a teoria da representação na alemanha
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A TEORIA DA REPRESETAO A
ALEMAHA DE WEIMAR:SCHMITT, KELSE E LEIBHOLZ
Pedro Miguel Tereso de Magalhes
Dissertao de Mestrado em Cincia Poltica e RelaesInternacionais, variante de Cincia Poltica, realizada sob aorientao cientfica de Pedro Tavares de Almeida
JUHO DE 2011
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Gostaria de agradecer a todos os participantes no Seminrio Livre de Poltica
Comparada, organizado pelo Departamento de Estudos Polticos da FCSH-UL, onde
uma verso preliminar desta dissertao foi apresentada e discutida. Beneficiei
grandemente de todos os contributos que pontuaram essa discusso e, em especial, do
comentrio de Diogo Pires Aurlio. Devo, ainda, um agradecimento ao Diogo
Loureno, que leu e comentou com ateno e esprito crtico partes importantes deste
trabalho.
Uma ltima palavra, de gratido, para os meus pais e, de carinho, para a Tnia.
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RESUMO
A teoria da representao na Alemanha de Weimar: Schmitt, Kelsen e Leibholz
Tendo em conta que o conceito de representao no figura entre os principais
objectos de reflexo do pensamento poltico contemporneo, a presente dissertaorecupera um dos momentos histricos em que a discusso em seu redor foi mais intensa:a malograda experincia republicana da Alemanha de Weimar (1918-1933). De entre avasta bibliografia que ento surgiu sobre a questo da representao, a crise do
parlamentarismo, os desafios da democracia moderna e a emergncia dos partidospolticos de massas, destacamos os contributos de trs autores: Carl Schmitt, HansKelsen e Gerhard Leibholz. Propomos uma leitura comparativa e devidamentecontextualizada da sua reflexo sobre estes problemas, pretendendo, simultaneamente,trazer os seus frutos para a discusso contempornea. Nesse sentido, distinguimos trseixos analticos a relao entre representao e teoria do Estado; as dinmicas detenso entre parlamentarismo liberal e democracia; e o problema dos partidos polticos luz da teoria da representao , a partir dos quais alertamos para aspectosnegligenciados ou insuficientemente problematizados pela teoria polticacontempornea, que, a nosso ver, s pode beneficiar de uma releitura dos autores aquiestudados.
PALAVRAS-CHAVE: Representao, parlamentarismo, partidos, democracia.
ABSTRACT
Political representation in the Weimar Republic: the theories of Schmitt, Kelsen andLeibholz
Since the concept of representation is not one of the primary objects of study incontemporary political thought, this dissertation focuses on one of the historical periodswhere discussion around that topic was particularly intense: the fateful experience of theWeimar Republic (1918-1933). Amongst the vast literature that appeared in Germany atthat time on the problem of representation, the crisis of parliamentarianism, thechallenges of modern democracy and the emergence of mass political parties, we chose
to deal with three authors: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Gerhard Leibholz. We offer acomparative and contextualized analysis of their reflections on the above-mentionedtopics, which also aims at establishing a bridge to contemporary discussions. In order todo so, we distinguish three main analytical dimensions representation and state theory;the tension between liberal parliamentarianism and democracy; political parties and thetheory of representation which allow us to underline some neglected or poorly
problematized aspects by contemporary theorists. In the end, we hope to prove thatcontemporary political theory would greatly benefit from re-reading these authors.
KEYWORDS: Representation, parliamentarianism, parties, democracy
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DICE
1. Introduo(5-7)
2. Teoria da representao poltica o estado da questo (7-8)
2.1. Do formalismo aco substantiva: a leitura dominante do conceito derepresentao poltica na literatura contempornea (9-19)2.2. Limites e insuficincias da concepo dominante: a relevncia de uma releitura dostericos de Weimar (19-25)
3. A Repblica de Weimar (1918-1933): contextualizao histrica (25)
3.1. Weimar e a emergncia da poltica de massas: continuidades e descontinuidades(25-31)
3.2. A Constituio de Weimar: tendncias ambivalentes (31-34)
4. Carl Schmitt e a falncia da representao na democracia de massas (34)
4.1. Os princpios da forma poltica: identidade e representao (35-39)4.2. As dinmicas opostas de parlamentarismo e democracia (39-47)4.3. Os partidos de massas no crepsculo do liberalismo (47-53)
5. Hans Kelsen e a defesa do parlamentarismo para l da fico darepresentao (53-55)
5.1. Povo e parlamento como rgos: uma teoria jurdica do Estado (55-64)5.2. Da teoria jurdica teoria poltica: o valor da democracia (64-71)5.3. Os partidos polticos na democratizao do parlamentarismo (71-77)
6. Gerhard Leibholz: a natureza da representao e o Estado de partidos (78)
6.1. Sobre a natureza da representao: uma abordagem fenomenolgica (78-83)6.2. Parlamentarismo e partidos polticos: entre o princpio da representao e o
princpio plebiscitrio (83-87)
6.3. O Estado de partidos e o problema da soberania entre Weimar e Bona (87-95)
7.
De Weimar para o presente: contributos finais para uma discussocontempornea (95)
7.1. Representao e teoria do Estado (95-100)7.2. A relao entre parlamentarismo liberal e democracia (100-105)7.3. O problema dos partidos polticos luz da teoria da representao (105-110)
8. Bibliografia (111-115)
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1. Introduo
Na histria do pensamento poltico, a reflexo sobre a representao decorre,
quase sempre, sob o signo da crise1. Com efeito, a grande maioria das pginas que a
teoria poltica, ao longo dos sculos, dedicou questo da representao centra-se nosproblemas e dificuldades com que ela se depara, tanto no plano meramente
especulativo, como na sua operacionalizao atravs das instituies que se dizem
representativas.
Nesse sentido, proponho-me explorar, na presente dissertao, aquilo que a
teoria produziu num dos momentos histricos em que a referida crise foi
percepcionada com maior agudeza: a fracassada experincia republicana da Alemanha
de Weimar (1918-1933). De entre o relativamente vasto corpusque ento surgiu sobre aquesto da representao poltica e do parlamentarismo, todo ele atravessado por um
sentimento de urgncia e de tenso que os desenvolvimentos histricos posteriores
viriam a confirmar ser plenamente justificado, pretendemos destacar os contributos de
trs autores: Carl Schmitt (1889-1985), Hans Kelsen (1881-1973) e Gerhard Leibholz
(1901-1982).
Cumpre, inicialmente, esclarecer as razes da escolha destes trs nomes e, com
isso, delimitar o mbito do nosso campo de estudo. O primeiro aspecto a mereceralguma elucidao , porventura, o seguinte: porqu complementar a controvrsia, que
poderamos considerar j clssica, entre Schmitt e Kelsen, dois autores maiores, cuja
obra se encontra traduzida em vrias lnguas e alimenta discusses em diversas reas do
saber social (direito, teoria poltica, relaes internacionais), com a referncia a Gerhard
Leibholz, autor comparativamente muito menos renomado e cuja bibliografia se
encontra pouco traduzida2? Schmitt e Kelsen, com efeito, so hoje considerados os dois
plos opostos do pensamento jurdico-poltico-constitucional de Weimar. As suas
posies, tanto no que concerne a questes gerais como a natureza do direito e da
poltica, como no tocante aos problemas mais estritos da representao poltica, do
parlamentarismo e da democracia, so irreconciliavelmente antagnicas. Ora, para que
este trabalho no assumisse uma natureza exclusivamente contrastiva, que se limitasse
exposio e anlise dos dois plos de uma controvrsia j sobejamente conhecida,
1Diogo Pires Aurlio, O que representam os representantes do povo, inDiogo Pires Aurlio (coord.),
Representao Poltica. Textos Clssicos, Lisboa, Livros Horizonte, 2009, p. 10.2Conhecemos apenas uma traduo de ensaios de Leibholz para o ingls: Gerhard Leibholz, Politics andLaw, Leyden, A. W. Sythoff, 1965.
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decidimos procurar uma via intermdia, uma possibilidade de sntese. E encontramo-la,
justamente, nas reflexes de Gerhard Leibholz sobre a natureza da representao
poltica e o Estado de partidos.
A importncia deste terceiro termo no se cinge, contudo, hiptese de uma
sntese terica. Atravs dele, procuraremos igualmente perceber em que medida que,
no aspecto da representao poltica, a Repblica Federal de Bona se transfigurou por
comparao com Weimar. Dito isto, torna-se compreensvel a delimitao temporal da
literatura analisada. Tanto Schmitt como Kelsen viveram e escreveram bem para alm
da vigncia da Repblica de Weimar e dos doze anos do Terceiro Reich. Schmitt,
afastado da universidade devido ao seu envolvimento no regime nazi, assinou vasta
produo a partir do retiro na sua aldeia natal de Plettenberg. Kelsen, por sua vez,
emigrado para os Estados Unidos em fuga perseguio nazi, publicou vrios escritos,
maioritariamente em lngua inglesa, aps 1945. No presente trabalho, todavia,
limitamo-nos anlise de obras que um e o outro assinaram no perodo weimariano. Tal
escopo temporal ser ultrapassado apenas no caso de Gerhard Leibholz, na medida em
que atravs deste autor que o nosso olhar se dirigir, para l de Weimar e sobre os
escombros do nacional-socialismo e da guerra, para a realidade poltica e constitucional
da Repblica Federal da Alemanha.
O objectivo do presente trabalho ser, pois, o de fazer uma leitura compreensiva,
comparativa e devidamente contextualizada do que estes autores escreveram sobre o
problema da representao poltica no perodo considerado, partindo da oposio
Schmitt versus Kelsen e procurando, subsequentemente, medi-la atravs de Gerhard
Leibholz. Pretendemos guiar a nossa anlise pelas seguintes questes: Qual a concepo
da representao defendida por cada um dos autores abordados? Qual a magnitude, no
seu entender, dos problemas, obstculos e desafios com que se deparam o conceito e a
prtica da representao poltica, nomeadamente no contexto da emergncia das
democracias modernas e dos partidos polticos de massas? Quais os caminhos, a
existirem, que propem para superar a crise da representao, tanto no plano da
reconceptualizao, como no da reforma ou dissoluo das instituies existentes?
