a literatura e a sociedade
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A literaturae a sociedade
cada vez mais perto do sculo XXI, naturalque ocorram tentativas de balano do scu-lo em que vamos vivendo e que, por outrolado, se procure vislumbrar aquilo que, denossa poca, passar para aquela que seaproxima.
uma recorrncia de todas as pocas:
buscar a continuidade entre elas por inter-
mdio de snteses histricas que estabele-
am o domnio da memria sobre a
fugacidade e apontem para a perenidade.
O tempo passa mas algo fica e este algo
a matria da memria histrica que busca
resgat-lo para um presente que sempre
feito de passado e cujas marcas e imagens
so inscries para uma futura busca de
decifrao.
Por isso, a continuidade entre as pocas
nunca feita de diacronias absolutas: as
rupturas que, em geral, apontam para o fu-
turo fazem parte, mesmo no passado, da-
quelas inscries que s o futuro vir deci-
frar. Mas no h passado sem uma inter-
veno do presente, e se o futuro do que
passou o nosso presente porque a me-
mria histrica, ela mesma, recusa o puro
diacronismo e se afirma como presena
sincrnica.
Sendo assim, somente aquelas snteses
que envolvem o presente situado do intr-
prete (para utilizar uma expresso j anti-
ga de sabor sartriano) podem oferecer in-
teresse: as demais so, em geral,
jeremiadas, quando se referem ao passa-
do, ou, no outro plo temporal, vagos exer-
ccios de futurologia.
Nesse sentido, quando se procura hoje
dizer o que foi este sculo XX que vamos
terminando e o que ele foi o resultado
tanto daquilo que o precedeu quanto das
projees para os anos vindouros me-
lhor via, talvez, seja esboar, a partir de
um tema singular, o modo pelo qual este
tema no apenas apreendido pelo pre-
sente do intrprete mas como esta apreen-
so antes o resultado de um movimento,
cujas razes histricas e sociais so ele-
mentos definidores quer da linguagem da
poca, quer da prpria metalinguagem com
que o esboo proposto, do que de uma
volio pessoal do intrprete.
Desse modo, se tomarmos como fulcro
JOO ALEXANDREBARBOSA professor aposentadoda FFLCH-USP e autor,entre outros, deA Biblioteca Imaginria(Ateli Editorial).
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de meditao o largo tema das relaes en-
tre literatura e sociedade, e no de uma apro-
ximao particularizada a uma ou outra,
veremos que, para incio de conversa, seria
impossvel marcar o teor dessas relaes sem
que fosse levada em conta a prpria trans-
formao conceitual que sofreram os dois
termos em decorrncia do modo pelo qual
quer literatura, quer sociedade passaram a
designar aspectos diversos da realidade.
A pergunta pelo lugar que ocupam lite-
ratura e sociedade no conjunto das refle-
xes que possam ser feitas em fins do scu-
lo XX envolve, por isso, no somente a
questo mais ampla da prpria representa-
o da realidade, o que significa dizer
modos de representao por onde as
vinculaes entre literatura e sociedade so
extremadas, mas ainda a prpria qualidade
ou intensidade com que se d tal represen-
tao. (Lembre-se, entre parnteses, que o
rastreamento desse tema j foi abordado,
de modo magistral, no livro Mimesis, de
Erich Auerbach, publicado em 1942, e cujo
subttulo expressamente a representa-
o da realidade na literatura ocidental.)
J O O A L E X A N D R E B A R B O S A
do fim do sculo
um tema aglutinador: desde os incios
das reflexes poticas, desde, pelo menos,
Plato e Aristteles, a questo da represen-
tao a contraparte terica da prpria ope-
rao potica. E no poderia ser de outra
forma uma vez que, se instaurando no es-
pao ficcional, mas traduzindo elementos
obtidos nas relaes sociais, o potico tem
a sua singularidade em operar intensamen-
te nos intervalos entre a experincia e a
representao da experincia pelos deslo-
camentos possveis da linguagem.
Experincia, representao e lingua-
gem: termos sem os quais no seria poss-
vel hoje, em fins do sculo, pensar tudo
aquilo que foi realizado em nome da litera-
tura e do potico ou das sociedades que
viabilizaram as suas articulaes. E isso
porque, sobretudo, no se trata mais de falar
em adequao entre literatura e sociedade
como resultado de suas relaes mas de
incluir, como elemento fundamental de ca-
racterizao, quer da literatura, quer da
sociedade, os momentos de inadequao
atravs dos quais o potico se expande na
criao de um espao e de um tempo capa-
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zes de romper com os estreitos limites de
uma diacronia evolutiva de causa e efeito.
As conseqncias disso para as refle-
xes que preenchem os estudos literrios
so evidentes, indo desde as anlises parti-
cularizadas das obras, em que os estmulos
sociais so pensados na mais ampla
integrao estrutural que define a compo-
sio literria, at as leituras de histria
literria no mais pensadas como etapas de
uma evoluo unilateral mas como cortes
sincrnicos operados numa ampla
diacronia.
