a resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

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CAPÍTULO 3 O PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DA UNE Neste capítulo, procurarei mostrar como o ME voltou às ruas, tornando-se o primeiro ator político a protestar no espaço público, depois de quase dez anos de reclusão, e como se deu a reorganização interna do movimento em nível nacional. Parto do pressuposto que o pioneirismo do movimento no que se refere à volta às ruas se deveu ao acúmulo das diferentes formas de resistência apresentadas pelo movimento ao longo dos anos 1970, como foi indicado nos capítulos anteriores. O ano de 1977 tornou-se um marco para o próprio ME porque o retorno às ruas significou a possibilidade de reorganização da representação nacional, através da rearticulação da UNE. Dessa forma, pôde participar de maneira mais intensa na luta contra a ditadura, o que ocorreu em companhia de outros movimentos sociais. A Grande Imprensa fez ampla divulgação das passeatas e ações estudantis que ocorreram em 1977. No que concerne a este trabalho, cabe ressaltar como a “grande” imprensa observou essas ações, geralmente com um posicionamento crítico delas e sobre o movimento. Cabe, por fim, recuperar as etapas que levaram à reconstrução da entidade. Além dessa questão, procurarei refletir a importância desse fato para o próprio movimento, bem como para o momento político pelo qual o país estava passando. 3.1 1977: os estudantes voltam às ruas e os policiais também 414 O ano letivo de 1977 começou com uma série de greves em várias universidades. Os alunos sextoanistas da Medicina da UERJ permaneceram os primeiros quatorze dias de março em greve, reivindicando a diminuição da carga horária e o aumento do valor das bolsas. Os acadêmicos da Medicina da UNESP também entraram em greve, reivindicando mais verbas 414 Título do capítulo sobre o ano de 1977 (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 23).

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Page 1: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

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CAPÍTULO 3 – O PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO DA UNE

Neste capítulo, procurarei mostrar como o ME voltou às ruas, tornando-se o primeiro

ator político a protestar no espaço público, depois de quase dez anos de reclusão, e como se

deu a reorganização interna do movimento em nível nacional. Parto do pressuposto que o

pioneirismo do movimento no que se refere à volta às ruas se deveu ao acúmulo das diferentes

formas de resistência apresentadas pelo movimento ao longo dos anos 1970, como foi

indicado nos capítulos anteriores.

O ano de 1977 tornou-se um marco para o próprio ME porque o retorno às ruas

significou a possibilidade de reorganização da representação nacional, através da rearticulação

da UNE. Dessa forma, pôde participar de maneira mais intensa na luta contra a ditadura, o que

ocorreu em companhia de outros movimentos sociais.

A Grande Imprensa fez ampla divulgação das passeatas e ações estudantis que

ocorreram em 1977. No que concerne a este trabalho, cabe ressaltar como a “grande”

imprensa observou essas ações, geralmente com um posicionamento crítico delas e sobre o

movimento.

Cabe, por fim, recuperar as etapas que levaram à reconstrução da entidade. Além dessa

questão, procurarei refletir a importância desse fato para o próprio movimento, bem como

para o momento político pelo qual o país estava passando.

3.1 1977: os estudantes voltam às ruas e os policiais também414

O ano letivo de 1977 começou com uma série de greves em várias universidades. Os

alunos sextoanistas da Medicina da UERJ permaneceram os primeiros quatorze dias de março

em greve, reivindicando a diminuição da carga horária e o aumento do valor das bolsas. Os

acadêmicos da Medicina da UNESP também entraram em greve, reivindicando mais verbas

414

Título do capítulo sobre o ano de 1977 (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da

UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 23).

Page 2: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

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para o hospital e contra a redução de 20% dos seus leitos415

. Os “novos sinais de vida”, como

salientou a revista Veja416

, ao se referir às movimentações estudantis naquele início de ano,

também foram observados na UFMG, UFPE e UFRGS.

Em 29 de março, cerca de 8.000 alunos da PUC-Rio entraram em greve pela

revogação da suspensão de quatro alunos, contra o aumento das anuidades e pela retirada da

multa de 5% sobre as mensalidades pagas com atraso417

. O mesmo fez a PUC-SP, com

boicote de pagamento das mensalidades. Nessa mesma data, realizou-se na USP uma

assembleia coordenada pelo DCE, sobre os cortes de verbas na universidade418

e, a partir dela,

foi deliberada a realização de uma manifestação próxima à Secretaria de Educação.

Com o esquema de policiamento armado, uma vez que o governador do Estado Paulo

Egydio Martins considerava a reivindicação justa, mas não podia permitir a manifestação

porque era ilegal419

, os estudantes optaram por realizar um outro percurso: os mais de 2.000

universitários seguiram em passeata da USP até o Largo de Pinheiros, voltando para a

universidade420

. Ao longo do ato, cartazes com os dizeres “Mais verbas para educação”, “Pelo

ensino público e gratuito”, e outras reivindicações mais específicas. Depois da passeata, foi

formado um grupo de representantes dos alunos da USP e PUC-SP para dialogar com o

governador421

, que prometeu mais verbas.

O mês de março foi difícil para os representantes da ditadura porque pretendiam

negociar com o MDB a aprovação da reforma do Judiciário. O projeto de reforma foi para

votação em plenário no dia 30 de março e não obteve a maioria de dois terços, sendo

rejeitado. Assim, em 1º de abril, o governo que prometia a distensão política, fechou o

415

Educação: um certo inconformismo. Veja, 13 abr. 1977, p. 49-50. 416

Os novos sinais de vida. Veja, 20 abr. 1977, p. 75-76. 417

Alunos da PUC entram em greve por 3 reivindicações. Jornal do Brasil, 30 mar. 1977. 418

Boletim da tendência “Liberdade e Luta” da USP diz: “A gravidade da situação já provocou manifestações

dos professores por melhores salários e obrigou a própria reitoria a comprometer, no 1º semestre, toda a verba

destinada à USP para 77.” (grifo original). (Liberdade e Luta intervém. Oposição à atual diretoria do DCE. n.

1/77 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37). 419

Desproporção e imprudência. Folha de S. Paulo, 31 mar. 1977. 420

Ver foto (Anexo IX). 421

Renato Cancian relata pormenorizadamente todas as passeatas e encontros que aconteceram no ano de 1977.

Nesse sentindo, cabe a este trabalho referi-las e analisá-las, bem como seus desdobramentos (Movimento

estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.,

cap 2.

Page 3: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

141

Congresso Nacional por quatorze dias e baixou uma série de medidas, que ficaram conhecidas

como o pacote de abril.422

Esse foi um motivo para as manifestações ultrapassarem o limite das reivindicações

educacionais. A greve da PUC-Rio, por exemplo, terminou em 4 de abril, com os estudantes

prometendo continuar com o boicote de pagamento das mensalidades e, além de enviarem

uma carta ao reitor, redigiram uma carta ao MEC relatando a situação da universidade, e outra

em repúdio ao fechamento do Congresso Nacional, mas deixando clara a ilegitimidade do

parlamento. Nesse sentido, afirmavam os signatários da carta:

”Apesar do parlamento não representar os verdadeiros interesses dos

trabalhadores, estudantes e demais setores oprimidos da população, vemos o

seu fechamento como mais um ato de força de um regime que procura calar

até mesmo as mais tímidas manifestações de oposição.”423

O Jornal do Brasil, que cobriu a greve, publicou as três cartas redigidas pelo DCE da

PUC na íntegra, na edição de 5 de abril.

Na UFRGS, foi realizada uma manifestação no campus universitário para protestar

contra a prisão de colegas e as medidas do “pacote de abril”, dando ênfase ao fechamento do

Congresso Nacional. Como desdobramento do protesto, foi criada uma Comissão Permanente

de Direitos Humanos cuja sua primeira plenária, segundo a revista Veja, teve o modesto

número de 30 pessoas.424

Mas foi a partir do 1º de maio que o ME realizou grandes mobilizações. Na véspera

dessa data, oito jovens estudantes e operários, militantes da organização clandestina Liga

Operária, foram presos por distribuírem convites para as comemorações do Dia do Trabalho.

Como consequência, as universidades paulistanas (USP, PUC e outras menores) e do interior

422

Composto de 14 emendas e três artigos novos, além de seis decretos-leis, o “pacote” determinou ainda, entre

outras medidas: eleições indiretas para governador, com ampliação do colégio eleitoral; instituição de

sublegendas, em número de três, na eleição direta dos senadores, permitindo à Arena recompor as suas bases e

aglutiná-las sob o mesmo teto; ampliação das bancadas que representavam os Estados menos desenvolvidos,

nos quais a Arena costumava obter bons resultados eleitorais; extensão às eleições estaduais e federais da Lei

Falcão, que restringia a propaganda eleitoral no rádio e na televisão e fora criada para garantir a vitória

governista nas eleições municipais de 1976; alteração do quorum, de 2/3 para maioria simples, para a votação

de emendas constitucionais pelo Congresso; ampliação do mandato presidencial de cinco para seis anos.

(MOTTA, Marly. O pacote de abril. Disponível em: <http:// www.cpdoc.fgv.br/ nav_fatos_imagens/

htm/fatos/PacoteAbril.asp>. Acesso em: 10 set. 2009. Para maiores informações sobre o pacote de abril,

consultar: ALVES, Maria Helena Moreira, Estado e oposição no Brasil: 1964-1984, cit., p. 231-237. 423

Alunos da PUC decidem fim da greve, mas mantêm o boicote às mensalidades. Jornal do Brasil, 05 abr.

1977. 424

Os novos sinais de vida. Veja, 20 abr. 1977, p. 76.

Page 4: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

142

do Estado (São Carlos, Araraquara e Campinas) promoveram uma greve no dia 3 maio, com a

participação de mais de 80.000 estudantes. Eles prepararam, naquela noite, um ato público

realizado no Teatro da Universidade Católica (TUCA), onde se “aglomeraram” cerca de 4.000

pessoas, entre estudantes, professores, militantes de movimentos de oposição ao regime e

políticos do MDB.425

A Associação dos Professores da PUC-SP redigiu um documento que foi entregue

durante o ato, no qual solidarizavam com os protestos de “todos aqueles que clamam pela

soltura dos estudantes e operários presos, principalmente por considerar legítima a defesa das

liberdades democráticas de qualquer pessoa humana”426

. A assembleia que ocorreu durante o

ato decidiu pela organização de uma passeata para o dia seguinte. As manifestações, que até

então tinham se restringido às questões universitárias, extrapolavam esse conteúdo, ganhando

contornos nitidamente políticos.

Em 5 de maio, aproximadamente 10.000 estudantes saíram de uma concentração em

frente ao Largo de São Francisco com faixas, cartazes, palavras de ordem, como “anistia;

soltem nossos presos; liberdades democráticas, abaixo a carestia”427

. Durante a passeata, os

estudantes leram e distribuíram 30.000 cópias de uma carta aberta à população.428

425

Educação: 80 mil universitários em greve. Folha de S. Paulo, 04 maio 1977. 426

Ibidem. 427

Passeata reúne 10 mil estudantes em São Paulo. O Estado de S. Paulo, 06 maio 1977, p. 13. 428

“Hoje, consente quem cala: basta às prisões; basta de violência. Não mais aceitamos mortes como as de

Wladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Alexandre Vannucchi Leme. Não aceitamos que as autoridades

maltratem e mutilem nossos companheiros. Não queremos aleijados heróis como Manuel da Conceição. Hoje,

viemos às ruas para exigir a imediata libertação dos nossos companheiros operários – Celso Brambilla, Márcia

Basseto Paes, José Maria de Almeida e Ademir Marini – e os estudantes – Fernando Antonio de Oliveira

Lopes, Anita Maria Fabri, Fortuna Dwek, Cláudio Júlio Gravina – presos sob a alegação de subversão. Hoje,

neste país, são considerados subversivos todos aqueles que reivindicam os seus direitos, todos aqueles que não

aceitam a exploração econômica, o arrocho salarial, o alto do custo de vida, as péssimas condições de vida e

trabalho. Todos aqueles que protestam contra as contínuas violências policiais. Subversivos enfim, são

considerados os que infringem a Lei de Segurança Nacional, instrumento jurídico que justifica a repressão

contra os mais legítimos movimentos da população. Hoje, não mais suportamos as correntes. Exigimos das

autoridades o respeito às liberdades de manifestação, expressão e organização de todos os setores oprimidos da

população. Queremos falar com os que nos oprimem. E entendemos que a melhor maneira de falarmos e de

lutarmos contra os que nos oprimem, por meio da exploração econômica, da violência política e da violência

policial, é através dos sindicatos e entidades livres de nossas organizações independentes. Na Universidade de

São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo os estudantes criaram as suas entidades livres

(DCEs Livres). Livres, porque não nos submetemos às leis impostas pelas autoridades que não querem aceitar

eleições livres e diretas, que impedem a nossa liberdade de manifestação e organização. Porque não mais

aceitamos as mordaças é que hoje exigimos a imediata libertação de nossos companheiros presos não pelas

alegadas razões de subversão, mas porque lutam pelos interesses da maioria da população explorada: contra a

carestia, fim do arrocho salarial, liberdade de organização e expressão para reivindicar os seus direitos. É por

isso que conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta manifestação pública sob as mesmas e únicas

bandeiras: Fim às torturas, prisões e perseguições políticas; libertação imediata dos companheiros presos;

anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados; pelas liberdades democráticas.” (Carta aberta à

população. Folha de S. Paulo, 06 maio 1977, p. 21).

Page 5: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

143

A carta, motivada pela prisão de colegas e operários, referia-se também à luta “através

dos sindicatos e entidades livres de nossas organizações independentes” contra os opressores.

(grifei). Ao clamar publicamente por liberdades democráticas, os estudantes aproveitavam a

oportunidade para ressaltar a importância do retorno das representações associativas.

A passeata429

foi reprimida pelas tropas, comandadas pelo próprio secretário de

Segurança de São Paulo Erasmo Dias, no Viaduto do Chá, no momento em que todos os

participantes, sentados no chão, liam em coro a carta e gritavam slogans de protesto. A

resposta policial foram bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a manifestação. Em

Ribeirão Preto, Campinas, São Carlos e Sorocaba foram realizadas manifestações nos mesmos

moldes.

Os atos ocorridos em São Paulo tiveram repercussão nacional. Em várias partes do

país, greves, manifestações e cartas de repúdio à prisão dos operários e estudantes foram

feitas: Minas Gerais (nos campus da UFMG e da UFJF), Curitiba, Sergipe, Brasília e Bahia.

O ato seguinte ficou por conta dos estudantes fluminenses. Em 10 de maio, a PUC-Rio

realizou uma manifestação que contou com a presença de 7.000 pessoas, na grande maioria

estudantes da UFRJ, UFF, UERJ, FEFIERJ430

e da própria PUC.

Mesmo com a nota da Secretaria de Segurança informando que a concentração seria

proibida e reprimida, mesmo que se limitasse ao campus431

, o ato público aconteceu, mas sob

extrema vigilância da polícia. Dentre os diversos discursos, ganhou destaque o de Iramaia

Queiroz, cujos filhos Cid e César Benjamim estavam no exílio, que clamava pela anistia. Em

outro discurso inflamado, o vereador José Frejat, ex-presidente da UNE na década de 1940,

comentou: “Quão paradoxal a fraqueza deste regime, que tem em suas mãos toda a força e

todas as leis de exceção, e treme da cabeça aos pés com uma manifestação de estudantes

descomprometidos.”432

A assembleia que se seguiu ao ato levou os estudantes a debateram por quase uma

hora as palavras de ordem que seriam colocadas na carta aberta à população. “Pelas liberdades

democráticas” ou “pela liberdade de expressão e organização de todos os setores explorados

429

Ver foto (Anexo X). 430

Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro, transformada em 1979 na UNIRIO. 431

Falcão aponta subversão nas manifestações estudantis. Jornal do Brasil, 10 maio 1977, 1º Caderno. 432

Reunião universitária leva 7 mil à PUC. Jornal do Brasil, 11 maio 1977, 1º Caderno, p. 13.

Page 6: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

144

da população”. Sem dúvida, elas expressavam a linha política de duas das principais correntes

do ME na PUC: a “Viração” (nome da tendência da APML no Rio) e a “Alternativa” (de

maioria da POLOP).

Houve consenso e a decisão foi unir as duas palavras de ordem numa só. Os esforços

empregados em prol da luta contra o regime até aquele momento passavam por resoluções

que priorizassem uma agenda comum, com o intuito de fortalecer a oposição ao governo.

Obviamente, houve reação dos militares a esses atos. O Serviço Nacional de

Informação (SNI) afirmou, no seu primeiro relatório do mês de maio:

“Os dados disponíveis indicam que os ativistas no meio estudantil,

orientados e apoiados por comunistas e radicais do partido oposicionista,

continuarão pressionando os estudantes no sentido da realização de atos

públicos contra a ditadura e em favor da anistia geral e liberdades dos presos

políticos. (...) para impedir que essas concentrações evoluam para níveis

indesejáveis, ensejando, inclusive, o surgimento de mártires, torna-se

importante a neutralização dos líderes e das minorias organizadas e o

esclarecimento da opinião pública.”433

Frente aos primeiros grandes protestos, o ministro da Justiça Armando Falcão, a

pedido do presidente Geisel, fez circular uma nota para todos os governadores:

“A continuidade do intenso e coordenado esforço da Nação, inspirado nos

princípios da Revolução de Março, exige paz e estabilidade, que não se

admitirá romper pela ação extremista de quem procure prejudicar a atividade

dos cidadãos voltados para o trabalho pacífico e construtivo. (...) Passeatas,

concentrações de protestos em logradouros públicos, assim como outras

demonstrações contestatórias, são distúrbios de fundo e fim subversivos, não

podendo em consequência ser tolerados.”434

Já o ministro da Educação abordou em sua nota que essas manifestações vinham de

uma “inexpressiva minoria de estudantes, sem compromissos com interesses maiores da

nação, estranhos à universidade”, que pretendiam “perturbar a tranquilidade interna”435

. Essa

também era a opinião do deputado arenista Francelino Pereira, que declarava acreditar em

“infiltrações de pessoas estranhas aos interesses dos estudantes”.436

433

SNI. Apreciação Sumária n. 17, de 11.05.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e

repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 104). 434

Falcão aponta subversão nas manifestações estudantis. Jornal do Brasil, 10 maio 1977, 1º Caderno. 435

Ibidem. 436

Ibidem.

Page 7: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

145

Apesar das preocupações e ameaças dos militares, o ressurgimento do ME ocorreu em

novos moldes e em situação bem diversa da que caracterizou a movimentação de massa do

ano de 1968: não havia grandes líderes, não houve enfrentamentos nem uso de armas e a

plataforma de luta era bem ampla, ou seja, não restrita ao ME. O que se exigia era o fim do

regime.

A união dos estudantes se reforçava a cada passo em diferentes Estados. A ideia de

fazer um dia nacional de lutas437

, segundo a revista Veja, partiu dos estudantes gaúchos438

.

Depois de várias assembleias regionais, e tendo como base São Paulo e Rio de Janeiro, que

proporcionavam os encontros com representantes de todo país, foi marcado o dia 19 de maio

para o protesto.

Renato Cancian mostra que o relatório do SNI referente ao período de 9 a 15 de maio

versava sobre as preparações do Dia Nacional de Luta, e os comentários eram os seguintes:

“O acompanhamento das atividades do ME em cada uma dessas cidades

[Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador] indica

que há divergência não só quanto aos eventos previstos (...). A par da intensa

distribuição de panfletos convocando os estudantes e o público em geral para

o ato público, há um esforço evidente no sentido de envolver os

trabalhadores nas atividades programadas, todas elas de cunho

essencialmente político. Vale assinalar que as investidas feitas até agora não

surtiram o efeito desejado, pois a área trabalhista, como aconteceu em outras

oportunidades, se mostra arredia aos apelos recebidos. De qualquer forma, os

líderes universitários prosseguem no seu intento (...). No seu trabalho de

proselitismo, exploram fatores de ordem econômica e social, emprestando

particular ênfase ao aumento do custo de vida e às perspectivas de

desemprego.”439

Mas no dia 19 de maio não ocorreram pequenos agrupamentos. O local previamente

escolhido, o Largo de São Francisco, foi alterado por causa do forte esquema policial. Mesmo

assim, reuniu quase 2.000 pessoas que acabaram enfrentando um grande esquema policial

armado. Mas o grosso da manifestação, com cerca de 8.000 pessoas, ocorreu diante da

437

Pelas informações, o nome nos Estados variou, mas em geral foi “dia nacional de luta pela anistia e liberdades

democráticas”. 438

Estudantes: os riscos da escalada. Veja, 18 maio 1977, p. 27. 439

SNI. Apreciação Sumária n. 18, de 18.05.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e

repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 107).

Page 8: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

146

Faculdade de Medicina, num ato que aglutinou boa parte das esquerdas e movimentos440

que

lutavam pelo fim da ditadura.

Na pauta havia inúmeras palavras de ordem e moções de apoio lidas durante meia

hora, o que assinalava o aumento da lista de aderentes ao movimento, conforme ressaltou o

jornal O Estado de S. Paulo. Além da leitura da carta produzida pelo Movimento 1º de Maio,

também foi lido o Manifesto Paulista de Luta pela Anistia:

“Há duas semanas, exigimos nas ruas a libertação de nossos oito

companheiros presos operários e estudantes... Numa só frase a resposta do

regime militar foi garantir os interesses dos que exploram os trabalhadores

(...). Hoje denunciamos a violência do regime militar. Hoje não nos calamos

e não nos calaremos perante uma realidade injusta que precisa ser

transformada.”441

(grifei)

As passeatas em diferentes pontos do país se seguiram em vários momentos do ano de

1977, acompanhando a agenda do movimento. No final do mês de maio deu-se o acirramento

das disputas internas no ME da USP, por ocasião da eleição do DCE. Dessa vez 16.000

alunos442

votaram e reelegeram a chapa “Refazendo”, entre as cinco concorrentes no pleito. O

aumento considerável de votantes, comparado com a primeira eleição, pode ser explicado

como resultado da intensa mobilização feita pelo ME nos primeiros meses de 1977, mas

também, pode ter sido fruto da ampliação da luta contra a ditadura por parte de diferentes

setores de oposição, ou ainda porque a organização do DCE como forma de representação dos

alunos foi considerada importante e aprovada pelos universitários.

Retornando ao Dia Nacional de Luta, cabe esclarecer que os desdobramentos mais

sérios foram sentidos em Brasília. O reitor da UnB José Carlos de Azevedo443

puniu 16

estudantes por participarem das manifestações e, segundo a revista IstoÉ, essas foram as

únicas punições do gênero ocorridas em todo país444

. Como consequência, os universitários

440

“Representações das oposições sindicais dos metalúrgicos, bancários e gráficos, das pastorais da Igreja, do

Movimento Feminino pela Anistia, do MDB, estudantes de cursinhos e secundaristas, de estagiários em órgãos

públicos, de professores secundaristas e universitários, de funcionários do Hospital das Clínicas, de médicos

residentes, de mães de alunos, da Associação Livre dos Psicoterapeutas de SP e até da Academia de Capoeira

Capitães da Areia juntaram-se aos universitários da USP e PUC e de mais duas dezenas de escolas particulares.

A cada ato, os protestos são mais veementes.” (O Estado de São Paulo, 20 maio 1977, p. 14). 441

O Estado de São Paulo, 20 maio 1977, p. 14. 442

Os frutos da omissão. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 11. 443

O reitor era doutor em Física e capitão de mar-e-guerra, como frisavam as reportagens da época. 444

Estudantes: em Brasília, um reitor sai em liça. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 10.

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147

entraram em greve a partir de 31 de maio. Os policiais (depois de quase nove anos)

retornaram à universidade. O ato teve repercussão nacional e provocou discussões no

Senado.445

A situação na UnB foi se agravando. Com a visita da primeira-dama norte-americana

Rosalynn Carter a Brasília, os estudantes deliberaram escrever uma carta, que foi entregue a

ela, denunciando a situação vivida no Brasil, e clamando por direitos humanos. Sem dúvida, o

ato teve repercussão e o governo tratou de abafar o episódio, dizendo que a CIA (Agência

Central de Inteligência) e a embaixada norte-americana estariam envolvidas no caso, como

uma forma também de esvaziar o movimento.446

A situação da UnB contribuía para acirrar os ânimos no cenário nacional. Após a

tentativa frustrada de realizar o III ENE em Belo Horizonte, como veremos adiante, o ME

realizou o II Dia Nacional de Luta; antes disso, já tinham sido implantados Comitês de 1º de

Maio por todo país.

A chamada do Comitê de São Paulo para uma passeata dizia:

“Dia 15 de junho às 17 horas vamos protestar. Protestar contra a falta de

liberdade, contra a repressão policial, contra a alta do custo de vida, contra

as más condições de ensino, contra as péssimas condições de vida e trabalho

em que se encontra a grande maioria da população.”447

As palavras de ordem também foram ressaltadas: “pela libertação imediata dos

estudantes e operários presos”; “pelo fim das torturas, prisões e perseguições políticas”; “pela

anistia ampla e irrestrita de todos os presos, cassados, banidos e exilados políticos”; “contra a

carestia”; “pelas liberdades democráticas”. As pautas, que extrapolavam as questões

estritamente estudantis, serviam para ampliar o número de aliados no combate ao regime.

445

Vale destacar a passagem do discurso do então senador e ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho:“Não

houve o que se poderia entender, estrito senso, de invasão, porque invasão pressupõe vencer uma resistência, é

uma violência. Houve uma presença prévia, que se antecipou à chegada dos estudantes. Essas pessoas

pretendiam dar cumprimento à ordem dos altos escalões da República, que era garantir o direito daqueles que

dissentiram da greve.” (Senador aponta plano de caráter nacional. Jornal do Brasil, 03 jun. 1977, p. 16). 446

Para maiores informações sobre o episódio da carta, consultar as reportagens: Crimmins desmente

envolvimento da CIA com a carta. Jornal do Brasil, 11 jun. 1977, 1º Caderno; Alunos assumem a autoria da

carta. O Estado de S. Paulo, 11 jun. 1977. 447

A toda população de São Paulo. Comitê 1º de Maio, de 08.06.1977 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 41).

Page 10: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

148

A revista Veja descreveu com detalhes a movimentação na capital paulista, o que vale

a pena ser narrado, para se ter ideia da estruturação que vinha sendo empregada pelo

movimento. A passeata que estava marcada para acontecer na Praça Fernando Costa, horas

antes já contava com o policiamento de 2.000 homens dos 32.000 destacados para conter as

manifestações do dia na capital paulista.448

A capacidade de renovação do movimento era demonstrada nas ruas, e o

comportamento dos atores, ao se colocarem de frente para o regime, também se modificara,

porque estavam orientados por uma nova cultura política, que se caracterizava pela defesa dos

princípios democráticos, e não mais pelo ideal de revolução que orientou grande parte da

atuação dos jovens estudantes entre meados da década de 1960 até a de 1970.

O início do segundo semestre de 1977 continuou agitado e houve dificuldade para

organizar a reunião da SBPC em julho. A primeira ideia era que o encontro anual fosse

realizado em Fortaleza, mas, dessa vez, a Sociedade não obteve recursos do governo como

acontecia anteriormente, e esse novo dado dificultou o deslocamento para o Nordeste.

Procurada a USP, que também declarou não ter condições de poder receber a reunião

científica, o problema se resolveu com a decisão do cardeal de São Paulo Dom Paulo Evaristo

Arns, de oferecer a sede da PUC-SP para a realização do evento, que ocorreu entre 6 e 13 de

julho.

O governo passou a culpar as lideranças estudantis por terem ajudado a realizar a

reunião anual449

. Um relatório do SNI fez um balanço da atividade:

448

“Às 17h10, todavia, para espanto das autoridades policiais, um grupo de cinquenta estudantes juntou-se na

esquina das ruas 25 de março e General Carneiro e entoou o primeiro refrão: liberdade! liberdade – que serviria

de senha para o início da manifestação. Imediatamente para ali correram estudantes até então camuflados nas

filas de ônibus ou misturados aos populares que acompanhavam a animada exibição da banda de música (...)

Saudada por chuvas de papel picado (...) a passeata avançou (...) gritando palavras de ordem contra a carestia e

a repressão, cantando o Hino Nacional e o Hino da Independência e atirando ao chão vidros de amoníaco, um

dos raros antídotos para o gás lacrimogêneo.” (As incertezas da trégua. Veja, 22 jun. 1977, p. 23). 449

CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino

de uma geração de estudantes, cit., p. 129-130.

