a morte de joÃo de adÃo e a memÓria operÁria · 2012. 5. 8. · 2 e covarde.3 já o a tarde...
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A MORTE DE JOÃO DE ADÃO E A MEMÓRIA OPERÁRIA
Maria Cecília Velasco e Cruz1
Tudo acontece com a rapidez de um relâmpago no dia 14 de agosto de 1913. Eram cerca de
nove horas da manhã quando o mestre de estiva da Companhia Docas da Bahia, João da Conceição
Costa, mais conhecido como João de Adão, tomou o rumo do seu escritório, andando calmamente
pela Rua Silva Jardim até quase a porta do elevador do Taboão. Ao voltar com a intenção de descer
a ladeira do Caminho Novo, acompanhado de “Zacharias Preto”, foi, no entanto, subitamente ataca-
do. Alguns homens atiraram a queima roupa em vários lugares do seu corpo, e o mataram sem lhe
darem chance de reagir.
Na imprensa da época, “O Crime do Caminho Novo” é em geral explicado como o desfecho
previsível de uma determinada cadeia de fatos interconectados. São muitos os jornais que seguem
essa linha interpretativa, com informações mais ou menos detalhadas, embora nem sempre muito
claras. O Diário de Noticias relata, por exemplo, que uma velha rixa existente “entre o mestre João
e membros de outras estivas” “por questão de serviço” produzira “uma rivalidade de morte”. “No
ano passado”, em função de conflitos que a polícia não conseguira coibir, o “desventurado” João de
Adão pedira garantias de vida. Mesmo assim, “ontem à noite”, no mesmo local do crime, “alguns
estivadores” tentaram assassiná-lo, realizando o seu intento “hoje, de modo trágico e desumano”.2 O
Jornal de Notícias é mais específico. Informa que “desde há muito tempo” tem ocorrido conflitos
entre “estivadores pertencentes à Sociedade União dos Estivadores e outros que não fazem parte” da
associação. “O Sr capitão João da Conceição Costa, mestre de estiva, sempre se opôs a que os seus
estivadores pertencessem à dita sociedade”, provindo daí os repetidos ataques que ele e seus empre-
gados sofreram. “A polícia tem disto conhecimento, fez sempre diligências”, sem conseguir acabar
com as agressões. Ainda ontem à noite”, teve de ser “garantida a casa onde estava o capitão João
Costa, à ladeira do Caminho Novo”. “Hoje” ele foi de novo “enfrentado por um grupo de estivado-
res, dos pertencentes àquela Sociedade”, os quais o mataram com tiros disparados de modo abrupto
1 Professora Associada, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia; mcvcruz@ufba.br.
Este texto é uma versão condensada e ligeiramente modificada de parte do capítulo VELASCO E CRUZ, M. C. A Mor-
te de João de Adão. Realidade e fantasia na memória operária de um crime. In: Negro, A.; Sales Souza, E.; Bellini, L.
(orgs). Tecendo Histórias. Espaço, política e identidade. Salvador: Edufba, dezembro/2009, p.199-230. 2 Diario de Notícias, 14-08-1913: 1.
mailto:mcvcruz@ufba.br
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e covarde.3 Já o A Tarde afirma colérico que “há tempos, um anarquista, vindo do Rio, abre cisão, a
pretexto de reivindicações sociais, entre a classe dos estivadores.” (...) “Agora a cizânia maldita que
o forasteiro desumano semeara entre homens simples” frutificou em mais um crime. “Ontem” João
da Conceição Costa caiu morto com a região frontal atravessada por uma bala. “A polícia não cer-
cou de garantias a vítima”, nem vigiou devidamente os estivadores agremiados “pela alma danada,
que se transpusera para aqui, das sociedades secretas da capital do país”. 4
Nessas reportagens feitas logo após o crime chamam atenção ainda outros pontos de conver-
gência. Quase todos os órgãos da imprensa apontam Aguido Eleutério do Nascimento, vulgo “Gui-
do”, Manoel Pio de Santana, vulgo “Pio Grande”, e Joaquim Lopes da Silva, vulgo “Joaquim Per-
nambuco” ou “Joaquim Sete Mortes”, como responsáveis pelo assassinato cometido. Quase todos
os jornais afirmam, também, que na noite anterior ao crime os estivadores já haviam tentado matar
João de Adão durante um tiroteio ocorrido na ladeira do Caminho Novo, aproveitando a notícia para
divulgar dados biográficos reverentes sobre a vítima e sua família. O Jornal de Notícias escreve: “o
infeliz” era “mestre de estiva, natural deste Estado, casado, gozava de grande estima, filho do Major
Adão da Conceição Costa, proprietário, e deixa um filhinho menor... Damos pêsames à digna famí-
lia”.5 O Diário de Notícias, por sua vez, desmancha-se em elogios explícitos. O assassinado “era
um moço trabalhador, dotado de profundos conhecimentos lingüísticos e bastante relacionado nesta
capital”. “Antes de abraçar a vida laboriosa”, “o estimado” João fizera “os seus estudos” “sempre
benquisto pelos seus colegas e mestres”. Termina dando suas condolências ao “respeitável Sr Capi-
tão Adão da Conceição Costa” pelo terrível golpe que abatera “seu extremoso coração de pai”.6
Apesar do relativo consenso, há alguns diários que divergem da maioria. É o caso do Jornal
Moderno, que noticia o crime de forma seca e sem maiores explicações. No grupo acusado pelo
homicídio reconhece unicamente a pessoa de Pedro Germano dos Santos, vulgo “Nozinho da Co-
cheira”, que afirma ser “subalterno do estivador morto”. Relata o conflito noturno do dia 13, porém,
evasivo, diz saber apenas “tratar-se de uma contenda entre dois homens estivadores”. Por fim, sobre
3 Jornal de Notícias, 14-08-1913: 8.
4 A Tarde, 15-08-1913: 1.
5 Jornal de Notícias, 14-08-1913: 8.
6 Diário de Notícias, 14-08-1913: 1.
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o morto, escreve de modo rude e tão somente que “o cadáver do preto, de 38 anos de idade, filho
deste Estado [...] era alto, grosso e calçava sapatos amarelos com sola de borracha”.7
Esses relatos, que no calor da hora convergem ou divergem sobre os fatos narrados, mas,
sobretudo, na forma da linguagem e no modo de construção da narrativa, são, na realidade, lances
estratégicos de uma aguerrida batalha textual pela memória dos conflitos e pelo seu significado. Em
1912, no início das brigas, há vários jornais que publicam informações significativas sobre os dois
lados da contenda. Existe espaço para a emergência da fala operária. No começo de 1913, o quadro
já é bem diferente. A questão se constrange na voz burguesa.
É que desde a fundação da filial da União dos Operários Estivadores do Rio de Janeiro em
Salvador, o ex-empreiteiro de estiva Adão da Conceição Costa, à época, um abastado proprietário
que vivia de rendas, procura os órgãos da imprensa para defender seus interesses contrariados pela
organização dos operários, e para difundir sua idéia de que a formação da sucursal traz para a Bahia
a barbárie anarquista. Após a morte do filho diretor dos seus negócios no porto, ele intensifica esta
estratégia. Passa a visitar sistematicamente as redações dos jornais a fim de acusar os dirigentes da
sociedade, e eleva o tom das censuras ao chefe de polícia. Forma-se, então, um padrão generalizado
de divulgação das notícias.