Para que o seu valor no seja eminentemente histrico, esta anlise necessita,
contudo, de ser relacionada com o estado actual da discusso sobre a teoria da
representao poltica. Nesse sentido, primeira ordem de questes impe-se juntar
uma segunda, com base num olhar retrospectivo: Quais os contributos dos trs tericosde Weimar que foram acolhidos e quais os rejeitados ou ignorados pela teorizao
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posterior? E, sobretudo, em que medida que uma releitura dos seus escritos pode
alertar para certos aspectos negligenciados ou insuficientemente problematizados pela
teoria contempornea? Tendo em mente este confronto com a discusso contempornea,
subdividiremos a anlise de cada um dos nossos autores em trs vertentes.
Primeiramente, colocaremos a questo em termos puramente conceptuais: O que se
deve entender por representaoe qual o papel do conceito na teoria poltica e, mais
precisamente, na teoria do Estado? Em segundo lugar, problematizaremos a relao
entre representao, liberalismo e democracia, reflectindo sobre o parlamentarismo. E
finalmente, em terceiro lugar, faremos incidir o foco analtico sobre a questo dos
partidos polticos. Este questionamento corresponde, a nosso ver, aos trs grandes eixos
problemticos em torno dos quais tem de girar a reflexo contempornea sobre a
representao poltica. Trata-se de pens-la, por um lado, na ptica geral da construo
do Estado; por outro lado, nas roupagens do parlamentarismo, enquanto aproximao
moderna democracia; e, enfim, no contexto da sociedade de massas, relacionando-a
com a emergncia dos partidos polticos. Lendo Schmitt, Kelsen e Leibholz sob esta
tripla perspectiva, julgamos ser possvel dizer algo sobre a relevncia do pensamento de
Weimar para o debate terico contemporneo.
pela reflexo contempornea que comeamos, procurando traar, de forma
sinttica, o panorama da discusso e realando, desde logo, os aspectos em que uma
releitura de Schmitt, Kelsen e Leibholz se pode revelar pertinente (2.). De modo a
mediar o salto retrospectivo para Weimar, introduziremos um necessrio e
necessariamente breve captulo de contextualizao histrica (3.), o qual anteceder o
cerne do nosso trabalho: a anlise dos contributos tericos de Schmitt, Kelsen e
Leibholz (4., 5.e 6.). Na concluso, procuraremos trazer os frutos dessa anlise para a
discusso contempornea (7.).
2. Teoria da representao poltica o estado da questo
O conceito de representao no constitui, desde h muito, um foco de especial
interesse para a cincia e filosofia polticas. Esta relativa indiferena afigura-se,
primeira vista, estranha, tendo em conta que o sculo XX assistiu a uma expanso
extraordinria de regimes que comum e consensualmente se designam por democracias
representativas. Contudo, as correntes dominantes da cincia poltica olham com
desconfiana para o conceito de representao, considerando-o de significado vago e,nessa medida, dificilmente operacionalizvel. E se a cincia poltica no pde deixar de
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abordar o fenmeno da expanso das ditas democracias representativas, f-lo
geralmente com base numa definio neoschumpeteriana, estritamente procedimental de
democracia, que no problematiza o aspecto da representao.3Por outro lado, para a
filosofia poltica contempornea, preocupada com questes de natureza eminentemente
tica da teoria da justia de Rawls ao agir comunicacional de Habermas , a
representao uma temtica omissa. Com efeito, se a reflexo filosfico-poltica passa,
num quadro que pressupe a igualdade e a autonomia individual, por levar o
contratualismo liberal at aos limites da abstraco (Rawls) ou por estabelecer os
parmetros da discusso racional entre indivduos (Habermas), pouco sentido faz
abordar o fenmeno da representao, que, como sublinha Diogo Pires Aurlio, se
destina a legitimar uma supremacia, apesarda igualdade, de quem legisla sobre quem
tem de obedecer4.
Nesse sentido, ainda hoje a reflexo sobre a representao se centra, sobretudo,
nos contributos de certos autores tidos como clssicos que, a partir de Thomas Hobbes,
se detiveram sobre o problema. Pelo que no surpreende que o contributo terico
fundamental na literatura contempornea, da autoria de Hanna Fenichel Pitkin5, resulte
menos de um esforo de teorizao original do que de uma leitura crtica dos clssicos.
Pitkin reconstri o conceito de representao poltica com base, sobretudo ainda que
no exclusivamente, na anlise do pensamento de Hobbes, Burke, dosfounding fathers
norte-americanos, de Stuart Mill e de Jeremy Bentham. Esta releitura dos clssicos
complementada por uma orientao metodolgica tributria da filosofia da linguagem
de Oxford, que se caracteriza por uma tentativa de elucidao do conhecimento que
subjaz ao uso corrente das palavras. A autora presta, pois, especial ateno aos diversos
usos, em contextos que no unicamente o poltico, do termo representaoe de toda a
famlia de palavras (representante, representativo, etc.) que em torno dele gravita.6
Desse modo, ergueu uma tipologia da representao poltica que, nos seus traos gerais
e nas suas opes fundamentais, constitui ainda hoje a leitura padro do conceito.
Trataremos, em seguida, de a expor, para depois procurarmos lanar algumas pistas
sobre a pertinncia do seu confronto com a literatura de Weimar.
3Exemplo paradigmtico o clebre estudo de Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratizationin the Late Twentieth Century, Norman, University of Oklahoma Press, 1991.4Diogo Pires Aurlio, Op. cit., p. 12.5Hanna Fenichel Pitkin, The Concept of Representation, Berkeley, Los Angeles e Londres, University ofCalifornia Press, 1967.6Sobre esta questo metodolgica, ver Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 6-7.
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2.1. Do formalismo aco substantiva: a leitura dominante do conceito de
representao poltica na literatura contempornea
luz da importncia metodolgica que Pitkin atribui anlise lingustica, no
surpreende que a sua preocupao inicial resida em encontrar uma definio geral paraas palavras representare representao. Trata-se, aparentemente, de uma tarefa difcil,
uma vez que tais termos so usados com sentidos diferentes em contextos diversos:
falamos de actores representando personagens em palco, de amostras representativas, da
representao no direito das obrigaes, da democracia representativa, etc. Perante estas
aparentes dificuldades, muitos tericos desesperaram e aconselharam mesmo a que se
abandonasse o conceito a representao seria uma noo excessivamente complexa,
demasiado difusa, de uso muito variado para que se pudesse defini-la com clareza.Ora, segundo Hanna Pitkin, semelhantes reticncias relativamente ao conceito de
representao revelam-se infundadas. Em primeiro lugar, ele no difere de tantos outros
conceitos que tambm adquirem significados distintos consoante o contexto em que so
empregues e no por essa razo que todos eles devem ser descartados. Em segundo
lugar, o uso variado do conceito no significa que este seja vago. Bem pelo contrrio, a
variedade aponta para um conceito altamente diferenciado. possvel, de facto,
empregar o termo representao (e seus derivados) em contextos diversos, que alteramnalguma medida o seu significado, mas ele no pode ser utilizado indistintamente em
todos os contextos. Parece, pois, existir um significado bsico que persiste inalterado
para l da variedade dos diferentes usos, cobrindo-os a todos. Esse significado situa-se
nas prprias origens etimolgicas do conceito: re-presentarquer dizer tornar novamente
presente. Tornar de novo presente, porm, no no sentido literal, como seria o caso de
fazer com que algo ou algum volte a estar fisicamente presente num dado espao,
depois de um perodo de ausncia. Pelo contrrio, trata-se de tornar presente, nalgum
sentido que no o literal, algo que no est, de facto, presente. Como vemos, a definio
de representao no vaga, mas seguramente paradoxal: representar significa tornar
presente uma ausncia. Este paradoxo remete-nos para a dualidade fundamental que jaz
no mago do conceito de representao: a relao entre o representante, que est
presente, e o representado, que est ausente. A representao pressupe, pois, duas
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entidades distintas. Representante e representado no se confundem, no podem ser
subsumidos numa mesma unidade o actor no a personagem.7
Atravs desta definio geral, possvel traar fronteiras relativamente a uma
srie de conceitos contguos figurao, identidade, reflexo, smbolo, entre outros. Por
outro lado, tambm dela que deve partir uma reflexo propriamente poltica. Nessa
medida, falando de representao, em poltica, estamos a postular a existncia de duas
entidades ontologicamente distintas que assumem posies diversas em relao ao
fenmeno do poder. Em termos polticos, a ideia de representao, de tornar presente
uma ausncia, implica que so os representantes quem exerce efectivamente o poder. A
presena, politicamente falando, o exerccio do poder. Os representados, como parte
ausente, esto portanto afastados do exerccio efectivo do poder. Contudo, esse
exerccio do poder, levado a cabo pelos representantes, s pode ter como finalidade,
para que se possa falar em representao, tornar presente nalgum sentido no-literala
ausncia dos representados.
Ora, isto levanta uma srie de questes. Que formas assume essa relao entre o
representante poltico e a entidade representada? Qual a distribuio de direitos, deveres
e responsabilidades que ela implica? Qual a relevncia, para essa relao, de uma
partilha de caractersticas, de uma similitude entre representantes e representados? Qual
a importncia do elemento psicolgico, da crena dos representados no representante?
Ou ainda, na medida em que o conceito parece remeter para uma certa actividade
tornar presente , quais os critrios que nos permitem avaliar as aces dos
representantes em nome dos representados, dizer se estamos perante uma boa ou uma
m representao? Cada uma destas questes aponta para aspectos diferentes do
conceito de representao. Precisamente para dar conta dessa natureza multifacetada,
Hanna Pitkin construiu uma tipologia em que a nfase vai sendo deslocada de uns para
os outros. A autora distingue, assim, trs formas de entender a representao poltica: as
conceptualizaes formalistas (da representao como autorizao e/ou
responsabilizao); as concepes passivas8 (subdivididas, por sua vez, em
7Seguimos Hanna Pitkin, Op. Cit., pp. 8-9. No mesmo sentido, Diogo Pires Aurlio, Op. cit., pp. 13-14.Como veremos, uma definio geral idntica era j proposta, nos anos finais da dcada de 1920, porGerhard Leibholz, Das Wesen der Reprsentation, in Gerhard Leibholz, Die Reprsentation in der
Demokratie, Berlim e Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1973, p. 26, e Carl Schmitt, Verfassungslehre, 10
edio, Berlim, Duncker & Humblot, 2010, pp. 209-210.O adjectivo meu. Pitkin utiliza a expresso, dificilmente traduzvel, de representao como standing
for. Ver Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 60 e ss.
