alguns aspectos do processo de constituição do campo de estudos
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IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura
28 a 30 de maio de 2008 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.
ALGUNS ASPECTOS DO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DE ESTUDOS EM ECONOMIA DA CULTURA
Paulo Miguez*
Resumo: Com seus múltiplos enlaces e sua transversalidade face a outras dimensões societárias, a cultura tem vindo a ocupar uma posição de indiscutível centralidade no mundo contemporâneo. Todavia, é por conta das muitas e complexas questões sugeridas pela relação que tem estabelecido com o campo da economia, em especial face à escala do mercado global de bens e serviços simbólico-culturais dominado pelos gigantescos conglomerados de produção e distribuição de conteúdos culturais, que a centralidade da cultura adquire ainda mais visibilidade, desperta a atenção de instituições internacionais, dos formuladores de políticas públicas e de estudiosos das várias áreas científico-acadêmicas e constitui um campo particular de estudos ao qual chamamos de economia da cultura. Palavras-chave: cultura, economia da cultura, indústrias criativas, economia criativa, estudos sócio-econômicos da cultura.
1. A cultura na agenda contemporânea
A cultura é, certamente, um dos mais relevantes dentre os eixos que organizam a
agenda contemporânea. Seus múltiplos enlaces e sua transversalidade face a outras
dimensões societárias têm lhe reservado uma posição de indiscutível centralidade no
mundo, hoje. E não são poucos os sinais que atestam a presença significativa da cultura nos
debates e embates que conformam a contemporaneidade.
Na academia, por exemplo, território que historicamente monopolizou o debate
sobre a cultura e seus fenômenos, mudanças de peso têm vindo a ocorrer. Aí, a cultura
invadiu campos do conhecimento que até muito recentemente mantinham-se distantes e,
não raro, hostis quanto às questões culturais. Transpôs os limites da antropologia e da
sociologia, ciências sociais que classicamente, e em regime de quase exclusivismo, dela se
têm ocupado, e passou a marcar presença nos estudos e pesquisas em disciplinas científicas
tão distintas quanto a história, a geografia, a ciência política, a demografia, a comunicação,
a psicologia, as ciências ambientais, o direito, a economia, a gestão. Até mesmo no campo
dos estudos tecnológicos, a exemplo das engenharias e, muito particularmente, dos sistemas
de computação, a cultura tem alimentado o interesse de pesquisadores.
* Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; paulomiguez@uol.com.br
Fora do universo estritamente acadêmico, a cultura, por conta do tema da
diversidade cultural, tem inscrição nas agendas nacionais e nos principais foros
internacionais, fruto, com certeza, da aprovação, pela 33ª Conferência Geral da UNESCO,
em outubro de 2005, da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais, instrumento normativo de fundamental importância para a cultura
que tem como premissa básica a compreensão da diversidade cultural como “patrimônio
comum da humanidade” (UNITED NATIONS..., 2006).
Todavia, não se restringe à temática da diversidade cultural a presença da cultura
nos foros internacionais. Muito ao contrário, e extrapolando o campo cultural propriamente
dito, a cultura alcança, em força, por exemplo, os debates da comunidade internacional
sobre desenvolvimento, comércio internacional e propriedade intelectual.
Nessa medida, não pode passar deixar de ser registrado o fato de que organizações
internacionais multilaterais do porte das agências que compõem o Sistema das Nações
Unidas – a OIT, Organização Internacional do Trabalho, a UNCTAD, Conferência das
Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento, o PNUD, Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, e a própria UNESCO, que até muito recentemente tinha
suas atividades concentradas na área de patrimônio e memória – têm elaborado
documentos, acionados programas, reunido estatísticas e organizado eventos que apontam
para a incorporação às suas estratégias político-institucionais das imbricações entre cultura
e desenvolvimento.
Também no seleto e poderoso grupo de bancos multilaterais de desenvolvimento a
cultura tem presença garantida. George Yúdice registra, por exemplo, que “James D.
Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, liderou a tendência dos bancos multilaterais de
desenvolvimento de incluir a cultura como catalisadora do desenvolvimento” (YÚDICE,
2004, p. 30).
