a representaÇÃo do indÍgena nos textos …aninter.com.br/anais coninter 3/gt 19/14. kauss.pdf ·...
Post on 10-Nov-2018
212 Views
Preview:
TRANSCRIPT
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
198
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS
BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO
KAUSS, Vera Lucia T.
Prof. Adjunto I do Mestrado em Letras e Ciências Humanas
Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO
verakauss@gmail.com
RESUMO
Este texto, seguindo um caminho interdisciplinar, faz uma abordagem das representações dadas aos
indígenas brasileiros nos textos literários, passando pela forma como foram transformados em fatos
históricos os acontecimentos do período da conquista e colonização do Brasil pelos portugueses. Nesse
caminhar ao longo dos séculos, a importância dos saberes ancestrais dessas culturas foi,
propositalmente, relegados a uma condição de inferioridade e esses povos confinados a viver às
margens de sociedades que ajudaram a construir. Na contemporaneidade, tomando posse da escrita,
esses povos assumem mais um instrumento de luta e passam a escrever seus próprios textos em diversas
áreas do conhecimento retratando-se a partir de sua própria maneira de se ver e se pensar, reivindicando
seus direitos enquanto cidadãos brasileiros.
Palavras chave: Literatura, Escrita e Oralidade, História.
ABSTRACT
This text following a path interdisciplinary approach makes the representations given to indigenous
Brazilians in literary texts, through the way they were transformed into historical facts of the period the
events of the conquest and colonization of Brazil by the Portuguese. In walking over the centuries, the
importance of ancestral knowledge of these cultures were purposely relegated to an inferior status and
these people confined to live on the margins of societies who helped build. In contemporary times,
taking possession of writing, these people take more an instrument of struggle and begin to write their
own texts in various fields of knowledge portraying themselves as they really are and claiming their
rights as Brazilian citizens are.
Keywords: Literature, Writing and Orality, History
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
199
INTRODUÇÃO
Podemos, hoje, dizer que a literatura indígena é uma realidade, confirmando o que disse
José Carlos Mariátegui, que somente poderíamos chamar de indígena a literatura escrita por
autores indígenas. Até então, o que tínhamos eram textos de escritores não indígenas que
muitas vezes distorciam, por falta de conhecimento, as cosmogonias dos povos autóctones que
tentavam retratar.
Em nossos dias, no Brasil, encontramos muitos escritores indígenas que, usando como
instrumentos de luta textos escritos, lutam para conquistar seu lugar de direito nas sociedades
construídas a partir da chegada do colonizador europeu no século XVI. Apesar de habitarem
essas terras muito antes da chegada de Cabral, o Brasil, como o conhecemos hoje, passa a
existir desde o momento do desembarque dos portugueses no Continente americano.
São muitos os representantes desses povos escravizados, marginalizados e, de certa
forma, invisibilizados que buscam, hoje, através do estudo e do domínio da escrita acadêmica,
se tornar visíveis, mas sem fazer concessões àqueles que ainda os querem assimilados,
transformados em autênticos representantes das culturas dominantes. Estão lutando para provar
que, apesar dos incessantes e massacrantes processos aculturadores a que foram submetidos,
continuam a ser e a existir a partir de suas cosmogonias, de acordo com o que lhes foi ensinado
por seus ancestrais.
Através de processos transculturadores, (ORTIZ apud RAMA: 1982, pp. 32-33)
conseguem, atualmente, vivenciar as duas culturas: a de origem e a dominante, sem se deixar
enredar ou perder, procurando usar o que lhes interessa da maneira de viver do segmento
dominante, mas sem deixar de manter viva a maneira de ser e estar no mundo que aprenderam
com seus pais e avós através dos conhecimentos passados de geração à geração, na tradição
oral. Mesmos aqueles que já nasceram fora das comunidades de origem, buscam conhecer suas
tradições e passam a vivenciá-las mesmo que morem em centros urbanos.
Sabemos que os povos indígenas são muitos – já foram muitos mais – e diversos.
Quando aqui chegou, pensando em ter um segmento social para a exploração, para colocar
como base da pirâmide social, o europeu criou o que denominou de “índio”, ou seja, frente à
imensa diversidade que encontrou, para facilitar sua vida ou por incapacidade de enxergar
verdadeiramente o outro, nomeou todos os homens que aqui habitavam simplesmente de
índios. Essa homogeneização do “outro” facilitou suas intenções: não importava saber a que
nação pertenciam aqueles homens, o único interesse era colocá-los em um nível social que
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
200
permitisse explorá-los, escravizá-los, matá-los, transformá-los; enfim, fazer com eles o que
aprouvesse aos vencedores das guerras da conquista e do processo de colonização implantado
nas terras brasileiras.