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representao descritiva e representao simblica); e a noo de representao como
actividade substantiva9. Vale a pena analis-las uma a uma.
A linhagem das conceptualizaes formalistas remonta ao primeiro autor que
pensou o problema da representao poltica em termos especificamente modernos:
Thomas Hobbes. O pensamento hobbesiano sobre a representao assenta numa
peculiar distino entre dois tipos de pessoas10: naturaise artificiais. A pessoa natural
aquela cujas palavras e aces so consideradas suas. Pelo contrrio, a pessoa artificial
aquela cujas palavras e aces devem ser entendidas como pertencendoa outrem. A
pessoa artificial, pois, um representante. Dizer que as palavras que algum emite ou
que as aces que esse algum leva a cabo podem ser consideradas, em determinadas
situaes, comopertencendo a outrem tem implcita uma ideia anloga de propriedade
de bens materiais. Hobbes denomina essa ideia de autoridade. O filsofo ingls designa
aquele que leva efectivamente a cabo a aco de actor, enquanto aquele que lhe
concedeu o direito de agir apelidado de autor. Distinguimos, portanto, dois direitos: o
direito de propriedade da aco (a autoridade), que pertence pessoa natural (ao
autor), e o direito de levar a cabo a aco, que cabe pessoa dita artificial(ao actor).
Contudo, a noo de propriedade na base da qual Hobbes concebe a ideia de autoridade
no remete apenas para direitos, mas tambm para responsabilidades. E, a esse respeito,
o autor muito claro:
When an actor doth any thing against the law of nature by command of the
author, if he be obliged by former covenant to obey him, not he, but the author
breaketh the law of nature; for though the action be against the law of nature; yet it
is not his.11
A distribuio de direitos e obrigaes entre actor e autorassume, assim, uma
forma profundamente desigual: o actor usufrui do direito de agir; o autor arca comtodas as responsabilidades que possam resultar dessa aco. Ou seja: o representante
(actor), como tal, livre, vinculando necessariamente os representados (autores) sua
aco. Uma vez autorizado a agir, e dentro do escopo da autorizao, nada limita a
actuao do representante tudo o que ele faa vincula os representados como se
Mais uma vez, a cunhagem minha. Pitkin fala em representing as acting for. Ver Hanna Pitkin,
Op. cit, pp. 112 e ss.A noo de pessoa, em Hobbes, no deve ser confundida simplesmente com ser humano. Seguindo
Hanna Pitkin, Op. cit., p. 15, apessoahobbesiana uma entidade dotada de linguagem e capaz de levar acabo aces.11Citado por Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 18-19.
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tivessem sido estes ltimos a agir por si prprios. Traduzido nos termos mais correntes
da teoria do Estado de Hobbes, isto significa que os indivduos, de forma a suplantarem
a anarquia do estado de natureza, criam uma comunidade poltica atravs de um
contrato entre si que autoriza um soberano a represent-los a todos.12 O soberano surge,
assim, isento de deveres para com os representados, uma vez que estes j lhe
concederam antecipadamente uma autorizao ilimitada para agir.13Em suma, Hobbes
aborda o problema da representao sob uma ptica estritamente formal, resolvendo-o
atravs do mecanismo da autorizao. Esta perspectiva serve o seu propsito terico
fundamental: a criao de uma comunidade poltica com uma vontade una (e soberana)
a partir de um conjunto disperso de indivduos com vontades conflituais.14
A perspectiva hobbesiana da autorizao teve muitos seguidores, que a
reformularam abundantemente sem, no entanto, a alterarem no essencial do seu
formalismo. Hanna Pitkin refere vrias correntes que, apesar de provenincias e
orientaes muito diversas, se revelam, em ltima instncia, tributrias de Hobbes.
Destacam-se, por um lado, os tericos germnicos da Organschaft (Otto von Gierke,
Georg Jellinek, Hans Wolff), sobre os quais reflectiremos mais frente, no contexto da
concepo kelseniana da representao.15E, por outro lado, surge tambm a concepo
de representao existencial desenvolvida por Eric Voegelin, postulando que aqueles
cujas aces so imputadas, no s suas prprias pessoas, mas sociedade como um
todo, devem ser vistos como os representantes dessa sociedade.16Em todo o caso, o que
importa sublinhar aqui que esta perspectiva da representao como autorizao, apesar
das suas origens no quadro de uma concepo absolutista do Estado, perfeitamente
concilivel com uma abordagem democrtica. Basta, para tal, que a fico a-histrica do
contrato originrio seja substituda, como acto fundamental de autorizao, por um
12Neste sentido, muitos comentadores notaram com pertinncia que o contrato de associao hobbesiano,
que resgata os indivduos do estado de natureza caracterizado pela guerra de todos contra todos, equivale,simultaneamente, a um contrato de submisso de todos perante o soberano institudo. Cfr., por todos, Ottovon Gierke,Johannes Althusius, 2 edio aditada, Breslau, M. & H. Marcus, 1902, pp. 86-87. 13O mesmo no dizer, porm, que o soberano no possui, de todo, deveres. Com efeito, o soberano estigualmente sujeito lei natural, a qual lhe impe certas obrigaes. Contudo, estas no podem serreclamadas pelos sbtidos/representados para desobedecerem ou para se oporem ao soberano. Se ofizessem, na lgica do argumento hobbesiano, os sbditos/representados estariam a desobedecer e a opor-se a si prprios.14Esta reconstruo da teoria da representao de Hobbes assenta em Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 14-37.Ver tambm Hanna Pitkin, Hobbess Concept of Representation I, The American Political Science
Review, Vol. 58, No. 2, Junho de 1964, pp. 328-340, e Hanna Pitkin, Hobbess Concept ofRepresentation II, The American Political Science Review, Vol. 58, No. 4, Dezembro de 1964, pp. 902-918. O essencial do pensamento de Thomas Hobbes sobre a representao est contido no captulo XVI
doLeviathan, Londres, Cambridge University Press, 1904, pp. 110-114.15Vide abaixo, pp. 60 e ss.16Hanna Pitkin, The Concept of Representation, pp. 44-47.
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mecanismo eleitoral que obedea a determinadas caractersticas e, assim, esta leitura
adquire as suas roupagens contemporneas.
concepo da representao como autorizao ope-se, aparentemente, a
noo de responsabilizao (accountability). Quem concebe a representao como
responsabilizao, v o representante como algum que ter de responder perante os
representados por aquilo que fizer.17Basicamente, esta concepo inverte os termos da
distribuio de direitos e obrigaes que resultava da perspectiva da autorizao.
Enquanto esta ltima concebia o representante como livre para actuar, liberto da
responsabilidade pelas suas aces, e os representados como necessariamente
vinculados a essas aces e por elas responsveis, a perspectiva da accountability
transfere a responsabilidade para os representantes, que tm de prestar contas a
posterioripelas suas aces, perante os representados. Numa perspectiva democrtica,
que aquela que estas concepes assumem correntemente, diramos que, se para o
terico da autorizao um representante o porque foi inicialmente eleito para o seu
cargo, para quem defende uma noo de responsabilizao, -o porque vai ser sujeito a
reeleio ou derrota eleitoral no final do mandato. Neste sentido, podemos compreender
como ambas as perspectivas, apesar de opostas em certo sentido, acabam por convergir
num aspecto fundamental: ambas so igualmente formais, igualmente destitudas de
contedo substantivo. Onde uns vem a representao como um processo iniciado de
uma certa maneira, atravs de um mecanismo de autorizao adequado (tipicamente,
eleies), os outros vem-no como um processo finalizado de determinada forma,
atravs de um mecanismo de responsabilizao apropriado (mais uma vez, eleies).18
As teorias da autorizao e responsabilizao concebem a representao como
uma actividade que deve ser enquadrada por certos preceitos formais. A questo da
substncia dessa actividade eclipsada pela importncia que se atribui ao mecanismo
que, a priori ou a posteriori, lhe confere existncia e, tambm, legitimidade. Ora, o
segundo tipo discutido por Hanna Pitkin constitui uma forma ainda mais radical de
ignorar tal aspecto da actividade substantiva. Trata-se das concepes da representao
como realidade passiva.
Este possvel significado da representao poltica emerge desde logo, se
pensarmos em toda a linhagem terica que se preocupa com a questo da composio
17Esta perspectiva, conforme sustenta Hanna Pitkin, Op. cit., p. 55, no sistematicamente desenvolvida
por nenhum terico, ao contrrio da perspectiva da autorizao. Trata-se, na verdade, de uma posioveiculada marginalmente por vrios tericos e cientistas polticos, que Pitkin reconstri em traos gerais.18Cfr. Hanna Pitkin, Op. cit., p. 58.
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adequada de uma assembleia legislativa e com o problema conexo dos sistemas
eleitorais. Entre esses autores, domina a metfora do reflexo, do espelhamento
fidedigno. Como sustenta um dos pais fundadores norte-americanos, uma assembleia
legislativa deve ser um retrato exacto, em miniatura, do povo como um todo19
(traduo minha). Nesta perspectiva, o representante no age pelos representados. Ele
substitui-os passivamente (to stand for) em virtude das semelhanas entre ambos. Esta
conceptualizao desenvolvida, nos seus aspectos essenciais, pelos defensores da
representao proporcional. John Stuart Mill considera que um rgo representativo
deve ser visto como uma arena onde todas as opinies relevantes que existam na nao
possam aparecer. Nesse sentido, uma assembleia representativa tem funes que so
sobretudo discursivas e no tanto governativas esta ltima tarefa, a aco poltica
propriamente dita, cabe ao executivo.20Nesta perspectiva, enquanto reflexo fidedigno
ou mapa, o rgo representativo surge como um repositrio de informaes sobre as
caractersticas da nao ou do povo Pitkin fala, nessa medida, de representao
descritiva.