As ações e os objetivos da União e a resposta patronal à chegada do sindicato ao mundo da
estiva soteropolitano desaparecem aos poucos do noticiário, submergidas por uma abordagem cada
vez mais maniqueísta dos conflitos. Talvez por serem negros tanto os patrões quanto os operários
envolvidos na disputa, a linguagem racializada não é mais acionada. João e seus liderados são as
eternas vítimas, trabalhadores “pais de família” que não ameaçam, não atacam e não revidam. Os
espancamentos e as mortes dos seus adversários não têm autores conhecidos. São continuamente
atribuídos a “bandos de indivíduos” sem rosto e sem nome. Os sócios da sucursal são os eternos
agressores, sempre nomeados, acusados e vituperados. São “desordeiros”, “facínoras”, “sicários”,
“sanguissedentos”. As reuniões sindicais são “meetings sediciosos” e a União dos Operários Esti-
vadores é um “ajuntamento ilícito”, organização dirigida por “um bando de homens perversos e
egoístas”. Querem todos a seu lado e quem não se sujeitar “será riscado de entre os vivos”. “Fazem
sorteio e os que saem sorteados vão matar o rebelde”. Essa visão deletéria dos conflitos ocorridos,
bem como das práticas do sindicalismo closed shop, reforça a imagem negativa que a imprensa de
7 Jornal Moderno, 14-08-1913: 3. Ênfase minha. A informação sobre a idade do morto está aumentada em dez anos.
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oposição procura construir a respeito do governo estadual e sua polícia. Uma polícia “que não poli-
cia e não cuida da existência dessas casas de anarquia”, e que por isso “é uma inutilidade imprestá-
vel como os fermentos do lixo”.8
Deste modo, embora durante o inquérito policial tenham surgido informações que permitem
outras leituras do crime, nada do que é dito pelos acusados interfere no que acontece depois. São
descartadas as declarações de que João de Adão vivia cercado de capangas; de que o mestre de esti-
va perseguia ferozmente certos operários; de que “Guido” era um guarda-costas de João que havia
se desligado dele; de que na véspera do crime, à noite, jagunços de João tinham agredido no Cami-
nho Novo um companheiro de “Pio” e “Guido”, que por isso estavam prevenidos na manhã do dia
14; de que o encontro com a vítima fora casual; de que “Guido” atirara com a pistola tomada do
capanga “Possidônio” durante o conflito da noite anterior; e de que ninguém induzira os acusados à
prática do crime. Com efeito, nenhuma dessas afirmações é investigada. Ao contrário. Oferecida e
aceita a denúncia, o sumário de culpa é feito com a participação do advogado de Adão da Concei-
ção Costa sem que os réus capturados tivessem qualquer assistência jurídica. Além do mais, várias
testemunhas, como Ângelo Zacharias da Luz, dado como capanga do morto, são indicadas pelo pai
da vítima com o objetivo claro de acusar o delegado sindical enviado do Rio para presidir a filial da
União. Com tais encaminhamentos, os autos acabam sendo montados para criminalizar as ações da
sociedade, e a peça de acusação da Promotoria converte-se numa tradução perfeita do ponto de vista
patronal. Ora, isso torna ainda mais compreensível o desenrolar enviesado dos acontecimentos.
Pelo assassinato são indiciados “Guido”, “Pio Grande”, “Joaquim Pernambuco”, “Nozinho
da Cocheira” e, como mandante, o delegado sindical Joviniano Vieira Ramos. Para todos é pedida a
pena máxima prevista para homicídios, com as agravantes de premeditação, surpresa, emboscada,
paga ou promessa de recompensa, ajuste, e dor física aumentada por atos de crueldade. Como se
não bastasse o rigor do pedido, a partir do final de agosto, e em 1914, com a aproximação da data
do julgamento, é empreendida uma forte campanha difamatória contra os acusados e contra a ima-
gem da União, campanha durante a qual se completa a redução de um processo complexo a uma
situação estática, descontextualizada e singular.
O delito a ser julgado é neste sentido apresentado como ato exemplar de uma “sociedade de
celerados organizada para assassinar o digno moço João de Adão”.9 Afirma-se que Joviniano “veio
8 O Correio, 17-08-1913.
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exclusivamente do Rio de Janeiro para mandar matar João Costa” e “com a empreitada de supri-
mir também” o diretor da Companhia Docas da Bahia. Espalham-se boatos de que o chefe de polí-
cia era “sócio benemérito da União”, e de que ele “em pessoa telefon[ara] para a sucursal mandando
Joviniano Ramos fugir”. Divulgam-se documentos acusatórios anexados nos autos, e se repetem
exortações para que o júri “desafronta[sse] a sociedade desse bárbaro e terrível crime”.10
A estes textos somam-se as mensagens apaixonadas de Adão da Conceição Costa, carrega-
das de apelos à piedade e ataques ad hominem. Dirigindo-se aos “Srs. Juízes de fato de minha ter-
ra”, ele assim escreve por ocasião do primeiro aniversário do crime:
A dor me esmaga pelo desaparecimento bárbaro do meu filho inocente, ordeiro e trabalhador que era;
espero que em vós encontrará o alívio, na punição severa dos responsáveis por esse ato de selvageria.
Sois pais e tendes família, sabereis ser justos. [...] Eu vos suplico, apelo para as vossas consciências de
cidadãos e pais de família, saibais punir estes sanguissedentos que entre nós vivem levando o luto, a desolação
ao lar de um pobre pai, um pobre irmão, uma pobre mãe ou mulher [...]
Confio no Tribunal da minha terra e espero Justiça!11
E na véspera do julgamento, ele estampa nos jornais locais os retratos de “Nozinho”, “Pio
Grande” e “Guido”, legendados com o escrito dos cinqüenta mil réis supostamente recebidos pela
prática do crime, contrastados com a fotografia do seu filho, legendada com a frase “A Vítima”, e
acompanhados do seguinte recado aos leitores:
Eis no alto desta coluna, as três feras comparsas de mais duas fugitivas, “Sete Mortes” e Joviniano
Ramos, delegado dos estivadores assassinos da Bahia [...]
Olhai-os bem: são estas hienas que ainda com as mãos tintas de sangue vão ser julgadas [...] Olhai
bem para estes bandidos que friamente, sem motivo, em plena luz do dia matam um pobre moço simplesmente
porque soube captar simpatias dos negociantes nacionais e estrangeiros pela sua dedicação ao trabalho. [...]
Malditos! Feras! Querem ser livres! Mas não o serão, espero em Deus, no Tribunal e nos juízes de fato
da minha terra que saberão resistir às insinuações pérfidas dos que protegem os criminosos, castigando seve-
ramente [...] estas feras que só têm sido perniciosas ao meio em que vivem os homens de bem.
Justiça! Justiça!”12
Essas mensagens são difíceis de resistir, porque jogam com noções do senso comum e com
valores caros ao conservadorismo da população familista e religiosa da cidade de São Salvador. O
bom filho trabalhador; a família como o signo do homem de bem; a dor paterna e materna; a puni-
9 A Tarde, 18-09-1913: 2. Ênfase minha.
10 Vários jornais, meses de setembro e outubro de 1913. Ênfases minhas.
11 Jornal Moderno, 14-08-1914: 3.
12 Jornal Moderno, 3-10-1914: 2; A Tarde, 3-10-1914: 5.
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ção do crime que alivia e descansa a alma da vítima; a justiça de Deus; o sucesso econômico que
atrai a inveja do delinqüente; o assassino como a hiena que se alimenta de restos abandonados. Ho-
mem de posses e bem relacionado, Adão inunda os jornais com a sua dor e a sua ira. Todas as suas
ações, todos os seus passos são divulgados. Até nos convites para as missas e o memento pela morte
do filho ele acusa “os cinco facínoras pertencentes à Sociedade União dos Estivadores”, cruzando
imagens religiosas com outras de amor e ódio.13
Compreende-se, assim, o clima de pressão que envolve o Tribunal do Júri, quando este se
reúne para julgar e decidir o destino dos réus. Segundo as reportagens coevas, as discussões são
acaloradas e brilhantes, mas de nada adiantam as palavras do advogado que inicia a defesa, apesar
da empolgação provocada pela coragem e audácia do que diz.