As sociedades autóctones não haviam desenvolvido o conceito de progresso como os
europeus. A ideia de juntar para legar aos filhos qualquer coisa que fosse não lhes parecia
lógica ou necessária. Para eles, o importante era ensinar seus filhos a viver como os ancestrais:
caçar, pescar, plantar e colher – tanto o que foi plantado como o que a natureza oferece -, a
construir suas moradias, a viver de acordo com suas crenças, respeitando os deuses, os mais
velhos, os animais e a natureza. A ideia de ter mais, de ser mais poderoso do que o outro não
fazia parte de sua cosmovisão: todos lutavam para si e para os irmãos. Havia – e há - disputas
entre eles, mas tinham outro sentido, diferente motivação, muitas eram, e continuam sendo,
rituais. Sobre esse assunto, nos diz Daniel Munduruku que:
Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas,
esses não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português
colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro.
Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã.
Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da escravidão. Os
portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais para aquela
função nobre. E assim ficou. (MUNDURUKU: 2009, p. 50)
As sociedades indígenas que habitavam as terras que viriam a ser o Brasil eram ágrafas.
Mas todas possuíam relatos de mitos, de lendas, de histórias de fundação, de guerras, de
deuses; enfim, de narrativas que traziam a marca daquele povo que estava contando. As
palavras ou os saberes ancestrais eram transmitidos pela oralidade, porque os povos indígenas
não dependiam da escrita: eles possuíam uma forte tradição oral que era mantida através da
memória. Esses relatos explicam a origem do mundo, dos povos e, ao serem passados de
geração em geração, tornam-se mecanismos de construção de identidade e de história que se
faz da memória. Como nos diz Bessa Freire: “Não estamos tratando de sociedades que eram
carentes de escrita, mas sim independentes dela”. (FREIRE, 2008, p. )
Outra diferenciação, sobre a qual escreveu Daniel Munduruku, refere-se à maneira de se
pensar a literatura apenas como relacionada com a palavra escrita. O escritor nos convida a
deixarmos essa forma linear de pensar e procurarmos compreender a ideia de literatura como
algo mais circular, tradicional, ancestral e, como os indígenas, entendê-la como sendo mais
uma manifestação que acontece “através do corpo, assim como a palavra, o canto, a dança, o
rito, a cura, o ser”. (MUNDURUKU: 2009, p. 9). O convite que nos faz Daniel Munduruku é
reforçado pelo escritor tukano Gabriel Gentil, que recolheu narrativas míticas em sua língua
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
201
materna, quando diz que: “existem várias maneiras de contar o Mito Tukano. Os velhos
cantores gostam de contá-lo por meio de cantos, na língua antiga, dando assobios, e até dançam
nas grandes festas tradicionais.” (BESSA, Vozes da Terra: te mandei um passarinho, 2009)
A literatura, para esses povos, envolve muito mais do que apenas a palavra escrita que,
por muito tempo, não exerceu sobre eles nenhuma influência, não foi objeto de fetiche ou
qualquer outro sentimento. Viveram sem ela por séculos e não sentiram necessidade de
conhecê-la, de trazê-la para dentro de suas vidas. Entretanto, eles foram levados a perceber que,
através da escrita, podem marcar seu lugar nessa sociedade que os envolve e, apoderando-se
dela, usá-la como um instrumento de luta para conseguirem impor seus direitos de cidadãos
brasileiros, abrirem seu espaço e resgatarem o reconhecimento que lhes é devido nessa
sociedade que os relegou a viverem marginalizados de um contexto social que ajudaram a
construir.
REPRESENTAÇÕES DO ÍNDIO NA CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA
Para os conquistadores europeus, os povos autóctones aqui encontrados representavam
verdadeiras páginas em branco em que eles escreveriam a História do continente, porque, para
eles, a América e o Brasil só passaram a existir a partir do momento de sua chegada.
Todos os povos que aqui existiam há muitos séculos e que possuíam suas próprias
organizações sociais e religiosas foram considerados bárbaras. Nenhum conhecimento
desenvolvido por estes povos – que eram muitos – foram levados em conta pelo europeu: o
vencedor não conseguia admitir que alguém pudesse saber mais do que ele sobre o que quer
que fosse. Por essa atitude de incapacidade para olhar de verdade o “outro”, muito se perdeu
como, por exemplo, os conhecimentos desenvolvidos pelos povos indígenas com relação à
agricultura, aos acidentes geográficos, ao uso das ervas...