Uma outra forma de conceber a representao na passiva aquilo que Pitkin
designa de representao simblica. Neste caso, no se trata de uma correspondncia de
caractersticas entre representantes e representados. Um smbolo no se parece com
aquilo que simboliza; do smbolo no retiramos qualquer tipo de informao sobre
aquilo que simbolizado. A representao simblica assenta, pois, numa conexo
arbitrria, fruto de pura crena, entre representante e representado. Como sugere Pitkin,
se algum acredita que existe uma representao simblica, porque ela existe; se
ningum acredita, no existe. O teste representao , por assim dizer, existencial.21
Como no pode existir uma justificao racional para a posio de liderana do
representante simblico, a nfase tem de ser colocada nos elementos emotivos da
crena, bem como nas tcnicas de liderana capazes de os explorar eficazmente. O lder
cria-se como representante simblico, manipulando as mentes dos seus seguidores,
alinhando as vontades destes com a sua, de modo a que, nas palavras de um conhecido
19John Adams, citado por Pitkin, Op. cit., p. 60: should be an exact portrait, in miniature, of the peopleat large.20Ver Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 63-65. Os adversrios da representao proporcional, como Bagehot eHermens, no opem a esta um conceito de representao alternativo. Simplesmente, consideram que o
fim ltimo dos rgos legislativos , no representar, mas sim governar tarefa que os sistemas derepresentao proporcionais, multiplicando as faces em disputa, vm dificultar.21Hanna Pitkin, Op. cit., p. 100.
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terico fascista, a vontade do homem livre coincida com a vontade do Estado22
(traduo minha). Esta noo de que o lder se constri activamente como representante
simblico no deve ser confundida com uma actividade substantiva de representao.
Pelo contrrio, como nota Pitkin, o lder que ajusta os seus seguidores aos seus
objectivos e interesses est a fazer-se representar por eles, no a represent-los.23
As conceptualizaes formalistas e passivas tm como grande limitao, no
entender de Hanna Pitkin, o ficarem aqum ou alm da substncia da representao.
Com base nelas no poderamos, certamente, dizer a um representante o que fazer de
modo a representar, ou avali-lo quanto ao desempenho efectivo do seu papel. Para nos
podermos acercar destas questes, temos de pensar a representao como um agir
concreto e substantivo pelos outros, como uma actividade em nome de, no interesse de,
em benefcio de outrem.24
Um ponto de partida para esta reflexo a considerao prtica, produto do
senso comum, de que nos comportamos de maneira diferente quando agimos por outra
pessoa. Nesse caso, tendemos a agir como se, em ltima instncia, tivssemos de
responder pelas nossas aces: devemos ter razes para o que fazemos e estar
preparados para nos justificarmos perante aquele(s) por quem agimos. A perspectiva
formalista da responsabilizao procura transmitir uma ideia semelhante, mas aqui trata-
se de agir como se tivssemos de responder, no de uma responsabilizao
institucionalizada.25Ao pensarmos a representao nesta ptica estamos a afirmar que
aquilo que representado o elemento ausente est presente na prpria aco, no nas
caractersticas do actor, no modo como ele visto, ou nos mecanismos formais que
iniciam ou finalizam a aco. Como devemos agir, ento, para representar?
Esta pergunta, se pensarmos estritamente em representao poltica, tem uma
formulao mais precisa, que uma das controvrsias clssicas da literatura: deve um
representante fazer aquilo que os representados querem que faa, estando vinculado s
instrues especficas destes, ou deve ser livre para procurar favorecer os interesses dos
representados da forma que achar mais adequada? Por outras palavras: mandato
imperativo ou mandato livre?
22Giovanni Gentile, citado por Hanna Pitkin, Op. cit., p. 108: the will of the free man coincides with thewill of the state.23Vide Hanna Pitkin, Op. cit., p. 110.24Ibid., p. 113.25Ibid., p. 119.
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A resposta de Pitkin : nem uma coisa, nem outra. Com efeito, os dois termos do
dilema, nas suas formulaes extremas, esto para l daquilo que significa representar
como actividade. Por um lado, a ideia de mandato imperativo implica a abolio da
autonomia do representante, transformando-o num instrumento nas mos dos
representados. Por outro lado, um representante que faa constante e rotineiramente o
contrrio daquilo que os representados querem ver feito tambm no est a representar.
Este dilema, em boa verdade, reflecte o paradoxo que subjaz ao prprio conceito de
representao: ser representado significa ser tornado presente nalgum sentido, mesmo
no estando presente literalmente ou de facto. Se no vemos os representados presentes,
mas apenas os representantes agindo discricionariamente, no h representao; se no
vemos o representante a agir, mas sim os representados instrumentalizando-o, tambm
no h representao. O representante tem de agir autonomamente, mas os
representados no podem, simultaneamente, deixar de estar a agir atravs dele nalgum
sentido.26
Estas so, na ptica de Hanna Pitkin, as fronteiras da representao poltica
entendida como actividade substantiva. Dentro de tais limites, so possveis vrias
concepes: umas sublinhando mais o aspecto da autonomia do representante (Burke,
por exemplo); outras enfatizando mais a presena dos representados (a perspectiva de
utilitaristas como Bentham e James Mill). Em suma, representar como actividade
substantiva significa agir no interesse dos representados, de uma maneira que estes
consigam perceber e, no limite, aceitar. O representante deve agir autonomamente; a sua
aco tem de envolver um julgamento prprio. Os representados, por seu turno, tambm
devem ser concebidos como seres capazes de julgar e agir autonomamente, no sendo
simplesmente algum que se ajuda ou de quem se toma conta. E apesar do potencial de
conflito entre representantes e representados que da resulta, em condies normais ele
no se concretiza na prtica, uma vez que o representante deve agir de modo a que o
conflito no ocorra ou, se ocorrer, exige-se uma explicao.27
Todas estas perspectivas reconstrudas por Pitkin tm relevncia para a
compreenso do conceito de representao poltica, mas nem todas so igualmente
relevantes. Claramente, esta ltima noo da representao como actividade substantiva
resulta da anlise da autora como a mais satisfatria. Esta nfase faz com que a leitura
de Pitkin assuma contornos nitidamente normativos. O que a representao poltica,
26Ibid., pp. 150-5427Ibid., p. 209.
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como aco substantiva, confunde-se com aquilo que ela deve ser, com os critrios
normativos que lhe conferem legitimidade. A formulao agir autonomamente no
interesse dos representados, de uma forma que seja sensvel (responsive) ao julgamento
autnomo destes e os torne assim, em certo sentido, presentes na aco28 responde
simultaneamente a duas perguntas: O que a representao poltica? E o que deve ser a
representao poltica? O critrio para a existncia de representao um critrio
normativo. Se o representante (ou os representados) no agirem segundo a norma assim
definida, deixa de existir representao.
A leitura de Pitkin foi largamente seguida, nos seus traos fundamentais, pela
literatura subsequente, que se dedicou a explorar de forma mais aprofundada cada uma
das concepes por ela propostas. Alis, tanto assim que, num artigo recente, um autor
designou-a mesmo de standard account da representao poltica: ponto de partida
incontornvel para todos quantos, em sede de cincia ou filosofia poltica, se detm
sobre o assunto.29Assim, incurses posteriores no terreno, sob o signo de Pitkin, ainda
que tomando rumos muito diversos, tm mantido a nota normativa de que representar
envolve a obrigao substantiva de agir de forma sensvel ao julgamento prprio dos
representados. Obrigao substantiva que parece requerer uma sustentao formal.
luz dos principais contributos tericos contemporneos, a representao poltica, apesar
de no se resumir a eles, tem de radicar em e de ser garantida por mecanismos de
autorizao/responsabilizao ou seja, por eleies livres e justas que possibilitem
uma expresso institucionalizada do julgamento prprio dos representados.30O aspecto
substantivo da representao no surge dissociado da sua dimenso formal. Neste
sentido, importa sublinhar que nenhuma das perspectivas analisadas por Pitkin nem
mesmo aquela (a da representao como aco substantiva) que se revela mais
satisfatria aos olhos da autora pode ser concebida como definitiva ao ponto de
excluir as restantes. Todas elas revelam diferentes facetas do conceito de representao,
28 No se trata aqui de uma citao de Pitkin, mas sim da minha sntese da sua concepo darepresentao poltica como aco substantiva.29Ver Andrew Rehfeld, Towards a General Theory of Political Representation, Journal of Politics,
Vol. 68, No. 1, Fevereiro de 2006, p. 3. Rehfeld, por sinal, como notaremos mais abaixo, prope umaabordagem radicalmente diferente da de Pitkin.30De notar, aqui, que as concepes neoschumpeterianas, estritamente procedimentais, de democracia,assumidas e veiculadas por muitos estudiosos das transies democrticas (ver nota 3 acima), noresultam, ao contrrio do que se possa pensar, desta linha de pensamento. Isto porque o seu ponto de
partida no uma reflexo sobre o conceito de representao, mas sim o esforo de operacionalizao doconceito de democracia, libertando-o do que se considera ser a excessiva carga especulativa de conceitoscomo soberania popular, vontade geral ou bem comum.
