a resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime
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CAPÍTULO 3 – O PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DA UNE
Neste capítulo, procurarei mostrar como o ME voltou às ruas, tornando-se o primeiro
ator político a protestar no espaço público, depois de quase dez anos de reclusão, e como se
deu a reorganização interna do movimento em nível nacional. Parto do pressuposto que o
pioneirismo do movimento no que se refere à volta às ruas se deveu ao acúmulo das diferentes
formas de resistência apresentadas pelo movimento ao longo dos anos 1970, como foi
indicado nos capítulos anteriores.
O ano de 1977 tornou-se um marco para o próprio ME porque o retorno às ruas
significou a possibilidade de reorganização da representação nacional, através da rearticulação
da UNE. Dessa forma, pôde participar de maneira mais intensa na luta contra a ditadura, o que
ocorreu em companhia de outros movimentos sociais.
A Grande Imprensa fez ampla divulgação das passeatas e ações estudantis que
ocorreram em 1977. No que concerne a este trabalho, cabe ressaltar como a “grande”
imprensa observou essas ações, geralmente com um posicionamento crítico delas e sobre o
movimento.
Cabe, por fim, recuperar as etapas que levaram à reconstrução da entidade. Além dessa
questão, procurarei refletir a importância desse fato para o próprio movimento, bem como
para o momento político pelo qual o país estava passando.
3.1 1977: os estudantes voltam às ruas e os policiais também414
O ano letivo de 1977 começou com uma série de greves em várias universidades. Os
alunos sextoanistas da Medicina da UERJ permaneceram os primeiros quatorze dias de março
em greve, reivindicando a diminuição da carga horária e o aumento do valor das bolsas. Os
acadêmicos da Medicina da UNESP também entraram em greve, reivindicando mais verbas
414
Título do capítulo sobre o ano de 1977 (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da
UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 23).
140
para o hospital e contra a redução de 20% dos seus leitos415
. Os “novos sinais de vida”, como
salientou a revista Veja416
, ao se referir às movimentações estudantis naquele início de ano,
também foram observados na UFMG, UFPE e UFRGS.
Em 29 de março, cerca de 8.000 alunos da PUC-Rio entraram em greve pela
revogação da suspensão de quatro alunos, contra o aumento das anuidades e pela retirada da
multa de 5% sobre as mensalidades pagas com atraso417
. O mesmo fez a PUC-SP, com
boicote de pagamento das mensalidades. Nessa mesma data, realizou-se na USP uma
assembleia coordenada pelo DCE, sobre os cortes de verbas na universidade418
e, a partir dela,
foi deliberada a realização de uma manifestação próxima à Secretaria de Educação.
Com o esquema de policiamento armado, uma vez que o governador do Estado Paulo
Egydio Martins considerava a reivindicação justa, mas não podia permitir a manifestação
porque era ilegal419
, os estudantes optaram por realizar um outro percurso: os mais de 2.000
universitários seguiram em passeata da USP até o Largo de Pinheiros, voltando para a
universidade420
. Ao longo do ato, cartazes com os dizeres “Mais verbas para educação”, “Pelo
ensino público e gratuito”, e outras reivindicações mais específicas. Depois da passeata, foi
formado um grupo de representantes dos alunos da USP e PUC-SP para dialogar com o
governador421
, que prometeu mais verbas.
O mês de março foi difícil para os representantes da ditadura porque pretendiam
negociar com o MDB a aprovação da reforma do Judiciário. O projeto de reforma foi para
votação em plenário no dia 30 de março e não obteve a maioria de dois terços, sendo
rejeitado. Assim, em 1º de abril, o governo que prometia a distensão política, fechou o
415
Educação: um certo inconformismo. Veja, 13 abr. 1977, p. 49-50. 416
Os novos sinais de vida. Veja, 20 abr. 1977, p. 75-76. 417
Alunos da PUC entram em greve por 3 reivindicações. Jornal do Brasil, 30 mar. 1977. 418
Boletim da tendência “Liberdade e Luta” da USP diz: “A gravidade da situação já provocou manifestações
dos professores por melhores salários e obrigou a própria reitoria a comprometer, no 1º semestre, toda a verba
destinada à USP para 77.” (grifo original). (Liberdade e Luta intervém. Oposição à atual diretoria do DCE. n.
1/77 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37). 419
Desproporção e imprudência. Folha de S. Paulo, 31 mar. 1977. 420
Ver foto (Anexo IX). 421
Renato Cancian relata pormenorizadamente todas as passeatas e encontros que aconteceram no ano de 1977.
Nesse sentindo, cabe a este trabalho referi-las e analisá-las, bem como seus desdobramentos (Movimento
estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.,
cap 2.
141
Congresso Nacional por quatorze dias e baixou uma série de medidas, que ficaram conhecidas
como o pacote de abril.422
Esse foi um motivo para as manifestações ultrapassarem o limite das reivindicações
educacionais. A greve da PUC-Rio, por exemplo, terminou em 4 de abril, com os estudantes
prometendo continuar com o boicote de pagamento das mensalidades e, além de enviarem
uma carta ao reitor, redigiram uma carta ao MEC relatando a situação da universidade, e outra
em repúdio ao fechamento do Congresso Nacional, mas deixando clara a ilegitimidade do
parlamento. Nesse sentido, afirmavam os signatários da carta:
”Apesar do parlamento não representar os verdadeiros interesses dos
trabalhadores, estudantes e demais setores oprimidos da população, vemos o
seu fechamento como mais um ato de força de um regime que procura calar
até mesmo as mais tímidas manifestações de oposição.”423
O Jornal do Brasil, que cobriu a greve, publicou as três cartas redigidas pelo DCE da
PUC na íntegra, na edição de 5 de abril.
Na UFRGS, foi realizada uma manifestação no campus universitário para protestar
contra a prisão de colegas e as medidas do “pacote de abril”, dando ênfase ao fechamento do
Congresso Nacional. Como desdobramento do protesto, foi criada uma Comissão Permanente
de Direitos Humanos cuja sua primeira plenária, segundo a revista Veja, teve o modesto
número de 30 pessoas.424
Mas foi a partir do 1º de maio que o ME realizou grandes mobilizações. Na véspera
dessa data, oito jovens estudantes e operários, militantes da organização clandestina Liga
Operária, foram presos por distribuírem convites para as comemorações do Dia do Trabalho.
Como consequência, as universidades paulistanas (USP, PUC e outras menores) e do interior
422
Composto de 14 emendas e três artigos novos, além de seis decretos-leis, o “pacote” determinou ainda, entre
outras medidas: eleições indiretas para governador, com ampliação do colégio eleitoral; instituição de
sublegendas, em número de três, na eleição direta dos senadores, permitindo à Arena recompor as suas bases e
aglutiná-las sob o mesmo teto; ampliação das bancadas que representavam os Estados menos desenvolvidos,
nos quais a Arena costumava obter bons resultados eleitorais; extensão às eleições estaduais e federais da Lei
Falcão, que restringia a propaganda eleitoral no rádio e na televisão e fora criada para garantir a vitória
governista nas eleições municipais de 1976; alteração do quorum, de 2/3 para maioria simples, para a votação
de emendas constitucionais pelo Congresso; ampliação do mandato presidencial de cinco para seis anos.
(MOTTA, Marly. O pacote de abril. Disponível em: <http:// www.cpdoc.fgv.br/ nav_fatos_imagens/
htm/fatos/PacoteAbril.asp>. Acesso em: 10 set. 2009. Para maiores informações sobre o pacote de abril,
consultar: ALVES, Maria Helena Moreira, Estado e oposição no Brasil: 1964-1984, cit., p. 231-237. 423
Alunos da PUC decidem fim da greve, mas mantêm o boicote às mensalidades. Jornal do Brasil, 05 abr.
1977. 424
Os novos sinais de vida. Veja, 20 abr. 1977, p. 76.
142
do Estado (São Carlos, Araraquara e Campinas) promoveram uma greve no dia 3 maio, com a
participação de mais de 80.000 estudantes. Eles prepararam, naquela noite, um ato público
realizado no Teatro da Universidade Católica (TUCA), onde se “aglomeraram” cerca de 4.000
pessoas, entre estudantes, professores, militantes de movimentos de oposição ao regime e
políticos do MDB.425
A Associação dos Professores da PUC-SP redigiu um documento que foi entregue
durante o ato, no qual solidarizavam com os protestos de “todos aqueles que clamam pela
soltura dos estudantes e operários presos, principalmente por considerar legítima a defesa das
liberdades democráticas de qualquer pessoa humana”426
. A assembleia que ocorreu durante o
ato decidiu pela organização de uma passeata para o dia seguinte. As manifestações, que até
então tinham se restringido às questões universitárias, extrapolavam esse conteúdo, ganhando
contornos nitidamente políticos.
Em 5 de maio, aproximadamente 10.000 estudantes saíram de uma concentração em
frente ao Largo de São Francisco com faixas, cartazes, palavras de ordem, como “anistia;
soltem nossos presos; liberdades democráticas, abaixo a carestia”427
. Durante a passeata, os
estudantes leram e distribuíram 30.000 cópias de uma carta aberta à população.428
425
Educação: 80 mil universitários em greve. Folha de S. Paulo, 04 maio 1977. 426
Ibidem. 427
Passeata reúne 10 mil estudantes em São Paulo. O Estado de S. Paulo, 06 maio 1977, p. 13. 428
“Hoje, consente quem cala: basta às prisões; basta de violência. Não mais aceitamos mortes como as de
Wladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Alexandre Vannucchi Leme. Não aceitamos que as autoridades
maltratem e mutilem nossos companheiros. Não queremos aleijados heróis como Manuel da Conceição. Hoje,
viemos às ruas para exigir a imediata libertação dos nossos companheiros operários – Celso Brambilla, Márcia
Basseto Paes, José Maria de Almeida e Ademir Marini – e os estudantes – Fernando Antonio de Oliveira
Lopes, Anita Maria Fabri, Fortuna Dwek, Cláudio Júlio Gravina – presos sob a alegação de subversão. Hoje,
neste país, são considerados subversivos todos aqueles que reivindicam os seus direitos, todos aqueles que não
aceitam a exploração econômica, o arrocho salarial, o alto do custo de vida, as péssimas condições de vida e
trabalho. Todos aqueles que protestam contra as contínuas violências policiais. Subversivos enfim, são
considerados os que infringem a Lei de Segurança Nacional, instrumento jurídico que justifica a repressão
contra os mais legítimos movimentos da população. Hoje, não mais suportamos as correntes. Exigimos das
autoridades o respeito às liberdades de manifestação, expressão e organização de todos os setores oprimidos da
população. Queremos falar com os que nos oprimem. E entendemos que a melhor maneira de falarmos e de
lutarmos contra os que nos oprimem, por meio da exploração econômica, da violência política e da violência
policial, é através dos sindicatos e entidades livres de nossas organizações independentes. Na Universidade de
São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo os estudantes criaram as suas entidades livres
(DCEs Livres). Livres, porque não nos submetemos às leis impostas pelas autoridades que não querem aceitar
eleições livres e diretas, que impedem a nossa liberdade de manifestação e organização. Porque não mais
aceitamos as mordaças é que hoje exigimos a imediata libertação de nossos companheiros presos não pelas
alegadas razões de subversão, mas porque lutam pelos interesses da maioria da população explorada: contra a
carestia, fim do arrocho salarial, liberdade de organização e expressão para reivindicar os seus direitos. É por
isso que conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta manifestação pública sob as mesmas e únicas
bandeiras: Fim às torturas, prisões e perseguições políticas; libertação imediata dos companheiros presos;
anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados; pelas liberdades democráticas.” (Carta aberta à
população. Folha de S. Paulo, 06 maio 1977, p. 21).
143
A carta, motivada pela prisão de colegas e operários, referia-se também à luta “através
dos sindicatos e entidades livres de nossas organizações independentes” contra os opressores.
(grifei). Ao clamar publicamente por liberdades democráticas, os estudantes aproveitavam a
oportunidade para ressaltar a importância do retorno das representações associativas.
A passeata429
foi reprimida pelas tropas, comandadas pelo próprio secretário de
Segurança de São Paulo Erasmo Dias, no Viaduto do Chá, no momento em que todos os
participantes, sentados no chão, liam em coro a carta e gritavam slogans de protesto. A
resposta policial foram bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a manifestação. Em
Ribeirão Preto, Campinas, São Carlos e Sorocaba foram realizadas manifestações nos mesmos
moldes.
Os atos ocorridos em São Paulo tiveram repercussão nacional. Em várias partes do
país, greves, manifestações e cartas de repúdio à prisão dos operários e estudantes foram
feitas: Minas Gerais (nos campus da UFMG e da UFJF), Curitiba, Sergipe, Brasília e Bahia.
O ato seguinte ficou por conta dos estudantes fluminenses. Em 10 de maio, a PUC-Rio
realizou uma manifestação que contou com a presença de 7.000 pessoas, na grande maioria
estudantes da UFRJ, UFF, UERJ, FEFIERJ430
e da própria PUC.
Mesmo com a nota da Secretaria de Segurança informando que a concentração seria
proibida e reprimida, mesmo que se limitasse ao campus431
, o ato público aconteceu, mas sob
extrema vigilância da polícia. Dentre os diversos discursos, ganhou destaque o de Iramaia
Queiroz, cujos filhos Cid e César Benjamim estavam no exílio, que clamava pela anistia. Em
outro discurso inflamado, o vereador José Frejat, ex-presidente da UNE na década de 1940,
comentou: “Quão paradoxal a fraqueza deste regime, que tem em suas mãos toda a força e
todas as leis de exceção, e treme da cabeça aos pés com uma manifestação de estudantes
descomprometidos.”432
A assembleia que se seguiu ao ato levou os estudantes a debateram por quase uma
hora as palavras de ordem que seriam colocadas na carta aberta à população. “Pelas liberdades
democráticas” ou “pela liberdade de expressão e organização de todos os setores explorados
429
Ver foto (Anexo X). 430
Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro, transformada em 1979 na UNIRIO. 431
Falcão aponta subversão nas manifestações estudantis. Jornal do Brasil, 10 maio 1977, 1º Caderno. 432
Reunião universitária leva 7 mil à PUC. Jornal do Brasil, 11 maio 1977, 1º Caderno, p. 13.
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da população”. Sem dúvida, elas expressavam a linha política de duas das principais correntes
do ME na PUC: a “Viração” (nome da tendência da APML no Rio) e a “Alternativa” (de
maioria da POLOP).
Houve consenso e a decisão foi unir as duas palavras de ordem numa só. Os esforços
empregados em prol da luta contra o regime até aquele momento passavam por resoluções
que priorizassem uma agenda comum, com o intuito de fortalecer a oposição ao governo.
Obviamente, houve reação dos militares a esses atos. O Serviço Nacional de
Informação (SNI) afirmou, no seu primeiro relatório do mês de maio:
“Os dados disponíveis indicam que os ativistas no meio estudantil,
orientados e apoiados por comunistas e radicais do partido oposicionista,
continuarão pressionando os estudantes no sentido da realização de atos
públicos contra a ditadura e em favor da anistia geral e liberdades dos presos
políticos. (...) para impedir que essas concentrações evoluam para níveis
indesejáveis, ensejando, inclusive, o surgimento de mártires, torna-se
importante a neutralização dos líderes e das minorias organizadas e o
esclarecimento da opinião pública.”433
Frente aos primeiros grandes protestos, o ministro da Justiça Armando Falcão, a
pedido do presidente Geisel, fez circular uma nota para todos os governadores:
“A continuidade do intenso e coordenado esforço da Nação, inspirado nos
princípios da Revolução de Março, exige paz e estabilidade, que não se
admitirá romper pela ação extremista de quem procure prejudicar a atividade
dos cidadãos voltados para o trabalho pacífico e construtivo. (...) Passeatas,
concentrações de protestos em logradouros públicos, assim como outras
demonstrações contestatórias, são distúrbios de fundo e fim subversivos, não
podendo em consequência ser tolerados.”434
Já o ministro da Educação abordou em sua nota que essas manifestações vinham de
uma “inexpressiva minoria de estudantes, sem compromissos com interesses maiores da
nação, estranhos à universidade”, que pretendiam “perturbar a tranquilidade interna”435
. Essa
também era a opinião do deputado arenista Francelino Pereira, que declarava acreditar em
“infiltrações de pessoas estranhas aos interesses dos estudantes”.436
433
SNI. Apreciação Sumária n. 17, de 11.05.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e
repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 104). 434
Falcão aponta subversão nas manifestações estudantis. Jornal do Brasil, 10 maio 1977, 1º Caderno. 435
Ibidem. 436
Ibidem.
145
Apesar das preocupações e ameaças dos militares, o ressurgimento do ME ocorreu em
novos moldes e em situação bem diversa da que caracterizou a movimentação de massa do
ano de 1968: não havia grandes líderes, não houve enfrentamentos nem uso de armas e a
plataforma de luta era bem ampla, ou seja, não restrita ao ME. O que se exigia era o fim do
regime.
A união dos estudantes se reforçava a cada passo em diferentes Estados. A ideia de
fazer um dia nacional de lutas437
, segundo a revista Veja, partiu dos estudantes gaúchos438
.
Depois de várias assembleias regionais, e tendo como base São Paulo e Rio de Janeiro, que
proporcionavam os encontros com representantes de todo país, foi marcado o dia 19 de maio
para o protesto.
Renato Cancian mostra que o relatório do SNI referente ao período de 9 a 15 de maio
versava sobre as preparações do Dia Nacional de Luta, e os comentários eram os seguintes:
“O acompanhamento das atividades do ME em cada uma dessas cidades
[Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador] indica
que há divergência não só quanto aos eventos previstos (...). A par da intensa
distribuição de panfletos convocando os estudantes e o público em geral para
o ato público, há um esforço evidente no sentido de envolver os
trabalhadores nas atividades programadas, todas elas de cunho
essencialmente político. Vale assinalar que as investidas feitas até agora não
surtiram o efeito desejado, pois a área trabalhista, como aconteceu em outras
oportunidades, se mostra arredia aos apelos recebidos. De qualquer forma, os
líderes universitários prosseguem no seu intento (...). No seu trabalho de
proselitismo, exploram fatores de ordem econômica e social, emprestando
particular ênfase ao aumento do custo de vida e às perspectivas de
desemprego.”439
Mas no dia 19 de maio não ocorreram pequenos agrupamentos. O local previamente
escolhido, o Largo de São Francisco, foi alterado por causa do forte esquema policial. Mesmo
assim, reuniu quase 2.000 pessoas que acabaram enfrentando um grande esquema policial
armado. Mas o grosso da manifestação, com cerca de 8.000 pessoas, ocorreu diante da
437
Pelas informações, o nome nos Estados variou, mas em geral foi “dia nacional de luta pela anistia e liberdades
democráticas”. 438
Estudantes: os riscos da escalada. Veja, 18 maio 1977, p. 27. 439
SNI. Apreciação Sumária n. 18, de 18.05.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e
repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 107).
146
Faculdade de Medicina, num ato que aglutinou boa parte das esquerdas e movimentos440
que
lutavam pelo fim da ditadura.
Na pauta havia inúmeras palavras de ordem e moções de apoio lidas durante meia
hora, o que assinalava o aumento da lista de aderentes ao movimento, conforme ressaltou o
jornal O Estado de S. Paulo. Além da leitura da carta produzida pelo Movimento 1º de Maio,
também foi lido o Manifesto Paulista de Luta pela Anistia:
“Há duas semanas, exigimos nas ruas a libertação de nossos oito
companheiros presos operários e estudantes... Numa só frase a resposta do
regime militar foi garantir os interesses dos que exploram os trabalhadores
(...). Hoje denunciamos a violência do regime militar. Hoje não nos calamos
e não nos calaremos perante uma realidade injusta que precisa ser
transformada.”441
(grifei)
As passeatas em diferentes pontos do país se seguiram em vários momentos do ano de
1977, acompanhando a agenda do movimento. No final do mês de maio deu-se o acirramento
das disputas internas no ME da USP, por ocasião da eleição do DCE. Dessa vez 16.000
alunos442
votaram e reelegeram a chapa “Refazendo”, entre as cinco concorrentes no pleito. O
aumento considerável de votantes, comparado com a primeira eleição, pode ser explicado
como resultado da intensa mobilização feita pelo ME nos primeiros meses de 1977, mas
também, pode ter sido fruto da ampliação da luta contra a ditadura por parte de diferentes
setores de oposição, ou ainda porque a organização do DCE como forma de representação dos
alunos foi considerada importante e aprovada pelos universitários.
Retornando ao Dia Nacional de Luta, cabe esclarecer que os desdobramentos mais
sérios foram sentidos em Brasília. O reitor da UnB José Carlos de Azevedo443
puniu 16
estudantes por participarem das manifestações e, segundo a revista IstoÉ, essas foram as
únicas punições do gênero ocorridas em todo país444
. Como consequência, os universitários
440
“Representações das oposições sindicais dos metalúrgicos, bancários e gráficos, das pastorais da Igreja, do
Movimento Feminino pela Anistia, do MDB, estudantes de cursinhos e secundaristas, de estagiários em órgãos
públicos, de professores secundaristas e universitários, de funcionários do Hospital das Clínicas, de médicos
residentes, de mães de alunos, da Associação Livre dos Psicoterapeutas de SP e até da Academia de Capoeira
Capitães da Areia juntaram-se aos universitários da USP e PUC e de mais duas dezenas de escolas particulares.
A cada ato, os protestos são mais veementes.” (O Estado de São Paulo, 20 maio 1977, p. 14). 441
O Estado de São Paulo, 20 maio 1977, p. 14. 442
Os frutos da omissão. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 11. 443
O reitor era doutor em Física e capitão de mar-e-guerra, como frisavam as reportagens da época. 444
Estudantes: em Brasília, um reitor sai em liça. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 10.
147
entraram em greve a partir de 31 de maio. Os policiais (depois de quase nove anos)
retornaram à universidade. O ato teve repercussão nacional e provocou discussões no
Senado.445
A situação na UnB foi se agravando. Com a visita da primeira-dama norte-americana
Rosalynn Carter a Brasília, os estudantes deliberaram escrever uma carta, que foi entregue a
ela, denunciando a situação vivida no Brasil, e clamando por direitos humanos. Sem dúvida, o
ato teve repercussão e o governo tratou de abafar o episódio, dizendo que a CIA (Agência
Central de Inteligência) e a embaixada norte-americana estariam envolvidas no caso, como
uma forma também de esvaziar o movimento.446
A situação da UnB contribuía para acirrar os ânimos no cenário nacional. Após a
tentativa frustrada de realizar o III ENE em Belo Horizonte, como veremos adiante, o ME
realizou o II Dia Nacional de Luta; antes disso, já tinham sido implantados Comitês de 1º de
Maio por todo país.
A chamada do Comitê de São Paulo para uma passeata dizia:
“Dia 15 de junho às 17 horas vamos protestar. Protestar contra a falta de
liberdade, contra a repressão policial, contra a alta do custo de vida, contra
as más condições de ensino, contra as péssimas condições de vida e trabalho
em que se encontra a grande maioria da população.”447
As palavras de ordem também foram ressaltadas: “pela libertação imediata dos
estudantes e operários presos”; “pelo fim das torturas, prisões e perseguições políticas”; “pela
anistia ampla e irrestrita de todos os presos, cassados, banidos e exilados políticos”; “contra a
carestia”; “pelas liberdades democráticas”. As pautas, que extrapolavam as questões
estritamente estudantis, serviam para ampliar o número de aliados no combate ao regime.
445
Vale destacar a passagem do discurso do então senador e ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho:“Não
houve o que se poderia entender, estrito senso, de invasão, porque invasão pressupõe vencer uma resistência, é
uma violência. Houve uma presença prévia, que se antecipou à chegada dos estudantes. Essas pessoas
pretendiam dar cumprimento à ordem dos altos escalões da República, que era garantir o direito daqueles que
dissentiram da greve.” (Senador aponta plano de caráter nacional. Jornal do Brasil, 03 jun. 1977, p. 16). 446
Para maiores informações sobre o episódio da carta, consultar as reportagens: Crimmins desmente
envolvimento da CIA com a carta. Jornal do Brasil, 11 jun. 1977, 1º Caderno; Alunos assumem a autoria da
carta. O Estado de S. Paulo, 11 jun. 1977. 447
A toda população de São Paulo. Comitê 1º de Maio, de 08.06.1977 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 41).
148
A revista Veja descreveu com detalhes a movimentação na capital paulista, o que vale
a pena ser narrado, para se ter ideia da estruturação que vinha sendo empregada pelo
movimento. A passeata que estava marcada para acontecer na Praça Fernando Costa, horas
antes já contava com o policiamento de 2.000 homens dos 32.000 destacados para conter as
manifestações do dia na capital paulista.448
A capacidade de renovação do movimento era demonstrada nas ruas, e o
comportamento dos atores, ao se colocarem de frente para o regime, também se modificara,
porque estavam orientados por uma nova cultura política, que se caracterizava pela defesa dos
princípios democráticos, e não mais pelo ideal de revolução que orientou grande parte da
atuação dos jovens estudantes entre meados da década de 1960 até a de 1970.
O início do segundo semestre de 1977 continuou agitado e houve dificuldade para
organizar a reunião da SBPC em julho. A primeira ideia era que o encontro anual fosse
realizado em Fortaleza, mas, dessa vez, a Sociedade não obteve recursos do governo como
acontecia anteriormente, e esse novo dado dificultou o deslocamento para o Nordeste.
Procurada a USP, que também declarou não ter condições de poder receber a reunião
científica, o problema se resolveu com a decisão do cardeal de São Paulo Dom Paulo Evaristo
Arns, de oferecer a sede da PUC-SP para a realização do evento, que ocorreu entre 6 e 13 de
julho.
O governo passou a culpar as lideranças estudantis por terem ajudado a realizar a
reunião anual449
. Um relatório do SNI fez um balanço da atividade:
448
“Às 17h10, todavia, para espanto das autoridades policiais, um grupo de cinquenta estudantes juntou-se na
esquina das ruas 25 de março e General Carneiro e entoou o primeiro refrão: liberdade! liberdade – que serviria
de senha para o início da manifestação. Imediatamente para ali correram estudantes até então camuflados nas
filas de ônibus ou misturados aos populares que acompanhavam a animada exibição da banda de música (...)
Saudada por chuvas de papel picado (...) a passeata avançou (...) gritando palavras de ordem contra a carestia e
a repressão, cantando o Hino Nacional e o Hino da Independência e atirando ao chão vidros de amoníaco, um
dos raros antídotos para o gás lacrimogêneo.” (As incertezas da trégua. Veja, 22 jun. 1977, p. 23). 449
CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino
de uma geração de estudantes, cit., p. 129-130.
149
“(...) as reuniões anuais dessa entidade têm-se caracterizado, ultimamente,
pela exploração de assuntos de cunho político-ideológico e de nítida
contestação ao Governo e à Revolução (...). Ademais, os dados disponíveis
indicam que as lideranças universitárias de esquerda pretendiam valer-se da
reunião em Fortaleza para o prosseguimento da agitação estudantil.”450
Como já foi dito, a SBPC foi um importante canal de articulação da resistência à
ditadura. Isso explica a especial preocupação dos militares com os encontros anuais da
entidade.
