as regiões interioranas, mostrando-se, comparecendo a festas, conferindo
honrarias, trocando presentes ou desafiando rivais, eles as marcam, assim como o
lobo ou o tigre que espalha o próprio odor em todo o território, [tornando-o] como que
fisicamente parte deles”.
Mas, se a sociedade de corte é uma sociedade de teatro (como argumentou
Norbert Elias), levanta-se instantaneamente a pergunta óbvia: o que se está
representando? É onde entra a teoria do Corpo Duplo do Rei, formulada por
Kantorowicz: o monarca é dono de um corpo físico, mortal, humano – e também de
um corpo político, essencialmente místico. Em seu ensaio A Culpa dos Reis: Mando
e transgressão em Ricardo II, o crítico literário Antonio Candido sublinha o quão
frequentes são as metáforas vegetais na peça Ricardo II, de Shakespeare. Elas ligam
a seiva das árvores ao sangue do rei, que se torna encarnação do Estado que governa
(“Por baixo do sistema simbólico de fluidos, por baixo da união mágica entre o rei e a
terra, está efetivamente a realidade da posse desta terra, por meio da ação
legitimadora da realeza”).
47
Da mesma maneira, em algumas das várias versões da famosa lenda do Rei
Arthur, a conexão entre a saúde do monarca e a saúde de sua terra é explicitada. Na
versão em verso de Chrétien de Troyes, A História do Graal, Arthur é seduzido por
sua irmã, a fada Morgana, e os dois têm um filho ilegítimo – Mordred. Uma maldição
cai sobre o rei por causa do incesto e ele fica muito doente. Junto com ele, morre a
vida na terra da Bretanha e começa um período de fome e seca. É neste momento
que começa a busca dos cavaleiros pelo Graal, para curar o rei e, com ele, a Inglaterra.
No século XV, na França, iniciou-se uma tradição que depois foi exportada para
a Inglaterra, Espanha, Dinamarca e Itália: diante da morte de um rei, um nobre (na
França, tradicionalmente o duque de Urzès) era encarregado de declarar ao povo “O
rei morreu. Viva o rei!”. Esta frase é significativa: ela denota que o corpo físico de um
monarca morreu, mas não seu corpo político. Este foi imediatamente transferido a seu
sucessor: o único momento em que o país não tem rei é neste pequeno ponto final
que separa as duas frases. Morreu o pai, viva o filho. O monarca morre, mas a
monarquia não morre jamais. Explica Kantorowicz que “era costume dizer que o
imperador, cuja coroa “material e visível” consistia em um diadema, tinha sua coroa
“invisível”, dada por Deus” (p. 245). É esta coroa invisível que é passada adiante por
direito de nascença.
Assim, podemos observar que o corpo político do rei é também intrinsecamente
ligado eu seu corpo místico. Este “direito de nascença” que o liga a terra teria sido
concedido por Deus. A relação entre a mitologia e a política, frequentemente
resvalando em misticismo, foi construída com o tempo, lentamente associando
símbolos divinos ao governante, e vice-versa. Ainda segundo Kantorowicz:
As relações recíprocas inumeráveis entre Igreja e Estado,
presentes principalmente durante a Idade Média, fizeram
nascer híbridos nos dois campos. Os empréstimos mútuos
e as trocas de insígnias, de símbolos políticos, de
prerrogativas e de direitos de honra criam um ponto de
contato entre os chefes espirituais e seculares da
sociedade cristã. O Papa decorava sua fronte com uma
tiara dourada, vestia o púrpura imperial, e se fazia
preceder de uma procissão solene. O imperador portava
uma mitra sobre a coroa, vestia os sapatos do pontífice e
48
outras vestes clericais, e recebia, como um bispo, um anel
na coroação. (...) O sacerdoctium tinha uma aura imperial
e o regnum, um aspecto religioso. (Tradução nossa)17
Em A Fabricação do Rei, Peter Burke também ressalta que “sua imagem
pública [a de Luís XIV] não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada”.
O escritor inglês William Thackaray, com a ironia característica de A Feira das
Vaidades, também observou que “A gente logo vê, essa majestade toda vem da
peruca, dos sapatos de salto alto e do manto... É assim que os barbeiros e os
sapateiros fabricam os deuses que adoramos”.
A historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista para esta pesquisa,
também atribuiu um caráter divino à monarquia russa “principalmente a partir de
Alexandre I – que era um místico, se envolvia com várias facções religiosas e foi visto
como o salvador da Europa, por libertá-la de Napoleão Bonaparte, que era o anticristo.
[Alexandre I] Foi o homem da Santa Liga – a monarquia russa se impregnou também
desse caráter divino”.
Não deixa de ser verdade: a derrota de Napoleão elevou a Rússia à condição
de autêntica superportência, transformando Alexandre I em um herói. Mas as origens
do próprio czarismo já são por si só bastante místicas, como relata Miranda Carter em
Os Três Imperadores: o status imperial viria do fato de serem “herdeiros” do império
bizantino.
O príncipe Ivan, o Grande, casou-se com a sobrinha do
último imperador bizantino, acrescentou a águia de duas
cabeças bizantina a suas insígnias, adotou o ritual de corte
bizantino e começou a se chamar de czar. Com isso, ele
mobilizava uma série de mitos messiânicos bastante úteis
17 Des relations reciproques innombrables entre Église et État, vivaces à tous les siècles de Moyen Âge, ont donné naissance à des hybrides dans les deux camps. Des emprunts mutuels et des échanges d’insignes, de symboles politiques, des prérogatives et des droits d’honneur avaient eu lieu en permanence entre les chefs spirituels et séculiers de la société chrétienne. Le pape decorait as tiare d’une couronne dorée, revêtait la poupre impériale, et se fasait preceder des bannières impériales quando il chevauchait à travers Rome em procession solennelle. L’empereur portait um mitre sous as couronne, revêtait les souliers pontificaux et autresvêtement cléricaux, et recevait, comme un évêque, l’anneau à com courronnement. Au début du Moyen âge, ces emprunt concernait principalement les personanalités régnantes, séculières et spirituelles, jusqu’à ce que, finalemente, le sacerdotium ait une allure impériale et le regnum un aspect religieux. (KANTOROWICZ, p. 145)
49
sobre a missão mundial da Rússia: reconquistar
Constantinopla (...) e “proteger” os povos eslavos dos
Bálcãs frente ao império otomano. Essa dupla missão fez
com que sua autoridade ficasse sob fiança da Igreja
Ortodoxa russa. O czar transformou-se no grande
defensor da ortodoxia; a Igreja, mais estreitamente
vinculada ao Estado que em qualquer outro país da
Europa, decretou que o czar era o representante de Deus
na Terra e que devia ser obedecido a qualquer custo.
(CARTER, 2009, p. 81)
Mas se por um lado, as monarquias são mais propensas à mitificação do que
as Repúblicas, também não são todos os reis que entram para a história – parece
haver uma densidade de imaginário maior em alguns dos que em outros. No vasto
panteão de monarcas, apenas alguns se tornaram heróis – ou vilões – da cultura
popular. Cleópatra, César, Luís XIV, D. Sebastião, Matias Corvino, Maria Antonieta,
Elizabeth I, Pedro o Grande e, é claro, a jovem Anastásia são alguns deles. Peter
Burke, em Variedades de História Cultural, levantou o mesmo questionamento: “Há
uma pergunta óbvia para um historiador se fazer neste ponto. Por que os mitos se
vinculam a alguns indivíduos (vivos ou mortos) e não a outros?”.
Burke debruçou-se sobre a questão do que determinaria o sucesso de um
indivíduo em sua mitificação – ou seja, o que tornaria uma personagem real mais ou
menos “mitogênica” que outra. Para ele, o sucesso em se tornar mito pouco tem a ver
com fatos reais – e sim com a percepção de algum(ns) aspecto(s) de determinado
indivíduo em um estereótipo vigente de herói ou vilão. Ou seja, a mitificação seria um
fenômeno histórico essencialmente de imaginário.
Fenômenos históricos imaginários são mais recorrentes do que podemos achar
a princípio. Parece uma contradição em termos – históricos e imaginários –, mas os
exemplos são diversos. Maria Antonieta, muito provavelmente, nunca disse “O povo
não tem pão? Então que coma brioches”. A biógrafa da rainha, Lady Antonia Fraser,
defendeu na Feira do Livro de Edimburgo, em 2002, que na verdade a frase tinha sido
dita ao menos cem anos antes, por Maria Teresa, esposa de Luís XIV. Fraser defendeu
que “Foi uma declaração insensível e ignorante, e ela [Maria Antonieta] não era
nenhum dos dois”.
50
Mas, para todos os efeitos práticos, já não importa se Maria Antonieta disse ou
não a famosa citação – o que importa é que o povo francês acreditou que ela o tivesse
feito, e o comportamento frívolo da rainha foi um dos principais motivos do ódio do
povo contra a monarquia.
Umberto Eco, em Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, cita diversos
exemplos onde o real e o ficcional se mesclam para fazer história e História. Um deles:
durante a Guerra Falklands-Malvinas, o jornal O Clarín noticiou que um submarino
inglês estaria em território argentino. Os ingleses declaram não ter nenhuma
informação a respeito e o caso correu por dias, com diversos argentinos declarando
mesmo terem visto o tal submarino (uma espécie de Monstro do Lago Ness latino-
americano) e a mídia especulando sobre diversas supostas “informações oficiais”.
Por fim descobriu-se: o submarino de fato existia, mas jamais tinha deixado o
solo inglês.
Quem foi que inventou aquele submarino amarelo? [...] O
que me interessa é como a história inteira se desenvolveu
a partir de um vago mexerico com a colaboração de todos
os envolvidos. Todo mundo contribuiu para a criação
daquele submarino amarelo porque era uma personagem
de ficção fascinante e sua história era narrativamente
empolgante.
Essa história – quer dizer, a história verdadeira de uma
construção ficcional – tem muitas morais. [Ela] mostra que
somos constantemente tentados a dar forma à vida
através de esquemas narrativos. (ECO, U. 1994)
Também temos exemplos do contrário, em que a vida real é alterada a partir da
ficção. Alguns exemplos são divertidos: 221B Baker Street recebe anualmente
centenas de cartas endereçadas a Sherlock Holmes, e a estação de King’s Cross, em
Londres, tem hoje um carrinho marcando o local onde estaria a fictícia plataforma 91/2
de Harry Potter. Outro exemplo marcante foi a imensa polêmica gerada pelo best seller
O Código da Vinci, de Dan Brown, que passou a ser contestado como se fosse um
livro de história, e não uma ficção policial, pois soube manipular habilmente algumas
lacunas históricas. Mas Eco também discorre longamente sobre casos mais sérios,
51
como dos templários: tudo que sabemos de concreto sobre eles é que eram guerreiros
cristãos ligados às Cruzadas, e que foram exterminados pelo rei Filipe IV da França.
Mas eram realmente uma sociedade secreta, adoradora de um ídolo pagão, o
Bafomé? E a Ordem Secreta Rosa-Cruz, supostamente ligada ao que se chamou de
maçonaria templária? Nenhuma destas coisas, hoje lendas, tem algum tipo de
sustentação histórica.
Eco segue os rumores sobre os templários através dos séculos. Muito
provavelmente, eles só foram exterminados sob uma acusação falsa ou exagerada
por causa do poder que estavam adquirindo, mas uma enorme bola de neve ao longo
do tempo os associou à maçonaria, depois ao judaísmo, a uma conspiração para
tomar o mundo e, por fim, aos fictícios Protocolos dos Sábios do Sião. Uma cópia
deste livro foi parar nas mãos de Adolf Hitler, e o resto da história é conhecido.
Tudo isso se desenvolveu a partir de um vago mexerico do século XII – porque
era narrativamente empolgante. Este caso é assustador, mas nos mostra como a
ficção é capaz de moldar a vida. A Invenção das Tradições, organizado por Eric
Hobsbawm e Terence Ranger, fala de mais um caso curioso: a Escócia. A ideia deste
país romântico habitado por homens vestindo kilts com “padrões dos antigos clãs” e
tocando gaita de fole foi construído inteiramente no século XIX, como uma maneira
de criar uma identidade nacional.
Ninguém vive no presente imediato: temos memória pessoal e coletiva. História
e memória são construídas e, por meio da linguagem, estruturamos passado e
presente. Talvez seja um agravante que a linguagem seja o instrumento que usamos
tanto para construir a História dos fatos quanto para elaborar histórias ficcionais – daí
a necessidade de partículas que demonstrem claramente qual é qual, cujo exemplo
mais evidente talvez seja o "era uma vez". Senão, como nos diz Eco: “Se os mundos
ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como se fosse uma
obra de ficção?”