Bernadino Madureira de Pinho analisa o crime como um ato da luta de classes. Começa
lembrando a campanha feita contra os operários, e afirma que se está diante “do eterno problema do
capital e do trabalho”. “Lutas constantes se vinham travando contra os acusados”, a União criada
para coibir a exploração do operário, e a oposição composta por João de Adão e seus liderados. Vá-
rios companheiros dos réus foram mortos “e nada sofreram os autores dos delitos”. E explica: os
membros da sociedade, acuados, “careciam de se libertar daquele algoz, e praticaram um crime para
evitar que fossem assassinados os seus companheiros ante a atitude passiva [...] da justiça pública”.
Em outras palavras, Madureira de Pinho afirma que “os réus cometeram o delito, escudados em um
direito legítimo que o Código consagra no parágrafo 1o do artigo 32, e requisitos do artigo 33”. Eles
agiram no “estado de necessidade” que o dito parágrafo ampara, decretando que “não são crimino-
sos os que cometeram o crime para evitar mal maior”.14
Mostra a improcedência da prova testemu-
nhal composta até com declarações de um capanga da vítima, e entrega várias certidões comprova-
doras de assassinatos de sócios da União cujos autores ficaram impunes. Termina dizendo que não
solicita piedade porque seus constituintes têm direito à justiça. É aclamado, porém não muda a dire-
ção do vento.
13
A Tarde, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Gazeta do Povo, dias 12 e 13-09-1913. O fato se repete nos convites
para a missa de um ano da morte do filho. 14
As prescrições legais referidas são as seguintes. Código Penal, Artigo 32. Não serão também criminosos, § 1o. Os
que praticaram o crime para evitar mal maior; Artigo 33. Para que o crime seja justificado no caso do § 1o do artigo
precedente, deverão intervir a favor do delinqüente os seguintes requisitos: 1o – Certeza do mal que se propôs evitar, 2
o
– Falta absoluta de outro meio menos prejudicial, 3o – Probabilidade da eficácia do que se empregou. Cf. Código Penal.
Decreto n. 847, 11-10-1890. Senado Federal, Subsecretaria de Informações, versão digitalizada do texto original.
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Predomina a posição do Promotor, que exige vingança; evoca Euclides da Cunha, “fazendo
eloqüente paralelo” entre “os tipos criminosos que se apresentavam à barra daquele tribunal” e os
“delinqüentes admiravelmente descritos” nas páginas dos Sertões; analisa os traços fisionômicos
dos acusados segundo a “moderna antropologia criminal”, manifestando, tudo indica, preconceitos
de classe racializados; lamenta a revogação da pena de morte no Brasil republicano, própria para os
monstros que acusava; pede a maior condenação prevista em Lei; e conclui afirmando que “se os
jurados absolvessem os réus seria a sua desonra, a sua cobardia”.15
Como quase todos podiam prever, neste julgamento e em um segundo posterior, visto que a
história em tudo se repete em 1915, os assassinos do filho de Adão da Conceição Costa são conde-
nados com a pena máxima de trinta anos de prisão celular, encerrados na Penitenciária do Estado, e
lá esquecidos. Com isso, para muitos daqueles que viveram esses fatos, cristaliza-se certa versão da
história. A história de um crime singular, “o bárbaro assassinato de João de Adão”, mesclada à his-
tória de uma instituição bandida, a União dos Operários Estivadores da Bahia.
Estes conflitos, o crime, e as disputas simbólicas em torno do seu significado iluminam di-
mensões até hoje não estudadas pela historiografia: – a existência em plena Primeira República de
um sindicalismo que procura enraizar-se em bases nacionais e não estritamente locais ou regionais,
bem como a dinâmica específica de suas práticas de expansão e consolidação. Este é um tema espi-
nhoso, não só porque entrelaça a história social e política dos trabalhadores de estiva de diferentes
portos nacionais, mas porque este entrelaçamento é particularmente complexo, sobretudo onde pre-
domina o emprego da mão-de-obra avulsa, como acontece na maioria dos portos do mundo. Nesses
casos, operários e patrões tornam-se prisioneiros de lógicas de ação contraditórias, geradas por situ-
ações estruturais essencialmente distintas, mas sempre localmente diferenciadas. A “parede”, na
qual os estivadores são competidores fragilizados por estarem nas mãos daquele que, no cais, esco-
lhe quem irá trabalhar.16
E o processo de trabalho, no qual, em contrapartida, os estivadores ganham
15
Para relatos dos julgamentos, ver Jornal Moderno, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Correio da Bahia, A Tar-
de, O Estado, 5 e 6-10-1914; 29 e 30-07-1915. 16
No jargão portuário, “parede” é um termo que designa tanto o sistema de contratação da mão-de-obra, como o local
onde os operários são recrutados e os grupos de trabalho são formados. Por este sistema, surgido como forma de enfren-
tar a variação cotidiana da oferta de emprego, todas as pessoas que desejam trabalhar reúnem-se em horas convencio-
nais na “parede” (também chamada de “ponto”) ou “paredes”, onde, então, um determinado número de indivíduos é
escolhido pelos encarregados das firmas agenciadoras de mão-de-obra, na proporção exigida pelo volume de carga a
arrumar ou a estivar.
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força e poder, em função do trabalho grupal, interdependente, pouco hierarquizado, e relativamente
autônomo, que é o seu no convés e nos porões dos navios.17
Sob um determinado ângulo, a fúria das disputas que levam ao assassinato de João de Adão
traduz exatamente esta dialética da rivalidade e da solidariedade, expressa numa cultura operária
que vê na violência uma forma de honra viril. São famosos os casos dos valentões e as clivagens
internas que povoam o imaginário da estiva em diversos portos e países. Demonstrar esse fato não
é, todavia, o foco deste texto. O que se quer é discutir exclusivamente a narrativa do processo de
organização dos estivadores soteropolitanos, tal como é apresentada no opúsculo O Histórico da
Estiva. Um Relato de 1912 até os dias atuais, escrito pelo estivador baiano Heliogábalo Pinto Coe-
lho, em 1985.18
Suas informações sobre os capoeiras, os brigões e outros conflitos internos serão,
portanto, deixadas de lado.
O impresso tem uma proveniência em muitos aspectos fascinante. Segundo o seu autor, a as-
sembléia soberana e os diretores do Sindicato dos Estivadores e dos Trabalhadores em Estiva de
Minérios de Salvador e Simões Filho, “acostumados a ouvir „eu vou fazer a história da estiva‟ e
nunca acontecer”, autorizaram a redação do trabalho, pois “não desejavam ficar alheios, nem privar
mais ainda a classe de conhecer o seu grande passado”. Publicada com verba sindical, a “biografia
da estiva” é entregue à classe como um presente sempre almejado, e também como um incentivo
aos estivadores dos outros Estados “para que juntos façamos a história da Estiva do Brasil”.19
O
empreendimento é, por conseguinte, a materialização de uma aspiração dos operários escreverem
eles mesmos a sua história, o que, em tese, pode produzir a emergência de uma memória subterrâ-
nea incomum e valiosa.