Mas o foco principal de preocupação continuava voltado para a situação da UnB, onde
a greve perdurava. Mesmo com o recesso escolar de 32 dias imposto pela Reitoria, a
mobilização dos estudantes continuava. Nesse meio tempo, o reitor Azevedo instalou uma
comissão de inquérito na universidade e, com base no relatório elaborado por essa comissão,
decidiu expulsar 30 alunos e suspender outros 34, por períodos que variavam entre 5 e 90
dias.451
As punições foram motivo de reunião no Palácio do Planalto entre o presidente Geisel
e o ministro Ney Braga452
. Como saldo da reunião, o presidente ordenou a ocupação da
universidade pelas forças militares, para “garantir a presença em sala de aula dos estudantes
que não se solidarizavam com a greve”453
. Resultado: no dia 25 de julho, data marcada para o
reinício das aulas, 151 pessoas foram detidas na universidade, acusadas de “organizar, apoiar
ou aplaudir a realização de uma passeata no campus”.454
Cabe ressaltar que não encontrei outras menções ao caso da UnB, salvo uma
reportagem do Jornal do Brasil de setembro daquele ano, assinalando que as forças policiais
continuavam atuando no campus, sem uma previsão de lá saírem.455
450
SNI. Apreciação Sumária n. 23, de 22.06.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e
repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 130). O
relatório ainda afirma: “Não poucos acusam o Governo Federal de criar, propositadamente, obstáculos
intransponíveis à realização do evento, pela preocupação de que a reunião da SBPC em Fortaleza/CE viesse a
repetir, em seus aspectos contestatórios, o happening de Brasília em 1976. Nesse ano, a Assembleia Geral da
SBPC aprovou, por aclamação, moções de caráter político, entre elas a proposta da Associação Nacional dos
Cientistas Sociais, reivindicando a reintegração dos professores afastados das universidades por motivos
políticos, a anistia aos presos políticos e a anulação do Dec.-Lei 477/69.” 451
Estudantes: fim de férias. Veja, 27 jul. 1977, p. 27. 452
Geisel recebe Ney Braga durante uma hora e examina punições aplicadas na UnB. Jornal do Brasil, 20 jul.
1977, 1º Caderno. 453
Tropas ocuparão campus da UnB. O Estado de S. Paulo, 21 jul. 1977. 454
Polícia detém 151 no campus da UnB. Jornal do Brasil, 26 jul. 1977. 455
Movimento estudantil recua em busca da organização. Jornal do Brasil, 11 set. 1977, p. 20.
150
Moções de apoio, greves e reuniões começaram a florescer por todo país em prol dos
colegas da UnB. E ainda no mês de agosto, mais dois acontecimentos colaboraram para a
ebulição da movimentação estudantil: a prisão de 19 militantes do MEP no Rio de Janeiro e a
publicação da “Carta aos brasileiros”, redigida pelo jurista Gofredo da Silva Telles Júnior.456
Para organizar o movimento contra as detenções, uma comissão executiva de DCEs
(compreendendo representantes da USP, PUC-SP, UFSCAR, UnB, UFRGS, PUC-RS, PUC-
MG, UEL, UFBA e UFF) reuniu-se em São Paulo, definindo a data do dia 23 de agosto para o
III Dia Nacional de Luta, e estratégias foram propostas para os rumos a serem tomados pelo
movimento, principalmente no que concernia à realização do III ENE, previsto para 21 de
setembro.457
Conforme previsto, no dia 23 de agosto, manifestações ocorreram em boa parte do
país, ocasionando choques com a polícia em Porto Alegre e Campinas. Em Curitiba, Recife,
Rio de Janeiro, Brasília, São Carlos e Londrina os estudantes se reuniram nos campus. Na
Bahia, cerca de 3.000 estudantes puderam realizar seus protestos sem a interferência da
polícia militar458
. Mas foi em São Paulo que aconteceu, mais uma vez, o grande ato. Geraldo
Siqueira lembra que nesse dia os estudantes chegaram ao “máximo da tecnologia” de
estruturação.459
As novas “técnicas” empregadas na realização das passeatas, o “caráter pacífico” e o
uso de símbolos nacionais demonstravam a maturidade do movimento na luta pela derrubada
456
Marcos Napolitano faz uma boa análise da Carta e sua repercussão. Parte do pressuposto que ela
sistematizava uma leitura liberal da “questão democrática” (desmontando as representações que fundaram o
golpe de 64 e o regime militar), esboçando uma divisão no campo da oposição entre “liberais” e “esquerdistas”
(Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 48-52). 457
Estudantes fixam novo Dia Nacional de Luta. Folha de S. Paulo, 16 ago. 1977, p. 19 (CANCIAN, Renato,
Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de
estudantes, cit., p. 137). 458
As maiores manifestações de rua, desde 68. O Estado de S. Paulo, 24 ago. 1977, p. 3. 459
É o próprio Geraldo que narra como foi a manifestação dos estudantes paulistanos: “Marcamos no Largo do
Paiçandu, sabíamos que ia ser reprimida. No dia, a tropa de choque ocupou tudo lá. Mas combinamos cinco
pontos alternativos da cidade, de onde sairiam cinco passeatas meia hora antes em direção ao Largo do
Paiçandu. De fato, sabíamos que não seria possível chegar lá. Marcamos um horário e, antes de chegar,
daríamos um grito e iniciaríamos uma passeata na direção contrária ao Largo. E deu tudo certo. Havia tropas
espalhadas pela cidade inteira. Fizemos um esquema de telefones, para os quais ligávamos para perguntar qual
esquina estava vazia; aí dispersávamos e nos reagrupávamos. Isso durou das cinco da tarde às dez da noite. A
gente juntava e se dispersava. Pipocou tanta manifestação no centro que tinha viatura se batendo no meio da
[avenida] Ipiranga. Dez horas da noite fomos para O Gato Que Ri tomar um chope no meio da tropa.
Brindamos e fomos para a Casa do Politécnico e assistimos à tropa inteira voltando exausta para o quartel.”
(Depoimento de Geraldo Siqueira à autora para o Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em
01.12.2004).
151
da ditadura. Partindo da autocrítica e das mudanças de tática em relação aos anos anteriores,
os estudantes em 1977 tinham em mente que a luta só poderia ser efetivada se conquistasse
um apoio popular amplo, na oposição uníssona460
de “combate ao regime”.
A Grande Imprensa comentou que as manifestações do segundo semestre acabaram
por mobilizar “um número de militantes” muito inferior ao das passeatas do semestre anterior
e, partindo desse ponto, passaram a indagar se o ME estaria vivendo um refluxo.461
Além da imprensa, os próprios estudantes sentiam um “refluxo” do movimento, em
comparação ao agitado semestre anterior. Um documento de uma tendência política trazia
uma crítica interessante ao momento, bem como uma justificativa para a imediata criação da
UEE:
“As mobilizações desse ano foram possíveis graças ao acúmulo de forças
anterior, no processo de reorganização estudantil no país (...). Mas o
acúmulo das questões e tarefas colocadas pelo ME levaram a um
esgotamento rápido de nossas forças, o que comprometeu nosso crescimento
sólido, na medida que não conseguimos consolidar os avanços dados,
aumentar a organização, conscientizar a massa das vitórias que o movimento
obteve, para se comprometer mais e mais com o próprio.”462
O alargamento do movimento, que se expandia em todo território nacional,
demandava uma maior estruturação. Nessa conjuntura, o movimento apostava na
reorganização das suas entidades gerais: as UEEs e, posteriormente, a UNE.
O congresso de refundação da UEE/SP, realizado em setembro, foi um marco
simbólico, pois a conjuntura das passeatas, a preparação do III ENE e as discussões internas
acabaram postergando para o ano seguinte a eleição da primeira diretoria da UEE/SP, como
veremos adiante.
Cabe ressaltar que ainda no mês de setembro ocorreu a eleição do DCE da UFMG463
e
a mobilização para o III ENE, como ainda mostrarei neste capítulo, que finalmente foi
460
Somente para ressaltar que quando falo em oposição uníssona, levo em conta as diferentes formas de ação e
reflexão das correntes, mas que de toda maneira convergiam na questão do término da ditadura. 461
Universidade: o “3º estágio”. Veja, 24 ago. 1977, p. 24. 462
A reconstrução da União Estadual de Estudantes de São Paulo. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 37). 463
Movimento estudantil recua em busca da organização. Jornal do Brasil, 11 set. 1977, p. 20.
152
realizado na PUC-SP, apesar da violência da invasão policial, o que certamente explica a
leitura de um “refluxo” do movimento.
Sem dúvida, as passeatas que ocorreram no primeiro semestre de 1977 deram uma
visibilidade para o ME em todo país e possibilitaram a sua estruturação em nível nacional.
Mas no segundo semestre, era premente a necessidade de organizar as entidades, para que
fossem criados “mecanismos fortes” de representação. No período, esse seria o centro das
atenções do movimento, que também passou a atuar em conjunto com outras frentes de luta
pela democracia.
O saldo das passeatas de 1977 também foi avaliado pelos estudantes. O jornal Cobra
de Vidro, das Faculdades Isoladas de São Paulo, fez uma análise nesse sentido. Segundo a
avaliação do periódico, as palavras de ordem que vinham sendo empregadas pelo movimento,
como “liberdades democráticas”, “anistia”, “contra carestia” e “abaixo repressão”
encontravam “ressonância” junto à população. E acrescenta que a estratégia de usá-las evitava
“o isolamento em relação ao restante da oposição popular e democrática, impedindo que o
movimento [ficasse] sozinho na frente da luta e afastado do resto do povo”.464
Como procurei mostrar, a volta às ruas não foi algo que aconteceu “da noite para o
dia”, tampouco a mudança de pautas, antes restritas ao âmbito educacional e, posteriormente,
ampliadas para os problemas da conjuntura política relacionada à abertura democrática. Essa
caminhada cheia de percalços, que permitiu o repensar das ações, não impediu que o ME
figurasse como o primeiro ator político a retornar às ruas, junto com outros movimentos
sociais que dele se diferenciavam por terem se formado no bojo da conjuntura dos anos finais
da ditadura e, portanto, sem a experiência de lutas anteriores, como era o caso do ME.
Além da importância da volta do ME às ruas, o protesto estudantil foi também
relevante por ter permitido que a questão democrática fosse enunciada sem meias palavras,
em plena rua, potencializando os debates e as expectativas da sociedade em torno da abertura
do regime, como afirma Marcos Napolitano.465
464
Cobra de Vidro: jornal de alunos das escolas isoladas [FGV, FAAP, e outras]. Edição especial, 1977, p. 7
(Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 40). 465
NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 40.
153
As passeatas e demais manifestações dos estudantes durante o ano de 1977 tiveram
ampla divulgação da imprensa, o que foi positivo para a repercussão dos atos junto à
sociedade em geral. No entanto, a Grande Imprensa geralmente não tratava a questão de uma
maneira “favorável”, como veremos a seguir.
3.2 O olhar da Grande Imprensa sobre as movimentações estudantis
Renato Cancian, com base em reportagens e editorais feitos pelos jornais de grande
circulação466
, mostra que esses órgãos tiveram maior interesse em formular críticas aos rumos
do ME universitário, deixando de lado qualquer preocupação com a dinâmica interna do
movimento467
. O sociólogo indica que essa situação foi gerada por uma falta de definições
programáticas pelo movimento, uma vez que naquele momento, na maioria das universidades,
as tendências estudantis se encontravam ainda em processo de constituição.468
Já Marcos Napolitano apresenta outra interpretação. Retomando a análise de Celina
Duarte sobre o papel da imprensa na abertura469
, o historiador evidencia que a imprensa,
como expoente da crítica liberal470
, servia de elo para uma transação negociada da abertura
entre governo e oposições liberais. Destarte, no que se refere ao ME, Napolitano mostra que a
memória construída sobre 1968 por autoridades e pela imprensa mais conservadora foi
466
O sociólogo analisou textos dos seguintes periódicos: O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal da
Tarde, Jornal do Brasil e Veja (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público
na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 119-127). 467
CANCIAN, Renato, op. cit., p. 125. Sobre o semanário Veja, comenta: “Também chama a atenção para o fato
de que as rivalidades políticas entre as tendências estudantis se traduziam em divergências meramente
semânticas. Como exemplo, longas discussões em torno da adoção de palavras de ordem: abaixo a ditadura ou
pelas liberdades democráticas? Ou ainda, liberdades políticas ou liberdades democráticas? (Estudantes.
Longe da trégua. Veja, 01 jun. 1977, p. 23). Com relação a essa última questão, entretanto, é possível afirmar
que os artigos publicados por Veja são extremamente simplistas porque chegam a anular quase que por
completo as distinções políticas que existiam entre as tendências estudantis.” 468
CANCIAN, Renato, op. cit., p. 127. 469
“1. Legitimação do projeto de abertura; 2. Arena privilegiada do debate do mecanismo de articulação política;
3. Instrumento para reverter as expectativas da opinião pública; 4. Canal de feed-back para o governo; 5.
Instrumento neutralizador das pressões da „linha dura‟ militar.” (DUARTE, Celina Rabelo, Imprensa e
redemocratização no Brasil: um estudo das conjunturas 1945 e 1974-1978, apud NAPOLITANO, Marcos,
Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 153-154). 470
“A grande imprensa (...) foi um dos polos mais importantes na elaboração da questão democrática,
enfatizando, sobretudo a volta ao „Estado de Direito‟.” (NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil
contemporâneo (1977-1984), cit., p. 24).
154
utilizada para desqualificar o estudante de 1977, “ao caracterizá-lo pelo que ele não era”471
,
sem levar em conta as mudanças efetivas que aconteceram no movimento, sobretudo no que
se refere à adoção de uma nova cultura política, a democrática.
Sem aprofundar o papel da imprensa na transição democrática, estudo já realizado por
outros pesquisadores472
, e cuja questão não é o foco deste trabalho, não posso deixar de fazer
referência ao papel da imprensa na abertura política. Mesmo porque a imprensa, também
concebida como agente da história que ela registra e comenta, serve como um instrumento de
manipulação de interesses, como afirmou a historiadora Maria Helena Capelato.473
Cabe ressaltar que, de maneira geral, a Grande Imprensa era identificada com uma
ideologia e prática política liberal. É claro que os diferentes periódicos aqui citados
apresentavam distintos laços com as ideias liberais: alguns mais conservadores, outros menos,
mas sem colocar em cheque seu posicionamento: o retorno ao “Estado de Direito”, como
observam Carlos Guilherme Mota e Maria Helena Capelato.474
Nesse sentido, através das inúmeras matérias realizadas pelos periódicos de grande
circulação da época, podemos entender que a grande cobertura feita das passeatas e rumos do
ME tinha um sentido muito maior de pressão sobre o regime que propriamente de evidenciar
o ressurgimento do movimento.
471
Para melhor compreender a afirmação do historiador, vale transcrever um trecho do seu texto: “Numa longa
matéria publicada pelo jornal OESP, 21.05.77, o articulista Marçal Versiani, escreveu que o estudante de 1977
é reflexo da „anomia da sociedade civil‟, não sendo portador de ideias, valores e normas de vida. E completou:
„Sabe apenas exprimir-se contra – a negação requer menos saber lógico e menos estrutura mental que a
afirmação – nem por isso imune à doutrina marxista‟. Para ele, as manifestações de 1977 expressavam uma
„reação multidirecional de grupos em frustração; não há convergência que se notava em 1968 e por isso não
formaram lideranças‟. Depois de discorrer longamente sobre as „incapacidades‟ do ME de 77, concluiu que até
as palavras de ordem decaíram, sendo de „domínio público‟ e de „trânsito mais fácil‟ (...).” (NAPOLITANO,
Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 41-42). 472
Para conhecer mais sobre o papel da Grande Imprensa na época, ver: AQUINO, Maria Aparecida de.
Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência: O
Estado de S. Paulo e movimento, cit.; NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo
(1977-1984), cit.; DUARTE, Selma Martins. Isto É: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira
(1976-1981). Dissertação (Mestrado) − Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS,
2007. 473
CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Brasiliense,
1989. p. 12. 474
Os historiadores afirmam a questão, quando analisam a história da Folha de S. Paulo, mas esse
posicionamento, em linhas gerais, pode ser empregado para boa parte da Grande Imprensa liberal, que já fazia
oposição à ditadura (MOTA, Carlos Gilherme; CAPELATO, Maria Helena. História da Folha de S. Paulo
(1921-1981). São Paulo: Impres, 1981. p. 238).
155
Destaque para as matérias da revista IstoÉ475
, que procuravam mostrar um ME
“diferente” do ME de 1968. Justamente a nova cultura política que passou a orientar o ME é
evidenciada nas páginas da revista, geralmente nas reportagens escritas pelo jornalista
Nirlando Beirão que, ao longo do ano de 1977 publicou 19 matérias476
sobre o movimento.
Em 11 de maio, o título da reportagem já demonstrava sua opinião: “Estudantes 77: a idade do
equilíbrio”. Um excerto diz:
“Mas as semelhanças [com o movimento de 68] parecem ficar na superfície.
Os estudantes de 77 demonstraram, até agora, que as tristes lições de seus
antecessores pré-ato AI-5 foram apreendidas. Ainda que sobrevivam
divisões entre lideranças de tendências diversas, ou interpretações
divergentes sobre o papel do movimento estudantil na sociedade, não parece
haver um único grupo entre elas disposto a assumir o risco de um
vanguardismo que, em 68/69, foi fatal.”477
No entanto, a partir das movimentações estudantis contra o regime, a Grande
Imprensa, em geral, passou a acusar o ME de realizar uma conspiração mais ampla,
comunista. Uma reportagem de IstoÉ frisava que “antes de serem obra da conspiração
internacional ou de minorias organizadas, [as manifestações] são o fruto da omissão do
regime”478
. Na mesma revista, ainda se afirmava que as manifestações estudantis poderiam
“pesar nas discussões que se processam nas alturas em torno da sucessão presidencial”479
. No
entanto, apesar das críticas, não se pode deixar de mencionar o fato de que a revista, no
conjunto das publicações de grande circulação da época, era a que mais divulgava os projetos
de redemocratização propostos pelas esquerdas que assumiram a bandeira das liberdades
475
Revista de circulação nacional editada em São Paulo pela Encontro Editorial Ltda., a partir de maio de 1976.
No contexto do governo Geisel, IstoÉ procurou ocupar os espaços disponíveis para a crítica política. Desdea
sua origem, a revista distinguiu-se por apresentar um amplo e prestigiado corpo de colaboradores, modificado e
ampliado com o decorrer dos anos, mas contando sempre com personalidades da área acadêmica e do
jornalismo brasileiros. O posicionamento contrário ao regime vigente era frequentemente explicitado pela
revista, ainda que de forma sutil. Mas foi só com sua reestruturação, em março de 1977, passando a ser
semanal, que foram introduzidas alterações também na própria disposição política da revista, que passou a
apresentar uma postura mais claramente antigovernista. Em sua nova fase, ampliou-se de modo significativo o
próprio espaço destinado aos temas políticos, que ocupavam agora, na grande maioria das vezes, a própria capa
da revista. Foram definidas, então, três editorias fixas: política, cultura e economia; a primeira delas, sempre
maior que as outras duas, era invariavelmente apresentada por Mino Carta (COUTO, André. IstoÉ. In:
ABREU, Alzira Alves de et al. (Coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro:
FGV/CPDOC, 2001). 476
DUARTE, Selma Martins, IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira (1976-1981),
cit., p. 96. 477
Estudantes 77: a idade do equilíbrio. IstoÉ, 11 maio 1977, p. 11. 478
Os frutos da omissão. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 14. 479
Em Brasília, um reitor sai em liça. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 14.
156
democráticas. E, nesse sentido, ela se distinguia das demais, que se identificavam com as
oposições liberais.480
Na maior parte das matérias escritas em diferentes jornais (O Estado de S. Paulo,
Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Globo), nota-se a desqualificação do
ME porque, na minha interpretação, o identificavam com as esquerdas.
Na tensa luta pelo retorno ao Estado democrático no país, a Grande Imprensa escrita
(diferentemente do rádio e da televisão, que ainda estavam censurados e, por isso, proibidos
de veicular qualquer matéria sobre as manifestações estudantis) difundiu amplamente e com
detalhes todas as greves e manifestações ocorridas durante o ano, demonstrando discordância
da ideologia que orientava as manifestações estudantis.
Um excerto do editorial da O Estado de S. Paulo mostra bem o posicionamento crítico
do jornal: “O movimento estudantil reorganizou-se (...). Negar que haja presença extremista
na movimentação seria tolice. O grave, porém, é que se tenha criado condições para essa
movimentação.”481
Nesse caso, evidencia os motivos da agitação estudantil, mas, por outro lado, de
combate a linha por eles proposta. O Jornal do Brasil, ao comentar a “Carta Aberta à
População”, que foi lida na manifestação de 5 de maio, afirmou:
“Salta aos olhos de qualquer leigo, na leitura do manifesto, um aspecto que
faz do documento uma espécie de apostila de agitação social. (...) O Brasil
não está em condições de absorver testes de alta-tensão subversiva como
esse, de comando oculto que utiliza os universitários de São Paulo e que tem
o objetivo de desencadear a solidariedade violenta em todo o país (...). Não
podem os estudantes se deixar levar como simples massa de manobra.”482
480
Para Selma Martins Duarte: “No contexto analisado, a revista não se caracteriza como um veículo de
comunicação de esquerda, mas sim com uma tendência de oposição política a alguns aspectos do regime
militar. Na análise dos editoriais e de suas matérias, percebe-se que há no conjunto uma crítica à lentidão no
processo de redemocratização, bem como uma preocupação em publicar matérias que tratassem da
rearticulação dos movimentos sociais.” (IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira
(1976-1981), cit., p. 106). 481
“Estudantes”. O Estado de S. Paulo, 07 maio 1977, p. 20 (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e
repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 121). 482
Carta aberta. Jornal do Brasil, 07 maio 1977, s/p. (CANCIAN, Renato, op. cit., p. 122).
157
Embora os estudantes tenham sido considerados “massa de manobra”, o que significa
uma desqualificação, a critica mais violenta recai sobre a representação estudantil.
Se de uma maneira geral os setores liberais da sociedade estavam engajados na defesa
(e no retorno) dos seus direitos, os princípios levantados pelo ME muitas vezes se chocavam
com aqueles, podendo ser observados como “insurgências”, em meio à ordem estabelecida.
Segundo Cancian, tanto o governo quanto a Grande Imprensa não atacavam as reivindicações
de cunho educacional realizadas pelos estudantes, mas se insurgiam contra suas ações de
denúncia da política geral do governo.
Através de outro excerto, pode-se observar como as ações realizadas pelo ME foram
marcadas pelo “uso político do passado”, explicitado neste texto publicado no Jornal da
Tarde:
“As autoridades governamentais deveriam refletir e agir, não no sentido de
criar a espiral de violência que houve em 68, quando uma parcela dessa
geração marginalizada entregou-se à sedução da solução de força e
desespero, que não conduziu a nada; mas deveriam agir, isto sim, no sentido
de criar as condições para que essa juventude não seja mais conquistada por
subversivos e para que tenha canais de manifestação dos seus anseios.”483
Além da desqualificação costumeira dos estudantes como massa de manobra, a
lembrança de 68 foi utilizada também para reforçar a ameaça constante que os representantes
da imprensa liberal de oposição fazia ao governo, ou seja, a continuidade da repressão
facilitaria a adesão dos estudantes à subversão, como ocorrera no passado, e a permanência do
regime aumentava esse risco. “Passado e futuro” eram invocados como instrumentos de luta
política desse setor da oposição liberal ao regime.
A revista Veja484
, que durante o ano de 1977 produziu mais de quinze matérias sobre o
ME, registrou em sua capa “a presença dos estudantes” em 11 de maio, relatando a passeata
483
Uma lição de maturidade dada pelos mais jovens. Jornal da Tarde, 09 maio 1977, p. 16 (CANCIAN, Renato,
Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de
estudantes, cit., p. 123). 484
Revista semanal lançada em São Paulo, em 11.09.1968, pela Editora Abril e dirigida por Victor Civita. Mino
Carta era seu diretor de redação. No início dos anos de 1970, Veja se revelou mais resistente ao regime. A
censura à Veja refletia a tensão existente entre o grupo mais próximo de Geisel, favorável ao relaxamento
progressivo das regras de exceção, e a chamada “linha dura”, que defendia a manutenção da censura à
imprensa como um dos instrumentos básicos de controle político. Assim, a revista noticiou a saída do general
Ednardo d‟Ávila Melo do comando do II Exército, em São Paulo, sem explicar a ligação desse afastamento
158
do Viaduto do Chá e seus desdobramentos. Além da capa, que trazia uma foto dos estudantes
no Largo de São Francisco empunhando a faixa “pelas liberdades democráticas” e “por anistia
ampla e geral”, destinou sete páginas para tratar do assunto. Em seu editorial, afirmou: “Há o
justo receio, porém, de que as manifestações estudantis possam evoluir para níveis
indesejáveis e de que o anseio dos universitários por mais participação na vida política tome
rumos errados.”485
A revista Veja noticiou uma pesquisa elaborada pelo Instituto Gallup sobre o perfil do
estudante brasileiro. Abrangendo seis capitais, numa amostra de 1.067 universitários (sem
defini-los por tipo de universidade, cursos que pudessem melhor embasar a pesquisa), a
pesquisa foi feita com base nas respostas de um questionário de quarenta perguntas
fundamentadas prioritariamente em três pontos: qualidade dos cursos, política e ME.
Algumas questões merecem destaque. No que se referia à qualidade dos cursos, a
pesquisa apontou que 60% dos pesquisados se declararam muito ou parcialmente satisfeitos
com o curso que estavam realizando. Tal constatação permitiu que os comentaristas da revista
apontassem uma contradição entre as respostas positivas e as causas das manifestações de
1977.
No que se refere à política, a reportagem ressaltou o desinteresse “extremamente
elevado” dos estudantes em relação aos dois partidos existentes, concluindo que a “opção
bipartidária, tal como existe, desagrada à maioria estudantil”486
. Já quando indagados sobre a
permanência do AI-5, a resposta era a seguinte: 9% dos entrevistados eram a favor da
permanência, contra 46%, que a considerava “prejudicial”.
Sobre o próprio movimento, 61% disseram achar benéficas as manifestações
estudantis, pois eram “uma forma de expressar críticas ou insatisfações”. Mas 78% afirmaram
com a morte sob tortura, nas dependências do DOI-CODI, do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975,
e do operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Esse enquadramento da ala mais dura das Forças
Armadas foi acompanhado, no caso de Veja, por uma pressão mais direta sobre a direção da revista e do Grupo
Abril, no sentido de um abandono da linha jornalística crítica e de uma aproximação com a orientação do
regime. A pressão culminou, em fevereiro de 1976, com a saída do jornalista Mino Carta da direção de
redação, por pressão direta do Ministério da Justiça (VELASQUES, Muza Clara Chaves; KUSHNIR, Beatriz.
Veja. In: ABREU, Alzira et al. (Coords.). Dicionário histórico biográfico brasileiro pós-1930. 2. ed. Rio de
Janeiro: FGV/CPDOC, 2001. v. 5, p. 6001-6005). 485
Carta ao leitor. Veja, 11 maio 1977, p. 19. 486
A questão estudantil. Veja, 23 nov. 1977, p. 118.
159
nunca terem participado de alguma passeata e 58% de alguma assembleia. Ainda a
amostragem aferiu que, quanto ao futuro, 55% dos estudantes afirmaram que continuariam a
não participar de passeatas e 41% de assembleias.
A pesquisa indicada por Veja torna-se elucidativa por mostrar que, num universo de
mais de um milhão de estudantes, as vozes que ecoavam com propostas de amplificação das
massas nos canais de decisão do país eram minoritárias, o que vinha ao encontro do desejo e
interesses dos grupos liberais, entre os quais se inseriam os representantes da revista Veja. A
maioria era contra o bipartidarismo, contra o AI-5, mas também era majoritária a intenção dos
entrevistados de continuar não participando das ações do ME.