Por outro lado, as conseqncias referi-
das esto aliceradas numa aguda sensibi-
lidade para aquilo que um crtico fora de
moda e de extrao eliotiana, Lionel
Trilling, chamou de sentido do passado,
isto , uma certa intuio de que, mesmo
nas obras as mais contemporneas, esta-
mos sempre lendo, ao lado das realizaes
formais que somente a contemporaneidade
sabe decifrar, um substrato histrico que
permite que a obra transcenda a sua prpria
existncia temporal. Mas uma transcen-
dncia paradoxal porque ela se firma, como
j foi dito, numa presena sincrnica
articuladora de diacronias.
Numa direo semelhante, a leitura das
obras do passado, uma vez que se tenha
escapado aos perigos do arqueologismo e
do anacronismo as duas principais ame-
aas que sempre rondam a leitura histrica
, somente se completa medida que so
preenchidos ou recuperados aqueles acrs-
cimos de significante, para usar uma ex-
presso do crtico Frank Kermode, no en-
saio The Classic, atravs dos quais a obra
se transforma em nossa contempornea.
Acrscimos de significante, e no ape-
nas de significados, que permitem leitura
presente um sentido de continuidade para
alm do tempo de realizao da obra, desde
que, entre o espao e o tempo da obra e sua
atualizao pelo leitor futuro, esteja a ex-
perincia de outras obras e de outras leitu-
ras elementos isomrficos de outras rea-
lidades sociais.
Por isso, possvel dizer que a leitura
atual de um clssico como o D. Quixote a
leitura da obra de Cervantes acrescentada por
aquilo que, por exemplo, um Americo Castro
leu na obra, mais a experincia de leituras
diversificadas do leitor singular do Quixote,
acrescidas das diferentes relaes sociais e
histricas que identificam este leitor.
Assim, toda a experincia histrica ou
social do leitor contemporneo, mais a lei-
tura pontual de uma j extensssima biblio-
grafia cervantina, faz a diferena entre a
sua percepo de Alonso Quijano e a da-
quele leitor que, ainda prximo das mara-
vilhas das novelas de cavalaria, lia
Cervantes no sculo XVII. ( claro que,
mesmo num parntese, no possvel dei-
xar de mencionar, como ecos de uma crti-
ca contempornea de leituras de Cervantes,
o memorvel texto de Borges, Pierre
Menard, Autor del Quijote, de Ficciones,
ou mesmo o no menos notvel Magias
Parciales del Quijote, de Otras In-
quisiciones.)
Mas essa insistncia nas categorias de
leitura e de leitor que vai dominando as
minhas reflexes no pode e no deve ser
escamoteada: pelo contrrio, ela
reveladora de uma atitude com relao ao
texto literrio que encontra o seu respaldo
nas prprias transformaes que vm so-
frendo os modos de articulao entre expe-
rincia, representao e linguagem que so,
por sua vez, os vetores principais das rela-
es entre literatura e sociedade.
Na verdade, na leitura de uma obra h
sempre uma pergunta de base tripartite que,
embora no explicitada e nem sempre nes-
ta ordem, corresponde quelas articulaes:
que tipo de experincia se representa na
obra por meio de tal ou qual linguagem?
Se num texto realista-naturalista a res-
posta pode ser tramada a partir das relaes
mais ou menos evidentes entre experincia
e representao, atravs de uma linguagem
que busca o seu prprio desaparecimento
enquanto linguagem, no limite desejando-
se enquanto transparncia para a revelao
da prpria experincia, como est, por
exemplo, em Gustave Flaubert, para quem
o ideal seria escrever uma obra sem assun-
to, que se sustentasse pela fora do estilo,
ou simplesmente desconhecendo outra fun-
o para a linguagem que no fosse a emi-
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nentemente representativa ou referencial,
como est em mile Zola, em textos poste-
riores, digamos os simbolistas e seus su-
cessores, a densidade de linguagem difi-
culta a apreenso das relaes entre expe-
rincia e representao, na medida em que
acrescenta quelas a necessidade de uma,
por assim dizer, conscincia de leitura da
literatura em que a experincia e sua repre-
sentao parecem advir de uma realidade
de segundo grau, produto j da fico po-
tica. E esta conscincia, que, talvez, no
seja mais do que uma intensificao da-
quela conscincia literria de origens ro-
mnticas, sobretudo anglo-germnicas,
dominante em grande parte da literatura
ps-simbolista: uma conscincia que se, por
um lado, aponta para uma crise da repre-
sentao, por outro, especifica a condio
da literatura enquanto literatura e, como
decorrncia, do leitor enquanto leitor. Des-
se modo, a experincia que se representa
tambm, ou sobretudo, uma experincia de
leitura.