Na arena de negociações sobre o comércio internacional, a cultura, pela via da
temática da diversidade cultural, já é ponto importante de agenda há algum tempo. Bem
antes da aprovação da Convenção, em 1993, o GATT - General Agreement on Trade and
Tarriffs1, nas negociações multilaterais da “Rodada Uruguai” sobre a liberalização do
1 O GATT, que forneceu as bases para a criação da OMC- Organização Mundial do Comércio em 1995, é um Acordo estabelecido no Pós-II Guerra Mundial que prevê rodadas de negociações sobre a retirada de barreiras
comércio internacional, teve que debater a questão da exceção cultural posta pela União
Européia, fortemente impulsionada pela França e com o apoio do Canadá2. Contudo, longe
de estar esgotado – e agora informado pelas disposições da Convenção da diversidade
cultural, que elege como um de seus pilares básicos o reconhecimento da “natureza
específica das atividades, bens e serviços culturais” ainda que considere a importância da
dimensão econômica da cultura (UNITED NATIONS..., 2006) –, o debate sobre a liberação
dos serviços audiovisuais continua, já agora, também, no âmbito da OMC - Organização
Mundial do Comércio.
Quanto à propriedade intelectual, e especificamente no que concerne aos direitos do
autor, tema imensamente caro ao campo da criação cultural e intensamente vinculado às
questões do comércio internacional e da diversidade cultural, o debate não é menos
importante. Em tela, a flexibilização dos marcos regulatórios que regem internacionalmente
o regime de propriedade intelectual, questão que vem sendo potencializada com a
emergência de conceitos e práticas tais como creative commons, copyleft e open source os
quais, possibilitados pelos avanços da tecnologia digital, interessam sobremaneira ao
campo da cultura pelo que significam em termos de democratização do acesso aos bens e
serviços culturais e ao ferramental informacional (sistemas operacionais, softwares, etc.).
Registre-se, sob esta importante questão, as reflexões de David Harvey quando analisa a
importância das singularidades culturais na formação do que chama de “rendimento
monopólico” (HARVEY, 2005). Segundo este estudioso, a globalização reduziu
drasticamente ou mesmo eliminou boa parte das formas históricas de proteção de
monopólios como, por exemplo, aquelas referidas ao espaço, à localização e às barreiras
alfandegárias nacionais. No entanto, como é da natureza da dinâmica capitalista a
existência (e a necessidade) dos monopólios – em que pesem o discurso ideológico, que faz
profissão de fé na livre concorrência, e as leis anti-trust que nos EUA e na Europa tentam
enfrentar a tendência à monopolização do mercado –, sempre que uma fonte de privilégios
garantidores da situação de monopólio é eliminada, novas formas de assegurar tal condição
são reunidas. É o caso, por exemplo, da rigidez com que é tratada, hoje, a questão da
alfandegárias de bens e serviços e, que, na chamada Rodada Uruguai introduziu na pauta destas discussões os serviços (que inclui o setor da produção audiovisual) e a propriedade intelectual. 2 Divina Frau-Meigs considera este embate como “la primera conflagración de tamaño natural entre la idea de mundialización y la de americanización” (FRAU-MEIGS, 2006, p.4).
proteção da propriedade intelectual, portanto, uma forma contemporânea de “rendimento
monopólico” a que recorrem, por exemplo, as indústrias culturais (audiovisual, fonográfica,
editorial, etc.) e de desenvolvimento e produção de software – além, é claro, de indústrias
tradicionais como a farmacêutica. Daí que, o combate à pirataria, que vem sendo
capitaneado pelas grandes corporações que controlam as indústrias fonográfica, do
audiovisual e do software e que conta com o apoio institucional de vários governos,
objetiva menos a proteção dos direitos do autor – figura, o autor, que se encontra reduzida à
condição de mero provedor de conteúdo, nas palavras de Yúdice (2004) – que, como é
óbvio, não podem ser negligenciados, do que a proteção dos oligopólios que caracterizam o
mercado mundial de imagem e som, cada vez mais concentrado na mão dos grandes
conglomerados de mídia e entretenimento.