No entanto, a pesquisa acabou mostrando, e a reportagem da revista admitiu, que as
manifestações públicas (22%) e assembleias (41%) indicavam o seguinte: o ME “não chega a
ser tão minoritário e isolado quanto se supõe até agora”. E, diante dos dados apresentados, a
reportagem concluiu que “pode se tornar mais difícil sustentar a ideia de que as
movimentações dos estudantes obedecem não a „impulsos de dentro‟, mas a „orquestrações de
fora‟”.487
A conclusão não deixava de ser um “aviso” aos dirigentes do país.
3.3 Os Encontros Nacionais de Estudantes (ENEs) e a reestruturação da
UNE
No bojo da reconstrução do DCE-Livre da USP, algumas tendências488
já apontavam
em suas cartas-programas a importância de apoiar a reconstrução da UNE e das UEEs. O
documento de uma tendência estudantil permite compreender o significado disso:
“As entidades são um importante canal que permite furar o bloqueio que a
censura e a repressão procuram impor à participação estudantil na vida
política. Proporcionando o debate aberto entre todas as opiniões, permitem a
construção de um pensamento crítico que se expressa na decisão da
maioria.”489
487
A questão estudantil. Veja, 23 nov. 1977, p. 122. 488
Notadamente “Libelu” e “Organizar a Luta”. 489
Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124).
160
É bem verdade que todas as tendências apoiavam a reconstrução das suas entidades de
representação. Mas elas discordavam da maneira e do tempo de maturação para trilhar esse
caminho. Para exemplificar, a “Caminhando”, num primeiro momento, não era a favor de um
encontro massivo, pois seus militantes acreditavam que o ME deveria adotar “esta forma
quando o aumento da participação o exigir”.490
Em 1976, quando os estudantes começaram a organizar os encontros nacionais de
estudantes (ENEs), com o objetivo de reconstruir a UNE e reorganizar o movimento em nível
nacional, para continuar o combate ao regime, o Ponto de Partida, jornal estudantil da UFF,
comentou que os ENEs constituíam-se no principal canal para a reorganização do movimento
de massas.491
Nesse contexto de pré-reorganização da UNE, os estudantes aproveitaram para
organizar o I Encontro Nacional de Estudantes. Nos arquivos pesquisados, não encontramos
documentos específicos sobre esse evento, apenas documentos posteriores se referiam à sua
realização em abril de 1976. Romagnoli e Gonçalves informam a participação de 600
universitários.492
Há discordâncias quanto à data e local da ocorrência do I ENE. Renato Cancian,
baseado em relatório do SNI, afirma que, em 3 de abril foi realizada, nas dependências da
Faculdade de Física da USP, a primeira “Reunião” Nacional dos Estudantes493
, apontando
uma distinção entre ela e os “Encontros”.
Segundo o relatório do SNI, nessa reunião, os estudantes aprovaram uma Semana de
Luta pelas Liberdades Democráticas494
entre 20 e 30 de abril, o que é confirmado por
Romagnoli e Gonçalves, que a ela se referem como o I ENE. Os autores frisam ainda que
490
Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124). 491
Ponto de Partida: jornal estudantil da UFF, n. 1 ano 1, n. 1, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia
Política. Notação 48. cx. n. 541, p. 377). 492
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 493
CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino
de uma geração de estudantes, cit., p. 83. 494
SNI. Apreciação Sumária, n. 16/76. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão
política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 83).
161
foram realizados debates sobre o assunto nos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul,
Bahia e São Paulo495
, nas datas previstas.
Baseado nos relatórios do DOPS, Cancian afirma que o I ENE ocorreu em 28 de
agosto daquele ano, na Faculdade de Engenharia da USP, Campus de São Carlos, quando, de
fato, a reunião de São Carlos foi a reunião preparatória para o II ENE, segundo consta na
convocação feita por uma tendência.496
É possível esclarecer a questão a partir de outro documento do DEOPS. Em um
extenso relatório que narra todos os passos para a realização do II Encontro, fica clara a
questão através do excerto:
“Os ENEs se dão da seguinte maneira: primeiro tem uma reunião
preparatória depois o encontro propriamente dito, assim é que em janeiro de
1976 houve em Campinas/SP a reunião preparatória para o I ENE que
ocorreu em abril de 1976 na FAU/USP; em 28 de agosto de 1976 houve em
São Carlos/SP a Reunião Nacional Preparatória do II ENE, e este II ENE
deve seguir rigorosamente o determinado por São Carlos, por exemplo, o
critério de votação que seria por entidades, onde estas teriam que selecionar
cinco delegados que teriam que ser tirados em assembleias abertas ou
plebiscitos ou por algo semelhante.”497
O jornal Ponto de Partida, em matéria publicada em outubro de 1976 sobre as
reuniões do ENE, confirma as datas indicadas no documento acima: em janeiro ocorreu em
Campinas a primeira reunião (preparatória), na qual “poucas entidades marcaram presença” e
a segunda ocorreu em São Carlos em 28 de agosto, quando “notou-se um avanço significativo
nesta nova forma de reorganização”.498
Nesse encontro de final de agosto começaram os preparativos para a realização do II
ENE em outubro. Houve divergência entre as tendências “Caminhando” e “Liberdade e Luta”
quanto ao encaminhamento a ser dado ao Encontro. Para a “Caminhando”, ele deveria realizar
um balanço das principais lutas políticas até então travadas, para uma avaliação do
495
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 496
O documento do grupo “Alternativa” fala expressamente da reunião preparatória de São Carlos, dizendo que
ela só teria sentido se “seu desfecho significar o encaminhamento da tarefa de formação da comissão
reorganizadora da UEE (CRs UEE) nos Estados (Convocação: II Encontro Nacional de Estudantes.
Alternativa/agosto 76 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124). 497
Relatório do II ENE, de 16 out.1976. DEOPS (APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48, p. 48). 498
Ponto de Partida: jornal estudantil da UFF, ano 1, n. 1, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política.
Notação 48. cx. n. 541, p. 377).
162
crescimento do movimento. Já a segunda tendência defendia a ideia de que o encontro deveria
fazer um levantamento dos problemas da universidade (como a questão da privatização e os
mecanismos de controle e punição utilizados contra os estudantes), bem como uma análise da
situação da liberdade de organização e expressão, com o objetivo de se começar a cogitar a
proposta de anistia.
Sobre as eleições municipais que se realizariam em novembro, acordou-se que seria
feito um comunicado único para todos os estudantes499
. A “Libelu” levantou dois pontos para
discussão no Encontro: 1) a realização de um plebiscito nacional, em 8 e 9 de novembro,
sobre as eleições, bem como uma resolução política pelo voto nulo; 2) proposta de formação
de uma Comissão Nacional Estudantil, composta por DCEs, cujas atribuições seriam
encaminhar as decisões do ENE e editar um boletim preparatório do próximo encontro, a ser
realizado em abril de 1977.500
O II ENE, então, aconteceu em 16 de outubro, nos barracões da USP. Reuniu 281
delegados e mais de 500 observadores de oito Estados brasileiros501
; segundo a Polícia
Política da época, havia 830 estudantes reunidos no anfiteatro das Ciências Sociais da USP502
.
Das temáticas que constavam na pauta, dentre elas, a reorganização do ME, somente a
questão das eleições municipais foi debatida. Foram apresentadas três propostas: voto na
legenda do MDB, voto em alguns candidatos do MDB e voto nulo, e a vencedora foi a
campanha pelo voto nulo.
Foi deliberada também a realização de um plebiscito nacional sobre as eleições, para
saber se os universitários a consideravam “livre ou não”503
. Um documento do ano
posterior504
indica que foi nomeada uma Comissão Executiva Nacional (composta pelos
DCEs da UFBA, USP, UFMG, UFRGS e UFF) que teria a tarefa de preparação do III ENE.
499
Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP. Livraria Palavra. cx. n. 124). 500
Liberdade e Luta intervém (10). São Paulo, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.
cx. n. 541, p. 112). 501
Compareceram representantes de 40 escolas dos Estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas
Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Distrito Federal (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES,
Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21). 502
Relatório do II ENE USP, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48. cx. n. 541, p.
327). 503
Estudante define posição quanto ao 15 de novembro. Folha de S. Paulo, 19 out. 1976. 504
Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).
163
É interessante mencionar uma reportagem sobre o evento feita pelo jornal Folha de S.
Paulo, que menciona que o voto nulo não agradou a numerosos participantes da reunião505
. O
comentário permite inferir que houve disputa de tendências quanto à decisão. Nesse
momento, o DCE da USP estava nas mãos da “Refazendo”, favorável ao voto em
determinados candidatos do MDB, como foi visto no capítulo anterior. A “Caminhando” era
favorável ao voto no MDB, entendido como voto-protesto. Já a “Libelu” e “Organizar a Luta”
eram favoráveis ao voto nulo. Cabe esclarecer que o PCB não se fez presente nos dois
primeiros ENEs, nem com estudantes observadores, como aponta Hamilton Lima.506
Conforme informou o jornal Cobra de Vidro, a plenária do encontro foi extremamente
polarizada: por um lado, pelos delegados dos DCEs de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
do Sul, e, por outro, devido a posições de pequenos grupos de representantes de diversos
Estados que defendiam o voto nulo, o que pesou na decisão final. Ainda segundo o jornal, o
critério de votação, que previa cinco delegados por cada faculdade, foi definido a partir de
reuniões abertas.507
A reportagem desse jornal fazia uma autocrítica das reuniões abertas que, via de regra,
contavam com escassa participação, dando a oportunidade de um peso “multiplicado” para as
“oposições”. No final, apresentava uma reflexão sobre os “caminhos abertos para essa
reconstrução”.508
Em relação às divergências entre as tendências, considero que, ainda que o foco
principal fosse a reestruturação das entidades representativas, essa batalha comum não
impedia que cada uma das tendências lutasse pela ampliação de suas bases e canais de
atuação.
No final do II ENE, foi redigido um documento no qual os estudantes explicavam as
razões do voto nulo, que foi publicado parcialmente no Jornal da Tarde.509
505
Estudante define posição quanto ao 15 de novembro. Folha de S. Paulo, 19 out. 1976. 506
“A escalada da reorganização nacional do setor não só não contaria com a liderança do partido (...) como
ainda teria sua adesão truncada por divergências internas. (...) Apenas no 3º ENE registra-se a primeira
participação partidária nesses eventos, assim mesmo de maneira informal (...).” (LIMA, Hamilton Garcia de, O
ocaso do comunismo democrático: o PCB na última ilegalidade, cit., p. 230). 507
Cobra de Vidro, nov. 1976, p. 3 (Arquivo: BDIC F delta 1120 (6)). 508
Ibidem. 509
Os estudantes explicam o seu voto nulo. Jornal da Tarde, de 19 out. 1976.
164
No excerto publicado, havia referência destacada à realização do plebiscito nacional.
Para essa atividade, o DCE da USP preparou uma edição especial de seu jornal, apresentando
as distintas posições que existiam na universidade510
. O plebiscito foi realizado entre 9 e 10 de
novembro e, segundo informe de Romagnoli e Gonçalves, 92% dos votantes responderam
negativamente à pergunta: “Você considera estas eleições livres?”511
A articulação dos estudantes não passou despercebida pelos militares. Foram
encontrados vários relatórios sobre esse Encontro, um deles realizado pelo Departamento
Geral de Investigações Especiais (DGIE) do Rio de Janeiro, que acompanhou os passos da
delegação carioca durante toda a viagem, descrevendo a atuação dos delegados participantes,
mencionando nomes e cursos que representavam.512
A articulação estudantil preocupava tanto os militares que o Serviço Nacional de
Informação (SNI) preparou um documento confidencial pedindo informações detalhadas
sobre o movimento. Interessante ressaltar a leitura realizada, que vem ao encontro da minha
tese: “O processo de reorganização do ME está inserido num outro mais global que é a
própria reorganização do movimento de massas; o ME desenvolve-se de forma mais bem
acentuada que os demais setores, guardando diferenças quanto à reorganização e
mobilização.”513
Os dados solicitados pelo SNI tinham como objetivos esclarecer a atuação e orientação
dos diferentes grupos, elencar os estudantes mais atuantes, as universidades e cursos com
maior índice de politização, o grau de aceitação que essas doutrinas tinham na massa de
estudantes e as perspectivas do ME para o ano de 1977. A solicitação finaliza com a seguinte
510
Eleições municipais. Jornal do DCE Alexandre V. Leme, nov. 1976 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 37). O jornal publicou textos das seguintes tendências: Libelu, Alternativa, grupo Mobilização,
Organizar a Luta e Caminhando. 511
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 512
Informação n. 4078/76-H - I Exército DGIE/SSP-RJ (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.
p. 31-32). Ainda se pode citar: Relatório do II ENE (16/10/76) DEOPS; Informação 4288/76 DGIE/SSP/RJ,
que traz o símbolo ASI/USP (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48. p. 37-49). 513
Pedido de busca n. 163/1997 ARJ/SNI, 01 dez. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.
cx. n. 541, p. 290-291). Ainda cabe destacar os outros dados do documento: “Os esquerdistas vem reencetando
o trabalho de rearticulação de suas atividades dentro do ME usando como fachada os DAs e DCEs; esta diretriz
teria sido decidida em 1968, após a queda do Comando Central dos Estudantes, organismo que controlava as
atividades da UNE, UBES e correlatas, todas extintas por força da lei; costumeiramente, o trabalho desses
grupos identifica-se com desígnios de organizações subversivas.”
165
observação: “Encarece-se urgência no atendimento do presente a fim de informar ao escalão
superior.”514
Os dois primeiros encontros realizados no ano de 1976 podem ser considerados como
o início do trabalho de reorganização da UNE. Essa ideia foi incentivada principalmente por
correntes trotskistas, como a “Libelu”. Também se pode notar que a participação dos
estudantes se deu num nível mais concentrado em São Paulo, onde o movimento se
desenvolvia mais rapidamente. Foi somente a partir do III ENE que esses encontros tomaram
uma dimensão nacional.
3.3.1 O III ENE
O III ENE conta com uma história bem conhecida e com um desfecho trágico. As três
tentativas feitas para a realização do encontro já foram alvo de um seminário515
, exposição516
,
inúmeros depoimentos517
, capítulos de livros518
, um projeto de pesquisa519
e mais
recentemente de uma tese520
. A grande maioria desses estudos coloca ênfase na repressão
organizada pelos militares, e bem menos no que estava em jogo no ME, naquela conjuntura
em que o III ENE ocorreu.
Como procurei mostrar no início deste capítulo, o ano de 1977 começou com uma
efervescência de manifestações estudantis que extrapolaram o campus universitário para
514
Pedido de busca n. 163/1997 ARJ/SNI, de 01.12.1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.
cx. n. 541, p. 290-291). 515
Seminário “Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos”, realizado pela Fundação Perseu Abramo na
PUC-SP, de 22 a 25 de setembro de 1997. 516
Exposição “Memória do Movimento Estudantil – 30 anos do III ENE”, realizada pelo Projeto República, na
Faculdade de Medicina da UFMG, em junho de 2007. 517
A página da Fundação Perseu Abramo apresenta um link especial com vários depoimentos sobre a invasão da
PUC (Disponível em: <http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/index.php?storytopic=856>. Acesso em:
29.11.2009. 518
Pelas liberdades democráticas: o movimento estudantil em 1977. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah
Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das
Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 141-208. 519
Desde 2005, a professora Eliana Maria de Melo e Souza, do curso de Ciências Socias da UNESP/Araraquara,
desenvolve um projeto de pesquisa financiado pela Fapesp chamado “Cultura e política: a geração dos anos 70
e depois”, baseado no episódio da invasão da PUC-SP. 520
CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino
de uma geração de estudantes, cit.
166
ganhar as ruas, primeiramente em São Paulo. Desencadeadas pela prisão de operários, as
passeatas se ampliaram, quando o governo decidiu fechar o Congresso Nacional, implantando
uma série de normativas que resultaram em outras manifestações, que se generalizaram em
todo país.
Retomando a análise da conjuntura feita pela “Refazendo”, pode-se dizer que “pela
primeira vez depois de 1968” era possível mencionar a “existência de um movimento no
plano nacional”. Mas a afirmativa vem acompanhada da distinção feita àquele período, em
relação ao anterior, “porque as reivindicações, as palavras-de-ordem, enfim o conteúdo das
nossas lutas [em 1977] teve como referência não apenas nossos interesses particulares (...)
mas sim o interesse de todo polo dominado da sociedade, no qual nos inseríamos”521
. Fica
claro que o ME em 1977 tinha ciência e fazia questão de mostrar sua distinção com relação ao
movimento do período anterior.
Esse também foi o ano em que, depois da estruturação do DCE da USP (e de outros
DCEs), foi organizada a retomada da UEE/SP, refundada em agosto daquele ano. O saldo
dessas mobilizações estava relacionado ao contorno nacional que o movimento ia tomando.
Nesse sentido, as discussões que as forças políticas travavam centravam-se no caráter da
reorganização do movimento em nível nacional.
Nas atividades preparatórias do III ENE, segundo documento da época522
, foi
realizada, em 17 de abril, uma reunião da Comissão Executiva Nacional (mencionada acima)
que não acatou a sugestão de incluir o DCE da PUC-SP, criado após o II ENE, bem como da
PUC-RJ, bastante fortalecido na ocasião. Também foi negada a proposta de realização do III
ENE em maio, visto que atrapalharia o processo de algumas eleições de DCEs (caso da
própria USP). Ainda segundo esse documento, os três DCEs presentes na reunião (USP,
UFMG e UFBA) acabaram decidindo que o III ENE seria realizado em junho, na UFMG.
Basicamente, as divergências entre as tendências podem ser agrupadas em dois polos
que se distinguiam, principalmente, quanto ao “tempo de maturação” para reorganização do
movimento em nível nacional. De um lado, respaldado pela “Refazendo” (visão também
compartilhada por “Caminhando”), esses militantes acreditavam que o ME estava dando um
521
Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 522
Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).
167
salto qualitativo com todas as ações desencadeadas em 1977, porém o processo de
organização das entidades de base (CAs, DCEs e UEEs) deveria ser fortalecido, sendo fator
fundamental para sua organização em nível nacional. O texto abaixo mostra bem a questão:
“Hoje, a situação diversificada dos diferentes Estados, e dentro deles, das
diferentes escolas e universidades, define os limites e as possibilidades de
nossas ações conjuntas. Não levar isso em conta é definir propostas que não
podem ser assumidas pelo movimento, (...) que caem no vazio. Por outro
lado, é preciso consolidar formas dinâmicas de centralização e decisão
política do ME a nível nacional, de acordo com a realidade atual do
movimento.”523
As “formas dinâmicas de centralização” significavam a transformação da Comissão
Executiva Nacional em um Conselho Nacional de DCEs para gerir as atividades do
movimento em nível nacional e propagandear a criação da UNE524
. Não deixava de ser, de
certa maneira, o que a “Refazendo” defendia em 1975 na USP, com a continuidade do CCA e
a não criação imediata do DCE.
Nesse contexto, o bloco liderado pela “Libelu” ainda contava com outras forças de
oposição menores da USP: “Organizar a Luta” (MEP); “Alternativa” (POLOP) e
“Mobilização” (Liga Operária525
), que também atuavam no Rio Grande do Sul, Minas Gerais,
Rio de Janeiro e Distrito Federal. Esses grupos valorizavam a importância das movimentações
de 1977, porém, acreditavam que elas ainda tinham um caráter “localizado”, uma vez que não
existia a possibilidade de “unificação” das lutas, o que só aconteceria quando o ME desse
“passos significativos no processo de sua reconstrução a nível nacional”526
. Nesse sentido,
lutavam pela criação da Comissão Pró-UNE.
Como se pode notar, mais do que uma questão de modo e tempo para reconstrução da
entidade nacional dos estudantes, a discussão revelava, na verdade, uma disputa pelo poder e
pelo controle do movimento: “Refazendo” e seu bloco, que dirigiam os DCEs da Comissão
Executiva e, do outro lado, “Libelu” e outras tendências, como a POLOP, que coordenava o
523
Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 524
Ibidem. 525
A criação da Liga Operária (LO) remonta ao início dos anos de 1970 no Chile, quando um grupo de exilados
entrou em contato com Mário Pedrosa (um dos fundadores do trotskismo no Brasil) e outros e aderiram à
Tendência Leninista Trotskista (TLT), que fazia oposição à tática de apoio à guerrilha adotada pela maioria do
Secretariado Unificado da IV Internacional. Para maiores informações sobre a LO: KARAPOVS, Dainis;
LEAL, Murilo, Os trotskismos no Brasil: 1966-2000, cit., p. 157-162. 526
Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).
168
DCE da PUC-RJ, que desejavam primeiramente fazer parte da Comissão Pró-UNE que
deveria ser criada. O controle do movimento permitia pôr em prática as concepções políticas
apregoadas pelas diferentes tendências, mas também exercer o poder sobre o conjunto do ME.
A reivindicação de assembleia nacional constituinte parecia atrair atenções. Os
militantes da “Libelu” levantavam a bandeira de uma “assembleia constituinte democrática e
soberana, precedida de anistia ampla e irrestrita, direito de voto para analfabetos, soldados e
marinheiros e liberdade de organização sindical e partidária”527
. Nesse caso, entendia-se que
através do processo da luta pela constituinte o movimento de massas se fortaleceria.
No lado oposto se encontrava a “Refazendo”, que rejeitava a proposta, por entender
que, naquela conjuntura, a constituinte possível seria legitimada por uma ordem social
burguesa, uma vez que os setores populares ainda não estavam suficientemente organizados
para impor seus interesses. Criticando tendências como a “Libelu” e a própria “Caminhando”
(que também defendia o mesmo ponto de vista da “Libelu”), os militantes da “Refazendo”
afirmavam que a “consequência destas posições seria uma só: atrelar o movimento de massas
a algumas facções da burguesia, ajudando-as a resolver seus problemas internos”.528
Foi num cenário de volta da repressão devido aos episódios antes mencionados (como
foi o caso da grande greve da UnB) que os estudantes se prepararam para a realização do III
ENE em 4 de junho de 1977. Forças tarefas da polícia foram acionadas e começaram a agir
nos próprios Estados, impedindo estudantes de saírem, e muitos dos que conseguiram chegar
às proximidades de Belo Horizonte foram presos.529
Aqueles que conseguiram escapar do esquema de segurança da polícia e se reuniram
na Faculdade de Medicina, em torno de 400 estudantes, segundo a revista Veja530
, foram
cercados pelas tropas mineiras, a pedido do governador Aureliano Chaves (em consonância às
527
III ENE: no rumo da UNE. Liberdade e Luta Estadual, de ago. 1977 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 21). 528
Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 529
Clara Araújo (que foi presidente da UNE em 1982) entrara no curso de Ciências Sociais na UFBA naquele
ano e tentou ir a Belo Horizonte participar do evento. Seu ônibus foi interceptado pela polícia e os estudantes
acabaram sendo presos. A hoje socióloga relembra: “Eles nos mantiveram três dias presos em Belo Horizonte.
Mas foi uma situação muito difícil. Como vinha chegando cada vez mais gente, houve um momento em que
nós não tínhamos como nos sentar na cela. Ficava todo mundo em pé o tempo inteiro e a comida era horrível.”
(Depoimento de Clara Araújo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, Rio de Janeiro, em 25.10.2004). 530
Encontro, prisões, greve. Veja, 08 jun. 1977, p. 22.
169
normativas do ministro da Justiça Armando Falcão, como demonstrado nessa revista),
acabaram se rendendo e sendo levados pela polícia para interrogatório531
. Assim, fracassou a
tentativa de realizar o III ENE. Em várias cidades, houve protestos contra a ação realizada em
Belo Horizonte: nas assembleias532
houve propostas de redefinição do local do Encontro, que
seria, uma vez mais, em São Paulo, em 21 de setembro daquele ano.
O mesmo esquema policial posto em prática em Belo Horizonte foi montado pelas
tropas comandadas por Erasmo Dias. A Cidade Universitária, local previsto para o encontro,
foi completamente cercada. Diante da impossibilidade da realização do encontro no campus
da USP, dezenas de universitários se reuniram na Faculdade de Medicina da USP, onde mais
uma vez o “encontro” foi frustrado, com a chegada das tropas de Dias. Depois de uma
negociação, os cerca de 200 estudantes se renderam e foram ao DOPS prestar depoimento.
Uma carta aberta à população533
foi redigida e assinada por vários DCEs, na qual
reiteravam a disposição do regime de impedir a reconstrução das entidades estudantis e
conclamando todos a participarem de um ato público no dia seguinte. A Assembleia
Metropolitana de Estudantes de Belo Horizonte também escreveu uma carta, mencionando
não só a repressão aos estudantes, mas retratando também o sofrimento pelo qual estava
passando todo o povo brasileiro. Por fim, conclamava a população para um ato público contra
a repressão sofrida pelo III ENE.534
As manchetes do jornal O Estado de S. Paulo do dia seguinte, 22 de setembro,
frisavam o impedimento da reunião estudantil e a frustração da última tentativa dos estudantes
de realizar seu encontro. A própria reportagem já insinuava uma ambiguidade provocada pelo
ME, ao mencionar o fato de que os universitários presos na Medicina se queixavam (já no
DOPS) de “não terem tido a companhia dos organizadores do movimento, que ao perceberem
a polícia, foram os primeiros a fugir”535
. O jornal ainda relatou que eram grandes os rumores
531
Neste trabalho, não relato todos acontecimentos que envolveram as tentativas de realização do III ENE, por
acreditar que esses fatos já foram amplamente divulgados. De toda forma, para verificar todo o processo,
sugiro a leitura dos capítulos 2 e 3 da tese de Renato Cancian (Movimento estudantil e repressão política: o ato
público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.). 532
Para as principais ações do ME após a tentativa do III ENE de Belo Horizonte, consultar: A paz longe do
campus. Veja, 15 jun. 1977, p. 24-27. 533
Carta aberta a população. 1977. Assinada pelo DCEs Livres da USP, PUC-SP, UFSC e pelos DCEs da UFF,
UFMG, UFV, UFBA, UFPE, PUC-RS, UFRGS e UnB (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 534
Carta aberta a população. Assembleia Metropolitana dos Estudantes de Belo Horizonte. 22.09.1977 (Arquivo
Projeto República UFMG). 535
Polícia prende 210 e impede reunião estudantil. O Estado de S. Paulo, 22 set. 1977, p. 20.
170
da realização de um ato público contra as prisões da Medicina, afirmando a movimentação no
CA XI de Agosto e ainda da suspeita dentro da Secretaria de Segurança de que os estudantes
estariam tentando se reunir no teatro Ruth Escobar.536
A reportagem deixa clara a confusão que os próprios estudantes queriam causar no
esquema de policiamento de Erasmo Dias. Tanto que no dia 22, várias manifestações
ocorreram537
e foi realizada uma grande assembleia na PUC. Ali foi anunciada a realização do
III ENE, numa reunião de pouco mais de uma hora, na qual estiveram presentes 70 delegados
de dez estados. Para os estudantes, estava claro que a ação policial impediria a realização de
um encontro aberto, como planejado. Sendo assim, o conjunto de lideranças preferiu deixar a
conjuntura de lado e deliberar um único ponto de pauta: a reorganização do movimento.
A proposta aprovada foi a formação da Comissão Pró-UNE, integrada por todos DCEs
e entidades municipais e estaduais. A referida comissão teria como tarefa coordenar as lutas
estudantis em nível nacional, fazer propaganda da história da UNE, promovendo o debate em
torno da sua reconstrução, bem como organizar a realização do IV ENE.
As “forças minoritárias”, como apontado nas menções ao II ENE, parecem ter se
organizado e conseguido impor suas propostas. As proposições da “Libelu” e outros grupos
menores foram acatadas e o saldo, depois de um ano, é que um importante passo para
refundação da UNE foi dado. Nota-se, assim, que mesmo com discordâncias políticas entre as
tendências, sobressaía a importância de dar um rumo para a reconstrução da entidade nacional
de representação dos estudantes.