A pesquisadora do jornalismo Patrícia Ceolin do Nascimento nos fornece uma
visão deste conflito aplicado à prática jornalista, e expõe a dificuldade de se tentar
fazer “ciência” através de métodos tradicionalmente “ficcionais”.
52
Na prática jornalística, é a narração a forma redacional
predominante, uma vez que o discurso jornalístico move-
se em torno dos fatos da atualidade. (...) Diariamente,
abrimos jornais e revistas, acessamos sites de notícias
para saber o que aconteceu, quais foram os fatos
relevantes que a mídia nos apresenta como informações.
São relatos, histórias, e, como tais, configuram-se pela
forma narrativa.
Ainda que o relato jornalístico procure se calcar em bases
“científicas” e objetivas na busca pela informação, há que
se considerar que a estruturação narrativa lhe é inerente,
o que equivale dizer que seu potencial ficcional também o
é. (...) Ao mesmo tempo que busca um modelo de
veracidade semelhante ao da ciência, apresenta-se por
meio da narrativa, formato caracteristicamente ficcional.
Assim, o jornalista, que se apoia nos fatos e em seus
desdobramentos... para exercer sua função informativa,
ocupa, ao mesmo tempo, esse papel de “contador de
histórias” da atualidade e lida, às vezes inadvertidamente,
com personagens, conflitos e expectativas que escapam a
qualquer tentativa de enquadramento do objetivo da
realidade. (NASCIMENTO, 2009, p. 54)
Podemos, aqui, voltar à teoria de Peter Burke. O que determina o sucesso de
um indivíduo em sua mitificação pouco tem a ver com feitos reais, e sim com o
enquadramento dele dentro de certos estereótipos arquetípicos. Por exemplo, em As
Barbas do Imperador, Lilia Schwarcz expõe alguns dos toques dramáticos que teve a
vida de D. Pedro I: órfão de pai com um ano de idade e de mãe com 10, imperador
coroado aos 14, exilado aos 64. “No seu caminho é difícil notar onde se inicia a fala
mítica da memória, quando acaba o discurso político e ideológico; onde começa a
história, onde fica a metáfora”.
Ele não é o único: outra personagem brasileira que passou por um intenso
processo de mitificação foi Tiradentes. O historiador José Murilo de Carvalho, em A
Formação das Almas, acompanha o trajeto que este inconfidente percorreu até se
tornar a figura praticamente sagrada que hoje é no imaginário popular. A República
53
recém-estabelecida no Brasil precisava de um herói. O seu caráter de mártir contribuiu
para que agradasse aos mais diversos gostos, assim como sua profissão militar lhe
garantiu uma aura de heroísmo. Para o autor, também contribuiu que não se tenha
um retrato do heroi: “Cada artista tem lhe dado diferente feição. Já foi representado
com a doçura de Jesus, com os traços dos heróis antigos, e até mesmo como
caboclo”.
Tiradentes foi lentamente se aproximando de uma simbologia religiosa: ele hoje
é representado sempre com barba, coisa que um militar jamais poderia ter, o que o
aproxima da imagem de Cristo. Para Carvalho: “Portinari o pintou na década de 1940,
mantendo a aproximação com a simbologia religiosa. Seu Os despojos de Tiradentes
no caminho novo das Minas mostra os pedaços do corpo pendendo de postes e
mulheres ajoelhadas que lembram a cena do Calvário”.
O “mártir” e o “guerreiro da liberdade” – ambos associados ao “herói” –
poderiam ser dois destes arquétipos de enquadramento levantado por Burke: daí
decorreria o sucesso de Tiradentes em sua mitificação. O “herói”, afinal, é um dos
“tipos” de personagens levantados pelo formalista russo Vladimir Propp em Morfologia
do Conto Maravilhoso. Propp destrinchou centenas de contos tradicionais em suas
partes mais básicas, e identificou que quase todos os agentes destes contos podiam
ser divididos em sete “tipos” de acordo com suas ações. Além do herói, temos o vilão
(que luta contra o herói), o mandador (que faz o herói perceber o que lhe falta e iniciar
a busca), o ajudante, o doador (quem dá ao herói o que ele procura), a princesa (com
quem ele se casa) e o falso herói (que tenta roubar o crédito das ações do protagonista
ou casar com a princesa).
É fácil lembrar, de memória, centenas de exemplos de cada uma destes
personagens. Eles são, como diria Carl Gustav Jung, arquetípicos. Jung tratava os
arquétipos como órgãos psicológicos, análogos aos órgãos físicos no sentido de que
ambos são estruturas morfológicas vindas da evolução. A afirmação é bastante
ousada e, é claro, incomprovável - seu contemporâneo e colega Sigmund Freud o
acusou de ser "pouco científico". Mas estes "tipos primordiais" de personagens são
realmente de uma repetição muito recorrente embora apresentem, é claro, variações
individuais: Perseu era inteligente, Hércules era forte, o Corvo (dos esquimós do
Estreito de Bering) era malandro, Buda era pacífico. O que eles têm em comum é o
54
modo como enfrentam suas jornadas. E as monarquias, quando tentam se aproximar
do aspecto do heroísmo, também invariavelmente se aproximam dos aspectos desta
jornada.
Para Peter Burke, o mito é “uma história com significado simbólico que envolve
personagens em tamanho maior que o natural, sejam elas heróis ou vilões.” Já para
Denis de Rougement, “um mito é... uma fabulação simbólica, simples e
impressionante, que resume um número infinito de situações mais ou menos
análogas”. No caso das monarquias, um dos aspectos recorrentes destas “situações
mais ou menos análogas” é o de ressurreição. Os sebastianistas ainda hoje esperam
que D. Sebastião, de Portugal, retorne para governar a terra. Os ingleses também
aguardam o rei Arthur (o rei Felipe II, da Espanha, ao se casar com Mary Tudor,
chegou a jurar que abdicaria da coroa caso Arthur retornasse), os alemães aguardam
Frederico Barbarossa e, é claro, os cristãos esperam o retorno de Cristo.
A associação não é ao acaso: um dos grandes pesquisadores a se debruçar
sobre esta questão foi Joseph Campbell. Em O Herói de Mil Faces ele estudou
detalhadamente o plano imanente das histórias heroicas de várias culturas,
desmembrando-as. Isto é, todas as nossas histórias – e heróis – seriam semelhantes
na medida em que nossos problemas intrinsecamente humanos são semelhantes.
Segundo o próprio autor:
Você tem o mesmo corpo, com os mesmos órgãos e
energias que o homem de Cro-Magnon tinha, trinta mil
anos atrás. Viver uma vida humana na cidade de Nova
Iorque ou nas cavernas é passar pelos mesmos estágios
da infância à maturidade sexual, pela transformação da
dependência da infância em responsabilidade, própria do
homem ou da mulher, o casamento, depois a decadência
física, a perda gradual das capacidades e a morte. Você
tem o mesmo corpo, as mesmas experiências corporais, e
com isso reage às mesmas imagens. (CAMPBELL, 1988,
p. 39)
Apesar de diferentes em seu campo aparente – o “sabor local” da cultura (“é
como se a mesma peça fosse levada de um lugar a outro, e em cada lugar os atores
55
locais vestissem costumes locais”) –, a tese de que histórias ao redor do mundo teriam
o mesmo entroncamento lógico encontra uma sólida base.
Por exemplo, um dos primeiros conceitos apresentados por Campbell é o do
“duplo nascimento” do herói. Ele tem “dois pais” (como Hércules tem Zeus e Anfitrião),
“duas mães” (como Moisés tem Joquebede e a Filha do Faraó), algum mistério
envolvendo seu nascimento (como Arjuna, que foi um presente do deus Indra já que
seu pai fora amaldiçoado e era estéril), ou fica órfão ainda jovem, esta orfandade
servindo como um “segundo nascimento”. Mas não é só o nascimento do herói que é
espetacular: assim também deve ser sua morte, momento em que a vida como um
todo ganha ares de destino manifesto.
Da mesma maneira, um dos pontos mais tradicionais de histórias heroicas ao
redor do mundo diz respeito à ressurreição. Na Grécia, Orfeu vai ao Hades para tentar
salvar Eurídice e depois retorna ao mundo dos vivos; no Japão, Izanagi faz o mesmo
trajeto para visitar sua esposa Izanami. No Egito, Osíris, depois de ser esquartejado
por seu irmão Set, é brevemente restituído à vida por Ísis, que junta os pedaços do
seu corpo. No México pré-Colombiano, Quetzalcoatl criou o “quinto sol” (a nossa
Humanidade) a partir dos ossos que resgatou do submundo. O herói irlandês Finn
MacCool foi engolido por um monstro celta chamado peist. Tanto Jonas quanto
Pinocchio são engolidos por peixes gigantes. Também vale lembrar que Jesus Cristo
morre crucificado e ressuscita depois de três dias. A revelação do Monte Sinai e a
iluminação de Buda sob a árvore Bo não são muito diferentes – o mortal que tem
contato com o outro lado da vida e retorna transformado pela experiência. Para citar
um exemplo mais recente, o bruxo Harry Potter encontra o espírito de seu mentor
Dumbledore no que é descrito como um “lugar intermediário” antes de retornar para
derrotar seu inimigo, Voldemort.
Para Campbell, esta repetição teria uma matriz psicológica: “A ideia de que a
passagem dos umbrais mágicos é o trânsito para uma esfera de ressureição é
simbolizado na imagem na imagem da barriga da baleia. (...) ‘Nenhuma criatura’,
escreveu Amanda Coomaraswamy ‘pode atingir um nível superior de natureza sem
deixar de existir’.” Partida, transformação e retorno: estes são os três estágios da
Jornada do Heroi. Assim, faz sentido, em termos de imaginário popular, que um
56
monarca “heroico” venha a retornar da morte: no repertório popular, esta história já foi
contada mil vezes.
Temos o exemplo do português D. Sebastião, monarca que postumamente
criou em torno de si não apenas uma mitologia, mas uma autêntica religião. Sua morte
em um momento “heroico” – desapareceu durante uma Cruzada contra os mouros –
criou ao seu redor uma densidade de imaginário tão grande que ainda há quem espere
que ele volte para governar Portugal, embora esteja desaparecido há quase
quinhentos anos. Mas há um fato extra nesta mitificação. Ainda segundo Burke:
Um governante cujo reino é seguido de desastres – da
invasão estrangeira ao exorbitante aumento de impostos –
é um candidato com boas chances de transformar-se em
herói, pois as pessoas lembrarão o passado com nostalgia
dos bons tempos do seu governo. (BURKE, 2000, p. 81)
Voltando ao exemplo português, a morte de D. Sebastião significou o início de
um período conturbado para o Império de Portugal. O monarca morrera muito jovem,
sem deixar filhos, e Portugal enfrentou uma crise de sucessão. Quem assumiu o trono
foi um cardeal de 66 anos, tio em segundo grau de D. Sebastião: D. Henrique I. Este
rei, entretanto, faleceu dois anos depois, e então Felipe II da Espanha reivindicou o
trono de Portugal à força: teve início a chamada União Ibérica, ou seja, Portugal sob
o domínio Espanhol. Até hoje, uma quadra popular portuguesa diz:
Que o Cardeal-Rei Dom Henrique/ Fique no inferno muitos
anos/ Por ter deixado em testamento/ Portugal aos
castelhanos
Assim, não é de se espantar que a memória social se lembrasse de seu antigo
rei, D. Sebastião, com nostalgia. Da mesma maneira, Matias Corvino da Hungria (de
quem se dizia “Matias morreu, a justiça pereceu”) foi o último rei antes da invasão
otomana, em 1526. E Cleópatra, também, foi a última rainha do Egito, cuja morte
marcou não apenas o fim da dinastia Ptolomaica mas também o início do período
egípcio sob o domínio de Roma. Desastres acompanham a morte ou o
desaparecimento do herói: estes enquadramentos impressionam a imaginação.
57
É impossível precisar um único motivo porque uma figura migra da História para
a mitologia. Esta transição se dá invariavelmente por um conjunto de fatores e deve
ser analisada caso a caso: símbolos não existem em um vazio cultural e a sua emissão
e recepção – o contexto histórico em que existem – são parte integrante da morfologia
tanto quanto os feitos reais do indivíduo. Assim, a partir deste panorama de mitologias
políticas e fábulas monárquicas, devemos partir para o caso específico do projeto de
pesquisa proposto: Sua Alteza Imperial, a Grã-Duquesa Anastásia Nikolaevna
Romanov.