Num outro contexto, Gatan Picon sou-
be registrar o problema, escrevendo:
O movimento potico que, partindo do
Simbolismo do fim do sculo, conduz, atra-
vs de mltiplas transformaes, ao movi-
mento surrealista, uma conscincia antes
de ser uma criao. Nunca tantos escritos
tericos acompanharam o movimento da
criao. A poesia contempornea uma
poesia reflexiva, crtica, uma poesia de
cultura, ligada meditao e leitura de
obras anteriores (1).
Mas foi, certamente, Paul Valry, um
dos herdeiros diretos do Simbolismo, que,
em texto de 1938, intitulado Existence du
Symbolisme, soube estabelecer a articu-
lao precisa entre essa qualidade do estilo
da nova poesia, para usar os termos de
Picon, e suas relaes com o pblico. Re-
ferindo-se aos simbolistas diz ele:
Ils oprent ainsi une sorte de rvolution
dans lordre des valeurs, puisquils
substituent progressivement la notion des
oeuvres qui sollicitent le public, qui le
prennent par ses habitudes ou par ses cts
faibles, celle des oeuvres qui crent leur
public. Loin dcrire pour satisfaire un
dsir ou un besoin prexistant, ils crivent
avec lespoir de crer ce dsir et ce besoin;
et ils ne se refusent rien qui puisse rebuter
ou choquer cent lecteurs, sils estiment par
l conqurir un seul de qualit suprieure.
Cest l dire quils exigent une sorte de
collaboration active des esprits, nouveaut
trs remarquable, et trait essentiel de notre
Symbolisme. Peut-tre ne serait-il
impossible ni faux, de dduire de lattitude
de renoncement et de ngation que jai
dgage tout lheure, dabord ce
changement dont je parle et qui consista
prendre pour partenaire de lcrivain, pour
lecteur, lindividu choisi par leffort
intellectuel dont il est capable; et ensuite,
cette consquence seconde, que lon peut
dsormais offrir ce lecteur laborieux et
raffin, des textes o ne manquent ni les
difficults, ni les effets insolites, ni les essais
prosodiques et mme graphiques quune
tte hardie et inventive peut proposer de
produire. La voie nouvelle est ouverte aux
inventeurs. Par l, le Symbolisme se
dcouvre comme une poque dinventions;
et le raisonnement trs simple que je viens
desquisser devant vous nous conduit,
partir dune considration trangre
lesthtique, mais vritablement thique,
jusquau principe mme de son activit
technique, qui est la libre recherche,
laventure absolue dans lordre de la
cration artistique aux risques et prils de
ceux qui sy livrent (2).
V-se como Paul Valry capaz de apre-
ender a grande mudana nas relaes entre
literatura e sociedade, desencadeada pelo que
chama de revoluo dos simbolistas.
Na primeira parte do texto, a tnica
precisamente o modo pelo qual os simbo-
listas criaram antes um pblico do que para
um pblico, conferindo s experincias li-
terrias o teor de uma necessidade, ou cri-
ao de uma necessidade, que passa, ento,
a ser exigida pelo leitor, bem na senda da-
quelas teorias das trocas mercadolgicas
elaboradas pela economia poltica de ori-
1 Cf. Le Style de la NouvellePosie, Histoire desLittratures, II, Encyclopdiede la Pliade, Paris, NRF, 1957,p. 212.
2 Cf. Existence duSymbolisme, in Paul Valry,Ouevres, Paris, NRF, Biblio-thque de la Pliade, 1957,pp. 691-2. Eis uma traduodo texto: Operam, assim,uma espcie de revoluo naordem dos valores, j quesubstituem progressivamentea noo das obras que solici-tam o pblico, que o tomampor seus hbitos ou por seuspontos fracos, por aquela dasobras que criam seu pblico.Longe de escrever para satis-fazer um desejo ou uma ne-cessidade preexistentes, es-crevem com a esperana decriar esse desejo e essa ne-cessidade; e nada recusamque possa repugnar ou cho-car cem leitores se calcula-rem que, desse modo, con-quistaro um nico de quali-dade superior.Isso significa que exigem umaespcie de colaborao ativados espritos, novidade mui-to importante e trao essen-cial de nosso Simbolismo.Talvez no fosse impossvelou falso deduzir da atitude derenncia e de negao, queesclareci h pouco, primeiroessa mudana sobre a qualestou falando e que consistiuem tomar como parceiro doescritor, como leitor, o indiv-duo escolhido pelo esforointelectual de que capaz; e,em seguida, esta outra con-seqncia: de hoje em dian-te, podem ser oferecidos aesse leitor laborioso e refina-do textos em que no faltamnem dificuldades, nem os efei-tos inslitos, nem os ensaiosprosdicos, e at grficos, queuma cabea ousada e inventi-va pode se propor a produ-zir. O novo caminho estaberto aos inventores. Nes-te, o Simbolismo descobre-se como uma poca de in-venes; e o raciocnio bemsimples que acabo de esbo-ar diante de vocs nos leva,a partir de uma consideraoalheia esttica, mas verda-deiramente tica, at o pr-prio princpio de sua ativida-de tcnica, que a livre pro-cura, a aventura absoluta naordem da criao artstica dosriscos e perigos daqueles quea ela se entregam (in PaulValry, Variedades, organiza-o e introduo de Joo Ale-xandre Barbosa, traduo deMaiza Martins de Siqueira, SoPaulo, Iluminuras, 1991).