As tendências vitoriosas propuseram fazer uma “comemoração” na própria PUC
naquela noite, causando o trágico episódio da invasão da universidade538
, cujo saldo foi uma
536
Polícia prende 210 e impede reunião estudantil. O Estado de S. Paulo, 22 set. 1977, p. 20. 537
A revista Veja publicou uma matéria de quatro páginas relatando os episódios daquela semana em detalhes:
Estudantes: a universidade invadida. Veja, 28 set. 1977, p. 31-34. 538
Relatos sobre a invasão da PUC (Disponíveis em: <http:// www2.fpa.org.br/ portal/modules/
news/index.php?storytopic=856>) ou ainda o capitulo de livro “Pelas liberdades democráticas: o movimento
estudantil em 1977” (in MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel, Pela democracia, contra o arbítrio: a
oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já, cit., p. 141-208). Para os dados do IPM da
invasão da PUC, consultar o item 3.7 da tese de Renato Cancian (Movimento estudantil e repressão política: o
ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.).
171
universidade destruída539
, vários estudantes feridos, cerca de 700 presos e 37 enquadramentos
na Lei de Segurança Nacional.
Dois meses depois, o DCE-Livre daquela universidade publicava um artigo no jornal
Folha de S. Paulo relatando como ocorreu a invasão e seus desdobramentos. O artigo
concluía que a invasão tinha sido premeditada por parte dos militares, servindo o ato público
apenas de pretexto para justificar a ação policial. A represália militar, conforme o artigo,
servia não só para atingir o ME, que tentava reorganizar suas entidades, como também a
própria Reitoria da PUC, que vinha se caracterizando “pela independência frente às pressões
do regime” (referindo abertamente à realização da SBPC no campus da PUC), bem como pela
“defesa intransigente da autonomia universitária”.540
3.3.2 O ano de 1978: UEE/SP, IV ENE consolidando a reorganização
nacional
O começo de 1978 trouxe “especulações” sobre os rumos do ME por parte da
imprensa. A primeira edição do ano de IstoÉ apresentou uma análise sobre o tema referente
ao ano de 1977 e expectativas referentes a 1978. Segundo a jornalista Mara Carucchio, o novo
ano prometia ser “ano bem radical, no bom sentido”541
. A revista Visão, numa matéria
intitulada “Unidade e anistia, as metas deste ano”, perguntava o que se poderia “esperar do
ME neste ano eleitoral?” e afirmava que os universitários estavam dispostos a fortalecer
internamente o movimento, tendo como meta principal a luta pela anistia.542
A questão da anistia foi o tema central nas discussões entre os estudantes. No dia
nacional de luto e lutas feito em homenagem aos estudantes Edson Luis e Alexandre
Vannucchi Leme, em 28 de março de 1978 (como veremos no quarto capítulo), o evento foi
realizado nas principais cidades do país, com a participação do Comitê Brasileiro de Anistia.
539
Ver fotos da invasão da PUC-SP (Anexo XII). 540
Relato da invasão da PUC, DCE PUC/SP, de 22.11.1977. Folha de S. Paulo, de 28 nov. 1977 (MAUÉS,
Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição democrática, do golpe
de 1964 à campanha das Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 185-188). 541
DUARTE, Selma Martins, IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira (1976-1981),
cit., p. 96. 542
Movimento estudantil: unidade e anistia, as metas deste ano. Visão, 17 abr. 1978, p. 26-28.
172
Como já vimos, foi em 1977 que os estudantes realizaram o congresso de reconstrução
da UEE/SP, mas não a eleição da sua diretoria, que ocorreu somente em 1978. Segundo
Romagnoli e Gonçalves, a constatação de que nenhuma tendência sozinha tinha forças
suficientes para ganhar a maioria dos votos levou à constituição de coligações para
estabelecer um programa mínimo para entidade.543
De fato, uma ampla chapa foi constituída, chamada de “Construção”, que congregava
boa parte das principais forças do movimento: “Caminhando” e “Refazendo”, além de outras
tendências menores, como “Novo Rumo”544
. A “Liberdade e Luta”, por não concordar com o
“chapão” e por discordar da maneira de encarar a conjuntura política e a condução do
movimento, preferiu lançar sua chapa própria.
“Construção” partiu da ideia de uma “visão comum” sobre as principais necessidades
colocadas para reconstrução da entidade, tendo como eixo a necessidade de unidade entre
essas forças e os estudantes. Um programa básico foi levantado em torno das bandeiras a
serem encampadas pela direção da UEE: a luta por liberdades democráticas, por melhores
condições de vida e trabalho e por melhores condições de ensino, que aqui englobava a luta
por mais verba para educação, pelo ensino público e gratuito para todos e por um ensino
voltado para o interesse da maioria da população.545
É bem verdade que apresentavam um programa amplo, pois se uniram tendências que
tinham divergências entre si, uma vez que pontuavam questões comuns de maneiras
diferentes. O ponto sobre a constituinte foi uma delas. “Caminhando” favorável, “Refazendo”
contra. Um jornal da tendência “Liberdade e Luta” de 1978 traz excertos de documento do
ano anterior realizado pelas duas tendências, mostrando os posicionamentos antagônicos:
“Caminhando – (agosto/77): temos nos colocado em defesa da bandeira de
convocação da assembleia constituinte, livremente eleita, democrática e
soberana porque entendemos que essa bandeira é uma decorrência clara e
irrefutável da própria luta maior por liberdades democráticas.
(...)
Refazendo – (agosto/77): a alternativa é a da resistência popular. Isso é o que
vai concretamente pôr fim ao regime e não a assembleia constituinte.”546
543
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 33. 544
Tendência trotskista que formaria, junto com “Centelha” e “Ponteio”, a Convergência Socialista. 545
UEE: em quem votar? Travessia, Movimento, Resistência e Vento Novo-USP. [1978] (Arquivo
CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). 546
Avançar e ultrapassar no mais breve tempo. Agora UNE, n. 1, jul. 1978, p. 3 (Arquivo Promemeu/UnB
AE5512).
173
Tenho ciência que são excertos extraídos e realocados para um determinado fim, mas
que não deixam de ser elucidativos dos pensamentos divergentes das tendências e de como
eles são equacionados, quando se vislumbrava algo maior dentro do jogo político, nesse caso
a eleição da UEE.
Ainda segundo esse jornal, a solução “encontrada” para um coligação de “tendências
tão distintas” foi a instauração de um “programa altamente eclético”, que levou a abordar a
questão da constituinte em “sete linhas” e a abandoná-la na plataforma de lutas. Cabe
sublinhar que os militares, que sempre acompanhavam os passos do movimento, tinham
ciência dessas diferenças.547
Antes mesmo da eleição, “Novo Rumo” já sinalizava que a condição de englobar
dentro de uma chapa várias visões políticas poderia vir a dificultar a condução do movimento
no Estado, uma vez que em seu programa não estavam bem definidas as tarefas políticas a
serem desenvolvidas. Por isso mesmo, “Novo Rumo” apresentou, para além da carta-
programa assinada com as outras tendências, um detalhamento pormenorizado do seu
“programa de luta”, que seria defendido pela tendência dentro da direção da UEE.548
Assim, pode-se demonstrar também a disputa entre as forças políticas desenhando o
cenário. Mesmo com um objetivo maior, que seria a conquista da UEE, as diferentes forças
políticas que se prepararam para aquele momento discutiram suas diferenças internas com
vistas a lutar por seu espaço e “demarcar o território”.
“Libelu” continuava realizando suas análises de conjuntura, segundo as quais os
acontecimentos de 1977 e 1978 provocaram alterações decisivas na situação política do país
que poderiam levar à queda da ditadura. Continuavam apoiando o voto nulo na eleição de
1978, por compreenderem que tanto o MDB quanto a ARENA (Aliança Renovadora
547
Em documento de informação da Polícia Política narrando todo o processo da eleição da UEE, encontramos o
excerto: “Malgrado as profundas divergências entre os programas „políticos‟ das organizações subversivas
acima relacionadas, refletidas, como consequência, nas plataformas de lutas „estudantis‟ dos diferentes grupos
e tendências, a „frente‟ representada pela chapa Construçao tornou-se possível graças a „um acordo de
cavalheiros‟ entre os diversos grupos, fato que permitiu a elaboração da plataforma de lutas descrita no item 2
desta informação. Observação: Caminhando, Unidade e Novo Rumo abriram mão da palavra de ordem „por
uma constituinte democrática e soberana‟, à qual é contrário APML e MR-8, ou seja, o grupo Refazendo, atual
DCE/USP.” (Informação n. 0301/CISA-RJ, de 17.05.1978. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil. Notação
62. p. 387 t). 548
UEE: em quem votar? Travessia, Movimento, Resistência e Vento Novo-USP. [1978] (Arquivo
CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36).
174
Nacional) eram “farinha do mesmo saco, ambos partidos burgueses cujos objetivos eram
inconciliáveis com o conjunto dos setores populares”549
. Ainda se diferenciavam da chapa
oponente por defenderem a reforma agrária, a expulsão do imperialismo, a constituinte, o voto
para os analfabetos, soldados e marinheiros e a aliança operário-estudantil.550
Enfim, entre 4 e 5 de maio (de 1978) foi realizado o pleito em todo Estado. Apesar da
promessa do coronel Erasmo Dias de manter a Polícia Militar à margem das eleições, algumas
Universidades tiveram CAs invadidos e militantes receberam comunicados subscritos pelo
GAC (Grupo Anticomunista) e pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas)551
. Segundo a
revista Veja, encerradas as apurações, a chapa “Construção”552
registrou 22.915 votos, contra
os 9.713 conquistados por “Liberdade e Luta”553
. E, assim, estava completado o processo de
ressurgimento da UEE/SP, que significava mais um passo na escalada da reorganização dos
estudantes em busca da reestruturação de suas entidades representativas.
A reportagem de Veja que fez a cobertura do processo de eleição da diretoria da
UEE554
apontou um dado que é relevante para esta análise: o crescimento da “Libelu”, o que
se confirmaria logo depois, com a eleição dessa tendência para a terceira diretoria do DCE-
Livre da USP.555
É de se perguntar quais as razões para a “virada” vitoriosa da tendência trotskista,
considerada a mais “radical” entre os estudantes. Ao observar a distribuição dos votos, vê-se
que “Refazendo” e “Caminhando”, que estavam unidas no processo para eleição da UEE/SP,
disputaram o pleito para o DCE com “chapas-puras”556
. A própria “Libelu” buscou
549
Propostas para o Congresso da UEE; avaliação do MCV (Movimento do Custo de Vida). Viramundo, set.
1978 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA). 550
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 34. 551
Para tanto, ver as reportagens: Diretório do Machenzie é invadido e depredado. O Estado de S. Paulo, 04
maio 1978; Estudantes/SP: a volta da UEE. Veja, 10 maio 1978, p. 27. 552
Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves citam os nomes dos componentes da primeira diretoria da
UEE/SP (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 34). 553
Estudantes: faltam respostas. Revista Veja, 17 maio 1978, p. 26. 554
Ibidem. 555
Segundo jornais da época, a vitória foi apertada: Liberdade e Luta, 2.260 votos; Refazendo, 2.191;
Caminhando, 2.141. Vento Novo, Novo Rumo Socialista, Viramundo e Alicerce, juntas, tiveram 1.991 votos,
perfazendo o total de pouco mais de 10.000 votantes (Nova Diretoria do DCE-Livre. JECO: jornal dos
estudantes de economia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFPE, ano 1, n. 1, jun. 1978 (Arquivo
Projeto MME 089 – 3.1). 556
Para utilizar o linguajar do próprio movimento, que designa uma chapa pura quando ela é composta somente
por membros de uma única corrente.
175
explicações para a derrota das concorrentes. Em matéria sobre a eleição do DCE557
, os
representantes dessa tendência afirmaram que a própria indefinição política de “Refazendo” e
“Caminhando”, que disputaram a eleição apresentando plataformas “radicalmente diversas”
das da eleição para a UEE, contribuiu para a vitória da “Libelu” que apresentara um programa
claramente definido, desde a eleição para a UEE.
Parece-me correta essa conclusão, mas, além disso, não se pode esquecer que a
“Refazendo” já vinha apresentando embates internos, e o processo da eleição da UEE/SP
contribuiu significativamente para o enfraquecimento da tendência, que foi agravado pelo
rompimento com o MR-8, já mencionado.
No que se refere a essa eleição, cabe anotar a redução significativa do número de
vontantes: 6.000 a menos que na eleição anterior.558
Já em setembro do mesmo ano, foi realizado na FAU da USP o II Congresso da UEE,
contando com a participação de 451 delegados559
. O congresso foi conturbado e houve
ameaças aos participantes, através de cartas enviadas por grupos que se denominavam do
CCC. Esse fato agravou as dificuldades impostas pelas próprias Reitorias, como a do
Mackenzie, que não permitiu a instalação das urnas para as votações nas dependências da
universidade.
A seguir, houve disputa entre as tendências. “Caminhando”, que apresentou a proposta
de retirar o poder deliberativo do congresso, alegando que a escolha de delegados fora pouco
representativa em vários lugares, e a “Libelu”, que defendeu a continuação do congresso,
proposta que foi aceita.
Dos três pontos da pauta, acabou se formando um consenso560
. O item referente à
reorganização da UNE, inicialmente previsto para discussão, foi retirado, por se entender que
o IV ENE seria o momento para isso.
557
DCE/USP: o fim da indefinição. Agora UNE: pela reconstrução da União Nacional de Estudantes: aliança
operário-estudantil. n. 1, jul. 1978, p. 6 (Arquivo PROMEMEU/UnB AE5512). 558
Ibidem. 559
Os candidatos populares terão o apoio da UEE. Folha de S. Paulo, 19 set. 1978. 560
O principal ponto estava na questão das instâncias de deliberação da recriada entidade, que assim foi
aprovada: Congresso, Conselho de Entidades e Diretoria.
176
A grande disputa se deu a respeito das eleições parlamentares de 15 de novembro, mas
acabou vencendo a proposta de “apoio aos candidatos populares do MDB”561
, que contou com
a votação de cerca de dois terços dos delegados. A mudança de posicionamento (em relação à
última eleição) indicava o quadro que seria formado no encontro nacional poucos dias depois.
O IV ENE aconteceu nos dias 3 e 4 de outubro. Os grandes esquemas de segurança e o
cerco policial ficaram definitivamente para trás. O encontro, como boa parte dos outros que
aconteceram ao longo do ano, não sofreu a dura repressão por parte dos militares. É possível
supor que o desfecho do III ENE serviu de autocrítica para ambas as partes que entraram em
conflito.
Foi assim que mais de 400 delegados, representando 169 escolas de treze Estados562
,
além do Distrito Federal, se reuniram na FAU/USP para discutir principalmente a
rearticulação da UNE, como aparece no excerto de um documento da época: “O IV ENE
deve[ria] fundamentalmente definir orientações concretas para a condução do movimento.
Definir qual o processo de reconstrução da UNE, e mais, ter propostas que [fizessem] avançar
nesse sentido (...).”563
Se nesse encontro não existiu um cerco policial propriamente dito, também não deixou
de haver empecilhos: a FAU ficou às escuras por um corte de energia elétrica564
, e foi assim
que os estudantes abriram os trabalhos.
Na mesa de abertura, o convite feito ao reitor da Universidade Valdir Muniz Oliva não
foi nem respondido. Com uma extensa bandeira da UNE, os trabalhos foram iniciados com a
leitura das cartas de dois ex-presidentes da entidade da década de 1960: Aldo Arantes e Altino
Dantas Rodrigues, que estavam presos. Nesse momento, todos os presentes bradaram por
anistia. Na sequência, o representante do “Comitê Brasileiro pela Anistia” de São Paulo, o
advogado Luis Eduardo Greenhalg, convidou todos os estudantes a participarem do
561
Entre os candidatos apoiados, estava o militante da “Refazendo” e diretor da primeira diretoria do DCE-Livre
Geraldo Siqueira Filho. 562
Segundo o jornal Folha de S. Paulo: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina, Alagoas,
Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Goiás. 563
Informes. [1978] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37). 564
O quarto ENE: os estudantes aprovam o apoio a candidatos populares do MDB. Folha de S. Paulo, 04 out.
1978.
177
Congresso Nacional para Anistia, no qual se discutiria a relação entre “anistia e
universidade”.
Nessa conjuntura, o movimento social como um todo se ampliava e o ME, não
somente pela sua importância histórica, mas pela posição estratégica do “estudante” na
sociedade, reforçou sua luta contra a ditadura. No IV Encontro, a Associação de Docentes da
USP (ADUSP) marcou presença.565
O primeiro ponto da reunião foi centrado nas eleições (de deputados e senadores) que
aconteceriam em novembro. Ao todo, sete propostas foram apresentadas566
, o que evidencia o
aumento da organização dos estudantes, comparado com os outros encontros. As propostas
foram divididas em duas: voto no MDB ou voto nulo. Prevaleceu a mesma perspectiva
vitoriosa no Congresso da UEE/SP, que fora apresentada um mês antes: 65% dos estudantes
optaram pelos votos no MDB, contra 20%, que votaram a favor do nulo567
. Depois de
algumas horas de discussão, acabou prevalecendo a proposta encaminhada por “Refazendo” e
“Caminhando”: apoio aos “candidatos populares do MDB”.
O grande ponto de discussão ficou por conta da reestruturação da UNE. Os debates
que começaram no sábado e terminaram no domingo defendiam (como podia se esperar)
diferentes posições sobre o grau de mobilização e organização dos universitários: havia
aqueles que acreditavam na maturidade do movimento e os que duvidavam dela e propunham
aguardar o fortalecimento da organização568
. Após muitas discussões, foi aprovada a
565
A reportagem da Folha de S. Paulo descreve a mesa de abertura, com os nomes dos representantes das
entidades (Folha de S. Paulo, 04 out. 1978). 566
Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves descrevem: 1) voto em candidatos socialistas, apresentada pelos
grupos Resistência e Centelha; 2) votos em candidatos populares do MDB, defendida por Caminhando e
Refazendo; 3) voto em candidatos operários e socialistas, apresentada por Novo Rumo; 4) voto no MDB,
defendida pela PUC-RJ; 5) voto nulo pela independência do ME e a organização independente, apresentada
por Alicerce; 6) voto nulo pela organização independente e Partido dos Trabalhadores; e 7) voto nulo pela
constituinte e por um partido operário, defendida por Libelu (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 567
Ainda 15% dos estudantes se abstiveram (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da
UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 568
Conforme um documento interno de uma tendência, provavelmente da Refazendo, o cenário apresentado
apresentava a bipolaridade de proposta para reconstrução da UNE: “O fundamental não é fixar a data nem
fechar a questão que, necessariamente, o Congresso vá reconstruir a UNE (por isso um Congresso pela
reconstrução e não que reconstrua, como diz a LL, e, por favor, não nos detenhamos em discutir as palavras,
mas sim as concepções que estão por trás delas).” (Informes. [1978] Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 37).
178
realização do Congresso de Reconstrução da UNE nos dias 29 e 30 de maio de 1979, na
cidade de Salvador.569
É interessante dar ênfase à movimentação política dos estudantes. Ao mesmo tempo
que a bandeira de voto nulo, apregoada principalmente pela “Libelu”, perdeu força, a sua
proposta de reconstrução da UNE ganhou maiores adesões dentro do Encontro. Esse fato
serve para mostrar o quão dinâmico e “fluido” se apresentava o movimento, e que ele não
estava “engessado” por uma única força política, ou seja, que os resultados da votação
decorriam de debates entre as diferentes tendências que reestruturavam o movimento, e que,
apesar das discordâncias, naquele momento se uniam na luta pela derrubada da ditadura.
A decisão dos votos em candidatos populares do MDB parece ter “surpreendido” a
Grande Imprensa. Tanto a Folha de S. Paulo quanto a revista IstoÉ apresentaram manchetes e
reportagens sobre a questão570
. Mas o interessante é constatar as diferenças entre as matérias
dos dois principais semanários. IstoÉ apontava o aprofundamento do movimento:
“O ME, que já havia mudado de 1968 para 1977, continua evoluindo e,
agora, procura organizar-se de uma forma mais consistente. Até o clima de
euforia e desafio que transparecia nas manifestações do ano passado está
desaparecendo, para dar lugar a discussões mais profundas sobre a atuação
dos estudantes na política brasileira.”571
A questão das “discussões mais profundas” destacada pela revista editada por Mino
Carta dava ênfase no saldo da reunião. Apontava que após o debate sobre o voto em 15 de
novembro, acabou prevalecendo o argumento “de que os estudantes devem apoiar o partido
da oposição pois, se o próprio povo vota no MDB, votar nulo seria „afastar-se do povo‟”.572
Já o contrário apareceu publicado por Veja. Na reportagem de cinco páginas intitulada
A UNE vai renascer?, foram relembrados os dez anos do Congresso de Ibiúna, acrescidos do
comentário de que os estudantes prometem a “ressureição” da velha sigla estudantil. A
569
Romagnoli e Gonçalves descrevem as propostas mais detalhadamente, bem como quais foram os critérios
definidos para a retirada de delegados (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 570
O IV ENE: os estudantes aprovam o apoio a candidatos populares do MDB. Folha de S. Paulo, 04 out. 1978;
Estudantes, acreditem: eles se reuniram sem repressão (e decidiram que, apesar de tudo, o MDB merece votos).
IstoÉ, ano 2, n. 94, 11 out. 1978, p. 11. 571
Estudantes, acreditem: eles se reuniram sem repressão (e decidiram que, apesar de tudo, o MDB merece
votos). IstoÉ, ano 2, n. 94, 11 out. 1978, p. 11. 572
Ibidem.
179
reportagem, de uma maneira geral, concentrava-se mais na conjuntura de 1968, para lembrar
que, depois disso, o ME ajudou a “engrossar o caldo de violência”573
com a luta armada, em
relação à qual o ME sempre se calou. O que ressurgia, então, era um ME que representava um
“minguado segmento no conjunto de oposições, lideradas por grupos sociais bem mais
expressivos”574
. Ou seja, a revista Veja fazia um jogo duplo de “uso político do passado”,
como ameaça de volta à violência e desqualificação do ME no presente.
Como se pode inferir da comparação, os grupos mais expressivos, segundo os
representantes da Grande Imprensa, eram os que compunham a oposição liberal, entre os
quais eles se incluíam. Chamo a atenção para o fato de que essa interpretação sobre o “fim do
ME” acabou sendo incorporada por grande parte dos estudos sobre o período, interpretação
essa que procurei contestar anteriormente.
Ainda sobre o voto no MDB, acreditavam numa “mudança de estratégia política dos
universitários”, lembrando que até 1974 grande parte dos estudantes pregou o voto nulo “sob
o extravagante argumento de que a existência de uma „oposição consentida‟ apenas servia
para oferecer tinturas democráticas a um regime ditatorial”575
. Contrariamente ao apresentado
na revista IstoÉ, fica clara a estratégia de menosprezar o ME e suas ações, diminuindo sua
importância, no momento crucial em que ele procurava se reorganizar.
Se por um lado, o IV ENE aconteceu sem a intervenção militar, aqui, nesse exemplo,
parte da imprensa tratou de criticá-lo.
3.4 Enfim, o Congresso de Reconstrução
Depois de todo o percurso realizado, finalmente os estudantes conseguiram
reestruturar sua entidade nacional. O percurso de dez anos, desde a decretação do AI-5,
apresentou pontos altos e baixos, mas sempre houve uma movimentação que foi base para a
reestruturação do próprio movimento, e porque não dizer, base também para a estruturação
dos demais movimentos sociais que floresceram nos anos de 1970, lutando contra o regime.
573
Especial: a UNE vai renascer? Veja, 11 out. 1978, p. 62. 574
Ibidem, p. 63. 575
Ibidem, p. 60.
180
E esse foi o tom da nota de fevereiro de 1979 da Secretaria Executiva da Comissão
Pró-UNE: a UNE estava renascendo das lutas do conjunto do movimento antiditatorial:
“Movimento que brota nas fábricas, nos campos, ganha as ruas, e exige o fim da ditadura,
anistia ampla e irrestrita, fim do arrocho salarial, fim às perseguições políticas, à prepotência
policial, à miséria, à corrupção”576
. A pretensa “unidade com o povo” demonstrada na carta
mostrava-se, nesse momento, na disputa acirrada entre as diferentes forças políticas pela
“cabeça” do movimento.
As articulações do ano de 1979 começaram em janeiro, numa reunião da Comissão
Pró-UNE na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro. A ideia inicial era realizá-la na UFRJ, mas
devido à proibição do reitor Luiz Renato Carneiro da Silva Caldas, os estudantes tiveram que
procurar outro local.577
Segundo relatório preparado pelo Departamento Geral de Investigações Especiais
(DGIE), 26 DCEs e 36 DAs e CAs participaram do evento, com representantes de 14
Estados578
. Ainda através desse relatório, se constata que as lideranças mais atuantes estavam
representadas pela UEE/SP, USP, UFRJ, UFBA e UFMG. Tais representações atestam a
dimensão nacional atingida pelo ME e que seus principais atores já não estavam reduzidos às
articulações no interior do Estado de São Paulo, embora elas continuassem a ser importantes.
O primeiro eixo de discussão do encontro foi destinado às questões da universidade, e
foi aprovada, por ampla maioria, a moção apresentada pela UFMG: “Mais verbas para ensino,
melhores condições de ensino, rebaixamento ao máximo das anuidades”. Pode-se notar que a
Comissão Pró-UNE estava fortalecida. No que se referia às reivindicações das universidades
privadas, prevaleceu a ideia de que a Comissão Pró-UNE (com 15 votos) deveria encaminhar
as demandas, em detrimento de uma proposição pela criação de uma executiva nacional das
escolas pagas (com quatro votos)579
.
576
Ao povo brasileiro (nota oficial da Secretaria Executiva da Comissão Pró-UNE, sobre os rumores de
repressão ao ME). Salvador, fevereiro de 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). 577
UFRJ proíbe reunião para a volta da UNE. Jornal do Brasil, 13 jan. 1979. 578
Informe DGIE de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.
Notação 67. p. 203-214. 579
Informe DGIE de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.
Notação 67. p. 205.
181
O segundo eixo de discussão era referente à atitude a ser tomada em relação à posse do
general Figueiredo: todas as tendências eram unânimes pela realização de um “Dia Nacional
de Lutas”. Mas as posições variavam quanto às palavras de ordem que deveriam figurar.
Ganhou a proposta da DCE/UFRJ, organizador do evento: “Realização no dia 15 de março do
Dia Nacional de Luta contra a posse do „novo ditador‟”. As manifestações seriam estendidas
ao seu Ministério. A proposta apresentada pelo DCE/USP (liderado pela “Libelu”) visava à
instituição do Dia Nacional de Luta no dia 15, e defendia a realização de uma “assembleia
nacional constituinte, livre e soberana” (obteve 5 votos). A terceira proposta sugeria o Dia
Nacional de Luta em 15 de março, acrescentando-se os slogans “contra a ditadura militar”;
“abaixo Figueiredo” (obteve 9 votos)580
. Note-se que era consenso o protesto contra a posse
do “novo ditador”, mas as correntes presentes no movimento eram mais ou menos radicais em
relação às propostas de manifestação.