58
HELENA, A BELA, E BABA YAGA
Os historiadores profissionais usam com frequência o
termo “mito” para designar “uma história não verdadeira”
(em contraste com as histórias que eles mesmos criam, tal
como as veem). O que me importa aqui, contudo, não é o
Luís “real” em contraposição ao mítico. Ao contrário, o que
me interessa é precisamente a realidade do mito, isso é,
seus efeitos sobre o mundo externo aos meios de
comunicação. (BURKE, p. 18)
Quando foi publicado Nicolau e Alexandra, romance histórico de Robert K.
Massie escrito a partir de apuração extensa e precisa, foi o periódico americano
Saturday Review quem fez o comentário mais pertinente à narrativa: “um drama
exagerado, tão bizarro, tão comovente, e principalmente, tão apocalíptico, que
nenhum escritor teria se atrevido a inventá-lo”.
A resenha, longe de desmerecer a qualidade do romance, nos revela muito
sobre o material que temos a respeito dos Romanov. Massie baseia toda a sua
narrativa em extensa pesquisa, incluindo os diários dos monarcas, autobiografias da
família próxima, amigos da família, embaixadores da época e mesmo material
fornecido pelos revolucionários, como Trotsky e Kerensky. É verdade que a forma
narrativa contribui, pois passa longe de ser um frio relato histórico – mas, no fundo, é
a própria história dos Romanov que é dotada de uma característica fantástica.
Em entrevista especial para esta pesquisa, a historiadora americana Helen
Rappaport atribuiu a fama da mais nova dos Romanov a “um acidente do destino”,
Anna Anderson foi a requerente mais high profile e, para
alguns, a mais plausível. Além disso, ela apareceu quando
pessoas que conheciam os Romanov ainda estavam vivas
e queriam acreditar em um milagre. Simples assim. Se um
bom requerente tivesse aparecido para alguns dos outros
59
[Romanov mortos no massacre], ele teria atraído a mesma
atenção, senão mais. Antes da criação da lenda de
Anastásia ela era a menos importante das irmãs, por ser a
mais nova. Olga era bem mais importante e, se uma
requerente convincente de Olga Romanov tivesse
aparecido, Anastásia poderia ter desaparecido na
obscuridade. 18
Esta é uma opinião recorrente e, em certa medida, válida. Mas atribuir a fama
de Anastásia inteiramente à sua impostora não parece crível. Como vimos no capítulo
1, todo o caso Anna Anderson era, no fundo, bastante frágil e sua maior força foi o
silêncio da requerente, que soube usar a ausência de informações a seu favor. Em
duas ocasiões, ela chegou a admitir sua farsa (ver final do capítulo 1), e, além disso,
forneceu diversas informações incorretas quando perguntada sobre a vida da família
imperial, só foi “reconhecida” por dois membros da família (que tinham convivido
pouco com Anastásia) e, é claro, não falava russo. Não há maneira fácil de explicar
como uma operária polonesa conseguiu não ser oficialmente desmascarada por mais
de sessenta anos, mas é claro que os desejos do público têm mais força do que a
própria farsante, neste caso.
Ao contrário do que Helen Rappaport afirma, houve vários outros requerentes
na época em que tios e primos de Anastásia estavam vivos, inclusive mais de uma
“Olga” (a mais famosa foi uma italiana cujo nome verdadeiro era Magda Boodts, que
surgiu no fim dos anos 20). Além disso, vale a pena lembrar que a própria Franziska
Schanzkowska iniciou sua farsa, dentro do asilo de Dalldorf, depois de ter lido uma
edição da Berliner Illustrirte Zeitung cuja matéria de capa perguntava “Uma das filhas
do czar ainda está viva?” (ver ilustração da página 42). A matéria descrevia o cativeiro
na Sibéria e a execução, ainda que de uma forma bastante romantizada e imprecisa,
e terminava com a frase: “até hoje, não foi possível estabelecer definitivamente se,
18 I think it’s down to an accident of fate in that Anna Anderson was the most high profile and, to some, plausible claimant. Plus she made her claim when people were still alive who knew the Romanovs well and wanted to believe in a miracle. Simply that. If a good claimant had come forward for one of the others they would have attracted equal if not more interest. Prior to the creation of the Anastasia legend she was actually the least significant of the sisters, as the youngest. Olga was far more important and had there been a convincing Olga claimant Anastasia might as well have languished in obscurity.
60
durante o massacre, uma das Grã-Duquesas não foi apenas muito ferida, e continuou
viva.”
Segundo King e Wilson:
Talvez tenha sido mero interesse que a levou a retirar a
revista de biblioteca [do asilo] e guardá-la debaixo do
colchão, mas o interesse logo se tornou obsessão quando
ela leu aquele mistério tentador, aquela mágica saga de
romance e revolução, amor e morte. Deve ter sido muito
evocativo para uma mente buscando distração naquele
outono de 1921. (Tradução nossa)19
Ou seja; o que levou a própria Franziska Schanzkowska a criar a farsa foi a
força desta história. A Anastásia lendária a precede: Anna Anderson encaixou-se no
mistério e o personificou, mas não o criou.
Em linguagem corrente, usamos o termo verossimilhança para designar aquilo
que parece verdade, aquilo que tem semelhança com a verdade. E, na história dos
Romanov, tudo – desde o nascimento de quatro meninas antes do herdeiro homem
até os corpetes de diamante que protegeram as princesas da primeira saraivada de
balas – parece profundamente inverossímil, embora seja verdade. Assim, talvez não
seja de se espantar que no futuro o caso da “ressureição” dos Romanov, embora fosse
mentira, tivesse ganhado esta aura de verossimilhança.
Seria, porém, ingenuidade crer que essa mitificação em torno da família fosse
espontânea. Símbolos não existem em um vazio cultural. Em A Formação das Almas,
José Murilo de Carvalho apresenta todo o esforço de mitificação da figura de
Tiradentes – a busca da República por um herói, um símbolo que a fortalecesse.
Segundo o historiador: “Herois são símbolos poderosos, encarnações de ideias e
aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso,
instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da
legitimação de regimes políticos.” (p. 55)
19 Perhaps at first it was mere interest that drove her to take the magazine out of the library and keep it beneath her mattress, but interest soon turned to obsession as she read of this tantalizing mystery, this bewitching saga of romance and revolution. It must have been powerfully evocative to a mind seeking diversion that autumn of 1921. (KING e WILSON, 2011, p. 293)
61
Carvalho se refere aqui à República brasileira, frágil por não ter sido um
movimento popular. Houve literalmente um esforço no sentido de se definir um
símbolo: é claro que primeiramente se pensou nos participantes do 15 de novembro,
como Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e mesmo Floriano Peixoto, mas,
segundo Carvalho: “A pequena densidade histórica do 15 de novembro (uma passeata
militar) não fornecia terreno adequado para a germinação de mitos”. Assim, estes
esforços resultaram em muito pouco. O herói é, sim, instrumentalmente usado – mas
ele também precisa ser dono de um apoio popular que, às vezes, surge de maneira
espontânea.
Da mesma maneira, no caso dos Romanov, seria ingênuo assumir que a figura
de Anastásia não foi instrumentalizada. Mas não pelo seu próprio país – os soviéticos
não tinham nenhum interesse que uma figura do velho regime virasse símbolo
nacional. De fato, era de grande importância para os soviéticos criar seus próprios
heróis, exaltando eventos como a revolta dos dezembristas e o motim do encouraçado
Potemkin. A historiadora Helen Rappaport chegou a afirmar que o caso Anna
Anderson foi “um presente para os bolcheviques” que ficaram “muito felizes pela
comunidade de exilados políticos russos estar se matando enquanto se dividia em
dois grupos, contra e a favor da reivindicação de Anderson”. O governo soviético,
afinal, sabia perfeitamente que todos os Romanov tinham morrido e que a
reivindicação era falsa. Não, Anastásia não interessava em absoluto à URSS, mas
sim aos demais países.
A transformação da Rússia em União Soviética representou uma nova ordem
mundial, uma divisão do mundo em duas partes que culminaria na Guerra Fria.
Nenhum míssil foi disparado nessa guerra: a URSS e os Estados Unidos, em vez de
buscarem soldados e metralhadoras, batalharam no terreno do soft power. O conceito
foi desenvolvido pelo professor de Harvard Joseph Nye: mais do que poderio militar,
o soft power designa a capacidade de um país de cooptar, seduzir, criar um imaginário
em torno de si.
Filmes como Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, EUA, 1956)
ajudaram a metade capitalista a construir a imagem dos comunistas como monstros.
A superprodução Anastásia, da Fox, foi lançada no mesmo ano. Não seria igualmente
possível que o mesmo tivesse sido feito com imagem de Anastásia? Reiterar sua
62
imagem como uma vítima jovem, bela e ingênua não coloca automaticamente os
bolcheviques que a mataram (ou tentaram matar) em uma posição de vilania?
Mas o mito político-heroico, por mais instrumentalizado que seja, tem suas
origens em outro lugar. Segundo Nicole Ferrirer-Cavarivière, em seu artigo Figuras
históricas e figuras míticas:
O mito político-heroico é na verdade a expressão de uma
pulsão proveniente das profundezas do psiquismo
coletivo: antes que a personagem alcance o primeiro plano
da história, ele já é de certo modo esperado. Há nas
mentalidades, no psiquismo coletivo, um conjunto de
velhos sonhos, de esperanças ou de ódios que só estão à
espera de uma oportunidade de se cravarem em alguma
realidade; e, quando surge um personagem investido de
um certo poder e de uma certa função, eles cristalizam
imediatamente todas essas esperanças, todos esses
ódios, todos esses sonhos. (FERRIRER-CAVARIVIÈRE,
1988, p. 386)
Assim, que tipo de mentalidade favoreceu a germinação deste mito é um ponto
central de análise. O messianismo observado em torno da princesa nasce,
inicialmente, entre o círculo de imigrantes russos – principalmente a antiga monarquia
e o exército branco. Tratava-se de grupo de pessoas, afinal, que tinham perdido tudo:
suas famílias, suas posições, suas fortunas e seu país. Tudo que a volta de Anastásia
parecia simbolizar. Uma fonte de caráter ficcional da época pode servir, senão como
fonte histórica, ao menos como uma espécie de “termômetro” dos círculos de
imigrantes russos: os contos de Vladimir Nabokov. O autor, cuja obra mais conhecida
é Lolita, nasceu em São Petersburgo em 1899, e fugiu com a família para a Alemanha
poucos anos depois da Revolução. Foi lá que ele publicou seus primeiros contos, a
maior parte deles com personagens russos imigrantes.
Em Fala-se russo, um antigo proprietário de terras abastado chamado Martin
Martinitch vive em Berlim como dono de uma tabacaria. Seu filho, Petya, certo dia
visitara uma livraria soviética, cuja presença mancha uma
das ruas mais encantadoras de Berlim. Lá vendem não
63
apenas livros, mas também bugigangas variadas, feitas à
mão. Petya escolheu um martelo enfeitado com papoulas
e gravado com uma inscrição típica de um martelo
bolchevique. O vendedor perguntou se ele queria mais
alguma coisa. Petya disse “Quero, sim”, apontando um
pequeno busto de gesso do senhor Ulyanov [nome
verdadeiro de Lenin]. Pagou quinze marcos pelo busto e
pelo martelo e, então, sem dizer uma palavra, bem ali no
balcão, atacou aquele busto com aquele martelo, e com
tamanha força que o senhor Ulyanov se desintegrou.
(NABOKOV, 1923, p. 28)
Mas isso não é tudo. Mais para a frente, Martin Martinitch e seu filho
recebem na tabacaria a visita de um membro do serviço secreto soviético, com quem
Petya se envolve em uma briga após uma menção à “ralé Branca”. O homem desmaia
após um soco e, sem saber o que fazer, Martin e Petya o aprisionam no banheiro no
fundo da casa, fazendo-o refém. Como Martin depois explica ao narrador “Esse
momento marcou o começo de uma nova vida para nós. Eu não era mais
simplesmente Martin Martinitch, mas Martin Martinitch, o carcereiro chefe”. O próprio
Nabokov, aliás, defendeu que a história era inteiramente verdadeira, ressaltando que
“todos os traços e sinais característicos que possam apontar a real identidade de
Martin foram, é claro, deliberadamente distorcidos”, como diz uma nota de rodapé.
Em outro conto, Uma Beleza Russa, de 1934, Nabokov nos apresenta Olga,
uma moça “nascida no ano de 1900, numa família de nobres rica e feliz.” Olga, como
autor, também teve que deixar a Rússia:
Um suprimento de lembranças... consistia em seu único
dote quando deixou a Rússia na primavera de 1919. Tudo
aconteceu absolutamente de acordo com o estilo do
período. Sua mãe morreu de tifo, seu irmão foi executado
diante do pelotão de fuzilamento. (NABOKOV, 1934, p.