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que no podem ser ignoradas se pretendermos ter uma abordagem compreensiva. Alis,
a advertncia de Pitkin, no ltimo captulo de The Concept of Representation,
relativamente s insuficincias de uma leitura excessivamente individualizada, centrada
na relao pessoal e imediata entre representante e representados, e em favor de uma
abordagem mais sistmica, aponta justamente nesse sentido.31
A literatura subsequente levou muito a srio essa advertncia. Por um lado,
estudos empricos, mas geralmente animados por convices normativas sobre a melhor
maneira de representar, tm procurado descrever a actividade concreta dos
representantes no contexto do sistema poltico em que se inserem, o que
inevitavelmente remete para os momentos eleitorais em que os representados so
chamados a julgar essa actividade.32 Por outro lado, a importncia atribuda a esses
momentos deslocou algum esforo terico, principalmente daqueles que optam por
abordagens de pendor mais formalista, para as questes da justia eleitoral e da
igualdade do voto.33Quanto s conceptualizaes passivas, que surgiam aos olhos de
Pitkin como as menos satisfatrias, assistimos a desenvolvimentos divergentes. Por um
lado, a representao descritiva tem sido revalorizada no contexto dos debates em redor
do multiculturalismo, da igualdade de gnero e dos sistemas de quotas.34J a reflexo
em torno da representao simblica, tida como caracterstica de regimes totalitrios, foi
praticamente colocada de lado. Finalmente, no que toca representao como
actividade substantiva, alguma literatura tem procurado encontrar a justa medida da
responsiveness entre representantes e representados. E tem-no feito, apesar do
predomnio nessa rea das correntes rawlsianas e habermasianas que tendem a denegar a
questo da representao, no quadro das discusses sobre a democracia deliberativa.35
31 Hanna Pitkin, Op. cit., pp. 221-222: Political representation is primarily a public, institutionalizedarrangement involving many people and groups, and operating in the complex ways of large-scale social
arrangements. What makes it representation is not any single action by any one participant, but the over-all structure and functioning of the system, the patterns emerging from the multiple activities of many
people.32 Para uma sntese dos principais contributos das muitas investigaes empricas na rea, ver JaneMansbridge, Rethinking Representation,American Political Science Review, Vol. 97, No. 4, Dezembrode 2003, pp. 515-528.33Para referir apenas dois exemplos desta linha de investigao: Ronald Rogowski, Representation inPolitical Theory and in Law,Ethics, Vol. 91, No. 3, Abril de 1981, pp. 395-430; Douglas J. Amy, RealChoices, ew Voices: The Case for Proportional Representation in the United States , Nova Iorque,Columbia University Press, 1993.34 Vide, sobretudo, Anne Phillips, The Politics of Presence, Oxford e Nova Iorque, Oxford UniversityPress, 1995, e Iris Marion Young, Inclusion and Democracy, Oxford e Nova Iorque, Oxford UniversityPress, 2000, captulo 4.35 Afigura-se-nos particularmente interessante o conceito de advocacy proposto por Nadia Urbinati,Representation as Advocacy. A Study of Democratic Deliberation, Political Theory, Vol. 28, No. 6,Dezembro de 2000, pp. 758-786. De entre as vrias obras que entroncam nesta linhagem terica, vide
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Todas estas mais recentes linhas de investigao, apesar das ntidas diferenas de
abordagem entre si, no colocam em causa os fundamentos da tipologia de Pitkin. Pelo
contrrio, tomam-na como ponto de partida e, ao faz-lo, reforam-na. Na literatura
contempornea, que tenhamos conhecimento, apenas Andrew Rehfeld prope uma
concepo radicalmente distinta da representao poltica.36
2.2. Limites e insuficincias da concepo dominante: a relevncia de uma
releitura dos tericos de Weimar
Um dos aspectos mais salientes da concepo dominante de representao
poltica tributria de Hanna Pitkin, nas suas mltiplas orientaes, a cristalizao que
ela opera, muitas vezes de forma implcita, da inseparabilidade dos conceitos de
representao e democracia. O estudo de Pitkin comea, certo, pela anlise do
pensamento de Hobbes longe, portanto, de quaisquer consideraes democrticas.
Contudo, o veredicto da autora claro: intuitivamente, ningum apelidaria o Leviathan
hobbesiano de representativo.37No decurso da sua argumentao posterior, e apesar de
a relao entre representao e democracia jamais ser explicitamente tematizada, parece
resultar claro que, no limite, a representao requer a sustentao formal do mecanismo
eleitoral democrtico, ainda que este ltimo no esgote, evidentemente, o significado do
conceito. Todas as linhas de investigao posteriores, como vimos, assumiram
prontamente essa inseparabilidade. Falar de representao passou a equivaler a falar de
representao democrtica.38
Ora, tal equao merece ser examinada mais a fundo. E julgamos que uma
releitura de Carl Schmitt, Hans Kelsen e Gerhard Leibholz pode ser-nos assaz til nesse
tambmJames S. Fishkin, Democracy and Deliberation: ew Directions for Democratic Reform, NewHaven, Yale University Press, 1991; James Bohman e William Rehg,Deliberative Democracy: Essays on
Reason and Politics, Cambridge MA, MIT Press, 1997; Michael Rabinder James, DeliberativeDemocracy and the Plural Polity, Lawrence, University of Kansas Press, 2004.36Andrew Rehfeld, Op. cit. Para este autor, a representao poltica tem um sentido puramente descritivo
ela descreve factos sobre a realidade poltica sem apelar necessariamente para critrios normativos delegitimao. Rehfeld desloca o foco da reflexo da relao entre representantes e representados para umterceiro elemento: a audincia da representao. No entender de Rehfeld, a representao poltica temsempre como destinatrio uma determinada audincia, que avalia se existe representao segundo as suas
prprias regras de reconhecimento, que podem ou no remeter para critrios normativos. Existerepresentao poltica, pois, sempre que a audincia relevante assim o julgue.37 Hanna Pitkin, Op. cit., p. 37: But when we see the final result of the definition embodied in aHobbesian political system with an absolute sovereign, we feel that something has gone wrong, thatrepresentation has somehow disappeared while our backs were turned.38A necessidade de preciso constante na seguinte frase de Nadia Urbinati, Op. cit., p. 760, afigura-se-me
bem elucidativa a este respeito: Representation and the electoral trial that is a necessary part ofdemocratic representation projects citizens into a future-oriented perspective, and thus confers politicsan ideological dimension.
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intuito. A releitura destes autores remete-nos, inevitavelmente, para o ponto de partida
hobbesiano cedo abandonado por Pitkin, ou seja, para o papel da representao no
quadro de uma teoria sobre as origens do Estado e no apenas do Estado democrtico,
mas do Estado em geral. Em Hobbes, como vimos, a ideia de representao servia para
explicar a emergncia dessa nova pessoa artificial, que o autor designava
indistintamente por Leviathan, Commonwealth, pelo termo latim Civitas ou at j
mesmo por State.39 A representao era, nessa ptica, um princpio constitutivo do
Estado como vontade e soberania una e absoluta. Que a substituio do contrato de
submisso hobbesiano por um mecanismo eleitoral possa conciliar, numa certa medida,
o conceito de representao com a ideia democrtica, no nos permite ignorar as tenses
que da possam resultar, at porque, em grande parte das suas teorizaes clssicas, a
ideia de democracia no se esgota na existncia de actos eleitorais. No limite, uma coisa
parece certa: se a representao, enquanto princpio constitutivo do Estado, pde ser
pensada como estando na base da monarquia absoluta, ento a sua relao com a
democracia no pode ser concebida nos termos de uma inseparabilidade linear.
nossa inteno explorar esta problemtica, num primeiro momento, com base
na distino, proposta por Carl Schmitt na sua Teoria da Constituio (1928), entre
representao e identidade enquanto princpios constitutivos do Estado, isto , da
unidade poltica de um povo. Na realidade concreta da vida poltica, no existe, segundo
Schmitt, um nico Estado seja ele monrquico, aristocrtico, republicano ou
democrtico que no revele elementos caractersticos desses dois princpios. Contudo,
no plano meramente conceptual, parece claro que a ideia de democracia, de um povo
que o seu prprio soberano, se aproxima bem mais do princpio da identidade do que
do da representao. luz desta oposio entre representao e identidade
analisaremos, de seguida, as dinmicas de tenso entre parlamentarismo e democracia,
em torno das quais Carl Schmitt reflecte no seu famoso ensaio sobre a condio
histrico-intelectual do parlamentarismo do seu tempo.40
Num segundo momento, pretendemos abordar a questo sob a ptica,
radicalmente distinta, de Hans Kelsen. Para este autor, a ideia de representao, tal qual
a entende o dogma da soberania popular, uma fico que tenta, em vo, cobrir o fosso
39Ver Quentin Skinner, The State, in Robert E. Goodin e Philip Pettit (eds.), Contemporary PoliticalPhilosophy An Anthology, 2 edio, Malden, Oxford e Victoria, Blackwell, 2006, p. 17.40 Carl Schmitt, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, 9 edio, Berlim,Duncker & Humblot, 2010. Traduo portuguesa parcial, da autoria de Joo Tiago Proena, sob o ttuloDemocracia e Parlamentarismo, in Diogo Pires Aurlio (Coord.), Op. cit., pp. 177-206.
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que inevitavelmente separa a vontade do Estado formada na instituio representativa
(ou seja, no parlamento) da vontade efectiva do povo. Alis, Kelsen considera que o
povo, na sua imediatez sociolgica, no possui uma vontade substantiva que o rgo
parlamentar possa limitar-se a espelhar. Pelo contrrio, o povo, na sua irredutvel
diversidade social, formado por uma multiplicidade de vontades distintas e, as mais
das vezes, conflituais. Para que ele possa exprimir uma vontade, necessrio constru-lo
juridicamente, transform-lo em rgo estatal, isto , em conjunto de cidados com
direito de voto. Dessa forma, enquanto construo jurdica, o povo participa na eleio
do rgo parlamentar, ao qual cabe, por sua vez, a formao de uma parte significativa
comummente designada por poder legislativo da vontade do Estado. Esta ltima no
representa, contudo, e apesar da eleio do parlamento pelo povo, a vontade popular,
uma vez que a eleio, como veremos, no implica uma relao de representao.
Apesar da participao popular permitida pelas eleies, o parlamentarismo resulta,
pois, numa diferenciao entre governantes e governados que, para o jurista austraco,
surge como uma consequncia inelutvel e necessria da diviso social do trabalho,
que a condio de todo o progresso da tcnica social41. Neste sentido, Kelsen
encontra uma justificao puramente instrumental para o parlamentarismo. No entanto,
essa sua argumentao resultante de uma teoria jurdica do Estado complementada, a
um outro nvel, por uma reflexo sobre a natureza da democracia. Dela resulta, enfim, a
conciliao, atravs de uma srie de metamorfoses e mediaes, do princpio
diferenciador do parlamentarismo, ainda que reformado relativamente aos moldes
clssicos do sculo XIX, com a ideia democrtica. Para Kelsen, no contexto da
crescente complexidade das sociedades modernas, a democracia possvel a
parlamentar.42
Em Gerhard Leibholz, finalmente, encontraremos uma anlise partida, mais
prxima de Schmitt do que de Kelsen fundada numa abordagem fenomenolgica da
representao poltica, que procura discernir as suas especificidades e demarc-la de
conceitos cientfico-sociais contguos. Atravs dessa abordagem, o autor isola alguns
elementos que, no seu entender, resultam da essncia da representao poltica: a
independncia dos representantes, que permite que estes se afirmem como entidades
41Hans Kelsen, O Problema do Parlamentarismo, in Diogo Pires Aurlio (coord.), Op. cit., p. 155.42 Os principais escritos de Kelsen sobre teoria da democracia, desde Vom Wesen und Wert der
Demokratie (1920) at Foundations of Democracy (1955), encontram-se reunidos num volumeeditado por Matthias Jestaedt e Oliver Lepsius, Verteidigung der Demokratie, Tbingen, Mohr Siebeck,2006.
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distintas, autnomas e com um valor prprio; e o princpio da publicidade. Por outro
lado, enquanto poder/dominao (Herrschaft), a representao poltica e, mais
estritamente, os regimes que se dizem representativos requerem uma legitimao.