Sinais externos e, também, fortes sinais internos. No Brasil, a gestão de Gilberto Gil
à frente do Ministério da Cultura tem dado grande atenção ao papel da cultura na sua
relação estratégica com o desenvolvimento, especificamente no que toca às questões da
economia da cultura. Por exemplo, na seqüência da XI UNCTAD o Governo Brasileiro
chegou a acionar múltiplos e importantes esforços e a assumir compromissos oficiais junto
à comunidade internacional na direção da criação de um Centro Internacional de Economia
Criativa em Salvador, na Bahia. Neste processo, é de destacar o importante seminário
internacional organizado pelo MinC em conjunto com a UNCTAD, em abril de 2005, na
Salvador (PROMOVENDO..., 2007).
Outro bom exemplo é a participação ativa do Brasil no tocante à questão da
propriedade intelectual. Aqui, é digno de nota, o firme posicionamento do Governo
Brasileiro no âmbito da OMPI, Organização Mundial da Propriedade Intelectual, expresso
pela submissão à Assembléia Geral desta organização, em outubro de 2004, em conjunto
com outros países, da Agenda para o Desenvolvimento, documento que advoga mudanças
nos marcos regulatórios da propriedade intelectual na direção dos interesses dos países em
desenvolvimento (WORLD INTELLECTUAL ..., 2007).
Outros exemplos, inclusive na direção de áreas como a política, poderiam ser
elencados com o intuito de confirmar a idéia da centralidade da cultura ou, como refere
Albino Rubim, a compreensão de que “Na contemporaneidade, a cultura comparece como
um campo social singular e, de modo simultâneo, perpassa transversalmente todas as outras
esferas societárias, como figura quase onipresente” (RUBIM, 2007, 148).
Contentemo-nos, todavia, com estes aqui mencionados, até porque, ainda que
compareça de forma relevante em várias esferas da vida social contemporânea, é nas suas
interfaces com o campo da economia que de forma mais acentuada a cultura tem vindo a
demandar a atenção do mundo científico-acadêmico, de instituições governamentais, de
agências multilaterais, de bancos de desenvolvimento e de organizações não-
governamentais.
E não são poucas, muito menos simples, as questões sugeridas pela relação que
contemporaneamente têm estabelecido, entre si, os campos da cultura e da economia. Nesta
linha, basta que se considere a escala e amplitude do mercado global de bens e serviços
simbólico-culturais; que se tenha em conta o poder econômico – e, tão importante quanto, o
poder político-ideológico – dos gigantescos conglomerados de produção e distribuição de
conteúdos culturais que alimentam este mercado; ou que se contabilize alguns números (por
exemplo, as estimativas do Banco Mundial segundo as quais o setor da produção
simbólico-cultural – a que o Banco começa a nomear como economia criativa – já contribui
com aproximadamente 7% do PIB mundial e deverá crescer, nos próximos anos, a uma taxa
média de 10% (PROMOVENDO..., 2007); os dados que indicam para os Estados Unidos e
Inglaterra, respectivamente, uma participação deste setor de 6% e 8,2% do Produto
Nacional Bruto (COPYRIGHTS..., 2004; BRITISH COUNCIL, 2005) e o fato de alguns
países em desenvolvimento terem conseguido estabelecer potentes mercados internos para
seus produtos simbólico-culturais, a exemplo da Índia com sua indústria cinematográfica e
do Brasil com sua produção televisiva, e operarem, como no caso da Jamaica e da
Colômbia no campo musical, significativos nichos globais do mercado de bens e serviços
simbólico-culturais), para que não soe estranha a compreensão expressa por Antonio Negri
e Giuseppe Cuoco segundo a qual, hoje, “a cultura não tem só um expressivo peso
econômico”. É a própria “economia como um todo [que] depende cada vez mais, em seu
conjunto, das dimensões culturais.” (NEGRI; CUOCCO, 2006).
Exemplos assim, à mancheia, pela magnitude que encerram e pela expressividade
dos atores e processos envolvidos, confirmam, sem mais, um protagonismo que a esfera
cultural jamais desfrutou na história da modernidade e justificam e explicam, com sobras,
as transformações prático-conceituais que alcançam a compreensão do que é cultura.