Toda a estrutura colonial criada pelo europeu, que se forma a partir do “choque” de
culturas que acontece desde a conquista e que se estende pela colonização, se apresenta
dividida em dois segmentos: a do colonizador, que se coloca sempre como superior,
hegemônico; e o colonizado, sempre considerado como inferior e explorado. Os povos
indígenas vivenciam esse estigma da inferioridade desde o primeiro momento da chegada do
europeu e somente há pouco tempo a situação de colonizado tem passado por questionamentos
que tentam levar ao seu entendimento e reformulação.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
202
Todos os fatos históricos acontecidos com o início da era pós-Cabral levam a um
rompimento dos povos autóctones com o passado anterior à chegada dos europeus, ou seja,
com a continuidade de sua própria historia, para se ver inserido na do outro à força, pela
violência da dominação, da subjugação que passam a vivenciar. Neste período, no convívio em
tensão das culturas aqui encontradas, observamos que ambas se transformam, tem seus traços
alterados, ou melhor, deixam de ser elas mesmas para se tornarem parte de um sistema maior
que se forma a partir de então, ou seja, passam a formar o que se pode chamar de cultura da
conquista. Apesar do esforço que fazem os colonizadores, no sentido de transformar os povos
vencidos em um todo homogeneizado, esse objetivo não é alcançado com sucesso, porque as
diferenças são mantidas, elas não desaparecem.
Desde esse primeiro momento, podemos perceber as marcas que diferenciam as culturas
que passam a existir a partir do contato com as que vieram trazidas das metrópoles europeias:
nunca foram como espelhos que apenas refletiam o que vinha da fora; desde o começo as
diferenças ficaram bem marcadas. Infelizmente, a diferença foi vista como inferioridade e não
como apenas diferença, algo que não diminui nem aprimora mais ou menos nada nem ninguém,
apenas é diferente. A mestiçagem, por muito tempo, recebeu uma carga pejorativa imensa e
desnecessária, pois era uma ameaça aos que se consideravam pertencentes a uma raça superior
a todas as outras do mundo.
No Brasil, apenas no século XX os povos indígenas tomam posse da escrita e passam a
produzir seus textos e, neles, nos contam a sua versão do confronto cultural aqui ocorrido com
a chegada dos europeus. Além disso, nos mostram a riqueza de suas culturas, que foram
preservadas na oralidade até então e também seu olhar sobre si mesmo: eles deixam de ser
falados para falarem, nos mostram a representação que fazem deles mesmos num olhar que
vem de dentro para fora, que é contrário a tudo que tivemos até esse momento de nossa
História.
O discurso histórico criado para dar conta dos fatos contraditórios da conquista e
colonização do Novo Mundo foi apresentado de modo a privilegiar a ideologia europeia que
buscava construir uma identidade homogênea dentro de um contexto diversificado. A tomada
de consciência deste direcionamento do discurso histórico levou a uma revisão dos discursos,
inclusive do literário. A partir desse momento, aqueles sujeitos que se convencionou chamar de
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
203
vencidos foram procurados para se buscar conhecer o outro lado da história, contado e
vivenciado, desde o primeiro momento da chegada dos europeus à América, pelos povos
autóctones que aqui viviam e pelos negros que para cá foram trazidos, isso para falar apenas do
primeiro momento da formação desse complexo chamado de América Latina e, dentro dela,
especificamente, do Brasil.
A construção da identidade multifacetada, polifônica e inconclusa desde então
elaborada pelo segmento mestiço de nossas sociedades passa a ser representada nos textos que
são produzidos por esses escritores. Esta identidade, desde sua origem até nossos dias, mostra-
se como um ponto de partida em que se inicia uma convivência conflituosa das variadas etnias
e culturas que aqui viviam e das que aqui aportaram desde 1492, para a América Hispânica, e
1500 para o Brasil.
Essa identidade, construída na heterogeneidade cultural, eclode nos textos literários e, a
partir de um primeiro momento, no Romantismo, e, mais efetivamente, no Modernismo e Pós-
Modernismo, neles, também podemos observar uma descolonização do discurso em relação ao
europeu, que se colocou como hegemônico desde o início da construção do Brasil. Esse
processo apresenta como traço fundamental a aceitação de nossas diferenças: se nascemos de
uma polifonia de vozes torna-se imprescindível ouvir todas para compreender e continuar a
tecer nossa identidade que não traz em si a marca de apenas uma das vozes formadoras, mas
resulta da mescla de todas elas.