Cabe então indagar. Partindo do pressuposto de que a memória não é estática, nem se desen-
volve pela simples incorporação de elementos novos, na seqüência do tempo; e já tendo vasculhado
os jornais contemporâneos à fundação da filial do sindicato dos estivadores cariocas em Salvador e
cruzado suas informações com outras fontes escritas da época, o quê se pode saber de novo sobre o
assunto em um texto operário composto tanto tempo depois? Qual o seu valor como fonte histórica?
17
Para uma análise aprofundada da questão, ver VELASCO E CRUZ, M. C. Virando o Jogo: estivadores e carregadores
no Rio de Janeiro da Primeira República. 1998. 319 páginas. Tese (Doutorado/Sociologia) – FFLCH, USP, São Paulo. 18
COELHO, H. P. O Histórico da Estiva. Um Relato de 1912 até os dias atuais. Salvador, Sindicato dos Estivadores e
dos Trabalhadores em Estiva de Minérios de Salvador e Simões Filho, 1986. 19
Idem, p.1-2.
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O objetivo central destas linhas é argumentar que muito se tem a aprender com O Histórico da Esti-
va, mas que este aprendizado não é tão simples e direto como uma leitura desavisada da obra pode-
ria, talvez, levar o leitor a supor. Para tanto, toma-se a história contada sobre o surgimento da insti-
tuição, não propriamente para analisá-la de modo exaustivo no plano textual e no dos conteúdos,
mas para explorá-la em suas características principais a fim de apontar a riqueza das mensagens que
Heliogábalo Coelho trançou nos fios narrativos das páginas que escreveu.
Convém começar pela transcrição de um trecho tal como foi concebido e publicado:
A navegação é tão velha, quanto a SERRA, não foi por acaso que ANDRADA pediu a COLOMBO
que fechasse as portas dos teus mares, apesar de não ter habitado diretamente em sua superfície, mas permitia a
entrada de ESCRAVOS em Países Feudais, sua face atraía os homens BRAVOS e VALENTES. E foi assim
que no passado bem longe, Deus abriu as portas e clareou a idéia do homem, dando-lhes o poder de raciocínio
e entre transportar pra longe ou perto, foi idealizada a embarcação flutuante em forma de BAÚ ou ARCA, e foi
se aprimorando até torná-las navegável e depois transportável (sic). Onde começou? Donde começou? Como o
mundo e o boato, cresceu como bola de neve e chegou ao estágio atual. Como o homem e o trabalho, nasceram
exatamente juntos, um deles descobriu a cognominação do trabalho nos porões e convés da embarcação, ES-
TIVAR e DESESTIVAR, é do que vamos falar a seguir na palavra escrita.
HELIOGÁBALO
Parte do subsídio para alcançarmos o passado, é de ARGEMIRO (Olho de Pombo) – ARGEMIRO
MANOEL DO NASCIMENTO, pai de RAIMUNDO NASCIMENTO que foi Presidente do Sindicato [...]
Até onde podemos pesquisar e descobrir? Foi assim: O TRABALHO DO PORTO – semi-escravo, e
que já tinha sido totalmente escravo, tinha no mundo, parte do mar, também seus mandatários, trabalho absolu-
tamente rendoso e privativo; entre os mandões, senhores de baraço e cotelo (sic) estava o inglês, que durante
anos a fio dominou o mundo, açambarcando a mão-de-obra de toda a África, que era produtiva e gratuita, e foi
proliferando com garra e ousadia, o potencial e riqueza do maior e mais importante o mais técnico e braçal, por
paradoxal que pareça, já que tem fórmula e exigência de trabalho de estiva, que pode ser classificado de BE-
LO-HORRÍVEL, considerando-se que a estivagem e desestivagem, nos porões e convés das embarcações de
todo porte, mais se pareça com uma construção, que requer força, sapiência, técnica e estilo.20
É importante sublinhar duas questões relevantes que este começo da narrativa desde logo
anuncia. A primeira diz respeito à estrutura formal do texto – seus códigos e convenções – e os si-
nais silenciosos da oralidade que marcam o opúsculo do princípio ao fim.21
Coelho emprega quase
sempre uma pontuação de oralização, em vez de uma pontuação gramatical. Separa com freqüência
o sujeito do verbo, porque suas vírgulas indicam principalmente pausas e entonações, tal como as
letras maiúsculas que de maneira contínua grafam palavras que deseja enfatizar, como em uma de-
20
Idem, p. 5. 21
Para a distinção entre procedimentos orais e escritos, ver, entre outros, ONG, W. J. Orality and Literacy. The Techno-logizing of the Word. Londres/Nova York, Methwen & Co. Ltd., 1985; ZUMTHOR, P. A Letra e a Voz. A Literatura
Medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993; CHARTIER, R. À Beira da Falésia. A História entre Certezas e In-
quietude. Porto Alegre, Editora Universidade/Ufrgs, 2002; além da vasta bibliografia sobre história oral, principalmente
os trabalhos teóricos de PORTELLI, A. como, por exemplo, The Peculiarities of Oral History. History Workshop, Lon-
dres, n° 12, outono/1981. p. 96-107.
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clamação. Por outro lado, a interrupção brusca feita para dizer que Argemiro é o manancial de parte
das suas informações históricas, é apenas a primeira de uma série de muitas outras. As descontinui-
dades constantes, as retomadas, digressões, redundâncias e correções que caracterizam sua narrativa
são procedimentos de fala mediante os quais o discurso oral se apresenta mais como um processo
do que como um texto planejado e acabado. O Histórico da Estiva não é uma exposição linear. Não
possui um fio condutor claro, nem um fecho narrativo. Desenvolve-se pela agregação caótica de
unidades textuais disjuntas, que mais parecem blocos de lembrança arrumados por uma memória
um tanto desobediente, pois não há em nenhuma passagem do texto a utilização evidente de fontes
escritas, embora exista a declaração repetida de que as conversas balizam o caminho da narração.
Não por acaso, seu pensamento é volta e meia entremeado com sistemas de memória. O pa-
rágrafo de abertura do trecho acima citado é, por sinal, um exemplo claro de memória semântica, ou
seja, a memória de materiais aprendidos.22
Nele Coelho cita de lembrança e de modo condensado
versos de O Navio Negreiro, que de tão repetidos têm quase o caráter de expressões formulariza-
das23
; evoca as Escrituras ao dizer que Deus deu ao homem o poder do raciocínio, deixando implíci-
ta a informação de que a primeira embarcação inventada é a Arca de Noé; parece de novo lembrar-
se dos versos de Castro Alves – “Donde vem? Onde vai?” – indagando-se a respeito da navega-
ção/navio – “Onde começou? Donde começou?” – para responder a pergunta com o dito popular:
“como o mundo e o boato, cresceu como bola de neve” e chegou ao estágio atual. O terceiro pará-
grafo retoma o assunto introduzido no final do primeiro período por outra expressão de saber con-
vencional – o trabalho nascido junto com o homem – tema que desenvolve mais ou menos no mes-
mo andamento até chegar à definição antológica do trabalho de estiva como “Belo-Horrível”, mais
próxima da memória episódica, isto é, da reconstrução da experiência vivida. Desta definição, ele
esclarece apenas o primeiro elemento, o “Belo”, talvez porque esta beleza – a estivagem como uma
“construção que requer força, sapiência, técnica e estilo” – é um elemento do orgulho de classe. O
“Horrível” fica inexplicado, de certo porque se refere a aspectos desagradáveis de experiências co-
nhecidas e compartilhadas. A estivadores não é preciso explicar o calor, o abafamento, o cansaço, e
o perigo do trabalho com lingadas pesadas, em ambientes fechados, sem janelas e, às vezes, despro-
porcionados. A qualificação dada é o bastante.