Alguns autores, como Jameson (1997), por exemplo, chegam a afirmar que a cultura
se transformou na própria lógica do capitalismo contemporâneo. Negri e Cuocco, em linha
semelhante, consideram que
“O que é cultural no capitalismo globalizado das redes é o trabalho em geral. Ou seja, um trabalho que se torna intelectual, criativo, comunicativo – em uma palavra, imaterial. A cultura ‘gera valor’ (como diz o ‘management’) porque o que é incorporado aos produtos são formas de vida: estilos, preferências, status, subjetividades, informações, normas de consumo e até a produção de opinião pública. A mercadoria precisa ser dotada de valor cultural. O trabalho se torna, assim, ação cultural. O trabalho da cultura e na cultura se torna cada vez mais o paradigma da produção em seu conjunto.” (NEGRI; CUOCCO, 2006).
George Yúdice, considerando a expansão da cultura para outras esferas da vida
social, como a política e a economia, e o concomitante esvaziamento das noções que
convencionalmente davam conta dos seus significados, sugere “uma abordagem da questão
da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada,
como um recurso”, “recurso” no sentido de “reserva disponível”, especifica ainda o autor
(YÚDICE, 2004, p.25, grifos do autor). E justifica:
“... hoje em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que não arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura, ora para melhorar as condições sociais, como criação de tolerância multicultural e participação cívica através de defesas como as da UNESCO pela cidadania cultural e por direitos culturais, ora para estimular o crescimento econômico através de projetos de desenvolvimento cultural urbano...” (YÚDICE, 2004, p.27)
Da compreensão da cultura como “recurso” emerge o que George Yúdice denomina
de “conveniência da cultura”, uma “característica óbvia da vida contemporânea” e que,
menos que censura, demanda mais investimento teórico, mais pesquisas e mais debates no
sentido do estabelecimento de uma “genealogia” que dê conta da “transformação da cultura
em recurso” (YÚDICE, 2004, p.47).
2. Sobre os estudos em economia da cultura
As relações entre o campo da cultura e outras esferas societárias, como é óbvio, não
são novas. No caso específico das relações com a esfera econômica, por exemplo, a
inscrição mais remota pode ser localizada na Europa do século XIX, momento em que a
submissão do artista e do escritor aos ditames da lógica mercantil aciona a emergência de
um mercado da cultura.
Todavia, em que pese a longevidade desta relação, a cultura, até muito
recentemente, não chegou a despertar qualquer interesse especial nos estudiosos e
pesquisadores do campo da economia. Quando acontecia, a aproximação entre estes dois
campos refletia, quase sempre, mais um interesse pessoal sobre o particular mundo das
artes e menos, ou quase nada, a intenção de investigar qualquer aspecto relacionado com a
dimensão econômica expressa pelas obras artísticas (BENHAMOU, 1997). Deste ponto de
vista, o melhor exemplo é John Maynard Keynes que, teórico da economia, era, também,
um apaixonado colecionador de obras de artes. Certamente, muito em função desta sua
paixão, Keynes sustentava, nos anos 20 e 30 do século XX, a tese da importância do
financiamento público das artes, tendo, inclusive, estimulado o Governo Britânico a criar o
Arts Council England, instituição da qual foi o primeiro presidente.
De todo modo, de Smith e Ricardo, fundadores da economia política3, passando por
todo o século XIX4 e chegando até pouco mais da metade do século XX, as (raras)
investidas dos economistas sobre o campo da cultura estiveram circunscritas à dita “alta
cultura” (as belas artes, a literatura e as artes chamadas performáticas – teatro, dança, ópera
e música clássica) e abordavam, regra geral, questões relacionadas com o mecenato público
e privado e os processos relativos à formação dos preços das obras de arte. Daí que,
tomando em consideração este longo período, as relações entre a cultura e o campo da
teoria econômica tenham dando corpo, no máximo, ao que podemos chamar de uma
economia da arte.