Page 11: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

149

“(...) as reuniões anuais dessa entidade têm-se caracterizado, ultimamente,

pela exploração de assuntos de cunho político-ideológico e de nítida

contestação ao Governo e à Revolução (...). Ademais, os dados disponíveis

indicam que as lideranças universitárias de esquerda pretendiam valer-se da

reunião em Fortaleza para o prosseguimento da agitação estudantil.”450

Como já foi dito, a SBPC foi um importante canal de articulação da resistência à

ditadura. Isso explica a especial preocupação dos militares com os encontros anuais da

entidade.

Mas o foco principal de preocupação continuava voltado para a situação da UnB, onde

a greve perdurava. Mesmo com o recesso escolar de 32 dias imposto pela Reitoria, a

mobilização dos estudantes continuava. Nesse meio tempo, o reitor Azevedo instalou uma

comissão de inquérito na universidade e, com base no relatório elaborado por essa comissão,

decidiu expulsar 30 alunos e suspender outros 34, por períodos que variavam entre 5 e 90

dias.451

As punições foram motivo de reunião no Palácio do Planalto entre o presidente Geisel

e o ministro Ney Braga452

. Como saldo da reunião, o presidente ordenou a ocupação da

universidade pelas forças militares, para “garantir a presença em sala de aula dos estudantes

que não se solidarizavam com a greve”453

. Resultado: no dia 25 de julho, data marcada para o

reinício das aulas, 151 pessoas foram detidas na universidade, acusadas de “organizar, apoiar

ou aplaudir a realização de uma passeata no campus”.454

Cabe ressaltar que não encontrei outras menções ao caso da UnB, salvo uma

reportagem do Jornal do Brasil de setembro daquele ano, assinalando que as forças policiais

continuavam atuando no campus, sem uma previsão de lá saírem.455

450

SNI. Apreciação Sumária n. 23, de 22.06.1977. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e

repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 130). O

relatório ainda afirma: “Não poucos acusam o Governo Federal de criar, propositadamente, obstáculos

intransponíveis à realização do evento, pela preocupação de que a reunião da SBPC em Fortaleza/CE viesse a

repetir, em seus aspectos contestatórios, o happening de Brasília em 1976. Nesse ano, a Assembleia Geral da

SBPC aprovou, por aclamação, moções de caráter político, entre elas a proposta da Associação Nacional dos

Cientistas Sociais, reivindicando a reintegração dos professores afastados das universidades por motivos

políticos, a anistia aos presos políticos e a anulação do Dec.-Lei 477/69.” 451

Estudantes: fim de férias. Veja, 27 jul. 1977, p. 27. 452

Geisel recebe Ney Braga durante uma hora e examina punições aplicadas na UnB. Jornal do Brasil, 20 jul.

1977, 1º Caderno. 453

Tropas ocuparão campus da UnB. O Estado de S. Paulo, 21 jul. 1977. 454

Polícia detém 151 no campus da UnB. Jornal do Brasil, 26 jul. 1977. 455

Movimento estudantil recua em busca da organização. Jornal do Brasil, 11 set. 1977, p. 20.

Page 12: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

150

Moções de apoio, greves e reuniões começaram a florescer por todo país em prol dos

colegas da UnB. E ainda no mês de agosto, mais dois acontecimentos colaboraram para a

ebulição da movimentação estudantil: a prisão de 19 militantes do MEP no Rio de Janeiro e a

publicação da “Carta aos brasileiros”, redigida pelo jurista Gofredo da Silva Telles Júnior.456

Para organizar o movimento contra as detenções, uma comissão executiva de DCEs

(compreendendo representantes da USP, PUC-SP, UFSCAR, UnB, UFRGS, PUC-RS, PUC-

MG, UEL, UFBA e UFF) reuniu-se em São Paulo, definindo a data do dia 23 de agosto para o

III Dia Nacional de Luta, e estratégias foram propostas para os rumos a serem tomados pelo

movimento, principalmente no que concernia à realização do III ENE, previsto para 21 de

setembro.457

Conforme previsto, no dia 23 de agosto, manifestações ocorreram em boa parte do

país, ocasionando choques com a polícia em Porto Alegre e Campinas. Em Curitiba, Recife,

Rio de Janeiro, Brasília, São Carlos e Londrina os estudantes se reuniram nos campus. Na

Bahia, cerca de 3.000 estudantes puderam realizar seus protestos sem a interferência da

polícia militar458

. Mas foi em São Paulo que aconteceu, mais uma vez, o grande ato. Geraldo

Siqueira lembra que nesse dia os estudantes chegaram ao “máximo da tecnologia” de

estruturação.459

As novas “técnicas” empregadas na realização das passeatas, o “caráter pacífico” e o

uso de símbolos nacionais demonstravam a maturidade do movimento na luta pela derrubada

456

Marcos Napolitano faz uma boa análise da Carta e sua repercussão. Parte do pressuposto que ela

sistematizava uma leitura liberal da “questão democrática” (desmontando as representações que fundaram o

golpe de 64 e o regime militar), esboçando uma divisão no campo da oposição entre “liberais” e “esquerdistas”

(Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 48-52). 457

Estudantes fixam novo Dia Nacional de Luta. Folha de S. Paulo, 16 ago. 1977, p. 19 (CANCIAN, Renato,

Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de

estudantes, cit., p. 137). 458

As maiores manifestações de rua, desde 68. O Estado de S. Paulo, 24 ago. 1977, p. 3. 459

É o próprio Geraldo que narra como foi a manifestação dos estudantes paulistanos: “Marcamos no Largo do

Paiçandu, sabíamos que ia ser reprimida. No dia, a tropa de choque ocupou tudo lá. Mas combinamos cinco

pontos alternativos da cidade, de onde sairiam cinco passeatas meia hora antes em direção ao Largo do

Paiçandu. De fato, sabíamos que não seria possível chegar lá. Marcamos um horário e, antes de chegar,

daríamos um grito e iniciaríamos uma passeata na direção contrária ao Largo. E deu tudo certo. Havia tropas

espalhadas pela cidade inteira. Fizemos um esquema de telefones, para os quais ligávamos para perguntar qual

esquina estava vazia; aí dispersávamos e nos reagrupávamos. Isso durou das cinco da tarde às dez da noite. A

gente juntava e se dispersava. Pipocou tanta manifestação no centro que tinha viatura se batendo no meio da

[avenida] Ipiranga. Dez horas da noite fomos para O Gato Que Ri tomar um chope no meio da tropa.

Brindamos e fomos para a Casa do Politécnico e assistimos à tropa inteira voltando exausta para o quartel.”

(Depoimento de Geraldo Siqueira à autora para o Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em

01.12.2004).

Page 13: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

151

da ditadura. Partindo da autocrítica e das mudanças de tática em relação aos anos anteriores,

os estudantes em 1977 tinham em mente que a luta só poderia ser efetivada se conquistasse

um apoio popular amplo, na oposição uníssona460

de “combate ao regime”.

A Grande Imprensa comentou que as manifestações do segundo semestre acabaram

por mobilizar “um número de militantes” muito inferior ao das passeatas do semestre anterior

e, partindo desse ponto, passaram a indagar se o ME estaria vivendo um refluxo.461

Além da imprensa, os próprios estudantes sentiam um “refluxo” do movimento, em

comparação ao agitado semestre anterior. Um documento de uma tendência política trazia

uma crítica interessante ao momento, bem como uma justificativa para a imediata criação da

UEE:

“As mobilizações desse ano foram possíveis graças ao acúmulo de forças

anterior, no processo de reorganização estudantil no país (...). Mas o

acúmulo das questões e tarefas colocadas pelo ME levaram a um

esgotamento rápido de nossas forças, o que comprometeu nosso crescimento

sólido, na medida que não conseguimos consolidar os avanços dados,

aumentar a organização, conscientizar a massa das vitórias que o movimento

obteve, para se comprometer mais e mais com o próprio.”462

O alargamento do movimento, que se expandia em todo território nacional,

demandava uma maior estruturação. Nessa conjuntura, o movimento apostava na

reorganização das suas entidades gerais: as UEEs e, posteriormente, a UNE.

O congresso de refundação da UEE/SP, realizado em setembro, foi um marco

simbólico, pois a conjuntura das passeatas, a preparação do III ENE e as discussões internas

acabaram postergando para o ano seguinte a eleição da primeira diretoria da UEE/SP, como

veremos adiante.

Cabe ressaltar que ainda no mês de setembro ocorreu a eleição do DCE da UFMG463

e

a mobilização para o III ENE, como ainda mostrarei neste capítulo, que finalmente foi

460

Somente para ressaltar que quando falo em oposição uníssona, levo em conta as diferentes formas de ação e

reflexão das correntes, mas que de toda maneira convergiam na questão do término da ditadura. 461

Universidade: o “3º estágio”. Veja, 24 ago. 1977, p. 24. 462

A reconstrução da União Estadual de Estudantes de São Paulo. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 37). 463

Movimento estudantil recua em busca da organização. Jornal do Brasil, 11 set. 1977, p. 20.

Page 14: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

152

realizado na PUC-SP, apesar da violência da invasão policial, o que certamente explica a

leitura de um “refluxo” do movimento.

Sem dúvida, as passeatas que ocorreram no primeiro semestre de 1977 deram uma

visibilidade para o ME em todo país e possibilitaram a sua estruturação em nível nacional.

Mas no segundo semestre, era premente a necessidade de organizar as entidades, para que

fossem criados “mecanismos fortes” de representação. No período, esse seria o centro das

atenções do movimento, que também passou a atuar em conjunto com outras frentes de luta

pela democracia.

O saldo das passeatas de 1977 também foi avaliado pelos estudantes. O jornal Cobra

de Vidro, das Faculdades Isoladas de São Paulo, fez uma análise nesse sentido. Segundo a

avaliação do periódico, as palavras de ordem que vinham sendo empregadas pelo movimento,

como “liberdades democráticas”, “anistia”, “contra carestia” e “abaixo repressão”

encontravam “ressonância” junto à população. E acrescenta que a estratégia de usá-las evitava

“o isolamento em relação ao restante da oposição popular e democrática, impedindo que o

movimento [ficasse] sozinho na frente da luta e afastado do resto do povo”.464

Como procurei mostrar, a volta às ruas não foi algo que aconteceu “da noite para o

dia”, tampouco a mudança de pautas, antes restritas ao âmbito educacional e, posteriormente,

ampliadas para os problemas da conjuntura política relacionada à abertura democrática. Essa

caminhada cheia de percalços, que permitiu o repensar das ações, não impediu que o ME

figurasse como o primeiro ator político a retornar às ruas, junto com outros movimentos

sociais que dele se diferenciavam por terem se formado no bojo da conjuntura dos anos finais

da ditadura e, portanto, sem a experiência de lutas anteriores, como era o caso do ME.

Além da importância da volta do ME às ruas, o protesto estudantil foi também

relevante por ter permitido que a questão democrática fosse enunciada sem meias palavras,

em plena rua, potencializando os debates e as expectativas da sociedade em torno da abertura

do regime, como afirma Marcos Napolitano.465

464

Cobra de Vidro: jornal de alunos das escolas isoladas [FGV, FAAP, e outras]. Edição especial, 1977, p. 7

(Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 40). 465

NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 40.

Page 15: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

153

As passeatas e demais manifestações dos estudantes durante o ano de 1977 tiveram

ampla divulgação da imprensa, o que foi positivo para a repercussão dos atos junto à

sociedade em geral. No entanto, a Grande Imprensa geralmente não tratava a questão de uma

maneira “favorável”, como veremos a seguir.

3.2 O olhar da Grande Imprensa sobre as movimentações estudantis

Renato Cancian, com base em reportagens e editorais feitos pelos jornais de grande

circulação466

, mostra que esses órgãos tiveram maior interesse em formular críticas aos rumos

do ME universitário, deixando de lado qualquer preocupação com a dinâmica interna do

movimento467

. O sociólogo indica que essa situação foi gerada por uma falta de definições

programáticas pelo movimento, uma vez que naquele momento, na maioria das universidades,

as tendências estudantis se encontravam ainda em processo de constituição.468

Já Marcos Napolitano apresenta outra interpretação. Retomando a análise de Celina

Duarte sobre o papel da imprensa na abertura469

, o historiador evidencia que a imprensa,

como expoente da crítica liberal470

, servia de elo para uma transação negociada da abertura

entre governo e oposições liberais. Destarte, no que se refere ao ME, Napolitano mostra que a

memória construída sobre 1968 por autoridades e pela imprensa mais conservadora foi

466

O sociólogo analisou textos dos seguintes periódicos: O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal da

Tarde, Jornal do Brasil e Veja (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público

na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 119-127). 467

CANCIAN, Renato, op. cit., p. 125. Sobre o semanário Veja, comenta: “Também chama a atenção para o fato

de que as rivalidades políticas entre as tendências estudantis se traduziam em divergências meramente

semânticas. Como exemplo, longas discussões em torno da adoção de palavras de ordem: abaixo a ditadura ou

pelas liberdades democráticas? Ou ainda, liberdades políticas ou liberdades democráticas? (Estudantes.

Longe da trégua. Veja, 01 jun. 1977, p. 23). Com relação a essa última questão, entretanto, é possível afirmar

que os artigos publicados por Veja são extremamente simplistas porque chegam a anular quase que por

completo as distinções políticas que existiam entre as tendências estudantis.” 468

CANCIAN, Renato, op. cit., p. 127. 469

“1. Legitimação do projeto de abertura; 2. Arena privilegiada do debate do mecanismo de articulação política;

3. Instrumento para reverter as expectativas da opinião pública; 4. Canal de feed-back para o governo; 5.

Instrumento neutralizador das pressões da „linha dura‟ militar.” (DUARTE, Celina Rabelo, Imprensa e

redemocratização no Brasil: um estudo das conjunturas 1945 e 1974-1978, apud NAPOLITANO, Marcos,

Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 153-154). 470

“A grande imprensa (...) foi um dos polos mais importantes na elaboração da questão democrática,

enfatizando, sobretudo a volta ao „Estado de Direito‟.” (NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil

contemporâneo (1977-1984), cit., p. 24).

Page 16: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

154

utilizada para desqualificar o estudante de 1977, “ao caracterizá-lo pelo que ele não era”471

,

sem levar em conta as mudanças efetivas que aconteceram no movimento, sobretudo no que

se refere à adoção de uma nova cultura política, a democrática.

Sem aprofundar o papel da imprensa na transição democrática, estudo já realizado por

outros pesquisadores472

, e cuja questão não é o foco deste trabalho, não posso deixar de fazer

referência ao papel da imprensa na abertura política. Mesmo porque a imprensa, também

concebida como agente da história que ela registra e comenta, serve como um instrumento de

manipulação de interesses, como afirmou a historiadora Maria Helena Capelato.473

Cabe ressaltar que, de maneira geral, a Grande Imprensa era identificada com uma

ideologia e prática política liberal. É claro que os diferentes periódicos aqui citados

apresentavam distintos laços com as ideias liberais: alguns mais conservadores, outros menos,

mas sem colocar em cheque seu posicionamento: o retorno ao “Estado de Direito”, como

observam Carlos Guilherme Mota e Maria Helena Capelato.474

Nesse sentido, através das inúmeras matérias realizadas pelos periódicos de grande

circulação da época, podemos entender que a grande cobertura feita das passeatas e rumos do

ME tinha um sentido muito maior de pressão sobre o regime que propriamente de evidenciar

o ressurgimento do movimento.

471

Para melhor compreender a afirmação do historiador, vale transcrever um trecho do seu texto: “Numa longa

matéria publicada pelo jornal OESP, 21.05.77, o articulista Marçal Versiani, escreveu que o estudante de 1977

é reflexo da „anomia da sociedade civil‟, não sendo portador de ideias, valores e normas de vida. E completou:

„Sabe apenas exprimir-se contra – a negação requer menos saber lógico e menos estrutura mental que a

afirmação – nem por isso imune à doutrina marxista‟. Para ele, as manifestações de 1977 expressavam uma

„reação multidirecional de grupos em frustração; não há convergência que se notava em 1968 e por isso não

formaram lideranças‟. Depois de discorrer longamente sobre as „incapacidades‟ do ME de 77, concluiu que até

as palavras de ordem decaíram, sendo de „domínio público‟ e de „trânsito mais fácil‟ (...).” (NAPOLITANO,

Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 41-42). 472

Para conhecer mais sobre o papel da Grande Imprensa na época, ver: AQUINO, Maria Aparecida de.

Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência: O

Estado de S. Paulo e movimento, cit.; NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo

(1977-1984), cit.; DUARTE, Selma Martins. Isto É: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira

(1976-1981). Dissertação (Mestrado) − Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS,

2007. 473

CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Brasiliense,

1989. p. 12. 474

Os historiadores afirmam a questão, quando analisam a história da Folha de S. Paulo, mas esse

posicionamento, em linhas gerais, pode ser empregado para boa parte da Grande Imprensa liberal, que já fazia

oposição à ditadura (MOTA, Carlos Gilherme; CAPELATO, Maria Helena. História da Folha de S. Paulo

(1921-1981). São Paulo: Impres, 1981. p. 238).

Page 17: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

155

Destaque para as matérias da revista IstoÉ475

, que procuravam mostrar um ME

“diferente” do ME de 1968. Justamente a nova cultura política que passou a orientar o ME é

evidenciada nas páginas da revista, geralmente nas reportagens escritas pelo jornalista

Nirlando Beirão que, ao longo do ano de 1977 publicou 19 matérias476

sobre o movimento.

Em 11 de maio, o título da reportagem já demonstrava sua opinião: “Estudantes 77: a idade do

equilíbrio”. Um excerto diz:

“Mas as semelhanças [com o movimento de 68] parecem ficar na superfície.

Os estudantes de 77 demonstraram, até agora, que as tristes lições de seus

antecessores pré-ato AI-5 foram apreendidas. Ainda que sobrevivam

divisões entre lideranças de tendências diversas, ou interpretações

divergentes sobre o papel do movimento estudantil na sociedade, não parece

haver um único grupo entre elas disposto a assumir o risco de um

vanguardismo que, em 68/69, foi fatal.”477

No entanto, a partir das movimentações estudantis contra o regime, a Grande

Imprensa, em geral, passou a acusar o ME de realizar uma conspiração mais ampla,

comunista. Uma reportagem de IstoÉ frisava que “antes de serem obra da conspiração

internacional ou de minorias organizadas, [as manifestações] são o fruto da omissão do

regime”478

. Na mesma revista, ainda se afirmava que as manifestações estudantis poderiam

“pesar nas discussões que se processam nas alturas em torno da sucessão presidencial”479

. No

entanto, apesar das críticas, não se pode deixar de mencionar o fato de que a revista, no

conjunto das publicações de grande circulação da época, era a que mais divulgava os projetos

de redemocratização propostos pelas esquerdas que assumiram a bandeira das liberdades

475

Revista de circulação nacional editada em São Paulo pela Encontro Editorial Ltda., a partir de maio de 1976.

No contexto do governo Geisel, IstoÉ procurou ocupar os espaços disponíveis para a crítica política. Desdea

sua origem, a revista distinguiu-se por apresentar um amplo e prestigiado corpo de colaboradores, modificado e

ampliado com o decorrer dos anos, mas contando sempre com personalidades da área acadêmica e do

jornalismo brasileiros. O posicionamento contrário ao regime vigente era frequentemente explicitado pela

revista, ainda que de forma sutil. Mas foi só com sua reestruturação, em março de 1977, passando a ser

semanal, que foram introduzidas alterações também na própria disposição política da revista, que passou a

apresentar uma postura mais claramente antigovernista. Em sua nova fase, ampliou-se de modo significativo o

próprio espaço destinado aos temas políticos, que ocupavam agora, na grande maioria das vezes, a própria capa

da revista. Foram definidas, então, três editorias fixas: política, cultura e economia; a primeira delas, sempre

maior que as outras duas, era invariavelmente apresentada por Mino Carta (COUTO, André. IstoÉ. In:

ABREU, Alzira Alves de et al. (Coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro:

FGV/CPDOC, 2001). 476

DUARTE, Selma Martins, IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira (1976-1981),

cit., p. 96. 477

Estudantes 77: a idade do equilíbrio. IstoÉ, 11 maio 1977, p. 11. 478

Os frutos da omissão. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 14. 479

Em Brasília, um reitor sai em liça. IstoÉ, 08 jun. 1977, p. 14.

Page 18: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

156

democráticas. E, nesse sentido, ela se distinguia das demais, que se identificavam com as

oposições liberais.480

Na maior parte das matérias escritas em diferentes jornais (O Estado de S. Paulo,

Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil, O Globo), nota-se a desqualificação do

ME porque, na minha interpretação, o identificavam com as esquerdas.

Na tensa luta pelo retorno ao Estado democrático no país, a Grande Imprensa escrita

(diferentemente do rádio e da televisão, que ainda estavam censurados e, por isso, proibidos

de veicular qualquer matéria sobre as manifestações estudantis) difundiu amplamente e com

detalhes todas as greves e manifestações ocorridas durante o ano, demonstrando discordância

da ideologia que orientava as manifestações estudantis.

Um excerto do editorial da O Estado de S. Paulo mostra bem o posicionamento crítico

do jornal: “O movimento estudantil reorganizou-se (...). Negar que haja presença extremista

na movimentação seria tolice. O grave, porém, é que se tenha criado condições para essa

movimentação.”481

Nesse caso, evidencia os motivos da agitação estudantil, mas, por outro lado, de

combate a linha por eles proposta. O Jornal do Brasil, ao comentar a “Carta Aberta à

População”, que foi lida na manifestação de 5 de maio, afirmou:

“Salta aos olhos de qualquer leigo, na leitura do manifesto, um aspecto que

faz do documento uma espécie de apostila de agitação social. (...) O Brasil

não está em condições de absorver testes de alta-tensão subversiva como

esse, de comando oculto que utiliza os universitários de São Paulo e que tem

o objetivo de desencadear a solidariedade violenta em todo o país (...). Não

podem os estudantes se deixar levar como simples massa de manobra.”482

480

Para Selma Martins Duarte: “No contexto analisado, a revista não se caracteriza como um veículo de

comunicação de esquerda, mas sim com uma tendência de oposição política a alguns aspectos do regime

militar. Na análise dos editoriais e de suas matérias, percebe-se que há no conjunto uma crítica à lentidão no

processo de redemocratização, bem como uma preocupação em publicar matérias que tratassem da

rearticulação dos movimentos sociais.” (IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira

(1976-1981), cit., p. 106). 481

“Estudantes”. O Estado de S. Paulo, 07 maio 1977, p. 20 (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e

repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 121). 482

Carta aberta. Jornal do Brasil, 07 maio 1977, s/p. (CANCIAN, Renato, op. cit., p. 122).

Page 19: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

157

Embora os estudantes tenham sido considerados “massa de manobra”, o que significa

uma desqualificação, a critica mais violenta recai sobre a representação estudantil.

Se de uma maneira geral os setores liberais da sociedade estavam engajados na defesa

(e no retorno) dos seus direitos, os princípios levantados pelo ME muitas vezes se chocavam

com aqueles, podendo ser observados como “insurgências”, em meio à ordem estabelecida.

Segundo Cancian, tanto o governo quanto a Grande Imprensa não atacavam as reivindicações

de cunho educacional realizadas pelos estudantes, mas se insurgiam contra suas ações de

denúncia da política geral do governo.

Através de outro excerto, pode-se observar como as ações realizadas pelo ME foram

marcadas pelo “uso político do passado”, explicitado neste texto publicado no Jornal da

Tarde:

“As autoridades governamentais deveriam refletir e agir, não no sentido de

criar a espiral de violência que houve em 68, quando uma parcela dessa

geração marginalizada entregou-se à sedução da solução de força e

desespero, que não conduziu a nada; mas deveriam agir, isto sim, no sentido

de criar as condições para que essa juventude não seja mais conquistada por

subversivos e para que tenha canais de manifestação dos seus anseios.”483

Além da desqualificação costumeira dos estudantes como massa de manobra, a

lembrança de 68 foi utilizada também para reforçar a ameaça constante que os representantes

da imprensa liberal de oposição fazia ao governo, ou seja, a continuidade da repressão

facilitaria a adesão dos estudantes à subversão, como ocorrera no passado, e a permanência do

regime aumentava esse risco. “Passado e futuro” eram invocados como instrumentos de luta

política desse setor da oposição liberal ao regime.

A revista Veja484

, que durante o ano de 1977 produziu mais de quinze matérias sobre o

ME, registrou em sua capa “a presença dos estudantes” em 11 de maio, relatando a passeata

483

Uma lição de maturidade dada pelos mais jovens. Jornal da Tarde, 09 maio 1977, p. 16 (CANCIAN, Renato,

Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de

estudantes, cit., p. 123). 484

Revista semanal lançada em São Paulo, em 11.09.1968, pela Editora Abril e dirigida por Victor Civita. Mino

Carta era seu diretor de redação. No início dos anos de 1970, Veja se revelou mais resistente ao regime. A

censura à Veja refletia a tensão existente entre o grupo mais próximo de Geisel, favorável ao relaxamento

progressivo das regras de exceção, e a chamada “linha dura”, que defendia a manutenção da censura à

imprensa como um dos instrumentos básicos de controle político. Assim, a revista noticiou a saída do general

Ednardo d‟Ávila Melo do comando do II Exército, em São Paulo, sem explicar a ligação desse afastamento

Page 20: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

158

do Viaduto do Chá e seus desdobramentos. Além da capa, que trazia uma foto dos estudantes

no Largo de São Francisco empunhando a faixa “pelas liberdades democráticas” e “por anistia

ampla e geral”, destinou sete páginas para tratar do assunto. Em seu editorial, afirmou: “Há o

justo receio, porém, de que as manifestações estudantis possam evoluir para níveis

indesejáveis e de que o anseio dos universitários por mais participação na vida política tome

rumos errados.”485

A revista Veja noticiou uma pesquisa elaborada pelo Instituto Gallup sobre o perfil do

estudante brasileiro. Abrangendo seis capitais, numa amostra de 1.067 universitários (sem

defini-los por tipo de universidade, cursos que pudessem melhor embasar a pesquisa), a

pesquisa foi feita com base nas respostas de um questionário de quarenta perguntas

fundamentadas prioritariamente em três pontos: qualidade dos cursos, política e ME.

Algumas questões merecem destaque. No que se referia à qualidade dos cursos, a

pesquisa apontou que 60% dos pesquisados se declararam muito ou parcialmente satisfeitos

com o curso que estavam realizando. Tal constatação permitiu que os comentaristas da revista

apontassem uma contradição entre as respostas positivas e as causas das manifestações de

1977.

No que se refere à política, a reportagem ressaltou o desinteresse “extremamente

elevado” dos estudantes em relação aos dois partidos existentes, concluindo que a “opção

bipartidária, tal como existe, desagrada à maioria estudantil”486

. Já quando indagados sobre a

permanência do AI-5, a resposta era a seguinte: 9% dos entrevistados eram a favor da

permanência, contra 46%, que a considerava “prejudicial”.

Sobre o próprio movimento, 61% disseram achar benéficas as manifestações

estudantis, pois eram “uma forma de expressar críticas ou insatisfações”. Mas 78% afirmaram

com a morte sob tortura, nas dependências do DOI-CODI, do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975,

e do operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976. Esse enquadramento da ala mais dura das Forças

Armadas foi acompanhado, no caso de Veja, por uma pressão mais direta sobre a direção da revista e do Grupo

Abril, no sentido de um abandono da linha jornalística crítica e de uma aproximação com a orientação do

regime. A pressão culminou, em fevereiro de 1976, com a saída do jornalista Mino Carta da direção de

redação, por pressão direta do Ministério da Justiça (VELASQUES, Muza Clara Chaves; KUSHNIR, Beatriz.

Veja. In: ABREU, Alzira et al. (Coords.). Dicionário histórico biográfico brasileiro pós-1930. 2. ed. Rio de

Janeiro: FGV/CPDOC, 2001. v. 5, p. 6001-6005). 485

Carta ao leitor. Veja, 11 maio 1977, p. 19. 486

A questão estudantil. Veja, 23 nov. 1977, p. 118.

Page 21: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

159

nunca terem participado de alguma passeata e 58% de alguma assembleia. Ainda a

amostragem aferiu que, quanto ao futuro, 55% dos estudantes afirmaram que continuariam a

não participar de passeatas e 41% de assembleias.