Quanto à volta da UNE, o relatório do DGIE aponta as divergências entre as correntes:
“Foi registrada uma divisão entre os DCEs presentes no tocante ao momento
de se lançar a UNE. A UFBA e a UFMG, dentre outras, foram uníssonas em
afirmar que a UNE deve retornar no momento preciso, sob pena de ser
arrastada por qualquer sopro. O desequilíbrio ainda dominante em muitos
Estados e o recuo do ME na maioria dos grandes centros urbanos servem
perfeitamente de base para justificar tal linha de pensamento. Como disse o
representante de Goiás, os universitários ficam bastante ilhados das grandes
decisões do ME. A própria inoperância da Comissão Executiva Pró-UNE
contribui para isso. Para o presidente do DCE Mário Prata [UFRJ] e para
tantos outros, 1979 é o ano da UNE.” 581
Recém-assumido presidente do DCE/UFBA, Rui César Costa e Silva, próximo da
tendência “Viração”, ficou com a incumbência de organizar o evento para mais de 5.000
estudantes, tarefa árdua, uma vez que a Universidade não tinha condições de abrigar um
encontro de tal monta. Por esse motivo Rui César, contrariando a direção política do
movimento, resolveu fazer uma, em suas palavras, “translouquice”:
“Eu me lembro que comprei umas fichas, fui num telefone público e liguei
para a governadoria. Disse: quero falar com o governador (rs), preciso fazer
uma entrevista. − Quem é você? − Ah, sou um estudante, sou presidente do
DCE e eu preciso falar com o governador. Governador esse, aí eu fui tomar
580
Informe DGIE, de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.
Notação 67. p. 204. 581
Informe DGIE, de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.
Notação 67. p. 208.
182
conhecimento, era o Antônio Carlos Magalhães [...] (rs). − Mas você quer o
quê? Nós vamos fazer o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador e
eu preciso do espaço, eu quero [...] o Centro de Convenções, eu preciso de
um espaço para fazer esse Congresso.”582
Foi assim que, no dia seguinte, foi agendada uma reunião com o governador. Segundo
Rui César: “Ele me recebeu com a gravata vermelha e disse assim: olha, vim de gravata
vermelha pra mostrar que eu estou em paz, ou seja, como como se dissesse: estou recebendo
os comunistas... (rs)”583
. O resultado de três reuniões foi o empréstimo do Centro de
Convenções, que ainda nem estava pronto, atitude paradoxal, se se pensar que essa foi a
atitude de um governador aliado e indicado pelo regime que proibira a reunião. Sem entrar no
mérito do paradoxo, o importante a sublinhar é que assim começava a grande movimentação
para a realização do congresso.584
Na posse do novo presidente general João Batista Figueiredo, a comissão realizou o
“Dia Nacional de Luto”. O manifesto escrito para o ato afirmava que, depois de 15 anos,
tomava posse um general que representava “a situação de opressão e miséria da maioria da
população”. Relembrava “os 15 anos de mortes, torturas, prisões, desaparecimentos de
pessoas (...) como o último presidente da UNE, Honestino Guimarães”585
. A UEE/SP também
preparou um manifesto e programou um grande protesto.586
Mas João Batista Figueiredo e seus ministros, por ocasião da 9ª Reunião da Comissão
em Brasília587
, foram convidados pela comissão a participarem do congresso, ato contestado
582
Depoimento de Rui César Costa e Silva para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em
12.11.2004. 583
Ibidem. 584
É ainda Rui César quem lembra das atividades que passaram a mobilizar os estudantes em todo país e
principalmente a comunidade soteropolitana: “E enfim a preparação do Congresso começou a mobilizar o
Brasil inteiro... [E] como garantir hospedagem? A expectativa era seis... no final a gente tinha dez mil pessoas
em Salvador. Então nós fizemos uma campanha com toda a população da cidade e conseguimos todos os
alojamentos em casas de famílias. As famílias fizeram filas na porta de MDB, cadastrando... teve uma
experiência inusitada, que nas vésperas nós resolvemos anunciar pela cidade e a gente fez uma maluquice que
foi tomar o alto falante da Fonte Nova, do Estádio da Fonte Nova, no jogo do Bahia e falar para 80 mil pessoas
que o Congresso da UNE iria acontecer em Salvador. Então, a gente invadiu, segurou o cara e eu peguei a
rádio e falei para o Fonte Nova e alguém passava com a faixa correndo anunciando... isso todo provocava um
efeito muito grande na imprensa, esses atos assim mais... mais assim... vamos dizer assim... de performance
mesmo.” (Depoimento de Rui César Costa e Silva para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, São
Paulo em 12.11.2004). 585
Dia Nacional de Luto em repúdio à posse do general Figueiredo. Secretaria Executiva da Comissão Nacional
Pró-UNE. Salvador, 29.02.1979. APERJ/Polícia Política. Notação 67. p. 676. 586
Convocação geral ao povo paulista. São Paulo, março de 1979. UEE/SP (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 36). 587
Comissão Pró-UNE reunida debate o congresso de maio. Folha de S. Paulo, 27 mar. 1979.
183
por algumas tendências políticas588
. Ao ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella589
foi enviada uma carta, na qual os estudantes “exigiam” a doação de quinhentos mil cruzeiros
como forma de ajuda ao congresso, bem como o posicionamento contrário à determinação de
institucionalização do ensino pago590
, reivindicações que certamente não foram atendidas.
As reuniões da Comissão Pró-UNE (que contava com membros de DCEs de vários
Estados) se intensificaram e, como consequência delas, as retaliações por parte dos
representantes oficiais das universidades e do próprio regime591
. E cada vez mais a comissão
participou dos principais eventos contra o governo, como foi o caso do ato público em defesa
da Amazônia, realizado no final de março, na ABI.592
Entre 5 e 6 de maio, a 10ª Reunião da Comissão elaborou o regimento do Congresso
de Reconstrução. Além de todas as normas para a retirada de delegados, o regimento
estabeleceu a estrutura do congresso, definindo, inclusive, o temário dividido em seis grupos
de debates: 1) carta de princípios e estatutos da UNE; 2) grupos de trabalho da UNE: cultural,
esportes e secretarias por áreas profissionais; 3) eleições da UNE; 4) universidade; 5)
realidade brasileira; 6) lutas dos estudantes: balanços e perspectivas.593
Note-se que não foi previsto nenhum ponto relativo à conjuntura internacional, o que
atesta a própria realidade vivenciada. Vê-se que a conjuntura nacional era mais importante no
momento e que, independentemente do que estivesse acontecendo, mesmo nos países
vizinhos, o combate estava centrado primeiro no inimigo interno, o que reflete, em parte, a
588
Na carta-programa da Viramundo: “(...) mas também porque certas direções do ME deram mostras de que
estão abertas [para negociar com a ditadura] (...) o convite que a Comissão Pró-UNE fez ao ditador Figueiredo,
aos seus ministros e porta-vozes oficiais, para a abertura do Congresso da UNE (...).” (Viramundo. XXXIº
Congresso da UNE: reconstrução maio/79 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). O jornal
Agora UNE da tendência Liberdade e Luta disse que a decisão do convite significava “abrir a via para a
destruição da independência da UNE, já no seu nascedouro” (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP,
Livraria Palavra, 122). 589
O depoimento de Aldo Rebelo, eleito secretário da UNE naquele mandato, registra o encontro com o ministro
da Educação: “O Eduardo Portella teve um papel importante também, ou seja, ele deve ter dito ao Figueiredo
que não ficaria no Ministério se houvesse repressão ao Congresso da UNE. Participei da audiência quando ele
nos recebeu no Ministério da Educação – entregamos uma camiseta do congresso a ele... então, ali já havia
uma condição mais favorável.” (Depoimento de Aldo Rebelo a autora para o Projeto Memória do Movimento
Estudantil, Brasília em 04.12.2004). 590
Carta ao ministro da Educação e Cultura. Brasília, de 28.03.1979. Comissão Pró-UNE (Arquivo Promemeu/
UnB AE5513 II). 591
UFRJ proíbe reunião para volta da UNE. Jornal do Brasil, 13 jan. 1979; Reorganização da UNE é meta de
líderes estudantis em 79. Jornal do Brasil, 21 jan. 1979, p. 9. 592
Informe DGIE 945/79, de 03.04.1979. APERJ/Polícia Política. Notação 67. p. 653. 593
Regimento do Congresso de Reconstrução da UNE. XXXI Congresso. São Paulo, 05 e 06.05.1979. X
Reunião da Comissão Pró-UNE, p. 7 (Arquivo Promemeu/ UnB AE5513).
184
maneira como foram tratadas as questões internacionais pelo movimento durante a década.
Mas não que elas fossem relegadas completamente, tanto é que várias moções foram
aprovadas no congresso que contextualizavam a conjuntura internacional. O congresso visava,
antes de tudo, a reconstruir a entidade dos estudantes, independentemente do rumo político
que ela adotasse.
A falta de atenção ao status da UNE merece comentário: em nenhum documento
encontrei referência, por exemplo, à entidade estudantil como sindicato de estudantes. Essa
proposta não foi cogitada por nenhuma tendência. Quanto à participação dos estudantes, a
“Libelu” defendia a presença de secundaristas e pós-graduandos como delegados594
, mas foi
aprovado pela Comissão Pró-UNE que somente fariam parte do congresso estudantes
universitários. Os demais poderiam participar apenas como observadores.
Havia discordâncias no interior da comissão. Uma reportagem da revista Movimento
ajuda a compreender esse aspecto. Nela, os redatores afirmam que a “10ª reunião pode ser
considerada uma prévia do congresso” e revelam uma movimentação de bastidores referente
ao afastamento do representante da PUC-Rio da Secretaria da Comissão, substituído por
representante da UFRJ, a partir de uma indicação da UEE/SP.595
A decisão foi considerada “política”, segundo a revista, pois teria se dado em troca do
apoio do presidente do DCE/UFRJ Paulo Bittencourt (do MR-8) ao pré-candidato Paulo
Massoca (também do MR-8), que tinha apoio de cinco dos 15 diretores da UEE/SP. Como já
foi dito, a chapa eleita da UEE foi decorrente de uma “costura” de tendências políticas. A
reportagem indica que a disputa principal da entidade se daria entre as duas forças
representadas por Valdélio Santos Filho, estudante da UFBA (ligado à “Viração”/PC do B), e
Massoca (do MR-8). Ainda aponta que a principal questão do congresso estava centrada na
forma da eleição para a diretoria da entidade reconstruída: direta ou indireta.
594
No jornal da tendência: “A UNE também deve representar os interesses desses segmentos do estudantado,
que participaram das lutas que a criaram. Principalmente no momento em que a UNE poderá representar o
impulso decisivo para a construção de organismos próprios dos pós-graduandos e secundaristas” (Arquivo
CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP. Livraria Palavra. 122). 595
UNE: a volta por cima. Movimento, 14 a 20 maio 1979, p. 13.
185
O congresso, finalmente, aconteceu entre os dias 29 e 30 de maio. Os episódios que
ocorreram durante esses dois dias foram muito bem narrados por Romagnoli e Gonçalves596
,
resumidamente por Arthur Poerner597
e por inúmeras matérias na imprensa598
. Não se trata
aqui de reproduzir os acontecimentos, mas expor a articulação das forças políticas que
acabaram sendo responsáveis pela “refundação” da UNE. Nesse sentido, o mais importante a
ressaltar é que a reconstrução da UNE foi um longo processo de dez anos e, por isso, um
marco não só na história do ME, como também na luta contra a ditadura.
O congresso599
foi aberto com o discurso de abertura do ex-presidente da UNE em
1964 José Serra, como veremos no capítulo seguinte. A presença de inúmeros políticos
(inclusive dos arenistas da Bahia), líderes camponeses e sindicais, e os quase 10.000
estudantes que compareceram ao evento evidenciam a importância da reconstrução da
entidade para a luta pela redemocratização do país.
Depois de aprovar a carta de princípios e as lutas que deveriam ser encabeçadas pela
entidade estudantil600
, o ponto culminante do congresso foi, sem dúvida, a decisão relativa à
eleição da UNE, que ocorreu na noite do dia 30 e na madrugada do dia 1º. Depois de muitas
horas de conchavos, de um racha nas tendências “Caminhando” e “Viração”601
(ambas do PC
do B), dez propostas foram colocadas em votação e ficou decidida a criação de uma diretoria
provisória, até a realização da eleição direta para a diretoria da entidade reconstruída, em
outubro daquele ano. A diretoria provisória foi composta por representantes da UEE/SP, DCE
UFBA, DCE/UFPE, DCE/UFMG, DCE/PUC-Rio, DCE/UFRGS, DCE/UnB e DCE/UFPA.
Com essa decisão, findou o congresso que definiu a refundação da UNE, entidade que
representa o conjunto dos estudantes no plano nacional. A reconstrução UNE foi, para além
de um marco simbólico na luta da entidade contra o regime, importante para a
596
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit. 597
POERNER, Arthur José, O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, cit. 598
Ao longo de minha pesquisa, coletei mais de 150 matérias de jornais e revistas sobre a reconstrução da UNE
no ano de 1979. 599
Ver foto de estudantes com a bandeira da UNE, durante o Congresso (Anexo XIII). 600
Seis pontos foram aprovados para serem levantados como as bandeiras de luta da UNE: 1) contra o ensino
pago; 2) por mais verbas para educação; 3) pela anistia ampla, geral e irrestrita; 4) contra a devastação da
Amazônia; 5) por uma assembleia nacional constituinte; 6) campanha de filiação de entidades à UNE
(ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 58). 601
“A Caminhando paulista se juntou com a Refazendo em favor da eleição direta enquanto que o restante da
tendência, encabeçada pela Viração baiana, esteve ao lado do PCB pela eleição no Congresso.” (Depoimento
de Aldo Rebelo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 04.12.2004).
186
redemocratização do país, porque, como afirma Poerner, a UNE foi a primeira entidade de
massa nacional a se reestruturar.602
A importância desse fato se revela pela grande participação de diferentes correntes que
empunharam a bandeira do retorno da entidade à cena pública, como revela a carta-programa
de uma corrente trotskista: “E mesmo sob o risco da UNE estar sob estas direções com as
quais não partilhamos, nas quais não confiamos, ela [a entidade] significará um grande avanço
na perspectiva de unificação das lutas dos estudantes a nível nacional.”603
Independentemente da disputa política, os estudantes estavam certos de que o caminho
a ser trilhado contra a ditadura perpassava pela refundação da sua entidade representativa. A
UNE, assim, estava reconstruída, como atesta o título de uma reportagem da imprensa: “UNE:
a volta por cima.”604
Nos meses que se seguiram, a diretoria provisória continuou se reunindo
constantemente e deliberando pontos de luta que se centraram na questão da anistia “ampla,
geral e irrestrita” e nos pontos referentes ao ensino pago605
. Ainda em setembro, realizaram
uma reunião do Conselho de Entidades Gerais (CONEG da UNE) para deliberar sobre esses
pontos, bem como sobre o formato da eleição direta que ocorreria em outubro.606
Enfim, em 3 e 4 de outubro, ocorreu a primeira eleição direta da história da entidade.
Cinco chapas concorreram, representando (e agrupando) diferentes tendências do movimento:
“Mutirão”, encabeçada pelo baiano Rui César, uniu as tendências “Caminhando”, “Viração” e
“Refazendo” (basicamente APML e PC do B); “Unidade”, cujo candidado à presidência foi
Paulo Massoca, aluno do curso de Engenharia Civil da USP São Carlos, agregando forças
principalmente do PCB e MR-8; “Novação”, formada por militantes da Convergência
Socialista, encabeçada por Eduardo Albuquerque, diretor do DCE/UFMG; “Libelu”,
encabeçada por Josimar Moreira de Melo Filho, do curso de Arquitetura da USP; e,
602
POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil-
Colônia até o governo Lula. 5. ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. p. 290. 603
Viramundo. XXXI Congresso da UNE: reconstrução, maio 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP,
cx. n. 36). 604
UNE: a volta por cima. Movimento, 14 a 20 maio 1979, p. 13. 605
Os relatos das primeiras reuniões e pontos deliberados podem ser encontrados em um documento escrito pelo
representante da UEE/SP na diretoria provisória (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP. Livraria Palavra.
121). 606
Entidades gerais da UNE reúnem-se para definir chapas. Folha de S. Paulo, 08 set. 1979.
187
finalmente, a chapa “Maioria”, que representava a “direita” do ME, encabeçada pelo
estudante de Direito do Largo de São Francisco (USP) Marcos Paulino Martins.607
Em torno de 300.000 estudantes votaram nas eleições que consagrou vencedora a
chapa “Mutirão”, com mais de 107.000 votos, e em segundo lugar a chapa “Unidade”, com
mais de 80.000 votos. Depois de dez anos, o ME encerrava um ciclo, com a reconstrução da
sua entidade nacional.
607
Várias foram as reportagens na Grande Imprensa que cobriram as eleiçoes da UNE. A Folha de S. Paulo
trouxe no suplemento de educação uma grande reportagem, contendo cada uma das chapas, suas propostas e os
nomes dos diretores (Os programas definidos para as cinco chapas. Folha de S. Paulo, 30 set. 1979, Educação,
3º Caderno, p. 35).
188
CAPÍTULO 4 − A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DO PASSADO
PELO ME
Dentre os eventos/momentos marcantes da resistência do ME durante os anos de 1970,
podem ser destacados alguns que serviram-se das diferentes “ordens do tempo” para realizar
propostas de resistências simbólicas. Entendo como “ordens do tempo” ou “regime de
historicidade”, referência empregada por François Hartog, a “costura” de diferentes regimes
de temporalidade que traduz e ordena as experiências do tempo articulando passado, presente
e futuro e dando sentido à relação entre as diferentes temporalidades. Hartog refere-se a um
regime de historicidade entendido como a maneira pela qual uma sociedade trata seu passado
e como se propõe a utilizá-lo.608
Neste capítulo procuro analisar a memória do ME, mas não me restrinjo às lembranças
dos eventos/momentos apenas, mas procuro mostrar como a memória é reconstruída para ser
utilizada como forma de resistência contra o regime e reconhecimento no próprio grupo. Em
suma, analiso o uso político que o ME fez do passado.
Cabe ressaltar que todo e qualquer uso da memória pressupõe um trabalho sobre o
passado e Paul Ricoeur se refere a esse trabalho como instrumentalização da memória609
. Esse
uso pragmático da memória não significa maquiavelismo ou oportunismo, mas está
relacionado a um cenário de luta entre diferentes atores, que atribuem diferentes sentidos ao
passado. No caso do ME, a luta pela memória estava relacionada ao combate à ditadura.
Maria Helena Capelato610
, apoiada nos estudos de Elizabeth Jelín, em seu trabalho
sobre a memória da ditadura militar na Argentina, afirma que não existe uma única
interpretação do passado, havendo oposições entre memórias rivais: uma “luta da memória
contra memória”. A historiadora brasileira mostra que as memórias “são objetos de disputas e
conflitos nos quais os participantes desempenham papel ativo como produtores de sentidos
nessas lutas”. Nesse caso, segundo Capelato, “o debate sobre o passado é colocado na esfera
608
HARTOG, François. Regimes d‟historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 19. 609
RICOEUR, Paul. La mémoire, l‟histoire, l‟oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 97. 610
CAPELATO, Maria Helena. Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história. Revista Clio:
Revista de Pesquisa Histórica, Recife, Editora Universitária da UFPE, n. 24, p. 61-82, 2006.
189
pública e a intenção é estabelecer, convencer, transmitir uma narrativa que possa ser
aceita”.611
Procuro mostrar como o ME, nos anos 1970, valeu-se de uma certa dimensão temporal
(com projeções tanto para o passado como para o futuro), criando, nesse caso, um regime de
historicidade baseado nos momentos-chaves de sua história, com vistas a forjar uma
identidade de grupo, através da qual foram construídos “mitos”, “mártires” e “heróis” que
alimentavam e sustentavam a resistência contra o regime vigente.
Destaco dois momentos/eventos que foram instrumentalizados politicamente pelos
representantes do ME: a morte de estudantes e a reconstrução da história da UNE.612
4.1 As mortes na resistência contra o regime
A morte de Alexandre Vannucchi Leme pelo DOI-CODI, em 16 de março de 1973, já
foi tema de alguns trabalhos613
, como é o caso do livro Cale-se, do jornalista Caio Túlio
Costa, que relata, a partir de depoimentos da época, as atividades do movimento estudantil na
USP durante o período compreendido entre a morte de Alexandre e o show de Gilberto Gil na
Escola Politécnica, em maio de 1973.
Para além da descrição dos fatos, já bem relatados na historiografia existente, pretendo
refletir como a morte de Alexandre Vannucchi Leme foi utilizada, ao longo da década, como
instrumento político pelos estudantes, como forma de combate contra o regime.
Além da morte de Alexandre, outras duas mortes foram instrumentalizadas pelos
estudantes: a do então presidente da UNE Honestino Guimarães, também em 1973, e a do
611
CAPELATO, Maria Helena, Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história, cit., p. 64. 612
Agradeço a Ana Paula Goulart Ribeiro pela leitura atenta deste capítulo e pelas suas sugestões. 613
Além dos trabalhos que serão citados ao longo do capítulo, o artigo encontrado mais recentemente é: IKEDO,
Fernanda. Memória: 35 anos da morte do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme. Cadernos AEL: Anistia
e Direitos Humanos, Campinas, Unicamp/IFCH/AEL, v. 13, n. 24/25, p 147-165, 2008. A jornalista apresenta
um panorama da formação de Alexandre, até sua atuação estudantil, passando pela sua prisão e morte, a missa,
a homenagem com um nome de praça cinco anos após sua morte, o retorno do seu corpo dez anos depois, entre
outros dados.
190
estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, em 1968. Tento refletir sobre as diferenças
no plano histórico e as semelhanças no plano memorial que as três mortes acabaram por
espelhar, observando ainda porque a morte do estudante (que não era necessariamente um
militante) Edson Luis se tornou um importante “ponto de memória”, quando comparado às
outras duas.
Cabe ressaltar, de início, que a morte ligada à violência e ao sacrifício patriótico614
constitui um elemento privilegiado para sua instrumentalização política, que a transforma em
evento carregado de forte conotação simbólica por parte dos que dela se apropriam, chegando
mesmo a transcendê-la615
, através da perpetuação das características dos personagens por
parte daqueles que delas se utilizam.
Alexandre Vannucchi Leme616
, também conhecido como Minhoca, à época tinha 22
anos, era aluno do quarto ano do curso de Geologia da USP (o primeiro colocado no
vestibular, como frisam vários documentos) e, segundo depoimento de Geraldo Siqueira
Filho, “era popular, era o cara do bumbo da escola de samba da Geologia”617
. Militante da
ALN (Ação Libertadora Nacional), como explica Victória Langland, era o coordenador
político da organização dentro da USP, fazendo a ligação com os grupos que se encontravam
na clandestinidade618
. Estava aí o motivo para justificar a morte do “terrorista” pelas
autoridades responsáveis.
A morte de Alexandre já surgiu cercada de ambiguidades por parte dos relatos do
DOI-CODI. O brasilianista Kenneth Serbin619
aponta duas informações diferentes que foram
distribuídas pelos agentes de segurança: a primeira, para “consumo público”, foi enviada à
614
Como ressalta Christian Amalvi (Les héros de l'histoire de France: recherche iconographique sur le panthéon
scolaire de la troisième République. Paris : Phot‟oeil, 1979. p. 246). 615
Mariana Martins Villaça reconhece essa questão nas músicas que são feitas em memória de Che Guevara (“El
nombre del hombre es el pueblo”: as representações de Che Guevara na canção latino-americana.
CONGRESSO LATINO-AMERICANO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA
MÚSICA POPULAR, 5. Anais... p. 3. Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html>. Acesso
em: 10 jan. 2010). 616
Ver a foto de Alexandre V. Leme (Anexo XIV). 617
Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em
01.12.2004. 618
LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In: JELIN,
Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos juveniles. Buenos Aires: Siglo
XXI, 2006. p. 49. (Colección Memórias de la Represión). 619
SERBIN, Kenneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. p. 382-407.
191
imprensa em 22 de março e afirmava que o estudante tinha sido atropelado por um caminhão
ao tentar fugir da polícia. O jornal O Globo repetiu essa versão, nos seguintes termos:
“Os órgãos de segurança revelaram que o terrorista Alexandre Vannucchi
Leme, conhecido como „Minhoca‟, morreu atropelado por um caminhão
quando tentava fugir ao ser levado por agentes a um encontro com outro
terrorista, no cruzamento das ruas Bresser e Celso Garcia (...) Três
testemunhas contaram que presenciaram o acidente em que morreu o
terrorista. [Uma delas] Alcino Nogueira de Souza, empregado de balcão da
Confeitaria Santa Cruz (...), chegou a servir uma cerveja ao terrorista. Viu
quando ele olhou para um lado e para o outro, atravessou correndo a rua e
foi colhido pelo caminhão.”620
Os testemunhos que fizeram parte do inquérito sobre a organização ALN621
, motivo
pelo qual Alexandre foi preso e, consequentemente, sobre a morte do estudante, seguem na
mesma linha: o de Alcino Nogueira de Souza, o de André Corte (o engraxate) e o de Josué
Sales Bitencourt (que trabalhava no bar “Videira”) apresentaram a mesma versão, com alguns
detalhes precisos sobre “acontecimento” e outros completamente descabidos. Como, por
exemplo, o engraxate André relata que ele estava de costas para a via pública e, por ter
“problema de audição”, não escutou o choque do caminhão contra Alexandre e só se deu
conta do ocorrido quando o estudante cambaleou por cima dele.622
Segundo Kenneth Serbin, outra versão foi dada aos detidos que se encontravam no
local: Alexandre cometera suicídio. Adriano Diogo, preso dois dias depois de Alexandre,
lembra que em meio a uma sessão de tortura, soube da notícia, por um agente da repressão, de
que o Alexandre acabara de morrer. Então perguntou: “Como assim? Ele foi cobrir um ponto
e se atirou debaixo de um caminhão? [o agente disse] Estava preso aqui desde ontem e acabou
de morrer. Aquela cela que você viu, toda molhada, era a dele, nós lavamos a cela e você
entrou.”623
Aos pais de Alexandre foram ditas também as duas versões por delegados diferentes: o
delegado Fleury referiu-se a suicídio e Edsel Magnotti afirmou que foi atropelamento624
. Para
encobrir as versões conflitantes, foi negado o direito aos pais de verem o corpo do filho, que
620
Subversivo tenta fugir mas morre atropelado. O Globo (GONZALEZ, Marina. Assassinato de Alexandre
Vannucchi Leme gerou protestos da sociedade. Revista ADUSP, p. 73, maio 2005). 621
AEL/BNM 670. 622
Secretaria de Segurança Pública/DEOPS. Segunda Testemunha. Idem. Folha 82. 623
Depoimento de Adriano Diogo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 11.11.2004. 624
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 19.
192
fora enterrado como indigente, aumentando, assim, as suspeitas de assassinato do jovem pela
repressão. Os pais só tiveram acesso aos restos mortais de Alexandre dez anos depois do
ocorrido.
É importante lembrar que a morte de Vannucchi ocorreu em 1973, ano da
comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (como vimos no
primeiro capítulo), que serviu de “mote” para a incriminação da ditadura no assassinato do
estudante. E foi também nesse ano que a CNBB encampou a campanha contra a violação dos
direitos humanos.625
Outro ponto merece destaque: no início do ano letivo de 1973, através do “Bichusp”,
os estudantes procuraram dar continuidade às ações que tinham ganhado fôlego no final do
ano anterior devido ao plebiscito contra o ensino pago: o episódio teve repercussão inclusive
na Grande Imprensa que, no caso da morte de Alexandre, se restringiu a fornecer a nota
oficial do DOI-CODI, evidenciando censura.
Pelo exposto, constata-se que as ações desencadeadas a partir da morte do estudante
uspiano não foram eventos “isolados” na história, como demonstram alguns trabalhos626
, mas
fizeram parte de um processo de construção de abertura de canais de resistência contra o
regime.