Para estudarmos esses textos literários feitos por escritores indígenas hoje, precisamos,
em primeiro lugar, entender que, durante muitos séculos apenas sendo “falado”, a figura do
índio aparece retratada de formas diversas em diferentes momentos de nossa História e da
ficção brasileira. No período da conquista e colonização, ele é apresentado em duas visões
distintas: ou é o bom selvagem, representado por aqueles índios que se deixam catequizar, que
aceitam a assimilação, ou seja, aqueles que tentam abandonar suas culturas, suas cosmogonias e
passam a viver como ditam as normas estabelecidas pelos vencedores; ou são os terríveis e
temidos canibais, que não aceitam a presença do homem branco em suas terras, que lutam para
manter a liberdade de seus povos. Na realidade, hoje sabemos que muitas etnias chamadas de
antropófagas não o eram, mas foram assim designadas porque, com essa peja, os europeus
recebiam do rei a legitimação para dizimá-las.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
204
Logo depois, no período do Neoclassicismo ou Arcadismo, a figura do indígena
aparece, por exemplo, na epopeia O Uraguai, de Basilio da Gama. O texto deste escritor foi
feito com o intuito de agradar o Marquês de Pombal, portanto, nele, os vilões da história são os
jesuítas, que o representante do poder português, naquele momento, expulsara do Brasil. Na
narrativa, o herói deveria ser o capitão português que comandava, junto com os espanhóis, um
exército nascido da coligação das duas metrópoles para expulsar os jesuítas que fundaram e
habitavam, junto com os indígenas guaranis, uma região chamada Povos das Sete Missões, no
sul do Brasil. No entanto, quando lemos o texto de O Uraguai, percebemos que a posição de
heróis é ocupada, também, pelas figuras dos indígenas – Sepé, Cacambo e Lindoia, entre outros
-, pois eles são descritos como sendo possuidores dos verdadeiros sentimentos que movem um
herói: honra, coragem, altivez, determinação, preocupação com os outros... Mesmo que não
tenha tido a intenção primordial, o autor nos apresenta uma representação positiva do indígena
em seu texto.
No Romantismo, a figura do indígena aparece idealizada, muito distante do que
realmente era até pelo desconhecimento dos próprios escritores que se propunham a escrever
sobre essas culturas. Essa idealização da figura do indígena recebeu o nome de Indianismo. No
Brasil, é nesse momento que surge a necessidade de se criar um herói nacional, pois a ideia de
nação está sendo construída. Enquanto, na Europa, os escritores se voltam para a Idade Média e
encontram no cavaleiro andante das trovas medievais sua figura de herói, os brasileiros se
voltam para o período correspondente em nosso continente, ou seja, a era pré-cabralina, no
exato momento da chegada do europeu. Nossos escritores vão buscar aqueles índios que aqui
existiam no momento da conquista e da colonização, vão exaltar seu heroísmo, sua luta pela
liberdade, sua altivez. Entretanto, na realidade, nosso herói será, por exemplo, Peri,
personagem do romance O Guarani, de José de Alencar, o qual representa o índio que,
deixando de viver com seu povo, se aproxima do “branco” e, por amor a uma donzela
portuguesa, se torna um vassalo de sua amada vivendo para fazer-lhe as vontades. Por isso é
uma figura idealizada: ela é criada a partir do que o pensamento hegemônico vigente na época
queria como modelo de herói nacional.
Existem muitos outros textos que trabalham essa ideia de herói, mas os de José de
Alencar são especialmente representativos dessa intenção de criar um modelo de herói para a
nação brasileira. É ainda em Alencar que encontramos uma representação bastante evidente do
pensamento disseminado e aceito de que os povos indígenas representariam a barbárie e, os
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
205
europeus, a civilização: o romance Iracema. Nesse texto, Alencar pretende contar a história da
gênese do brasileiro: uma relação de amor entre uma índia tabajara e um colonizador português
de nome Martim. Segundo conta a história, Iracema e Martim se encontram na floresta, se
apaixonam e, abandonando seu povo, a índia vai viver só, mas com seu amor. Ela fica grávida,
tem Moacir, que significa filho da dor e morre, entregando o menino recém-nascido ao pai, que
volta para a cabana onde moram depois de guerrear. Martim leva o filho para ser criado em
Portugal e, quando adulto, ele voltará a sua terra, mas será um homem civilizado e não bárbaro,
pois terá estudado na Europa.
Para José de Alencar, Moacir é o primeiro brasileiro, ou seja, ele nasce da mestiçagem
entre os representantes das duas culturas primeiras aqui encontradas, mas, a indígena deve
morrer, por ser representante da barbárie, enquanto que a europeia, por ser considerada a
civilização, deve florescer, prosperar em nosso país. Este era o pensamento vigente na
sociedade em construção de então.