22
HOFFMAN, A. M.; HOFFMAN, H. S. Memory Theory: Personal and Social. In: Charlton,T.; Myers, L.; Sharpless, R.
(Eds.). Thinking About Oral History. Lanham/New York/Toronto/Plymouth, Altamira Press, 2008. 23
O Navio Negreiro,VI, 3a estrofe: [...] Andrada! Arranca este pendão dos ares!/Colombo! Fecha a porta de teus mares!
-
11
Ora, o “Belo-Horrível”, que é uma definição original sua, evidencia nitidamente que lembrar
e contar já é interpretar. Chega-se, assim, à segunda questão prenunciada no texto transcrito: os con-
teúdos subjetivos que envolvem a estória contada pelo autor. Nesses primeiros parágrafos, sua ima-
ginação trabalha com elementos míticos, literários e históricos, e ancora a legitimidade da estiva
numa origem que está além da História. É a partir desse tempo mítico e difuso, mas invadido pelas
imagens do tráfico negreiro moderno e da luta contra o cativeiro – acreditamos ser este o sentido da
comparação feita entre a “Navegação” e a “Serra”, instrumento capaz de cortar os grilhões dos es-
cravos – que ele constrói o contexto de sua narração. Sua estória flui da espoliação africana.
“O TRABALHO DO PORTO”, “semi-escravo”, fora no passado “totalmente escravo”.
Também no mar, ou seja, no interior das embarcações, os mandões eram “senhores de baraço e cu-
telo”, expressão forte, que recorda os castigos de um tempo de barbárie.24
Entre esses “mandatá-
rios” estava o inglês, dominador do mundo e monopolizador “da mão-de-obra de toda a África”.
Pois bem, logo a seguir ele diz que é igualmente da África que provém um dos principais persona-
gens de sua estória: o próprio João de Adão.
Segundo Coelho, no final do século XIX, início do XX, chega a Salvador “JOÃO DA
CONCEIÇÃO COSTA e seus familiares, entre eles JOÃO DE ADÃO, filho mais velho. Nascidos e
criados em possessões inglesas na África”, fluentes em várias línguas estrangeiras, familiarizados
com armadores europeus, ricos e “conhecedores profundos das manobras feudais e escravistas”, os
africanos logo dominam o porto, do qual se tornam “senhores FEUDAIS MARÍTIMOS”.25
A ambiência da história é cruamente descrita. A estivagem “atraiu sempre a vasta camada de
homens agigantados [...] uns em busca de trabalho em troca de algum dinheiro”, enquanto outros
“se contentavam em serem (sic) capangas”. “Se intitularam ESTIVADORES o que indiretamente o
eram, considerando que o próprio dinheiro que recebiam para a capangagem era fruto ou oriundo do
trabalho da estiva”. O plano temporal da intriga é fixado com imprecisão: “a esta altura, JOÃO DA
24
Baraço, corda com que se açoitavam réus, com leitura do pregão de culpa e pena, também usada para enforcar réus;
cutelo, instrumento composto de uma lâmina cortante e semicircular, presa a um cabo de madeira, empregado outrora
em execuções por decapitação. 25
O Histórico, p. 5-6. Para preservar o espírito do texto todas as palavras grafadas em caixa alta pelo autor, assim serão
escritas nas citações. Também será mantida a sua pontuação. O texto de Coelho é tortuoso e obscuro, pelo uso não gra-
matical das vírgulas ou pela oscilação da concordância verbal. Nesta passagem, ele qualifica de modo ambíguo os re-
cém-chegados como “descendentes de africanos, nascidos e criados em possessões inglesas”. Na página seguinte, refe-
re-se ao africano João da Conceição Costa, dando a entender que a expressão “nascidos e criados” também diz respeito
àqueles que chegam, e não somente aos seus ascendentes.
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CONCEIÇÃO COSTA entregara a seu filho JOÃO DE ADÃO toda a movimentação e a direção da
Empresa”, senhora de quase todo embarque e desembarque de mercadorias no mar. Já o plano da
ação e dos sujeitos é claramente apresentado de modo embaralhado, pois ele dá ao pai o nome do
filho, embora preserve o nome do pai no apelido do filho, o que não deixa de ser sugestivo. O pai
age nos bastidores, mas é aquele que mexe de fato os cordões.
Na narrativa, os nomes dos poderosos patrões africanos aparecem condensados, porém os
personagens permanecem distintos. “Como não podia deixar de ser”, escreve Coelho, o pai transmi-
te ao filho primogênito “todo ranço, sectarismo e rojão, fruto de uma época”. Surge, então, o grande
herói do nosso autor: “ARGEU JOSÉ DOS SANTOS, sindicalista juramentado que exercia a pro-
fissão de engraxate e nas horas vagas vinha para o porto”, mas que não obstante o envolvimento
parcial com o trabalho da estiva é apresentado como o verdadeiro artífice de sua libertação.
Descrito como “sagaz, namorador, mulherengo e atirado, semi-analfabeto, porém religioso
e assimilador” e, logo depois, também como “bom serviçal, lambanceiro e almofadinha”, o “Argeu”
de Heliogábalo Coelho “preferia sempre se envolver com nobres e ricos” – os Calmons principal-
mente – junto aos quais buscava proteção e “subsídios” para criar um “núcleo capaz de fazer frente
a JOÃO DE ADÃO e seus PROTETORES e PROTEGIDOS”. Apesar do “forte esquema” montado
pelos patrões, ele faz progressos, pois “enquanto João tramava entre meia dúzia e os capangas exe-
cutavam”, Argeu jogava “o jogo da Classe Patronal em sentido contrário”, e pouco a pouco conven-
cia os trabalhadores e os próprios capangas de que o melhor para todos era uma “ESTIVA BEM
ESTRUTURADA”, e “uma ORGANIZAÇÃO FORTE e UNIDA”.26
Visando tirar tal idéia de sua cabeça, os “Calmons e outros poderosos” nomearam-no en-
fermeiro do Lazareto, mas a manobra para afastá-lo da política não dá certo. Por “ironia do desti-
no”, em um feriado chega à cidade um navio com tripulantes contaminados por moléstia contagiosa.
Como devido à pressão dos armadores a descarga é logo iniciada, todos os estivadores que subiram
a bordo acabam sendo mandados para o Rio de Janeiro para serem submetidos à “chamada LAVA-
GEM HIGIÊNICA”. Sabedor do fato por estar tanto no hospital quanto no cais, Argeu aproveita a
oportunidade e consegue contatar o sindicato carioca, então presidido por “LUIZ DE OLIVEIRA,
um habilidoso sindicalista, que chegou a ser Presidente 13 vezes no Rio”. Oliveira, tomando conhe-
cimento “das intenções da Bahia” e “interessado em ser seu Presidente ou indicar”, procura “MA-
26
O Histórico, p. 6-7.
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NOEL THOMÁS”, um dos operários confinados na capital federal, mas já de retorno marcado para
Salvador. Neste encontro, entrega-lhe “um estatuto da estiva do Rio de Janeiro”, com instruções
para que “os documentos chegassem às mãos de ARGEU, o que na realidade aconteceu”.