A pesquisa indicada por Veja torna-se elucidativa por mostrar que, num universo de

mais de um milhão de estudantes, as vozes que ecoavam com propostas de amplificação das

massas nos canais de decisão do país eram minoritárias, o que vinha ao encontro do desejo e

interesses dos grupos liberais, entre os quais se inseriam os representantes da revista Veja. A

maioria era contra o bipartidarismo, contra o AI-5, mas também era majoritária a intenção dos

entrevistados de continuar não participando das ações do ME.

No entanto, a pesquisa acabou mostrando, e a reportagem da revista admitiu, que as

manifestações públicas (22%) e assembleias (41%) indicavam o seguinte: o ME “não chega a

ser tão minoritário e isolado quanto se supõe até agora”. E, diante dos dados apresentados, a

reportagem concluiu que “pode se tornar mais difícil sustentar a ideia de que as

movimentações dos estudantes obedecem não a „impulsos de dentro‟, mas a „orquestrações de

fora‟”.487

A conclusão não deixava de ser um “aviso” aos dirigentes do país.

3.3 Os Encontros Nacionais de Estudantes (ENEs) e a reestruturação da

UNE

No bojo da reconstrução do DCE-Livre da USP, algumas tendências488

já apontavam

em suas cartas-programas a importância de apoiar a reconstrução da UNE e das UEEs. O

documento de uma tendência estudantil permite compreender o significado disso:

“As entidades são um importante canal que permite furar o bloqueio que a

censura e a repressão procuram impor à participação estudantil na vida

política. Proporcionando o debate aberto entre todas as opiniões, permitem a

construção de um pensamento crítico que se expressa na decisão da

maioria.”489

487

A questão estudantil. Veja, 23 nov. 1977, p. 122. 488

Notadamente “Libelu” e “Organizar a Luta”. 489

Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124).

Page 22: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

160

É bem verdade que todas as tendências apoiavam a reconstrução das suas entidades de

representação. Mas elas discordavam da maneira e do tempo de maturação para trilhar esse

caminho. Para exemplificar, a “Caminhando”, num primeiro momento, não era a favor de um

encontro massivo, pois seus militantes acreditavam que o ME deveria adotar “esta forma

quando o aumento da participação o exigir”.490

Em 1976, quando os estudantes começaram a organizar os encontros nacionais de

estudantes (ENEs), com o objetivo de reconstruir a UNE e reorganizar o movimento em nível

nacional, para continuar o combate ao regime, o Ponto de Partida, jornal estudantil da UFF,

comentou que os ENEs constituíam-se no principal canal para a reorganização do movimento

de massas.491

Nesse contexto de pré-reorganização da UNE, os estudantes aproveitaram para

organizar o I Encontro Nacional de Estudantes. Nos arquivos pesquisados, não encontramos

documentos específicos sobre esse evento, apenas documentos posteriores se referiam à sua

realização em abril de 1976. Romagnoli e Gonçalves informam a participação de 600

universitários.492

Há discordâncias quanto à data e local da ocorrência do I ENE. Renato Cancian,

baseado em relatório do SNI, afirma que, em 3 de abril foi realizada, nas dependências da

Faculdade de Física da USP, a primeira “Reunião” Nacional dos Estudantes493

, apontando

uma distinção entre ela e os “Encontros”.

Segundo o relatório do SNI, nessa reunião, os estudantes aprovaram uma Semana de

Luta pelas Liberdades Democráticas494

entre 20 e 30 de abril, o que é confirmado por

Romagnoli e Gonçalves, que a ela se referem como o I ENE. Os autores frisam ainda que

490

Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124). 491

Ponto de Partida: jornal estudantil da UFF, n. 1 ano 1, n. 1, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia

Política. Notação 48. cx. n. 541, p. 377). 492

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 493

CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino

de uma geração de estudantes, cit., p. 83. 494

SNI. Apreciação Sumária, n. 16/76. AEG/CPDOC (CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão

política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit., p. 83).

Page 23: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

161

foram realizados debates sobre o assunto nos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul,

Bahia e São Paulo495

, nas datas previstas.

Baseado nos relatórios do DOPS, Cancian afirma que o I ENE ocorreu em 28 de

agosto daquele ano, na Faculdade de Engenharia da USP, Campus de São Carlos, quando, de

fato, a reunião de São Carlos foi a reunião preparatória para o II ENE, segundo consta na

convocação feita por uma tendência.496

É possível esclarecer a questão a partir de outro documento do DEOPS. Em um

extenso relatório que narra todos os passos para a realização do II Encontro, fica clara a

questão através do excerto:

“Os ENEs se dão da seguinte maneira: primeiro tem uma reunião

preparatória depois o encontro propriamente dito, assim é que em janeiro de

1976 houve em Campinas/SP a reunião preparatória para o I ENE que

ocorreu em abril de 1976 na FAU/USP; em 28 de agosto de 1976 houve em

São Carlos/SP a Reunião Nacional Preparatória do II ENE, e este II ENE

deve seguir rigorosamente o determinado por São Carlos, por exemplo, o

critério de votação que seria por entidades, onde estas teriam que selecionar

cinco delegados que teriam que ser tirados em assembleias abertas ou

plebiscitos ou por algo semelhante.”497

O jornal Ponto de Partida, em matéria publicada em outubro de 1976 sobre as

reuniões do ENE, confirma as datas indicadas no documento acima: em janeiro ocorreu em

Campinas a primeira reunião (preparatória), na qual “poucas entidades marcaram presença” e

a segunda ocorreu em São Carlos em 28 de agosto, quando “notou-se um avanço significativo

nesta nova forma de reorganização”.498

Nesse encontro de final de agosto começaram os preparativos para a realização do II

ENE em outubro. Houve divergência entre as tendências “Caminhando” e “Liberdade e Luta”

quanto ao encaminhamento a ser dado ao Encontro. Para a “Caminhando”, ele deveria realizar

um balanço das principais lutas políticas até então travadas, para uma avaliação do

495

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 496

O documento do grupo “Alternativa” fala expressamente da reunião preparatória de São Carlos, dizendo que

ela só teria sentido se “seu desfecho significar o encaminhamento da tarefa de formação da comissão

reorganizadora da UEE (CRs UEE) nos Estados (Convocação: II Encontro Nacional de Estudantes.

Alternativa/agosto 76 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 124). 497

Relatório do II ENE, de 16 out.1976. DEOPS (APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48, p. 48). 498

Ponto de Partida: jornal estudantil da UFF, ano 1, n. 1, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política.

Notação 48. cx. n. 541, p. 377).

Page 24: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

162

crescimento do movimento. Já a segunda tendência defendia a ideia de que o encontro deveria

fazer um levantamento dos problemas da universidade (como a questão da privatização e os

mecanismos de controle e punição utilizados contra os estudantes), bem como uma análise da

situação da liberdade de organização e expressão, com o objetivo de se começar a cogitar a

proposta de anistia.

Sobre as eleições municipais que se realizariam em novembro, acordou-se que seria

feito um comunicado único para todos os estudantes499

. A “Libelu” levantou dois pontos para

discussão no Encontro: 1) a realização de um plebiscito nacional, em 8 e 9 de novembro,

sobre as eleições, bem como uma resolução política pelo voto nulo; 2) proposta de formação

de uma Comissão Nacional Estudantil, composta por DCEs, cujas atribuições seriam

encaminhar as decisões do ENE e editar um boletim preparatório do próximo encontro, a ser

realizado em abril de 1977.500

O II ENE, então, aconteceu em 16 de outubro, nos barracões da USP. Reuniu 281

delegados e mais de 500 observadores de oito Estados brasileiros501

; segundo a Polícia

Política da época, havia 830 estudantes reunidos no anfiteatro das Ciências Sociais da USP502

.

Das temáticas que constavam na pauta, dentre elas, a reorganização do ME, somente a

questão das eleições municipais foi debatida. Foram apresentadas três propostas: voto na

legenda do MDB, voto em alguns candidatos do MDB e voto nulo, e a vencedora foi a

campanha pelo voto nulo.

Foi deliberada também a realização de um plebiscito nacional sobre as eleições, para

saber se os universitários a consideravam “livre ou não”503

. Um documento do ano

posterior504

indica que foi nomeada uma Comissão Executiva Nacional (composta pelos

DCEs da UFBA, USP, UFMG, UFRGS e UFF) que teria a tarefa de preparação do III ENE.

499

Sobre o Encontro Nacional de Estudantes. “Caminhando”, ago. 1976 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP. Livraria Palavra. cx. n. 124). 500

Liberdade e Luta intervém (10). São Paulo, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.

cx. n. 541, p. 112). 501

Compareceram representantes de 40 escolas dos Estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Minas

Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Distrito Federal (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES,

Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21). 502

Relatório do II ENE USP, out. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48. cx. n. 541, p.

327). 503

Estudante define posição quanto ao 15 de novembro. Folha de S. Paulo, 19 out. 1976. 504

Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).

Page 25: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

163

É interessante mencionar uma reportagem sobre o evento feita pelo jornal Folha de S.

Paulo, que menciona que o voto nulo não agradou a numerosos participantes da reunião505

. O

comentário permite inferir que houve disputa de tendências quanto à decisão. Nesse

momento, o DCE da USP estava nas mãos da “Refazendo”, favorável ao voto em

determinados candidatos do MDB, como foi visto no capítulo anterior. A “Caminhando” era

favorável ao voto no MDB, entendido como voto-protesto. Já a “Libelu” e “Organizar a Luta”

eram favoráveis ao voto nulo. Cabe esclarecer que o PCB não se fez presente nos dois

primeiros ENEs, nem com estudantes observadores, como aponta Hamilton Lima.506

Conforme informou o jornal Cobra de Vidro, a plenária do encontro foi extremamente

polarizada: por um lado, pelos delegados dos DCEs de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande

do Sul, e, por outro, devido a posições de pequenos grupos de representantes de diversos

Estados que defendiam o voto nulo, o que pesou na decisão final. Ainda segundo o jornal, o

critério de votação, que previa cinco delegados por cada faculdade, foi definido a partir de

reuniões abertas.507

A reportagem desse jornal fazia uma autocrítica das reuniões abertas que, via de regra,

contavam com escassa participação, dando a oportunidade de um peso “multiplicado” para as

“oposições”. No final, apresentava uma reflexão sobre os “caminhos abertos para essa

reconstrução”.508

Em relação às divergências entre as tendências, considero que, ainda que o foco

principal fosse a reestruturação das entidades representativas, essa batalha comum não

impedia que cada uma das tendências lutasse pela ampliação de suas bases e canais de

atuação.

No final do II ENE, foi redigido um documento no qual os estudantes explicavam as

razões do voto nulo, que foi publicado parcialmente no Jornal da Tarde.509

505

Estudante define posição quanto ao 15 de novembro. Folha de S. Paulo, 19 out. 1976. 506

“A escalada da reorganização nacional do setor não só não contaria com a liderança do partido (...) como

ainda teria sua adesão truncada por divergências internas. (...) Apenas no 3º ENE registra-se a primeira

participação partidária nesses eventos, assim mesmo de maneira informal (...).” (LIMA, Hamilton Garcia de, O

ocaso do comunismo democrático: o PCB na última ilegalidade, cit., p. 230). 507

Cobra de Vidro, nov. 1976, p. 3 (Arquivo: BDIC F delta 1120 (6)). 508

Ibidem. 509

Os estudantes explicam o seu voto nulo. Jornal da Tarde, de 19 out. 1976.

Page 26: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

164

No excerto publicado, havia referência destacada à realização do plebiscito nacional.

Para essa atividade, o DCE da USP preparou uma edição especial de seu jornal, apresentando

as distintas posições que existiam na universidade510

. O plebiscito foi realizado entre 9 e 10 de

novembro e, segundo informe de Romagnoli e Gonçalves, 92% dos votantes responderam

negativamente à pergunta: “Você considera estas eleições livres?”511

A articulação dos estudantes não passou despercebida pelos militares. Foram

encontrados vários relatórios sobre esse Encontro, um deles realizado pelo Departamento

Geral de Investigações Especiais (DGIE) do Rio de Janeiro, que acompanhou os passos da

delegação carioca durante toda a viagem, descrevendo a atuação dos delegados participantes,

mencionando nomes e cursos que representavam.512

A articulação estudantil preocupava tanto os militares que o Serviço Nacional de

Informação (SNI) preparou um documento confidencial pedindo informações detalhadas

sobre o movimento. Interessante ressaltar a leitura realizada, que vem ao encontro da minha

tese: “O processo de reorganização do ME está inserido num outro mais global que é a

própria reorganização do movimento de massas; o ME desenvolve-se de forma mais bem

acentuada que os demais setores, guardando diferenças quanto à reorganização e

mobilização.”513

Os dados solicitados pelo SNI tinham como objetivos esclarecer a atuação e orientação

dos diferentes grupos, elencar os estudantes mais atuantes, as universidades e cursos com

maior índice de politização, o grau de aceitação que essas doutrinas tinham na massa de

estudantes e as perspectivas do ME para o ano de 1977. A solicitação finaliza com a seguinte

510

Eleições municipais. Jornal do DCE Alexandre V. Leme, nov. 1976 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 37). O jornal publicou textos das seguintes tendências: Libelu, Alternativa, grupo Mobilização,

Organizar a Luta e Caminhando. 511

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 21. 512

Informação n. 4078/76-H - I Exército DGIE/SSP-RJ (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.

p. 31-32). Ainda se pode citar: Relatório do II ENE (16/10/76) DEOPS; Informação 4288/76 DGIE/SSP/RJ,

que traz o símbolo ASI/USP (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48. p. 37-49). 513

Pedido de busca n. 163/1997 ARJ/SNI, 01 dez. 1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.

cx. n. 541, p. 290-291). Ainda cabe destacar os outros dados do documento: “Os esquerdistas vem reencetando

o trabalho de rearticulação de suas atividades dentro do ME usando como fachada os DAs e DCEs; esta diretriz

teria sido decidida em 1968, após a queda do Comando Central dos Estudantes, organismo que controlava as

atividades da UNE, UBES e correlatas, todas extintas por força da lei; costumeiramente, o trabalho desses

grupos identifica-se com desígnios de organizações subversivas.”

Page 27: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

165

observação: “Encarece-se urgência no atendimento do presente a fim de informar ao escalão

superior.”514

Os dois primeiros encontros realizados no ano de 1976 podem ser considerados como

o início do trabalho de reorganização da UNE. Essa ideia foi incentivada principalmente por

correntes trotskistas, como a “Libelu”. Também se pode notar que a participação dos

estudantes se deu num nível mais concentrado em São Paulo, onde o movimento se

desenvolvia mais rapidamente. Foi somente a partir do III ENE que esses encontros tomaram

uma dimensão nacional.

3.3.1 O III ENE

O III ENE conta com uma história bem conhecida e com um desfecho trágico. As três

tentativas feitas para a realização do encontro já foram alvo de um seminário515

, exposição516

,

inúmeros depoimentos517

, capítulos de livros518

, um projeto de pesquisa519

e mais

recentemente de uma tese520

. A grande maioria desses estudos coloca ênfase na repressão

organizada pelos militares, e bem menos no que estava em jogo no ME, naquela conjuntura

em que o III ENE ocorreu.

Como procurei mostrar no início deste capítulo, o ano de 1977 começou com uma

efervescência de manifestações estudantis que extrapolaram o campus universitário para

514

Pedido de busca n. 163/1997 ARJ/SNI, de 01.12.1976 (Arquivo APERJ/Coleção Polícia Política. Notação 48.

cx. n. 541, p. 290-291). 515

Seminário “Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos”, realizado pela Fundação Perseu Abramo na

PUC-SP, de 22 a 25 de setembro de 1997. 516

Exposição “Memória do Movimento Estudantil – 30 anos do III ENE”, realizada pelo Projeto República, na

Faculdade de Medicina da UFMG, em junho de 2007. 517

A página da Fundação Perseu Abramo apresenta um link especial com vários depoimentos sobre a invasão da

PUC (Disponível em: <http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/index.php?storytopic=856>. Acesso em:

29.11.2009. 518

Pelas liberdades democráticas: o movimento estudantil em 1977. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah

Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das

Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 141-208. 519

Desde 2005, a professora Eliana Maria de Melo e Souza, do curso de Ciências Socias da UNESP/Araraquara,

desenvolve um projeto de pesquisa financiado pela Fapesp chamado “Cultura e política: a geração dos anos 70

e depois”, baseado no episódio da invasão da PUC-SP. 520

CANCIAN, Renato, Movimento estudantil e repressão política: o ato público na PUC-SP (1977) e o destino

de uma geração de estudantes, cit.

Page 28: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

166

ganhar as ruas, primeiramente em São Paulo. Desencadeadas pela prisão de operários, as

passeatas se ampliaram, quando o governo decidiu fechar o Congresso Nacional, implantando

uma série de normativas que resultaram em outras manifestações, que se generalizaram em

todo país.

Retomando a análise da conjuntura feita pela “Refazendo”, pode-se dizer que “pela

primeira vez depois de 1968” era possível mencionar a “existência de um movimento no

plano nacional”. Mas a afirmativa vem acompanhada da distinção feita àquele período, em

relação ao anterior, “porque as reivindicações, as palavras-de-ordem, enfim o conteúdo das

nossas lutas [em 1977] teve como referência não apenas nossos interesses particulares (...)

mas sim o interesse de todo polo dominado da sociedade, no qual nos inseríamos”521

. Fica

claro que o ME em 1977 tinha ciência e fazia questão de mostrar sua distinção com relação ao

movimento do período anterior.

Esse também foi o ano em que, depois da estruturação do DCE da USP (e de outros

DCEs), foi organizada a retomada da UEE/SP, refundada em agosto daquele ano. O saldo

dessas mobilizações estava relacionado ao contorno nacional que o movimento ia tomando.

Nesse sentido, as discussões que as forças políticas travavam centravam-se no caráter da

reorganização do movimento em nível nacional.

Nas atividades preparatórias do III ENE, segundo documento da época522

, foi

realizada, em 17 de abril, uma reunião da Comissão Executiva Nacional (mencionada acima)

que não acatou a sugestão de incluir o DCE da PUC-SP, criado após o II ENE, bem como da

PUC-RJ, bastante fortalecido na ocasião. Também foi negada a proposta de realização do III

ENE em maio, visto que atrapalharia o processo de algumas eleições de DCEs (caso da

própria USP). Ainda segundo esse documento, os três DCEs presentes na reunião (USP,

UFMG e UFBA) acabaram decidindo que o III ENE seria realizado em junho, na UFMG.

Basicamente, as divergências entre as tendências podem ser agrupadas em dois polos

que se distinguiam, principalmente, quanto ao “tempo de maturação” para reorganização do

movimento em nível nacional. De um lado, respaldado pela “Refazendo” (visão também

compartilhada por “Caminhando”), esses militantes acreditavam que o ME estava dando um

521

Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 522

Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).

Page 29: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

167

salto qualitativo com todas as ações desencadeadas em 1977, porém o processo de

organização das entidades de base (CAs, DCEs e UEEs) deveria ser fortalecido, sendo fator

fundamental para sua organização em nível nacional. O texto abaixo mostra bem a questão:

“Hoje, a situação diversificada dos diferentes Estados, e dentro deles, das

diferentes escolas e universidades, define os limites e as possibilidades de

nossas ações conjuntas. Não levar isso em conta é definir propostas que não

podem ser assumidas pelo movimento, (...) que caem no vazio. Por outro

lado, é preciso consolidar formas dinâmicas de centralização e decisão

política do ME a nível nacional, de acordo com a realidade atual do

movimento.”523

As “formas dinâmicas de centralização” significavam a transformação da Comissão

Executiva Nacional em um Conselho Nacional de DCEs para gerir as atividades do

movimento em nível nacional e propagandear a criação da UNE524

. Não deixava de ser, de

certa maneira, o que a “Refazendo” defendia em 1975 na USP, com a continuidade do CCA e

a não criação imediata do DCE.

Nesse contexto, o bloco liderado pela “Libelu” ainda contava com outras forças de

oposição menores da USP: “Organizar a Luta” (MEP); “Alternativa” (POLOP) e

“Mobilização” (Liga Operária525

), que também atuavam no Rio Grande do Sul, Minas Gerais,

Rio de Janeiro e Distrito Federal. Esses grupos valorizavam a importância das movimentações

de 1977, porém, acreditavam que elas ainda tinham um caráter “localizado”, uma vez que não

existia a possibilidade de “unificação” das lutas, o que só aconteceria quando o ME desse

“passos significativos no processo de sua reconstrução a nível nacional”526

. Nesse sentido,

lutavam pela criação da Comissão Pró-UNE.

Como se pode notar, mais do que uma questão de modo e tempo para reconstrução da

entidade nacional dos estudantes, a discussão revelava, na verdade, uma disputa pelo poder e

pelo controle do movimento: “Refazendo” e seu bloco, que dirigiam os DCEs da Comissão

Executiva e, do outro lado, “Libelu” e outras tendências, como a POLOP, que coordenava o

523

Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 524

Ibidem. 525

A criação da Liga Operária (LO) remonta ao início dos anos de 1970 no Chile, quando um grupo de exilados

entrou em contato com Mário Pedrosa (um dos fundadores do trotskismo no Brasil) e outros e aderiram à

Tendência Leninista Trotskista (TLT), que fazia oposição à tática de apoio à guerrilha adotada pela maioria do

Secretariado Unificado da IV Internacional. Para maiores informações sobre a LO: KARAPOVS, Dainis;

LEAL, Murilo, Os trotskismos no Brasil: 1966-2000, cit., p. 157-162. 526

Em defesa do III Encontro Nacional. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37).

Page 30: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

168

DCE da PUC-RJ, que desejavam primeiramente fazer parte da Comissão Pró-UNE que

deveria ser criada. O controle do movimento permitia pôr em prática as concepções políticas

apregoadas pelas diferentes tendências, mas também exercer o poder sobre o conjunto do ME.

A reivindicação de assembleia nacional constituinte parecia atrair atenções. Os

militantes da “Libelu” levantavam a bandeira de uma “assembleia constituinte democrática e

soberana, precedida de anistia ampla e irrestrita, direito de voto para analfabetos, soldados e

marinheiros e liberdade de organização sindical e partidária”527

. Nesse caso, entendia-se que

através do processo da luta pela constituinte o movimento de massas se fortaleceria.

No lado oposto se encontrava a “Refazendo”, que rejeitava a proposta, por entender

que, naquela conjuntura, a constituinte possível seria legitimada por uma ordem social

burguesa, uma vez que os setores populares ainda não estavam suficientemente organizados

para impor seus interesses. Criticando tendências como a “Libelu” e a própria “Caminhando”

(que também defendia o mesmo ponto de vista da “Libelu”), os militantes da “Refazendo”

afirmavam que a “consequência destas posições seria uma só: atrelar o movimento de massas

a algumas facções da burguesia, ajudando-as a resolver seus problemas internos”.528

Foi num cenário de volta da repressão devido aos episódios antes mencionados (como

foi o caso da grande greve da UnB) que os estudantes se prepararam para a realização do III

ENE em 4 de junho de 1977. Forças tarefas da polícia foram acionadas e começaram a agir

nos próprios Estados, impedindo estudantes de saírem, e muitos dos que conseguiram chegar

às proximidades de Belo Horizonte foram presos.529

Aqueles que conseguiram escapar do esquema de segurança da polícia e se reuniram

na Faculdade de Medicina, em torno de 400 estudantes, segundo a revista Veja530

, foram

cercados pelas tropas mineiras, a pedido do governador Aureliano Chaves (em consonância às

527

III ENE: no rumo da UNE. Liberdade e Luta Estadual, de ago. 1977 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 21). 528

Proposta para o III ENE. Refazendo, [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 529

Clara Araújo (que foi presidente da UNE em 1982) entrara no curso de Ciências Sociais na UFBA naquele

ano e tentou ir a Belo Horizonte participar do evento. Seu ônibus foi interceptado pela polícia e os estudantes

acabaram sendo presos. A hoje socióloga relembra: “Eles nos mantiveram três dias presos em Belo Horizonte.

Mas foi uma situação muito difícil. Como vinha chegando cada vez mais gente, houve um momento em que

nós não tínhamos como nos sentar na cela. Ficava todo mundo em pé o tempo inteiro e a comida era horrível.”

(Depoimento de Clara Araújo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, Rio de Janeiro, em 25.10.2004). 530

Encontro, prisões, greve. Veja, 08 jun. 1977, p. 22.

Page 31: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

169

normativas do ministro da Justiça Armando Falcão, como demonstrado nessa revista),

acabaram se rendendo e sendo levados pela polícia para interrogatório531

. Assim, fracassou a

tentativa de realizar o III ENE. Em várias cidades, houve protestos contra a ação realizada em

Belo Horizonte: nas assembleias532

houve propostas de redefinição do local do Encontro, que

seria, uma vez mais, em São Paulo, em 21 de setembro daquele ano.

O mesmo esquema policial posto em prática em Belo Horizonte foi montado pelas

tropas comandadas por Erasmo Dias. A Cidade Universitária, local previsto para o encontro,

foi completamente cercada. Diante da impossibilidade da realização do encontro no campus

da USP, dezenas de universitários se reuniram na Faculdade de Medicina da USP, onde mais

uma vez o “encontro” foi frustrado, com a chegada das tropas de Dias. Depois de uma

negociação, os cerca de 200 estudantes se renderam e foram ao DOPS prestar depoimento.

Uma carta aberta à população533

foi redigida e assinada por vários DCEs, na qual

reiteravam a disposição do regime de impedir a reconstrução das entidades estudantis e

conclamando todos a participarem de um ato público no dia seguinte. A Assembleia

Metropolitana de Estudantes de Belo Horizonte também escreveu uma carta, mencionando

não só a repressão aos estudantes, mas retratando também o sofrimento pelo qual estava

passando todo o povo brasileiro. Por fim, conclamava a população para um ato público contra

a repressão sofrida pelo III ENE.534

As manchetes do jornal O Estado de S. Paulo do dia seguinte, 22 de setembro,

frisavam o impedimento da reunião estudantil e a frustração da última tentativa dos estudantes

de realizar seu encontro. A própria reportagem já insinuava uma ambiguidade provocada pelo

ME, ao mencionar o fato de que os universitários presos na Medicina se queixavam (já no

DOPS) de “não terem tido a companhia dos organizadores do movimento, que ao perceberem

a polícia, foram os primeiros a fugir”535

. O jornal ainda relatou que eram grandes os rumores

531

Neste trabalho, não relato todos acontecimentos que envolveram as tentativas de realização do III ENE, por

acreditar que esses fatos já foram amplamente divulgados. De toda forma, para verificar todo o processo,

sugiro a leitura dos capítulos 2 e 3 da tese de Renato Cancian (Movimento estudantil e repressão política: o ato

público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.). 532

Para as principais ações do ME após a tentativa do III ENE de Belo Horizonte, consultar: A paz longe do

campus. Veja, 15 jun. 1977, p. 24-27. 533

Carta aberta a população. 1977. Assinada pelo DCEs Livres da USP, PUC-SP, UFSC e pelos DCEs da UFF,

UFMG, UFV, UFBA, UFPE, PUC-RS, UFRGS e UnB (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 41). 534

Carta aberta a população. Assembleia Metropolitana dos Estudantes de Belo Horizonte. 22.09.1977 (Arquivo

Projeto República UFMG). 535

Polícia prende 210 e impede reunião estudantil. O Estado de S. Paulo, 22 set. 1977, p. 20.

Page 32: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

170

da realização de um ato público contra as prisões da Medicina, afirmando a movimentação no

CA XI de Agosto e ainda da suspeita dentro da Secretaria de Segurança de que os estudantes

estariam tentando se reunir no teatro Ruth Escobar.536

A reportagem deixa clara a confusão que os próprios estudantes queriam causar no

esquema de policiamento de Erasmo Dias. Tanto que no dia 22, várias manifestações

ocorreram537

e foi realizada uma grande assembleia na PUC. Ali foi anunciada a realização do

III ENE, numa reunião de pouco mais de uma hora, na qual estiveram presentes 70 delegados

de dez estados. Para os estudantes, estava claro que a ação policial impediria a realização de

um encontro aberto, como planejado. Sendo assim, o conjunto de lideranças preferiu deixar a

conjuntura de lado e deliberar um único ponto de pauta: a reorganização do movimento.

A proposta aprovada foi a formação da Comissão Pró-UNE, integrada por todos DCEs

e entidades municipais e estaduais. A referida comissão teria como tarefa coordenar as lutas

estudantis em nível nacional, fazer propaganda da história da UNE, promovendo o debate em

torno da sua reconstrução, bem como organizar a realização do IV ENE.