470)
Poucos anos depois, temos um retrato bastante diferente de Olga, vivendo em
Berlim: “Agora que o forro interno de sua bolsa estava em farrapos... Agora, que ela
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estava tão cansada... agora que já não havia mais a menos esperança de voltar à
Russia, e o ódio se tornara tão habitual que quase deixara de ser um pecado.”
Em Natasha, o imigrante Khrenov, pai da protagonista, desabafa a um amigo:
“Vai ser assim. Mataram meus dois filhos e empurraram Natasha e eu para fora do
nosso ninho natal. Agora, temos que morrer numa cidade estranha.” Já em Tiranos
Destruídos, talvez o mais político dos contos de Nabokov, o autor fala de Lênin, Stalin
e do czar. Não há nomes, mas não precisa haver. Em uma passagem particularmente
significativa, o autor nos diz:
Quando os deuses costumavam assumir forma terrena e,
trajados de vestes tintas de violeta, discreta mas
poderosamente pisando com pés musculosos em
sandálias ainda sem poeira, apareciam a camponeses ou
pastores nas montanhas, sua divindade não era por isso
diminuída no mais mínimo; ao contrário, o encanto da
humanidade que os bafejava era a mais eloquente
confirmação de sua essência celestial. Mas quando um
homem limitado, grosseiro, pouco educado – à primeira
vista um fanático de terceira classe e na realidade
obstinado, brutal e melancolicamente vulgar, cheio de
mórbida ambição – quando um tal homem põe um traje de
deus, dá vontade de pedir desculpas aos deuses.
(NABOKOV, data desconhecida, p.536)
Através de seus contos, Nabokov nos deixou, senão um retrato fiel, ao menos
uma representação do clima que pairava entre os russos emigrados, de rancor e de
melancolia. De acordo com Greg King e Penny Wilson, no já citado A Ressureição
dos Romanov:
Em 1922, quando começou a ser divulgado [o caso Anna
Anderson] entre os círculos de imigrantes em Berlim, não
havia nenhuma evidência que provasse que Anastásia
tinha perecido no massacre de Ecaterimburgo. (...) Ela
[Anna Anderson] encontrou um grupo de imigrantes russos
incertos, ainda traumatizados pela Revolução, uma
coleção fraturada de refugiados divididos por lealdades e
crenças e regidos pela esperança. Assustados pela perda
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do seu país, seus títulos e suas fortunas, muitos estavam
suscetíveis a qualquer eco de seu passado perdido. A sua
suposta identidade era sustentada por estes sonhos, onde
uma possibilidade intrigante juntava forças com uma
necessidade mais profunda, um desejo psicológico, para
que aquela perda esmagadora tivesse algum sentido.
(Tradução nossa)20
Como vimos no segundo capítulo, uma figura histórica (particularmente um
governante) tem boas chances de se tornar um mito quando seu desaparecimento é
sucedido por um desastre – no caso de D. Sebastião, a União Ibérica e, no de
Anastásia, a Revolução Russa – pois, para retomar o Variedades de História Cultural,
de Peter Burke, “as pessoas lembrarão o passado com nostalgia dos bons tempos”.
A Primeira Guerra Mundial, afinal, foi um trauma imenso para a Europa, e
particularmente para as monarquias. Quatro imperadores entraram na Guerra – o rei
Jorge VI da Inglaterra, o kaiser Guilherme da Alemanha, o Imperador Francisco José
da Áustria-Hungria e o czar Nicolau II da Rússia – e apenas um, o primeiro, saiu dela
ainda no poder.
A “ressureição” começou rapidamente a ganhar notoriedade através da ação
de jornalistas – principalmente Rathlef-Keilmann, Gleb Botkin e Dominique Auclères –
e da ficção. Logo, o público em geral também começou a ver aquela suposta
Anastásia como “uma mulher contra quem se tinha cometido uma injustiça, uma figura
trágica, a encarnação viva de um passado exótico e brilhante” (nas palavras de King
e Wilson).
Talvez a suprema expressão desta transformação em mito tenha se realizado
somente em 1997, anos depois da morte de Franziska Schanzkowska: Anastásia se
transformou em um desenho animado. Produzido pela Fox, mas com todo o formato
dos filmes da Disney, esta nova versão da história é majoritariamente igual ao filme
de 1956. A filha mais nova do czar consegue escapar da Revolução, mas em meio ao
20 In 1922, when word of her claim spread through émigré circles in Berlin, there wasn’t any real evidence proving that Anastasia had perished in Ekaterinburg. She [Anna Anderson] found a group of uncertain Russian émigrés still traumatized by the Revolution, a fractured collection of refugees divides by loyalties and belief and ruled by hope. Scarred by the loss of their country, their titles, and their fortunes, many were susceptible to any echo from their vanished past. Her claim played upon these dreams, where intriguing possibility joined force with a deeper need, a psychological desire, to make sense of overwhelming loss. (KING e WILSON, 2011, p. 332-333)
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tumulto bate a cabeça e esquece todo o seu passado. Dez anos depois, atendendo
apenas pelo nome de Anya, ela se alia a dois vigaristas (Dimitri e Vladimir) que
pretendem ensiná-la a fingir que é Anastásia, de forma a conseguir uma recompensa
da imperatriz-viúva pelo resgate. O que nenhum dos três percebe é que a jovem Anya
é de fato a grã-duquesa.
Esta versão, entretanto, conta com alguns detalhes interessantes: Rasputin é
representado como um morto-vivo que vendeu a alma para obter poder para destruir
os Romanov; além disso, é claro, o filme termina com um beijo de Anya e Dimitri. Ou
seja, a soberana passagem de uma figura histórica para o mito: Anastásia se tornou
uma princesa encantada.
Uma das primeiras músicas do filme, entretanto, A Rumor in St. Petersburg
(Rumores em São Petersburgo), cantada por russos anônimos nas ruas, denuncia o
seu caráter político, ainda que implicitamente:
St. Petersburg is gloomy!/St. Petersburg is bleak!/My
underwear got frozen standing here all week!/Since the
Revolution our lives have been so gray/Thank goodness
for the gossip that gets us through the day
(Na versão brasileira: São Petersburgo é triste!/São
Petersburgo é frio!/Eu fico enregelado aqui neste
vazio!/Revolução danada, em vez de melhorar/Só trouxe
desencanto, fez tudo piorar)
(Letra de AHRENS, Lynn e música de FLAHERTY,
Stephen. Tradução de Mário Menezes/Estúdio Double
Sound)
É difícil negar o caráter político anticomunista que a mitificação em torno de
Anastásia sempre teve. Mas também não é possível atribuir toda a questão a ele:
como já nos disse José Murilo de Carvalho em A Formação das Almas.
É certo que a preocupação com a construção do mito afeta
e condiciona o debate historiográfico. Mas ela transcende
tal debate, desenvolve-se dentro de um campo de
raciocínio que extravasa os limites e os cânones da
historiografia, pelo menos da historiografia praticada neste
67
caso. O domínio do mito é o imaginário que se manifesta
na tradição escrita e oral, na produção artística, nos rituais.
(CARVALHO, 1990, p. 58)
Como vimos, uma mitificação forçada não funciona: o herói precisa ser dono
de, ao menos, algum apelo popular. Este apelo talvez possa ser melhor compreendido
se nos debruçarmos sobre outra questão: por que Anastásia? Qual o apelo que esta
personagem histórica teve que lhe permitiu simbolizar e personificar toda a Rússia
imperial?
Ainda falando do ponto de vista político, podemos levar em consideração a
ideia de “mito fundador”, que Schielling define como uma narrativa tão significativa
que transfere parte do seu padrão de significado para outras situações que venham a
acontecer naquela parte civilizatória. A Bíblia, por exemplo, seria mito fundador de
toda a literatura ocidental. No caso da Revolução Russa, o mito fundador é
evidentemente a Revolução Francesa – o último grande movimento popular que
destronou os reis. De acordo com a historiadora Laura de Mello e Souza, em entrevista
para esta pesquisa:
A Revolução Francesa é muito interessante porque ela
apresenta todas as etapas que depois vão aparecer nas
outras grandes revoluções, como a russa e a cubana. Elas
têm aproximadamente os mesmos momentos. Começa
com uma tentativa de transformação radical; aquilo não dá
certo, mas a radicalização continua; parte para o terror e
por fim ela estabiliza em um certo retrocesso. Esse
momento em que desaparecem os reis é quando a
violência começa a atingir o pico.
A Revolução Francesa apresenta ainda mais um fator que posteriormente seria
“reconhecido”: o último rei francês foi Luís XVI, e sua família era constituída por sua
mulher, Maria Antonieta, e seus três filhos: uma menina e dois meninos. O mais velho
dos meninos, Luís José, morreu de tuberculose algumas semanas antes da
Revolução, e o mais novo, Luís Carlos, morreu durante o cativeiro na Torre do Templo
da mesma doença. Luís XVI e Maria Antonieta foram publicamente julgados e
guilhotinados. Mas a única filha do casal, Maria Teresa, sobreviveu à Revolução e
68
escapou para a Áustria, onde se casou com seu primo Luís Antônio, Duque de
Angôuleme.
Mello e Souza enfatiza: “Eu acho que tem uma mitologia lá pra trás do fim da
monarquia, e dos horrores que a acompanham, que pode estar ligada a essa lenda
da princesinha que desaparece, que foge.”
Ou seja, diversos padrões são identificáveis entre as Revoluções Russa e
Francesa: os dois são os primeiros casos da história moderna onde o povo se levanta
para destronar e sacrificar o rei – são revoluções de caráter popular, regicida e liberal,
onde justiça social é feita mesmo que possa envolver meios cruéis. Tanto Luís XVI
quanto Nicolau II entraram para a história como reis fracos, incapazes de perceber e
enfrentar a situação social extremamente tensa em que se encontravam. Da mesma
maneira, tanto Alexandra quando Maria Antonieta, as consortes dos monarcas da
época, eram intensamente odiadas pela população. O povo francês chamava sua
rainha de l’Autrichienne, um trocadilho que literalmente significa a austríaca mas que
também soa como l’autre chienne: a outra cadela. Alexandra, por outro lado, era
chamada de a alemã pelo povo russo, o que, nos tempos da Primeira Guerra Mundial,
era uma ofensa por si só. Assim, é possível que, em meio a tantos padrões
identificáveis, tenha se incentivado a sobreposição das figuras históricas Maria
Teresa/Anastásia – se a primeira escapou, por que a segunda não poderia?
O caso interessante e possivelmente verdadeiro em algum nível. Mas a
evidência não é suficiente como uma explicação completa: o caso de Maria Teresa é
relativamente pouco conhecido, e ela está longe de ser a grande protagonista da
Revolução Francesa – este papel é ocupado por Maria Antonieta. Por outro lado, a
densidade imaginária de Anastásia supera em muito a de sua mãe, Alexandra. Para
compreendermos o caso Anastásia, temos que ganhar alguma distância deste ponto
de vista puramente racional e histórico e analisá-lo por um campo mais imaginário: o
da mitologia.
Como vimos no segundo capítulo, segundo a teoria de Peter Burke, a
“mitogenia” de um indivíduo se daria na percepção de enquadramento de aspectos da
vida dele em algum estereótipo vigente, de herói, bandido, feiticeiro, etc. Antonio
Callado, em seu Esqueleto na Lagoa Verde, no qual narra sua busca pela ossada do
Coronel Fawcett, desaparecido em 1925 enquanto buscava um Eldorado no sertão
69
brasileiro, se faz um questionamento interessante: “Não são só os Fawcett que
desaparecem. Eu mesmo, na minha família, tenho um desaparecimento de truz.”
Trata-se do tio-avô do autor, Dario Rafael Callado, que saiu de casa uma noite em
1867 para tomar ar fresco e nunca mais foi visto.
A diferença é que hoje, mesmo na sua cidade, Dario Rafael
Callado está inteiramente esquecido, e apostamos que
Fawcett (a menos que se prove sua morte), ainda será
lembrado de muita gente no mundo inteiro daqui a cem
anos. Por quê? Porque não há nada mais sólido que as
lendas e P. H. Fawcett se identificou com uma das lendas
matrizes da humanidade: a da Cidade Abandonada.
(CALLADO, 1977, p. 108)
Trata-se da mesma mecânica. Esta associação se dá pelos mecanismos
psicológicos de “aguçamento” ou “nivelamento” – os mesmos mecanismos que nos
permitem aprender. O aguçamento é “estranheza”, a percepção de incoerência dentro
de um padrão; o nivelamento, de harmonia. Segundo o Dicionário Técnico de
Psicologia, estes dois conceitos, relacionados à assimilação, permitem “a
incorporação de novos conteúdos e situações aos que já são conhecidos do indivíduo
e no ajustamento deste à nova organização cognitiva”.