Tendo em mente esses aspectos, torna-se compreensível a rápida e forte
movimentação feita pelos estudantes da USP, quando chegou a notícia da morte de Alexandre
na Universidade. Geraldinho relembra:
“[alguém] apareceu branco no centrinho da Geografia, dizendo: “Mataram o
Minhoca! Amanhã a escola vai explodir!”. Falei: “Segura, porque nós
precisamos sair juntos. Quem sair sozinho vai ser massacrado.” Aí, houve
um levante na USP: assembleias isoladas, pano preto no lugar da bandeira
brasileira...”627
625
Ainda para efeitos de contextualização, é no início dos anos 1970 que surgem os primeiros trabalhos sobre a
teologia da libertação, que utiliza conceitos marxistas que já estavam expressos nos escritos da JUC no início
da década de 1960. Para Michel Löwy, alguns documentos produzidos “estão impregnados de marxismo, não
só como mediação analítica, mas também como projeto utópico-social de emancipação dos oprimidos”
(Cristianismo da libertação e marxismo. In: RIDENTI, Marcelo; REIS FILHO, Daniel A. (Orgs.). História do
marxismo no Brasil: partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Unicamp, 2007. v. 6, p. 425). 626
COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit. Izabel Priscila Pimentel da Silva diz: “A morte e o funeral de Alexandre
(...) marcaram o início do processo de recuperação política do movimento estudantil universitário brasileiro.”
(Jovens, estudantes e rebeldes: a construção das memórias estudantis. In: ENCONTRO REGIONAL
SUDESTE DE HISTÓRIA ORAL, 7., 2007, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2007. 627
Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em
01.12.2004.
193
Ponto importante, salientado também por Caio Túlio Costa, é que as diferentes forças
políticas que existiam dentro da USP, com suas diferentes visões da realidade brasileira, e
principalmente diversas formas de ação, se uniram para denunciar a morte do colega, numa
ação conjunta. Tanto que a primeira manifestação dos estudantes foi o manifesto sobre a
morte de Alexandre elaborado pelo CCA, no qual se informava que “todos os colegas da USP
e de algumas escolas da PUC-SP estão em luto”.628
O manifesto se refere à questão dos direitos humanos, vista como principal pauta
reivindicativa do momento. O documento cita a prisão de Alexandre de forma clandestina,
como era de hábito naquele período, mas designando que ela feria a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, do qual o Brasil era signatário629
. O manifesto ressaltava as qualidades
do colega:
“Alexandre gozava de excelente reputação entre os alunos e professores da
sua escola. Estudante exemplar, aprovado em primeiro lugar nos
vestibulares, era ativo participante em todos os níveis da vida universitária.
Sua dedicação ao curso e o profundo respeito e estima que seus colegas lhe
devotavam, levaram-no a ser eleito representante oficial dos alunos na
Congregação do Instituto de Geociências.”630
O regime procurava legitimar seus atos com a justificativa de combater o terrorismo.
Para impedir que Alexandre fosse taxado de “terrorista”, os estudantes ressaltaram sua
imagem positiva (pessoa correta, bom amigo, estudioso, “justo”631
). A imagem do estudante
de geologia “vítima da repressão” passou a ser utilizada pelos estudantes para legitimar a luta
contra a ditadura, o que representou um “tiro no pé do próprio regime”.
Os eventos que se seguiram permitiram a contestação da ditadura por parte do
movimento. Mostraram que o discurso oficial, propagado pelos militares, muitas vezes
628
Comunicado sobre a morte do colega Alexandre Vannucchi Leme. PoliCampus. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA). 629
Ibidem. 630
Ibidem. 631
Sarah Gensburger descreve como a figura do resistente passa a ser referenciada como a figura do justo na
memória histórica francesa da ocupação. Aborda que a figura do justo é associada aos valores morais, cristãos,
que eram precisamente evocações iniciais do resistente. Apesar do diferente contexto exposto pela autora, o
conceito nos ajuda a entender como a figura de Alexandre foi retratada pelo movimento. Para aprofundamento
da questão, ver dois artigos da autora: Les figures du juste et du résistant et l‟évolution de la mémoire
historique française de l‟occupation. Revue Française de Science Politique, v. 52, n. 2-3, avril/juin 2002, p.
291-322; Usages politiques de la figure du Juste: entre mémoire historique et mémoires individuelles. In:
ANDRIEU, Claire; LAVABRE, Marie-Claire; TARTAKOWSKY, Danielle. Politique du passé: usages
politiques du passé dans la France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence,
2006. p. 47-57. (Collection Le Temps de l‟Histoire).
194
encarado como uma verdade “una e definitiva” por boa parte da sociedade, poderia ser
utilizado como forma de mostrar as ambiguidades do regime, colaborando para o desgaste de
sua imagem. Como afirma Caio Túlio Costa, “acionados indiretamente pela própria repressão,
todos os mecanismos de organização estudantil se reestruturavam a partir de um dado-chave:
mataram um militante estudantil”632
. Segundo o jornalista, foi a partir desse momento que
começou a se “azeitar” a máquina de propaganda dos estudantes. Ainda é preciso levar em
conta, como afirmou o historiador Marcelo Santos de Abreu, o sentido de coesão que o luto
desperta, para compreender sua integração à cultura “cívica” que então se forjava.633
Nesse contexto fica clara a estratégia deliberada do uso da morte do colega, desde as
primeiras manifestações. O próprio comunicado sobre a morte, assinado pelos CAs da USP,
frisa a questão: “(...) luto que não traduz apenas o nosso imenso pesar pela irreparável perda
do colega Alexandre, como também nossa união para repudiar este ignominioso estado de
coisas a que nos vemos submetidos e assumir conscientemente a posição de dizer-lhe um
basta.”634
A ideia de celebrar uma missa em homenagem a Alexandre partiu dos estudantes da
Geologia, aprovada pelo CCA. O propósito era realizá-la dentro da USP pelo então recém-
nomeado cardeal D. Paulo Evaristo Arns. Mas foi o próprio D. Paulo quem sugeriu realizar o
evento na Catedral da Sé, o que traria ainda mais holofotes para a ação.
Nesse caso, os estudantes trataram de se cercar de apoios, não só como maneira de
conseguir “proteção”, mas também como forma de mostrar força. OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa), MDB e Arquidiocese
apoiaram o evento proposto pelo CCA. A realização de uma missa em memória do estudante
assassinado pela ditadura acabou por se constituir em arma de denúncia do regime e dos seus
atos criminosos, uma maneira encontrada de passar pela censura, fazendo com que a denúncia
da ditadura extrapolasse o campus da universidade, ao qual estivera restrita nos últimos anos.
632
COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 76. 633
ABREU, Marcelo Santos de. Os mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos da Revolução
Constitucionalista de 1932 (1932-1957). Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2010. p. 154. 634
Comunicado sobre a morte do colega Alexandre Vannucchi Leme. PoliCampus. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA).
195
O ato em si mostra o planejamento politicamente engajado de um grupo de estudantes
na luta contra o regime. Além de buscarem o apoio das entidades que já estavam se
posicionando contra o regime, os estudantes trataram de divulgar o evento. O convite para a
missa, em seu verso, continha um poema escrito para Alexandre:
A liberdade voa
Cortaram as tuas asas
A vida é um correr
Quebraram as tuas pernas
Mãos, umas pedindo
Outras, negando
As tuas, ofereciam
Os algozes as algemaram
Corpos que se movimentavam
E agonizavam na seleção natural
Do cotidiano
O teu, fizeram-no adormecer
Nada disso traz medo
O teu sangue corre nas veias
De teus irmãos
Eles não morreram
A verdade ainda sobrevive.635
A simbologia utilizada para tratar as questões referentes ao regime, expressa através
de jornais e murais universitários, ganhou contornos mais nítidos nesse evento solene e
sacramentado contra a ditadura. Nos versos, palavras de ordem do momento transformaram-se
em poesia que tinha também o sentido de denunciar o presente vivido e acalentar a esperança
de mudar o futuro. Chamo atenção para o fato de que, nesse episódio, estava presente a tensão
entre as duas categorias históricas construídas por Koselleck para explicar a relação entre
passado e futuro: o campo da experiência e o horizonte de expectativa.636
A realização da missa na Catedral da Sé, em 30 de março, contou com a participação
de 25 sacerdotes e em torno de 5.000 pessoas, na sua grande maioria estudantes. Era a
primeira grande manifestação pública dos tempos sombrios do regime. O aparato militar,
enorme, contava com uma metralhadora de frente para a Catedral e câmaras da TV Gazeta
635
Póstumas a Alexandre. Extraído do convite para missa de 7º dia de Alexandre Vannucchi Leme (COSTA,
Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 90). 636
“Experiência e expectativa são duas categorias que, entrecruzando passado e futuro, estão perfeitamente aptas
a tematizar o tempo histórico. Essas categorias podem detectá-lo (o tempo histórico) até o domínio da pesquisa
empírica, pois, concentradas em seu conteúdo, guiam as ações concretas na realização do movimento social ou
político.” (KOSELLECK, Renhart. Le futur passé. Contribuition à la sémantique des temps historiques. Paris:
EHESS, 1990. p. 310 minha tradução).
196
que filmavam rosto a rosto daqueles que se faziam presentes, com o “pretexto de transmitir a
missa”.637
A celebração foi carregada da solenidade que lhe era apropriada e permitida. As
palavras davam conteúdo a ela. Em seu sermão, D. Paulo Evaristo Arns proclamou:
“Só Deus é dono da vida. D‟Ele a origem, e só Ele pode decidir seu fim. (...)
O próprio Cristo quis sentir a ternura da mãe e o calor da família ao nascer.
E mesmo depois de morto, o cadáver foi devolvido à mãe e aos amigos e
familiares. Esta justiça lhe fez o representante do poder romano, embora
totalmente alheio à Sua missão de Messias.”638
Marcos Napolitano, num outro contexto, analisou a missa de Vladimir Herzog
ocorrida em 1975, evidenciando a apropriação das representações religiosas cristãs utilizadas
numa perspectiva de protesto político639
. A evocação da figura de Cristo para caracterizar o
mártir640
(no caso, Vladimir Herzog) tinha antecedentes: o ato religioso em homenagem a
uma vítima da ditadura já tinha ocorrido em 1973 com personagem distinto, no caso
Alexandre Vannucchi. Ou seja, nos dois episódios, o sagrado e o profano ou, noutros termos,
o religioso e o político, se mesclaram totalmente.
Para finalizar a missa em homenagem a Alexandre, o cantor Sérgio Ricardo teve uma
participação especial, cantando sua nova música, “Calabouço”, composta em homenagem a
outro estudante morto pela ditadura: Edson Luis, em 1968. A letra de “Calabouço”, como
ressalta Roberto Bozzetti, instaura uma tensão entre o dizer e sua impossibilidade, entre o dito
e o interdito: “A urgência do „dizer a verdade‟ está referida como obstáculo no próprio texto
da canção: „do canto da boca escorre/metade do meu cantar‟”641
. O autor ainda mostra que as
imagens de incompletude, por força da ação repressiva externa, complementavam-se com as
637
Caio Túlio Costa narra os detalhes da missa (Cale-se, cit., p. 93-109). 638
COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 98. 639
NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 64. 640
Tomamos o conceito de mártir na sua acepção mais simples: surgindo da terminologia cristã, “testemunho de
Deus” segundo a etimologia, significa aquele que sofre os piores tormentos por causa de sua fé, chegando à
morte. Seu comportamento exemplar é ressaltado em detrimento de sua “falha”, que leva ao seu sacrifício.
Enfim, pessoa que morre, que sofre em nome de uma causa (ROBERT, Paul. Le nouveau petit Robert:
dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Texte remanié et amplifié sous la direction de
Josette Rey-Debove et Alain Rey. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2002. p. 1.580 minha tradução). 641
BOZZETTI, Roberto. Uma tipologia da canção no imediato pós-tropicalismo. In: VIEIRA, André Soares
(Org.). Literatura, outras artes & cultura das mídias. Letras, Santa Maria, RS, Programa de Pós Graduação em
Letras (PPGL), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), n 34, p. 133-146, jan./jun. 2007. Disponível em:
<www.ufsm.br/ mletras/arquivos/LETRAS/LETRAS_34/revista34.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2010.
197
de mutilação e morte: “Seu meio corpo apoiado/na muleta da canção/(...)/ a outra se
gangrenando/na chaga do meu refrão/(...)/meia cama meio caixão”.642
A letra de Sérgio Ricardo era uma metáfora da realidade brasileira, marcada pelo
cerceamento da palavra. O ato da Sé foi a possibilidade encontrada para explicitar, não o dito,
mas o interdito. Também se pode dizer que, nos casos mencionados, o uso estratégico e
calculado643
do conceito de “vítima” permitia reforçar a resistência contra o regime.
A missa terminou com outra canção cantada por Sérgio Ricardo, mas dessa vez a de
Geraldo Vandré, Pra não dizer que não falei de flores, ícone das músicas de protesto e vice-
campeã do Festival Internacional da Canção, também de 1968. A multidão que lotou a Sé saiu
cantando os versos de Vandré, como relembra Geraldo Siqueira: “Vem, vamos embora, que
esperar não é saber... Todo mundo começou a cantar, mais para espantar o medo, porque
cantar ajuda, né?”644
A repercussão do ato da Sé foi significativa para o movimento. A mídia estava
censurada e não podia noticiar eventos dessa natureza (diferentemente do que ocorreu no
período anterior, quando a morte de Edson Luis foi noticiada em âmbito nacional). Mas, se a
notícia da celebração da Sé não foi conhecida pela grande massa da população, o mesmo não
ocorreu no que se refere à sua circular pelas universidades em todo país645
. O jornal
PoliCampus, numa edição inteiramente dedicada à Declaração Universal dos Direitos
Humanos, veiculou o primeiro comunicado do CCA sobre a morte de Alexandre.646
Houve repercussão dentro do próprio meio militar, como recorda Adriano Diogo, que
estava preso naquele momento: “No dia da missa do Alexandre, o que eles xingavam o
cardeal Dom Paulo Evaristo Arns... Eles não perguntavam nada. Abriam as celas e
642
BOZZETTI, Roberto, Uma tipologia da canção no imediato pós-tropicalismo, op. cit. 643
GENSBURGER, Sarah, Les figures du juste et du résistant et l‟évolution de la mémoire historique française
de l‟occupation, cit., p. 314. 644
Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em
01.12.2004. 645
Ver telegrama de solidariedade aos estudantes da USP pela morte de Alexandre, enviado pelo DCE e CAs da
PUC-Rio (Anexo XV). 646
PoliCampus. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs
da FFCH/UFBA).
198
começavam a bater dentro, não levavam nem pra sala de tortura, era porrada com uns
paus!”647
Destarte, é possível afirmar que a morte de um estudante foi motivo para a
organização de um evento que enfrentou a ditadura no momento em que a mesma ainda se
encontrava “escancarada”, segundo Elio Gaspari648
. Toda simbologia utilizada mostra a
preparação, e porque não dizer a maturação, de um grupo de estudantes que, da maneira que
lhes era possível, enfrentava a ditadura. Enfrentar a ditadura era continuar resistindo,
resistência essa que se revestia de uma dimensão mítica, segundo Laurent Douzou.649
Caio Tulio, ao refletir sobre o sentido da manifestação de 1973, afirma que as músicas
cantadas na missa serviram de ligação entre as manifestações dessa época e as dos anos 1960,
que foram interrompidas a força. Segundo o autor, depois de anos, esse teria sido, em termos
de ação de massas, “o primeiro ato de uma retomada da presença política dos jovens”, com
uma diferença em relação às formas de luta: os jovens vinham em paz650
. No entanto, como
procurei mostrar nos capítulos anteriores, esse “primeiro ato” público só foi possível porque
existia uma militância engajada que continuou a realizar pequenas ações dentro da
universidade, mesmo depois que as ações de massa foram interrompidas. Sem dúvida, esse foi
o momento que estudantes e parte do clero encontraram uma “brecha” para realizar um
protesto nos “anos de chumbo” da ditadura. E souberam aproveitar a ocasião.
Mas o que chama maior atenção na análise de Costa, e concordo com a observação do
autor, quando aponta para uma nova forma de luta – a pacífica – fruto também da autocrítica
dos que haviam defendido a luta armada. Nesse sentido, a manifestação de 1973 não
significou um retorno às manifestações de 1968. Portanto, é possível concluir que a conexão
de datas se dá no plano da “memória” genérica de lutas contra a ditadura, o que não deixa de
ser uma forma de utilização política do passado, com vistas a legitimar a resistência contra o
regime no presente.
647
Depoimento de Adriano Diogo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 11.11.2004. 648
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002. 649
DOUZOU, Laurent. La constituition du mythe de la résistance. In: FRANCK, Christiane (Dir.) La France de
1945: résistances, retours, renaissances. Actes du colloque de Caen. Caen: Presses Universitaires de Caen,
1996. p. 77. 650
COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 103.
199
Com relação ainda à rememoração do passado com fins políticos, cabe lembrar que as
mortes de Alexandre e Edson Luís aconteceram em datas próximas à das comemorações
cívicas ocorridas por ocasião dos aniversários da “revolução”. Diante dessa proximidade de
datas, o ME, que naquele momento ainda era um dos poucos canais com possibilidade de
manifestar oposição moderada, traçou seu próprio calendário de comemorações, com vistas a
transformá-las em ato político.
As datas das mortes dos dois estudantes passaram a representar uma luta do “bem
sobre o mal” e serviram de referencial para a militância nos anos subsequentes. Ao longo dos
anos 1970, esse calendário foi constante, como marca Victória Langland, que ainda demonstra
seu “desuso” regular após esse período651
, o que aponta sua necessidade de instrumentalização
no período anterior. Essa afirmação corrobora as reflexões propostas por Capelato, quando
afirma que os processos históricos ligados às memórias de um passado marcado por conflitos
oscilam entre momentos de maior ou menor visibilidade desse passado, momentos de fortes
lembranças e momentos de esquecimentos.652
Victória Langland evidencia que essas comemorações serviram para “unir” as
sucessivas gerações de estudantes653
, apontando a inocência dos estudantes como ponto
comum.
Apesar de concordar com a historiadora, esta pesquisa permite acrescentar que a
“união”, realizada no plano memorial, serviu como forma de resistência no plano histórico.
Apesar de estarem unidos por um mesmo tempo histórico – o da ditadura –, é preciso levar
em conta a grande diferença de conjuntura entre os dois momentos: 1968 e 1973, e também as
circunstâncias específicas das mortes dos dois estudantes.
Edson Luis654
tem uma trajetória diferente: não era um militante engajado na luta
contra o regime655
. Ele encarnava os ideais de um jovem pobre nortista que vinha para o Rio
651
LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 61. 652
CAPELATO, Maria Helena, Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história, cit., p. 76. 653
LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 23. 654
Ver foto do velório de Edson Luís (Anexo XVI). 655
Interessante mostrar um depoimento realizado em 1968 pelo DOPS: “Prestando declarações disse Jaime
Pereira dos Santos: que conheceu o estudante Edson Luiz Lima Souto desde que o mesmo começou a
frequentar o Instituto Cooperativo de Ensino, que funciona anexo ao Restaurante Central dos Estudantes; que
isso ocorreu tem 6 meses; que a princípio Edson Luiz não dormia no local; que em fins de dezembro passou a
dormir no local; que assistiu várias vezes os líderes dos estudantes frequentadores do restaurante expulsarem
200
de Janeiro estudar em busca de “um lugar” dentro da sociedade, como afirma Langland656
.
Por isso, a imagem de inocência levantada pela brasilianista exprime esse caso. Além disso, a
morte de um estudante foi um fator “novo” naquele momento histórico, em 1968, que passou
a ser muito bem utilizado pelos estudantes que se encontravam organizados nacionalmente,
naquele momento e nos posteriores.
Langland ainda ressalta a importante cobertura jornalística657
da morte do estudante
paraense, esquecendo de mostrar que nesse momento, as elites liberais começavam a se
colocar contra o regime instaurado quatro anos antes, e por isso a ampla divulgação da morte.
A mobilização nacional dos estudantes encontrou eco nas páginas dos jornais e revistas da
Grande Imprensa (bem como da oposicionista), o que levou o evento a ter uma grande
repercussão, tornando-o um “ponto de memória”, não somente na história do ME, como
também lembrado pela sociedade em geral. Nesse sentido, a morte de Edson Luís teve seu
significado reapropriado pelo próprio movimento, que forjou um mito658
em torno dela: o
estudante “ressurge” como um ícone da resistência estudantil.
Já Alexandre Vannucchi Leme era um militante que foi preso, torturado e morto
propositalmente pela ditadura, por lutar por ideias contrárias do regime. Sua morte foi
explorada com vistas a exaltar seu sacrifício em nome da causa comum e, nesse sentido,
tornou-se um mártir. Compartilho das reflexões de Langland, quando afirma que o ME
utilizou (também) a imagem da “inocência” e vítima, deixando de lado a militância de
esquerda de Alexandre naquele contexto. A morte do estudante de geologia foi o motivo
encontrado pelos estudantes, com ajuda da Igreja, para extrapolar as manifestações contra o
regime dos muros da universidade, num tempo em que ainda toda forma de protesto era
censurada. Serviu ainda para referenciar a luta dos estudantes, para mostrar a resistência que
eles mesmos vinham fazendo contra a ditadura, afirmando, assim, uma política simbólica que
Edson Luiz do local, sob alegação que ele ali não poderia permanecer; que Edson alegava a sua condição de
estudante e não tinha onde dormir, passando então a ser tolerada a sua presença no local (...).” (DOPS SI n.
Sp/12 em 23.04.1968. Informação APERJ. Fundo Polícia Política setor estudantil. Notação 37. p. 133). 656
“A significação simbólica da sua presença no Rio foi crucial para um ME que buscava criticar o elitismo do
sistema educativo nacional.” (LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la
memoria, cit., p. 27). 657
Ver capa da revista Manchete com o caixão de Edson Luis (abr. 1968). (Anexo XVII). 658
Segundo Raoul Girardet, o mito político pode ser encarado como uma fabulação, deformação ou ainda uma
interpretação objetivamente recusável do real. Como narração de fatos legendários, o mito político exerce uma
função explicativa, fornecendo certo número de chaves para a compreensão do presente. Um sistema de
explicação e mensagem mobilizadora. Para um aprofundamento da questão, ver: GIRARDET, Raoul. Mythes
et mythologies politiques. Paris: Seuil, 1986.
201
serviria de apoio à luta política stricto sensu que continuaria a ser desenvolvida nos anos
seguintes.
Assim, com trajetórias históricas diferentes, as mortes dos estudantes passaram a ser
ressignificadas no plano da memória evocada pelo movimento. Se se levar em conta que o ato
da memória encontra seu sentido através do contexto em que ele se enuncia659
, fica mais claro
entender como e por que essas “trocas de significação” acontecem. Além disso, como reforça
Jean Duvignaud, a história não é uma construção cristalizada por um grupo estabelecido para
se defender contra a erosão permanente da mudança660
. Ela se encontra em permanente
construção, em constante adaptação.
Portanto, é possível inferir que, de fato, as ligações da imagem de Edson Luís e
Alexandre se estendem muito mais no campo da memória661
, apontando para uma estratégia
deliberada dos contemporâneos de Alexandre em utilizar o passado, com vistas a corroborar a
prática de resistência contra o regime.
A partir da construção da resistência mítica, as figuras de Alexandre Vannucchi Leme
e Honestino Guimarães662
(preso em outubro de 1973, integrou a categoria dos “desaparecidos
políticos”), que possuem semelhanças nas suas trajetórias, são ligadas a Edson Luís (apesar de
não ter sido militante) através da “lembrança”, tornando-se ambos “mártires” do movimento
estudantil. As representações construídas pelas lideranças do movimento, ao mesmo tempo
justificavam a necessidade de resistência e fortaleciam o ME, através da construção de um
imaginário no qual esses personagens ganhavam um sentido, ao mesmo tempo heróico (épico)
e religioso.
659
LAVABRE, Marie-Claire. Du poids et du choix du passe: lecture critique du “syndrome de Vichy”. In:
PESCHANSKI, Denis; POLLAK, Michael; ROUSSO, Henry (Dirs.). Histoire politique et sciences sociales.
Paris: Institut d‟Histoire du Temps Present, 1991. p. 181. (Cahiers de l‟Institut du temps Présent, n. 18). 660
DUVIGNAUD, Jean. Préface. In: HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. 2. ed. Paris: PUF, 1968.
p. XIII. 661
Compreendemos aqui que a memória se utiliza de imagens e construções simbólicas do passado, que se
encontram gravadas na nossa sensibilidade (GENSBURGER, Sarah, Les figures du juste et du résistant et
l‟évolution de la mémoire historique française de l‟occupation, cit., p. 293). Marie-Claire Lavabre sugere como
uma “norma memorial” a tendência de uma “homogenização das representações” com um significado para a
sociedade presente e fundado nos usos sociais do passado (Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste.
Paris, Presses de Sciences Po, 1994.) 662
Ver foto de Honestino Guimarães numa passeata, em 1968. (Anexo XVIII).
202
Concordo com Marie Claire Lavabre, quando afirma que o imaginário coletivo serve
para organizar a “memória coletiva” e que ele é construído em razão da vontade de interpretar
o passado, com vistas a projetar o futuro663
. Considero que o imaginário construído pela
resistência estudantil organizada se orientou por esses propósitos: neles se inseriram os usos
políticos do passado, através da rememoração dos momentos mais importantes da luta de
resistência do ME e as homenagens comemorativas de nomes e datas relacionadas aos seus
“mártires”.
Esse foi o caso da atribuição do nome de Alexandre Vannucchi Leme ao primeiro
DCE-Livre do Brasil, em 1976, da USP. A criação de uma entidade livre das “amarras
ditatoriais” era resultado das ações e discussões ocorridas nos anos anteriores. O ato e sua
simbologia tinham como meta desafiar o sistema vigente: nesse caso, o cruzamento entre o
uso funcional e simbólico dessas representações evocava um “lugar de memória”
proporcionado pelo próprio regime, instrumentalizado pelos estudantes.
Por ocasião da realização do III ENE, em 1977, os estudantes aprovaram nas suas
resoluções a realização de um dia nacional de protesto, a ser comemorado a partir de 28 de
março de 1978, quando se completariam dez anos da morte de Edson Luis e cinco anos da
morte de Alexandre. Nesse sentido, cabe lembrar que é sempre em razão do presente e do
futuro que os mortos são ressuscitados.
Em 1978, no Rio de Janeiro, o cardeal Eugênio Sales proibiu as igrejas cariocas de
realizarem cerimônias em memória dos estudantes, alegando que elas só teriam motivação
política. No entanto, as opiniões do cardeal sobre as ações do ME não impediram que, em
assembleias e reuniões ocorridas nas Faculdades da UFRJ, UFF, UERJ, FGV, FEFIERJ e
Universidade Rural fossem feitos preparativos para o ato que aconteceria na PUC-Rio.
A UFMG celebrava também a morte do mineiro José Carlos da Mata Machado,
ocorrida no mesmo ano que a de Alexandre. As tentativas de realização de um ato público na
Faculdade de Direito foram impedidas com bombas de gás lacrimogêneo e as passeatas que
tentaram se formar foram dissolvidas com violência664
. Manifestações como essa ocorreram
663
LAVABRE, Marie-Claire, Du poids et du choix du passe: lecture critique du “syndrome de Vichy”, cit., p.
182. 664
Estudantes: nova bandeira. Revista Veja. 05 de abril de 1978. p. 26.