As “forças minoritárias”, como apontado nas menções ao II ENE, parecem ter se

organizado e conseguido impor suas propostas. As proposições da “Libelu” e outros grupos

menores foram acatadas e o saldo, depois de um ano, é que um importante passo para

refundação da UNE foi dado. Nota-se, assim, que mesmo com discordâncias políticas entre as

tendências, sobressaía a importância de dar um rumo para a reconstrução da entidade nacional

de representação dos estudantes.

As tendências vitoriosas propuseram fazer uma “comemoração” na própria PUC

naquela noite, causando o trágico episódio da invasão da universidade538

, cujo saldo foi uma

536

Polícia prende 210 e impede reunião estudantil. O Estado de S. Paulo, 22 set. 1977, p. 20. 537

A revista Veja publicou uma matéria de quatro páginas relatando os episódios daquela semana em detalhes:

Estudantes: a universidade invadida. Veja, 28 set. 1977, p. 31-34. 538

Relatos sobre a invasão da PUC (Disponíveis em: <http:// www2.fpa.org.br/ portal/modules/

news/index.php?storytopic=856>) ou ainda o capitulo de livro “Pelas liberdades democráticas: o movimento

estudantil em 1977” (in MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel, Pela democracia, contra o arbítrio: a

oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já, cit., p. 141-208). Para os dados do IPM da

invasão da PUC, consultar o item 3.7 da tese de Renato Cancian (Movimento estudantil e repressão política: o

ato público na PUC-SP (1977) e o destino de uma geração de estudantes, cit.).

Page 33: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

171

universidade destruída539

, vários estudantes feridos, cerca de 700 presos e 37 enquadramentos

na Lei de Segurança Nacional.

Dois meses depois, o DCE-Livre daquela universidade publicava um artigo no jornal

Folha de S. Paulo relatando como ocorreu a invasão e seus desdobramentos. O artigo

concluía que a invasão tinha sido premeditada por parte dos militares, servindo o ato público

apenas de pretexto para justificar a ação policial. A represália militar, conforme o artigo,

servia não só para atingir o ME, que tentava reorganizar suas entidades, como também a

própria Reitoria da PUC, que vinha se caracterizando “pela independência frente às pressões

do regime” (referindo abertamente à realização da SBPC no campus da PUC), bem como pela

“defesa intransigente da autonomia universitária”.540

3.3.2 O ano de 1978: UEE/SP, IV ENE consolidando a reorganização

nacional

O começo de 1978 trouxe “especulações” sobre os rumos do ME por parte da

imprensa. A primeira edição do ano de IstoÉ apresentou uma análise sobre o tema referente

ao ano de 1977 e expectativas referentes a 1978. Segundo a jornalista Mara Carucchio, o novo

ano prometia ser “ano bem radical, no bom sentido”541

. A revista Visão, numa matéria

intitulada “Unidade e anistia, as metas deste ano”, perguntava o que se poderia “esperar do

ME neste ano eleitoral?” e afirmava que os universitários estavam dispostos a fortalecer

internamente o movimento, tendo como meta principal a luta pela anistia.542

A questão da anistia foi o tema central nas discussões entre os estudantes. No dia

nacional de luto e lutas feito em homenagem aos estudantes Edson Luis e Alexandre

Vannucchi Leme, em 28 de março de 1978 (como veremos no quarto capítulo), o evento foi

realizado nas principais cidades do país, com a participação do Comitê Brasileiro de Anistia.

539

Ver fotos da invasão da PUC-SP (Anexo XII). 540

Relato da invasão da PUC, DCE PUC/SP, de 22.11.1977. Folha de S. Paulo, de 28 nov. 1977 (MAUÉS,

Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição democrática, do golpe

de 1964 à campanha das Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 185-188). 541

DUARTE, Selma Martins, IstoÉ: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira (1976-1981),

cit., p. 96. 542

Movimento estudantil: unidade e anistia, as metas deste ano. Visão, 17 abr. 1978, p. 26-28.

Page 34: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

172

Como já vimos, foi em 1977 que os estudantes realizaram o congresso de reconstrução

da UEE/SP, mas não a eleição da sua diretoria, que ocorreu somente em 1978. Segundo

Romagnoli e Gonçalves, a constatação de que nenhuma tendência sozinha tinha forças

suficientes para ganhar a maioria dos votos levou à constituição de coligações para

estabelecer um programa mínimo para entidade.543

De fato, uma ampla chapa foi constituída, chamada de “Construção”, que congregava

boa parte das principais forças do movimento: “Caminhando” e “Refazendo”, além de outras

tendências menores, como “Novo Rumo”544

. A “Liberdade e Luta”, por não concordar com o

“chapão” e por discordar da maneira de encarar a conjuntura política e a condução do

movimento, preferiu lançar sua chapa própria.

“Construção” partiu da ideia de uma “visão comum” sobre as principais necessidades

colocadas para reconstrução da entidade, tendo como eixo a necessidade de unidade entre

essas forças e os estudantes. Um programa básico foi levantado em torno das bandeiras a

serem encampadas pela direção da UEE: a luta por liberdades democráticas, por melhores

condições de vida e trabalho e por melhores condições de ensino, que aqui englobava a luta

por mais verba para educação, pelo ensino público e gratuito para todos e por um ensino

voltado para o interesse da maioria da população.545

É bem verdade que apresentavam um programa amplo, pois se uniram tendências que

tinham divergências entre si, uma vez que pontuavam questões comuns de maneiras

diferentes. O ponto sobre a constituinte foi uma delas. “Caminhando” favorável, “Refazendo”

contra. Um jornal da tendência “Liberdade e Luta” de 1978 traz excertos de documento do

ano anterior realizado pelas duas tendências, mostrando os posicionamentos antagônicos:

“Caminhando – (agosto/77): temos nos colocado em defesa da bandeira de

convocação da assembleia constituinte, livremente eleita, democrática e

soberana porque entendemos que essa bandeira é uma decorrência clara e

irrefutável da própria luta maior por liberdades democráticas.

(...)

Refazendo – (agosto/77): a alternativa é a da resistência popular. Isso é o que

vai concretamente pôr fim ao regime e não a assembleia constituinte.”546

543

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 33. 544

Tendência trotskista que formaria, junto com “Centelha” e “Ponteio”, a Convergência Socialista. 545

UEE: em quem votar? Travessia, Movimento, Resistência e Vento Novo-USP. [1978] (Arquivo

CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). 546

Avançar e ultrapassar no mais breve tempo. Agora UNE, n. 1, jul. 1978, p. 3 (Arquivo Promemeu/UnB

AE5512).

Page 35: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

173

Tenho ciência que são excertos extraídos e realocados para um determinado fim, mas

que não deixam de ser elucidativos dos pensamentos divergentes das tendências e de como

eles são equacionados, quando se vislumbrava algo maior dentro do jogo político, nesse caso

a eleição da UEE.

Ainda segundo esse jornal, a solução “encontrada” para um coligação de “tendências

tão distintas” foi a instauração de um “programa altamente eclético”, que levou a abordar a

questão da constituinte em “sete linhas” e a abandoná-la na plataforma de lutas. Cabe

sublinhar que os militares, que sempre acompanhavam os passos do movimento, tinham

ciência dessas diferenças.547

Antes mesmo da eleição, “Novo Rumo” já sinalizava que a condição de englobar

dentro de uma chapa várias visões políticas poderia vir a dificultar a condução do movimento

no Estado, uma vez que em seu programa não estavam bem definidas as tarefas políticas a

serem desenvolvidas. Por isso mesmo, “Novo Rumo” apresentou, para além da carta-

programa assinada com as outras tendências, um detalhamento pormenorizado do seu

“programa de luta”, que seria defendido pela tendência dentro da direção da UEE.548

Assim, pode-se demonstrar também a disputa entre as forças políticas desenhando o

cenário. Mesmo com um objetivo maior, que seria a conquista da UEE, as diferentes forças

políticas que se prepararam para aquele momento discutiram suas diferenças internas com

vistas a lutar por seu espaço e “demarcar o território”.

“Libelu” continuava realizando suas análises de conjuntura, segundo as quais os

acontecimentos de 1977 e 1978 provocaram alterações decisivas na situação política do país

que poderiam levar à queda da ditadura. Continuavam apoiando o voto nulo na eleição de

1978, por compreenderem que tanto o MDB quanto a ARENA (Aliança Renovadora

547

Em documento de informação da Polícia Política narrando todo o processo da eleição da UEE, encontramos o

excerto: “Malgrado as profundas divergências entre os programas „políticos‟ das organizações subversivas

acima relacionadas, refletidas, como consequência, nas plataformas de lutas „estudantis‟ dos diferentes grupos

e tendências, a „frente‟ representada pela chapa Construçao tornou-se possível graças a „um acordo de

cavalheiros‟ entre os diversos grupos, fato que permitiu a elaboração da plataforma de lutas descrita no item 2

desta informação. Observação: Caminhando, Unidade e Novo Rumo abriram mão da palavra de ordem „por

uma constituinte democrática e soberana‟, à qual é contrário APML e MR-8, ou seja, o grupo Refazendo, atual

DCE/USP.” (Informação n. 0301/CISA-RJ, de 17.05.1978. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil. Notação

62. p. 387 t). 548

UEE: em quem votar? Travessia, Movimento, Resistência e Vento Novo-USP. [1978] (Arquivo

CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36).

Page 36: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

174

Nacional) eram “farinha do mesmo saco, ambos partidos burgueses cujos objetivos eram

inconciliáveis com o conjunto dos setores populares”549

. Ainda se diferenciavam da chapa

oponente por defenderem a reforma agrária, a expulsão do imperialismo, a constituinte, o voto

para os analfabetos, soldados e marinheiros e a aliança operário-estudantil.550

Enfim, entre 4 e 5 de maio (de 1978) foi realizado o pleito em todo Estado. Apesar da

promessa do coronel Erasmo Dias de manter a Polícia Militar à margem das eleições, algumas

Universidades tiveram CAs invadidos e militantes receberam comunicados subscritos pelo

GAC (Grupo Anticomunista) e pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas)551

. Segundo a

revista Veja, encerradas as apurações, a chapa “Construção”552

registrou 22.915 votos, contra

os 9.713 conquistados por “Liberdade e Luta”553

. E, assim, estava completado o processo de

ressurgimento da UEE/SP, que significava mais um passo na escalada da reorganização dos

estudantes em busca da reestruturação de suas entidades representativas.

A reportagem de Veja que fez a cobertura do processo de eleição da diretoria da

UEE554

apontou um dado que é relevante para esta análise: o crescimento da “Libelu”, o que

se confirmaria logo depois, com a eleição dessa tendência para a terceira diretoria do DCE-

Livre da USP.555

É de se perguntar quais as razões para a “virada” vitoriosa da tendência trotskista,

considerada a mais “radical” entre os estudantes. Ao observar a distribuição dos votos, vê-se

que “Refazendo” e “Caminhando”, que estavam unidas no processo para eleição da UEE/SP,

disputaram o pleito para o DCE com “chapas-puras”556

. A própria “Libelu” buscou

549

Propostas para o Congresso da UEE; avaliação do MCV (Movimento do Custo de Vida). Viramundo, set.

1978 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA). 550

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 34. 551

Para tanto, ver as reportagens: Diretório do Machenzie é invadido e depredado. O Estado de S. Paulo, 04

maio 1978; Estudantes/SP: a volta da UEE. Veja, 10 maio 1978, p. 27. 552

Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves citam os nomes dos componentes da primeira diretoria da

UEE/SP (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 34). 553

Estudantes: faltam respostas. Revista Veja, 17 maio 1978, p. 26. 554

Ibidem. 555

Segundo jornais da época, a vitória foi apertada: Liberdade e Luta, 2.260 votos; Refazendo, 2.191;

Caminhando, 2.141. Vento Novo, Novo Rumo Socialista, Viramundo e Alicerce, juntas, tiveram 1.991 votos,

perfazendo o total de pouco mais de 10.000 votantes (Nova Diretoria do DCE-Livre. JECO: jornal dos

estudantes de economia do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFPE, ano 1, n. 1, jun. 1978 (Arquivo

Projeto MME 089 – 3.1). 556

Para utilizar o linguajar do próprio movimento, que designa uma chapa pura quando ela é composta somente

por membros de uma única corrente.

Page 37: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

175

explicações para a derrota das concorrentes. Em matéria sobre a eleição do DCE557

, os

representantes dessa tendência afirmaram que a própria indefinição política de “Refazendo” e

“Caminhando”, que disputaram a eleição apresentando plataformas “radicalmente diversas”

das da eleição para a UEE, contribuiu para a vitória da “Libelu” que apresentara um programa

claramente definido, desde a eleição para a UEE.

Parece-me correta essa conclusão, mas, além disso, não se pode esquecer que a

“Refazendo” já vinha apresentando embates internos, e o processo da eleição da UEE/SP

contribuiu significativamente para o enfraquecimento da tendência, que foi agravado pelo

rompimento com o MR-8, já mencionado.

No que se refere a essa eleição, cabe anotar a redução significativa do número de

vontantes: 6.000 a menos que na eleição anterior.558

Já em setembro do mesmo ano, foi realizado na FAU da USP o II Congresso da UEE,

contando com a participação de 451 delegados559

. O congresso foi conturbado e houve

ameaças aos participantes, através de cartas enviadas por grupos que se denominavam do

CCC. Esse fato agravou as dificuldades impostas pelas próprias Reitorias, como a do

Mackenzie, que não permitiu a instalação das urnas para as votações nas dependências da

universidade.

A seguir, houve disputa entre as tendências. “Caminhando”, que apresentou a proposta

de retirar o poder deliberativo do congresso, alegando que a escolha de delegados fora pouco

representativa em vários lugares, e a “Libelu”, que defendeu a continuação do congresso,

proposta que foi aceita.

Dos três pontos da pauta, acabou se formando um consenso560

. O item referente à

reorganização da UNE, inicialmente previsto para discussão, foi retirado, por se entender que

o IV ENE seria o momento para isso.

557

DCE/USP: o fim da indefinição. Agora UNE: pela reconstrução da União Nacional de Estudantes: aliança

operário-estudantil. n. 1, jul. 1978, p. 6 (Arquivo PROMEMEU/UnB AE5512). 558

Ibidem. 559

Os candidatos populares terão o apoio da UEE. Folha de S. Paulo, 19 set. 1978. 560

O principal ponto estava na questão das instâncias de deliberação da recriada entidade, que assim foi

aprovada: Congresso, Conselho de Entidades e Diretoria.

Page 38: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

176

A grande disputa se deu a respeito das eleições parlamentares de 15 de novembro, mas

acabou vencendo a proposta de “apoio aos candidatos populares do MDB”561

, que contou com

a votação de cerca de dois terços dos delegados. A mudança de posicionamento (em relação à

última eleição) indicava o quadro que seria formado no encontro nacional poucos dias depois.

O IV ENE aconteceu nos dias 3 e 4 de outubro. Os grandes esquemas de segurança e o

cerco policial ficaram definitivamente para trás. O encontro, como boa parte dos outros que

aconteceram ao longo do ano, não sofreu a dura repressão por parte dos militares. É possível

supor que o desfecho do III ENE serviu de autocrítica para ambas as partes que entraram em

conflito.

Foi assim que mais de 400 delegados, representando 169 escolas de treze Estados562

,

além do Distrito Federal, se reuniram na FAU/USP para discutir principalmente a

rearticulação da UNE, como aparece no excerto de um documento da época: “O IV ENE

deve[ria] fundamentalmente definir orientações concretas para a condução do movimento.

Definir qual o processo de reconstrução da UNE, e mais, ter propostas que [fizessem] avançar

nesse sentido (...).”563

Se nesse encontro não existiu um cerco policial propriamente dito, também não deixou

de haver empecilhos: a FAU ficou às escuras por um corte de energia elétrica564

, e foi assim

que os estudantes abriram os trabalhos.

Na mesa de abertura, o convite feito ao reitor da Universidade Valdir Muniz Oliva não

foi nem respondido. Com uma extensa bandeira da UNE, os trabalhos foram iniciados com a

leitura das cartas de dois ex-presidentes da entidade da década de 1960: Aldo Arantes e Altino

Dantas Rodrigues, que estavam presos. Nesse momento, todos os presentes bradaram por

anistia. Na sequência, o representante do “Comitê Brasileiro pela Anistia” de São Paulo, o

advogado Luis Eduardo Greenhalg, convidou todos os estudantes a participarem do

561

Entre os candidatos apoiados, estava o militante da “Refazendo” e diretor da primeira diretoria do DCE-Livre

Geraldo Siqueira Filho. 562

Segundo o jornal Folha de S. Paulo: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina, Alagoas,

Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais e Goiás. 563

Informes. [1978] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 37). 564

O quarto ENE: os estudantes aprovam o apoio a candidatos populares do MDB. Folha de S. Paulo, 04 out.

1978.

Page 39: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

177

Congresso Nacional para Anistia, no qual se discutiria a relação entre “anistia e

universidade”.

Nessa conjuntura, o movimento social como um todo se ampliava e o ME, não

somente pela sua importância histórica, mas pela posição estratégica do “estudante” na

sociedade, reforçou sua luta contra a ditadura. No IV Encontro, a Associação de Docentes da

USP (ADUSP) marcou presença.565

O primeiro ponto da reunião foi centrado nas eleições (de deputados e senadores) que

aconteceriam em novembro. Ao todo, sete propostas foram apresentadas566

, o que evidencia o

aumento da organização dos estudantes, comparado com os outros encontros. As propostas

foram divididas em duas: voto no MDB ou voto nulo. Prevaleceu a mesma perspectiva

vitoriosa no Congresso da UEE/SP, que fora apresentada um mês antes: 65% dos estudantes

optaram pelos votos no MDB, contra 20%, que votaram a favor do nulo567

. Depois de

algumas horas de discussão, acabou prevalecendo a proposta encaminhada por “Refazendo” e

“Caminhando”: apoio aos “candidatos populares do MDB”.

O grande ponto de discussão ficou por conta da reestruturação da UNE. Os debates

que começaram no sábado e terminaram no domingo defendiam (como podia se esperar)

diferentes posições sobre o grau de mobilização e organização dos universitários: havia

aqueles que acreditavam na maturidade do movimento e os que duvidavam dela e propunham

aguardar o fortalecimento da organização568

. Após muitas discussões, foi aprovada a

565

A reportagem da Folha de S. Paulo descreve a mesa de abertura, com os nomes dos representantes das

entidades (Folha de S. Paulo, 04 out. 1978). 566

Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves descrevem: 1) voto em candidatos socialistas, apresentada pelos

grupos Resistência e Centelha; 2) votos em candidatos populares do MDB, defendida por Caminhando e

Refazendo; 3) voto em candidatos operários e socialistas, apresentada por Novo Rumo; 4) voto no MDB,

defendida pela PUC-RJ; 5) voto nulo pela independência do ME e a organização independente, apresentada

por Alicerce; 6) voto nulo pela organização independente e Partido dos Trabalhadores; e 7) voto nulo pela

constituinte e por um partido operário, defendida por Libelu (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 567

Ainda 15% dos estudantes se abstiveram (ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da

UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 568

Conforme um documento interno de uma tendência, provavelmente da Refazendo, o cenário apresentado

apresentava a bipolaridade de proposta para reconstrução da UNE: “O fundamental não é fixar a data nem

fechar a questão que, necessariamente, o Congresso vá reconstruir a UNE (por isso um Congresso pela

reconstrução e não que reconstrua, como diz a LL, e, por favor, não nos detenhamos em discutir as palavras,

mas sim as concepções que estão por trás delas).” (Informes. [1978] Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 37).

Page 40: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

178

realização do Congresso de Reconstrução da UNE nos dias 29 e 30 de maio de 1979, na

cidade de Salvador.569

É interessante dar ênfase à movimentação política dos estudantes. Ao mesmo tempo

que a bandeira de voto nulo, apregoada principalmente pela “Libelu”, perdeu força, a sua

proposta de reconstrução da UNE ganhou maiores adesões dentro do Encontro. Esse fato

serve para mostrar o quão dinâmico e “fluido” se apresentava o movimento, e que ele não

estava “engessado” por uma única força política, ou seja, que os resultados da votação

decorriam de debates entre as diferentes tendências que reestruturavam o movimento, e que,

apesar das discordâncias, naquele momento se uniam na luta pela derrubada da ditadura.

A decisão dos votos em candidatos populares do MDB parece ter “surpreendido” a

Grande Imprensa. Tanto a Folha de S. Paulo quanto a revista IstoÉ apresentaram manchetes e

reportagens sobre a questão570

. Mas o interessante é constatar as diferenças entre as matérias

dos dois principais semanários. IstoÉ apontava o aprofundamento do movimento:

“O ME, que já havia mudado de 1968 para 1977, continua evoluindo e,

agora, procura organizar-se de uma forma mais consistente. Até o clima de

euforia e desafio que transparecia nas manifestações do ano passado está

desaparecendo, para dar lugar a discussões mais profundas sobre a atuação

dos estudantes na política brasileira.”571

A questão das “discussões mais profundas” destacada pela revista editada por Mino

Carta dava ênfase no saldo da reunião. Apontava que após o debate sobre o voto em 15 de

novembro, acabou prevalecendo o argumento “de que os estudantes devem apoiar o partido

da oposição pois, se o próprio povo vota no MDB, votar nulo seria „afastar-se do povo‟”.572

Já o contrário apareceu publicado por Veja. Na reportagem de cinco páginas intitulada

A UNE vai renascer?, foram relembrados os dez anos do Congresso de Ibiúna, acrescidos do

comentário de que os estudantes prometem a “ressureição” da velha sigla estudantil. A

569

Romagnoli e Gonçalves descrevem as propostas mais detalhadamente, bem como quais foram os critérios

definidos para a retirada de delegados (A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 35). 570

O IV ENE: os estudantes aprovam o apoio a candidatos populares do MDB. Folha de S. Paulo, 04 out. 1978;

Estudantes, acreditem: eles se reuniram sem repressão (e decidiram que, apesar de tudo, o MDB merece votos).

IstoÉ, ano 2, n. 94, 11 out. 1978, p. 11. 571

Estudantes, acreditem: eles se reuniram sem repressão (e decidiram que, apesar de tudo, o MDB merece

votos). IstoÉ, ano 2, n. 94, 11 out. 1978, p. 11. 572

Ibidem.

Page 41: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

179

reportagem, de uma maneira geral, concentrava-se mais na conjuntura de 1968, para lembrar

que, depois disso, o ME ajudou a “engrossar o caldo de violência”573

com a luta armada, em

relação à qual o ME sempre se calou. O que ressurgia, então, era um ME que representava um

“minguado segmento no conjunto de oposições, lideradas por grupos sociais bem mais

expressivos”574

. Ou seja, a revista Veja fazia um jogo duplo de “uso político do passado”,

como ameaça de volta à violência e desqualificação do ME no presente.

Como se pode inferir da comparação, os grupos mais expressivos, segundo os

representantes da Grande Imprensa, eram os que compunham a oposição liberal, entre os

quais eles se incluíam. Chamo a atenção para o fato de que essa interpretação sobre o “fim do

ME” acabou sendo incorporada por grande parte dos estudos sobre o período, interpretação

essa que procurei contestar anteriormente.

Ainda sobre o voto no MDB, acreditavam numa “mudança de estratégia política dos

universitários”, lembrando que até 1974 grande parte dos estudantes pregou o voto nulo “sob

o extravagante argumento de que a existência de uma „oposição consentida‟ apenas servia

para oferecer tinturas democráticas a um regime ditatorial”575

. Contrariamente ao apresentado

na revista IstoÉ, fica clara a estratégia de menosprezar o ME e suas ações, diminuindo sua

importância, no momento crucial em que ele procurava se reorganizar.

Se por um lado, o IV ENE aconteceu sem a intervenção militar, aqui, nesse exemplo,

parte da imprensa tratou de criticá-lo.

3.4 Enfim, o Congresso de Reconstrução

Depois de todo o percurso realizado, finalmente os estudantes conseguiram

reestruturar sua entidade nacional. O percurso de dez anos, desde a decretação do AI-5,

apresentou pontos altos e baixos, mas sempre houve uma movimentação que foi base para a

reestruturação do próprio movimento, e porque não dizer, base também para a estruturação

dos demais movimentos sociais que floresceram nos anos de 1970, lutando contra o regime.

573

Especial: a UNE vai renascer? Veja, 11 out. 1978, p. 62. 574

Ibidem, p. 63. 575

Ibidem, p. 60.

Page 42: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

180

E esse foi o tom da nota de fevereiro de 1979 da Secretaria Executiva da Comissão

Pró-UNE: a UNE estava renascendo das lutas do conjunto do movimento antiditatorial:

“Movimento que brota nas fábricas, nos campos, ganha as ruas, e exige o fim da ditadura,

anistia ampla e irrestrita, fim do arrocho salarial, fim às perseguições políticas, à prepotência

policial, à miséria, à corrupção”576

. A pretensa “unidade com o povo” demonstrada na carta

mostrava-se, nesse momento, na disputa acirrada entre as diferentes forças políticas pela

“cabeça” do movimento.

As articulações do ano de 1979 começaram em janeiro, numa reunião da Comissão

Pró-UNE na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro. A ideia inicial era realizá-la na UFRJ, mas

devido à proibição do reitor Luiz Renato Carneiro da Silva Caldas, os estudantes tiveram que

procurar outro local.577

Segundo relatório preparado pelo Departamento Geral de Investigações Especiais

(DGIE), 26 DCEs e 36 DAs e CAs participaram do evento, com representantes de 14

Estados578

. Ainda através desse relatório, se constata que as lideranças mais atuantes estavam

representadas pela UEE/SP, USP, UFRJ, UFBA e UFMG. Tais representações atestam a

dimensão nacional atingida pelo ME e que seus principais atores já não estavam reduzidos às

articulações no interior do Estado de São Paulo, embora elas continuassem a ser importantes.

O primeiro eixo de discussão do encontro foi destinado às questões da universidade, e

foi aprovada, por ampla maioria, a moção apresentada pela UFMG: “Mais verbas para ensino,

melhores condições de ensino, rebaixamento ao máximo das anuidades”. Pode-se notar que a

Comissão Pró-UNE estava fortalecida. No que se referia às reivindicações das universidades

privadas, prevaleceu a ideia de que a Comissão Pró-UNE (com 15 votos) deveria encaminhar

as demandas, em detrimento de uma proposição pela criação de uma executiva nacional das

escolas pagas (com quatro votos)579

.

576

Ao povo brasileiro (nota oficial da Secretaria Executiva da Comissão Pró-UNE, sobre os rumores de

repressão ao ME). Salvador, fevereiro de 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). 577

UFRJ proíbe reunião para a volta da UNE. Jornal do Brasil, 13 jan. 1979. 578

Informe DGIE de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.

Notação 67. p. 203-214. 579

Informe DGIE de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.

Notação 67. p. 205.

Page 43: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

181

O segundo eixo de discussão era referente à atitude a ser tomada em relação à posse do

general Figueiredo: todas as tendências eram unânimes pela realização de um “Dia Nacional

de Lutas”. Mas as posições variavam quanto às palavras de ordem que deveriam figurar.

Ganhou a proposta da DCE/UFRJ, organizador do evento: “Realização no dia 15 de março do

Dia Nacional de Luta contra a posse do „novo ditador‟”. As manifestações seriam estendidas

ao seu Ministério. A proposta apresentada pelo DCE/USP (liderado pela “Libelu”) visava à

instituição do Dia Nacional de Luta no dia 15, e defendia a realização de uma “assembleia

nacional constituinte, livre e soberana” (obteve 5 votos). A terceira proposta sugeria o Dia

Nacional de Luta em 15 de março, acrescentando-se os slogans “contra a ditadura militar”;

“abaixo Figueiredo” (obteve 9 votos)580

. Note-se que era consenso o protesto contra a posse

do “novo ditador”, mas as correntes presentes no movimento eram mais ou menos radicais em

relação às propostas de manifestação.

