análise do filme hamaca paraguaya, de paz encina [paraguai, 2006]
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Análise do filme Hamaca Paraguaya, de Paz Encina [Paraguai, 2006] por Gabriel Muniz
É interessante notar como o tempo pode ser uma variável determinante
quando trabalhada a partir de recursos sonoros em uma obra audiovisual. O
som é uma dimensão narrativa que pode sugerir diversos caminhos em relação
à orientação que o espectador espera receber de um filme. As informações
sonoras podem nos encaminhar a um passado definido, consolidado, nos
colocar diante de um presente fugaz, sempre apontando para um futuro
imprevisível [ou não], ou para uma idéia de passado nebuloso.
A linearidade da narrativa clássica é bastante presente, de tal forma que
nos habitua a um ritmo, a uma dinâmica de fruição na qual esperamos certa
cadência mais ou menos definida entre as ações, e onde o elemento sonoro é
peça chave na construção fílmica. Juntamente com a montagem ele pode
sugerir acelerações na dinâmica de um filme, fazendo com que uma longa
sequência pareça passageira; ou, pelo contrário, estender a variável temporal
de uma pequena cena até a sua suspensão.
A distensão do tempo é um recurso bastante presente na recente
produção cinematográfica de países asiáticos, há também algumas
experiências nos cinemas africanos. Aqui na América Latina me parece
singular em ficções o caso do qual me dispus a tratar. Hamaca Paraguaya
[Paraguai, 2006] é um curioso e bem sucedido exemplo de como a narração
pode sugerir intersecções temporais, além de diferentes encenações visuais e
sonoras, que ora se desconectam, ora se reencontram.
Com este filme a jovem diretora Paz Encina [Assunção, 1971] quebrou
em 2006 o jejum de 28 anos de produção de longas metragens do Paraguai,
país ao qual obviamente se refere com uma narrativa minimalista, porém
profunda, sobre a situação de paralisia de um país e da inércia de seu povo. A
ousadia formal de Hamaca Paraguaya foi muito bem recebida pela crítica e
chegou a compor a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, um dos
mais prestigiados no mundo.
Nesta obra o discurso sonoro conduz a narrativa. Quase toda a história é
assimilada a partir dos longuíssimos diálogos entre o casal protagonista e de
suas memórias durante um dia. Ramón e Cándida são idosos que vivem em
um recanto inóspito da região do Chaco, objeto de disputa bélica entre
paraguaios e bolivianos na década de 1930. No entanto essas informações vão
sendo sutil e vagarosamente distribuídas ao longo do filme, onde a
atemporalidade é sempre colocada em meio aos constantes momentos de
ceticismo e esperança diante das incertezas que cercam as expectativas dos
personagens.
Logo na primeira sequência o filme mostra a que se propõe: um longo
plano aberto e estático de aproximadamente 15 minutos no meio da mata
mostra o casal de idosos estendendo uma rede, de manhã bem cedo. Seu
diálogo, todo falado em guarani, é circundado por uma série de sons do
ambiente [revoada de pássaros, galo cantando, latidos de uma cachorra] que
causam a sensação de isolamento dos personagens em relação ao mundo
exterior, onde o filho deles enfrenta os bolivianos, na função de soldado do
exército paraguaio.
A incerteza sobre a sua volta é o que leva o casal a posições distintas
diante da realidade. Ramón é esperançoso, procura levar um pouco de seu
otimismo para a esposa, Cándida, que sempre se mantém cética sobre o
retorno de seu único filho. São bonitos os simbolismos na construção formal do
filme. O som como índice [trovão, revoada de pássaros] de esperança para
Ramón, sempre precede a imagem estática de um céu nublado, que nunca
concretiza a tão esperada chuva, que amenizará o desconforto do calor
excessivo do Chaco.
A narrativa é bastante sensorial. Os longos diálogos acompanhados do
volumoso som ambiente e da agonia de uma cadela [que nunca vemos, mas
ouvimos latindo] leva também àquele que assiste um pouco dos desconforto do
casal. Na Hamaca não apenas os sons, mas os odores e temperaturas [calor
úmido, vento] também são compartilhados a partir dos diálogos, assim como os
gestos dos personagens, que mostram detalhes de suas características.
Na segunda sequência vemos o trabalho cotidiano dos personagens, o
leve e cadenciado movimento do homem sereno e paciente no corte da cana e
os fortes e repetidos socos com os quais a mulher firme e cética enxágua a
roupa que lava. Neste momento ouvimos a voz over como uma sugestão de
encenação sonora deslocada da encenação visual. Enquanto o casal faz os
trabalhos diários separadamente, são confrontados com a lembrança do
momento de despedida do filho Máximo Caballero, como em um flashback
sonoro.
As memórias de um passado recente são o elo de continuidade cênica
em relação aos momentos individuais do presente [visual] do casal em seus
afazeres. São duas dimensões temporais [flashback / memória presente] que
se interseccionam e dão continuidade narrativa a dois espaços também
distintos, porém com tratamento simétrico. A imagem [na maior parte do filme
em planos abertos] posiciona os dois personagens no mesmo lado em relação
ao quadro, de costas e em planos geral e primeiro plano. Sempre isolados,
mesmo em meio aos companheiros (as) de trabalho.
Essa dualidade entre som e imagem é bastante interessante na medida
em que o elemento sonoro carrega as sensações e os sentimentos, o que
demarca um nítido contraste em relação às imagens desdramatizadas. Nas
sequências na rede, a imagem está distante a ponto de não se perceber as
expressões faciais. Nos planos mais fechados [PG e PP] os personagens estão
de costas e raramente se vê seus rostos. A ênfase expressiva reside no
diálogo, mas também nos tons graves das vozes dos idosos, que em certos
momentos se confundem; e nos latidos da cadela, agonia que ora surge, ora se
cala.