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gem marxista; na segunda parte, o argu-
mento central gira em torno da interao
entre autor e leitor, em que este ltimo as-
sume uma posio de grande atividade na
circulao da obra: o leitor no mais ape-
nas como recipiente da obra produzida pelo
autor mas um parceiro do escritor, como
diz Valry. E, por isso, capaz de seguir, e
mesmo solicitar, as inovaes inventivas e
mesmo caprichosas das cabeas mais ou-
sadas. Uma tica da leitura, portanto, que
no despreza o estgio tcnico, como lem-
bra o prprio Valry nas ltimas frases do
texto.
Este ensaio de Valry foi escrito s vs-
peras da Segunda Guerra Mundial quando
as realizaes do Simbolismo j se haviam
transformado em moeda corrente da litera-
tura e das artes, e a revoluo, por ele ano-
tada no incio do texto, havia sido respon-
svel por todas aquelas pesquisas que, en-
tre as ltimas dcadas do sculo XIX e as
primeiras do XX, seriam a base dos vrios
movimentos de vanguarda (Expres-
sionismo, Cubismo, Futurismo, Dadasmo,
etc.), via aberta das invenes, como tam-
bm anota Valry, que puseram em xeque
os esquemas naturalistas e positivistas com
que a crtica de ento buscava estabelecer
as relaes entre literatura, sociedade e
histria.
Mas entre a existncia do Simbolismo,
tal como ele foi pensado e praticado entre
os anos 70 e 90 do sculo XIX e os incios
da Segunda Guerra Mundial, a sociedade
j se defrontara com o primeiro conflito de
mbito mundial, a Grande Guerra de 1914-
18, a partir da qual, mais precisamente no
ensaio com que abre o primeiro volume de
Varit, de 1924, La Crise de lEsprit,
que de 1919, podia Valry registrar a
sensibilidade para o grande desastre a que
havia chegado a civilizao europia, es-
crevendo de modo lapidar:
Nous autres, civilisations, nous savons
maintenant que nous sommes mortelles.
Nous avions entendu parler de mondes
disparus tout entiers, dempires couls
pic avec tous leurs hommes et tous leurs
engins; descendus au fond inexplorable des
sicles avec leurs dieux et leurs lois, les
acadmies et leurs sciences pures et
appliques, avec leurs grammaires, leurs
dictionnaires, leurs classiques, leurs
romantiques et leurs symbolistes, leurs cri-
tiques et les critiques de leurs critiques.
Nous savions bien que toute la terre
apparente est faite de cendres, que la cendre
signifie quelque chose. Nous apercevions
travers lpaisseur de lhistoire, les
fantmes dimmenses navires qui furent
chargs de richesse et desprit. Nous ne
pouvions pas les compter. Mais ces
naufrages, aprs tout, ntaient pas notre
affaire.
lam, Ninive, Babylone taient de
beaux noms vagues, et la ruine totale de
ces mondes avait aussi peu de signification
pour nous que leur existence mme. Mais
France, Angleterre, Russie ce seraient
aussi de beaux noms. Lusitania aussi est un
beau nom. Et nous voyons maintenant que
labime de lhistoire est assez grand pour
tout le monde. Nous sentons quune
civilisation a la mme fragilit quune vie.
Les circonstances qui enverraient les
ouvres de Keats et celles de Baudelaire
rejoindre les oeuvres de Mnandre ne sont
plus du tout inconcevables: elles sont dans
les journaux (3).
A representao dessa sensibilidade
para um mundo destroado, cujos fragmen-
tos dinamitaram a paz e o conforto da belle
poque europia, seria a tarefa ingrata para
aqueles escritores que, embora nascidos ou
formados sob a gide da crise de represen-
tao percebida, mas tambm cultuada,
pelos simbolistas, no mais se sentiam con-
fortveis ou pacificados e que, portanto, se
defrontavam com uma dupla tarefa: a de
representar, mas incluindo na representa-
o a crtica de sua prpria crise.