Quanto à volta da UNE, o relatório do DGIE aponta as divergências entre as correntes:

“Foi registrada uma divisão entre os DCEs presentes no tocante ao momento

de se lançar a UNE. A UFBA e a UFMG, dentre outras, foram uníssonas em

afirmar que a UNE deve retornar no momento preciso, sob pena de ser

arrastada por qualquer sopro. O desequilíbrio ainda dominante em muitos

Estados e o recuo do ME na maioria dos grandes centros urbanos servem

perfeitamente de base para justificar tal linha de pensamento. Como disse o

representante de Goiás, os universitários ficam bastante ilhados das grandes

decisões do ME. A própria inoperância da Comissão Executiva Pró-UNE

contribui para isso. Para o presidente do DCE Mário Prata [UFRJ] e para

tantos outros, 1979 é o ano da UNE.” 581

Recém-assumido presidente do DCE/UFBA, Rui César Costa e Silva, próximo da

tendência “Viração”, ficou com a incumbência de organizar o evento para mais de 5.000

estudantes, tarefa árdua, uma vez que a Universidade não tinha condições de abrigar um

encontro de tal monta. Por esse motivo Rui César, contrariando a direção política do

movimento, resolveu fazer uma, em suas palavras, “translouquice”:

“Eu me lembro que comprei umas fichas, fui num telefone público e liguei

para a governadoria. Disse: quero falar com o governador (rs), preciso fazer

uma entrevista. − Quem é você? − Ah, sou um estudante, sou presidente do

DCE e eu preciso falar com o governador. Governador esse, aí eu fui tomar

580

Informe DGIE, de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.

Notação 67. p. 204. 581

Informe DGIE, de 20.01.1979. Assunto: Congresso Pro UNE. APERJ/Polícia Política. Setor estudantil.

Notação 67. p. 208.

Page 44: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

182

conhecimento, era o Antônio Carlos Magalhães [...] (rs). − Mas você quer o

quê? Nós vamos fazer o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador e

eu preciso do espaço, eu quero [...] o Centro de Convenções, eu preciso de

um espaço para fazer esse Congresso.”582

Foi assim que, no dia seguinte, foi agendada uma reunião com o governador. Segundo

Rui César: “Ele me recebeu com a gravata vermelha e disse assim: olha, vim de gravata

vermelha pra mostrar que eu estou em paz, ou seja, como como se dissesse: estou recebendo

os comunistas... (rs)”583

. O resultado de três reuniões foi o empréstimo do Centro de

Convenções, que ainda nem estava pronto, atitude paradoxal, se se pensar que essa foi a

atitude de um governador aliado e indicado pelo regime que proibira a reunião. Sem entrar no

mérito do paradoxo, o importante a sublinhar é que assim começava a grande movimentação

para a realização do congresso.584

Na posse do novo presidente general João Batista Figueiredo, a comissão realizou o

“Dia Nacional de Luto”. O manifesto escrito para o ato afirmava que, depois de 15 anos,

tomava posse um general que representava “a situação de opressão e miséria da maioria da

população”. Relembrava “os 15 anos de mortes, torturas, prisões, desaparecimentos de

pessoas (...) como o último presidente da UNE, Honestino Guimarães”585

. A UEE/SP também

preparou um manifesto e programou um grande protesto.586

Mas João Batista Figueiredo e seus ministros, por ocasião da 9ª Reunião da Comissão

em Brasília587

, foram convidados pela comissão a participarem do congresso, ato contestado

582

Depoimento de Rui César Costa e Silva para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em

12.11.2004. 583

Ibidem. 584

É ainda Rui César quem lembra das atividades que passaram a mobilizar os estudantes em todo país e

principalmente a comunidade soteropolitana: “E enfim a preparação do Congresso começou a mobilizar o

Brasil inteiro... [E] como garantir hospedagem? A expectativa era seis... no final a gente tinha dez mil pessoas

em Salvador. Então nós fizemos uma campanha com toda a população da cidade e conseguimos todos os

alojamentos em casas de famílias. As famílias fizeram filas na porta de MDB, cadastrando... teve uma

experiência inusitada, que nas vésperas nós resolvemos anunciar pela cidade e a gente fez uma maluquice que

foi tomar o alto falante da Fonte Nova, do Estádio da Fonte Nova, no jogo do Bahia e falar para 80 mil pessoas

que o Congresso da UNE iria acontecer em Salvador. Então, a gente invadiu, segurou o cara e eu peguei a

rádio e falei para o Fonte Nova e alguém passava com a faixa correndo anunciando... isso todo provocava um

efeito muito grande na imprensa, esses atos assim mais... mais assim... vamos dizer assim... de performance

mesmo.” (Depoimento de Rui César Costa e Silva para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, São

Paulo em 12.11.2004). 585

Dia Nacional de Luto em repúdio à posse do general Figueiredo. Secretaria Executiva da Comissão Nacional

Pró-UNE. Salvador, 29.02.1979. APERJ/Polícia Política. Notação 67. p. 676. 586

Convocação geral ao povo paulista. São Paulo, março de 1979. UEE/SP (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 36). 587

Comissão Pró-UNE reunida debate o congresso de maio. Folha de S. Paulo, 27 mar. 1979.

Page 45: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

183

por algumas tendências políticas588

. Ao ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella589

foi enviada uma carta, na qual os estudantes “exigiam” a doação de quinhentos mil cruzeiros

como forma de ajuda ao congresso, bem como o posicionamento contrário à determinação de

institucionalização do ensino pago590

, reivindicações que certamente não foram atendidas.

As reuniões da Comissão Pró-UNE (que contava com membros de DCEs de vários

Estados) se intensificaram e, como consequência delas, as retaliações por parte dos

representantes oficiais das universidades e do próprio regime591

. E cada vez mais a comissão

participou dos principais eventos contra o governo, como foi o caso do ato público em defesa

da Amazônia, realizado no final de março, na ABI.592

Entre 5 e 6 de maio, a 10ª Reunião da Comissão elaborou o regimento do Congresso

de Reconstrução. Além de todas as normas para a retirada de delegados, o regimento

estabeleceu a estrutura do congresso, definindo, inclusive, o temário dividido em seis grupos

de debates: 1) carta de princípios e estatutos da UNE; 2) grupos de trabalho da UNE: cultural,

esportes e secretarias por áreas profissionais; 3) eleições da UNE; 4) universidade; 5)

realidade brasileira; 6) lutas dos estudantes: balanços e perspectivas.593

Note-se que não foi previsto nenhum ponto relativo à conjuntura internacional, o que

atesta a própria realidade vivenciada. Vê-se que a conjuntura nacional era mais importante no

momento e que, independentemente do que estivesse acontecendo, mesmo nos países

vizinhos, o combate estava centrado primeiro no inimigo interno, o que reflete, em parte, a

588

Na carta-programa da Viramundo: “(...) mas também porque certas direções do ME deram mostras de que

estão abertas [para negociar com a ditadura] (...) o convite que a Comissão Pró-UNE fez ao ditador Figueiredo,

aos seus ministros e porta-vozes oficiais, para a abertura do Congresso da UNE (...).” (Viramundo. XXXIº

Congresso da UNE: reconstrução maio/79 Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 36). O jornal

Agora UNE da tendência Liberdade e Luta disse que a decisão do convite significava “abrir a via para a

destruição da independência da UNE, já no seu nascedouro” (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP,

Livraria Palavra, 122). 589

O depoimento de Aldo Rebelo, eleito secretário da UNE naquele mandato, registra o encontro com o ministro

da Educação: “O Eduardo Portella teve um papel importante também, ou seja, ele deve ter dito ao Figueiredo

que não ficaria no Ministério se houvesse repressão ao Congresso da UNE. Participei da audiência quando ele

nos recebeu no Ministério da Educação – entregamos uma camiseta do congresso a ele... então, ali já havia

uma condição mais favorável.” (Depoimento de Aldo Rebelo a autora para o Projeto Memória do Movimento

Estudantil, Brasília em 04.12.2004). 590

Carta ao ministro da Educação e Cultura. Brasília, de 28.03.1979. Comissão Pró-UNE (Arquivo Promemeu/

UnB AE5513 II). 591

UFRJ proíbe reunião para volta da UNE. Jornal do Brasil, 13 jan. 1979; Reorganização da UNE é meta de

líderes estudantis em 79. Jornal do Brasil, 21 jan. 1979, p. 9. 592

Informe DGIE 945/79, de 03.04.1979. APERJ/Polícia Política. Notação 67. p. 653. 593

Regimento do Congresso de Reconstrução da UNE. XXXI Congresso. São Paulo, 05 e 06.05.1979. X

Reunião da Comissão Pró-UNE, p. 7 (Arquivo Promemeu/ UnB AE5513).

Page 46: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

184

maneira como foram tratadas as questões internacionais pelo movimento durante a década.

Mas não que elas fossem relegadas completamente, tanto é que várias moções foram

aprovadas no congresso que contextualizavam a conjuntura internacional. O congresso visava,

antes de tudo, a reconstruir a entidade dos estudantes, independentemente do rumo político

que ela adotasse.

A falta de atenção ao status da UNE merece comentário: em nenhum documento

encontrei referência, por exemplo, à entidade estudantil como sindicato de estudantes. Essa

proposta não foi cogitada por nenhuma tendência. Quanto à participação dos estudantes, a

“Libelu” defendia a presença de secundaristas e pós-graduandos como delegados594

, mas foi

aprovado pela Comissão Pró-UNE que somente fariam parte do congresso estudantes

universitários. Os demais poderiam participar apenas como observadores.

Havia discordâncias no interior da comissão. Uma reportagem da revista Movimento

ajuda a compreender esse aspecto. Nela, os redatores afirmam que a “10ª reunião pode ser

considerada uma prévia do congresso” e revelam uma movimentação de bastidores referente

ao afastamento do representante da PUC-Rio da Secretaria da Comissão, substituído por

representante da UFRJ, a partir de uma indicação da UEE/SP.595

A decisão foi considerada “política”, segundo a revista, pois teria se dado em troca do

apoio do presidente do DCE/UFRJ Paulo Bittencourt (do MR-8) ao pré-candidato Paulo

Massoca (também do MR-8), que tinha apoio de cinco dos 15 diretores da UEE/SP. Como já

foi dito, a chapa eleita da UEE foi decorrente de uma “costura” de tendências políticas. A

reportagem indica que a disputa principal da entidade se daria entre as duas forças

representadas por Valdélio Santos Filho, estudante da UFBA (ligado à “Viração”/PC do B), e

Massoca (do MR-8). Ainda aponta que a principal questão do congresso estava centrada na

forma da eleição para a diretoria da entidade reconstruída: direta ou indireta.

594

No jornal da tendência: “A UNE também deve representar os interesses desses segmentos do estudantado,

que participaram das lutas que a criaram. Principalmente no momento em que a UNE poderá representar o

impulso decisivo para a construção de organismos próprios dos pós-graduandos e secundaristas” (Arquivo

CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP. Livraria Palavra. 122). 595

UNE: a volta por cima. Movimento, 14 a 20 maio 1979, p. 13.

Page 47: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

185

O congresso, finalmente, aconteceu entre os dias 29 e 30 de maio. Os episódios que

ocorreram durante esses dois dias foram muito bem narrados por Romagnoli e Gonçalves596

,

resumidamente por Arthur Poerner597

e por inúmeras matérias na imprensa598

. Não se trata

aqui de reproduzir os acontecimentos, mas expor a articulação das forças políticas que

acabaram sendo responsáveis pela “refundação” da UNE. Nesse sentido, o mais importante a

ressaltar é que a reconstrução da UNE foi um longo processo de dez anos e, por isso, um

marco não só na história do ME, como também na luta contra a ditadura.

O congresso599

foi aberto com o discurso de abertura do ex-presidente da UNE em

1964 José Serra, como veremos no capítulo seguinte. A presença de inúmeros políticos

(inclusive dos arenistas da Bahia), líderes camponeses e sindicais, e os quase 10.000

estudantes que compareceram ao evento evidenciam a importância da reconstrução da

entidade para a luta pela redemocratização do país.

Depois de aprovar a carta de princípios e as lutas que deveriam ser encabeçadas pela

entidade estudantil600

, o ponto culminante do congresso foi, sem dúvida, a decisão relativa à

eleição da UNE, que ocorreu na noite do dia 30 e na madrugada do dia 1º. Depois de muitas

horas de conchavos, de um racha nas tendências “Caminhando” e “Viração”601

(ambas do PC

do B), dez propostas foram colocadas em votação e ficou decidida a criação de uma diretoria

provisória, até a realização da eleição direta para a diretoria da entidade reconstruída, em

outubro daquele ano. A diretoria provisória foi composta por representantes da UEE/SP, DCE

UFBA, DCE/UFPE, DCE/UFMG, DCE/PUC-Rio, DCE/UFRGS, DCE/UnB e DCE/UFPA.

Com essa decisão, findou o congresso que definiu a refundação da UNE, entidade que

representa o conjunto dos estudantes no plano nacional. A reconstrução UNE foi, para além

de um marco simbólico na luta da entidade contra o regime, importante para a

596

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit. 597

POERNER, Arthur José, O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, cit. 598

Ao longo de minha pesquisa, coletei mais de 150 matérias de jornais e revistas sobre a reconstrução da UNE

no ano de 1979. 599

Ver foto de estudantes com a bandeira da UNE, durante o Congresso (Anexo XIII). 600

Seis pontos foram aprovados para serem levantados como as bandeiras de luta da UNE: 1) contra o ensino

pago; 2) por mais verbas para educação; 3) pela anistia ampla, geral e irrestrita; 4) contra a devastação da

Amazônia; 5) por uma assembleia nacional constituinte; 6) campanha de filiação de entidades à UNE

(ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 58). 601

“A Caminhando paulista se juntou com a Refazendo em favor da eleição direta enquanto que o restante da

tendência, encabeçada pela Viração baiana, esteve ao lado do PCB pela eleição no Congresso.” (Depoimento

de Aldo Rebelo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 04.12.2004).

Page 48: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

186

redemocratização do país, porque, como afirma Poerner, a UNE foi a primeira entidade de

massa nacional a se reestruturar.602

A importância desse fato se revela pela grande participação de diferentes correntes que

empunharam a bandeira do retorno da entidade à cena pública, como revela a carta-programa

de uma corrente trotskista: “E mesmo sob o risco da UNE estar sob estas direções com as

quais não partilhamos, nas quais não confiamos, ela [a entidade] significará um grande avanço

na perspectiva de unificação das lutas dos estudantes a nível nacional.”603

Independentemente da disputa política, os estudantes estavam certos de que o caminho

a ser trilhado contra a ditadura perpassava pela refundação da sua entidade representativa. A

UNE, assim, estava reconstruída, como atesta o título de uma reportagem da imprensa: “UNE:

a volta por cima.”604

Nos meses que se seguiram, a diretoria provisória continuou se reunindo

constantemente e deliberando pontos de luta que se centraram na questão da anistia “ampla,

geral e irrestrita” e nos pontos referentes ao ensino pago605

. Ainda em setembro, realizaram

uma reunião do Conselho de Entidades Gerais (CONEG da UNE) para deliberar sobre esses

pontos, bem como sobre o formato da eleição direta que ocorreria em outubro.606

Enfim, em 3 e 4 de outubro, ocorreu a primeira eleição direta da história da entidade.

Cinco chapas concorreram, representando (e agrupando) diferentes tendências do movimento:

“Mutirão”, encabeçada pelo baiano Rui César, uniu as tendências “Caminhando”, “Viração” e

“Refazendo” (basicamente APML e PC do B); “Unidade”, cujo candidado à presidência foi

Paulo Massoca, aluno do curso de Engenharia Civil da USP São Carlos, agregando forças

principalmente do PCB e MR-8; “Novação”, formada por militantes da Convergência

Socialista, encabeçada por Eduardo Albuquerque, diretor do DCE/UFMG; “Libelu”,

encabeçada por Josimar Moreira de Melo Filho, do curso de Arquitetura da USP; e,

602

POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil-

Colônia até o governo Lula. 5. ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. p. 290. 603

Viramundo. XXXI Congresso da UNE: reconstrução, maio 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP,

cx. n. 36). 604

UNE: a volta por cima. Movimento, 14 a 20 maio 1979, p. 13. 605

Os relatos das primeiras reuniões e pontos deliberados podem ser encontrados em um documento escrito pelo

representante da UEE/SP na diretoria provisória (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP. Livraria Palavra.

121). 606

Entidades gerais da UNE reúnem-se para definir chapas. Folha de S. Paulo, 08 set. 1979.

Page 49: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

187

finalmente, a chapa “Maioria”, que representava a “direita” do ME, encabeçada pelo

estudante de Direito do Largo de São Francisco (USP) Marcos Paulino Martins.607

Em torno de 300.000 estudantes votaram nas eleições que consagrou vencedora a

chapa “Mutirão”, com mais de 107.000 votos, e em segundo lugar a chapa “Unidade”, com

mais de 80.000 votos. Depois de dez anos, o ME encerrava um ciclo, com a reconstrução da

sua entidade nacional.

607

Várias foram as reportagens na Grande Imprensa que cobriram as eleiçoes da UNE. A Folha de S. Paulo

trouxe no suplemento de educação uma grande reportagem, contendo cada uma das chapas, suas propostas e os

nomes dos diretores (Os programas definidos para as cinco chapas. Folha de S. Paulo, 30 set. 1979, Educação,

3º Caderno, p. 35).

Page 50: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

188

CAPÍTULO 4 − A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DO PASSADO

PELO ME

Dentre os eventos/momentos marcantes da resistência do ME durante os anos de 1970,

podem ser destacados alguns que serviram-se das diferentes “ordens do tempo” para realizar

propostas de resistências simbólicas. Entendo como “ordens do tempo” ou “regime de

historicidade”, referência empregada por François Hartog, a “costura” de diferentes regimes

de temporalidade que traduz e ordena as experiências do tempo articulando passado, presente

e futuro e dando sentido à relação entre as diferentes temporalidades. Hartog refere-se a um

regime de historicidade entendido como a maneira pela qual uma sociedade trata seu passado

e como se propõe a utilizá-lo.608

Neste capítulo procuro analisar a memória do ME, mas não me restrinjo às lembranças

dos eventos/momentos apenas, mas procuro mostrar como a memória é reconstruída para ser

utilizada como forma de resistência contra o regime e reconhecimento no próprio grupo. Em

suma, analiso o uso político que o ME fez do passado.

Cabe ressaltar que todo e qualquer uso da memória pressupõe um trabalho sobre o

passado e Paul Ricoeur se refere a esse trabalho como instrumentalização da memória609

. Esse

uso pragmático da memória não significa maquiavelismo ou oportunismo, mas está

relacionado a um cenário de luta entre diferentes atores, que atribuem diferentes sentidos ao

passado. No caso do ME, a luta pela memória estava relacionada ao combate à ditadura.

Maria Helena Capelato610

, apoiada nos estudos de Elizabeth Jelín, em seu trabalho

sobre a memória da ditadura militar na Argentina, afirma que não existe uma única

interpretação do passado, havendo oposições entre memórias rivais: uma “luta da memória

contra memória”. A historiadora brasileira mostra que as memórias “são objetos de disputas e

conflitos nos quais os participantes desempenham papel ativo como produtores de sentidos

nessas lutas”. Nesse caso, segundo Capelato, “o debate sobre o passado é colocado na esfera

608

HARTOG, François. Regimes d‟historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 19. 609

RICOEUR, Paul. La mémoire, l‟histoire, l‟oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 97. 610

CAPELATO, Maria Helena. Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história. Revista Clio:

Revista de Pesquisa Histórica, Recife, Editora Universitária da UFPE, n. 24, p. 61-82, 2006.

Page 51: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

189

pública e a intenção é estabelecer, convencer, transmitir uma narrativa que possa ser

aceita”.611

Procuro mostrar como o ME, nos anos 1970, valeu-se de uma certa dimensão temporal

(com projeções tanto para o passado como para o futuro), criando, nesse caso, um regime de

historicidade baseado nos momentos-chaves de sua história, com vistas a forjar uma

identidade de grupo, através da qual foram construídos “mitos”, “mártires” e “heróis” que

alimentavam e sustentavam a resistência contra o regime vigente.

Destaco dois momentos/eventos que foram instrumentalizados politicamente pelos

representantes do ME: a morte de estudantes e a reconstrução da história da UNE.612

4.1 As mortes na resistência contra o regime

A morte de Alexandre Vannucchi Leme pelo DOI-CODI, em 16 de março de 1973, já

foi tema de alguns trabalhos613

, como é o caso do livro Cale-se, do jornalista Caio Túlio

Costa, que relata, a partir de depoimentos da época, as atividades do movimento estudantil na

USP durante o período compreendido entre a morte de Alexandre e o show de Gilberto Gil na

Escola Politécnica, em maio de 1973.

Para além da descrição dos fatos, já bem relatados na historiografia existente, pretendo

refletir como a morte de Alexandre Vannucchi Leme foi utilizada, ao longo da década, como

instrumento político pelos estudantes, como forma de combate contra o regime.

Além da morte de Alexandre, outras duas mortes foram instrumentalizadas pelos

estudantes: a do então presidente da UNE Honestino Guimarães, também em 1973, e a do

611

CAPELATO, Maria Helena, Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história, cit., p. 64. 612

Agradeço a Ana Paula Goulart Ribeiro pela leitura atenta deste capítulo e pelas suas sugestões. 613

Além dos trabalhos que serão citados ao longo do capítulo, o artigo encontrado mais recentemente é: IKEDO,

Fernanda. Memória: 35 anos da morte do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme. Cadernos AEL: Anistia

e Direitos Humanos, Campinas, Unicamp/IFCH/AEL, v. 13, n. 24/25, p 147-165, 2008. A jornalista apresenta

um panorama da formação de Alexandre, até sua atuação estudantil, passando pela sua prisão e morte, a missa,

a homenagem com um nome de praça cinco anos após sua morte, o retorno do seu corpo dez anos depois, entre

outros dados.

Page 52: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

190

estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, em 1968. Tento refletir sobre as diferenças

no plano histórico e as semelhanças no plano memorial que as três mortes acabaram por

espelhar, observando ainda porque a morte do estudante (que não era necessariamente um

militante) Edson Luis se tornou um importante “ponto de memória”, quando comparado às

outras duas.

Cabe ressaltar, de início, que a morte ligada à violência e ao sacrifício patriótico614

constitui um elemento privilegiado para sua instrumentalização política, que a transforma em

evento carregado de forte conotação simbólica por parte dos que dela se apropriam, chegando

mesmo a transcendê-la615

, através da perpetuação das características dos personagens por

parte daqueles que delas se utilizam.

Alexandre Vannucchi Leme616

, também conhecido como Minhoca, à época tinha 22

anos, era aluno do quarto ano do curso de Geologia da USP (o primeiro colocado no

vestibular, como frisam vários documentos) e, segundo depoimento de Geraldo Siqueira

Filho, “era popular, era o cara do bumbo da escola de samba da Geologia”617

. Militante da

ALN (Ação Libertadora Nacional), como explica Victória Langland, era o coordenador

político da organização dentro da USP, fazendo a ligação com os grupos que se encontravam

na clandestinidade618

. Estava aí o motivo para justificar a morte do “terrorista” pelas

autoridades responsáveis.

A morte de Alexandre já surgiu cercada de ambiguidades por parte dos relatos do

DOI-CODI. O brasilianista Kenneth Serbin619

aponta duas informações diferentes que foram

distribuídas pelos agentes de segurança: a primeira, para “consumo público”, foi enviada à

614

Como ressalta Christian Amalvi (Les héros de l'histoire de France: recherche iconographique sur le panthéon

scolaire de la troisième République. Paris : Phot‟oeil, 1979. p. 246). 615

Mariana Martins Villaça reconhece essa questão nas músicas que são feitas em memória de Che Guevara (“El

nombre del hombre es el pueblo”: as representações de Che Guevara na canção latino-americana.

CONGRESSO LATINO-AMERICANO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA O ESTUDO DA

MÚSICA POPULAR, 5. Anais... p. 3. Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html>. Acesso

em: 10 jan. 2010). 616

Ver a foto de Alexandre V. Leme (Anexo XIV). 617

Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em

01.12.2004. 618

LANGLAND, Victória. “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memória. In: JELIN,

Elizabeth; SEMPOL, Diego (Comps.). El passado en el futuro: los movimientos juveniles. Buenos Aires: Siglo

XXI, 2006. p. 49. (Colección Memórias de la Represión). 619

SERBIN, Kenneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001. p. 382-407.

Page 53: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

191

imprensa em 22 de março e afirmava que o estudante tinha sido atropelado por um caminhão

ao tentar fugir da polícia. O jornal O Globo repetiu essa versão, nos seguintes termos:

“Os órgãos de segurança revelaram que o terrorista Alexandre Vannucchi

Leme, conhecido como „Minhoca‟, morreu atropelado por um caminhão

quando tentava fugir ao ser levado por agentes a um encontro com outro

terrorista, no cruzamento das ruas Bresser e Celso Garcia (...) Três

testemunhas contaram que presenciaram o acidente em que morreu o

terrorista. [Uma delas] Alcino Nogueira de Souza, empregado de balcão da

Confeitaria Santa Cruz (...), chegou a servir uma cerveja ao terrorista. Viu

quando ele olhou para um lado e para o outro, atravessou correndo a rua e

foi colhido pelo caminhão.”620

Os testemunhos que fizeram parte do inquérito sobre a organização ALN621

, motivo

pelo qual Alexandre foi preso e, consequentemente, sobre a morte do estudante, seguem na

mesma linha: o de Alcino Nogueira de Souza, o de André Corte (o engraxate) e o de Josué

Sales Bitencourt (que trabalhava no bar “Videira”) apresentaram a mesma versão, com alguns

detalhes precisos sobre “acontecimento” e outros completamente descabidos. Como, por

exemplo, o engraxate André relata que ele estava de costas para a via pública e, por ter

“problema de audição”, não escutou o choque do caminhão contra Alexandre e só se deu

conta do ocorrido quando o estudante cambaleou por cima dele.622

Segundo Kenneth Serbin, outra versão foi dada aos detidos que se encontravam no

local: Alexandre cometera suicídio. Adriano Diogo, preso dois dias depois de Alexandre,

lembra que em meio a uma sessão de tortura, soube da notícia, por um agente da repressão, de

que o Alexandre acabara de morrer. Então perguntou: “Como assim? Ele foi cobrir um ponto

e se atirou debaixo de um caminhão? [o agente disse] Estava preso aqui desde ontem e acabou

de morrer. Aquela cela que você viu, toda molhada, era a dele, nós lavamos a cela e você

entrou.”623

Aos pais de Alexandre foram ditas também as duas versões por delegados diferentes: o

delegado Fleury referiu-se a suicídio e Edsel Magnotti afirmou que foi atropelamento624

. Para

encobrir as versões conflitantes, foi negado o direito aos pais de verem o corpo do filho, que

620

Subversivo tenta fugir mas morre atropelado. O Globo (GONZALEZ, Marina. Assassinato de Alexandre

Vannucchi Leme gerou protestos da sociedade. Revista ADUSP, p. 73, maio 2005). 621

AEL/BNM 670. 622

Secretaria de Segurança Pública/DEOPS. Segunda Testemunha. Idem. Folha 82. 623

Depoimento de Adriano Diogo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 11.11.2004. 624

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 19.

Page 54: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

192

fora enterrado como indigente, aumentando, assim, as suspeitas de assassinato do jovem pela

repressão. Os pais só tiveram acesso aos restos mortais de Alexandre dez anos depois do

ocorrido.

É importante lembrar que a morte de Vannucchi ocorreu em 1973, ano da

comemoração dos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (como vimos no

primeiro capítulo), que serviu de “mote” para a incriminação da ditadura no assassinato do

estudante. E foi também nesse ano que a CNBB encampou a campanha contra a violação dos

direitos humanos.625

Outro ponto merece destaque: no início do ano letivo de 1973, através do “Bichusp”,

os estudantes procuraram dar continuidade às ações que tinham ganhado fôlego no final do

ano anterior devido ao plebiscito contra o ensino pago: o episódio teve repercussão inclusive

na Grande Imprensa que, no caso da morte de Alexandre, se restringiu a fornecer a nota

oficial do DOI-CODI, evidenciando censura.

Pelo exposto, constata-se que as ações desencadeadas a partir da morte do estudante

uspiano não foram eventos “isolados” na história, como demonstram alguns trabalhos626

, mas

fizeram parte de um processo de construção de abertura de canais de resistência contra o

regime.