É importante lembrar que a cova dos Romanov só foi encontrada em 1979, e a
autorização para exumação dos corpos só foi concedida em 1991. São mais de 70
anos sem que a prova definitiva da execução dos Romanov – seus ossos – seja
fornecida. Aqui também temos um caso análogo ao de D. Sebastião, cujo corpo nunca
foi encontrado. A ausência de evidência, de prova concreta e definitiva, cria um vazio
que precisa ser preenchido.
Quando um historiador se depara com um destes vazios, utiliza um mecanismo
de “imaginação histórica”: cerca este “buraco” com a maior quantidade possível de
evidência e, onde ela não existir, cria uma teoria baseada em probabilidade e
analogias. Ainda falando do sebastianismo: embora o corpo – que seria a maior
evidência de sua morte – jamais tenha sido encontrado, os historiadores ainda
marcam seu falecimento no dia 4 de agosto de 1578. Foi o dia em que os portugueses
perderam a batalha de Azila e quase 60 mil homens do exército português pereceram.
70
A última vez em que o rei foi avistado, ele estava partindo para a batalha, e depois
disso desapareceu. É verdade que não há corpo, mas toda a evidência sugere que foi
aí que D. Sebastião pereceu: imaginação histórica.
Entretanto, este é um mecanismo que um profissional usa. Ainda segundo
Laura de Mello e Souza, em entrevista: “Quando você tem buracos você preenche
com imaginação. O povo preenche com lendas, com o acervo que ele tem.” Para os
historiadores, d. Sebastiao morreu em Azila – para o imaginário popular, ele se
enquadrou no estereótipo do “rei herói”, como Arthur e Frederico Barbarossa, e ainda
se espera o seu retorno. Sua morte, como no caso de Anastásia, é ponto de partida
mais do que ponto de chegada. Como nos diz Ferrier-Caverivière: “impregnada de
mistério, favorável ao indizível, ao inexplicável e ao sagrado, a morte cria assim um
contexto em que o mito pode naturalmente se formar.” (p. 386)
O caso dos Romanov é repleto destes enquadramentos em estereótipos.
Tradicionalmente, histórias começam com o que Vladimir Propp, em Morfologia do
Conto Maravilhoso, chamou de "situação inicial estática" – as personagens e suas
condições são apresentadas antes que se inicie a ação. Frequentemente, esta
situação inicial é a de um casal sem filhos: "Era uma vez um rei e uma rainha que
eram muito desgostosos por não terem filhos, mais desgostosos do que se pode
imaginar" (p. 89). Assim começa A Bela Adormecida de Perrault. "Era uma vez uma
mulher que muito queria ter uma criancinha bem pequena e não sabia onde ir buscá-
la. Por fim, ela visitou uma fada." (p. 45) Assim começa A Polegarzinha de Hans
Christian Andersen. Os exemplos se multiplicam: O Porco Rei, Momotaro, a Princesa
de Belle-Étoile, a história de Sara na Bíblia. Todos têm como parte da situação inicial
um casal que queria ter filhos mas não pode por um ou outro motivo. O casal de
fazendeiros que encontra o Super-Homem é um exemplo mais recente, assim como
a rainha amazona que queria uma filha mas morava em uma terra sem homens, a
quem magicamente é concedida a menininha que viria a se tornar a Mulher-Maravilha.
Analogamente, Nicolau e Alexandra, na Rússia do fim do século XIX, queriam
especificamente um menino para herdar o trono - e no entanto foram pais de quatro
meninas antes de poder dar à Rússia seu herdeiro. Destes cinco filhos, a menos
importante era a mais nova das meninas. Alexei, como o czarevitch, era
hierarquicamente superior a todas as suas irmãs: entre elas, a hierarquia era
71
determinada pela idade. Era Olga, a mais velha, quem andava na frente nos cortejos,
seguida por Tatiana, Maria e, por fim, Anastásia.
Como vimos no primeiro capítulo, quando a caçula das meninas nasceu, sua
tia, a Grã-Duquesa Xênia, chegou a escrever em seu diário: “Que desapontamento...
uma quarta menina”, e o czar Nicolau deu um longo passeio pelo jardim antes de ir
visitar o bebê. Chega a parecer irônico que tenha sido justamente esta menina, a
menos importante da família, quem entrou para a história – mas por outro lado, talvez
o ponto seja justamente este. Segundo um artigo do site Sur La Lune, dedicado a
coletar e interpretar contos de fada do mundo inteiro, “o folclore tradicional se interessa
primariamente por filhos únicos ou irmãos mais novos”. É fácil lembrar de diversos
exemplos: em O Gato de Botas, o futuro “Maquês de Carabás” é o irmão mais novo;
na versão tradicional de A Bela e a Fera, Bela é a mais nova das três. O Pequeno
Polegar também é o mais novo de sete irmãos, assim como A Pequena Sereia é a
mais nova de sete irmãs. Cerca de dois terços das Fábulas Italianas reunidas por Ítalo
Calvino têm um filho mais novo como heroi: “Era uma vez um homem pobre/uma
mulher pobre/um rei que tinha três filhos/filhas. O(a) mais novo(a) era o(a) mais
bonito(a)/mais gentil/mais inteligente...”
Existem algumas teorias sobre o porquê desta preferência. Presumivelmente,
os filhos mais novos receberão a menor parte da herança dos pais. Assim, faz sentido
que sejam eles os que precisem atingir fortuna através dos próprios feitos. Basta
lembrar do já citado exemplo do Gato de Botas: o filho mais velho recebe como
herança o moinho do pai; o do meio, seu burro; e para o mais novo restou apenas o
gato. Segundo a pesquisadora Maria Tatar, presidente do Programa de Folclore e
Mitologia em Harvard, em seu livro Contos de Fadas – edição ilustrada & comentada:
”na maior parte das trincas de irmãos do mesmo sexo nos contos de fadas, o mais
novo, em posição de desvantagem, é superior aos dois mais velhos” (p. 68), o mais
novo não é o herói apesar de sua posição de desvantagem, mas por causa dela. Em
termos de moral: “são os modestos, os humildes, e muitas vezes os esbulhados que
são elevados a uma condição nobre”. (p. 238)
Em segundo lugar, a maior parte destas histórias diz respeito ao drama do
crescimento – à transformação da situação inicial, na casa dos pais, em aventuras no
mundo e, ocasionalmente, em casamento. Daí também viria a preferência pelo filho
72
mais novo. Segundo Mário e Diana Corso, em Fadas no Divã: psicanálise nas histórias
infantis:
Acreditamos que a persistente escolha do filho caçula para
encenar o drama da separação dos pais e do crescimento
necessário deve-se ao fato de que se supõe que ele será
o último a sair de casa, a casar. Antigamente, inclusive,
existia a regra de que as filhas se casassem por ordem de
nascimento, de tal forma que nenhuma pudesse casar
antes que sua irmã mais velha. Da mesma forma como o
primogênito paga o preço da inexperiência de seus pais, o
caçula fica com o ônus da resistência destes de ver a
família se dissipar. (CORSO e CORSO, 2006, p. 105)
Assim, talvez não seja ironia que a caçula, a menos importante dos Romanov,
tenha sido aquela que entrou no imaginário popular, e sim mais uma percepção de
enquadramento diante do fato de que os heróis populares geralmente são os mais
novos. Outras destas coincidências: a beleza.
Tradicionalmente, em mitologia e folclore, beleza estética é um reflexo de
beleza ética. Associa-se o belo ao bom. Mesmo nas histórias em que as heroínas são
forçadas à companhia de um marido gentil, mas monstruoso (Eros e Psiquê, A Bela e
a Fera, A Princesa e o Sapo, Belinda e o Monstro, O Príncipe Urso, O Czarevitch
Encantado. Existem diversos exemplos de narrativas semelhantes, variando o tipo de
monstro em que o marido se transforma de acordo com a cultura: no Japão temos O
Genro Macaco; na América do Norte, O Touro da Terra), ele invariavelmente se torna
um belo homem ao final da narrativa. Há algumas exceções notáveis, como a bonita,
mas terrível, madrasta da Branca de Neve – que neste caso sofre do mal contrário,
sendo vítima de sua extrema vaidade. Mas estes casos são raros. De um modo geral,
tanto na mitologia quanto nos contos de fadas, a beleza da alma se reflete na beleza
do corpo.
Os Romanov eram uma família real excepcionalmente bela. O bailarino George
Balanchine, do Balé Imperial Russo, conta que foi levado ao camarote da família
imperial depois de uma apresentação de A Filha do Faraó e, tentando posteriormente
descrever suas impressões da imperatriz, disse “Linda, linda – como Grace Kelly”.
(citado em MASSIE, 1967, p. 363) As quatro filhas são bastante diferentes entre si:
73
Tatiana e Maria parecem ter herdado os traços do pai e se tornaram belezas russas:
têm os rostos redondos, os cabelos densos. Já Olga e Anastásia parecem ter saído
mais à mãe e se tornaram belezas germânicas, esguias e de cabelos finos e
acobreados. Uma aparência mais ao gosto dos padrões de beleza ocidentais do
século XX. A Baronesa Buxhoeveden, dama-de-companhia da czaritsa,
posteriormente descreveu que “Anastásia Nikolaevna, se tivesse crescido, talvez
tivesse se tornado a mais bonita das irmãs. Ela tinha traços regulares e bem
demarcados”. Já Pierre Gilliard considerava Olga a mais bela, apesar de destacar que
Tatiana “era muito bonita, embora não tivesse o charme de Olga”. Já Gleb Botkin, filho
do médico da família, escreveu que “Maria era sem dúvida a mais bonita das quatro –
uma autêntica beleza russa”.
Assim, é impossível fazer uma afirmação como “Anastásia era a mais bela das
meninas”, pois evidentemente beleza é um fator muito subjetivo e mutável e as quatro
meninas eram muito bonitas – aliás, um acontecimento bastante raro entre famílias
reais. Mas certamente a beleza dos Romanov e, particularmente, de sua filha caçula,
contribuiu em muito para o mito que os cerca, aumentando sua aura de mártires.
Existe também a questão do nome: Anastásia vem do grego anastemi,
significando “ressureição”. É derivado de aná, “novamente”, e histemi, “ficar de pé” ou
“erguer-se”. Ou seja, o próprio nome Anastásia teria servido como uma espécie de
prenúncio daquela que “se ergueria novamente” – aquela que são seria abatida pela
revolução. Um determinismo nominativo, por assim dizer. Heroínas em contos de fada
frequentemente têm nomes significativos: Cinderela, por exemplo, tem um nome que
remete às cinzas em todas as línguas (comparar com o francês Cendrillon, o italiano
Cenerentola, o alemão Aschenbrödel e o português Gata Borralheira); o nome da
Branca de Neve remete à cor de sua pele e o de Rapunzel à planta pela qual sua mãe
ficava desejosa durante a gravidez (em português, rapôncio). Os nomes de
Polegarzinha e do Pequeno Polegar também dizem respeito aos seus tamanhos
diminutos. Também contribui o fato de que, enquanto os nomes das outras irmãs são
relativamente populares no resto do mundo (Olga, Tatiana e Maria), Anastásia é um
nome quase que exclusivamente do leste europeu. Como ele soa muito mais
estrangeiro aos ouvidos ocidentais, faz sentido que seja mais fácil de associá-lo ao
que King e Wilson chamaram de “a encarnação viva de um passado exótico e
brilhante”.
74
Mais um fator de enquadramento que não se pode ignorar nesta história:
Grigori Rasputin. O “monge louco”, o “demônio santo”, acabou se tornando tão famoso
quanto a família em si. Ele é, provavelmente, uma das figuras históricas mais
complexas e difíceis de definir que já existiu. Um camponês siberiano semianalfabeto
que se tornou um dos homens mais poderosos da Rússia no seu tempo. E sua vida
de luxos, prostitutas e bebida se tornou tão famosa quanto seus supostos “poderes
mágicos”, que lhe permitiam estancar os sangramentos de Alexei. À sua fama de
bruxo acrescenta-se, também, uma lenda de que ele teria previsto a própria morte,
deixando como testamento a seguinte profecia:
Czar Russo! Eu tenho o pressentimento de que deixarei
este mundo antes de primeiro de janeiro. Se eu for morto
pelos meus [pelos plebeus], então você não tem o que
temer. Mas se eu for morto pelos seus [pelos aristocratas],
então nenhum membro da sua família sobreviverá mais de
dois anos. (Tradução nossa)21
Este texto, atribuído a Rasputin, foi primeiramente citado pelo seu secretário e
contador, Aron Simanovitch, em suas memórias. Depois, foi transcrito em numerosos
livros a respeito do monge. Ele realmente foi assassinado por um príncipe no dia 16
de dezembro, e toda a família real foi fuzilada quase exatamente um ano e meio
depois, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918. A profecia é impressionante,
mas é verdadeira? O próprio Radzinski a coloca em xeque em seu O Arquivo
Rasputin: “Esta ‘profecia’, como tantas ‘profecias’ similares, foi publicada depois da
execução da família real, e foi sem dúvida escrita pelo próprio Simanovitch”. Para
começar, o mujique jamais chamaria Nicolau II de “czar russo” – ainda segundo
Radzinski “Não apenas Rasputin não podia se dirigir ao czar desta maneira como
nenhum russo podia.”