E os caminhos escolhidos por cada um
sero os mais diversos: desde o desvio sim-
bolista de um T. S. Eliot, na composio de
um poema em mosaico, como The Waste
Land, em que as aluses a literaturas dos
mais diferentes lugares e pocas so passa-
das pelo tom menor da herana simbolista
de um Laforgue ou de um Corbire, sem
3 Cf. La Crise de lEsprit, PaulValry, Varit , Paris ,Gallimard, 1924, pp. 11-2. Eisuma traduo: Ns outras,civilizaes, sabemos agoraque somos mortais.Tnhamos ouvido falar demundos inteiramente desapa-recidos, de imprios que fo-ram a pique com todos osseus homens e todos os seusengenhos; descidos ao fundodo inexplorvel dos sculoscom os seus deuses e suasleis, suas academias e suascincias puras e aplicadas, comsuas gramticas, seus dicion-rios, seus clssicos, seus ro-mnticos e seus simbolistas,seus crticos e os crticos deseus crticos. Sabamos aindaque toda a terra aparente feita de cinzas, que a cinzasignifica alguma coisa. Perce-bamos, atravs da espessurada histria, os fantasmas deimensos navios que foram car-regados de riqueza e de esp-rito. No podamos cont-los.Mas estes naufrgios, de qual-quer modo, no nos diziamrespeito.Elam, Ninive, Babilnia eramgrandes nomes vagos, e aruna total desses mundos ti-nha to pouca significaopara ns quanto sua prpriaexistncia. Mas Frana, Ingla-terra, Rssia eram tambmgrandes nomes. Lusitania tam-bm um grande nome. Evemos agora que o abismo dahistria bastante grande paratodo o mundo. Sentimos queuma civilizao tem a mesmafragilidade que uma vida. Ascircunstncias que cercavam asobras de Keats e as deBaudelaire juntando-se sobras de Menandro no soabsolutamente inconcebveis:elas esto nos jornais dirios.
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esquecer o tom elevado, mas irnico, de
um Baudelaire, que vem literalmente cita-
do no ltimo verso da primeira estrofe, tudo
estaqueado por sobre os seus prprios frag-
mentos, como est dito num dos ltimos
versos do poema, at a utilizao de um
alemo solene e de cadncias goethianas,
como est no Thomas Mann de A Monta-
nha Mgica ou, sobretudo, do Doutor
Fausto, ou ainda na admirvel prosa, de
longos e remansosos pargrafos, do
Hermann Broch de A Morte de Virglio, ou
a prosa cida e de reduo de um Kafka,
conferindo a seu alemo os sombrios
desvos de uma experincia judaica das
circunstncias particulares de uma Europa
Central, no entanto marginalizada pelos
avanos guerreiros dos capitalismos das
grandes potncias de uma outra Europa.
Ou mesmo o caso notvel de um James
Joyce, dando um sentido pico aos destro-
os do Imprio Britnico a partir de uma
leitura irlandesa daquele imprio, mas con-
vocando para aquela leitura a tradio mais
nobre da herana cultural europia, estabe-
lecendo uma dependncia, quase sem pre-
cedentes na histria literria, entre experi-
ncia, representao e linguagem de tal
maneira que nas pginas do Ullysses o lei-
tor encontre o mximo de interveno na
linguagem e uma representao da realida-
de to intensa que seria difcil, ou mesmo
impossvel, marcar onde comea uma e
termina a outra, na medida em que a expe-
rincia pessoal e coletiva , sobretudo, uma
experincia de leitura desde a cultura grega
at os livros de fico popular (os penny-
books) da gria londrina dos caminhos e
descaminhos dos Blooms.
Estas e muitas outras obras apontam para
aquilo que o crtico norte americano R. P.
Blackmur, em ensaio de 1948, chamava de
a burden for critics que traduziramos apro-
ximadamente por um fardo para os crti-
cos, isto , segundo o crtico, como passar
da grande tnica conferida representao
de uma sociedade que , j por si mesma,
um fardo para a experincia dos autores,
para a apreenso daquilo que o prprio
ato de criao literria, ou seja, a instaura-
o de um espao ficcional por intermdio
da linguagem que, por sua vez, responde
beleza e ao mais completo sentido da obra
literria. Esta parecia ao ento new critic, e
apenas encerrada h trs anos a Segunda
Guerra Mundial, o trabalho crtico essenci-
al: um ato performativo capaz de revelar a
bela complexidade da literatura. Diz ele:
The beauty of literature is that it is exigent
in the mind and will not only stand still but
indeed never comes fully into its life of
symbolic action until criticism has taken
up the burden of bringing it into
performance and finding its relation to the
momentum of the whole enterprise (4).
claro que esta tarefa no inveno
da experincia moderna ou contempornea
da literatura: em todas as pocas, os leito-
res ou espectadores foram chamados a in-
tervir na realizao plena das obras, e as
observaes de Blackmur se referem pre-
cisamente intensidade das intervenes
que a crtica chamada a exercer. Mas a
questo est em como se h de pensar numa
interveno, ou numa performance, para
usar a terminologia de Blackmur, que con-
serve a tenso entre o teor de representao
a essncia do fardo e seu modo de arti-
culao potica. Mais ainda quando se vive
uma poca em que a prpria viabilidade da
representao entra em crise por fora das
transformaes histricas e sociais que ter-
minaram por caracterizar a nossa como uma
era de suspeita, para utilizar os termos de
um ensaio famoso de Nathalie Sarraute (5).