“De posse desta poderosa „ARMA‟ e difícil, já que aqui entre os estivadores não tinha quem
redigisse”, o polivalente engraxate, enfermeiro, e trabalhador de estiva vê-se “com a faca e o queijo
nas mãos”, podendo de fato partir “para a difícil tarefa de encontrar sacrificados, e que tivesse[m]
ousadia e experiência”. De acordo com a narração, “nesse quebra-cabeça ARGEU levou anos”, de-
dicando-se inteiramente à causa da estiva e de sua organização. “Por esta ESTIVA, que muitos go-
zam e desfrutam a tripa-forra, sem saber quantos sacrifícios, quantas vidas foram arrancadas, quan-
tos anos de cadeia, quantas desgraças rolaram, para que chegássemos ao estágio atual”.27
Essa declaração enfática, que logo adiante se emenda em retalhos cada vez mais inacabados,
avaliativos, e redundantes, é o primeiro sinal de que a história caminha para um desfecho trágico.
De imediato, a narração prossegue com uma espécie de arremate factual incompleto. Diz-se apenas
que o organizador da classe consegue “sentar numa sala ao redor de uma mesa 400 homens (Gê-
nios) ou naturezas completamente diferentes, desde o VALENTE ao SUPER-MOFINO, todos abso-
lutamente todos, obedecendo uma liderança, a de ARGEU JOSÉ DOS SANTOS, que perseguia um
só ideal: FUNDAR A SOCIEDADE UNIÃO DOS ESTIVADORES”.
A essa afirmativa segue-se um texto de redação confusa. Coelho desqualifica a burguesia e
a classe média; reafirma que Argeu continua sua luta pela organização de toda a mão-de-obra, já
contando, todavia, “com alguns valores e a simpatia dos ADÃOSISTAS que trabalhavam na Estiva
Livre28
, como JOSÉ ETELVINO PEREIRA”; informa que à medida que aumentava o sentimento a
favor do sindicato, “crescia também o ódio no coração de JOÃO DE ADÃO”; volta atrás, retoma o
tema da propaganda ideológica, e cita o nome de outros homens atraídos para a causa sindical, entre
os quais Nozinho, Sete Mortes, e “o próprio AGUIDO CIRIACO ELEUTÉRIO – O Guido – que
não trabalhava, porém era o mais temido JAGUNÇO de JOÃO DE ADÃO”; e por fim, desta men-
ção a Guido, engata de forma abrupta no primeiro relato do homicídio do referido João.
27
O Histórico, p. 8. 28
“Estiva Livre” é um termo anti-sindical empregado pela burguesia para qualificar a mão-de-obra estivadora não
“submetida” ao sindicato. Para uma análise do discurso patronal e do conceito equivalente de “trabalho/trabalhador
livre”, ver VELASCO E CRUZ, M. C. Da Tutela ao contrato”: “homens de cor brasileiros e o movimento operário
carioca no pós-abolição. Topoi, Rio de Janeiro, n° 20, junho/2010. p. 114-135.
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Literalmente, os fatos são assim apresentados: “[Guido] Vagabundo e Valente, [...] conven-
cido e atraído, pela catequese diária, e, também decepcionado pelas negativas de JOÃO DE ADÃO,
que nesta altura dos acontecimentos, já estava lhe negando dinheiro e comida, e ele GUIDO perdia
a cada hora terreno entre a roda da malandragem e do jogo. Passou para o lado de ARGEU e foi
escolhido entre os cinco, que dias depois do ano de 1913 assassinará JOÃO DE ADÃO numa em-
boscada sinistra no armazém BOLA VERDE na descida do Caminho Novo”[...]
Na seqüência do texto o autor reconta toda a campanha de sindicalização, desta vez a ela a-
gregando o baiano “DOMINGOS CÍCERO, intelectual e ferrenho defensor... da UNIÃO”. 29
Por
mais interessante que seja esta segunda narrativa dos fatos, não é preciso continuar seguindo os seus
tortuosos caminhos. Para os propósitos desta reflexão cabe apenas ressaltar que o episódio da morte
de João de Adão parece ter capturado e absorvido quase todos os eventos sobre a fundação do sin-
dicato. E isto, não só pela recorrência com que é narrado ou referido – o episódio está presente em
mais oito passagens do texto – como também pela forma épica de sua narração.
Na verdade, a história contada por Heliogábalo Pinto Coelho é uma mistura admirável de re-
alidade e fantasia. A dominação do porto por homens recém-chegados da África é, por exemplo,
mítica, e não real. Adão da Conceição Costa nasceu em 1850, tudo indica em território baiano, pois
se declara brasileiro em inúmeros documentos civis e se refere publicamente à Bahia como sua terra
natal. Embora não saibamos ainda se em algum momento morou em solo africano, é possível afir-
mar com certeza que ele jamais chegou à Bahia no final do século XIX ou início do século XX,
acompanhado do primogênito João de Adão, nascido e criado em possessões inglesas na África,
para então dominar com seus familiares o porto de Salvador, em poucos anos. Seus dois únicos fi-
lhos – o mais velho, Domingos da Conceição Costa, e o mais novo, João da Conceição Costa, vulgo
João de Adão – nasceram ambos na capital da Bahia, em 1882 e 1884, fruto de um relacionamento
com a “crioula Anna Maria da Conceição, mulher solteira”, com quem, aliás, ele nunca se casou. O
negócio de intermediação de mão-de-obra estivadora é, na realidade, obra exclusivamente sua, e
construída quando os filhos eram ainda crianças. Na década de 1890, Adão da Conceição Costa já
era um homem rico, dono de propriedades urbanas valiosas, e controlador de vários saveiros devi-
damente arqueados e licenciados na Capitania do Porto. Já estava, portanto, fortemente plantado nas
atividades de estivagem, comércio cujo domínio nunca deixou fugir de suas mãos, como bem ates-
29
O Histórico, p. 8-10.
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tam os documentos do espólio de João. As relações mercantis entre os dois são sem dúvida as de pai
para filho, mas não deixam de ser também as do senhor para com o administrador.
Além do mais, é igualmente mítica a estória de que a sindicalização dos trabalhadores de es-
tiva soteropolitanos acontece em função da militância quase solitária de Argeu José dos Santos, e do
aproveitamento de uma ocasião produzida “por ironia do destino”. Não é preciso que doenças le-
vem por acaso estivadores baianos à capital da República, para que laços políticos possam se esta-
belecer entre os operários das duas cidades. Eles surgem, sobretudo, porque os relacionamentos são
ativamente buscados pelos próprios trabalhadores.
Já desde os primeiros estatutos, a União dos Operários Estivadores do Rio de Janeiro, socie-
dade fundada em 1903, institui “a obrigação de estreitar os laços de solidariedade operária com to-
das as associações congêneres, dentro e fora do país”. Com pouco mais de um ano de funcionamen-
to, a União estabelece com a Sociedade dos Obreiros do Porto de Buenos Aires e a Federação O-
breira Regional Argentina um pacto político de apoio mútuo, pelo qual se compromete a tentar or-
ganizar todos os operários dos portos brasileiros. Em 1904, os trabalhadores de estiva cariocas fun-
dam o jornal Tribuna dos Estivadores, intensificam seus contatos com o exterior, e iniciam um tra-
balho de mobilização dos portuários que logo se estenderá a Santos, e do qual surgirão, no Rio, dois
sindicatos portuários, ambos em 1905. Em 1906, a União envia uma delegação ao norte e ao sul do
país em viagem de propaganda e funda, no Rio Grande do Sul, a sua primeira filial em outro estado.