Tanto em Iracema como em O Guarani, Alencar busca mostrar que nossa formação
mestiça se fez em relacionamento de amor e não de violência – o que condiz mais com o que
realmente aconteceu. Se em Iracema, a personagem indígena precisa morrer para que o país se
torne civilizado; em O Guarani, no final apoteótico, o indígena e a mulher branca vão viver
junto ao povo original de Peri e, uma vez lá, Ceci poderá ser uma difusora da civilização
trazida pelos europeus de quem descendia e por quem fora criada. Nos dois romances,
predomina a ideia de que as culturas indígenas, que simbolizam a barbárie, devem deixar de
existir – fisicamente ou ideologicamente - para que a civilização, representada pela cultura
trazida da Europa, seja a única predominante na nação que está sendo construída então.
No movimento do Realismo, esse não foi um tema muito explorado. Machado de Assis
fala sobre o lugar de moradia, das crenças e, também, das tentativas que sofreram nos
constantes processos de tentativa de aculturação a que os povos indígenas foram submetidos
desde a conquista e colonização, no seu livro Americanas, de 1875. O escritor trabalha, nessas
poesias, a representação poética dos indígenas, falando, também das consequências do contato
entre os povos autóctones e os europeus. É um livro em que podemos observar a influência de
Gonçalves Dias e do Indianismo. As influências de José de Alencar também se fazem
presentes, mas é um Indianismo que não mostra de forma ostensiva a cor local que tornou tão
popular o gênero. Dentro dessa temática intensamente trabalhada pelos românticos, parece-nos
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
206
que Machado de Assis se mostra bastante reservado em suas expressões. Certamente, o livro
apresenta-se como sendo uma tentativa interessante de recriar mais um "americanismo" do que
um indianismo e isso em um momento em que a consciência de pertencer a um continente
parecia criar raízes entre os intelectuais da época. Podemos perceber, nesse fato, a presença da
preocupação com a construção de uma identidade brasileira.
No Pré-Modernismo, Lima Barreto, através de seu personagem Policarpo Quaresma,
protagonista de seu livro O triste fim de Policarpo Quaresma, expõe a condição de
esquecimento, de total desprezo e rejeição que a sociedade brasileira daquele momento – o
governo republicano do Marechal Floriano Peixoto – vivencia em relação aos costumes e
tradições dos povos indígenas que, na realidade, são parte importante na nossa formação
enquanto povo brasileiro. No romance, o Major Policarpo é considerado incapaz mentalmente
quando resolve redigir, por exemplo, documentos do departamento público em que trabalhava
na língua que considerava como brasileira autêntica: o tupi-guarani. A sociedade carioca
daquele momento também estranha quando o Major passa a reproduzir, socialmente, formas de
comportamento dos povos autóctones como, por exemplo, receber pessoas em sua casa
chorando ostensivamente para demonstrar que estava com saudades como faziam os indígenas
brasileiros de determinadas etnias. O autor critica a sociedade por não ter a mínima ideia da
junção de culturas que a formava, por repelir tão enfaticamente outras formas culturais que não
fosse a considerada “civilizada” e hegemônica: a trazida da Europa.
No Indigenismo, que acontece no período do Modernismo brasileiro, a figura do
indígena aparece problematizada, ou seja, os escritores, principalmente com o respaldo do olhar
dos antropólogos, se voltam para esses povos que vivem à margem da sociedade. Eles buscam
uma solução para essa exclusão, mas acabam entendendo que esses povos seriam assimilados
pela sociedade hegemônica e acabariam desaparecendo dentro dela. Sabemos, hoje, que essa
profecia não se realizou e as etnias indígenas continuam lutando por seus direitos enquanto
cidadãos brasileiros, em igualdade com os outros segmentos sociais de nosso país. Além disso,
atualmente, os indígenas tem apresentado um número considerável no aumento de suas
populações, desfazendo essa premissa de que estariam à beira da extinção, da integração ou da
assimilação. São muitos os povos originários que deixaram de existir desde a colonização
portuguesa, mas, atualmente, muitas etnias estão renascendo e buscando o reconhecimento de
suas existências enquanto sociedades organizadas que aqui viviam desde a era pré-cabralina e
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
207
que continuam, mesmo que em desvantagem frente aos segmentos hegemônicos da sociedade
construída no que, antes, eram seus domínios.