203
ainda na UFBA, UnB, em várias universidades de Porto Alegre e no interior Rio Grande do
Sul. Na USP, durante a grande concentração na Faculdade de Medicina665
, a mãe de
Alexandre Vannucchi Leme, Eglê Maria, esteve presente no evento, lendo uma carta sua que
enviara ao papa Paulo VI, relatando a morte de seu filho.666
Victória Langland faz uma observação importante sobre o momento: as
comemorações em torno dos estudantes passaram a ressaltar outras características que, na sua
origem, não estavam ligadas à suas imagens. A imagem de “inocência” ligada a Vannucchi
Leme em 1973 passa, cinco anos depois, a ser recordada como o “viril guerreiro na luta pela
liberdade de expressão política”.667
Vê se aqui um deslocamento de sentido significativo: as imagens de Alexandre e
também de Honestino Guimarães, que refletiam a figura do “justo”, em boa medida passaram
a encarnar parte dos ideais preconizados por Che Guevara em seu texto sobre o homem novo,
como ressalta a historiadora Mariana Villaça. Segundo a autora, o ideal de homem
voluntarioso, solidário, militante disposto a qualquer sacrifício, consciente politicamente de
seu papel de cidadão, bem como ciente da importância da conscientização política do povo668
.
Nessa realocação de sentidos, Langland observa que a figura de Edson Luís também passa a
ser vista como o “defensor da democracia”.669
Os mortos aos quais o ME prestou homenagens públicas, como afirma Jörg
Echternkamp, ganham uma significação política, ao inserir o destino individual num contexto
histórico carregado de sentido. A comemoração conjunta do passado deve, então, ser
entendida como um processo político dirigido para o presente e para o futuro670
. Os mártires
665
Ver panfleto da manifestação em memória de Edson Luis e Alexandre Vannucchi Leme. (Anexo XIX). 666
Ibidem. 667
LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 59. 668
VILLAÇA, Mariana Martins, “El nombre del hombre es el pueblo”: as representações de Che Guevara na
canção latino-americana, cit., p. 2. A autora esclarece que o conceito de homem novo é amplo, flexível e
comum a muitos regimes políticos. Apesar de diferentes usos e adaptações do conceito, o ponto comum entre
as variações é a personificação deste no líder e o princípio básico da necessidade do sacrifício pela pátria. 669
LANGLAND, Victória, op. cit., p. 59. 670
ECHTERNKAMP, Jörg. Guerre totale, conflits de memoire et culte des morts em RFA pendant la guerre
froide. Vingtième Siècle: Revue d‟Histoire, n. 104, p. 101, oct./dec. 2009.
204
do ME foram convertidos em símbolos nas disputas que ocorreram no campo político671
,
voltadas para a luta pela redemocratização do país.
Nesse caso, os “mártires” passaram a ser lembrados como figuras que deram suas
vidas em nome de uma causa, o que nessas condições serviria de componente na construção
da identidade e reorganização do movimento, além de importância para a resistência contra o
regime. As características identificadas nos estudantes transcendem suas mortes, através do
“exemplo a ser seguido”.
O fato mostra, enfim, o quanto o uso político do passado é maleável. A comemoração
do “culto aos mortos” constitui uma representação do passado que foi repetida ano após ano e
cada vez com significado diferente.
A instrumentalização e a cristalização da figura de Honestino Guimarães como
“presidente eterno” da UNE teve como momento “chave” o congresso no qual a entidade foi
reconstruída. Na mesa de abertura, a cadeira central da “presidência” foi deixada vazia, e uma
grande foto de Honestino era colocada no centro dos trabalhos.672
O próprio estatuto de Honestino como presidente da UNE reflete as ambiguidades
entre história e memória. Vice-presidente eleito em 1969, passou a coordenar os trabalhos da
UNE, quando Jean Marc Von der Weid foi preso. A disputa entre as forças políticas sobre a
efetivação ou não do congresso que elegeu Honestino, em 1971, como presidente da UNE, se
esmorece frente à memória que passou a ser utilizada pelos estudantes do último presidente da
UNE antes da entidade ser reconstruída (imagem utilizada até hoje em dia).
Os discursos que se seguiram na abertura do congresso enfatizavam o “louvor aos
mártires” da militância estudantil e sua ligação com a questão democrática. Mostravam o peso
do passado da entidade e como foi realizada a “escolha” desse passado, passada aos militantes
daquele momento.
671
Como afirmou o historiador Marcelo Santos de Abreu em sua tese sobre os mártires paulistas da Revolução
Constitucionalista de 1932 (Os mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos da Revolução
Constitucionalista de 1932 (1932-1957), cit., p. 20). 672
Ver foto (Anexo XX).
205
A fala do ex-presidente da UNE de 1963/1964 José Serra673
, carregada dos
simbolismos que permeam a história da entidade, enfatizou “que a memória dos que caíram se
seguirá presente. Desaparecido ou morto, Honestino Guimarães continuará sendo o nosso
companheiro de cada dia, a recordar-nos a necessidade da restauração e do aprofundamento
da democracia”.674
Referenciar Honestino como o “companheiro de cada dia” não deixava de ser uma
ligação da “dimensão épica da resistência” à realidade vivenciada, com vistas a projetar um
futuro. Como afirma Laurent Douzou675
, a resistência, antes de tudo, é uma “aventura”
individual, mas também coletiva, e suas características, como a vida clandestina, com todos os
riscos que implica esse tipo de opção, forjam a dimensão épica para o ato. Nesse caso, a
projeção da imagem de Honestino pelos próprios militantes servia de referência, de “norte”
aos novos militantes.
Victória Langland conclui que a criação e a observância de um calendário político do
próprio movimento em torno dos seus colegas assassinados serviram para sustentar, se não
para regenerar sua identidade política durante o período da repressão676
. Mas a brasilianista
ainda levanta uma questão que se torna fundamental e que vem ao encontro desta tese: ao
reapropriar-se, ano a ano, do significado dessas mortes, os estudantes mostravam uma
continuidade da resistência contra o regime militar677
. E transformaram o sacrifício num
símbolo da luta pela vitória da democracia.
4.2 O uso político do passado na reconstrução da UNE
No III ENE, diferentes propostas convergiam para a necessidade de fazer
“propaganda” da UNE. A organização que encabeçaria o processo de reconstrução da
entidade nacional deveria, segundo propostas da “Refazendo”, divulgar as lutas estudantis e
673
Ver foto do ex-presidente José Serra discursando no Congresso de Reconstrução. (Anexo XXI). 674
ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 47. 675
DOUZOU, Laurent, La constituition du mythe de la résistance, cit., p. 74. 676
LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 62. 677
Ibidem, p. 22.
206
“propagandear a criação da União Nacional dos Estudantes”678
. Em outro documento, a
proposta foi mais contundente: era preciso “divulgar e propagandear a UNE (história da UNE,
necessidade da UNE, etc.)”.679
Tornou-se assim imperativo para o movimento realizar “históricos” da entidade, a fim
de recuperar a “sua própria trajetória”. Essa reconstituição do passado acabou servindo como
eixo norteador para novas propostas que ora ressaltavam as qualidades do modelo no qual
estava pautada aquela articulação, ora o contestava, apontando os erros cometidos no passado.
O resgate da “memória” da entidade, nesse momento, serviu de respaldo para
revalorização da UNE. Serviu também como uma estratégia de definição da nova identidade
do movimento através da memória, como afirma Paul Ricoeur680
. Referenciada em Michel
Pollak681
, acredito que o trabalho de “enquadramento da memória” também pode ser realizado
por associações/entidades que visam a reconstruir sua história através da seleção de fatos e de
uma produção de discursos que possibilitem o controle da sua imagem e a projeção de sua
identidade.
Segundo o historiador espanhol Pedro Ruiz Torres, a história ocupa o centro do debate
político, principalmente no momento de formação de uma identidade nacional, e serve para
justificar as opiniões e ações mais diversas.682
Foi nesse ínterim, entre 1978 e 1979, que surgiram históricos da UNE feitos por
diferentes tendências do movimento, através de DCEs e CAs, desde folhetos, passando por
documentos de várias páginas, chegando à edição de uma revista pelo DCE/USP. Os formatos
eram diferenciados, os conteúdos tinham com ligeiros contrastes, mas todos tinham uma
678
Proposta para o 3º ENE. DCE-Livre/USP – Gestão Refazendo. [1997]. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo
CEMAP, cx. n. 41). 679
Reorganização do movimento estudantil. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 39). 680
RICOEUR, Paul, La mémoire, l‟histoire, l‟oubli, cit., p. 98. 681
POLLAK, Michael, Memória e identidade social, cit., p. 9-12. 682
TORRES, Pedro Ruiz. Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions. In:
HARTOG, François; REVEL, Jacques (Dirs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de L‟École des
Hautes Études em Sciences Sociales, 2001. p. 129. (Enquête, 1).
207
mesma referência: a obra O poder jovem683
, do jornalista Arthur Poerner, lançada pela
primeira vez em 1968.684
Considerada a “Bíblia” do movimento estudantil, essa obra traçava um histórico da
luta dos estudantes brasileiros. O livro é dividido em duas partes: o movimento estudantil
antes da UNE, compreendendo as lutas dos estudantes desde o período colonial, até a
república, e uma segunda parte, com a criação da UNE, em 1937. Segundo o autor, a criação
da UNE representou um “divisor de águas” na história do movimento estudantil brasileiro.
Poerner escreve uma história linear, ordenando cronologicamente os fatos e os
descrevendo de forma a enaltecer os agentes do movimento. Sua preocupação maior consiste
em exaltar o ME, reafirmando que a UNE e os estudantes são “possuidores de um projeto
nacional e progressista que, ao longo da história do país, sempre se fez presente”.685
Cabe frisar que Poerner, um militante de esquerda, publicou seu livro no auge dos
acontecimentos do ano 1968, pouco antes do endurecimento do regime. Assim que foi
assinado o Ato-5, O poder jovem foi um dos primeiros livros a ser censurado. Mas o livro foi
reeditado em 1979, no bojo de uma série de publicações que já versavam sobre o contexto
ditatorial686
. Não é interesse deste trabalho fazer uma análise da construção do O poder jovem
683
Essa obra teve sua primeira edição em 1968, estando na quinta edição, lançada em 2004, que narra os passos
do ME até os dias atuais. Trabalhei com duas edições: POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da
participação política dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; e POERNER,
Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil-Colônia até o
governo Lula. 5. ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. Como informação, no início dos anos de 1970 circulou
uma segunda edição clandestina, que não encontrei durante minhas pesquisas. 684
O historiador José Alberto Saldanha de Oliveira dedicou a sua tese de doutorado para tratar do “mito do poder
jovem”. Em suas conclusões, o historiador diz: “A afirmação da UNE e o relato sobre a sua trajetória ao longo
das várias gerações, em particular o construído por Arthur Poerner, foi se constituindo em um mito político. O
relato do „Poder jovem‟ muniu várias gerações de lideranças estudantis de argumentos materiais e simbólicos,
capazes de reforçar o sentimento de identidade e „pertencimento‟ a uma „idade de ouro‟. A „reconstrução‟ feita
por Poerner demonstra que o projeto histórico da UNE guarda „um modelo exemplar‟, a defesa dos interesses
„nacionais, populares e democráticos‟. Assim também agiram aqueles que pertenceram ao movimento
estudantil e a UNE das décadas de 1970 e 1980. Vivenciaram uma nova geração de estudantes, que sentiu a
censura e a repressão política do regime militar, mas também se beneficiou com as novas formas de produção
cultural da moderna mídia. [Sobre a reconstrução histórica] trataram-na com a mesma perspectiva que
fundaram a entidade nacional.” (A UNE e o mito do poder jovem. Maceió: EDUFAL, 2005. p. 106). 685
OLIVEIRA, José Alberto Saldanha de, A UNE e o mito do poder jovem, cit., p. 9. 686
Perseu Abramo ressaltou essa questão em 1978: “A tentativa de recuperação da memória nacional tem sido,
ultimamente, uma visível preocupação na produção intelectual. Como a seguir na esteira dos brazilianistas, os
brasileiros também tem procurado, com sofreguidão, contida, mas indisfarçável, fontes primárias ou
secundárias que lhes possibilitem colocar na ordem do dia a nação passada e desconhecida.” (A ponte que os
une. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição
democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 204).
Foi no final da década de 70 e início da de 80 que surgiram os primeiros trabalhos sobre a conjuntura do
208
687, já realizado por outros
688, mas é importante destacá-lo, uma vez que ele foi base para os
históricos que foram construídos no momento aqui estudado.
Entre os diversos textos sobre a história da UNE, destacarei três que considero
relevantes: o livro/revista689
Memorex, feita pelo DCE/USP em conjunto com Publicações
Guaraná, lançado em 1978; outra publicação do DCE/USP, que na época era dirigido pela
“Libelu”, chamada A história da UNE, de 1979; e o Caderno da UNE, organizado pelo
DCE/PUC-Rio no mandato da APML, também de 1979.
Cabe diferenciar Memorex690
das demais publicações. Primeiro, por ter sido uma
publicação com 10.000 cópias, de acordo com seus editores691
. Segundo, porque contava com
uma pesquisa documental e iconográfica692
, o que normalmente não havia em outros
históricos, mas não necessariamente com o rigor acadêmico, pois há poucas referências
regime militar, dentre eles: STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975;
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes,
1981. Ao mesmo tempo, Maria Helena Moreira Alves escreve sua tese de doutorado (Estado e oposição no
Brasil: 1964-1984, cit.), Fernando Gabeira, no retorno do exílio, publica O que é isso companheiro? (1979), e
a Editora Alfa-Ômega edita em 1979 o 5º volume da sua coleção História Imediata a: A volta da UNE: de
Ibiúna a Salvador, escrita por Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves. 687
Mas cabe destacar que, até então, nenhuma outra obra reuniu o volume documental e descritivo das ações
estudantis ao longo de sua história, podendo ser esse o “legado” de O poder jovem. Por outro lado, é claro o
viés “marxizante” da obra de Poerner, no estilo proposto por Jean Chesneaux, uma vez que aqui a atividade
intelectual passa a ser um objetivo político em si. Para Chesneaux, “a ligação entre pesquisa histórica e
reflexão política são uma criação contínua, que deve se efetuar tanto na base como na cúpula, tanto sobre lutas
pontuais como em termos de estratégia de longo prazo. (...) É preciso inserir concretamente o estudo do
passado e a reflexão histórica nas lutas populares e na estratégia revolucionária” (Qual a história para a
revolução? In: CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tabula rasa do passado? sobre a história e os
historiadores. São Paulo: Ática, 1995. p. 189). Essa não deixa de ser a proposta de Poerner, enaltecendo os
pontos de luta “revolucionária” e a história engajada socialmente. 688
OLIVEIRA, José Alberto Saldanha de, A UNE e o mito do poder jovem, cit. O livro de Poerner é ainda citado
nos trabalhos: SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Jovens, estudantes e rebeldes: a construção das memórias
estudantis. In: ENCONTRO REGIONAL SUDESTE DE HISTÓRIA ORAL, 7., 2007, Rio de Janeiro. Anais...
Rio de Janeiro, 2007; SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Entre heróis e inocentes: a construção das memórias
estudantis. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (Org.). Modernidades alternativas. Rio de
Janeiro: FGV, 2008, p. 25-44. 689
Na Biblioteca da FFLCH/USP, Memorex está catalogado como um livro. 690
O nome completo existente na capa da revista era: Apesar de tudo – UNE Revista Memorex: elementos para
uma história da UNE. 691
Em poucos dias a revista entrou em circulação e, em menos de dois meses, sua tiragem de 10 000 exemplares
havia se esgotado (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO, Marianna. Rememorex: uma rebeldia necessária.
Disponível em: <http://sejarealistapecaoimpossivel.blogspot.com/2007/09/rememorex-uma-rebeldia-necessria-
por.html>. Acesso em: 05 out. 2009). 692
“Pela primeira vez, esses universitários e secundaristas frequentaram a Biblioteca Mário de Andrade de São
Paulo e, depois, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e compreenderam na prática a diferença entre fontes
primárias e fontes secundárias numa pesquisa. Pela primeira vez, o estudo da história foi vivenciado por
aqueles estudantes como um processo de descoberta e elaboração de fontes documentais e não apenas digestão
de trabalhos interpretativos ou de pesquisa realizados por outros.” (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO,
Marianna,op. cit.).
209
bibliográficas e os textos são colocados sem as devidas referências e sem numeração de
páginas, o que atesta o caráter experimental do trabalho.
Memorex também pode ser vista como a produção de uma história com uma
singularidade militante, como assinala Michel Pigenet693
, uma vez que, nesse caso, a
prioridade não estava centrada na escrita de um histórico com ponto de vista científico, mas
sim para que servisse a uma causa: a dos estudantes.
A publicação foi resenhada por Perseu Abramo no jornal Folha de S. Paulo. O
resenhista destacou o objetivo da publicação: ela se propunha a “reconstruir, no plano
histórico, a maior entidade estudantil com evidente e louvável intuito de também reconstruí-la
no plano jurídico e prático”694
. A resenha de Abramo termina abordando o mérito duplo da
publicação, política e pedagógica, no sentido de recolocar para a “consciência nacional a
necessidade de abrir e ampliar os espaços políticos, as liberdades democráticas e,
principalmente, os direitos de reunião e expressão, de manifestação e de organização”.695
Memorex, como também os demais relatos históricos da UNE, visavam à reconstrução
de um passado de luta para legitimar a reconstrução da entidade que, segundo os militantes da
época, era fundamental para ampliar e solidificar a luta contra o regime. Nesse caso, o peso da
história se prestava à sustentação de uma conduta política.696
O próprio nome da publicação Memorex indica um caminho. A “memória” do
movimento retransmitida servia como instrumento para justificar a força política da UNE,
representando, assim, um capital de poder697
a ser utilizado pelos estudantes.
693
PIGENET, Michel. L‟Institut CGT d‟Histoire Sociale (1982-2002): entre exigences historiennes, impératifs
d‟organisation et démarche identitaire. In: ANDRIEU, Claire; TARTAKOWSKY, Danielle; LAVABRE,
Marie-Claire. Politique du passé: usages politiques du passé dans la France contemporaine. (Collection Le
Temps de l‟Histoire). Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence, 2006. p. 241-251. 694
ABRAMO, Perseu, A ponte que os une, cit., p. 205. 695
Ibidem, mesma página. 696
Valérie Rosoux trabalha sobre a questão do peso do passado e a instrumentalização (ou o fardo?) da memória
na construção da política estrangeira na França (Les usages du passé dans la politique étrangère de la France.
ANDRIEU, Claire. TARTAKOWSKY, Danielle. LAVABRE, Marie-Claire. Politique du passé: usages
politiques du passé dans la France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence,
2006. p. 171-181. (Collection Le Temps de l‟Histoire)). 697
TARTAKOWSKY, Danielle; LAVABRE, Marie-Claire. Introduction. In: ANDRIEU, Claire.
TARTAKOWSKY, Danielle. LAVABRE, Marie-Claire. Politique du passé: usages politiques du passé dans la
France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence, 2006. p. 193. (Collection
Le Temps de l‟Histoire).
210
Mais do que a simples utilização do passado, esses históricos eram permeados por
discursos que se orientavam a partir da visão dos estudantes-militantes sobre o presente. Já na
abertura do texto, Memorex deixa transparecer o “olhar” sobre a universidade: seus autores
incorporaram o conceito de universidade formulado pelo isebiano Álvaro Vieira Pinto, que
afirma:
“Universidade é uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe
dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico,
sobre a totalidade do país. Se tal é a essência da universidade, desde logo se
vê que o problema de sua reforma é político e não pedagógico.”698
A ideia de dominação exposta claramente na definição do conceito é bem aceita pelos
estudantes porque justifica a sua luta política contra a reforma universitária proposta pelo
governo.
Em suma, a reconstituição do passado pela representação estudantil resultou na
construção de uma “história oficial da UNE” que não só legitimava a linha de atuação do ME,
mas também servia como contraponto à história oficial do regime.
Nessa reconstituição, há várias versões sobre o “nascimento” das movimentações
estudantis no Brasil:
Alguns trabalhos apresentam o período anterior da criação da UNE, como no
documento “Movimento Estudantil no Brasil”, que destaca a “atuação coletiva” no
movimento, desde a passagem do Segundo Império para a Primeira República.699
Outros se referem a um começo desconhecido, afirmando: “A história das lutas
dos estudantes é antiga, ninguém sabe ao certo como ela começou, mas a crônica
histórica relata a participação dos estudantes em movimentos sociais por várias
ocasiões, algumas das quais muito importantes. Já em 1835...”700
Mas boa parte dos históricos apontam a fundação da UNE em agosto de 1937, a
partir do Conselho Nacional de Estudantes (CNE), realizado na Casa do Estudante
do Brasil (CEB), baseados na leitura de Poerner;
698
PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. Rio de Janeiro: Editora Universitária; UNE, 1962, apud
MEMOREX: elementos para uma história da UNE. São Paulo: Edições Guaraná, 1978. 699
Movimento Estudantil no Brasil. Assinado pela equipe: Juvenal, Leila, Miguel, Rosamaria, Tereza, R.
[1978]? (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 125). 700
Documento de 43 páginas, [1978]? (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 123).
211
Há os que se referem à “formação da verdadeira UNE”701
no Congresso de 1938.
Para outros, a UNE surgiu quando se deu a separação da CEB, em 1940.702
Já o DCE da PUC-Rio apresenta uma versão diferente da de Poerner, com a qual
concordo (e essa concordância já foi explicitada na minha dissertação de
mestrado), ou seja, de que no primeiro Conselho Nacional de Estudantes realizado
em 1937, os temas políticos foram proibidos e, em 1938, “as novas resoluções,
inclusive sua diretoria já caracterizavam um novo órgão estudantil – que no 2º
Congresso [1938] se chamaria UNE”703
. De fato a primeira vez que aparece
cunhado o termo UNE foi no Congresso de 1938.704
O histórico feito pelo DCE/USP em 1979, chamado A história da UNE, trouxe uma
passagem importante para o contexto vivido pelos jovens do fim dos anos de 1970. Segundo o
texto publicado: “A proposta aprovada no 2º Congresso [da UNE], com delegados eleitos
democraticamente buscava ampliar e democratizar a participação do conjunto dos
estudantes”705
(grifo meu). Lutar pela ampliação dos canais democráticos era a meta principal
do movimento durante a década de 1970. Evidenciar a possibilidade de “eleger” os seus
representantes significava, então, mostrar a busca pela democracia que era empreendida nas
lutas travadas durante o período.
O controle das entidades estudantis decretado pelo regime levou os estudantes a
enfatizarem o nascimento da UNE a partir de “um decreto presidencial” (de Vargas),
interpretado como “tentativa de se ter um controle do ME”, como foi descrito no histórico do
DCE/USP de 1979. No entanto, a criação da UNE foi demandada pela própria entidade e
701
MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 702
Movimento Estudantil no Brasil. Assinado pela equipe: Juvenal, Leila, Miguel, Rosamaria, Tereza, R. [1978]
(Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra cx. n. 125). 703
Caderno da UNE-79, DCE-PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3). 704
As assembleias realizadas [no Congresso de 1938] resultaram num documento final intitulado “Plano de
sugestões para reforma educacional aprovado no 2º Congresso Nacional de Estudantes”. Além de apontar
soluções para o problema educacional e para a própria organização da universidade, o plano apresentava os
seguintes pontos sobre a UNE: “1- O 2º Congresso Nacional de Estudantes reconhece como entidade máxima
da classe estudantil a União Nacional dos Estudantes, que é representada pelo Conselho Nacional de
Estudantes e pela Casa do Estudante do Brasil (sede e secretaria da UNE); 2- A União Nacional dos Estudantes
terá como função defender os direitos e as aspirações de todos os estudantes, na base de um programa
constituído pelo presente plano educacional e reivindicativo; 3- A UNE deverá ser oficialmente reconhecida,
tendo, entretanto, garantida a sua completa autonomia educacional e administrativa.” (POERNER, Arthur José,
O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, cit., p 322 e 325; MÜLLER,
Angélica, Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação da UNE
durante o Estado Novo, cit., p. 39-40). 705
A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026- 1.1).
212
ocorreu por ocasião do 3º Congresso da associação estudantil, em 1939. Foi encaminhado ao
presidente Getúlio Vargas um ofício em papel timbrado da UNE e assinado pelas principais
lideranças da entidade706
. O documento mostra que as relações entre a entidade e o governo
eram ambiguamente cordiais. Mas a leitura do passado feita pelos estudantes em 1979 tinha
como meta frisar o quão controlador era o Estado no presente e no passado.
Como afirma Pedro Torres707
, toda história é filha de seu tempo e a conjuntura política
do momento interfere naquilo que é produzido. Certamente foi a partir da vivência da
repressão sob o autoritarismo dos “anos de chumbo” que se leu o surgimento da UNE
relacionado ao autoritarismo do Estado Novo.
Memorex coloca ênfase no autoritarismo do regime instituído em 10 de novembro de
1937. Em meia página, fica ressaltada essa experiência, através de cinco itens: 1) fechado o
Congresso Nacional; 2) criada a censura à imprensa, rádio, teatro, cinema, etc.; 3) fim das
liberdades sindicais; 4) fim das garantias individuais; 5) fim das liberdades democráticas
(grifo meu).
A versão de um Estado autoritário no passado se prestava à justificativa e à
legitimação da luta contra a ditadura do presente. Retratar o passado para reforçar as posições
defendidas no presente não deixa de ser um dos intuitos de todo ato mnemônico. Além disso,
a relação passado/presente também tinha como finalidade projetar o futuro.
706
O conteúdo do documento era o seguinte: “Considerando que se acha organizada a União Nacional de
Estudantes do Brasil, fundada no 2º Congresso Nacional de Estudantes, realizado nesta capital de 5 a 21 de
dezembro de ano de 1938; considerando que a quase totalidade das organizações estudantis se acham
agrupadas harmonicamente nesta entidade, pleiteia junto à V. Excia. o seguinte: O reconhecimento da União
Nacional de Estudantes do Brasil como a entidade oficial dos estudantes brasileiros, órgão da classe estudantil
do país.” (Arquivo GC 38.04.18 série g, r. 52 fot 416. CPDOC/FGV). A partir desse documento, pode-se
verificar que é a própria entidade que vai pedir seu reconhecimento ao governo. Portanto, não foi uma criação
do governo Vargas. Mas, sem dúvida, o Estado contribuiu para formação da UNE e sua sustentação. O que fica
claro aqui é que a UNE, uma entidade autônoma, caminha em direção ao Estado, em busca da sua
consideração, aquilo que Ferreira e Delgado chamam de “cultura estatista” (FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil republicano: o tempo do nacional-estatismo – do início da década
de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 2, p. 9). Em 11 de
fevereiro de 1942, foi publicado o Decreto-Lei n. 4.105, que reconhece a União Nacional dos Estudantes como
entidade coordenadora dos corpos discentes dos estabelecimentos de ensino superior. Maiores informações em:
MÜLLER, Angélica, Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação
da UNE durante o Estado Novo, cit., p. 61-66. 707
TORRES, Pedro Ruiz, Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions, cit.,
p. 131.
213
Outro excerto extraído de um discurso de representante da UNE publicado no Correio
da Manhã, de março de 1944, ilustra bem esta questão. O orador afirmou: “Nós sabemos que
não temos liberdade e que nesta longa noite de fascismo apenas uma réstia de luz ilumina um
caminho longo a percorrer. Sabemos que não haverá democracia enquanto não morrer o
monstrengo político chamado Estado Novo (...).”