É no quadro deste esforço de organização que se deve procurar entender vários aspectos das
disputas que selam a morte de João de Adão. Mas isto, somente se os fatos não forem interpretados
como um mero processo de expansão das conquistas operárias do Rio de Janeiro. A criação da su-
cursal em Salvador é um empreendimento buscado por ambas as partes, e do qual os estivadores
soteropolitanos participam ativamente como atores independentes. José Argeu dos Santos está de
fato entre eles, mas é um entre inúmeros outros, e não propriamente o mais importante. Nos eventos
narrados sobre as ações dos operários há, portanto, uma redução do coletivo ao individual, além de
um determinado desvio pessoal – de parceiro ou coadjuvante, Argeu passa a protagonista central.
Porém, se ao reconstruirmos os processos históricos miramos os fatos reais, de que nos ser-
vem as fantasias de um operário que nem os fatos viveu? Já foi dito que as conversas balizam o
caminho do autor, que não trabalha com documentação escrita. Para Coelho, as razões do presente
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estão perdidas em um mundo passado e esquecido, cujo acesso só os idosos podem ter. Imerso em
um universo de oralidades, ele busca o saber daqueles que vivenciaram ou testemunharam os even-
tos que procura desvendar. Contudo, se suas conversas são parte do passado, e se é impossível delas
participar, como saber se as fantasias acima apontadas são dele ou daqueles com quem conversou?
Essa indagação não tem uma resposta cabal, embora seja possível apresentar uma hipótese
provável. Vimos que Heliogábalo Coelho escreve multiplicando os retrocessos, as retomadas, e os
procedimentos de fala. O seu texto é o de alguém que não só vai buscar nas lembranças dos mais
velhos os acontecimentos do passado longínquo, mas é igualmente aquele de uma pessoa que confia
na própria memória para narrar a história que ele próprio presenciou.30
Em suma, o que se quer su-
gerir é que o Histórico da Estiva é melhor compreendido se for considerado como a versão escrita
de um depoimento oral. Nesse sentido, é plausível se supor que as passagens agonísticas, participa-
tivas, e fortemente avaliativas sinalizam interferências do autor, enquanto que os trechos de narra-
ção épica e de perspectiva mais distanciada indicam a presença das versões coletivas. Sendo assim,
é possível sustentar que a narrativa da morte de João de Adão espelha a fala dos seus informantes,
mas que o relato sobre a centralidade absoluta de Argeu é uma contribuição pessoal do escritor.
Distinguir entre o quê Coelho possivelmente ouviu do quê ele “artisticamente” narrou é es-
clarecedor. Porém, cabe dizer que esses aspectos estão emaranhados. Nenhum pensamento, mesmo
fantasioso, é estranho à realidade social do grupo. Voltaremos a esse emaranhado mais adiante. A-
gora, cabe marcar que a História Oral nos diz menos sobre os fatos em si do que sobre o seu signifi-
cado. Com isso não se quer dizer que as fontes escritas têm o monopólio da credibilidade empírica,
ou que as orais carecem de interesse factual (a informação de que José Etelvino Pereira era um A-
dãosista da “estiva livre” tem uma riqueza factual que só o pesquisador da história do sindicato po-
de bem estimar), e sim que o elemento mais precioso das fontes orais é a subjetividade do narrador.
Em outras palavras, as fontes orais esclarecem “não propriamente o quê as pessoas fizeram, mas o
quê quiseram fazer, o quê acreditaram estar fazendo, e o quê pensam que fizeram”.31
Assim, com
freqüência, os “erros” e os silêncios do narrador são mais relevantes para a pesquisa histórica do
que os relatos factualmente corretos, última questão que importa aqui explorar.
30
Refiro-me, evidentemente, a trechos do opúsculo que dizem respeito aos períodos mais recentes da história do sindi-cato. 31
PORTELLI, A. The Peculiarities of Oral History, p. 99-100.
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Não deixa de ser intrigante o “erro” na afirmativa de que João de Adão é africano quando,
na verdade, é brasileiro. Esta informação parece ser um elemento das memórias semânticas entrela-
çadas nas construções narrativas que formam a base da memória social dos idosos de vários setores
das camadas populares de Salvador. Pelo menos, é o que se deduz da minha conversa com Benedito
Pereira do Rosário, que me contou a história do homicídio, tal como a ouviu de Polieno Santos, um
alfaiate de quem fora aprendiz, e que a ele se apegara por ter “perdido um filho estivador, o Zeca,
que morreu novo”.
Segundo Benedito, Polieno era um “negro elegante, que tinha orgulho de ser negro”. “Era
neto de Sabino, um africano malê que vivia com quatro mulheres na sua roça lá pelos lados da Bar-
ra, a roça das Sabinas”. Foi quando trabalhava em sua oficina do Caminho Novo, local freqüentado
por muitos fregueses da estiva, que ele lhe contou a seguinte versão dos fatos, aliás, bem simples:
João de Adão tinha um pessoal forro que trabalhava pra ele. Havia um movimento muito forte contra
o sindicato. Naquele tempo não havia uma sistematização. Os estivadores faziam o trabalho, João de Adão re-
cebia, e pagava a eles. João de Adão era o chefe dos africanos e o líder da resistência ao sindicato. Havia dois
grupos. Um que estava do lado do sindicato e outro que era contra. Foi em 1912. Um dia houve um tiroteio en-
tre os dois grupos no Caminho Novo, e João de Adão morreu. 32
Ou seja, entre os anos 1940 e 1950, um homem negro nascido em 1912, neto de um africa-
no malê, e que tinha uma vida profissional cercada de estivadores, conta esta estória em que a Áfri-
ca está profundamente conectada à figura de João de Adão.33
Mas, afinal, de onde vem esta idéia
dos laços africanos de João?
Uma resposta possível parece estar nas visões de mundo e no estilo de vida do seu progeni-
tor, com quem, aliás, ele morava na época em que foi assassinado. Nascido em 1896, órfão de pai
aos dois anos, Miguel Arcanjo de Santana é criado na casa da tia madrinha Delfina, filha de uma
escrava com um espanhol, e que acontecia ser justamente a primeira esposa de Adão da Conceição
Costa. Santana assim descreve a residência e os costumes sociais do seu tio por afinição:
Lá havia fartura. A casa era a de no 1 na ladeira do Barbalho, depois do Arco. Tinha cerca de nove
quartos. No primeiro vão, além de quatro quartos, havia duas salas: a sala nobre, com as paredes forradas de
papel vindo do estrangeiro, tapetes, lustres de cristais. Essa sala só se abria em dias de gala. Na outra sala, onde
ficavam o piano e a caixa de música é que a gente fazia a fuzarca. Embaixo desse vão era a cozinha, mais cinco
quartos para a criadagem, e um sanitário. (...) Lá não se comprava nada de quilo, todo mês era saca disso, saca
daquilo. Tinha até carroça só prá fazer esses carregos. A manteiga vinha em barril da Dinamarca. O vinho da
França ou Portugal (...) Todo dia era (sic) seis a oito panelas de comida. Tinha comida para os trinta e dois
32
Entrevista com Benedito Pereira do Rosário, ex-alfaiate e trabalhador do porto, nascido a 11 de dezembro de 1935.
Salvador, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, outubro de 2006. Ênfase minha. 33
O ano de nascimento de Polieno foi calculado a partir da sua idade quando foi ao casamento de Benedito, em 1972.
