a imagem de eva revisitada pela arte … · as historietas tratavam da vida cotidiana de jovens...
Post on 07-Oct-2018
213 Views
Preview:
TRANSCRIPT
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
A IMAGEM DE EVA REVISITADA PELA ARTE GRÁFICA DO SÉCULO XX
Daniela Queiroz Campos1
Resumo: Entre a virgem e a pecadora, entre reprodução e a eroticidade, entre Eva e Maria. As Garotas do Alceu enquadram-se como Evas. A coluna Garotas do Alceu circulou entre 1938 e 1964 na afamada revista O Cruzeiro. Entre comportamento e humor as personagens de Alceu Penna se vestiram, ou melhor, se despiram como Eva em inúmeras colunas. Maria e Eva uma questão imagética muito bem posta em meados dos séculos XX. As imagens femininas na imprensa brasileira daquela época por vezes parecem repletas da dualidade entre estas duas imagens cristãs. A dualidade imagética feminina. Entre Evas e Marias. Entre Vênus Celestiais e Vênus Vulgares. A Vênus da Antiguidade, marcadamente nua, fora desencontrando lugar nos séculos subsequentes. A Idade Média condenara o nu e com ele a beleza desnuda de Vênus. A nudez feminina fora reinventada, mais tarde, no corpo de Eva. As personagens da coluna estudada revisitam as imagens de tantas Evas marcadamente sedutoras e eróticas. Palavras-chave: Imagem, Eva, Arte gráfica. Um mundo de papel imprenso
O mundo do papel, o mundo da imprensa. O objeto de pesquisa circulou em meio a tantas
outras páginas periódicas editadas no Brasil. Estas página, tiveram o cotidiano como pano de fundo
e como meio. As imagens que analiso não foram pintadas à óleo sobre tela, nem sequer foram
esculpidas em carara. Foram sim gravadas com tinta em papel imprensa. Minhas fontes são revistas
– pontualmente, o periódico de circulação semanal e nacional, O Cruzeiro. Em especial, uma coluna
de humor e comportamento: a coluna Garotas do Alceu.
A coluna de Alceu Penna era uma imagem de verso e reverso, a coluna Garotas, não
alcançara o publico circulando em páginas soltas. Este era integrante da revista O Cruzeiro. As
páginas da revista não se apresentam dissociadas das páginas das colunas Garotas, do mesmo modo
como encontram-se extremamente associadas as páginas periódicas que vinham sendo impressas
naquele país do passado.
No dia 10 de dezembro de 1928 chega às bancas O Cruzeiro. O primeiro número da revista
tem seus 50 mil exemplares esgotados já no primeiro dia de circulação. A revista foi vendida nas
principais cidades brasileiras, de norte a sul do país, graças a caminhões, barcos, trens e até a um
bimotor. A revista já em sua primeira edição fora comercializada do Rio Grande do Sul até a
Amazônia. Todavia, esta era inteiramente impressa em Buenos Aires e “Como se quisesse esbanjar 1 Informe sobre a afiliação do/a autor/a, incluindo instituição de origem, cidade e país.
2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
competência, até nos principais pontos de venda de Buenos Aires e Montevidéu havia repartes da
revista – da mesma edição em português que circulava no Brasil” (MORAES, 1994, p.187).
A revista se coloca entre as mais compradas e lidas do país. “Durante alguns anos, a revista
O Cruzeiro esteve á frente de todas as publicações do gênero no Brasil” (NETTO, 1998, p.38). A
revista O Cruzeiro tinha uma característica que a permitiu explorar variada gama de informações,
colunas, reportagens. Ela era uma chamada revista de variedades, segundo seus editoriais, periódico
que buscava atender toda a família. O compêndio trazia vinculado em suas páginas de noticiários
políticos a receitas de bolo, de fotorreportagens sobre os índios da Amazônia até a cobertura
completa da coroação da Rainha Elizabeth ou de um evento social, ou seja, era uma revista para
agradar a diferentes tipos gostos e estilos de vida. Aparentemente conseguiu atingir esta meta, pois
sua singularidade era particular.
Nos 47 anos em que O Cruzeiro circulou em território nacional e também no exterior,
constava em seu sumário um sem-número de colunas voltadas para a mulher. No sumário inclusive
continha uma secção intitulada Para mulher. Dentre as páginas sempre relacionadas a assuntos
femininos destacam-se a coluna Da mulher para a mulher, Elegância e Beleza, as exclusivamente
de moda, entre outras. No ano de 1938, por sugestão de Accioly Netto, uma nova coluna começara
a circular naquelas páginas. Alccioly Netto, no ano de 1938, encomendou à Alceu Penna a criação
de figuras femininas semelhantes às do The Saturday Evening Post, as Gilbson Grils. Assim, Alceu
Penna deu forma e vida a ideia de uma coluna Pin-ups de Alccioly. “Eram vários grupos de lindas
mocinhas, vestidas na última moda, conversando. O texto na forma de diálogo e destinado ao
público juvenil, deveria ser escrito por um humorista malicioso. Fiquei encantado com o projeto”
(NETTO, 1998, p. 125).