Assim, fora do âmbito das preocupações dos teóricos da economia ficaram não
apenas as culturas populares mas, também, as indústrias culturais que, ao longo de toda a
3 Para Adam Smith, o gasto com as artes em nada contribuía para a formação da riqueza de uma nação, uma vez que se tratava de trabalho improdutivo. No entanto, Smith reconhecia a importância das artes e dos espetáculos artísticos para o combate à melancolia, no que chamaríamos, numa linguagem econômica atual, de externalidade positiva das artes (BENHAMOU, 2007) 4 Em 1891, Alfred Marshall, na sua obra Princípios de Economia, assinalou a impossibilidade de valoração das obras de arte por conta do fato de serem objetos únicos no seu gênero e não terem equivalentes ou concorrentes. Marshall, um dos fundadores da teoria econômica neo-clássica, também chamou a atenção para o fato de que a música constitui uma exceção à teoria da utilidade marginal decrescente uma vez que, diferentemente do que acontece com outros bens, o gosto pela música (o desejo de consumir música) aumenta proporcionalmente ao tempo que um indivíduo dedica a escutar música (BENHAMOU, 2007). Ainda quanto ao século XIX, é digno de registro um conjunto de três palestras proferidas por John Ruskin entre 1857 e 1859, pensador e crítico de arte inglês, dedicadas a discutir questões de ordem econômica aplicadas ao universo das obras de arte (RUSKIN, 2004). Por último, e também em relação a esta centúria, deve ser registrado o fato de, em vários de seus escritos, Marx e Engels terem feito observações quanto às relações entre a produção das obras de arte e a economia (MARX-ENGELS, 1974).
primeira metade do século XX, foram estudadas como mais um ramo no âmbito da
economia industrial, não chegando a configurar uma disciplina específica no campo da
economia, “apesar de sua expansão e diversificação aceleradas por inovações tecnológicas
radicais, que criaram ou revolucionaram a fotografia, o cinema, o rádio, a edição e a
fonografia, inclusive com a produção em massa, fordista, de novos bens e serviços com
forte conteúdo de cultura” (ALMEIDA, 2005).
Observe-se que se a avassaladora presença das indústrias culturais não foi capaz de
abrir espaço próprio no campo da teoria econômica para uma atenção particular sobre as
relações entre cultura e economia, também não acionou qualquer movimento nesta direção
a seminal contribuição da chamada Escola de Frankfurt que, com Adorno e Horkheimer,
funda a discussão sobre a questão da indústria cultural enquanto portadora de uma lógica
específica segundo a qual a produção de bens simbólico-culturais passa a obedecer aos
princípios mais gerais da produção econômica capitalista (uso crescente e massivo da
máquina, divisão e especialização do trabalho, alienação do trabalho) fazendo com que
estes bens passem a ser produzidos já como mercadorias, portanto, como produtos
destinados à troca e ao consumo no mercado (ADORNO, HORKHEIMER, 1997).
A ampliação do arco de interesses da ciência econômica em relação ao campo da
cultura, no sentido de um deslocamento do que consideramos até aqui como uma economia
da arte na direção de uma economia da cultura, é algo que ganha corpo tão somente a partir
da metade dos anos 1960. Françoise Benhamou destaca três fatores que contribuíram de
forma decisiva para tal deslocamento:
“el aumento de una propensión a generar flujos de remuneración y de empleo, la necesidad de evaluación de las decisiones culturales y, en el plano teórico, el desarrollo de la economía política hacia nuevos campos (economía de actividades no comerciales, revisión del supuesto de racionalidad, economía de las organizaciones, economía de la información y de la incertidumbre)” (BENHAMOU, 1997,p.21).
Como marcos fundadores da constituição da economia da cultura como um campo
próprio de estudos e investigações devem ser destacados: a publicação, em 1966, do artigo
de William Baumol e William Bowen, Performing arts: the economic dilemma
(BAUMOL, BOWEN, 1966); a criação, em 1973, pelo professor William Hendon da
Universidade de Akron, em Ohio, do Journal of Cultural Economics, também ele
responsável pela organização, em 1979, em Edinburgh, da First International Research
Conference on Cultural Economics; o surgimento da Association for Cultural Economics
International (ACEI) – que, passou a responder pela edição do Journal of Cultural
Economics – e da Fédération européenne des associations pour l’économie de la culture
(FEDAEC), ambas criadas em 1993; e a publicação, em 1994, no Journal of Economic
Literature, do artigo de David Thorsby intitulado The production and consumption of the
arts: a view of cultural economics (THORSBY, 1994).
Contudo, nos últimos dez anos, o campo da economia da cultura tem vindo a
defrontar-se com a possibilidade de um novo deslocamento por força de uma novidade que,
emergindo do mundo anglófono, já desfruta de visibilidade e acolhimento por parte de
instituições multilaterais e, também, de outros países. Trata-se da noção de economia
criativa posta em marcha, na metade dos anos 1990, pelos governos Britânico e
Australiano. Desde então, estes dois países têm acionado um conjunto específico de
políticas voltadas para potencializar atividades que, embora marcadamente culturais, foram
por eles denominadas de indústrias criativas5.