Tendo em mente esses aspectos, torna-se compreensível a rápida e forte

movimentação feita pelos estudantes da USP, quando chegou a notícia da morte de Alexandre

na Universidade. Geraldinho relembra:

“[alguém] apareceu branco no centrinho da Geografia, dizendo: “Mataram o

Minhoca! Amanhã a escola vai explodir!”. Falei: “Segura, porque nós

precisamos sair juntos. Quem sair sozinho vai ser massacrado.” Aí, houve

um levante na USP: assembleias isoladas, pano preto no lugar da bandeira

brasileira...”627

625

Ainda para efeitos de contextualização, é no início dos anos 1970 que surgem os primeiros trabalhos sobre a

teologia da libertação, que utiliza conceitos marxistas que já estavam expressos nos escritos da JUC no início

da década de 1960. Para Michel Löwy, alguns documentos produzidos “estão impregnados de marxismo, não

só como mediação analítica, mas também como projeto utópico-social de emancipação dos oprimidos”

(Cristianismo da libertação e marxismo. In: RIDENTI, Marcelo; REIS FILHO, Daniel A. (Orgs.). História do

marxismo no Brasil: partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Unicamp, 2007. v. 6, p. 425). 626

COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit. Izabel Priscila Pimentel da Silva diz: “A morte e o funeral de Alexandre

(...) marcaram o início do processo de recuperação política do movimento estudantil universitário brasileiro.”

(Jovens, estudantes e rebeldes: a construção das memórias estudantis. In: ENCONTRO REGIONAL

SUDESTE DE HISTÓRIA ORAL, 7., 2007, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2007. 627

Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em

01.12.2004.

Page 55: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

193

Ponto importante, salientado também por Caio Túlio Costa, é que as diferentes forças

políticas que existiam dentro da USP, com suas diferentes visões da realidade brasileira, e

principalmente diversas formas de ação, se uniram para denunciar a morte do colega, numa

ação conjunta. Tanto que a primeira manifestação dos estudantes foi o manifesto sobre a

morte de Alexandre elaborado pelo CCA, no qual se informava que “todos os colegas da USP

e de algumas escolas da PUC-SP estão em luto”.628

O manifesto se refere à questão dos direitos humanos, vista como principal pauta

reivindicativa do momento. O documento cita a prisão de Alexandre de forma clandestina,

como era de hábito naquele período, mas designando que ela feria a Declaração Universal dos

Direitos do Homem, do qual o Brasil era signatário629

. O manifesto ressaltava as qualidades

do colega:

“Alexandre gozava de excelente reputação entre os alunos e professores da

sua escola. Estudante exemplar, aprovado em primeiro lugar nos

vestibulares, era ativo participante em todos os níveis da vida universitária.

Sua dedicação ao curso e o profundo respeito e estima que seus colegas lhe

devotavam, levaram-no a ser eleito representante oficial dos alunos na

Congregação do Instituto de Geociências.”630

O regime procurava legitimar seus atos com a justificativa de combater o terrorismo.

Para impedir que Alexandre fosse taxado de “terrorista”, os estudantes ressaltaram sua

imagem positiva (pessoa correta, bom amigo, estudioso, “justo”631

). A imagem do estudante

de geologia “vítima da repressão” passou a ser utilizada pelos estudantes para legitimar a luta

contra a ditadura, o que representou um “tiro no pé do próprio regime”.

Os eventos que se seguiram permitiram a contestação da ditadura por parte do

movimento. Mostraram que o discurso oficial, propagado pelos militares, muitas vezes

628

Comunicado sobre a morte do colega Alexandre Vannucchi Leme. PoliCampus. Declaração Universal dos

Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA). 629

Ibidem. 630

Ibidem. 631

Sarah Gensburger descreve como a figura do resistente passa a ser referenciada como a figura do justo na

memória histórica francesa da ocupação. Aborda que a figura do justo é associada aos valores morais, cristãos,

que eram precisamente evocações iniciais do resistente. Apesar do diferente contexto exposto pela autora, o

conceito nos ajuda a entender como a figura de Alexandre foi retratada pelo movimento. Para aprofundamento

da questão, ver dois artigos da autora: Les figures du juste et du résistant et l‟évolution de la mémoire

historique française de l‟occupation. Revue Française de Science Politique, v. 52, n. 2-3, avril/juin 2002, p.

291-322; Usages politiques de la figure du Juste: entre mémoire historique et mémoires individuelles. In:

ANDRIEU, Claire; LAVABRE, Marie-Claire; TARTAKOWSKY, Danielle. Politique du passé: usages

politiques du passé dans la France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence,

2006. p. 47-57. (Collection Le Temps de l‟Histoire).

Page 56: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

194

encarado como uma verdade “una e definitiva” por boa parte da sociedade, poderia ser

utilizado como forma de mostrar as ambiguidades do regime, colaborando para o desgaste de

sua imagem. Como afirma Caio Túlio Costa, “acionados indiretamente pela própria repressão,

todos os mecanismos de organização estudantil se reestruturavam a partir de um dado-chave:

mataram um militante estudantil”632

. Segundo o jornalista, foi a partir desse momento que

começou a se “azeitar” a máquina de propaganda dos estudantes. Ainda é preciso levar em

conta, como afirmou o historiador Marcelo Santos de Abreu, o sentido de coesão que o luto

desperta, para compreender sua integração à cultura “cívica” que então se forjava.633

Nesse contexto fica clara a estratégia deliberada do uso da morte do colega, desde as

primeiras manifestações. O próprio comunicado sobre a morte, assinado pelos CAs da USP,

frisa a questão: “(...) luto que não traduz apenas o nosso imenso pesar pela irreparável perda

do colega Alexandre, como também nossa união para repudiar este ignominioso estado de

coisas a que nos vemos submetidos e assumir conscientemente a posição de dizer-lhe um

basta.”634

A ideia de celebrar uma missa em homenagem a Alexandre partiu dos estudantes da

Geologia, aprovada pelo CCA. O propósito era realizá-la dentro da USP pelo então recém-

nomeado cardeal D. Paulo Evaristo Arns. Mas foi o próprio D. Paulo quem sugeriu realizar o

evento na Catedral da Sé, o que traria ainda mais holofotes para a ação.

Nesse caso, os estudantes trataram de se cercar de apoios, não só como maneira de

conseguir “proteção”, mas também como forma de mostrar força. OAB (Ordem dos

Advogados do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa), MDB e Arquidiocese

apoiaram o evento proposto pelo CCA. A realização de uma missa em memória do estudante

assassinado pela ditadura acabou por se constituir em arma de denúncia do regime e dos seus

atos criminosos, uma maneira encontrada de passar pela censura, fazendo com que a denúncia

da ditadura extrapolasse o campus da universidade, ao qual estivera restrita nos últimos anos.

632

COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 76. 633

ABREU, Marcelo Santos de. Os mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos da Revolução

Constitucionalista de 1932 (1932-1957). Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro, 2010. p. 154. 634

Comunicado sobre a morte do colega Alexandre Vannucchi Leme. PoliCampus. Declaração Universal dos

Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs da FFCH/UFBA).

Page 57: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

195

O ato em si mostra o planejamento politicamente engajado de um grupo de estudantes

na luta contra o regime. Além de buscarem o apoio das entidades que já estavam se

posicionando contra o regime, os estudantes trataram de divulgar o evento. O convite para a

missa, em seu verso, continha um poema escrito para Alexandre:

A liberdade voa

Cortaram as tuas asas

A vida é um correr

Quebraram as tuas pernas

Mãos, umas pedindo

Outras, negando

As tuas, ofereciam

Os algozes as algemaram

Corpos que se movimentavam

E agonizavam na seleção natural

Do cotidiano

O teu, fizeram-no adormecer

Nada disso traz medo

O teu sangue corre nas veias

De teus irmãos

Eles não morreram

A verdade ainda sobrevive.635

A simbologia utilizada para tratar as questões referentes ao regime, expressa através

de jornais e murais universitários, ganhou contornos mais nítidos nesse evento solene e

sacramentado contra a ditadura. Nos versos, palavras de ordem do momento transformaram-se

em poesia que tinha também o sentido de denunciar o presente vivido e acalentar a esperança

de mudar o futuro. Chamo atenção para o fato de que, nesse episódio, estava presente a tensão

entre as duas categorias históricas construídas por Koselleck para explicar a relação entre

passado e futuro: o campo da experiência e o horizonte de expectativa.636

A realização da missa na Catedral da Sé, em 30 de março, contou com a participação

de 25 sacerdotes e em torno de 5.000 pessoas, na sua grande maioria estudantes. Era a

primeira grande manifestação pública dos tempos sombrios do regime. O aparato militar,

enorme, contava com uma metralhadora de frente para a Catedral e câmaras da TV Gazeta

635

Póstumas a Alexandre. Extraído do convite para missa de 7º dia de Alexandre Vannucchi Leme (COSTA,

Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 90). 636

“Experiência e expectativa são duas categorias que, entrecruzando passado e futuro, estão perfeitamente aptas

a tematizar o tempo histórico. Essas categorias podem detectá-lo (o tempo histórico) até o domínio da pesquisa

empírica, pois, concentradas em seu conteúdo, guiam as ações concretas na realização do movimento social ou

político.” (KOSELLECK, Renhart. Le futur passé. Contribuition à la sémantique des temps historiques. Paris:

EHESS, 1990. p. 310 minha tradução).

Page 58: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

196

que filmavam rosto a rosto daqueles que se faziam presentes, com o “pretexto de transmitir a

missa”.637

A celebração foi carregada da solenidade que lhe era apropriada e permitida. As

palavras davam conteúdo a ela. Em seu sermão, D. Paulo Evaristo Arns proclamou:

“Só Deus é dono da vida. D‟Ele a origem, e só Ele pode decidir seu fim. (...)

O próprio Cristo quis sentir a ternura da mãe e o calor da família ao nascer.

E mesmo depois de morto, o cadáver foi devolvido à mãe e aos amigos e

familiares. Esta justiça lhe fez o representante do poder romano, embora

totalmente alheio à Sua missão de Messias.”638

Marcos Napolitano, num outro contexto, analisou a missa de Vladimir Herzog

ocorrida em 1975, evidenciando a apropriação das representações religiosas cristãs utilizadas

numa perspectiva de protesto político639

. A evocação da figura de Cristo para caracterizar o

mártir640

(no caso, Vladimir Herzog) tinha antecedentes: o ato religioso em homenagem a

uma vítima da ditadura já tinha ocorrido em 1973 com personagem distinto, no caso

Alexandre Vannucchi. Ou seja, nos dois episódios, o sagrado e o profano ou, noutros termos,

o religioso e o político, se mesclaram totalmente.

Para finalizar a missa em homenagem a Alexandre, o cantor Sérgio Ricardo teve uma

participação especial, cantando sua nova música, “Calabouço”, composta em homenagem a

outro estudante morto pela ditadura: Edson Luis, em 1968. A letra de “Calabouço”, como

ressalta Roberto Bozzetti, instaura uma tensão entre o dizer e sua impossibilidade, entre o dito

e o interdito: “A urgência do „dizer a verdade‟ está referida como obstáculo no próprio texto

da canção: „do canto da boca escorre/metade do meu cantar‟”641

. O autor ainda mostra que as

imagens de incompletude, por força da ação repressiva externa, complementavam-se com as

637

Caio Túlio Costa narra os detalhes da missa (Cale-se, cit., p. 93-109). 638

COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 98. 639

NAPOLITANO, Marcos, Cultura e poder no Brasil contemporâneo (1977-1984), cit., p. 64. 640

Tomamos o conceito de mártir na sua acepção mais simples: surgindo da terminologia cristã, “testemunho de

Deus” segundo a etimologia, significa aquele que sofre os piores tormentos por causa de sua fé, chegando à

morte. Seu comportamento exemplar é ressaltado em detrimento de sua “falha”, que leva ao seu sacrifício.

Enfim, pessoa que morre, que sofre em nome de uma causa (ROBERT, Paul. Le nouveau petit Robert:

dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Texte remanié et amplifié sous la direction de

Josette Rey-Debove et Alain Rey. Paris: Dictionnaires Le Robert, 2002. p. 1.580 minha tradução). 641

BOZZETTI, Roberto. Uma tipologia da canção no imediato pós-tropicalismo. In: VIEIRA, André Soares

(Org.). Literatura, outras artes & cultura das mídias. Letras, Santa Maria, RS, Programa de Pós Graduação em

Letras (PPGL), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), n 34, p. 133-146, jan./jun. 2007. Disponível em:

<www.ufsm.br/ mletras/arquivos/LETRAS/LETRAS_34/revista34.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2010.

Page 59: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

197

de mutilação e morte: “Seu meio corpo apoiado/na muleta da canção/(...)/ a outra se

gangrenando/na chaga do meu refrão/(...)/meia cama meio caixão”.642

A letra de Sérgio Ricardo era uma metáfora da realidade brasileira, marcada pelo

cerceamento da palavra. O ato da Sé foi a possibilidade encontrada para explicitar, não o dito,

mas o interdito. Também se pode dizer que, nos casos mencionados, o uso estratégico e

calculado643

do conceito de “vítima” permitia reforçar a resistência contra o regime.

A missa terminou com outra canção cantada por Sérgio Ricardo, mas dessa vez a de

Geraldo Vandré, Pra não dizer que não falei de flores, ícone das músicas de protesto e vice-

campeã do Festival Internacional da Canção, também de 1968. A multidão que lotou a Sé saiu

cantando os versos de Vandré, como relembra Geraldo Siqueira: “Vem, vamos embora, que

esperar não é saber... Todo mundo começou a cantar, mais para espantar o medo, porque

cantar ajuda, né?”644

A repercussão do ato da Sé foi significativa para o movimento. A mídia estava

censurada e não podia noticiar eventos dessa natureza (diferentemente do que ocorreu no

período anterior, quando a morte de Edson Luis foi noticiada em âmbito nacional). Mas, se a

notícia da celebração da Sé não foi conhecida pela grande massa da população, o mesmo não

ocorreu no que se refere à sua circular pelas universidades em todo país645

. O jornal

PoliCampus, numa edição inteiramente dedicada à Declaração Universal dos Direitos

Humanos, veiculou o primeiro comunicado do CCA sobre a morte de Alexandre.646

Houve repercussão dentro do próprio meio militar, como recorda Adriano Diogo, que

estava preso naquele momento: “No dia da missa do Alexandre, o que eles xingavam o

cardeal Dom Paulo Evaristo Arns... Eles não perguntavam nada. Abriam as celas e

642

BOZZETTI, Roberto, Uma tipologia da canção no imediato pós-tropicalismo, op. cit. 643

GENSBURGER, Sarah, Les figures du juste et du résistant et l‟évolution de la mémoire historique française

de l‟occupation, cit., p. 314. 644

Depoimento de Geraldo Siqueira Filho ao Projeto Memória do Movimento Estudantil. Brasília, em

01.12.2004. 645

Ver telegrama de solidariedade aos estudantes da USP pela morte de Alexandre, enviado pelo DCE e CAs da

PUC-Rio (Anexo XV). 646

PoliCampus. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 25º aniversário. Março de 1973 (Arquivo dos DAs

da FFCH/UFBA).

Page 60: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

198

começavam a bater dentro, não levavam nem pra sala de tortura, era porrada com uns

paus!”647

Destarte, é possível afirmar que a morte de um estudante foi motivo para a

organização de um evento que enfrentou a ditadura no momento em que a mesma ainda se

encontrava “escancarada”, segundo Elio Gaspari648

. Toda simbologia utilizada mostra a

preparação, e porque não dizer a maturação, de um grupo de estudantes que, da maneira que

lhes era possível, enfrentava a ditadura. Enfrentar a ditadura era continuar resistindo,

resistência essa que se revestia de uma dimensão mítica, segundo Laurent Douzou.649

Caio Tulio, ao refletir sobre o sentido da manifestação de 1973, afirma que as músicas

cantadas na missa serviram de ligação entre as manifestações dessa época e as dos anos 1960,

que foram interrompidas a força. Segundo o autor, depois de anos, esse teria sido, em termos

de ação de massas, “o primeiro ato de uma retomada da presença política dos jovens”, com

uma diferença em relação às formas de luta: os jovens vinham em paz650

. No entanto, como

procurei mostrar nos capítulos anteriores, esse “primeiro ato” público só foi possível porque

existia uma militância engajada que continuou a realizar pequenas ações dentro da

universidade, mesmo depois que as ações de massa foram interrompidas. Sem dúvida, esse foi

o momento que estudantes e parte do clero encontraram uma “brecha” para realizar um

protesto nos “anos de chumbo” da ditadura. E souberam aproveitar a ocasião.

Mas o que chama maior atenção na análise de Costa, e concordo com a observação do

autor, quando aponta para uma nova forma de luta – a pacífica – fruto também da autocrítica

dos que haviam defendido a luta armada. Nesse sentido, a manifestação de 1973 não

significou um retorno às manifestações de 1968. Portanto, é possível concluir que a conexão

de datas se dá no plano da “memória” genérica de lutas contra a ditadura, o que não deixa de

ser uma forma de utilização política do passado, com vistas a legitimar a resistência contra o

regime no presente.

647

Depoimento de Adriano Diogo ao Projeto Memória do Movimento Estudantil, São Paulo em 11.11.2004. 648

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2002. 649

DOUZOU, Laurent. La constituition du mythe de la résistance. In: FRANCK, Christiane (Dir.) La France de

1945: résistances, retours, renaissances. Actes du colloque de Caen. Caen: Presses Universitaires de Caen,

1996. p. 77. 650

COSTA, Caio Túlio, Cale-se, cit., p. 103.

Page 61: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

199

Com relação ainda à rememoração do passado com fins políticos, cabe lembrar que as

mortes de Alexandre e Edson Luís aconteceram em datas próximas à das comemorações

cívicas ocorridas por ocasião dos aniversários da “revolução”. Diante dessa proximidade de

datas, o ME, que naquele momento ainda era um dos poucos canais com possibilidade de

manifestar oposição moderada, traçou seu próprio calendário de comemorações, com vistas a

transformá-las em ato político.

As datas das mortes dos dois estudantes passaram a representar uma luta do “bem

sobre o mal” e serviram de referencial para a militância nos anos subsequentes. Ao longo dos

anos 1970, esse calendário foi constante, como marca Victória Langland, que ainda demonstra

seu “desuso” regular após esse período651

, o que aponta sua necessidade de instrumentalização

no período anterior. Essa afirmação corrobora as reflexões propostas por Capelato, quando

afirma que os processos históricos ligados às memórias de um passado marcado por conflitos

oscilam entre momentos de maior ou menor visibilidade desse passado, momentos de fortes

lembranças e momentos de esquecimentos.652

Victória Langland evidencia que essas comemorações serviram para “unir” as

sucessivas gerações de estudantes653

, apontando a inocência dos estudantes como ponto

comum.

Apesar de concordar com a historiadora, esta pesquisa permite acrescentar que a

“união”, realizada no plano memorial, serviu como forma de resistência no plano histórico.

Apesar de estarem unidos por um mesmo tempo histórico – o da ditadura –, é preciso levar

em conta a grande diferença de conjuntura entre os dois momentos: 1968 e 1973, e também as

circunstâncias específicas das mortes dos dois estudantes.

Edson Luis654

tem uma trajetória diferente: não era um militante engajado na luta

contra o regime655

. Ele encarnava os ideais de um jovem pobre nortista que vinha para o Rio

651

LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 61. 652

CAPELATO, Maria Helena, Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a história, cit., p. 76. 653

LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 23. 654

Ver foto do velório de Edson Luís (Anexo XVI). 655

Interessante mostrar um depoimento realizado em 1968 pelo DOPS: “Prestando declarações disse Jaime

Pereira dos Santos: que conheceu o estudante Edson Luiz Lima Souto desde que o mesmo começou a

frequentar o Instituto Cooperativo de Ensino, que funciona anexo ao Restaurante Central dos Estudantes; que

isso ocorreu tem 6 meses; que a princípio Edson Luiz não dormia no local; que em fins de dezembro passou a

dormir no local; que assistiu várias vezes os líderes dos estudantes frequentadores do restaurante expulsarem

Page 62: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

200

de Janeiro estudar em busca de “um lugar” dentro da sociedade, como afirma Langland656

.

Por isso, a imagem de inocência levantada pela brasilianista exprime esse caso. Além disso, a

morte de um estudante foi um fator “novo” naquele momento histórico, em 1968, que passou

a ser muito bem utilizado pelos estudantes que se encontravam organizados nacionalmente,

naquele momento e nos posteriores.

Langland ainda ressalta a importante cobertura jornalística657

da morte do estudante

paraense, esquecendo de mostrar que nesse momento, as elites liberais começavam a se

colocar contra o regime instaurado quatro anos antes, e por isso a ampla divulgação da morte.

A mobilização nacional dos estudantes encontrou eco nas páginas dos jornais e revistas da

Grande Imprensa (bem como da oposicionista), o que levou o evento a ter uma grande

repercussão, tornando-o um “ponto de memória”, não somente na história do ME, como

também lembrado pela sociedade em geral. Nesse sentido, a morte de Edson Luís teve seu

significado reapropriado pelo próprio movimento, que forjou um mito658

em torno dela: o

estudante “ressurge” como um ícone da resistência estudantil.

Já Alexandre Vannucchi Leme era um militante que foi preso, torturado e morto

propositalmente pela ditadura, por lutar por ideias contrárias do regime. Sua morte foi

explorada com vistas a exaltar seu sacrifício em nome da causa comum e, nesse sentido,

tornou-se um mártir. Compartilho das reflexões de Langland, quando afirma que o ME

utilizou (também) a imagem da “inocência” e vítima, deixando de lado a militância de

esquerda de Alexandre naquele contexto. A morte do estudante de geologia foi o motivo

encontrado pelos estudantes, com ajuda da Igreja, para extrapolar as manifestações contra o

regime dos muros da universidade, num tempo em que ainda toda forma de protesto era

censurada. Serviu ainda para referenciar a luta dos estudantes, para mostrar a resistência que

eles mesmos vinham fazendo contra a ditadura, afirmando, assim, uma política simbólica que

Edson Luiz do local, sob alegação que ele ali não poderia permanecer; que Edson alegava a sua condição de

estudante e não tinha onde dormir, passando então a ser tolerada a sua presença no local (...).” (DOPS SI n.

Sp/12 em 23.04.1968. Informação APERJ. Fundo Polícia Política setor estudantil. Notação 37. p. 133). 656

“A significação simbólica da sua presença no Rio foi crucial para um ME que buscava criticar o elitismo do

sistema educativo nacional.” (LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la

memoria, cit., p. 27). 657

Ver capa da revista Manchete com o caixão de Edson Luis (abr. 1968). (Anexo XVII). 658

Segundo Raoul Girardet, o mito político pode ser encarado como uma fabulação, deformação ou ainda uma

interpretação objetivamente recusável do real. Como narração de fatos legendários, o mito político exerce uma

função explicativa, fornecendo certo número de chaves para a compreensão do presente. Um sistema de

explicação e mensagem mobilizadora. Para um aprofundamento da questão, ver: GIRARDET, Raoul. Mythes

et mythologies politiques. Paris: Seuil, 1986.

Page 63: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

201

serviria de apoio à luta política stricto sensu que continuaria a ser desenvolvida nos anos

seguintes.

Assim, com trajetórias históricas diferentes, as mortes dos estudantes passaram a ser

ressignificadas no plano da memória evocada pelo movimento. Se se levar em conta que o ato

da memória encontra seu sentido através do contexto em que ele se enuncia659

, fica mais claro

entender como e por que essas “trocas de significação” acontecem. Além disso, como reforça

Jean Duvignaud, a história não é uma construção cristalizada por um grupo estabelecido para

se defender contra a erosão permanente da mudança660

. Ela se encontra em permanente

construção, em constante adaptação.

Portanto, é possível inferir que, de fato, as ligações da imagem de Edson Luís e

Alexandre se estendem muito mais no campo da memória661

, apontando para uma estratégia

deliberada dos contemporâneos de Alexandre em utilizar o passado, com vistas a corroborar a

prática de resistência contra o regime.

A partir da construção da resistência mítica, as figuras de Alexandre Vannucchi Leme

e Honestino Guimarães662

(preso em outubro de 1973, integrou a categoria dos “desaparecidos

políticos”), que possuem semelhanças nas suas trajetórias, são ligadas a Edson Luís (apesar de

não ter sido militante) através da “lembrança”, tornando-se ambos “mártires” do movimento

estudantil. As representações construídas pelas lideranças do movimento, ao mesmo tempo

justificavam a necessidade de resistência e fortaleciam o ME, através da construção de um

imaginário no qual esses personagens ganhavam um sentido, ao mesmo tempo heróico (épico)

e religioso.

659

LAVABRE, Marie-Claire. Du poids et du choix du passe: lecture critique du “syndrome de Vichy”. In:

PESCHANSKI, Denis; POLLAK, Michael; ROUSSO, Henry (Dirs.). Histoire politique et sciences sociales.

Paris: Institut d‟Histoire du Temps Present, 1991. p. 181. (Cahiers de l‟Institut du temps Présent, n. 18). 660

DUVIGNAUD, Jean. Préface. In: HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. 2. ed. Paris: PUF, 1968.

p. XIII. 661

Compreendemos aqui que a memória se utiliza de imagens e construções simbólicas do passado, que se

encontram gravadas na nossa sensibilidade (GENSBURGER, Sarah, Les figures du juste et du résistant et

l‟évolution de la mémoire historique française de l‟occupation, cit., p. 293). Marie-Claire Lavabre sugere como

uma “norma memorial” a tendência de uma “homogenização das representações” com um significado para a

sociedade presente e fundado nos usos sociais do passado (Le fil rouge: sociologie de la mémoire communiste.

Paris, Presses de Sciences Po, 1994.) 662

Ver foto de Honestino Guimarães numa passeata, em 1968. (Anexo XVIII).

Page 64: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

202

Concordo com Marie Claire Lavabre, quando afirma que o imaginário coletivo serve

para organizar a “memória coletiva” e que ele é construído em razão da vontade de interpretar

o passado, com vistas a projetar o futuro663

. Considero que o imaginário construído pela

resistência estudantil organizada se orientou por esses propósitos: neles se inseriram os usos

políticos do passado, através da rememoração dos momentos mais importantes da luta de

resistência do ME e as homenagens comemorativas de nomes e datas relacionadas aos seus

“mártires”.

Esse foi o caso da atribuição do nome de Alexandre Vannucchi Leme ao primeiro

DCE-Livre do Brasil, em 1976, da USP. A criação de uma entidade livre das “amarras

ditatoriais” era resultado das ações e discussões ocorridas nos anos anteriores. O ato e sua

simbologia tinham como meta desafiar o sistema vigente: nesse caso, o cruzamento entre o

uso funcional e simbólico dessas representações evocava um “lugar de memória”

proporcionado pelo próprio regime, instrumentalizado pelos estudantes.

Por ocasião da realização do III ENE, em 1977, os estudantes aprovaram nas suas

resoluções a realização de um dia nacional de protesto, a ser comemorado a partir de 28 de

março de 1978, quando se completariam dez anos da morte de Edson Luis e cinco anos da

morte de Alexandre. Nesse sentido, cabe lembrar que é sempre em razão do presente e do

futuro que os mortos são ressuscitados.

Em 1978, no Rio de Janeiro, o cardeal Eugênio Sales proibiu as igrejas cariocas de

realizarem cerimônias em memória dos estudantes, alegando que elas só teriam motivação

política. No entanto, as opiniões do cardeal sobre as ações do ME não impediram que, em

assembleias e reuniões ocorridas nas Faculdades da UFRJ, UFF, UERJ, FGV, FEFIERJ e

Universidade Rural fossem feitos preparativos para o ato que aconteceria na PUC-Rio.

A UFMG celebrava também a morte do mineiro José Carlos da Mata Machado,

ocorrida no mesmo ano que a de Alexandre. As tentativas de realização de um ato público na

Faculdade de Direito foram impedidas com bombas de gás lacrimogêneo e as passeatas que

tentaram se formar foram dissolvidas com violência664

. Manifestações como essa ocorreram

663

LAVABRE, Marie-Claire, Du poids et du choix du passe: lecture critique du “syndrome de Vichy”, cit., p.

182. 664

Estudantes: nova bandeira. Revista Veja. 05 de abril de 1978. p. 26.