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empregados africanos. Chamava-se empregado, criado. Mas uns trabalhavam na roça ou nos serviços de
casa e outros trabalhavam por conta própria. Adão deixava eles morarem lá. Uns eram tanoeiros ... Ou-
tros eram calafates, outros carregavam cadeiras de arruá, outros trabalhavam no canto (...) Foi com os negros
de lá de casa que eu aprendi yorubá. A comida lá de casa era separada: feijão ou cozido que era feito com todos
os tipos de verduras, carne de boi seca ou fresca para a criadagem. Para os da casa, meu tio, minha tia, a gover-
nanta, que era brasileira, eu e meu irmão, a comida era diferente: lombo, angu de batata, salada de alface com
agrião, etc. No entanto o vinho era pra todos, uma caneca prá cada, todo dia.34
A descrição se completa com a indicação de que “o velho Adão era um homem muito bom”,
mas de moral austera. Colocou o sobrinho para estudar das nove às doze, e de uma às quatro. O
jantar era às cinco, sucedido por aulas de alemão das seis às sete. Terminado o primário, quando
Miguel passou a secretariar Adão nos vapores anotando o tempo de trabalho de cada estivador, o
traquinas às vezes conseguia escapulir e chegava em casa bem tarde. Cuidadoso, ele tirava os sapa-
tos depois de comer, e passava engatinhando pela porta da sala onde o tio ficava escrevendo à noite,
para que este não percebesse a hora em que fora dormir. Na manhã seguinte, invariavelmente, Adão
lhe perguntava sobre os seus horários, mas ele respondia matreiro: “Cheguei cedo”.35
Através dos relatos de Santana é possível começar a se ver o perfil de um negro rico e seve-
ro, que mantém as hierarquias e as distâncias sociais, e que vive como um patriarca distribuindo
favores, cercado de parentes e de vasta clientela de velhos trabalhadores africanos. Adão não é de
fato um homem comum. Cioso de sua riqueza, casa-se duas vezes, sempre com separação de bens.
Suas esposas vivem na abastança, porém morrem relativamente pobres, como se fossem membros
privilegiados da sua ampla rede de dependentes. Minimamente, é o que se infere tanto do inventário
de Delfina Conceição Costa, que ao morrer, em 1917, deixa apenas três casinhas avaliadas em
600$000 cada uma, como também do testamento de Adão Costa, feito em 1927.
Da metade disponível dos seus bens, estimados em mais de 218 contos de réis, ele ordena,
entre outras prescrições, que a casa onde mora dona Elisa Ramos ficasse para a moradia gratuita de
sua segunda esposa, dona Maria Joaquina de Jesus, a quem deixa ainda uma pensão mensal de
140$000 e o usufruto de uma casa; fixa pequenas pensões mensais para três senhoras, entre as quais
a sua sogra, e outra maior para a Conferência de São Vicente de Paulo da Matriz de Santo Antônio;
determina a seus herdeiros que as nove pessoas entre parentes afins e estranhos listadas no texto
continuassem a viver em suas propriedades nas condições em que vivem, isto é, de graça; deixa
para a Sociedade Protetora dos Desvalidos, por morte dos seus usufrutuários, a enorme roça da Rua
34
CASTRO, J. G. da Cunha (Org.). Miguel Santana. Salvador, Edufba, 1996, p. 18-19. 35
Idem, p. 19.
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do Arco no 1 e as várias casas nela existentes; e manda que seu corpo fosse enterrado no chão, até
que seus ossos pudessem ser postos na cava que tem na Ordem Terceira do Rosário.36
Ligações com sólidas instituições negras como o Rosário e a Protetora dos Desvalidos, o pe-
dido para ser enterrado no chão, e a vasta clientela de ex-escravos africanos são dados que parecem
justificar a imagem projetada sobre Adão e seu filho João. Todavia, é a evidência acidental de um
artigo de jornal que talvez mais diretamente aproxime os dois empreiteiros de estiva às redes sociais
que cruzam o Atlântico e chegam à África.
Nele, o autor dirige ironicamente as seguintes perguntas ao Presidente Epitácio Pessoa: “que
acepção toma a palavra „negro‟ para excluí-lo da guarda de honra da recepção do rei dos belgas?
Será na acepção americana do „full blooded negro‟ ou simplesmente na acepção brasileira?” E res-
ponde: “Se na primeira acepção, o Sr Dr Epitácio tem que deixar a presidência, porque não sendo
negro de sangue puro, não é tão pouco „lily white‟ dos Estados Unidos; na segunda [...] não terá [...]
a guarda de honra para a recepção régia, pois em sua maioria o nosso exército é de homens de cor”.
Esclarece que o rei belga não se ofenderia com a presença da guarda mestiça, porque os negros têm
visitado o seu país, “onde já funcionou como secretário do Interior um „negro‟ natural da Nigéria
(Lagos) de nome Geraldo Samuel, de pais brasileiros, professor primário da cor da noite”. E termina
o texto com o protesto direto: “Basta de maus tratos, Sr. Presidente! Somos também filhos de Deus.
Queira-nos bem. Bahia, 19-07-1920 – Maxwell P. de Assumpção, Bacharel em Direito, Advogado e
Professor de Inglês”. 37
Ora, Maxwell Porphyrio de Assumpção é o orgulhoso advogado negro que mostrará a Do-
nald Pierson um número do Nigerian Daily Times com fotos do seu primo Adeyemo Alakija, Baru-
jim de Aké, vestido com os trajes reais de chefe africano de Abeokuta. 38
Contudo, esse negro de
nome inglês, educado, e vaidoso dos seus importantes laços familiares com a África e a Inglaterra é
também justamente o advogado que assessora Adão da Conceição Costa em todos os lances da luta
36
Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária (civil). Delfina Conceição Costa: Livro de Notas 1377 (2561),
Inventário, 1922-1925; Adão da Conceição Costa: Livro de Notas 1377 (908), Inventário, 1935-1943. 37
Diário de Notícias, 21-07-1920. 38
MATORY J. L. The English Professors of Brazil: On the Disasporic Roots of the Yoruba Nation. Comparative Studies
in Society and History, Cambridge, vol. 41, n° 1, 1999. p. 72-103; PIERSON, D. Brancos e Pretos na Bahia. São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1971, p. 280; CUNHA, M. Carneiro da. Negros, Estrangeiros. Os escravos libertos e sua
volta à África. São Paulo, Brasiliense, 1985.
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contra o sindicato, aquele que participa do sumário de culpa dos assassinos de João e que, solidário,
acompanha o consternado pai nas suas constantes visitas às redações dos jornais.
O que foi apresentado já é o bastante para mostrar que o “erro” de Heliogábalo Coelho abre
um importante campo de pesquisa. Dado o universo cultural e social no qual Adão demonstra se
mover, não é absurdo imaginar que ele tenha estendido ao porto a sua vasta rede de clientela, e que
também tenha procurado enfatizar junto aos seus dependentes um forte sentido de unidade. Na Ba-
hia da Primeira República, o mundo patronal do porto aparenta misturar-se com a dignidade de cer-
tos terreiros. Vemos agora que ele igualmente pode se entrelaçar com as conexões sociais dos pro-
fessores negros de inglês. Tudo isso parece indicar que a violência das disputas provocadas pela
fundação do sindicato deve ser compreendida não só como a expressão de um conflito de classes
configurado por determinadas relações estruturais de produção, mas também como o resultado da
subversão de hierarquias sociais e valores culturais caros às concepções de mundo burguesas enre-
dadas nas identidades yorubás transnacionais, sugeridas por Matory. Se este for o caso, estas lutas
ocorridas no cais do porto podem ser o último episódio do antigo processo de disputa de negros
livres contra negros escravos neste setor do mercado de trabalho, evidenciado, em 1861, quando
trabalhadores de estiva reclamam junto ao Presidente da Província contra o “nocivo abuso” da in-
trodução “de escravos no serviço da classe de estivador”.39
Convertem-se, por conseguinte num
fenômeno crucial para a compreensão do surgimento do moderno sindicalismo de resistência na
cidade de São Salvador da Bahia.
Bibliografia
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