Embora pensado e escrito sob o fogo
cruzado das propostas radicais do Nouveau
Roman, o ensaio tinha o mrito de ampliar
o seu alcance para uma reflexo mais abran-
gente, acrescentando elementos essenciais
para uma reflexo acerca da tarefa da crti-
ca diante de uma literatura que parecia ca-
minhar para a sua prpria destruio, como
vigorosamente afirmava Maurice Blanchot,
em artigo publicado nos anos 60, na
Nouvelle Revue Franaise em que se per-
guntava pelo destino da literatura (O va
la littrature? La littrature va envers elle-
mme, cest--dire, envers sa destruction).
Era o mesmo Blanchot que, numa de
4 Cf. A Burden for Critics, inLectures in Criticism, The JohnsHopkins University, Intro-duction by HuntingtonCairns, New York, PantheonBooks (Bollingen Series XVI),1949. Eis uma traduo dotexto: A beleza da literatura que ela exigente na men-te e no somente permane-ce esttica mas, de fato, nun-ca realiza completamente suavida de ao simblica atque a crtica assuma o fardode perform-la e encontrarsuas relaes com o momen-to de todo o conjunto.
5 Nathalie Sarraute, Lre duSoupon, Essais sur le Roman,Paris, Gallimard, 1956.
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suas colaboraes para a mesma Nouvelle
Revue Franaise, de maio de 1960, chama-
va a ateno para a singularidade anti-ret-
rica da obra de Albert Camus, exercendo-
se, como pensava o crtico, no sentido de
um desvio para a simplicidade, ttulo de
sua crnica, em que os traos de estilo eram,
por assim dizer, rasurados pelo peso con-
cedido representao agnica de um
mundo despedaado pela tenso entre o
indivduo e as circunstncias absurdas da
histria e da sociedade.
Todas essas reflexes realizadas nos
anos 50 e 60 que, de certa forma, se junta-
vam quelas dos anos 40 e 50 do New
Criticism, desguam nos vrios textos que
vo compor a Nouvelle Critique francesa,
cujo principal trao seria precisamente fa-
zer convergir a anlise particularizada das
obras, pelo uso de uma lente, por assim
dizer, de aproximao lingstica, e uma
leitura das estruturas mticas, sociais e his-
tricas da representao literria.
Mais do que uma convergncia: uma
leitura da obra literria em que se buscava
manter a tenso entre aquele fardo da repre-
sentao descrito por Blackmur e a prpria
composio literria. O que significava apon-
tar para uma percepo dos elementos soci-
ais e histricos que configuram a obra em
seus momentos de formalizao, quer dizer,
enquanto integradores de uma morfologia
atravs da qual a obra definida.
Por isso, no plano das teorizaes sobre
a histria literria, o principal alvo dos
nouveaux critiques Gustave Lanson, cuja
Histoire de la Littrature Franaise havia
sido publicada em 1894, cujas edies su-
cessivas fizeram dela o paradigma, por
excelncia, da crtica histrica em que se
articulavam as heranas naturalistas e
positivistas do sculo XIX e um certo
humanismo crtico, de laivos impres-
sionistas, embora fazendo a defesa do rigor
histrico e da objetividade filolgica. So-
bre essa articulao, sob a qual ele via pas-
sar de contrabando (o termo dele mesmo)
uma ideologia conservadora de domnio do
saber, Roland Barthes escreveu o polmi-
co texto Sur Racine, buscando libertar o
grande poeta trgico das interpretaes
cristalizadas dos vrios e sucessivos natu-
ralismos crticos capazes de falar de sua
obra sem, em nenhum momento, repensar
a sua significao, para a literatura france-
sa, enquanto poeta e no apenas enquanto
monumento daquela literatura que, por sua
vez, operara a cristalizao de certas ideo-
logias dominantes no sculo XVII francs.
Na verdade, um ano antes da publica-
o da Histoire, em 1893, Gustave Lanson
publicara um ensaio sobre Mallarm atra-
vs do qual possvel ver como ele estava
aprisionado ao paradigma crtico de seu
tempo, aquele cujas linhas mestras eram
ainda as do naturalismo e do positivismo
que privilegiavam a referencialidade.
A acusao de ininteligibilidade que faz
obra de Mallarm, como se ler em segui-
da, respondia prevalncia, naquela poe-
sia, do princpio de construo sobre o da
representao que, por ento, problema-
tizava as abordagens crtica e histrico-li-
terria fundadas naquelas linhas. Eis um
trecho substancial do ensaio:
Ele [Mallarm] d por objetivo da arte
realizar o irreal, exprimir o inexprimvel,
comunicar o incomunicvel. Seja; admito
esta ambio; de fato, no existe sem isso
grande poesia, nem arte elevada. Mas a
impossibilidade manifesta-se quando se
olham os meios que ele pretende empregar.
Ele quer desvencilhar-se de formas reais,
signos expressivos, valores comunicativos:
em outros termos, quer apreender o
ininteligvel e transmiti-lo sem o ter con-
vertido de algum modo em inteligvel.
esquecer a condio, a misria, se se qui-
ser, de nossa humanidade, fadada por seus
pecados aos atos distintos da inteligncia.