Na primeira geração modernista, Mario de Andrade cria, em Macunaíma, um
personagem principal que representa a mestiçagem de que nasceu o brasileiro: ele é, ao mesmo
tempo, índio, negro e branco. O escritor paulista teve conhecimento desse ser mítico para os
povos indígenas de Roraima – Wapichana, por exemplo – através de um trabalho de pesquisa
realizado por um etnólogo alemão, Koch-Grunberg. Nesse texto, encontramos o que se pode
chamar de fase demolidora do nosso Modernismo – a primeira, de 1922 a 1928, ano da
publicação de Macunaíma – que pode ser observada na própria estruturação do romance e
também, por exemplo, na aproximação da língua com a oralidade brasileira em detrimento das
regras lusitanas. Cristino Wapichana, escritor indígena da atualidade, diz que Mário de
Andrade:
Com liberdade poética, inspirou-se no personagem principal dos povos
indígenas Taurepang, Arekuna, Wapichana, Macuxi, Ingarikó, Pemon e
outros. Mas Mário nunca teve contato direto com nenhum desses povos
indígenas, sua fonte foi importada diretamente da Alemanha e em alemão, que
mesclou a outras de Capistrano de Abreu, Couto de Magalhães, Pereira da
Costa e relatos orais. (WAPICHANA: 2010, p. 16-17)
No segundo momento desse período, Darcy Ribeiro, depois de viver por dez anos entre
os indígenas da etnia Urubus-Kaapor, escreve seu romance Maíra e, nele, nos mostra o
problema de identidade que vivencia um indígena mairum – etnia criada pelo escritor - que fora
retirado do convívio de sua gente por padres missionários e que tenta voltar para assumir um
lugar especial – de líder religioso - junto de seu povo. Isaias – esse é o nome que o indiozinho
recebeu no batismo cristão – vive um conflito constante entre as crenças, os costumes, as
tradições de seu povo de origem e tudo o que aprendeu na convivência com a Igreja Católica.
Por todo o texto, acompanhamos o dilaceramento que ele sofre por não saber mais quem é.
Nesse romance, podemos observar como o pensamento de que os povos indígenas não
conseguiriam resistir por muito tempo mais ao processo assimilacionista da sociedade
hegemônica do entorno se faz evidente. Os mairum vivem cercados por mestiços, brancos e até
mesmo outros indígenas que já não vivenciam suas cosmogonias, se desligaram de suas
comunidades originais e que os ameaçam de todas as formas possíveis. Maíra, título do
romance, na realidade, é o nome que esse povo dá ao seu deus criador, que é representado pelo
sol.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
208
No momento atual, o Pós-Modernismo, encontramos escritores como Antonio Torres
que, após uma pesquisa em documentos históricos, publica um romance intitulado Meu querido
canibal, em que procura resgatar a história de Cunhambebe, o mais temido chefe indígena do
período da colonização por ser um canibal. Para os indígenas, na realidade, o que eles faziam
era um ritual religioso: eles comiam o corpo e bebiam o sangue dos inimigos capturados, mas
só serviam para o ritual aqueles que fossem jovens, fortes, corajosos; enfim, os que tivessem os
valores de um verdadeiro guerreiro. Cunhambebe não é descrito assim: ele era mesmo canibal.
Comia aqueles que vencia nas lutas, nas guerras pelo prazer de comer carne humana. Pelo
menos é isso que registram os livros e documentos da nossa História. Não podemos nos
esquecer, porém, de que nossa História foi contada, registrada pela ótica dos vencedores e,
portanto, precisamos tentar resgatar como esse mesmo fato seria narrado pela ótica dos
vencidos.
Além de escritores como Antônio Torres, que busca resgatar a imagem desse indígena
por um viés menos marcado pela influência do bárbaro, incivilizado, bugre; enfim, pela visão
preconceituosa elaborada desde o princípio da convivência entre as culturas primeiras, temos,
hoje, a possibilidade de acesso a uma representação feita pelo próprio personagem retratado: o
indígena. Em diferentes gêneros de textos, são muitos os escritores e poetas indígenas que se
retratam, que se deixam ver como realmente se sentem e são. Os “selvagens” invadem, hoje, as
Academias e, tomando posse da escrita trazida pelos colonizadores e usada como um
instrumento de poder e fetiche para subjugar sua oralidade de arco-íris musical, escrevem e se
mostram por um lócus antes nunca conhecido: o próprio olhar. Carlos Tiago, da etnia Saterê-
Mawé, do Amazonas diz que:
Sou índio, sou cor, sou raça de mil florestas.
Meu tacape, dança da tucandeira, minha tradição,
se mostra em noites de muitas festas.
Lembranças e madrugadas correm em minhas veias
E preservam o gosto das águas antepassadas
Colhidas nas belas noites de lua cheia.
Chuvas de tradição molham meu rosto.
Sou índio, minha cultura é minha pele.
A mata sobrevive em minha canção;
Faz parte de minha sina, do meu índio coração.
Sou índio, sou sonho, raiz da nação brasileira.