A linha de continuidade entre passado e presente, ou, como sugeriu Marc Bloch, a
interpenetração entre os dois tempos708
, ignora o interregno de experiência democrática que
ocorreu entre 1946 e 1964. Na escrita da história, essa linha contínua é acentuada, para que o
passado possa ser associado ao presente. Nesse caso, é possível afirmar, na linha de
interpretação de François Bédarida, que “presente e passado são, então, religados
dialeticamente, cada um dando e recebendo o sentido do outro”.709
Com essa longa exposição sobre a “releitura do passado” feita pelos estudantes dos
anos 1970, espero ter deixado clara minha discordância da leitura feita por Poerner e seus
seguidores. Discordo também do autor, incorporado em Memorex, quando se refere à criação
da Juventude Brasileira710
. Na releitura do passado feita pelos estudantes, consta a afirmação:
“Desde há muito, o regime do Estado Novo alimentava o sonho de criar uma espécie de
juventude „balilla‟ de Mussolini. No dia 1º de abril de 1943 uma portaria do ministro da
Educação institui a Juventude Brasileira”711
. Já no histórico do DCE/USP de 1979 se lê:
“Diante da agitação cada vez maior realizada pela UNE, Getúlio cria a Juventude
Brasileira.”712
Poerner ignora o fato de que a Juventude Brasileira (JB) fora constituída em março de
1940713
. Foi somente quando as duas entidades “se encontraram” em 1943, devido à decisão
708
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 65. 709
BÉDARIDA, François. Le temps présent et l‟historiographie contemporaine. Vingtième Siècle: Révue d‟
Histoire, n. 69, p. 157, jan./mars 2001. 710
Para maiores detalhes sobre a Juventude Brasileira, consultar: BOMENY, Helena Maria Bousquet. Três
decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce C. (Org.)
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 137-166. BOMENY, Helena Maria Bousquet.
Contenção de mulheres, mobilização dos jovens. In: SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria
Bousquet; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo:
EDUSP, 1984. (Coleção Estudos Brasileiros, v. 81). 711
MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 712
A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme – USP 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 713
Através do Decreto-Lei n. 2.072, aprovado em 02.03.1940.
214
do ministro da Educação de colocar a JB no mesmo prédio da UNE714
, que a entidade
estudantil passou a se pronunciar contra a Juventude. Com isso, Poerner considera a criação
da JB apenas a partir desse momento.
Sobre o episódio da JB e UNE, sucederam-se inúmeras discussões e Hélio de
Almeida, presidente da UNE em 1943, renunciou seu cargo. O grande ganho político e o
legado a ser passado para as futuras gerações foi que a renúncia de Hélio de Almeida revogou
a portaria ministerial e, segundo A história da UNE, “levou o governo a voltar atrás em sua
frustrada decisão de esvaziar e destruir a UNE”.715
Assim, podemos demonstrar que o exemplo exposto acima procurava também mostrar
a importância das ações realizadas pelo movimento na busca de mudar possíveis atos
impostos pelos governantes. Mostra também a rebeldia combativa do jovem, que deveria ser
resguarda e ser recriada em momentos em que a entidade deveria mostrar sua “força”.
As lutas empreendidas pelos estudantes, encampadas pela UNE, que começaram
contra o nazi-fascimo e, no final do Estado Novo, contra o próprio regime, passam a ser
interpretadas como os “marcos” iniciais da atuação estudantil como movimento social.
Segundo o Caderno da UNE de 1979: “Os estudantes assumiam, publicamente, a posição de
vanguardeiros das manifestações de rua e dos movimentos de massa anti-fascistas (...).”716
. Na
verdade, esse é o “marco inicial” da atuação do movimento estudantil organizado indicado
por Poerner (demonstrando que os estudantes se basearam nas análises desse autor). Esse
“marco inicial” é normalmente rememorado por gerações de estudantes e está presente nos
históricos da entidade.
A luta contra o regime ditatorial de Vargas é mostrada, em Memorex, através de fotos
com cartazes “abaixo a ditadura”, dizeres sobre a “anistia ampla e irrestrita” e “por liberdades
democráticas” reivindicadas por estudantes no fim do Estado Novo. Relembrar esses fatos
tinha fundamental importância para os estudantes da década de 1970 que realizaram a
publicação. Mais uma vez, passado, presente e futuro estão articulados conjuntamente.
714
Para aprofundamento do assunto, ver: MÜLLER, Angélica. Um encontro na diversidade: UNE e Juventude
Brasileira atreladas. In: Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação
da UNE durante o Estado Novo. 2005. Dissertação (Mestrado em História) Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. p. 76-85. 715
A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026- 1.1). 716
Caderno da UNE-79 DCE/PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3).
215
Os históricos sobre a UNE mostram também como se formou o antivarguismo através
da União Democrática Nacional (UDN) e ainda a crítica dos estudantes ao posicionamento do
PCB, cujo líder Luis Carlos Prestes pregava a “constituinte com Getúlio”717
. Apesar de não
serem bem evidenciadas as diferenças políticas daquela coligação que juntou grupos liberais e
grupos de esquerda, o importante era mostrar que a UNE tinha encampado a luta contra o
Estado Novo. Também na luta por “liberdades democráticas” do final dos anos 1970, houve
união entre liberais e grupos de esquerda.
Apesar das diferentes visões sobre como se deveria proceder em relação à abertura
democrática e como deveria ser a nova estrutura da entidade que voltaria à cena política, o
importante a salientar é que os estudantes, em sua grande maioria, estavam de acordo quanto à
importância da reconstrução da UNE e da derrubada do regime.
Voltando ao passado, ou melhor, ao período posterior a 1945, quando os partidos
políticos retomaram suas atuações em âmbito nacional, a disputa pela hegemonia do controle
da UNE também se evidenciou; as atividades políticas do grupo vinculado à UDN, que
continuava encabeçando a entidade até 1947, passaram a ser desconsideradas por aqueles que
estavam reescrevendo a história da entidade em 1979, provavelmente com o intuito de não
reforçar as realizações daquelas gestões. A história da UNE e o Caderno da UNE nem
remetem ao período pós-redemocratização da década de 1940. Memorex o menciona
rapidamente e num único parágrafo:
“Com o fim da ditadura, em 1945, a UNE sofreu até 1947 um relativo
esvaziamento político, suas atividades nesse período ganham assim um tom
assistencialista. (...) Fase esta senão de moderação política, pelo menos de
ausência de bandeiras capazes de mobilizar nacionalmente os estudantes.
Todavia, registra-se neste período o aparecimento de restaurantes e entidades
estudantis, bem como a criação do balé da UNE e a reorganização do Teatro
da UNE, dirigido por Sérgio Cardoso.”718
Negar as movimentações dos estudantes nessa época e a ênfase no “esvaziamento
político” do movimento significa, no meu entender, uma forma de manipulação do passado e
seu uso político, através do uso seletivo das lembranças. Como afirma Paul Ricoeur: “É
justamente a função seletiva da narração que oferece à manipulação a ocasião e os meios de
717
A referência ao PCB aparece somente no histórico de 1979. A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi
Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 718
MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit.
216
um subterfúgio astucioso que consiste numa estratégia tanto de esquecimento quanto de
rememoração”719
. Nesse caso, o uso pragmático do passado reconfigura a importância dos
fatos, levando a um “silenciamento” de determinados momentos, que se justificavam
necessários naquele presente, aquilo que Ricoeur chama de “apagamento de traços”.720
No interregno socialista (1947-1949), a UNE se destacou por ter feito “uma das
maiores campanhas de opinião pública”721
, a do “Petróleo é nosso”.722
Todos os históricos não esquecem de evidenciar a primeira invasão policial da sede da
UNE ocorrida nesse período. Lembrar esse fato era importante para uma entidade que teve
sua sede depredada e incendiada logo após o golpe civil-militar de 1964.
A instrumentalização do passado é corroborada de maneira mais intensa com a
campanha da UDN contra o governo Vargas em 1950. Os históricos identificam o “período
negro” da UNE (termo cunhado por Poerner) entre 1950 e 1956: o movimento vivia um
momento de grande polarização entre “direita e esquerda”, tendo “a direita” hegemonia na
entidade estudantil.
Esse grupo, que se intitulava como liberal na época, identificava-se com a UDN, e era
liderado pelo estudante de engenharia Paulo Egydio Martins, um udenista, que era presidente
da União Metropolitana de Estudantes do Rio de Janeiro. Cabe lembrar que, em fins dos anos
1970, Paulo Egydio foi governador do Estado de São Paulo e responsável pela invasão da
PUC-SP em 1977, como mostrei anteriormente.
Os autores das referidas publicações, sempre baseados em Arthur Poerner, fizeram
referência ao período do início dos anos 1950 como uma época que “não apresenta nada de
excepcional que mereça registro”. As menções são tão restritas que nem mesmo os nomes dos
presidentes das gestões subsequentes à de Olavo Jardim Campos, o primeiro do campo
“direitista”, são mencionados.
719
RICOEUR, Paul, La mémoire, l‟histoire, l‟oubli, cit., p. 103. 720
Ibidem, p. 579. 721
Caderno da UNE-79 DCE/PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3) 722
A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1)
217
Cabe destacar que as duas primeiras gestões da UNE nesse período foram críticas ao
governo de Getúlio Vargas porque eram udenistas. No entanto, apesar da UDN ter sido
contrária ao monopólio do petróleo pelo Estado, a UNE, pela força dos Centros Acadêmicos e
Uniões Estaduais, teve que empunhar a bandeira do “Petróleo é nosso”.
Memorex não aborda extensamente esse período. As três páginas da publicação
dedicadas a esse contexto, entretanto, descrevem apenas as atividades internacionais que a
UNE realizou, assim como seu desligamento da União Internacional de Estudantes (UIE),
uma entidade de coloração comunista.
Apenas duas fotos, uma de Vargas recebendo estudantes, e outra foto, de página
inteira, do enterro do presidente, em agosto de 1954, mostrando milhares de pessoas no Aterro
do Flamengo, ilustram o período.
Nota-se que em certas circunstâncias, e de acordo com os objetivos políticos dos que
editavam o livro/revista, certos aspectos do passado varguista deveriam ser omitidos. No
momento de luta contra a ditadura, mais valia mostrar o apoio popular garantido a Getúlio na
vigência do regime democrático (1951-1954) e sua luta contra liberais golpistas do que
mostrar a posição que oficialmente a UNE tomou contra seu governo, posicionando-se ao
lado dos inimigos de Vargas.
Jérôme Baschet723
, ao refletir sobre a volta ao passado, mostra que ela também permite
avaliar os erros e detectar impasses. O conhecimento do passado, segundo o autor, permite se
separar dele para evitar novamente tornar-se sua “vítima”. Acredita que a reconstrução do
passado serve também para uma reflexão em busca de novas diretrizes a serem traçadas e
realizadas.
Nesse sentido, seria mais coerente com a conjuntura do final da década de 1970 os
estudantes apresentarem o apoio popular ao regime democrático, e ao seu chefe (Vargas), do
que mostrar uma UNE que agia contra esse governo, portanto contra as reformas nacionalistas
propostas para o período.
723
BASCHET, Jérôme. L‟histoire face au present perpetual: quelques remarques sur a relation passé/future. In:
HARTOG, François; REVEL, Jacques (Dirs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de L‟École des
Hautes Études em Sciences Sociales, 2001. p. 55-74. (Enquête, 1).
218
Propor uma análise do passado interpenetrado pela conjuntura política do presente
constituía, de certa maneira, a procura por uma tática política que pudesse inviabilizar o
projeto da ditadura, o que significava interferir na história que estava se desenrolando. Pedro
Torres724
observa que o desaparecimento ou o enfraquecimento de várias memórias em
benefício de uma só é resultante de uma luta política por manter a hegemonia de certos grupos
sociais sobre outros.
A luta política, neste caso, era travada no plano teórico. Se o regime bania as
liberdades de expressão e organização, o correto seria tentar suplantar essa barreira. Uma
publicação que não dispunha de liberdade para falar do presente, voltava-se para o passado,
projetando-o na atualidade e no futuro.
Na segunda metade dos anos 1950, os “estudantes democráticos recuperam a UNE”725
,
desencadeando campanhas contra as empresas multinacionais, em prol da indústria nacional.
Mas, sem dúvida, a “idade de ouro”726
do ME está centrada no início da década de
1960, com a ascensão da juventude católica e a gestão de Aldo Arantes (1961/1962) frente à
UNE. Os seminários sobre reforma universitária, a “célebre” greve por 1/3 de representantes
nos órgãos colegiados, a UNE-Volante727
são lembrados como os momentos mais pujantes da
história da entidade.
É visível a ênfase na figura de Aldo Arantes no histórico do DCE/PUC-Rio,
provavelmente porque antes de ser presidente da UNE, Aldo foi presidente desse DCE em
1959728
. Além disso, foi neste período do início dos anos de 1960 que muitos dos militantes
da JUC fundaram a AP (dentre eles Arantes), sendo destacada a militância da PUC-Rio. Bom
motivo para os militantes da APML de fins dos anos de 1970 darem destaque aos seus
“grandes personagens”.
724
TORRES, Pedro Ruiz, Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions, cit.,
p. 133-135. 725
Caderno da UNE-79 DCE PUC RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3). 726
GIRARDET, Raoul, Mythes et mythologies politiques, cit., p. 97-137. 727
Caravana que atravessou o Brasil nas universidades, nas quais diretores da UNE realizavam seminários sobre
os pontos da reforma universitária e ocorriam apresentações do CPC. 728
Ofício do DCE/PUC-Rio, informando posse de diretoria em 22.12.1959 (Arquivo MME 009-2).
219
Tanto o histórico do DCE/USP de 1979, quanto o da PUC-Rio, ao citarem Aldo
Arantes, mencionavam que ele estava preso em São Paulo (assim como fizeram com outros
nomes que se encontravam na mesma situação). Se a utilização do passado ajudava a alicerçar
a organização da entidade rumo ao futuro, a denúncia das prisões servia para evidenciar as
agruras do presente. A articulação dos três tempos (passado, presente e futuro) funcionava
como uma arma política dos estudantes na resistência contra o regime.
Prosseguindo, os históricos da USP dão destaque à criação do CPC e sua experiência.
Memorex lhe destina 16 páginas: mostra as origens do CPC no Teatro de Arena, aborda o
conceito de cultura popular e ainda traz uma entrevista com o dramaturgo João das Neves.
Nas cartas-programas729
para a eleição da primeira diretoria da UNE reconstruída
(1979), a área cultural não se destacava. Na maior parte dos casos, mostravam que ela deveria
ser construída, começando pelo mapeamento das atividades culturais já em curso nas
universidades. Mas davam ênfase à atuação do CPC na década de 1960 como algo a ser
revisitado e adaptado à atualidade. Até mesmo porque a “arte com função revolucionária” foi
mote para a atuação do movimento na primeira metade da década. Assim, aprofundar o
conhecimento teórico e prático do CPC significava dar subsídio para a política cultural que
poderia ser encampada pela entidade no futuro próximo.
Memorex mostra ainda o papel que a UNE desempenhou na posse de João Goulart na
Presidência da República, publicando uma nota da entidade na época. No final, em letras
maiúsculas estava destacado: “A CONSTITUIÇÃO DEVE SER DEFENDIDA! POVO E
ESTUDANTES UNIDOS PELA CONSTITUIÇÃO! UNIDOS PELA LEGALIDADE!”730
.
Lembramos que a tendência “Liberdade e Luta” foi a primeira força a defender a assembleia
constituinte, em oposição à “Refazendo”, que não a apoiava. Destacar a luta pela defesa da
Constituição continuava a ser, para aqueles estudantes, uma bandeira a ser defendida pelo
movimento. Não por acaso, o Caderno da UNE do DCE/PUC-Rio, que era apoiado pela
APML carioca, não fez menção à questão.
729
UNE – Liberdade e Luta (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 122); Unidade
na reconstrução da UNE. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 123);
Anteprojeto de programa para UNE, jul. 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra,
cx. n. 37); UNE: pontos para discussão. DCE/UFBA (Arquivo Promemeu/UnB AE 5512 – VIII). 730
MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit.
220
O golpe militar, ainda tratado como “revolução” por Memorex “uma revolução de
muitos donos e modestos propósitos” – mostra a escalada do regime. Os históricos da USP
retrataram o incêndio da sede da UNE e a promulgação da Lei Suplicy de Lacerda, que
colocaria as entidades estudantis na ilegalidade. A UNE estava oficialmente extinta.
Memorex traz também reportagens do próprio ano de 1964, mostrando a
movimentação dos estudantes que se diziam dispostos a não aceitarem a “tutela” do Estado,
frisando que a entidade não deixaria de ser uma “verdadeira agremiação representativa do
pensamento estudantil”731
. Até 1968, as referências às ações da entidade, em sua grande
maioria, são extraídas de jornais que mencionavam a resistência dos estudantes, evidenciando,
por exemplo, os congressos clandestinos realizados com sucesso.
Nessa conjuntura, seria importante evidenciar uma memória de resistência apresentada
pelos estudantes contra o regime instaurado que, segundo François Hartog, funciona como um
instrumento do presentismo, na medida que se faz necessário reter do passado aquilo que
preparará o futuro que se quer732
. A resistência apresentada serviria para legitimar as lutas
encampadas, não só contra o fim do próprio regime, mas também pelo ressurgimento da
entidade nacional dos estudantes.
Concordo com a ideia de Jeanne Marie Gagnebin sobre a rememoração, quando
afirma que não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o
presente.733
O ano “mítico” de 1968 é rememorado por Memorex através da morte “e ressurreição”
do estudante Edson Luís, “um menino pobre do interior brasileiro, decidido a construir, a
qualquer preço, seu próprio destino”. O livro/revista traz um longo artigo que, segundo as
referências, fora retirado do jornal Correio da Manhã, que conta a “saga” do jovem que
tentava sobreviver em meio às dificuldades sociais apresentadas no país. Mostra também que
a morte de um estudante levou a uma tomada de consciência do povo, que passou a “repudiar
o poder militar”, seu opressor.
731
MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 732
HARTOG, François, Regimes d‟historicité: présentisme et expériences du temps, cit., p. 138. 733
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 55.
221
O 30º Congresso de Ibiúna tratado em Memorex se restringe à reprodução de um
trecho de uma reportagem da Folha de S. Paulo que evidencia a prisão de todos os estudantes,
acompanhada de uma grande foto de estudantes presos. Já A história da UNE, que trata o
período de um ponto de vista um pouco mais crítico, demonstra que “o grande saldo desse
Congresso foi o fato de ter possibilitado que fossem criticadas e reformuladas muitas das
posições anteriormente defendidas pelo ME”.734
A ebulição das movimentações estudantis em todo país, não somente no ano de 1968,
se caracterizavam por diferentes posições ideológicas, que confluíam apenas no desejo de
término da ditadura.735
O Caderno da UNE do DCE/PUC-Rio se refere à repressão ao Congresso de Ibiúna,
mostra a “passeata dos cem mil” e termina seu histórico fazendo referência às prisões,
assassinatos e desaparecimento de estudantes. Depois da referência a 1968, Memorex dá um
salto no tempo e termina seu “histórico” dedicando as últimas páginas a fotografias que
mostram muito provavelmente (pois não existem as referências) as grandes passeatas
realizadas em 1977, nas quais estudantes nas ruas carregavam faixas com os dizeres “pela
anistia ampla” e “pelas liberdades democráticas”.736
Mas A história da UNE continua sua narrativa com o que chamou de “terceiro período
1970-1979”. Passando do “terror cultural” à crítica da não validade do 31º Congresso (de
1971), o documento mostra a “recomposição do ME no período mais duro do regime. Alguns
fatos foram selecionados em detrimento de outros, mas o ponto culminante foi a “nova
explosão” do movimento, com o assassinato do estudante Alexandre Vannucchi Leme.
Mostra ainda o avanço das formas de lutas, a greve da ECA e a importância da reestruturação
do DCE/USP naquele contexto.
734
A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 735
MÜLLER, Angélica. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores. In: FICO, Carlos;
ARAÚJO, Maria Paula. (Org.). 1968 - 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p.
76. 736
Segundo editores da publicação, refletindo sobre a mesma 30 anos depois: “O período compreendido entre o
Congresso de Ibiúna e 1978 não foi nosso objeto de pesquisa, em parte porque não nos encontrávamos muito
afastados dele. E também porque a ação dos dirigentes da UNE na dura condição de clandestinidade impedia
que se produzissem muitos documentos oficiais escritos e no momento em que realizamos nosso trabalho seria
quase impossível tentar resgatá-los.” (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO, Marianna. Rememorex: uma rebeldia
necessária, cit.).
222
A validade das conquistas de 1977 foi salientada pelo grupo: “Os estudantes, enquanto
o setor social que conseguiu reorganizar-se mais rapidamente, estavam descontentes com o
péssimo nível de ensino, com a queda geral do nível de vida, com a falta de liberdade e a
repressão existente no país”. Esse seria o passo para, em 1978, o movimento social dar um
“salto precioso”, com as greves operárias.
O final do documento traz a concepção da conjuntura política daquele grupo de
estudantes que acreditavam que o “regime estava se isolando cada vez mais”. Terminam
mostrando a importância da recriação da entidade: “A UNE teria um grande significado para
fazer avançar essa unificação nacional e um papel de relevo na luta oposicionista”.
Apresentar um histórico da UNE significava evidenciar que ela ressurgia com um
passado que legitimava sua volta. A narrativa dava ênfase à “experiência coletiva”, que teve
sua trajetória oficialmente interrompida, apesar da continuidade de atividades do movimento.
Como bem constata Lucília Neves Delgado, a narrativa como fonte para construção do
conhecimento histórico tem um potencial inesgotável, pois é também instrumento de retenção
do passado e, por consequência, suporte do olhar da memória.737
Mais do que reconstruir o passado com os olhares do presente, esses históricos
serviram para legitimar o retorno da entidade nacional, com o intuito de projetar não somente
o seu futuro, mas também o futuro do país. Mas, sem dúvida, as experiências dos tempos se
interpenetraram, com vistas a “iluminar o presente”738
que estava sendo vivido.
Como afirma Bruno Groppo, as guerras da memória têm por aposta real o futuro, ou
seja, a definição do tipo de sociedade que se deseja construir739
. O que se buscou analisar
neste capítulo foram as maneiras pelas quais o ME construiu sua representação, utilizando seu
passado e como se apoderou da memória criando mitos e mártires que visavam não somente a
recriar a identidade da associação, mas legitimar a sua resistência ao regime, em nome da
vitória democrática.
737
DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. História Oral, São
Paulo, Associação Brasileira de História Oral, n. 6, p. 22, jun. 2003. 738
François Hartog demonstra que o regime de historicidade não pretende dizer a história do mundo passado e
menos ainda do que está por vir. Nem cronosofia nem discurso sobre a história, e não servirá também somente
a denunciar o tempo presente ou a lamentá-lo, mas sim de iluminá-lo (Regimes d‟historicité: présentisme et
expériences du temps, cit., p. 26). 739
GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e imposibilidad de olvido en los paises del Cono Sur. In:
GROPPO, Bruno; FLIER, Patrícia (Comp.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en
Argentina, Chile y Uruguay. La Plata: Al Margen, 2001. p. 39.
223
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta tese, mostrei diferentes propostas de resistência que o ME – ator
político coletivo – apresentou durante o período aqui abordado. O não esmorecimento do
movimento durante os “anos de chumbo” mostrou um ME sempre na ativa e em atividade,
mesmo na clandestinidade. A representação estudantil, diferentemente dos estudantes que
optaram pela luta armada, acreditava na possibilidade de uma resistência pacífica à ditadura e
se empenhou nesse sentido.
Demonstrei de que forma o ME inventou novas táticas e estratégias para se fazer
representar na arena política, levando em conta as experiências dos anos de 1960, tanto nos
aspectos políticos como culturais, concordando ou mesmo criticando esses pontos de vista.
Busquei reconstituir a linha de continuidade de ações contra o regime nos “anos de
chumbo”, ações essas que já não tinham caráter massivo. Com relação a esse aspecto, me
contrapus às teses de que o ME desapareceu durante esse período, demonstrando, a partir de
vários exemplos, a continuidade da luta, através de novos caminhos, mesmo depois de 1968.
Além disso, evidenciei que não só o ME sobreviveu à repressão, como também foi o primeiro
ator a voltar às ruas, quando isso se tornou possível.
“Quando novos personagens entraram em cena”740
, como mostra Eder Sader, ao
analisar os movimentos sociais, e em especial o MO em 1978, o ME já tinha voltado às ruas
na luta “pelas liberdades democráticas” um ano antes, em 1977.
Mas cabe esclarecer que o fato de enfatizar, ao longo deste trabalho, a continuidade da
resistência do ME contra o regime não quer dizer que isso ocorreu através de suas tradicionais
formas de luta. Ao contrário, novos elementos e maneiras de se fazer política foram
incorporados e antigos métodos foram descartados. Esse “reinventar-se” e os constantes atos
de resistência mostraram que o ME pode retomar o seu papel e ajudar na construção de outros
movimentos que também passaram a atuar pela derrubada do regime. Mas, é importante
ressaltar também o enorme esforço dos representantes do ME para a reestruturação de suas
740
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
224
entidades. Nesse sentido, ficou clara a importância da organização associativa como um dos
principais canais para o engajamento, elaboração e difusão da ação política.
Outro fator a ser apontado, como decorrência do regime implementado em 1964, diz
respeito ao campo educacional. Como fruto de mais de dez anos de ditadura, o quadro
educacional revelava contrastes: enquanto a graduação, principalmente oferecida em
instituições privadas, proliferava, mas se destacava pela ausência de qualidade, a pós-
graduação se expandia e se caracterizava pela excelência dos cursos. Isso significava que a
chance dos jovens, mesmo os das classes menos aquinhoadas, ingressarem na universidade e
realizarem um curso superior era bem maior, como maior passou a ser seu leque de opções de
engajamento político.
O ME passou a ser mais um ator nas lutas pelo fim da ditadura e seu papel teve
destaque, quando se observa o conjunto das suas ações de resistência ao longo dos dez anos
estudados. No fim dos anos 1970, o engajamento pessoal contra o sistema vigente podia se
dar através de diferenciados movimentos, não somente pela militância estudantil.
Comunidades de base eclesiásticas, associações de bairro, movimento feminista, movimento
gay e outros se fizeram presentes nesse momento em que a sociedade, em grande parte, já
esperava pelo fim da ditadura. O estudante universitário pôde ser visto acompanhando as
greves do ABC, em 1978, e se engajando em outros movimentos sociais que não
necessariamente o próprio ME, o que não desmerece a própria atuação do movimento nesse
contexto.
Segundo alguns autores, o ano de 1977 representou o auge do ME. Nesse caso,
indaga-se: a que “auge” estão se referindo? O que se refere à representação estudantil e
capacidade de realizar manifestações? Ou da capacidade de articulação política? Ou do
engajamento na luta pela resistência contra a ditadura? Como procuramos mostrar, durante
toda a década de 1970, todas essas questões podem ser respondidas de forma positiva.
A articulação pela volta da UNE pode ser considerada uma grande manifestação
estudantil, mais uma prova da resistência dos estudantes contra o regime. Um evento reunindo
mais de 5.000 estudantes, que primeiramente foi proibido e depois consentido, com apoio de
políticos da situação, a participação de líderes da oposição, de camponeses, e que fez ressurgir
225
a entidade representativa dos estudantes em nível nacional deve ser considerado ponto
importante quando se trata da história da redemocratização do nosso país.
A reconstrução da UNE, que realizou uma eleição nacional direta, contando com a
participação de mais de 250.000 estudantes (num universo que englobava pouco mais de um
milhão na época), não pode deixar de ser considerada como um grande marco para todos os
movimentos sociais que lutavam pelo retorno da democracia no país. E, sem dúvida, esse era
o objetivo da sua militância.
Esse fato aparece negligenciado pela nossa historiografia como “evento menor”,
dentre outros que levaram à redemocratização do Brasil. É bem verdade que o processo
interno do ME evidenciou uma disputa acirrada das tendências pela direção do movimento, o
que ocorreu ao longo de toda a sua história. Mas o fato político de recriação da entidade de
representação nacional dos estudantes, de forma mais ampla e democrática, era um sinal de
que outros tempos estavam começando, e um ciclo se fechava.
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