A terceira sequência é ainda mais arrojada: de volta à mata fechada – a
luz mais forte sugere o meio dia – a imagem do pai se aproximando sozinho da
rede é acompanhada por um diálogo do casal, onde não se distingue tão
facilmente quem fala o que. As duas vozes sugerem um diálogo em outro
tempo, que se contrapõe ao presente da imagem. Há um descontexto e, assim
como os personagens, o espectador pode experimentar uma incerteza
narrativa entre o antes, o durante e o depois. No entanto, o tempo sonoro
inicialmente deslocado do tempo visual, vai aos poucos se reconectando à
encenação que é vista no quadro, e esse redimensionamento temporal é uma
das maiores virtudes da direção do filme.
Novamente o discurso sonoro encadeia as ações do enredo. Ramón
ouve sempre os pássaros em revoada, mas não consegue vê-los, uma bela
metáfora. Cándida define ainda mais o contraponto quando afirma que
“memórias não trazem pessoas à vida”, reforçando a dualidade entre o que se
ouve, índice que aponta para uma possibilidade de esperança e o que [não] se
vê, a [não] concretização do esperado. Também a cadela, personagem nunca
vista, mas sempre ouvida, em dado momento para de latir, sinal de
esmaecimento do otimismo, o que, aliás, Ramón já começa a perder.
As notícias sobre a guerra são o mote principal da quarta sequência do
filme. Mais uma vez o casal está em locais distintos, mas simetricamente
dispostos. O velho leva a cachorra a um veterinário no povoado [indefinido] e
fica sabendo notícias sobre o fim da guerra, momento no qual também o
espectador tem uma pista sobre o tempo diegético, a guerra contra os
bolivianos vencida pelos paraguaios permite situar os anos 1930 no Chaco. A
velha ainda está no sítio do casal quando recebe a visita de um mensageiro
incubido de comunicar a morte de Máximo Ramón Caballero, umas das cenas
mais bonitas de Hamaca Paraguaya.
É relevante também destacar o interessante jogo entre voz over / voz off
no filme. Em nenhum dos dois casos os personagens do veterinário e do
mensageiro são vistos. Os diálogos, como na sequência que a precede,
parecem inicialmente pertencer a outro tempo, anterior, posterior; ou à
memória, pela inatividade dos personagens que são vistos e a não sincronia
entre a imagem e som. Em dado momento a partir do conteúdo do diálogo e
dos gestos dos idosos é possível reconectar as diferentes temporalidades em
um contexto comum, anacrônico.
Temos aí o jogo: não se sabe se os personagens visualmente ocultos
estão no extra campo [voz off] ou se constituem apenas uma lembrança no
momento presente da encenação visual, fora de campo [voz over]. No caso do
Pai, inicialmente tende-se a pensar primeiro em over [ele está do lado de fora
da pequena casa, como que em uma espera solitária] para depois em off,
quando ele entra na casa, como que ao encontro do veterinário, o que
colocaria esse personagem em campo.
Já com a Mãe imagina-se a chegada do mensageiro, o que consistiria
numa voz off, com o personagem oculto extra campo. No entanto a resposta
sonora de Cándida não é acompanhada por uma resposta visual, de onde se
imagina que seja uma memória, não estando ali presente em campo o viajante
que comunica a queda no front de Máximo Ramón Caballero, o que
caracterizaria uma voz over. É interessante como o ceticismo da idosa resiste
em acreditar que o falecido não seja o seu filho, que ela afirma se chamar
Máximo Caballero.
Nesse momento de inversões é possível também observar como a
imagem começa a se permitir dramaticamente. Podemos ver melhor, ainda que
de perfil, os rostos dos protagonistas, e em planos mais fechados. A inversão é
o raccord narrativo para a quinta e última sequência, de volta à rede na mata
fechada e sempre pontuada por trovões cada vez mais frequentes. Enquanto o
ceticismo da Mãe, que se recusa a acreditar na morte do filho, se converte em
possibilidade de esperança, o velho Ramón se desespera ao saber pelo
veterinário que a guerra tinha acabado dois dias antes sem o regresso de seu
filho, e torna-se cético em relação à realidade da guerra e à sua própria vida.
Em mais um longo plano [aproximadamente 15 minutos] a mata vai
escurecendo, e o som do ambiente [cigarras, trovões, vento] predomina,
enquanto os personagens que tanto falavam, optam pelo silêncio. É tocante ver
como Cándida se transforma, a senhora que antes era fechada
emocionalmente se coloca na função que até então exercida pelo marido, a de
tentar confortar o companheiro. O isolamento se converte em união.
A cena tem seu desfecho na escuridão quase total. A Mãe tenta
direcionar os olhos do Pai ao céu, ao ver uma estrela cadente – esperança. E
procura fazer com que o velho marido mantenha acesa a pequena chama do
lampião, enquanto o convida para deitar-se nem sua cama confortável de
casal. Há um corte para o fundo preto, a cadela volta a latir, apenas os sons
ambientes, trovões. Só que dessa vez acompanhados pelo som da tão
aguardada chuva, concretização da esperança, não pelo discurso visual, pelo
contraponto, mas sim pela inversão da lógica narrativa e conceitual criada pelo
próprio filme, enfim pelo discurso sonoro. Os créditos finais são acompanhados
de uma bela música instrumental.
Recife, 19 abril de 2011.
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