Sendo a profecia verdadeira ou não, ela é seguida pelo relato famoso (e de
veracidade igualmente duvidosa) contado pelo príncipe Felix Yassupov, seu
assassino, sobre como Rasputin continuou vivo após “veneno o suficiente para matar
um rinoceronte”, espancamento e tiros. Este mito já foi desconstruído (como vimos no
21 Russian Tsar! I have a presentiment that I shall leave this world before the first of january. If I am killed by my own, then you, Tsar, will have no one to fear. Remain on your throne and rule. But if the murder is carried out by your kinsmen, then not one [member] of your family will survive more than two years. (citado em RADZINSKI, p. 495)
75
capítulo 1), mas de uma forma ou de outra foi o que entrou para a história. O
semianalfabetismo de Rasputin não permitiu que ele deixasse sua própria história
registrada: esta teve de ser contada por outros, geralmente ou seus apoiadores ou
seus inimigos. Todos os relatos são parciais. É difícil distinguir onde termina a história
e começa a difamação; onde fica a verdade, onde está a fé.
Edvard Radzinski, ainda em O Arquivo Rasputin, angariou as descrições físicas
do mujique feitas na época por diversas pessoas que o conheceram. É uma coletânea
estranha e desconexa, que ilustra muito bem a dificuldade que temos atualmente em
traçar um perfil preciso dele:
Seu rosto, registrado em inúmeras fotografias, é descrito
de forma muito similar pelos que o viram: a face enrugada,
queimada de sol e talhada pelo clima, de um camponês
russo de meia idade. Um rosto estreito com um nariz
grande e irregular, lábios grossos e sensuais, e uma longa
barba. Seu cabelo repartido ao meio e penteado sobre a
testa (...). Seus olhos, também descritos de forma muito
parecida por várias testemunhas, atraem mesmo em
fotografias: ‘o olhar instantaneamente caloroso e
magnético de seus olhos claros onde não apenas a pupila,
mas o olho inteiro, te encara’ (Zhukovskaya); ‘olhos
profundos e difíceis de suportar’ (Dzhanumova); ‘o poder
hipnótico brilhando em seus olhos excepcionais’
(Khvostov).
Mas assim que as testemunhas param de falar das
fotografias começa o mistério. Curiosamente, ele é
descrito de formas inteiramente diferentes. Me diverti
transcrevendo as diversas descrições deixadas pelas
pessoas: ‘alto’, ‘baixo’, ‘aprumado, embora de uma forma
camponesa’, ‘imundo e descuidado’, ‘esguio’, ‘encorpado
e com ombros largos’. O cantor Belling, que viu Rasputin
muitas vezes, descreveu seus dentes podres e mau hálito.
Mas a escritora Zhukovskaya, que o conheceu muito bem,
nos diz que ‘seus dentes eram perfeitos e ele os tinha
todos, e seu hálito era fresco; dentes brancos de mastigar,
76
fortes como os de uma fera.’ ‘Sua boca era muito grande,
e no lugar de dentes via-se algo parecido com tocos
enegrecidos,’ escreveu seu secretário, Simanovitch. Mas
seu admirador Sazonov, que visitou Rasputin muitas
vezes, viu ‘dentes brancos e fortes’. (Tradução nossa)22
Assim, em termos de história, o retrato que temos do “demônio santo” é
extremamente difuso. Mas para o imaginário popular, isso é muito pouco relevante.
Pouco importa que a verdadeira Cleópatra tivesse cachos dourados e um nariz
grande: à menção do nome, a imagem de Elizabeth Taylor com seus densos cabelos
pretos e delineador puxado de canto é quase inevitável. A poucas moedas restantes
do Egito de 50 A.C., que ilustram o perfil da rainha, não conseguem competir com
Shakespeare, Delacroix e a 20th Century Fox. Da mesma maneira, Rasputin ficou
registrado como um vilão perfeito. Tanto é que precisou passar por pouquíssimas
alterações para se tornar um autêntico antagonista de desenho animado: mantiveram-
se quase todos os seus traços físicos, como a barba e cabelos longos, os olhos
grandes, os trajes de mujique.
Ele cria com Anastásia um verdadeiro contraste: a bela a ingênua filha mais
nova do czar, o bruxo lascivo e manipulador. São como Helena, a Bela, e Baba Yaga
– a princesa e a vilã mais tradicionais dos contos eslavos. Helena, como Anastásia,
era a filha mais nova de um czar, e como ela, era jovem, ingênua e bonita. Baba Yaga,
como Rasputin, era uma bruxa que, através de seus favores mágicos, tentava obter
benefícios. E, como ele, ela também era difícil de entender: às vezes ajuda, às vezes
atrapalha; às vezes maternal e às vezes diabólica.
22 His face, left behind in numerous photographs, is described in much the same way by those who saw him: the wrinkled, sunburned, weather-beaten face of a middle-aged Russian peasant. A narrow face with a large, irregular nose, thick sensual lips, and a long beard. His hair is parted down the middle and combed across his forehead (…). His eyes, also described in much the same way by the various witnesses, attract even in the photographs: ‘The instantly blazing, magnetic gaze of his light-coloured eyes in which not merely the pupil but the whole eyes stares’ (Zhukovskaya) ‘Deep-set unendurable eyes’ (Dzhanumova); ‘The hypnotic power shining in his exceptional eyes’ (Khvostov). But no sooner do the witness depart from the photographs than the mystery begins. Amusingly, they describe him in entirely different ways. I enjoyed writing down the various descriptions left by people: ‘tall’, ‘short’, ‘neat in a peasant way’, ‘filthy and sloppy’, ‘slender’, ‘stocky with broad shoulders’. The singer Belling, who saw Rasputin many times, writes of his rotten teeth and foul breath. Yet the writer Zhukovskaya, who knew him extremely well, tells us that ‘his teeth were perfect and complete down to the very last one, and his breath was absolutely fresh; white teeth for chewing, as strong as a beasts.’ ‘His mouth was very large, and instead of teeth you saw something like blackened stumps in it,’ wrote his secretary, Simanovitch. But his admirer Sazonov, who visited Rasputin many times, saw ‘strong white teeth’. (RADZINSKI, 2010, p. 01)
77
É com estes contornos e formas que estas figuras histórias dialogam: com
personagens de contos eslavos.
3.1 Conclusão
Como definir o fenômeno Anastásia Romanov? Ela era uma jovem
desimportante quando desceu para o porão da casa de Ipatiev na madrugada de 16
de julho de 1918. E de lá ela emergiu como uma verdadeira heroína, dona de uma
força impressionante. Não existe resposta simples para esta pergunta. E é justamente
por não ter resposta simples que ela é tão interessante. Nesta história, fato parece
ficção, e talvez por isso a ficção sobre ela pareça fato.
Regimes monárquicos, como regimes revolucionários, têm muita facilidade
para criar mitologias em torno de si, e aqui busquei mapear as raízes de um dos
fenômenos de história cultural de maior circulação no século XX. Mas é uma história
cultural, e, particularmente, a história de um fenômeno mental, então devemos lidar
com ele sabendo que haverá deformação, lacunas, não-ditos e muito poucas
respostas definitivas. Para a historiadora Nicole Ferrier-Cavirivière, “mesmo que se
consiga reconstituir a verdade do real... não há em caso algum como apagar os
vestígios da criação mítica. O herói que nasce desta última e o herói da história
existem lado a lado, como duas realidades diferentes, quase estranhas uma à outra.”
O discurso não pode ser no sentido de “um ou outro”, de um obscurantismo histórico.
Ou seja, debruçar-se sobre um fenômeno imaginário não é dizer que os
acontecimentos reais sobre os quais este fenômeno se construiu deixem de importar.
Ei-los:
Em 2007, seis quilômetros ao norte de Ecaterimburgo e não muito longe do
local onde tinham sido encontrados os ossos do czar e da czaritsa, o arqueólogo
amador Sergei Plotnikov descobriu dois esqueletos incompletos, danificados por ácido
e fogo. Os esqueletos pareciam pertencer a um garoto com idade entre 10 e 13 anos
e a uma moça com idade entre 18 e 23. O DNA confirmou: eram os dois Romanov
que faltavam. Uma das mais perenes lendas da realeza finalmente resolvida.
A verdadeira Anastásia foi acordada às pressas, junto com o resto de sua
família, na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918 e levada para o porão da casa
de Ipatiev. Lá ela foi fuzilada juntamente com seus pais, irmãos e alguns criados. Mas
78
foi a última a morrer: de acordo com o relato de Alexander Strekotin, do esquadrão de
fuzilamento, conforme os corpos eram retirados para as caminhonetes, uma das
meninas – a menor – repentinamente se sentou e começou a tossir sangue e gritar.
Ela foi silenciada com golpes de cabo de baioneta: foi assim que morreu a verdadeira
Anastásia. Depois, seu corpo foi despido, cortado em pedaços, desfigurado com
ácido, queimado e, finalmente, enterrado em uma tumba rasa, na Sibéria, onde ficou
por quase um século. A menina tinha acabado de completar dezessete anos.
Mas o imaginário popular, personificado na figura de Anna Anderson, lhe deu
outro destino. Através dela, o mundo viu uma Anastásia que sobrevivera a
Ecaterimburgo, aparecendo em livros, filmes e revistas para um público fascinado.
Embora os mecanismos e motivos sejam complexos, não é difícil entender por que
esta narrativa foi preferida à outra. Esta é a força do mito: a esperança de que talvez
a sina daquela princesinha encantadora tivesse sido um pouco mais leve. Mas não
foi. A verdadeira Anastásia, a Anastásia genética, biológica, morreu no verão de 1918.
Foi a Anastásia mítica, lendária, quem sobreviveu – mas uma não é mais importante
do que a outra. É a primeira, aliás, que nada de importante fez em vida: a segunda, a
que sobreviveu ao massacre, é a extraordinária. E ambas se fundem nas páginas da
História.
Em 1981, os Romanov foram canonizados pela Igreja Ortodoxa Russa e
designados Portadores da Paixão. É possível comprar ícones religiosos com seus
rostos como souvenires em vários lugares. Em julho de 2007, a Conferência de
Turismo da Rússia propôs uma “Rota dos Romanov”, que inclui São Petersburgo,
Kazan, Tobolsk e Ecaterimburgo. O projeto foi aprovado, e hoje é possível realizá-lo.
Na mina onde os corpos estavam enterrados hoje há um monastério e sete igrejas –
uma para cada Romanov – de madeira de pinheiro, construídas sem um único prego.
O local também tem um campo de lírios brancos e recebe milhares de peregrinos
todos os anos.
A névoa de santidade que envolve a família apenas aumenta com o passar do
tempo – assim com a aura de heroína de conto de fadas de sua filha mais nova e a
reputação de vilão de Rasputin. Mas não é justamente esta névoa (não só de
santidade, mas também de heroísmo, inocência, martírio, amor e morte) que os
79
impede de cair no esquecimento? Nesta pesquisa, meu objetivo não foi tentar dissipá-
la, como fazem os historiadores, nem adensá-la, como fazem os crentes.
Esta pesquisa é sobre a névoa.
80
Acima, Rasputin no filme Anastásia, da
Fox, 1997. À direita, Grigori Rasputin, em
1905. (Foto: Arquivo do Estado Russo)
Da esquerda para a
direita, Anastásia, Olga,
Maria e Tatiana em uma
sessão de fotos formal
em 1916. (Foto: Arquivo
de Estado Russo)
81
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84
ANEXO A
TRECHOS SELECIONADOS – ENTREVISTA LAURA DE MELLO E SOUZA
16/01/2013
Você se lembra da “Anastásia de Poços de Caldas”?