Page 65: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

203

ainda na UFBA, UnB, em várias universidades de Porto Alegre e no interior Rio Grande do

Sul. Na USP, durante a grande concentração na Faculdade de Medicina665

, a mãe de

Alexandre Vannucchi Leme, Eglê Maria, esteve presente no evento, lendo uma carta sua que

enviara ao papa Paulo VI, relatando a morte de seu filho.666

Victória Langland faz uma observação importante sobre o momento: as

comemorações em torno dos estudantes passaram a ressaltar outras características que, na sua

origem, não estavam ligadas à suas imagens. A imagem de “inocência” ligada a Vannucchi

Leme em 1973 passa, cinco anos depois, a ser recordada como o “viril guerreiro na luta pela

liberdade de expressão política”.667

Vê se aqui um deslocamento de sentido significativo: as imagens de Alexandre e

também de Honestino Guimarães, que refletiam a figura do “justo”, em boa medida passaram

a encarnar parte dos ideais preconizados por Che Guevara em seu texto sobre o homem novo,

como ressalta a historiadora Mariana Villaça. Segundo a autora, o ideal de homem

voluntarioso, solidário, militante disposto a qualquer sacrifício, consciente politicamente de

seu papel de cidadão, bem como ciente da importância da conscientização política do povo668

.

Nessa realocação de sentidos, Langland observa que a figura de Edson Luís também passa a

ser vista como o “defensor da democracia”.669

Os mortos aos quais o ME prestou homenagens públicas, como afirma Jörg

Echternkamp, ganham uma significação política, ao inserir o destino individual num contexto

histórico carregado de sentido. A comemoração conjunta do passado deve, então, ser

entendida como um processo político dirigido para o presente e para o futuro670

. Os mártires

665

Ver panfleto da manifestação em memória de Edson Luis e Alexandre Vannucchi Leme. (Anexo XIX). 666

Ibidem. 667

LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 59. 668

VILLAÇA, Mariana Martins, “El nombre del hombre es el pueblo”: as representações de Che Guevara na

canção latino-americana, cit., p. 2. A autora esclarece que o conceito de homem novo é amplo, flexível e

comum a muitos regimes políticos. Apesar de diferentes usos e adaptações do conceito, o ponto comum entre

as variações é a personificação deste no líder e o princípio básico da necessidade do sacrifício pela pátria. 669

LANGLAND, Victória, op. cit., p. 59. 670

ECHTERNKAMP, Jörg. Guerre totale, conflits de memoire et culte des morts em RFA pendant la guerre

froide. Vingtième Siècle: Revue d‟Histoire, n. 104, p. 101, oct./dec. 2009.

Page 66: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

204

do ME foram convertidos em símbolos nas disputas que ocorreram no campo político671

,

voltadas para a luta pela redemocratização do país.

Nesse caso, os “mártires” passaram a ser lembrados como figuras que deram suas

vidas em nome de uma causa, o que nessas condições serviria de componente na construção

da identidade e reorganização do movimento, além de importância para a resistência contra o

regime. As características identificadas nos estudantes transcendem suas mortes, através do

“exemplo a ser seguido”.

O fato mostra, enfim, o quanto o uso político do passado é maleável. A comemoração

do “culto aos mortos” constitui uma representação do passado que foi repetida ano após ano e

cada vez com significado diferente.

A instrumentalização e a cristalização da figura de Honestino Guimarães como

“presidente eterno” da UNE teve como momento “chave” o congresso no qual a entidade foi

reconstruída. Na mesa de abertura, a cadeira central da “presidência” foi deixada vazia, e uma

grande foto de Honestino era colocada no centro dos trabalhos.672

O próprio estatuto de Honestino como presidente da UNE reflete as ambiguidades

entre história e memória. Vice-presidente eleito em 1969, passou a coordenar os trabalhos da

UNE, quando Jean Marc Von der Weid foi preso. A disputa entre as forças políticas sobre a

efetivação ou não do congresso que elegeu Honestino, em 1971, como presidente da UNE, se

esmorece frente à memória que passou a ser utilizada pelos estudantes do último presidente da

UNE antes da entidade ser reconstruída (imagem utilizada até hoje em dia).

Os discursos que se seguiram na abertura do congresso enfatizavam o “louvor aos

mártires” da militância estudantil e sua ligação com a questão democrática. Mostravam o peso

do passado da entidade e como foi realizada a “escolha” desse passado, passada aos militantes

daquele momento.

671

Como afirmou o historiador Marcelo Santos de Abreu em sua tese sobre os mártires paulistas da Revolução

Constitucionalista de 1932 (Os mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos da Revolução

Constitucionalista de 1932 (1932-1957), cit., p. 20). 672

Ver foto (Anexo XX).

Page 67: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

205

A fala do ex-presidente da UNE de 1963/1964 José Serra673

, carregada dos

simbolismos que permeam a história da entidade, enfatizou “que a memória dos que caíram se

seguirá presente. Desaparecido ou morto, Honestino Guimarães continuará sendo o nosso

companheiro de cada dia, a recordar-nos a necessidade da restauração e do aprofundamento

da democracia”.674

Referenciar Honestino como o “companheiro de cada dia” não deixava de ser uma

ligação da “dimensão épica da resistência” à realidade vivenciada, com vistas a projetar um

futuro. Como afirma Laurent Douzou675

, a resistência, antes de tudo, é uma “aventura”

individual, mas também coletiva, e suas características, como a vida clandestina, com todos os

riscos que implica esse tipo de opção, forjam a dimensão épica para o ato. Nesse caso, a

projeção da imagem de Honestino pelos próprios militantes servia de referência, de “norte”

aos novos militantes.

Victória Langland conclui que a criação e a observância de um calendário político do

próprio movimento em torno dos seus colegas assassinados serviram para sustentar, se não

para regenerar sua identidade política durante o período da repressão676

. Mas a brasilianista

ainda levanta uma questão que se torna fundamental e que vem ao encontro desta tese: ao

reapropriar-se, ano a ano, do significado dessas mortes, os estudantes mostravam uma

continuidade da resistência contra o regime militar677

. E transformaram o sacrifício num

símbolo da luta pela vitória da democracia.

4.2 O uso político do passado na reconstrução da UNE

No III ENE, diferentes propostas convergiam para a necessidade de fazer

“propaganda” da UNE. A organização que encabeçaria o processo de reconstrução da

entidade nacional deveria, segundo propostas da “Refazendo”, divulgar as lutas estudantis e

673

Ver foto do ex-presidente José Serra discursando no Congresso de Reconstrução. (Anexo XXI). 674

ROMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia, A volta da UNE: de Ibiúna a Salvador, cit., p. 47. 675

DOUZOU, Laurent, La constituition du mythe de la résistance, cit., p. 74. 676

LANGLAND, Victória, “Neste luto começa a luta”: la muerte de estudiantes y la memoria, cit., p. 62. 677

Ibidem, p. 22.

Page 68: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

206

“propagandear a criação da União Nacional dos Estudantes”678

. Em outro documento, a

proposta foi mais contundente: era preciso “divulgar e propagandear a UNE (história da UNE,

necessidade da UNE, etc.)”.679

Tornou-se assim imperativo para o movimento realizar “históricos” da entidade, a fim

de recuperar a “sua própria trajetória”. Essa reconstituição do passado acabou servindo como

eixo norteador para novas propostas que ora ressaltavam as qualidades do modelo no qual

estava pautada aquela articulação, ora o contestava, apontando os erros cometidos no passado.

O resgate da “memória” da entidade, nesse momento, serviu de respaldo para

revalorização da UNE. Serviu também como uma estratégia de definição da nova identidade

do movimento através da memória, como afirma Paul Ricoeur680

. Referenciada em Michel

Pollak681

, acredito que o trabalho de “enquadramento da memória” também pode ser realizado

por associações/entidades que visam a reconstruir sua história através da seleção de fatos e de

uma produção de discursos que possibilitem o controle da sua imagem e a projeção de sua

identidade.

Segundo o historiador espanhol Pedro Ruiz Torres, a história ocupa o centro do debate

político, principalmente no momento de formação de uma identidade nacional, e serve para

justificar as opiniões e ações mais diversas.682

Foi nesse ínterim, entre 1978 e 1979, que surgiram históricos da UNE feitos por

diferentes tendências do movimento, através de DCEs e CAs, desde folhetos, passando por

documentos de várias páginas, chegando à edição de uma revista pelo DCE/USP. Os formatos

eram diferenciados, os conteúdos tinham com ligeiros contrastes, mas todos tinham uma

678

Proposta para o 3º ENE. DCE-Livre/USP – Gestão Refazendo. [1997]. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo

CEMAP, cx. n. 41). 679

Reorganização do movimento estudantil. [1977] (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, cx. n. 39). 680

RICOEUR, Paul, La mémoire, l‟histoire, l‟oubli, cit., p. 98. 681

POLLAK, Michael, Memória e identidade social, cit., p. 9-12. 682

TORRES, Pedro Ruiz. Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions. In:

HARTOG, François; REVEL, Jacques (Dirs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de L‟École des

Hautes Études em Sciences Sociales, 2001. p. 129. (Enquête, 1).

Page 69: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

207

mesma referência: a obra O poder jovem683

, do jornalista Arthur Poerner, lançada pela

primeira vez em 1968.684

Considerada a “Bíblia” do movimento estudantil, essa obra traçava um histórico da

luta dos estudantes brasileiros. O livro é dividido em duas partes: o movimento estudantil

antes da UNE, compreendendo as lutas dos estudantes desde o período colonial, até a

república, e uma segunda parte, com a criação da UNE, em 1937. Segundo o autor, a criação

da UNE representou um “divisor de águas” na história do movimento estudantil brasileiro.

Poerner escreve uma história linear, ordenando cronologicamente os fatos e os

descrevendo de forma a enaltecer os agentes do movimento. Sua preocupação maior consiste

em exaltar o ME, reafirmando que a UNE e os estudantes são “possuidores de um projeto

nacional e progressista que, ao longo da história do país, sempre se fez presente”.685

Cabe frisar que Poerner, um militante de esquerda, publicou seu livro no auge dos

acontecimentos do ano 1968, pouco antes do endurecimento do regime. Assim que foi

assinado o Ato-5, O poder jovem foi um dos primeiros livros a ser censurado. Mas o livro foi

reeditado em 1979, no bojo de uma série de publicações que já versavam sobre o contexto

ditatorial686

. Não é interesse deste trabalho fazer uma análise da construção do O poder jovem

683

Essa obra teve sua primeira edição em 1968, estando na quinta edição, lançada em 2004, que narra os passos

do ME até os dias atuais. Trabalhei com duas edições: POERNER, Arthur José. O poder jovem: história da

participação política dos estudantes brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; e POERNER,

Arthur José. O poder jovem: história da participação política dos estudantes desde o Brasil-Colônia até o

governo Lula. 5. ed. Rio de Janeiro: Booklink, 2004. Como informação, no início dos anos de 1970 circulou

uma segunda edição clandestina, que não encontrei durante minhas pesquisas. 684

O historiador José Alberto Saldanha de Oliveira dedicou a sua tese de doutorado para tratar do “mito do poder

jovem”. Em suas conclusões, o historiador diz: “A afirmação da UNE e o relato sobre a sua trajetória ao longo

das várias gerações, em particular o construído por Arthur Poerner, foi se constituindo em um mito político. O

relato do „Poder jovem‟ muniu várias gerações de lideranças estudantis de argumentos materiais e simbólicos,

capazes de reforçar o sentimento de identidade e „pertencimento‟ a uma „idade de ouro‟. A „reconstrução‟ feita

por Poerner demonstra que o projeto histórico da UNE guarda „um modelo exemplar‟, a defesa dos interesses

„nacionais, populares e democráticos‟. Assim também agiram aqueles que pertenceram ao movimento

estudantil e a UNE das décadas de 1970 e 1980. Vivenciaram uma nova geração de estudantes, que sentiu a

censura e a repressão política do regime militar, mas também se beneficiou com as novas formas de produção

cultural da moderna mídia. [Sobre a reconstrução histórica] trataram-na com a mesma perspectiva que

fundaram a entidade nacional.” (A UNE e o mito do poder jovem. Maceió: EDUFAL, 2005. p. 106). 685

OLIVEIRA, José Alberto Saldanha de, A UNE e o mito do poder jovem, cit., p. 9. 686

Perseu Abramo ressaltou essa questão em 1978: “A tentativa de recuperação da memória nacional tem sido,

ultimamente, uma visível preocupação na produção intelectual. Como a seguir na esteira dos brazilianistas, os

brasileiros também tem procurado, com sofreguidão, contida, mas indisfarçável, fontes primárias ou

secundárias que lhes possibilitem colocar na ordem do dia a nação passada e desconhecida.” (A ponte que os

une. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah Wendel. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição

democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 204).

Foi no final da década de 70 e início da de 80 que surgiram os primeiros trabalhos sobre a conjuntura do

Page 70: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

208

687, já realizado por outros

688, mas é importante destacá-lo, uma vez que ele foi base para os

históricos que foram construídos no momento aqui estudado.

Entre os diversos textos sobre a história da UNE, destacarei três que considero

relevantes: o livro/revista689

Memorex, feita pelo DCE/USP em conjunto com Publicações

Guaraná, lançado em 1978; outra publicação do DCE/USP, que na época era dirigido pela

“Libelu”, chamada A história da UNE, de 1979; e o Caderno da UNE, organizado pelo

DCE/PUC-Rio no mandato da APML, também de 1979.

Cabe diferenciar Memorex690

das demais publicações. Primeiro, por ter sido uma

publicação com 10.000 cópias, de acordo com seus editores691

. Segundo, porque contava com

uma pesquisa documental e iconográfica692

, o que normalmente não havia em outros

históricos, mas não necessariamente com o rigor acadêmico, pois há poucas referências

regime militar, dentre eles: STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975;

DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Vozes,

1981. Ao mesmo tempo, Maria Helena Moreira Alves escreve sua tese de doutorado (Estado e oposição no

Brasil: 1964-1984, cit.), Fernando Gabeira, no retorno do exílio, publica O que é isso companheiro? (1979), e

a Editora Alfa-Ômega edita em 1979 o 5º volume da sua coleção História Imediata a: A volta da UNE: de

Ibiúna a Salvador, escrita por Luiz Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves. 687

Mas cabe destacar que, até então, nenhuma outra obra reuniu o volume documental e descritivo das ações

estudantis ao longo de sua história, podendo ser esse o “legado” de O poder jovem. Por outro lado, é claro o

viés “marxizante” da obra de Poerner, no estilo proposto por Jean Chesneaux, uma vez que aqui a atividade

intelectual passa a ser um objetivo político em si. Para Chesneaux, “a ligação entre pesquisa histórica e

reflexão política são uma criação contínua, que deve se efetuar tanto na base como na cúpula, tanto sobre lutas

pontuais como em termos de estratégia de longo prazo. (...) É preciso inserir concretamente o estudo do

passado e a reflexão histórica nas lutas populares e na estratégia revolucionária” (Qual a história para a

revolução? In: CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tabula rasa do passado? sobre a história e os

historiadores. São Paulo: Ática, 1995. p. 189). Essa não deixa de ser a proposta de Poerner, enaltecendo os

pontos de luta “revolucionária” e a história engajada socialmente. 688

OLIVEIRA, José Alberto Saldanha de, A UNE e o mito do poder jovem, cit. O livro de Poerner é ainda citado

nos trabalhos: SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Jovens, estudantes e rebeldes: a construção das memórias

estudantis. In: ENCONTRO REGIONAL SUDESTE DE HISTÓRIA ORAL, 7., 2007, Rio de Janeiro. Anais...

Rio de Janeiro, 2007; SILVA, Izabel Priscila Pimentel da. Entre heróis e inocentes: a construção das memórias

estudantis. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis (Org.). Modernidades alternativas. Rio de

Janeiro: FGV, 2008, p. 25-44. 689

Na Biblioteca da FFLCH/USP, Memorex está catalogado como um livro. 690

O nome completo existente na capa da revista era: Apesar de tudo – UNE Revista Memorex: elementos para

uma história da UNE. 691

Em poucos dias a revista entrou em circulação e, em menos de dois meses, sua tiragem de 10 000 exemplares

havia se esgotado (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO, Marianna. Rememorex: uma rebeldia necessária.

Disponível em: <http://sejarealistapecaoimpossivel.blogspot.com/2007/09/rememorex-uma-rebeldia-necessria-

por.html>. Acesso em: 05 out. 2009). 692

“Pela primeira vez, esses universitários e secundaristas frequentaram a Biblioteca Mário de Andrade de São

Paulo e, depois, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e compreenderam na prática a diferença entre fontes

primárias e fontes secundárias numa pesquisa. Pela primeira vez, o estudo da história foi vivenciado por

aqueles estudantes como um processo de descoberta e elaboração de fontes documentais e não apenas digestão

de trabalhos interpretativos ou de pesquisa realizados por outros.” (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO,

Marianna,op. cit.).

Page 71: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

209

bibliográficas e os textos são colocados sem as devidas referências e sem numeração de

páginas, o que atesta o caráter experimental do trabalho.

Memorex também pode ser vista como a produção de uma história com uma

singularidade militante, como assinala Michel Pigenet693

, uma vez que, nesse caso, a

prioridade não estava centrada na escrita de um histórico com ponto de vista científico, mas

sim para que servisse a uma causa: a dos estudantes.

A publicação foi resenhada por Perseu Abramo no jornal Folha de S. Paulo. O

resenhista destacou o objetivo da publicação: ela se propunha a “reconstruir, no plano

histórico, a maior entidade estudantil com evidente e louvável intuito de também reconstruí-la

no plano jurídico e prático”694

. A resenha de Abramo termina abordando o mérito duplo da

publicação, política e pedagógica, no sentido de recolocar para a “consciência nacional a

necessidade de abrir e ampliar os espaços políticos, as liberdades democráticas e,

principalmente, os direitos de reunião e expressão, de manifestação e de organização”.695

Memorex, como também os demais relatos históricos da UNE, visavam à reconstrução

de um passado de luta para legitimar a reconstrução da entidade que, segundo os militantes da

época, era fundamental para ampliar e solidificar a luta contra o regime. Nesse caso, o peso da

história se prestava à sustentação de uma conduta política.696

O próprio nome da publicação Memorex indica um caminho. A “memória” do

movimento retransmitida servia como instrumento para justificar a força política da UNE,

representando, assim, um capital de poder697

a ser utilizado pelos estudantes.

693

PIGENET, Michel. L‟Institut CGT d‟Histoire Sociale (1982-2002): entre exigences historiennes, impératifs

d‟organisation et démarche identitaire. In: ANDRIEU, Claire; TARTAKOWSKY, Danielle; LAVABRE,

Marie-Claire. Politique du passé: usages politiques du passé dans la France contemporaine. (Collection Le

Temps de l‟Histoire). Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence, 2006. p. 241-251. 694

ABRAMO, Perseu, A ponte que os une, cit., p. 205. 695

Ibidem, mesma página. 696

Valérie Rosoux trabalha sobre a questão do peso do passado e a instrumentalização (ou o fardo?) da memória

na construção da política estrangeira na França (Les usages du passé dans la politique étrangère de la France.

ANDRIEU, Claire. TARTAKOWSKY, Danielle. LAVABRE, Marie-Claire. Politique du passé: usages

politiques du passé dans la France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence,

2006. p. 171-181. (Collection Le Temps de l‟Histoire)). 697

TARTAKOWSKY, Danielle; LAVABRE, Marie-Claire. Introduction. In: ANDRIEU, Claire.

TARTAKOWSKY, Danielle. LAVABRE, Marie-Claire. Politique du passé: usages politiques du passé dans la

France contemporaine. Aix-en-Provence: Publications de l‟Université de Provence, 2006. p. 193. (Collection

Le Temps de l‟Histoire).

Page 72: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

210

Mais do que a simples utilização do passado, esses históricos eram permeados por

discursos que se orientavam a partir da visão dos estudantes-militantes sobre o presente. Já na

abertura do texto, Memorex deixa transparecer o “olhar” sobre a universidade: seus autores

incorporaram o conceito de universidade formulado pelo isebiano Álvaro Vieira Pinto, que

afirma:

“Universidade é uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe

dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico,

sobre a totalidade do país. Se tal é a essência da universidade, desde logo se

vê que o problema de sua reforma é político e não pedagógico.”698

A ideia de dominação exposta claramente na definição do conceito é bem aceita pelos

estudantes porque justifica a sua luta política contra a reforma universitária proposta pelo

governo.

Em suma, a reconstituição do passado pela representação estudantil resultou na

construção de uma “história oficial da UNE” que não só legitimava a linha de atuação do ME,

mas também servia como contraponto à história oficial do regime.

Nessa reconstituição, há várias versões sobre o “nascimento” das movimentações

estudantis no Brasil:

Alguns trabalhos apresentam o período anterior da criação da UNE, como no

documento “Movimento Estudantil no Brasil”, que destaca a “atuação coletiva” no

movimento, desde a passagem do Segundo Império para a Primeira República.699

Outros se referem a um começo desconhecido, afirmando: “A história das lutas

dos estudantes é antiga, ninguém sabe ao certo como ela começou, mas a crônica

histórica relata a participação dos estudantes em movimentos sociais por várias

ocasiões, algumas das quais muito importantes. Já em 1835...”700

Mas boa parte dos históricos apontam a fundação da UNE em agosto de 1937, a

partir do Conselho Nacional de Estudantes (CNE), realizado na Casa do Estudante

do Brasil (CEB), baseados na leitura de Poerner;

698

PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. Rio de Janeiro: Editora Universitária; UNE, 1962, apud

MEMOREX: elementos para uma história da UNE. São Paulo: Edições Guaraná, 1978. 699

Movimento Estudantil no Brasil. Assinado pela equipe: Juvenal, Leila, Miguel, Rosamaria, Tereza, R.

[1978]? (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 125). 700

Documento de 43 páginas, [1978]? (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 123).

Page 73: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

211

Há os que se referem à “formação da verdadeira UNE”701

no Congresso de 1938.

Para outros, a UNE surgiu quando se deu a separação da CEB, em 1940.702

Já o DCE da PUC-Rio apresenta uma versão diferente da de Poerner, com a qual

concordo (e essa concordância já foi explicitada na minha dissertação de

mestrado), ou seja, de que no primeiro Conselho Nacional de Estudantes realizado

em 1937, os temas políticos foram proibidos e, em 1938, “as novas resoluções,

inclusive sua diretoria já caracterizavam um novo órgão estudantil – que no 2º

Congresso [1938] se chamaria UNE”703

. De fato a primeira vez que aparece

cunhado o termo UNE foi no Congresso de 1938.704

O histórico feito pelo DCE/USP em 1979, chamado A história da UNE, trouxe uma

passagem importante para o contexto vivido pelos jovens do fim dos anos de 1970. Segundo o

texto publicado: “A proposta aprovada no 2º Congresso [da UNE], com delegados eleitos

democraticamente buscava ampliar e democratizar a participação do conjunto dos

estudantes”705

(grifo meu). Lutar pela ampliação dos canais democráticos era a meta principal

do movimento durante a década de 1970. Evidenciar a possibilidade de “eleger” os seus

representantes significava, então, mostrar a busca pela democracia que era empreendida nas

lutas travadas durante o período.

O controle das entidades estudantis decretado pelo regime levou os estudantes a

enfatizarem o nascimento da UNE a partir de “um decreto presidencial” (de Vargas),

interpretado como “tentativa de se ter um controle do ME”, como foi descrito no histórico do

DCE/USP de 1979. No entanto, a criação da UNE foi demandada pela própria entidade e

701

MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 702

Movimento Estudantil no Brasil. Assinado pela equipe: Juvenal, Leila, Miguel, Rosamaria, Tereza, R. [1978]

(Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra cx. n. 125). 703

Caderno da UNE-79, DCE-PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3). 704

As assembleias realizadas [no Congresso de 1938] resultaram num documento final intitulado “Plano de

sugestões para reforma educacional aprovado no 2º Congresso Nacional de Estudantes”. Além de apontar

soluções para o problema educacional e para a própria organização da universidade, o plano apresentava os

seguintes pontos sobre a UNE: “1- O 2º Congresso Nacional de Estudantes reconhece como entidade máxima

da classe estudantil a União Nacional dos Estudantes, que é representada pelo Conselho Nacional de

Estudantes e pela Casa do Estudante do Brasil (sede e secretaria da UNE); 2- A União Nacional dos Estudantes

terá como função defender os direitos e as aspirações de todos os estudantes, na base de um programa

constituído pelo presente plano educacional e reivindicativo; 3- A UNE deverá ser oficialmente reconhecida,

tendo, entretanto, garantida a sua completa autonomia educacional e administrativa.” (POERNER, Arthur José,

O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, cit., p 322 e 325; MÜLLER,

Angélica, Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação da UNE

durante o Estado Novo, cit., p. 39-40). 705

A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026- 1.1).

Page 74: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

212

ocorreu por ocasião do 3º Congresso da associação estudantil, em 1939. Foi encaminhado ao

presidente Getúlio Vargas um ofício em papel timbrado da UNE e assinado pelas principais

lideranças da entidade706

. O documento mostra que as relações entre a entidade e o governo

eram ambiguamente cordiais. Mas a leitura do passado feita pelos estudantes em 1979 tinha

como meta frisar o quão controlador era o Estado no presente e no passado.

Como afirma Pedro Torres707

, toda história é filha de seu tempo e a conjuntura política

do momento interfere naquilo que é produzido. Certamente foi a partir da vivência da

repressão sob o autoritarismo dos “anos de chumbo” que se leu o surgimento da UNE

relacionado ao autoritarismo do Estado Novo.

Memorex coloca ênfase no autoritarismo do regime instituído em 10 de novembro de

1937. Em meia página, fica ressaltada essa experiência, através de cinco itens: 1) fechado o

Congresso Nacional; 2) criada a censura à imprensa, rádio, teatro, cinema, etc.; 3) fim das

liberdades sindicais; 4) fim das garantias individuais; 5) fim das liberdades democráticas

(grifo meu).

A versão de um Estado autoritário no passado se prestava à justificativa e à

legitimação da luta contra a ditadura do presente. Retratar o passado para reforçar as posições

defendidas no presente não deixa de ser um dos intuitos de todo ato mnemônico. Além disso,

a relação passado/presente também tinha como finalidade projetar o futuro.

706

O conteúdo do documento era o seguinte: “Considerando que se acha organizada a União Nacional de

Estudantes do Brasil, fundada no 2º Congresso Nacional de Estudantes, realizado nesta capital de 5 a 21 de

dezembro de ano de 1938; considerando que a quase totalidade das organizações estudantis se acham

agrupadas harmonicamente nesta entidade, pleiteia junto à V. Excia. o seguinte: O reconhecimento da União

Nacional de Estudantes do Brasil como a entidade oficial dos estudantes brasileiros, órgão da classe estudantil

do país.” (Arquivo GC 38.04.18 série g, r. 52 fot 416. CPDOC/FGV). A partir desse documento, pode-se

verificar que é a própria entidade que vai pedir seu reconhecimento ao governo. Portanto, não foi uma criação

do governo Vargas. Mas, sem dúvida, o Estado contribuiu para formação da UNE e sua sustentação. O que fica

claro aqui é que a UNE, uma entidade autônoma, caminha em direção ao Estado, em busca da sua

consideração, aquilo que Ferreira e Delgado chamam de “cultura estatista” (FERREIRA, Jorge; DELGADO,

Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil republicano: o tempo do nacional-estatismo – do início da década

de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 2, p. 9). Em 11 de

fevereiro de 1942, foi publicado o Decreto-Lei n. 4.105, que reconhece a União Nacional dos Estudantes como

entidade coordenadora dos corpos discentes dos estabelecimentos de ensino superior. Maiores informações em:

MÜLLER, Angélica, Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação

da UNE durante o Estado Novo, cit., p. 61-66. 707

TORRES, Pedro Ruiz, Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions, cit.,

p. 131.

Page 75: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

213

Outro excerto extraído de um discurso de representante da UNE publicado no Correio

da Manhã, de março de 1944, ilustra bem esta questão. O orador afirmou: “Nós sabemos que

não temos liberdade e que nesta longa noite de fascismo apenas uma réstia de luz ilumina um

caminho longo a percorrer. Sabemos que não haverá democracia enquanto não morrer o

monstrengo político chamado Estado Novo (...).”