Minha bandeira pela igualdade, minha história renascendo em livros
E minha luta solfejando a sobrevivência.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
209
(TIAGO: 2009, p.17)
Atualmente, já é bem numerosa a lista de nomes de indígenas das variadas etnias que,
superando os processos aculturadores a que foram submetidos, estão escrevendo textos
literários em que afirmam sua identidade que, mesmo passando por processos
transculturadores, permanece viva até hoje.
Para esses escritores, o texto literário ou mesmo os textos escritos em qualquer outra
área, como a do Direito, a da História, a da Antropologia, a da Educação, só para citar alguns
exemplos dos lugares pelos quais eles estão transitando com muita competência, o escrever é
mais um instrumento na luta pelo reconhecimento dos direitos que lhes foram usurpados desde
o momento do “encontro” aqui acontecido com a chegada dos europeus no século XVI até
nossos dias.
Os textos literários que esses escritores estão publicando contam suas lendas, mitos,
gênese de formação; enfim, nos falam de suas cosmogonias que sobreviveram e estão mais
vivas do que nunca no imaginário desses povos. Mas, além disso, em muitos desses escritos
podemos observar que eles nos contam também a sua forma de ver os fatos acontecidos em
nossa História, cuja versão oficial só foi escrita pela ótica dos considerados vencedores das
guerras da conquista e da colonização de nosso continente. Ainda nas palavras de Cristino
Wapichana, podemos observar uma das preocupações principais que perpassam seus textos: o
direito ao respeito.
Não desrespeitamos ou menosprezamos o sagrado e a crença dos outros
povos, mesmo aqueles que não conhecemos. O sagrado é parte integral da
cultura indígena durante toda a vida, e a vemos em tudo o que vive. A terra, o
rio, as florestas, os campos naturais, os animais, tudo tem a presença do
Criador. Nossas histórias tradicionais estão carregadas de símbolos e
significados, fazendo parte de nossa educação e formação como seres
inseridos no mundo. Essa ligação íntima, necessária ao equilíbrio da vida,
funde o mundo físico e o espiritual de forma tão homogênea que nos torna
seres completos.
(WAPICHANA: 2011, p. 16-17)
São muitos os escritores indígenas que, atualmente, buscam a academia num
movimento de conhecer, entender e usar tudo que puderem aprender para seguirem a luta
iniciada por seus ancestrais, desde o primeiro momento do “encontro” entre culturas aqui
acontecido em 1500, pelo respeito à diferença e que essa diferença não seja marca de
inferioridade.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
210
TENTATIVA DE FECHAMENTO PROVISÓRIO DE UM TEXTO AINDA EM
CONSTRUÇÃO
Apesar dos incalculáveis processos de aculturação a que foram expostos por tantos
séculos, ainda hoje podemos observar que os povos indígenas mantém determinadas
características formadoras de sua identidade que nada conseguiu abalar. Por exemplo, a
importância muito maior do coletivo do que do individual: a construção do sujeito individual se
faz, naturalmente, no coletivo, na imersão profunda na alma viva de uma comunidade que não
se deixou destroçar por nenhuma ameaça de fora. Seus textos nos mostram exatamente isso:
seres que formam sua individualidade dentro de um coletivo que os torna completos.
Lendo um livro que relata uma experiência riquíssima vivenciada por uma equipe de
pesquisadores devidamente orientados pelo Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, em
Dourados, Mato Grosso do Sul, percebi, desde as primeiras palavras, essa impossibilidade de
construção desses sujeitos fora de um pensamento de comunidade. Ao tentar fazer entrevistas
para a organização da estrutura do trabalho, não se conseguiu que acontecessem
individualmente, porque “se nos evidenciou que o discurso, apesar de dirigido por um narrador,
espelhava as marcas de uma fala comunitária”. (SEBE BOM MEIHY: 1991, p. 20) Essa é uma
das características que não sofreu modificação mesmo com a exposição a processos tão
violentos de tentativas de desestruturação desses sujeitos.
Outra constatação que aconteceu em nossos dias: os índios não estão mais apenas
vivendo nas aldeias, eles, hoje, estão espalhados pelas metrópoles, pelos estados, pelas ruas e
bairros de todas as cidades brasileiras. Muitos não se conformaram em ficar tutelados à
administração do governo, saíram em campo e vieram das matas, das aldeias para a cidade em
busca de sua sobrevivência. Como terá sido, para os pioneiros, essa questão de viver em uma
sociedade que milenarmente não os aceitava em seu meio? Afinal, os povos indígenas estavam
bem escondidos sob uma capa de invisibilidade lançada sobre eles fazia séculos...