Quando eu era pequena saiu um número da revista o Cruzeiro (...) onde tinha umas
fotografias de uma velha horrível e falava “A Princesa Anastásia!”. Aí eu fiquei
interessada na história, perguntei pro meu pai quem era a princesa Anastásia... Ele
disse que era uma princesa russa que teria escapado do massacre e que moraria em
Poços de Caldas. Depois que você me escreveu eu liguei pra ele e disse “O que você
lembra da princesa Anastásia de Poços de Caldas?”
Ele falou o seguinte: que essa princesa era uma senhora com uma cara muito
estranha – ele falou que parecia uma ‘abantesma’, uma assombração -, que tinha um
olho redondo de coruja e andava sempre com um capote verde, fizesse inverno ou
verão, e que a gola do capote era de astracã. E um chapéu de astracã também. E por
baixo do chapéu saía um cabelo vermelho pintado.
Meu pai tinha uma amiga, uma velhinha chamada dona Teresina Roque – uma mulher
muito culta, ele até escreveu sobre essa velhinha –, viúva de um maestro italiano e
anarquista. Ela tinha convivido com vários anarquistas italianos, socialistas e tudo.
Hoje, na cidadezinha em que ela nasceu tem até uma praça com o nome dela. Essa
dona Teresina disse uma vez pro meu pai: “Essa princesa russa é uma princesa muito
culta. Ela é uma mulher de família muito importante e é uma mulher muito culta”. E na
verdade, depois papai descobriu que na verdade ela se chamava princesa Fulana-de-
Tal Dolgoruki. É uma família nobre muito importante de Rússia. E teve até uma
princesa Dolgoruki chamada Catarina que foi amante do Czar Alexandre II, que
libertou os servos na Rússia. E parece que é da descendência desse romance que
nasceram as crianças que o czar nomeou príncipes Iurievski. Então parece que essa
85
princesa de Poços era uma princesa Dolgoruki. Eu não sei se ela chamava Anastásia
Dolgoruki, talvez fosse.
O que aconteceu nessa ocasião que eu vi essa reportagem foi o seguinte: um senhor
que era advogado em Poços de Calda, o dr. Jair Pinto de Moura contou que tinha
recolhido essa senhora na casa dele, porque ela era muito pobre, e que ele dava casa
e comida pra ela. Era um homem bom. E que essa mulher, quando perguntavam pra
ela se ela era a princesa Anastásia, ela abaixava a cabeça, ficava quieta e não
respondia nada. O meu pai acha é que ela não era, evidentemente, e sabia que não
era – mas fazia um ar misterioso para poder usufruir da casa, da comida e da caridade
desse senhor. E esse senhor provavelmente também sabia que ela não era a princesa
Anastásia, mas deu uma entrevista pro Cruzeiro porque achou que era uma coisa
sensacional.
(...) Acho que seria interessante você pensar nesse imaginário em torno dela, porque
como ela teria desaparecido, ela teria ido pra lá, ela teria ido pra cá, tem toda uma
lenda. (...) Eu acho que tem a ver com a questão da violência. Quando eu entrei pra
faculdade, com 18 anos, eu e todo mundo achávamos que tinha sido certo executar a
família real. Assim como eu achava que tinha sido certo executar Maria Antonieta e
Luís XVI. Hoje em dia eu fico horrorizada só de pensar nisso. Porque naquela época
a gente acreditava no triunfo do socialismo, que o mundo ia ser mais igual e tudo isso.
Depois que a gente viu o que virou a União Soviética e a barbaridade que fizeram pra
virar um país capitalista igual a todos os outros... E também a questão do pacifismo
eu acho que pôs muito os pingos nos iis. Toda essa geração pacifista, anti-guerra.
Hoje em dia a gente olha isso com horror.
Talvez fosse interessante você pensar que existem determinados acontecimentos que
funcionam como mitos fundadores. Talvez o mito fundador aí ainda seja a Revolução
Francesa. Como os reis são destronados? Porque o rei, no mundo da monarquia, o
mundo do Antigo Regime – o mundo antes da Revolução Francesa – tem um caráter
divino. Em uns países mais, em outros países menos. No Japão tem: o imperador É
Deus. Na monarquia da Inglaterra e da França existe um caráter divino muito
acentuado. Na portuguesa não.
86
Então, no século XVII, na monarquia francesa, surge toda uma teoria de que diz que
o rei é rei por direito divino. E desde a idade Média na Inglaterra e na França que os
reis tem – dizem – o dom de curar determinadas doenças. Se você tem doença de
gânglios, tuberculose, coisas assim, eles chegam com a palma da mão – e te curam.
É o dom taumatúrgico. Então os reis tem esse dom que pessoas normais não tem:
são sacerdotes, santos. No caso dos russos eu conheço pouco, mas acho que
principalmente a partir de Alexandre I – que era todo místico, se envolvia com várias
facções religiosas e foi visto como o salvador da Europa, por libertá-la de Napoleão
Bonaparte, que era o anticristo; foi o homem da Santa Liga - a monarquia russa se
impregnou também desse caráter divino.
Mas voltando pra trás. Os reis não podem ser tocados, não podem ser destronados,
em determinadas monarquias eles tem esse caráter meio sagrado... E o primeiro
grande acontecimento contra a monarquia na Europa foi quando, em 1640, começou
uma revolução na Inglaterra e eles depuseram o rei. Veio Oliver Cromwell, o país se
dividiu: os aristocratas contra o exército plebeu. E Carlos I acabou sendo executado.
A família foi exilada na França, depois retornou com a monarquia restaurada: assumiu
o filho dele, Carlos II, depois o irmão, Jaime II, e mais uma vez uma destronação. Aí
vieram os parentes protestantes da Holanda. Agora, dessa 2ª vez não mataram
ninguém. Foi o grande precedente que criou uma vulnerabilidade na monarquia
europeia. Mas o que provocou maior trauma foi a Revolução Francesa. A Revolução
Inglesa não teve o poder de se espalhar como a francesa.
Porque não foi uma Revolução do povo, talvez. Foi das Elites.
É. As elites, ao menos, foram vitoriosas. (...) Então você tem razão: a Revolução
Francesa foi muito mais popular e muito mais violenta. Queimaram castelos, mataram
um monte de gente, a guilhotina e tudo. Você conhece a história de Luis XVI: ele foi
executado, o príncipe morreu na prisão, depois executaram Maria Antonieta... Mas a
menininha, Madame Royale, sobreviveu. Eu não sei se seria interessante você ler
alguma coisa sobre Madame Royale para pensar a Anastásia. Ela sobrevive, vai pra
Áustria, se casa com um primo. Eu sei que se criou uma mitologia em torno do fim da
monarquia que abalou todas as cabeças coroadas da Europa.
87
Ela era filha da imperatriz da Áustria, a Maria Teresa, que tinha um monte de filhos. E
uma dessas filhas, irmã mais velha da Maria Antonieta, era rainha de Nápoles – a
Maria Carolina de Nápoles. Essa ficou doida também quando a irmã foi executada.
Passou o resto da vida meio desequilibrada e se viciou em ópio. Ela era uma mulher
muito inteligente, mais inteligente que a Maria Antonieta. Mas os historiadores dizem
que o grande marco na vida dela foi a execução da irmã. Eles viviam morrendo de
medo de perderem a cabeça.
Portanto, eu acho que tem uma mitologia lá pra trás do fim da monarquia, e dos
horrores que acompanham o fim da monarquia, que pode estar ligada a essa lenda
da princesinha que desaparece, que foge. E uma princesa muito bonitinha. A família
era linda, não era? Era uma família raramente bonita, principalmente entre as
monarquias. A Revolução Francesa é muito interessante porque ela apresenta todas
as etapas que depois vão aparecer nas outras grandes revoluções, como a russa e a
cubana. Elas tem aproximadamente os mesmos momentos da Revolução Francesa.
Começa uma tentativa de transformação radical; aquilo não dá certo, mas a
radicalização continua; parte pro terror e por fim ela estabiliza num certo retrocesso.
(...) Esse momento em que desaparecem os reis é quando a violência começa a atingir
o pico. (...)
Talvez fosse interessante pensar na construção desses imaginários políticos. Porque
essa menina assumiu esse papel? Porque se criou essa mística em torno dela? Eu
acho que criam-se mística em torno dessas monarquias absolutas em parte para
justifica-las. Por que ela ficaram até aquele momento ali? Dizer que o rei é um homem
diferente dos outros, que ele tem atributos que os outros homens não tem, que ele foi
investido por poderes divinos. E depois, acho que o trauma provocado pelo fim da
monarquia francesa. (...) Muitos nobres que tinham um espírito mais liberal, com a
execução dos reis eles voltam pra trás. Eles dizem “não, assim não é possível”. A
execução dos reis marcou o começo do terror revolucionário.
Eu acho que valia a pena você perder um pouco de tempo com a Revolução Francesa,
que sedimentou o imaginário do fim da monarquia como uma atrocidade. Essas
princesas são vítimas. E acho que no caso dela o que pega é que ela era muito bonita,
muito nova.
88
No caso de D. Sebastião tem outro componente – se associa o rei com a salvação
nacional. Tanto que tem aquele dito: “O rei morreu, viva o rei.” Quando o rei morria,
na França, chega o emissário – um porta voz da monarquia, um chanceler, ou uma
grande membro da corte – chega para o pública na janela do castelo e diz “le roi est
mort. Vive le roi!” então “Morreu Henrique IV, viva Luís VIII!”. O rei morrei – morreu o
pai – viva o rei – viva o filho! A monarquia não morre nunca.
O rei tem dois corpos: o rei tem um corpo físico e tem um corpo político. E o corpo
político dele pode ou não ser divinizado. O corpo físico se vai quando termina a vida
dele, mas o político não morre nunca, está sempre ressurgindo. Tem alguns lugares
na Europa – aliás, no mundo, porque aqui nós temos Canudos – que acreditam no
milenarismo. Que depois de tanto sofrimento verá um tempo de bonança. Virão agora
mil anos de felicidade. O Antônio Conselheiro dizia que o sertão vai virar mar, o mar
vai virar sertão e que agora iam vir mil anos de felicidade. Isso é bastante ligado à
bíblia hebraica – afinal os judeus estão até hoje esperando o Messias. Em Portugal
existe uma influência grande desse pensamento milenarista. Antes do D. Sebastião
morrer havia um milenarismo – um messianismo muito presente em Portugal. Os
historiadores atribuem à presença forte dos judeus na península ibérica. Quando
Sebastião morreu, logo depois veio a união ibérica: a Espanha anexou Portugal ao
império espanhol. Então D. Sebastião ia voltar para livrar Portugal do domínio
espanhol. E D. Sebastião já estava com 120, com 150, com 200 anos e continuavam
esperando. Até hoje tem regiões onde se fala de D. Sebastião. A espera do rei que
vai voltar tem a ver com a espera do Messias. Entronca a ideia da monarquia com a
ideia do salvador da humanidade. Essa ideia messiânica também teve um pouco com
D. João IV, quando teve a restauração em 1640, D. João IV foi visto como o Messias
que ia salvar Portugal.
Tem uma mística que envolve as monarquias porque é uma forma de diferenciar o rei.
Senão, porque que ela é rainha e eu não? No século XVII, na França, tem a ideia do
sangue azul. É uma ideologia difundida por um homem chamado Boullain-Villiers, que
fala que o sangue é diferente. Não que eles achem que vai cortar e vai sair tinta de
caneta, mas é quase uma coisa racial: os reis são reis porque eles tem atributos físicos
que são diferentes. São justificativas para confirmar e legitimar o poder político.
Conforme a sociedade vai ficando mais complexa, com cidades e homem muito ricos
que não tem nobreza, como é que vai justificar a ideia de que um deles é melhor que
89
os outros? É porque Deus quis assim, porque o sangue dele é melhor, porque ele foi
escolhido, porque ele pode curar com as mãos.
A gente tende a pensar as formas políticas do passado da mesma maneira que a
gente vê hoje, mas elas eram completamente diferentes. Hoje a legitimação política
passa pelo voto, passa por uma série de mecanismos que antes não existiam. Então,
os mecanismos acionados para estas pessoas justificarem o poder que elas tinham?
Eram mecanismos irracionais – do nosso ponto de vista – e frequentemente religiosos.
A religião e a política eram muito misturadas.
Essa coisa do rei se mostrar, do rei dançar, do rei ser colocado em palco, de todo
mundo ir ver o rei levantar e dormir – é parte de um sistema político que parece
irracional para nós mas que exibia uma racionalidade na época. [Norbert Elias] é um
sociólogo que desvenda os motivos por trás dessa etiqueta, por trás daqueles palácios
enormes, por trás daqueles jardins maravilhosos. Dos nobres saírem em parada, em
barcos. É uma coisa que só a nobreza pode fazer – os outros que fizerem isso são
ridículos.