Ns no atingimos diretamente pelo esp-
rito qualquer realidade, nem sensvel, nem
espiritual, nem finita, nem infinita. No
podemos seno usar um desvio, substituir
as realidades por signos inteligveis, por
smbolos suscetveis de demonstrao. A
cincia existe a este preo e a arte no tem
uma outra lei. Criao da inteligncia, como
a cincia, no pode ser outra coisa seno
intelectual e se, s vezes, aspira a dar a
sensao, a comunicao do ininteligvel,
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f-lo por intermdio de signos e de relaes
que exprimem inteligivelmente o carter
ininteligvel. Aqueles que conhecem Pascal
sabem bem o que quero dizer. O Sr.
Mallarm, querendo usar signos intelig-
veis fazendo abstrao de seu valor de sig-
nos inteligveis e querendo formar smbo-
los irreais e infinitos que manifestem dire-
tamente o eu essencial e o ideal infinito,
pe-se em contradio com as condies
prprias da arte (6).
O que esta inteligibilidade to acirra-
damente defendida por Lanson que, logo
em seguida, ele traduzir tambm por cla-
reza de idias, numa rplica evidente ao
famoso dito de Mallarm ([...] que se en-
tenda que a obra literria, fazendo-se com
palavras, faz-se com idias[...] entre uma
idia clara e uma idia confusa, a idia
clara que, mostrando mais, contm mais, e
que o grau superior da idia), o que esta
inteligibilidade seno a vitria da represen-
tao sobre a construo, sem que se passe
por aqueles estgios decisivos da prpria
poesis que identifica o texto artstico?
Esta, de fato, vai ser a grande tarefa da
crtica e da histria literria que surgem a
partir dos anos 60: sem desprezar o fardo
da representao, para o qual est
convocada toda a obra que pretenda ultra-
passar a tendncia ao solipsismo dos novos
tempos, instaurar um espao de reflexo
capaz de insinuar o modo pelo qual o social
e o histrico passam a ser percebidos como
elementos interiorizados pelas tenses
construtivas do texto artstico.
Para isso, foram importantes tanto as
heranas do close reading apreendidas a
partir das experincias de leitura do New
Criticism anglo-americano, quanto as an-
lises estilsticas e filolgicas da Estilstica
alem ou espanhola, como ainda as novas
pesquisas do Estruturalismo de origens
antropolgicas, marcadamente francs, ou
mesmo a redescoberta das teses formalistas
e estruturalistas do Formalismo Russo ou
do Estruturalismo Tcheco. O que, diga-se
de modo complementar, seria explicitado
pelas teses avanadas por aqueles tericos
da crtica e da histria literria que passa-
ram a pensar na leitura e no leitor como
ngulos privilegiados de um processo de
sutura entre forma e histria, tais como eles
eram discutidos em ensaios da chamada
Esttica da Recepo e do Efeito.
claro que estas aproximaes, rei-
vindicando a qualidade artstica da obra
literria, muitas vezes parecem, em seus
piores momentos, fazer inclinar a leitura
para uma espcie aguda de formalismo, sem
que as tenses entre formalizao e repre-
sentao sejam preservadas. Mas so exem-
plos, por assim dizer, caricaturais a que a
prpria integridade da obra artstica termi-
na por oferecer resistncia. E a melhor de-
monstrao est nas mais recentes leituras
do chamado Desconstrucionismo por onde
se pode vislumbrar o peso concedido ao
esforo desenvolvido por alguns crticos
tais como Paul de Mann, Miller, Hartmann
ou Bloom em fazer integrar a uma leitura
que suspende a procura do sentido os des-
pojos de uma histria enclausurada nos
ndices filolgicos dos textos.
Mais do que uma negao da histria,
tais leituras (enquanto so marcadas por
um tempo e uma pacincia que somente o
verbo ingls peruse parece ser capaz de
traduzir, significando ler cuidadosamen-
te) pretendem rasurar a distncia entre o
leitor e o objeto lido, tornando tambm
aquele um objeto que se l e sua histria
pessoal e coletiva no prprio ato de ler o
objeto. De tal maneira que precisamente
no seio do movimento de desconstruo
que se vai encontrar novas maneiras de uma
defesa da filologia, como est em Paul de
Mann, por exemplo, que at parece reviver
os antigos argumentos de Servais Etienne
no j clssico Dfense de la Philologie (7).
Por outro lado, se o peso concedido
representao, sem o necessrio aporte cr-
tico-filolgico, transforma a reflexo crti-
co-histrica numa via de mo nica, amo-
lecendo a tenso entre fazer e dizer, que
o texto artstico, ele foi, sem dvida, res-
ponsvel pela incorporao literatura dos
grandes temas sociais e histricos que vm
dominando a cena mundial, assim como a
abertura do cnone literrio para aquelas
literaturas marginalizadas por aqueles mes-
6 Cf. Stephane Mallarm, inEssais de Mthode de Critiqueet dHistoi re L ittraire ,Rassembls et prsents parHenri Peyre, Paris, Hachete,1965, p. 474.