Apoiando-se nos tipos-ideais weberianos de dominao legtima (tradicional,
carismtica, legal-racional), Leibholz considera que, a partir de dado momento, as
eleies tornaram-se no nico mecanismo capaz de dotar o sistema representativo de
legitimidade. A centralidade desse mecanismo de legitimao, por seu turno, abriu
caminho para uma crescente presso democrtica, baseada no princpio da identidade,
sobre os fundamentos do sistema representativo: no sentido da universalizao do
sufrgio, de uma representao a tender para a proporcionalidade, da formao de
partidos polticos de massas, da incluso na ordem jurdico-constitucional de figuras
como a iniciativa popular e o referendo. Nessa ptica, Leibholz procura expor as
tenses entre um direito constitucional que consigna os princpios do sistema
representativo43 (independncia e publicidade) e uma realidade poltica que os coloca
crescentemente em causa e na qual os partidos polticos constituem o n grdio.
A nossa leitura destes trs autores weimarianos ser, pois, marcada por um
questionamento explcito da linearidade do nexo causal entre representao,
parlamentarismo e democracia. No quadro dessa abordagem, o ltimo aspecto
mencionado no pargrafo anterior, que se nos afigura requerer particular ateno, ser
analisado isoladamente, concluindo a nossa reflexo sobre cada um dos tericos
tratados: a natureza e o papel dos partidos polticos.
Trata-se, em boa verdade, de um aspecto em que a literatura contempornea
beneficiaria grandemente de uma releitura dos tericos de Weimar. Com efeito, ainda
que no se possa afirmar que os partidos polticos sejam um elemento totalmente
ignorado pela literatura terica contempornea sobre a representao poltica o termo
aparece, invariavelmente, em quase todos os textos sobre a questo , parece
indiscutvel que estamos perante uma questo manifestamente negligenciada, que no
constitui o foco do esforo terico dos autores. No fundo, como se os partidos
polticos constitussem uma decorrncia natural, inevitvel e marginal da democracia
representativa-parlamentar contempornea, sobre cuja natureza, valor e funo no
valesse a pena reflectir mais aprofundadamente. Veja-se, a este ttulo, as esparsas
43Ainda que, de forma inovadora, a Constituio de Weimar de 1919 se caracterizasse j, como veremosmais frente, pela consagrao de um sistema eleitoral proporcional e pela incluso das figuras dainiciativa popular e do referendo.
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referncias no estudo de Pitkin, que jamais chegam a constituir uma tentativa de
enquadramento dos partidos polticos na dualidade representantes-representados.44Mais
recentemente, Anne Phillips, no captulo introdutrio do seu The Politics of Presence,
concebe os partidos polticos como meras etiquetas indicativas do posicionamento
ideolgico dos candidatos a cargos de representao. A poltica partidria , para esta
autora, a simples expresso de uma poltica de ideias que merece ser questionada sob
a ptica de uma poltica de presena, assente em noes de representao descritiva.45
Ora, para Schmitt, Kelsen e Leibholz, a questo dos partidos polticos, pelo
contrrio, assume uma importncia central. Na atribuio dessa centralidade questo,
os trs autores afastaram-se decididamente da corrente dominante na literatura jurdica
da Alemanha imperial (Paul Laband, Georg Jellinek), que tendia a negar aos partidos
polticos um lugar em qualquer reflexo sobre o direito estadual. Ainda em 1927, de
resto, Heinrich Triepel, reitor da Faculdade de Direito de Berlim, mantinha essa linha de
pensamento: os partidos no mais seriam que manifestaes extra-constitucionais,
corpos sociais estranhos ao organismo do Estado.46Tal perspectiva, em franco contraste
com a realidade poltica, revelava-se insustentvel. Porm, a questo no se resumia a
encontrar, no direito constitucional e na teoria do Estado, um lugar para os partidos que
correspondesse sua importncia fctica na vida poltica. Mais do que isso, tratava-se
de procurar compreender as consequncias profundas da emergncia dos partidos
polticos e de uma sua eventual incorporao no pensamento jurdico e poltico sobre o
Estado. E indubitavelmente, essa reflexo no se fez sob a gide do optimismo, dado
que Schmitt, Kelsen e Leibholz estavam bem ao corrente das tendncias oligrquicas na
vida interna dos partidos reveladas pelas investigaes de Robert Michels.47
Para Carl Schmitt, a emergncia dos partidos polticos de massas constitua um
indcio claro da crise do parlamentarismo. Efectivamente, aquela fez com que o
princpio da discusso pblica, fundamento do parlamentarismo clssico, cedesse lugar
negociao secreta entre blocos de poder. Na verdade, os partidos defrontam-se no
como opinies em disputa, orientadas pela finalidade de convencer o oponente atravs
de argumentos racionais, mas como agrupamentos de poder operando com base num
44Hanna Pitkin, Op. cit., p. 83, p. 109, p. 115, pp. 147-149, pp. 219-221 e p. 235. 45Anne Phillips, Op. cit., pp. 1-4.46 Cfr. citao in Gerhard Leibholz, Verfassungsrecht und Verfassungswirklichkeit, in GerhardLeibholz, Op. Cit., p. 253.47 Robert Michels, Zur Soziologie des Parteiwesens in der Modernen Demokratie, Leipzig, WernerKlinkhardt, 1911. (Traduo portuguesa: Para uma Sociologia dos Partidos Polticos na Democracia
Moderna, Lisboa, Antgona, 2001.)
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estrito clculo de interesses e de foras. Nesse sentido, movem-se melhor na
obscuridade das antecmaras e dos gabinetes fechados do que sob os holofotes da
tribuna parlamentar e, assim, furtando-se visibilidade pblica, participam da
progressiva eroso do elemento representativo em favor do princpio democrtico da
identidade. Contudo, a identidade que colocam no lugar do princpio da representao
meramente parcial, sendo incapaz de garantir, a longo prazo, a unidade poltica do povo.
Kelsen, pelo contrrio, v os partidos no como sintomas de uma crise profunda,
mas como elementos a ser construtivamente integrados na teoria do Estado e no direito
constitucional. Com efeito, no se pode ignorar que o processo de formao da vontade
do Estado no parlamento, eleito pelo rgo estadual povo, possui um decisivo estdio
preparatrio no seio dos diversos partidos com assento parlamentar. Que as
organizaes partidrias, mesmo que professando uma ideologia radicalmente
democrtica, possam manifestar e manifestem frequentemente (vide Michels), no seu
interior, tendncias oligrquicas e autocrticas, constitui um bvio motivo de
preocupao na perspectiva de Kelsen. Tais tendncias, contudo, podem ser eficazmente
combatidas atravs da incorporao dos partidos na ordem jurdica estadual, sujeitando
os processos internos de formao da vontade partidria a regras democrticas. Para o
autor, a chave para a superao dos desafios trazidos pelos partidos polticos encontra-
se, junto com algumas outras medidas de reforma do rgo parlamentar, num duplo
processo de integrao na esfera estadual e de democratizao interna dos partidos
polticos. E indiscutvel, segundo o autor, que a democracia moderna tenha de assumir
os moldes de um Estado de partidos (Parteienstaat).
Quanto a Leibholz, acabar igualmente por abraar uma concepo do Estado de
partidos. Contudo, o seu caminho para l chegar, como veremos, apresenta-se bem mais
sinuoso do que o de Kelsen. Com efeito, o autor parte de uma posio prxima da
crtica de Schmitt aos partidos polticos, vendo-os igualmente como foras ao servio de
uma identidade parcial que colocam em causa o sistema representativo parlamentar e a
unidade do Estado. Durante o perodo weimariano, Leibholz pugna, pois, pela
manuteno de um regime democrtico que considera de tipo liberal e representativo,
assente nos moldes do parlamentarismo oitocentista, opondo-se ao avano de uma
concepo a seu ver plebiscitria da democracia que tem nos partidos o seu elemento
central. Todavia, no ps-1945, esta posio sofre uma inflexo considervel. Como que
espelhando as transformaes introduzidas, no tocante representao poltica, pela LeiFundamental (Grundgesetz) de 1949, Leibholz abandona muitos dos postulados
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defendidos durante a dcada de 1920 e aproxima-se da concepo kelseniana, segundo a
qual, nas democracias modernas, so os partidos que tornam o povo capaz de agir
politicamente, de participar na formao da vontade do Estado. Nesta segunda fase da
sua reflexo, tambm para Leibholz a democracia moderna s poder afirmar-se e
sobreviver como Estado de partidos. Em todo o caso, na sua ptica, a afirmao do
Estado de partidos no implica a rejeio completa dos fundamentos do
parlamentarismo clssico. Nomeadamente, imagem do que figura na Grundgesetz, a
concesso de uma funo constitucional aos partidos polticos considerada compatvel
com a manuteno da independncia e da legitimidade prpria dos deputados, ainda que
sob a forma de um compromisso tenso e, conforme o prprio Leibholz admite,
desequilibrado a favor dos partidos.
Ora, independentemente da posio que cada um dos autores assume em relao
a ele, certo que a emergncia dos partidos polticos constitui um fenmeno que no
pode deixar a teoria poltica, e mais concretamente, o pensamento sobre a
representao, indiferente.
Estas so as pistas que pretendemos seguir nos trs autores de Weimar que
constituem o cerne do presente trabalho e que esperamos que possam ser frutuosas
para um reequacionar de certas questes insuficientemente problematizadas pelas
discusses contemporneas. Contudo, para melhor compreendermos as suas reflexes,
impe-se, antes do mais, um momento de contextualizao histrica, no qual
abordaremos a curta e malograda experincia republicana de Weimar sob o prisma dos
dois aspectos mais relevantes para os nossos objectivos: a emergncia de uma poltica
de massas e a cristalizao de certas tendncias ambivalentes na Constituio de 1919.
3. A Repblica de Weimar (1918-1933): contextualizao histrica
3.1. Weimar e a emergncia da poltica de massas: continuidades e
descontinuidades
Na histria contempornea, poucos regimes tiveram um parto to conturbado
quanto a Repblica de Weimar. Na sua gnese, encontra-se um factor de poltica
internacional: a derrota militar alem na I Grande Guerra. Contudo, no se tratou de
uma transio de regime negociada a partir de cima, para satisfazer as exigncias das
potncias vencedoras. Em boa verdade, com a derrota de 1918, toda a estrutura de poder
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da Alemanha imperial, arquitectada por Bismarck em 187148, ruiu como um castelo de
cartas. Na Alemanha, 1918 foi, pois, no apenas o ano da derrota, mas tambm o ano da
revoluo.