Não é o caso, aqui, de se discutir sobre a oportunidade do investimento na
delimitação das indústrias criativas e da economia criativa como um novo campo de
estudos e investigações6. Mais prático para os limites deste texto será considerar a
economia criativa como ampliação do campo da economia da cultura, da mesma forma que
a economia da cultura pode ser vista como uma ampliação do campo da economia da arte -
até porque, no conjunto, a chamada economia criativa reúne setores, práticas e dinâmicas
sócio-econômicas que, a rigor, não são estranhas ao campo da economia da cultura.
5 A temática das indústrias criativas surgiu, a rigor, na Austrália, em 1994, a partir do desenvolvimento pelo governo daquele país do conceito de Creative Nation, idéia-base de uma política cultural voltada para a requalificação do papel do Estado no desenvolvimento cultural do país (NATIONAL LIBRARY..., 2007). O conceito alcançou rapidamente o Reino Unido onde, em 1997, o New Labour, i.é., o novo Partido Trabalhista inglês, no seu manifesto pré-eleitoral, identificou as indústrias criativas como um setor particular da economia e reconheceu a necessidade de políticas públicas específicas que estimulassem seu já expressivo ritmo de crescimento (BRITISH COUNCIL..., 2005) – daí a expressão “retórica New Laborite de Blair” utilizada por George Yúdice para referir-se à economia criativa (YÚDICE, 2004, p.34). 6 As indústrias criativas são conceituadas como “indústrias que têm sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que têm um potencial para geração de empregos e riquezas por meio da geração e exploração da propriedade intelectual. Isto inclui propaganda, arquitetura, o mercado de artes e antiguidades, artesanatos, design, design de moda, filme e vídeo, software de lazer interativo, música, artes cênicas, publicações, software e jogos de computador, televisão e rádio” (no original: “….the creative industries are those industries which have their origin in individual creativity, skill and talent and which have a potential for wealth and job creation through the generation and exploitation of intellectual property. This includes advertising, architecture, the art and antiques market, crafts, design, designer fashion, film and video, interactive leisure software, music, the performing arts, publishing, software and computer games, television and radio”) (BRITISH COUNCIL..., 2005. p.5).
O que não se pode é desconsiderar o fato de já estar em curso uma discussão sobre a
temática das indústrias criativas e da economia criativa. Até agora mais intensa no âmbito
governamental7, onde aparece, especialmente, em países da comunidade britânica – mas
que tem se expandido rapidamente para outros países, a exemplo da China, Índia, África do
Sul e mesmo o Brasil – como objeto de políticas públicas, esta discussão já foi incorporada
por organizações do Sistema das Nações Unidas – a UNCTAD, a OMPI, o PNUD, a
própria UNESCO, esta, até muito recentemente resistente ao tema –, pelo Banco Mundial e
pelo BID.
Universidades e centros de pesquisa também começam a debruçar-se sobre o tema
da economia criativa e das indústrias criativas. Aqui o melhor exemplo é o da Queensland
University of Technology, universidade australiana situada em Brisbane que reúne
pesquisadores como Stuart Cunningham, John Hartley e Michael Keane e que, desde 2001,
conta com duas unidades dedicadas especialmente ao tema das indústrias criativas: uma
faculdade, a Creative Industries Faculty, e um centro de pesquisas o ICI - The Institute for
Creative Industries and Innovation.