(...) Claro que a Rússia do século XIX não era tão rígida quanto a sociedade pré-
revolução francesa, mas quem rompe mesmo com isso é a Revolução Russa. Existe
uma mística em torno dessa princesinha que é uma mística que diz respeito a um
mundo organizado segundo uma outra lógica. Que a princesa é mais bonita, é mais
nobre, é diferente das outras. Então ela não podia ser tratada da maneira como ela
foi. O crime de regicídio é um crime pavoroso. Quando são os príncipes que matam
uns aos outros é uma coisa: é diferente do povo se voltar e matar o rei. Isso é
gravíssimo.
As conspirações palacianas não, acontecem o tempo todo. A própria Catarina matou
uns dois ou três. A monarquia russa nos séculos XVI e XVII, quando os Romanov
assumem, incluem várias conspirações palacianas em que eles se matam entre si:
tira um da linha de sucessão pra por o outro, etc. Mas o povo invadir o palácio e matar
o rei? Aí é um sacrilégio.
Na Espanha tem o caso de Felipe II, cujo filho estava conspirando. Dizem que ele
mandou matam. Nada é provado, mas ao que parece ele mandou matar o próprio
filho. Porque isso acontece? Porque a razão do estado monárquico está acima de
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tudo. O mais importante é o Estado manter a integridade. Afinal, eles vem da ressaca
do feudalismo, que passa séculos para conseguir se unificar. A realidade do
feudalismo é uma porção de príncipes e marqueses e um rei que ocupa um pedacinho
do reino. Isso aparece ainda bastante do Shakespeare. O rei é um entre os senhores
feudais. E o esforço do fim do feudalismo é o rei subjugando os outros senhores que,
às vezes, são até mais importantes que ele. Então eles toleram mal qualquer tentativa
de complô de outros príncipes.
Agora, a novidade é o povo tentar matar o rei, isso aparece na Revolução Francesa.
E é terrível, porque é um sacrilégio: vai contra a figura sagrada do monarca.
Eu tenho a impressão de que o que também auxilia numa mitificação são
buracos. Quando se tem buracos, cada um pode preencher como puder. Nunca
se achou o corpo de D. Sebastião.
Claro. Tem razão. Quando você tem buracos você preenche com imaginação. O povo
preenche com lendas, com o acervo que ele tem.
Hoje em dia, o fascínio imaginário é parte do estudo do objeto do historiador. Pra
História do século XIX só era possível tratar de coisas que tinham acontecido, coisas
concretas: uma batalha, um fenômeno. No século XX, com influência da psicologia e
da psicanálise, já é possível falarmos de fatos imaginários. Isso a princípio seria um
assunto mais da antropologia: símbolos, signos, mitos. Mas a história hoje em dia
também trata disso.
Qual deve ser a postura do historiador ao estudar um fenômeno imaginário?
Ele deve agir consciente de que está lidando com um fenômeno mental, então tem
que pensar na deformação, nos silêncios, nas lacunas, nos não-ditos. Isso quem nos
ensinou foi a psicanálise. Às vezes, numa sessão de terapia, você está falando uma
coisa e não está falando outra e o mais importante é justamente o que você não está
falando. O bom psicanalista tem que saber disso. Muitas vezes o bom historiador
também.
Você falou dos buracos. O historiador pode preenche-los de duas maneiras: cercando
o buraco é um deles. Por exemplo, você não tem o documento que comprova a morte
da Anastásia, mas tem uma série de outros que indicam que ela foi trucidada também.
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Então você aciona os documentos à volta para poder tratar daquilo que não está
documentado. A outra possibilidade é você usar a sua imaginação e o seu raciocínio.
Trabalhar por analogias.
O personagem brasileiro que passou por uma mitificação mais forte talvez seja
Tiradentes...
Porque ele é a grande vítima. A essa altura ele é quase um santo. O José Murilo de
Carvalho tem um artigo em que ele explica porque o Tiradentes virou o herói da
república. Tem uma associação do Tiradentes com Cristo na maneira que ele é
representado. Naquela época não se usava barba. “Ah, mas a barba cresceu na
prisão!” – Pode até ser, mas mesmo assim, teriam cortado antes de enforcar, a barba
e o cabelo. Então tem toda uma associação dele com a imagem de cristo. Tem aquele
quadro do Pedro Américo, o Cristo Esquartejado, que está lá no museu do Ipiranga.
A república precisava de um herói. E escolheram Tiradentes. Podiam ter escolhido
outro, mas ele se encaixou em alguns aspectos: ele era militar, e a república foi um
golpe militar, proclamada por um general. Então o Tiradentes é patrono do exército.
Além disso, ele é um herói da pátria, que teria lutado pela liberdade do Brasil. É muito
nítido como se constrói o mito do Tiradentes.
Talvez esse também seja o caso da Anastásia. A heroína que o mundo capitalista
encontrou para dizer “Olha quem esses monstros tentaram matar! Essa menina linda,
inocente, pura...”
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ANEXO B
ENTREVISTA – LILIA SCHWARCZ
22/01/2013
No seu livro As Barbas do Imperador você discute muito essa contraposição
entre o D. Pedro real e o imaginário. Como historiadora e antropóloga, esse
fascínio do imaginário é parte do estudo do objeto?
Essa discussão sobre história e memória é o que eu faço no final do livro. Eu me fio
cada vez mais num autor chamado Didi-Huberman. Ele chama a atenção para essa
ideia de como não dá pra você fazer essa separação entre real e imaginário, entre
memória e história. Esses limites são muito complicados. O que eu digo do D. Pedro
é que eu queria que fosse menos uma biografia e mais um estudo sobre construção
de mito, de lendas, de imaginário, de memória sobre D. Pedro. É o que eu imagino
que é o seu trabalho. Quando você parte pra esse recorte, a sua metodologia também
precisa ser diferente. Não é que você trata o sujeito como se ele nunca tivesse
existido, mas você tem um recorte de construção da memória.
Muitas vezes, em algumas circunstâncias, o mito é real e o real é o imaginário. O meu
trabalho é menos ficar provando pro meu leitor se ele esteve ou não esteve naquela
cidade e mais ficar refletindo com elas porque que se acha que ele esteve lá e qual a
relevância disso. Como se constrói essa figura do imperador mítico.
O que você acha que tornaria alguns monarcas mais mitificáveis do que outros?
Acho que todo o monarca é mitificável. Eu trabalhei com uma biografia que trata de
monarquias, de como elas são associadas a lendas. Eu acho que quanto mais um
monarca fica popular – popular no sentido de ganhar força no imaginário nacional –
mais ele vira matéria de lenda. Quanto mais ele é estranho ou artificial a esse contexto,
menos popularidade ele tem. Mas o que eu falo no meu trabalho – e isso vem do
Kantorowicz – é que a monarquia é o único sistema que incorpora o mito dentro da
sua constituição. Eles eram mais que meros mortais. Eu falo da monarquia ocidental,
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monarquias como Cleópatra eu não tenho condições de analisar, ficaria leviano. Mas
a monarquia ocidental se organiza dessa maneira. O rei é divino e é terreno. É por
isso que é difícil separar as duas figuras. Ela se constrói dessa maneira.
Sim, é claro que monarquias são muito mais mitificáveis que repúblicas. Mas
ainda assim não são todos os reis que entram pra história. Porque algumas
pessoas se destacam nesse discurso imaginário?
É a pergunta anterior. Porque algumas monarquias tem raízes em sentido mais amplo
e outras não. Você tem alguns monarcas que, seja pela força bélica, seja pela força
da comoção, seja pela força das artes, seja pela força do contexto em que elas estão,
elas criam uma comunidade de sentido – como diz o Anderson, você conhece o
Benedict Anderson? O Kantorowicz, o Benedict Anderson – então aí você tem figuras
que ganham densidade de imaginário. Não são todas que ganham. Tem monarcas
fracos que não vão ter essa densidade. Por exemplo, a diferença entre um D.
Sebastião e um D. José. D. Sebastião morre numa cruzada, num momento heroico,
combatendo os mouros... então ele puxa pra um imaginário. Já D. José é um monarca
que vem depois de D. João V, num momento de crise com a qual ele não consegue
lidar... então não há peso, não há imaginário possível. Então não é dizer que alguns
monarcas são elevados, mas alguns ganham essa densidade.
Você também fala de uma construção posterior desse imaginário. Por exemplo,
D. Pedro foi resgatado como herói na república.
Não só na república. Já havia uma construção no tempo do império, de um monarca
mecenas. E aí há material para ser retomado na república.
Você fala que num momento de crise a república resgata a ideia do imperador...
Ao contrário. É no momento que ela sai da crise. É com Getúlio Vargas. Só aí a
república tem força para competir com a imagem do imperador e tenta vincular sua
imagem à dela.
Ainda que essa construção não seja propriamente real, você acha que ela acaba
ganhando mais peso no discurso da história do que os fatos ocorridos?
Eu acho que sim. É por isso que eu acho que história e antropologia devem dialogar
nesses casos tão de perto. Essa questão é muito boa. O fato é que você tem várias
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ideologias. Uma ideologia tão forte quanto a da ciência ou a da história - o ocidente é
um povo que pensa pelo tempo, concorda? – uma ideologia muito forte é a do senso
comum. Então, imaginário, mitologia. Ela, num momento em que falta, ficam muitas
vezes mais forte que o evento. Concorda? As pessoas recorrem aos mitos quando
faltam os fatos. É por isso que eu acho que essa verdade que você está procurando
é tão bacana. Não se pode dizer ‘não houve historia’, isso é um discurso obscurantista.
Mas nesse discurso entre história e memória, a memória têm a maior importância. É
aí que está a dificuldade do seu trabalho: como você vai se envolver entre história e
memória. Isso não quer dizer que um é mais importante que o outro. Mas se você
buscar esse ângulo entre história e memória você vai ver que a produção mítica é tão
importante quanto a produção histórica.
O que significa o corpo duplo? O que significa essa ideia de que as pessoas acreditam
que você tem um Homem mas também tem um Deus que não pode ser julgado por
nós?
E é impressionante como isso ainda paira no Brasil. Essa ideia de que o presidente é
um pai, de que o presidente tem que ser diferente de nós... Eu sempre brincava que
a campanha do Lula enquanto ele dizia “um brasileiro igual a você” não ia funcionar.
Por que que ele vai me governar se ele é igualzinho a mim?
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ANEXO C
ENTREVISTA – HELEN RAPPAPORT
22/09/2012
Anastasia died at a young age, so her story leaves quite a bit to
speculation. How did you fill these gaps?
I never speculate, I base all my arguments in my books on hard, concerted research
and if the evidence does not stack up I don’t use it. The Anastasia story is a minefield
in terms of hearsay, false stories and mythology. I am sticking to the clears facts of her
life plus new information that I have come up with from primary sources – letters and
diaries. I am deliberately avoiding reading anything written about her that is
hagiographic or that plays into the Anastasia myth.
In some moments, did you have doubts about whether you were dealing
with a historical or literary character?
No. I’ve always had a very clear division in my mind between the real Anastasia and
the fantasy figure created by far too much ill informed hagiography and wishful thinking,
now made worse by all those ghastly sugary fan sites on the web.
What were the sources used on the historical part? Newspapers? Family
diaries? Letters?
All of those plus a lot of obscure, little known and unpublished memoirs by Romanov
family members and the White Russian emigrés. I have drawn on archival sources
previously not used for my new book.
With what purpose, as a historian, do you turn your attention to this
particular noble family?
Because they interest me as a family group. They are totally untypical for a royal family
of their time, in terms of their close bond, their loyalty to each other and the power of
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their loving interaction in difficult times. I’m interested too in the dramatic contrast
between Nicholas as a hopeless, weak tsar but as a wonderful, exemplary father.
What kind of contact did you have with primary sources?
I searched for as many as I could find and always use them in preference to anything
else.
Why was Anastasia, and not, say, one of her four sisters or her
brother, the one selected by history to become immortal? Do you believe it
was because of Anna Anderson, or is she just part of the mythology
constructed around Anastasia?
I think it’s down to an accident of fate in that Anna Anderson was the most high profile
and, to some, plausible claimant. Plus she made her claim when people were still alive
who knew the Romanovs well and wanted to believe in a miracle. Simply that. If a good
claimant had come forward for one of the others they would have attracted equal if not
more interest. Prior to the creation of the Anastasia legend she was actually the least
significant of the sisters, as the youngest. Olga was far more important and had there
been a convincing Olga claimant Anastasia might as well have languished in obscurity.
Simple as that. I still get occasional emails from people claiming that Anastasia
escaped – despite the DNA evidence. People love this kind of fantasy and happy
ending but it gets in the way of the real story and the real personalities.
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