Alguns processos foram acontecendo para que esse manto começasse a ser retirado e,
entre eles, podemos citar a Constituição de 1988, que reconheceu o direito à autoidentificação
desses povos. Também os estudos de pensadores, como Darcy Ribeiro, Betty Mindlin, entre
muitos outros, que levantaram a questão de nossa formação plural, afinal, nascemos como povo
do ventre de negras e índias também.
Mesmo vivendo na cidade, o indígena é coletivo. Como encontramos em um documento
do IBGE de 2002: Na cidade, formam redes de reciprocidade e sempre riscam uma linha de onde
estão agora que vai dar lá no pátio da antiga aldeia, vila ou paróquia da missão
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
211
onde foram seus avós aldeados. Estão na cidade, mas, definitivamente, não
são da cidade. (MUNDURUKU e WAPICHANA: 2009, p. 42)
Em alguns momentos, essa convivência com o outro que continua, em sua grande
maioria, não conseguindo entendê-lo, deve ser bastante insatisfatória para os indígenas das
várias etnias que estão nas cidades. Conversando com um deles, Thini-á Funiô, um grande e
querido amigo, ele me contou que, uma vez, no Museu do Indio, onde estava promovendo uma
roda de contação de histórias, se aproximou uma mulher “branca” toda maquiada e perguntou o
porquê dele se pintar da maneira como havia feito. Ele olhou para ela e retornou a pergunta: por
que ela se pintava da maneira como havia feito? No final, ele respondeu que ambos haviam se
pintado pelo mesmo motivo: sentiam-se mais belos assim. Na realidade, continua a barreira que
impossibilita a aceitação do diferente simplesmente como diferente, ainda continuamos a olhar
os indígenas como o diferente exótico, causa estranhamento o fato de eles não se comportarem
de acordo com as regras de uma sociedade que se impõe como a conhecedora do único
caminho possível para a realização que trará a felicidade tão almejada por todos nós. Como no
século XVI, muitos continuam incapazes de olhar e ver que o arco-íris é tão lindo porque dá
lugar a todas as nuances possíveis de cores, mas precisamos nos colocar na posição de parar e
observar sem querer imediatamente colocar dentro de uma classificação pré-existente e
considerada a única possibilidade de verdade cientificamente comprovada.
Enquanto nos colocarmos nessa posição de donos do saber, não conseguiremos nos
abrir para compreendermos as riquezas que estão a nossa volta e que deixamos de aproveitar,
apreender o conhecimento que nos vem desses saberes ancestrais por tanto tempo relegados a
uma conceituação preconceituosa apenas pelo medo de descobrirmos que o outro também é
dono de saberes que desconhecemos. Eles encontraram, no caminho da transculturação, a
forma perfeita: assimilar o que a sociedade do entorno tem a oferecer sem abrir mão daquilo
que é seu, que seus povos construíram nos muitos séculos de caminhada nessas terras férteis e
abençoadas.
A REPRESENTAÇÃO DO INDÍGENA NOS TEXTOS LITERÁRIOS BRASILEIROS: UMA QUESTÃO DE LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO –
KAUSS, Vera Lucia T.
Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 198-211
212
Referências bibliográficas:
BERGAMASCHI, Maria Aparecida, org. Povos indígenas & educação. Porto Alegre:
Mediação, 2008.
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002
CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani. Trad. Nícia
Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1990.
CORNEJO-POLLAR, Antonio. Escribir en el aire: ensayo sobre la heterogeneidad sócio-
cultural en las literaturas andinas. Peru-Lima: Editorial Horizonte, 1994.
_________________________. O condor voa. Literatura e Cultura Latino-Americanas.
VALDES, Mario J., coord. Trad. Ilka Valle de Carvalho. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
FREIRE, José Ribamar Bessa e ROSA, Maria Carlota, org. I Colóquio sobre Línguas Gerais:
política linguística e catequese na América do Sul no período colonial. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2003.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar y salir de la
modernidad. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1995.
LIENHARD, Martin. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina
(1492-1988). La Habana: Casa de las Américas, 1990.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Lima:
Amauta, 1995.
MUNDURUKU, Daniel & WAPICHANA, Cristino, orgs. Antologia Indígena. Cuiabá: Palavra
de Indio-SEC, 2009.
ORTIZ apud RAMA, Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo XXI,
1982.
SEBE BOM MEIHY, José Carlos. Canto de morte Kaiowá: história oral de vida. São Paulo:
Loyola, 1991.
WAPICHANA, Cristino. Makunaima X Macunaíma. In: Revista Educação em Linha-
Encontros com a Literatura. Rio de Janeiro: Secretara de estado de Educação, Ano IV, nº 13,
julho-setembro/2010.
top related