Um novo campo ou, simplesmente, ampliação do campo da economia da cultura, o
fato é que o debate e a definição de políticas dedicados ao que está sendo chamado de
economia criativa não parte do zero. Muito ao contrário, beneficia-se “do importante e
indispensável repertório de reflexões que, ao longo dos últimos cinqüenta anos, deu corpo
ao que chamamos de economia da cultura” (MIGUEZ, 2007, p.98). Desse ponto de vista, a
novidade parece resultar positiva já que é bastante plausível a expectativa de que a
realização de estudos e pesquisas voltados para responder às indagações próprias de toda
novidade venha garantir mais densidade e volume ao que já se acumulou em termos de
conhecimentos à volta do campo de interesses da economia da cultura. E não é pequena a
pauta de questões suscitadas pela emergência da temática das indústrias criativas e da
economia criativa, particularmente aquelas que mais de perto concernem ao plano
conceitual: “o que é a economia criativa? o que (e quais) são as indústrias criativas? será a
economia criativa uma ampliação da economia da cultura? o que diferencia as indústrias
7 Um bom acervo de documentos de políticas, de programas e de projetos pode ser consultado no site do Department for Culture, Media and Sport – DCMS (http://www.culture.gov.uk/about_us/creativeindustries/), órgão do Governo Britânico responsável pelas áreas esportiva, cultural, turística e, também, das indústrias criativas.
criativas das indústrias culturais?” (MIGUEZ, 2007, p.98); qual a aplicabilidade destes
conceitos à realidade dos países em desenvolvimento, muito dos quais estão sendo
estimulados a adotar políticas específicas para este setor?
O campo da economia da cultura já dispõe hoje, passados cinqüenta anos dos
marcos iniciais de sua constituição, de um considerável acervo de conhecimentos que lhe
garantem a massa crítica e a substância indispensáveis à sua legitimação enquanto um
campo singular de estudos e pesquisas. Uma intensa produção acadêmica, um significativo
número de publicações, a proliferação de seminários, fóruns e congressos especializados e a
preocupação crescente de governos, police makers, agências multilaterais e instituições
não-governamentais sobre os múltiplos aspectos da economia da cultura, conforme já
anotado mais atrás, têm vindo, cada vez mais, a garantir importância e robustez ao,
podemos assim dizer, recém-constituído campo da economia da cultura.
Todavia, muito ainda há por ser feito. No campo da teoria econômica, por exemplo,
apesar de se registrarem avanços importantes, ainda predomina um certo preconceito a
respeito da temática da economia da cultura por parte de pesquisadores e instituições da
área. Não será demais lembrar, neste particular, o que escreve Richard Caves, professor de
economia da conceituada Universidade Harvard, no prefácio do livro Creative industries;
contracts between art and commerce publicado em 2000. Em tom de pilhéria, Caves
confessa que embora já tivesse a intenção de escrever sobre o tema da economia da cultura
desde os anos 1980, preferira esperar até o momento em que sua “reputation for
professional seriousness could more comfortably be placed at risk”, uma vez que seus pares
costumavam encarar esta temática como pouco relevante e preferiam dedicar seus esforços
ao estudo do que consideravam ser as “serious industries” – siderurgia, indústria
farmacêutica, etc. (CAVES, 2000, p. vii).
Uma mirada rápida sobre as grades curriculares das escolas e faculdades de
economia e gestão confirmam, sobejamente, o comentário do professor americano. Com
raríssimas exceções, aí não comparecem disciplinas que elejam as relações entre economia
e cultura como um objeto particular de estudos.
Preconceito entre os economistas, preconceito, também, entre os estudiosos e
pesquisadores que nas ciências sociais se dedicam aos estudos sobre a cultura. Aqui, uma
boa parte continua entrincheirada na rejeição adorniana a tudo que possa significar
produção mercantil de bens e serviços culturais. Sua crítica não vai além do simples
reconhecimento da submissão de parte expressiva da produção cultural à lógica de mercado
daí que sejam incapazes de compreender que as dinâmicas contemporâneas que atuam na
direção da configuração da cultura enquanto um “recurso”, como sugere Yúdice (2004),
ultrapassa, com folga, a questão da transformação da cultura em mercadoria – e isto porque,
de acordo com este autor, na qualidade de “recurso” a cultura
“... é o eixo de uma nova estrutura epistêmica na qual a ideologia e aquilo que Foucault denominou sociedade disciplinar (isto é, a imposição de normas a instituições como a educacional, a médica, a psiquiátrica, etc.) são absorvidas por uma racionalidade econômica ou ecológica, de tal forma que o gerenciamento, a conservação o acesso, a distribuição e o investimento – em ‘cultura’ e seus resultados – tornam-se prioritários” (YÚDICE, 2004, p. 13).