Em incios de Novembro, marinheiros amotinados tomam conta de Kiel e de
outras cidades do Norte. A Sul, o social-democrata independente e pacifista Kurt Eisner
proclama a Repblica na Baviera, pondo fim multissecular dinastia dos Wittelsbach.
Em Berlim, o chanceler Max von Baden cede o cargo a Friedrich Ebert, seu antigo
ministro social-democrata. A velha Alemanha monrquica e aristocrtica abdicava sem
resistncia.49
No centro dos acontecimentos, porm, estavam menos as cpulas em Berlim do
que os conselhos de trabalhadores e de soldados que se formavam um pouco por todo o
lado. Efectivamente, parecia ser a hora daqueles que mais consequentemente haviam
demonstrado a sua oposio guerra, ou seja, da social-democracia independente50e,
sobretudo, da sua ala radical, a Liga Espartaquista51, liderada por Karl Liebknecht e
Rosa Luxemburgo. Em larga medida, a situao parecia assemelhar-se ao Outubro russo
do ano anterior. Todavia, os sociais-democratas moderados cedo logram colocar-se
frente do movimento revolucionrio. O chanceler Ebert preside ao Conselho dos
Mandatrios do Povo (Rat der Volksbeauftragten), rgo paritariamente composto por
trs membros da social-democracia moderada e maioritria (SPD) e trs membros da
social-democracia independente (USPD), que reconhecido e legitimado, a 10 de
Novembro, pela Assembleia-Geral dos Conselhos de Trabalhadores e Soldados de
Berlim. Mas, a grande vitria dos moderados ocorre no Congresso dos Conselhos do
Reich, reunido em Berlim entre 16 e 20 de Dezembro, onde uma maioria expressiva se
manifesta pela criao de uma Assembleia Nacional Constituinte
(ationalversammlung), e portanto contra o sistema de conselhos. Na sequncia dessa
votao e de outros conflitos, os membros do USPD abandonam o Conselho dos
Mandatrios do Povo, que passa a ser unitariamente composto por sociais-democratas
moderados. Durante todo este perodo, os ministros burgueses permaneceram nos seus
cargos, ficando um deles, Hugo Preu, encarregue de preparar o texto de uma nova
48Unificao alem, essa sim, conseguida a partir de cima, sob a gide da fora militar prussiana.49A abdicao definitiva doKaiser Guilherme II, ainda que previamente anunciada por Max von Baden,ocorre apenas a 30 de Novembro, logo partindo o monarca deposto para o exlio nos Pases Baixos.50A social-democracia independente, que passa a existir enquanto partido poltico autnomo (USPD) a
partir de 1917, resultou das divises internas na social-democracia alem a propsito da votao doscrditos de guerra, em Agosto de 1914.51Transformada, a partir de Janeiro de 1919, no Partido Comunista Alemo (KPD).
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Constituio. As eleies para a Assembleia Constituinte so marcadas para 19 de
Janeiro de 1919.
A supremacia conseguida pelos sociais-democratas moderados nos conselhos
teve, por outro lado, de ser conquistada tambm nas ruas de Berlim, transformadas,
naqueles dias, em autnticos campos de batalha. Nesse aspecto, o papel preponderante
coube a Gustav Noske, mandatrio do povo responsvel pelas foras armadas, que
conseguiu reunir grupos de soldados dispersos que regressavam da frente (Freikorps) e,
com eles, subjugar os levantamentos comunistas.52A Repblica de Weimar deve, com
efeito, o seu nome a esta instabilidade vivida nas ruas de Berlim em Maro, ocorrem
novas sublevaes comunistas, mais uma vez violentamente esmagadas , que justificou
a transferncia da Assembleia Constituinte para a pequena cidade de Weimar. Conforme
sustenta o historiador Ernst Nolte em tom algo provocador, mais do que uma tentativa
de estabelecer a ligao com a tradio do idealismo alemo53, por oposio tradio
militarista e prussiana que dimanava de Berlim-Potsdam, Weimar simbolizava um
Friedrich Ebert posto em fuga ante a perseguio que lhe movia Rosa Luxemburgo e,
atravs dela, Lenine.54
As eleies de Janeiro de 1919 para a Assembleia Constituinte, por sufrgio
universal e com base num mtodo de converso proporcional de votos em mandatos,
resultaram numa maioria expressiva, ainda que no absoluta, para os sociais-democratas
moderados (37,9%), seguidos pelo Centro catlico (19,7%) e pelos liberais do DDP
(18,5%). Estes trs partidos, cerne do regime republicano, formaram a chamada
coligao de Weimar. A participao eleitoral cifrou-se nos 83%.55
Este ltimo nmero convida-nos a reflectir sobre a questo da poltica de
massas. Importa evitar, aqui, a interpretao historicamente desinformada de 1919, ano
de fundao da Repblica parlamentar e democrtica, como o momento de emergncia
repentina de um novo modo de poltica, a moderna poltica de massas, que se oporia
radicalmente ao arcasmo da Alemanha imperial. Bem pelo contrrio, a emergncia da
poltica de massas, na Alemanha, deve ser situada num escopo histrico que abrange
tanto as dcadas finais do Imprio como a Repblica de Weimar.
52Na ressaca dos confrontos, a 15 de Janeiro, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo so executados pelosFreikorps, que ficaram conhecidos entre os comunistas alemes como os ces de Noske.53Goethe e Schiller passaram uma importante parte das suas vidas em Weimar.54Ernst Nolte, Die Weimarer Republik. Demokratie zwischen Lenin und Hitler, Munique, Herbig, 2006,
p. 66. A minha descrio da gnese da Repblica de Weimar apoia-se, igualmente, nesta obra, sobretudo
pp. 49-57.55 Cfr. os resultados completos da eleio em Detlef Lehnert, Die Weimarer Republik, 2 edio,Estugarda, Reclam, 2009, p. 140.
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Certamente, o Estado na Alemanha imperial evidenciava caractersticas que,
julgando-as segundo os padres dos modelos ingls ou francs seus contemporneos,
justificavam ser apelidadas de arcaicas: os poderes efectivos do Imperador; a
concentrao de competncias no executivo monrquico, responsvel perante o
Imperador e no perante o parlamento (Reichstag); os poderes limitados deste ltimo,
ao qual estava vedada a iniciativa legislativa; a complexa agregao entre instituies
imperiais e instituies prussianas; a autonomia das foras militares; os privilgios
consagrados, que incluam isenes fiscais, da aristocracia; a natureza senhorial do
governo local, sobretudo a Leste do Elba; entre outros. Todavia, noutros aspectos, o
Estado imperial apresentava traos que o colocavam na vanguarda da modernidade: a
eficincia do seu aparelho burocrtico e da sua mquina militar; o intervencionismo
estatal, nomeadamente na rea da legislao social; e, sobretudo, a existncia de
sufrgio universal masculino, resultando numa crescente mobilizao poltica popular.56
A natureza febril e voltil da vida poltica na Alemanha guilhermina , de resto,
uma caracterstica particularmente realada por alguma historiografia, que procura
explic-la atravs da disjuno entre os desenvolvimentos na esfera poltico-estatal e no
domnio socioeconmico. David Blackbourn sustenta, nesse sentido, que a revoluo
burguesa alem, fracassada na sua expresso propriamente poltica em 1848, se
transfere para a esfera econmica e social, onde triunfa silenciosamente em toda a
linha. Com efeito, o desenvolvimento particularmente dinmico do capitalismo
industrial alemo, beneficiando da consolidao de um regime jurdico em que a
proteco da propriedade privada era figura essencial, bem como a vitalidade crescente
da sociedade civil e da vida associativa, representaram uma transformao cujo sucesso
era testemunhado, acima de tudo, pela naturalidade com que era vista.57 Ora, na
esfera poltica, pelo contrrio, as pretenses da burguesia de que representaria o
interesse geral da sociedade eram fortemente contestadas. Em boa verdade, muitos
conflitos socioeconmicos latentes acabaram por encontrar expresso visvel e audvel
no domnio poltico, especialmente a partir das dcadas de 1880 e 1890, quando a
poltica de notveis (Honoratiorenpolitik) comea a ser substituda por uma poltica de
massas em que o tom crescentemente definido ora pelas exigncias da classe
56Sobre a natureza contraditria do Estado no Segundo Reich, ver Geoff Eley, The British Model andthe German Road: Rethinking the Course of German History Before 1914, in David Blackbourn e GeoffEley, The Peculiarities of German History, Oxford e Nova Iorque, Oxford University Press, 1984, pp.
127-143, e David Blackbourn, The Discreet Charm of the Bourgeoisie: Reappraising German History inthe Nineteenth Century, in David Blackbourn e Geoff Eley, Op. cit., pp. 253-255.57David Blackbourn, Op. cit., pp. 176 e ss.