A linha de continuidade entre passado e presente, ou, como sugeriu Marc Bloch, a

interpenetração entre os dois tempos708

, ignora o interregno de experiência democrática que

ocorreu entre 1946 e 1964. Na escrita da história, essa linha contínua é acentuada, para que o

passado possa ser associado ao presente. Nesse caso, é possível afirmar, na linha de

interpretação de François Bédarida, que “presente e passado são, então, religados

dialeticamente, cada um dando e recebendo o sentido do outro”.709

Com essa longa exposição sobre a “releitura do passado” feita pelos estudantes dos

anos 1970, espero ter deixado clara minha discordância da leitura feita por Poerner e seus

seguidores. Discordo também do autor, incorporado em Memorex, quando se refere à criação

da Juventude Brasileira710

. Na releitura do passado feita pelos estudantes, consta a afirmação:

“Desde há muito, o regime do Estado Novo alimentava o sonho de criar uma espécie de

juventude „balilla‟ de Mussolini. No dia 1º de abril de 1943 uma portaria do ministro da

Educação institui a Juventude Brasileira”711

. Já no histórico do DCE/USP de 1979 se lê:

“Diante da agitação cada vez maior realizada pela UNE, Getúlio cria a Juventude

Brasileira.”712

Poerner ignora o fato de que a Juventude Brasileira (JB) fora constituída em março de

1940713

. Foi somente quando as duas entidades “se encontraram” em 1943, devido à decisão

708

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 65. 709

BÉDARIDA, François. Le temps présent et l‟historiographie contemporaine. Vingtième Siècle: Révue d‟

Histoire, n. 69, p. 157, jan./mars 2001. 710

Para maiores detalhes sobre a Juventude Brasileira, consultar: BOMENY, Helena Maria Bousquet. Três

decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce C. (Org.)

Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 137-166. BOMENY, Helena Maria Bousquet.

Contenção de mulheres, mobilização dos jovens. In: SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena Maria

Bousquet; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo:

EDUSP, 1984. (Coleção Estudos Brasileiros, v. 81). 711

MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 712

A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme – USP 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 713

Através do Decreto-Lei n. 2.072, aprovado em 02.03.1940.

Page 76: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

214

do ministro da Educação de colocar a JB no mesmo prédio da UNE714

, que a entidade

estudantil passou a se pronunciar contra a Juventude. Com isso, Poerner considera a criação

da JB apenas a partir desse momento.

Sobre o episódio da JB e UNE, sucederam-se inúmeras discussões e Hélio de

Almeida, presidente da UNE em 1943, renunciou seu cargo. O grande ganho político e o

legado a ser passado para as futuras gerações foi que a renúncia de Hélio de Almeida revogou

a portaria ministerial e, segundo A história da UNE, “levou o governo a voltar atrás em sua

frustrada decisão de esvaziar e destruir a UNE”.715

Assim, podemos demonstrar que o exemplo exposto acima procurava também mostrar

a importância das ações realizadas pelo movimento na busca de mudar possíveis atos

impostos pelos governantes. Mostra também a rebeldia combativa do jovem, que deveria ser

resguarda e ser recriada em momentos em que a entidade deveria mostrar sua “força”.

As lutas empreendidas pelos estudantes, encampadas pela UNE, que começaram

contra o nazi-fascimo e, no final do Estado Novo, contra o próprio regime, passam a ser

interpretadas como os “marcos” iniciais da atuação estudantil como movimento social.

Segundo o Caderno da UNE de 1979: “Os estudantes assumiam, publicamente, a posição de

vanguardeiros das manifestações de rua e dos movimentos de massa anti-fascistas (...).”716

. Na

verdade, esse é o “marco inicial” da atuação do movimento estudantil organizado indicado

por Poerner (demonstrando que os estudantes se basearam nas análises desse autor). Esse

“marco inicial” é normalmente rememorado por gerações de estudantes e está presente nos

históricos da entidade.

A luta contra o regime ditatorial de Vargas é mostrada, em Memorex, através de fotos

com cartazes “abaixo a ditadura”, dizeres sobre a “anistia ampla e irrestrita” e “por liberdades

democráticas” reivindicadas por estudantes no fim do Estado Novo. Relembrar esses fatos

tinha fundamental importância para os estudantes da década de 1970 que realizaram a

publicação. Mais uma vez, passado, presente e futuro estão articulados conjuntamente.

714

Para aprofundamento do assunto, ver: MÜLLER, Angélica. Um encontro na diversidade: UNE e Juventude

Brasileira atreladas. In: Entre o Estado e a sociedade: a política de juventude de Vargas e a fundação e atuação

da UNE durante o Estado Novo. 2005. Dissertação (Mestrado em História) Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. p. 76-85. 715

A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026- 1.1). 716

Caderno da UNE-79 DCE/PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3).

Page 77: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

215

Os históricos sobre a UNE mostram também como se formou o antivarguismo através

da União Democrática Nacional (UDN) e ainda a crítica dos estudantes ao posicionamento do

PCB, cujo líder Luis Carlos Prestes pregava a “constituinte com Getúlio”717

. Apesar de não

serem bem evidenciadas as diferenças políticas daquela coligação que juntou grupos liberais e

grupos de esquerda, o importante era mostrar que a UNE tinha encampado a luta contra o

Estado Novo. Também na luta por “liberdades democráticas” do final dos anos 1970, houve

união entre liberais e grupos de esquerda.

Apesar das diferentes visões sobre como se deveria proceder em relação à abertura

democrática e como deveria ser a nova estrutura da entidade que voltaria à cena política, o

importante a salientar é que os estudantes, em sua grande maioria, estavam de acordo quanto à

importância da reconstrução da UNE e da derrubada do regime.

Voltando ao passado, ou melhor, ao período posterior a 1945, quando os partidos

políticos retomaram suas atuações em âmbito nacional, a disputa pela hegemonia do controle

da UNE também se evidenciou; as atividades políticas do grupo vinculado à UDN, que

continuava encabeçando a entidade até 1947, passaram a ser desconsideradas por aqueles que

estavam reescrevendo a história da entidade em 1979, provavelmente com o intuito de não

reforçar as realizações daquelas gestões. A história da UNE e o Caderno da UNE nem

remetem ao período pós-redemocratização da década de 1940. Memorex o menciona

rapidamente e num único parágrafo:

“Com o fim da ditadura, em 1945, a UNE sofreu até 1947 um relativo

esvaziamento político, suas atividades nesse período ganham assim um tom

assistencialista. (...) Fase esta senão de moderação política, pelo menos de

ausência de bandeiras capazes de mobilizar nacionalmente os estudantes.

Todavia, registra-se neste período o aparecimento de restaurantes e entidades

estudantis, bem como a criação do balé da UNE e a reorganização do Teatro

da UNE, dirigido por Sérgio Cardoso.”718

Negar as movimentações dos estudantes nessa época e a ênfase no “esvaziamento

político” do movimento significa, no meu entender, uma forma de manipulação do passado e

seu uso político, através do uso seletivo das lembranças. Como afirma Paul Ricoeur: “É

justamente a função seletiva da narração que oferece à manipulação a ocasião e os meios de

717

A referência ao PCB aparece somente no histórico de 1979. A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi

Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 718

MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit.

Page 78: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

216

um subterfúgio astucioso que consiste numa estratégia tanto de esquecimento quanto de

rememoração”719

. Nesse caso, o uso pragmático do passado reconfigura a importância dos

fatos, levando a um “silenciamento” de determinados momentos, que se justificavam

necessários naquele presente, aquilo que Ricoeur chama de “apagamento de traços”.720

No interregno socialista (1947-1949), a UNE se destacou por ter feito “uma das

maiores campanhas de opinião pública”721

, a do “Petróleo é nosso”.722

Todos os históricos não esquecem de evidenciar a primeira invasão policial da sede da

UNE ocorrida nesse período. Lembrar esse fato era importante para uma entidade que teve

sua sede depredada e incendiada logo após o golpe civil-militar de 1964.

A instrumentalização do passado é corroborada de maneira mais intensa com a

campanha da UDN contra o governo Vargas em 1950. Os históricos identificam o “período

negro” da UNE (termo cunhado por Poerner) entre 1950 e 1956: o movimento vivia um

momento de grande polarização entre “direita e esquerda”, tendo “a direita” hegemonia na

entidade estudantil.

Esse grupo, que se intitulava como liberal na época, identificava-se com a UDN, e era

liderado pelo estudante de engenharia Paulo Egydio Martins, um udenista, que era presidente

da União Metropolitana de Estudantes do Rio de Janeiro. Cabe lembrar que, em fins dos anos

1970, Paulo Egydio foi governador do Estado de São Paulo e responsável pela invasão da

PUC-SP em 1977, como mostrei anteriormente.

Os autores das referidas publicações, sempre baseados em Arthur Poerner, fizeram

referência ao período do início dos anos 1950 como uma época que “não apresenta nada de

excepcional que mereça registro”. As menções são tão restritas que nem mesmo os nomes dos

presidentes das gestões subsequentes à de Olavo Jardim Campos, o primeiro do campo

“direitista”, são mencionados.

719

RICOEUR, Paul, La mémoire, l‟histoire, l‟oubli, cit., p. 103. 720

Ibidem, p. 579. 721

Caderno da UNE-79 DCE/PUC-RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3) 722

A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1)

Page 79: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

217

Cabe destacar que as duas primeiras gestões da UNE nesse período foram críticas ao

governo de Getúlio Vargas porque eram udenistas. No entanto, apesar da UDN ter sido

contrária ao monopólio do petróleo pelo Estado, a UNE, pela força dos Centros Acadêmicos e

Uniões Estaduais, teve que empunhar a bandeira do “Petróleo é nosso”.

Memorex não aborda extensamente esse período. As três páginas da publicação

dedicadas a esse contexto, entretanto, descrevem apenas as atividades internacionais que a

UNE realizou, assim como seu desligamento da União Internacional de Estudantes (UIE),

uma entidade de coloração comunista.

Apenas duas fotos, uma de Vargas recebendo estudantes, e outra foto, de página

inteira, do enterro do presidente, em agosto de 1954, mostrando milhares de pessoas no Aterro

do Flamengo, ilustram o período.

Nota-se que em certas circunstâncias, e de acordo com os objetivos políticos dos que

editavam o livro/revista, certos aspectos do passado varguista deveriam ser omitidos. No

momento de luta contra a ditadura, mais valia mostrar o apoio popular garantido a Getúlio na

vigência do regime democrático (1951-1954) e sua luta contra liberais golpistas do que

mostrar a posição que oficialmente a UNE tomou contra seu governo, posicionando-se ao

lado dos inimigos de Vargas.

Jérôme Baschet723

, ao refletir sobre a volta ao passado, mostra que ela também permite

avaliar os erros e detectar impasses. O conhecimento do passado, segundo o autor, permite se

separar dele para evitar novamente tornar-se sua “vítima”. Acredita que a reconstrução do

passado serve também para uma reflexão em busca de novas diretrizes a serem traçadas e

realizadas.

Nesse sentido, seria mais coerente com a conjuntura do final da década de 1970 os

estudantes apresentarem o apoio popular ao regime democrático, e ao seu chefe (Vargas), do

que mostrar uma UNE que agia contra esse governo, portanto contra as reformas nacionalistas

propostas para o período.

723

BASCHET, Jérôme. L‟histoire face au present perpetual: quelques remarques sur a relation passé/future. In:

HARTOG, François; REVEL, Jacques (Dirs.). Les usages politiques du passé. Paris: Éditions de L‟École des

Hautes Études em Sciences Sociales, 2001. p. 55-74. (Enquête, 1).

Page 80: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

218

Propor uma análise do passado interpenetrado pela conjuntura política do presente

constituía, de certa maneira, a procura por uma tática política que pudesse inviabilizar o

projeto da ditadura, o que significava interferir na história que estava se desenrolando. Pedro

Torres724

observa que o desaparecimento ou o enfraquecimento de várias memórias em

benefício de uma só é resultante de uma luta política por manter a hegemonia de certos grupos

sociais sobre outros.

A luta política, neste caso, era travada no plano teórico. Se o regime bania as

liberdades de expressão e organização, o correto seria tentar suplantar essa barreira. Uma

publicação que não dispunha de liberdade para falar do presente, voltava-se para o passado,

projetando-o na atualidade e no futuro.

Na segunda metade dos anos 1950, os “estudantes democráticos recuperam a UNE”725

,

desencadeando campanhas contra as empresas multinacionais, em prol da indústria nacional.

Mas, sem dúvida, a “idade de ouro”726

do ME está centrada no início da década de

1960, com a ascensão da juventude católica e a gestão de Aldo Arantes (1961/1962) frente à

UNE. Os seminários sobre reforma universitária, a “célebre” greve por 1/3 de representantes

nos órgãos colegiados, a UNE-Volante727

são lembrados como os momentos mais pujantes da

história da entidade.

É visível a ênfase na figura de Aldo Arantes no histórico do DCE/PUC-Rio,

provavelmente porque antes de ser presidente da UNE, Aldo foi presidente desse DCE em

1959728

. Além disso, foi neste período do início dos anos de 1960 que muitos dos militantes

da JUC fundaram a AP (dentre eles Arantes), sendo destacada a militância da PUC-Rio. Bom

motivo para os militantes da APML de fins dos anos de 1970 darem destaque aos seus

“grandes personagens”.

724

TORRES, Pedro Ruiz, Les usages politiques de l‟histoire en Espagne: formes, limites et contradictions, cit.,

p. 133-135. 725

Caderno da UNE-79 DCE PUC RJ, 1979 (Arquivo MME 007-3.3). 726

GIRARDET, Raoul, Mythes et mythologies politiques, cit., p. 97-137. 727

Caravana que atravessou o Brasil nas universidades, nas quais diretores da UNE realizavam seminários sobre

os pontos da reforma universitária e ocorriam apresentações do CPC. 728

Ofício do DCE/PUC-Rio, informando posse de diretoria em 22.12.1959 (Arquivo MME 009-2).

Page 81: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

219

Tanto o histórico do DCE/USP de 1979, quanto o da PUC-Rio, ao citarem Aldo

Arantes, mencionavam que ele estava preso em São Paulo (assim como fizeram com outros

nomes que se encontravam na mesma situação). Se a utilização do passado ajudava a alicerçar

a organização da entidade rumo ao futuro, a denúncia das prisões servia para evidenciar as

agruras do presente. A articulação dos três tempos (passado, presente e futuro) funcionava

como uma arma política dos estudantes na resistência contra o regime.

Prosseguindo, os históricos da USP dão destaque à criação do CPC e sua experiência.

Memorex lhe destina 16 páginas: mostra as origens do CPC no Teatro de Arena, aborda o

conceito de cultura popular e ainda traz uma entrevista com o dramaturgo João das Neves.

Nas cartas-programas729

para a eleição da primeira diretoria da UNE reconstruída

(1979), a área cultural não se destacava. Na maior parte dos casos, mostravam que ela deveria

ser construída, começando pelo mapeamento das atividades culturais já em curso nas

universidades. Mas davam ênfase à atuação do CPC na década de 1960 como algo a ser

revisitado e adaptado à atualidade. Até mesmo porque a “arte com função revolucionária” foi

mote para a atuação do movimento na primeira metade da década. Assim, aprofundar o

conhecimento teórico e prático do CPC significava dar subsídio para a política cultural que

poderia ser encampada pela entidade no futuro próximo.

Memorex mostra ainda o papel que a UNE desempenhou na posse de João Goulart na

Presidência da República, publicando uma nota da entidade na época. No final, em letras

maiúsculas estava destacado: “A CONSTITUIÇÃO DEVE SER DEFENDIDA! POVO E

ESTUDANTES UNIDOS PELA CONSTITUIÇÃO! UNIDOS PELA LEGALIDADE!”730

.

Lembramos que a tendência “Liberdade e Luta” foi a primeira força a defender a assembleia

constituinte, em oposição à “Refazendo”, que não a apoiava. Destacar a luta pela defesa da

Constituição continuava a ser, para aqueles estudantes, uma bandeira a ser defendida pelo

movimento. Não por acaso, o Caderno da UNE do DCE/PUC-Rio, que era apoiado pela

APML carioca, não fez menção à questão.

729

UNE – Liberdade e Luta (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 122); Unidade

na reconstrução da UNE. (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra, cx. n. 123);

Anteprojeto de programa para UNE, jul. 1979 (Arquivo CEDEM/UNESP, Fundo CEMAP, Livraria Palavra,

cx. n. 37); UNE: pontos para discussão. DCE/UFBA (Arquivo Promemeu/UnB AE 5512 – VIII). 730

MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit.

Page 82: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

220

O golpe militar, ainda tratado como “revolução” por Memorex “uma revolução de

muitos donos e modestos propósitos” – mostra a escalada do regime. Os históricos da USP

retrataram o incêndio da sede da UNE e a promulgação da Lei Suplicy de Lacerda, que

colocaria as entidades estudantis na ilegalidade. A UNE estava oficialmente extinta.

Memorex traz também reportagens do próprio ano de 1964, mostrando a

movimentação dos estudantes que se diziam dispostos a não aceitarem a “tutela” do Estado,

frisando que a entidade não deixaria de ser uma “verdadeira agremiação representativa do

pensamento estudantil”731

. Até 1968, as referências às ações da entidade, em sua grande

maioria, são extraídas de jornais que mencionavam a resistência dos estudantes, evidenciando,

por exemplo, os congressos clandestinos realizados com sucesso.

Nessa conjuntura, seria importante evidenciar uma memória de resistência apresentada

pelos estudantes contra o regime instaurado que, segundo François Hartog, funciona como um

instrumento do presentismo, na medida que se faz necessário reter do passado aquilo que

preparará o futuro que se quer732

. A resistência apresentada serviria para legitimar as lutas

encampadas, não só contra o fim do próprio regime, mas também pelo ressurgimento da

entidade nacional dos estudantes.

Concordo com a ideia de Jeanne Marie Gagnebin sobre a rememoração, quando

afirma que não se trata somente de não esquecer o passado, mas também de agir sobre o

presente.733

O ano “mítico” de 1968 é rememorado por Memorex através da morte “e ressurreição”

do estudante Edson Luís, “um menino pobre do interior brasileiro, decidido a construir, a

qualquer preço, seu próprio destino”. O livro/revista traz um longo artigo que, segundo as

referências, fora retirado do jornal Correio da Manhã, que conta a “saga” do jovem que

tentava sobreviver em meio às dificuldades sociais apresentadas no país. Mostra também que

a morte de um estudante levou a uma tomada de consciência do povo, que passou a “repudiar

o poder militar”, seu opressor.

731

MEMOREX: elementos para uma história da UNE, cit. 732

HARTOG, François, Regimes d‟historicité: présentisme et expériences du temps, cit., p. 138. 733

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 55.

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221

O 30º Congresso de Ibiúna tratado em Memorex se restringe à reprodução de um

trecho de uma reportagem da Folha de S. Paulo que evidencia a prisão de todos os estudantes,

acompanhada de uma grande foto de estudantes presos. Já A história da UNE, que trata o

período de um ponto de vista um pouco mais crítico, demonstra que “o grande saldo desse

Congresso foi o fato de ter possibilitado que fossem criticadas e reformuladas muitas das

posições anteriormente defendidas pelo ME”.734

A ebulição das movimentações estudantis em todo país, não somente no ano de 1968,

se caracterizavam por diferentes posições ideológicas, que confluíam apenas no desejo de

término da ditadura.735

O Caderno da UNE do DCE/PUC-Rio se refere à repressão ao Congresso de Ibiúna,

mostra a “passeata dos cem mil” e termina seu histórico fazendo referência às prisões,

assassinatos e desaparecimento de estudantes. Depois da referência a 1968, Memorex dá um

salto no tempo e termina seu “histórico” dedicando as últimas páginas a fotografias que

mostram muito provavelmente (pois não existem as referências) as grandes passeatas

realizadas em 1977, nas quais estudantes nas ruas carregavam faixas com os dizeres “pela

anistia ampla” e “pelas liberdades democráticas”.736

Mas A história da UNE continua sua narrativa com o que chamou de “terceiro período

1970-1979”. Passando do “terror cultural” à crítica da não validade do 31º Congresso (de

1971), o documento mostra a “recomposição do ME no período mais duro do regime. Alguns

fatos foram selecionados em detrimento de outros, mas o ponto culminante foi a “nova

explosão” do movimento, com o assassinato do estudante Alexandre Vannucchi Leme.

Mostra ainda o avanço das formas de lutas, a greve da ECA e a importância da reestruturação

do DCE/USP naquele contexto.

734

A história da UNE. DCE Alexandre Vannucchi Leme/USP, 1979 (Arquivo MME 026-1.1). 735

MÜLLER, Angélica. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores. In: FICO, Carlos;

ARAÚJO, Maria Paula. (Org.). 1968 - 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010. p.

76. 736

Segundo editores da publicação, refletindo sobre a mesma 30 anos depois: “O período compreendido entre o

Congresso de Ibiúna e 1978 não foi nosso objeto de pesquisa, em parte porque não nos encontrávamos muito

afastados dele. E também porque a ação dos dirigentes da UNE na dura condição de clandestinidade impedia

que se produzissem muitos documentos oficiais escritos e no momento em que realizamos nosso trabalho seria

quase impossível tentar resgatá-los.” (PINTO, Ary Costa; MONTEIRO, Marianna. Rememorex: uma rebeldia

necessária, cit.).

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222

A validade das conquistas de 1977 foi salientada pelo grupo: “Os estudantes, enquanto

o setor social que conseguiu reorganizar-se mais rapidamente, estavam descontentes com o

péssimo nível de ensino, com a queda geral do nível de vida, com a falta de liberdade e a

repressão existente no país”. Esse seria o passo para, em 1978, o movimento social dar um

“salto precioso”, com as greves operárias.

O final do documento traz a concepção da conjuntura política daquele grupo de

estudantes que acreditavam que o “regime estava se isolando cada vez mais”. Terminam

mostrando a importância da recriação da entidade: “A UNE teria um grande significado para

fazer avançar essa unificação nacional e um papel de relevo na luta oposicionista”.

Apresentar um histórico da UNE significava evidenciar que ela ressurgia com um

passado que legitimava sua volta. A narrativa dava ênfase à “experiência coletiva”, que teve

sua trajetória oficialmente interrompida, apesar da continuidade de atividades do movimento.

Como bem constata Lucília Neves Delgado, a narrativa como fonte para construção do

conhecimento histórico tem um potencial inesgotável, pois é também instrumento de retenção

do passado e, por consequência, suporte do olhar da memória.737

Mais do que reconstruir o passado com os olhares do presente, esses históricos

serviram para legitimar o retorno da entidade nacional, com o intuito de projetar não somente

o seu futuro, mas também o futuro do país. Mas, sem dúvida, as experiências dos tempos se

interpenetraram, com vistas a “iluminar o presente”738

que estava sendo vivido.

Como afirma Bruno Groppo, as guerras da memória têm por aposta real o futuro, ou

seja, a definição do tipo de sociedade que se deseja construir739

. O que se buscou analisar

neste capítulo foram as maneiras pelas quais o ME construiu sua representação, utilizando seu

passado e como se apoderou da memória criando mitos e mártires que visavam não somente a

recriar a identidade da associação, mas legitimar a sua resistência ao regime, em nome da

vitória democrática.

737

DELGADO, Lucília de A. Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. História Oral, São

Paulo, Associação Brasileira de História Oral, n. 6, p. 22, jun. 2003. 738

François Hartog demonstra que o regime de historicidade não pretende dizer a história do mundo passado e

menos ainda do que está por vir. Nem cronosofia nem discurso sobre a história, e não servirá também somente

a denunciar o tempo presente ou a lamentá-lo, mas sim de iluminá-lo (Regimes d‟historicité: présentisme et

expériences du temps, cit., p. 26). 739

GROPPO, Bruno. Traumatismos de la memoria e imposibilidad de olvido en los paises del Cono Sur. In:

GROPPO, Bruno; FLIER, Patrícia (Comp.). La imposibilidad del olvido: recorridos de la memoria en

Argentina, Chile y Uruguay. La Plata: Al Margen, 2001. p. 39.

Page 85: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

223

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta tese, mostrei diferentes propostas de resistência que o ME – ator

político coletivo – apresentou durante o período aqui abordado. O não esmorecimento do

movimento durante os “anos de chumbo” mostrou um ME sempre na ativa e em atividade,

mesmo na clandestinidade. A representação estudantil, diferentemente dos estudantes que

optaram pela luta armada, acreditava na possibilidade de uma resistência pacífica à ditadura e

se empenhou nesse sentido.

Demonstrei de que forma o ME inventou novas táticas e estratégias para se fazer

representar na arena política, levando em conta as experiências dos anos de 1960, tanto nos

aspectos políticos como culturais, concordando ou mesmo criticando esses pontos de vista.

Busquei reconstituir a linha de continuidade de ações contra o regime nos “anos de

chumbo”, ações essas que já não tinham caráter massivo. Com relação a esse aspecto, me

contrapus às teses de que o ME desapareceu durante esse período, demonstrando, a partir de

vários exemplos, a continuidade da luta, através de novos caminhos, mesmo depois de 1968.

Além disso, evidenciei que não só o ME sobreviveu à repressão, como também foi o primeiro

ator a voltar às ruas, quando isso se tornou possível.

“Quando novos personagens entraram em cena”740

, como mostra Eder Sader, ao

analisar os movimentos sociais, e em especial o MO em 1978, o ME já tinha voltado às ruas

na luta “pelas liberdades democráticas” um ano antes, em 1977.

Mas cabe esclarecer que o fato de enfatizar, ao longo deste trabalho, a continuidade da

resistência do ME contra o regime não quer dizer que isso ocorreu através de suas tradicionais

formas de luta. Ao contrário, novos elementos e maneiras de se fazer política foram

incorporados e antigos métodos foram descartados. Esse “reinventar-se” e os constantes atos

de resistência mostraram que o ME pode retomar o seu papel e ajudar na construção de outros

movimentos que também passaram a atuar pela derrubada do regime. Mas, é importante

ressaltar também o enorme esforço dos representantes do ME para a reestruturação de suas

740

SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da

Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Page 86: A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime

224

entidades. Nesse sentido, ficou clara a importância da organização associativa como um dos

principais canais para o engajamento, elaboração e difusão da ação política.

Outro fator a ser apontado, como decorrência do regime implementado em 1964, diz

respeito ao campo educacional. Como fruto de mais de dez anos de ditadura, o quadro

educacional revelava contrastes: enquanto a graduação, principalmente oferecida em

instituições privadas, proliferava, mas se destacava pela ausência de qualidade, a pós-

graduação se expandia e se caracterizava pela excelência dos cursos. Isso significava que a

chance dos jovens, mesmo os das classes menos aquinhoadas, ingressarem na universidade e

realizarem um curso superior era bem maior, como maior passou a ser seu leque de opções de

engajamento político.

O ME passou a ser mais um ator nas lutas pelo fim da ditadura e seu papel teve

destaque, quando se observa o conjunto das suas ações de resistência ao longo dos dez anos

estudados. No fim dos anos 1970, o engajamento pessoal contra o sistema vigente podia se

dar através de diferenciados movimentos, não somente pela militância estudantil.

Comunidades de base eclesiásticas, associações de bairro, movimento feminista, movimento

gay e outros se fizeram presentes nesse momento em que a sociedade, em grande parte, já

esperava pelo fim da ditadura. O estudante universitário pôde ser visto acompanhando as

greves do ABC, em 1978, e se engajando em outros movimentos sociais que não

necessariamente o próprio ME, o que não desmerece a própria atuação do movimento nesse

contexto.

Segundo alguns autores, o ano de 1977 representou o auge do ME. Nesse caso,

indaga-se: a que “auge” estão se referindo? O que se refere à representação estudantil e

capacidade de realizar manifestações? Ou da capacidade de articulação política? Ou do

engajamento na luta pela resistência contra a ditadura? Como procuramos mostrar, durante

toda a década de 1970, todas essas questões podem ser respondidas de forma positiva.

A articulação pela volta da UNE pode ser considerada uma grande manifestação

estudantil, mais uma prova da resistência dos estudantes contra o regime. Um evento reunindo

mais de 5.000 estudantes, que primeiramente foi proibido e depois consentido, com apoio de

políticos da situação, a participação de líderes da oposição, de camponeses, e que fez ressurgir

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225

a entidade representativa dos estudantes em nível nacional deve ser considerado ponto

importante quando se trata da história da redemocratização do nosso país.

A reconstrução da UNE, que realizou uma eleição nacional direta, contando com a

participação de mais de 250.000 estudantes (num universo que englobava pouco mais de um

milhão na época), não pode deixar de ser considerada como um grande marco para todos os

movimentos sociais que lutavam pelo retorno da democracia no país. E, sem dúvida, esse era

o objetivo da sua militância.

Esse fato aparece negligenciado pela nossa historiografia como “evento menor”,

dentre outros que levaram à redemocratização do Brasil. É bem verdade que o processo

interno do ME evidenciou uma disputa acirrada das tendências pela direção do movimento, o

que ocorreu ao longo de toda a sua história. Mas o fato político de recriação da entidade de

representação nacional dos estudantes, de forma mais ampla e democrática, era um sinal de

que outros tempos estavam começando, e um ciclo se fechava.