Tal recusa – que, como é óbvio, não tem força para abolir o mercado da cultura,
algo que, aliás, parece ser o sonho mais forte de alguns dos que militam nos estudos da
cultura –apenas contribui para retardar o avanço dos estudos sócio-econômicos da cultura o
que, no limite, acaba por deixar ao próprio mercado a tarefa de refletir sobre suas práticas e
propor regras que interessam tão somente a si mesmo.
No Brasil, ainda são poucas as instituições e os pesquisadores que se dedicam a esta
temática. Por outro lado, a maior parte dos estudos que vêm sendo realizados abordam,
quase que tão somente, o financiamento da cultura – o que se explica pela importância que
esta questão assumiu desde meados dos anos 1990 quando as leis de incentivo fiscal
praticamente deslocaram os recursos públicos orçamentários diretos da obrigação de
garantir os fundos necessários ao desenvolvimento da produção cultural do país.
Há outras áreas de grande relevância para o estudo da economia da cultura mas que,
entre nós, permanecem bem pouco desenvolvidas. É caso, por exemplo, dos estudos de
políticas culturais que, no Brasil, como anota Albino Rubim8, “além da dispersão em
diferentes áreas disciplinares, com algum destaque para Sociologia, História e
Comunicação, têm se caracterizado, em geral, pela análise empírica de experimentos
efetivos de políticas culturais, desenvolvidas em espaços e tempos determinados” e pelo
pouco investimento quanto às questões mais teóricas e conceituais (RUBIM, 2007, p.139).
É o caso, também, dos estudos de público e de suas práticas, ainda pouco comuns no campo
cultural brasileiro.
8 Uma ampla bibliografia dos estudos de políticas culturais no Brasil, organizada pelo professor Albino Rubim pode ser encontrada no site: www.cult.ufba.br.
Entretanto, os últimos anos têm sido promissores para os estudos da cultura em
geral e para a temática da economia da cultura em particular. No plano governamental, por
exemplo, a ação do Ministério da Cultura tem sido bastante expressiva. Em 2004 o MinC
assinou um acordo de cooperação técnica com o IBGE para a produção de indicadores e a
análise de informações relativas à cultura, a partir da organização dos dados que já são
produzidos por aquele importante Instituto e que se encontram dispersos em suas pesquisas
e bases de dados (IBGE, 2006, 2007). O MinC tem, também, acionado parcerias com outras
instituições nacionais, a exemplo do BNDES, SEBRAE, FINEP e BNB, com a intenção de
estimular programas e projetos que favoreçam as políticas voltadas ao fortalecimento da
economia da cultura no país.
Instituições públicas e privadas também têm investido bons esforços nesta área. Um
exemplo é a Universidade Federal da Bahia, onde funciona o Centro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (CULT) que, além da realização de pesquisas e estudos na
área de cultura e desenvolvimento e economia da cultura, organiza anualmente, desde 2005,
o ENECULT- Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e responde pela
animação de duas redes, uma, a REDECULT, que conta com a participação de
pesquisadores de diversos campos das humanidades, a segunda, criada recentemente, a
Rede de Estudos em Políticas Culturais. No terreno das instituições privadas, o recém
criado Observatório do Instituto Itaú Cultural, no que parece ser a primeira experiência de
uma organização privada criada com o objetivo de abrigar a reflexão e a pesquisa na área
de políticas culturais, é fato merecedor de destaque.
De todo modo, muito ainda há por ser feito para que o campo dos estudos sócio-
econômicos da cultura no Brasil possa ganhar uma fisionomia própria. É claro, não serão
ações pontuais, ainda que relevantes, a melhor resposta a este desafio. Muito menos ações
que tão somente atendam a interesses mais práticos e imediatos desta ou daquela gestão
governamental. Aqui, registrou com propriedade Isaura Botelho em palestra proferida
durante o III ENECULT em maio de 2006, em Salvador, a demanda é por um programa de
longo prazo que acione o incentivo a pesquisa, a promoção de estudos e a produção de
bases estatísticas e de indicadores, elementos fundamentais para que se tenha políticas
públicas dedicadas ao fortalecimento de um campo que, como o da cultura, é um setor
estratégico para a formulação de um projeto nacional, seja pelo que significa enquanto
dimensão simbólica, seja, também, e cada vez mais significativamente, pelo que pode
representar do ponto de vista econômico.
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