7 Cf. Servais Etienne, Dfensede la Philologie et Autres crits,Paris, La Renaissance du Li-vre, 1965. Trata-se dareedio do livro de 1933,publicado em Lige. Quantoa Paul de Mann, leia-se, porexemplo, o ensaio TheReturn to Philology, hojefazendo parte do volume TheResistence to Theory(Minneapolis, University ofMinnesota Press, 1986).
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mos temas quando tratados pelas naes
que concentram o poder poltico e o poder
do saber.
Nesse sentido, a renovao do cnone
da literatura ocidental, com a entrada
considerao de temas relacionados a g-
neros e etnias minoritrias, embora ainda
percebidos, em sua grande maioria, den-
tro dos parmetros de uma crtica natura-
lista tardia, s vezes travestida de um
marxismo requentado, , talvez, o aconte-
cimento mais relevante da crtica, em suas
relaes com a sociedade e a histria, de
fins do sculo.
Foi o caso, por exemplo, da decisiva
incorporao literatura mundial das litera-
turas ibricas da Amrica, sobretudo as de
lngua espanhola, mas preparando o cami-
nho para alguns textos em lngua portugue-
sa do Brasil, no bojo daqueles movimentos
de libertao que agitaram os pases coloni-
zados pela Europa entre os anos 50 e 60.
importante observar que as obras
agora recolhidas pela abertura do cnone,
se, em grande parte, respondiam a um vis
poltico e social, traziam, no obstante, as
marcas das tenses entre representao e
formalizao literria, fosse por terem as
suas origens numa crtica interna aos gran-
des movimentos literrios da vanguarda
histrica europia (e foi o caso do
Surrealismo, tal como ele foi repensado na
obra de um Octavio Paz, de um Julio
Cortzar, de um Alejo Carpentier, de um
Lezama Lima, de um Garca Mrquez ou
do poeta brasileiro Joo Cabral de Melo
Neto), fosse por afirmarem a singularidade
de uma voz que, a partir do continente
latino-americano, interiorizava a crtica das
articulaes entre tradio e modernidade,
um dos grandes topos da crtica histrica
europia, tal como ocorria na obra de um
Jorge Lus Borges, na Argentina, ou de um
Joo Guimares Rosa, no Brasil.
claro que a tais obras respondiam os
ensaios crtico-histricos, no apenas sur-
gindo como decorrncia do teor inventivo
daquelas, mas, em alguns casos excepcio-
nais, antecipando o tipo de relaes que
aquelas obras seriam foradas a manter com
a complexidade da vida social e de sua es-
trutura histrica, como foi o caso, para dar
um s exemplo, que conheo melhor, do
ensasmo crtico-histrico de Antonio
Candido no Brasil (8).
Sendo assim, possvel dizer que a pr-
pria conceituao de sociedade que inte-
ressa reflexo sobre a literatura sofre uma
transformao de base, medida que se
intensifica a noo fundamental, a que j
anteriormente acenei, de que no se trata
mais de investigar relaes de adequao
entre literatura e sociedade, mas de fazer
operacional, para a crtica das obras arts-
ticas, os momentos de inadequao, sobre-
tudo em pases em que as presses de or-
dem histrica, poltica e econmica impos-
sibilitam qualquer leitura de causa e efeito
na ordem intelectual e artstica.
Por isso mesmo, ser uma constante
crtico-histrica, nesses pases, a vinculao
entre os movimentos de vanguarda e as
leituras historicizadas do texto literrio,
manifestando-se atravs de revises e res-
gates de obras e autores para os quais o
futuro , ento, determinado por uma esp-
cie de leitura anacrnica ou, melhor dizen-
do, sincrnica se referida ao presente situ-
ado do leitor.
De qualquer modo, uma leitura
inexoravelmente histrica. Mas uma hist-
ria que no elide a poeticidade porque sabe
que a sua uma natureza, sobretudo,
discursiva e, portanto, informada por todas
as ambigidades do discurso. No uma
histria de datas, fatos e personagens, mas
aquela que pe sob suspeita, para voltar
aos termos de Nathalie Sarraute, a prpria
capacidade de sua representao.
No caso estrito da literatura, no uma
histria da potica mas uma potica da his-
tria em que o analista, o estudioso, o cr-
tico, ou seja l qual for o seu nome, existe,
antes de mais nada, num intervalo de ten-
ses entre a realidade e a linguagem de sua
representao. A leitura desse intervalo
uma leitura insegura, instvel, sempre en
abme: mas que literatura e sociedade que
valham a pena ser consideradas so total-
mente seguras, estveis, sem sobressaltos
abismais? Talvez as totalitrias e dessas no
quero tratar.
8 Refiro-me, sobretudo, a For-mao da Literatura Brasileira.Momentos Decisivos, So Pau-lo, Livraria Martins Editora,1959.
Na pgina
seguinte, gravura
de Gustave Drer
para o livro de
Cervantes
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