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trabalhadora (isto , pelo SPD), ora por um nacionalismo radical de extraco pequeno-
burguesa.58
Neste sentido, a participao eleitoral nas primeiras eleies de Weimar situa-se
numa linha de continuidade relativamente aos anos finais do Imprio59: as eleies de
1907 e 1912 este ltimo, ano da mais expressiva vitria eleitoral da social-democracia
na era imperial registaram uma afluncia s urnas na casa dos 84%. Um contraste
marcado deixa-se apenas estabelecer se compararmos esses nmeros com os do incio
do Reich bismarckiano: as primeiras eleies para o Reichstag da Alemanha unificada
(1871), por sufrgio directo, igual e universal masculino, tiveram uma participao em
redor dos 50%.60
Outro trao de continuidade reside na reformao do sistema partidrio: todos os
partidos que concorrem s eleies de 1919 para a Assembleia Constituinte so
herdeiros directos de formaes polticas j existentes no Imprio. O caso mais claro,
apesar das cises internas61, o do SPD, que mantm a designao e consolida a sua
fora numrica j era, na verdade, a fora poltica mais votada em eleies para o
Reichstag desde 1890. direita da social-democracia, surge o Partido Democrtico
Alemo (DDP), herdeiro directo dos liberais de esquerda doKaiserreich. Tratava-se de
um partido das elites intelectuais, onde pontificavam figuras como Theodor Wolff,
Alfred Weber, Albert Einstein e Friedrich Naumann. Partilhando a mesma base social
de apoio do DDP, mas distanciando-se do seu cosmopolitismo, o DVP (Deutsche
Volkspartei), sob a liderana incontestada de Gustav Stresemann, congregava sobretudo
os nacional-liberais (ationalliberale) da era imperial.62 O Centro catlico (Zentrum)
manteve tambm o nome dos tempos guilherminos, bem como a constncia dos
resultados eleitorais, sempre acima dos 10%. Na margem direita do sistema partidrio,
58Ibid., pp. 238 e ss.59 Importa notar, contudo, uma diferena considervel: a concesso do direito de voto s mulheres, em1919, vem alargar muito significativamente o universo de eleitores.60 Cfr. os resultados das eleies no Kaiserreich in Gerd Hohorst, Jrgen Kocka e Gerhard A. Ritter,Sozialgeschichtliches Arbeitsbuch II, 1870-1914, 2 edio, Munique, Beck, 1978, pp. 173-176. Para uma
panormica de todos os resultados eleitorais na Alemanha, desde o Kaiserreich at actualidade, videDieter Nohlen e Philip Stver (eds.), Elections in Europe. A Data Handbook, Baden-Baden, Nomos,2010, pp. 776 e ss.61Que do origem ao USPD. Contudo, este partido, apesar do notvel resultado eleitoral que o erige asegunda fora poltica em 1920 (18%), acaba por ter vida curta. A sua ala direita regressa ao SPD,enquanto a ala esquerda adere ao KPD. Em 1924, um resultado eleitoral abaixo do 1% relega-o para a
insignificncia poltica.62O bloco liberal ou burgusDDP/DVP o que pior resistir s crises e tenses de Weimar. Nas eleiesde 1932, o resultado somado de ambos no chega sequer aos 3%.
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mas sem se assumir abertamente como anti-republicano, surgia o DNVP
(Deutschnationale Volkspartei), nova casa dos antigos conservadores.63
As duas excepes significativas a esta reconstruo do sistema partidrio sob os
moldes da poca imperial (comunistas e nacional-socialistas), que constituam
simultaneamente os dois inimigos declarados da Repblica, no concorreram em 1919.
Os comunistas por razes tcticas; o nacional-socialismo porque nem sequer existia
enquanto fora poltica autnoma, ainda que a mentalidade que lhe deu origem j
estivesse disseminada pelosFreikorps e pelas fileiras das foras armadas oficiais. E no
entanto, so estas duas excepes, estes dois elementos de descontinuidade, que
numericamente mais crescem durante a Repblica de Weimar os comunistas de forma
gradual, desde os 2% de 1920 at aos 18% de 1932; os nacional-socialistas explodindo
eleitoralmente a partir de 1930. Em relao aos primeiros, em todo o caso, ainda era
possvel avanar com o argumento da continuidade histrica num certo sentido, na
medida em que o KPD parecia assumir, na Repblica, a mesma posio de antagonismo
face ao regime que o SPD havia assumido, pelo menos at certa altura, no Imprio.
Todavia, esse argumento parece passar ao lado de diferenas essenciais: o KPD era no
s prtica e discursivamente mais agressivo do que o SPD alguma vez havia sido, como,
sobretudo, tinha o apoio efectivo que, com o estalinismo, passa quase a controlo
directo de uma potncia externa. No que toca ao partido nacional-socialista de Hitler
(NSDAP), que de fenmeno regional bvaro passa, num pice, a expresso radical de
uma poltica nacionalista de massas, a descontinuidade inquestionvel. A Repblica
de Weimar, ao contrrio do Imprio guilhermino, no se encontrava acossada apenas
pela esquerda, mas tambm pela direita. E a natureza dessa oposio radical de direita
era, tambm ela, nova. No se tratava, com efeito, de uma simples reaco contra a
modernidade, marcada por um desejo anacrnico de retorno aos dias gloriosos da
monarquia imperial. O nacional-socialismo apresentava-se, certo, como defensor de
uma certa tradio civilizacional, mas o seu programa visava, para alm disso e assim
como o dos comunistas, a superao da ordem vigente e a edificao de uma nova
sociedade, de um novo Homem. A, tal como na sua organizao partidria, estritamente
centralizada, e na sua predileco pelas mais sofisticadas tcnicas de comunicao de
63Apoiamo-nos, aqui, em Ernst Nolte, Op. cit., pp. 77-82.
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massas, o nacional-socialismo revelava uma cunhagem radicalmente moderna.64
Tentando acercar-se da sua natureza, Ernst Nolte definiu-o, em termos paradoxais,
como aristocratismo plebeu e dio revolucionrio revoluo, como defesa anticrist
do Ocidente cristo, como recusa democrtica da democracia, como individualismo
colectivista pro-capitalista e anticapitalista num s, semelhante a tudo o que existia e,
no entanto, opondo-se-lhe resolutamente, dependente do acaso da personalidade
hitleriana e, contudo, correspondendo a uma certa necessidade histrica (traduo
minha).65
Ora, para l das margens do sistema de partidos, um outro elemento de clara
descontinuidade poderamos mesmo dizer: de ruptura reside, obviamente, na
substituio formal do soberano, plasmada na Constituio de 1919. Voltemo-nos,
agora, para ela.
3.2. A Constituio de Weimar: tendncias ambivalentes
No necessrio ler um nico artigo de ambos os documentos, para se perceber
a diferena fundamental entre a Constituio de 1871 e a de 1919: no prembulo, onde
naquela se lia Guilherme I e demais majestades (da Baviera, da Saxnia, do Hesse,
etc.), nesta l-se o povo alemo. O soberano mudou e com ele a importncia
relativa das diversas instituies. O parlamento (Reichstag) deixa de ser um rgo
meramente tolerado por um poder superior, e muito limitado nas suas competncias,
para passar a assumir o controlo directo do governo, assim como a primazia legislativa
(em detrimento do Reichsrat, rgo da representao federal dos Lnder). Contudo, o
novo regime no se afirmou como um parlamentarismo puro, mas sim como um semi-
presidencialismo. Efectivamente, ao lado doReichstagsurgia um Reichsprsident com
legitimidade eleitoral prpria66 e poderes firmemente ancorados na Constituio,
sobretudo nos seus Artigos 25 e 48.67Porm, essa tenso no a que mais nos interessa
64A referncia fundamental, no estudo das complexas interseces entre modernidade, poltica de massase o fenmeno totalitrio, continua a ser Hannah Arendt, The Origins of Totalitarianism, Cleveland e NovaIorque, Meridian Books, 1958.65 Ernst Nolte, Op. cit., pp. 203-204: als plebejischer Aristokratismus und revolutionrerRevolutionshass, als antichristliche Verteidigung des christlichen Abendlandes, als demokratischeDemokratiefeindschaft, als kollektivistischer Individualismus prokapitalistisch und antikapitalistisch ineinem, allem Vorhandenen hnlich und doch allem Vorhandenen feindlich, vom Zufall der HitlerschenPersnlichkeit abhngend und doch von betrchtlicher geschichtlicher Notwendigkeit.66 Aspecto para o qual muito contribuiu a interveno de Max Weber nos comits para a reforma
constitucional. Ver, a este respeito, Ernst Nolte, Op. cit., p. 67.67 O primeiro confere ao presidente o direito de dissolver o parlamento; o segundo rege o estado deemergncia, frequentemente invocado nos anos finais de Weimar, com base no qual os direitos
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no mbito do presente estudo preferiremos sublinhar, nas linhas que se seguem, os
elementos de lgica potencialmente contrria presentes na forma como a Constituio
de Weimar concebe a representao parlamentar.
Em boa verdade, o texto constitucional parece consagrar com clareza os
princpios basilares do parlamentarismo clssico. O Artigo 21 consigna a independncia
dos deputados, que surgem como representantes de todo o povo do povo como
unidade ideal, como diria Leibholz68 , sujeitos apenas aos ditames da sua prpria
conscincia. Desse princpio da independncia decorrem, naturalmente, as diversas
imunidades parlamentares, consagradas nos Artigos 36, 37 e 38. J os Artigos 29 e 30
postulam a necessria publicidade das sesses parlamentares.
Porm, a tais elementos caractersticos do sistema representativo liberal vm
juntar-se outros que parecem apontar para horizontes distintos. Por um lado, temos os
momentos plebiscitrios da iniciativa popular (Volksbegehren) e do referendo
(Volksentscheid), previstos nos Artigos 73 a 76. Trata-se, pois, da concesso, em
determinadas circunstncias e sob certas condies, de um lugar participao popular
directa no processo legislativo e, at, na alterao ou reviso da Constituio. Por outro
lado, assiste-se tambm constitucionalizao do sistema eleitoral proporcional, e no
s no que concerne s eleies para oReichstag(Artigo 22), mas tambm em todos os
actos eleitorais dos Lnder e dos municpios (Artigo 17). Ora, seria incorrecto afirmar
que a representao proporcional , por natureza, incompatvel com o parlamentarismo
clssico. Alis, basta recordar que John Stuart Mill, um dos principais teorizadores do
parlamentarismo oitocentista, era tambm defensor da representao proporcional.
Contudo, no contexto da Constituio de Weimar, a proporcionalidade e os
instrumentos plebiscitrios surgiam como elementos novos e potencialmente
perturbadores, vindo juntar-se s garantias constitucionais caractersticas do sistema
representativo clssico, que, em boa verdade, e pese embora a distinta posio do rgo
parlamentar na arquitectura constitucional, transitavam praticamente inalteradas da
Constituio imperial.
Essa tenso interna, contudo, apenas metade da histria. H que ter em conta,
igualmente, a tenso entre a prpria Constituio e a realidade poltica de Weimar.
fundamentais definidos pela Constituio podiam ser total ou parcialmente suspensos. Ver, sobretudo noque toca controvrsia em torno do Artigo 48, David Dyzenhaus, Legal Theory in the Collapse of
Weimar: Contemporary Lessons?, The American Political Science Review, Vol. 91, No. 1, Maro de1997, pp. 123-127.68Vide infra, p. 82.
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Podemos tambm acercar-nos desta ltima a partir da questo da representao
proporcional. Com efeito, se h algo que a consagrao do princpio da
proporcionalidade na Constituio parece indiciar, a existncia de partidos polticos
fortemente organizados e d
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