E assim o foi. Em 19 de novembro de 1938, no exemplar da revista O Cruzeiro de número 3
do ano XI fora publicada As Garotas. A primeira coluna recebera o título de Garotas da Praia e
tiveram desenhos e textos de autoria de Alceu Penna. Estava ali o primeiro número da coluna.
Impresso em três cores – branco, vermelho e preto – em papel coche ocupava duas páginas da
revista. Trazia desenhos e textos vinculados como ocorreria até o findar de sua circulação.
Naquelas páginas dividiam-se 9 bonecas traçada com bastante sensualidade. A primeira coluna
ilustra muito bem o viriam a ser aquelas páginas. As historietas tratavam da vida cotidiana de
jovens mulheres de classes médias e altas, urbanas e alfabetizadas. Trazia com um tom de humor,
que não chegava a ser sarcástico, o diálogo destas garotas com outras garotas e alguns rapazes.
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Uma imagem da reprodutibilidade
Aquela era uma imagem da reprodutibilidade. Reprodutibilidade que alcançara 700.000
exemplares semanais da revista no auge da década de 1950. Indústria Gráfica O Cruzeiro S.A. que
atravessara grave crise, presenciara o crescimento editorial de sua grande rival, a revista Manchete.
Periódico que ocupou seu lugar nas bancas de revistas e nas casas de brasileiros na década de 1960.
Viu o surgimento e o desaparecimento de várias colunas e colaboradores. Passou por grandes
perdas, entre elas a de seu dono, Assis Chateaubriand, e de um de seus mais brilhantes ilustradores,
Péricles Maranhão, e de uma afamada coluna As Garotas do Alceu.
Com a xilogravura, o desenho tornou-se pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o primeiro serviço para a palavra escrita. Conhecemos a gigantesca transformação provocada pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo histórico mais amplo. À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa na chapa de cobre e a água-forte, assim como a litografia, no início do século XIX (BENJAMIN, 2010, p.166).
Fazem-se notórias nesta imagem as técnicas da indústria gráfica brasileira da época. A
coluna Garotas circulara em uma revista de meados do século XX. Época em que a reprodução
imagética de periódicos nos Brasil não era mais marcada nem pela xilogravura, nem pelo buril. As
rotativas imprimiram, de forma calcográfica, textos e imagens da coluna Garotas. A qualidade de
impressão acompanhou as transformações e as mudanças dos processos gráficos. Modificação de
maquinário, retículas fora do registro, borrões ocasionados pela distribuição heterogênea de tinta,
alteração na qualidade do papel empregado na impressão. Muitas foram as variáveis que
acompanharam a impressão da coluna durante 27 anos de circulação. A percepção gráfica de nossa
imagem, de nosso objeto, o cola em seu tempo de produção.
A coluna Garotas do Alceu tem suas imagens femininas contornadas e coloridas através de
um maquinário da indústria gráfica que se torna condutor de boa parte dos veículos impressos no
século XIX e XX. Este sucinto e incompleto histórico sobre a gravura torna-se de fundamental
importância na percepção da imagem em estudo. As mulheres desenhadas pelo artista gráfico Alceu
Penna são imagens impressas, imagens em sua própria concepção reprodutíveis. Elas as foram
traçadas não tendo em vista a originalidade da peça única. Não foram desenhadas em guache sobre
o papel para que aquele único fosse o suporte preferencial da imagem.
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
A longa vida da Imagem
A longa vida da imagem. Do Imago, mascara mortuária, as suas concepções e “nascimento”
pela morte. A imagem “[...] nasceu, assim, da morte para prolongar a vida e apresentou, com isso,
as noções de duplo e memória. A imagem tinha o papel de recompor o homem, cujo corpo se
decompõe pela morte. [...] Ela teve o caráter mágico de proteger os vivos da visão do corpo
putrificado” (DEBRAY, 1994, p.22). Muitos fizeram imagem, e se utilizaram dela de dispares
maneiras. Muitos também escreveram sobre ela. Escritos que consagram ainda no século XVI uma
história da arte (THUILLIER, 2006). Escritos que se pautaram, inicialmente, na questão da imagem
como tal. Uma imagem como mimese que marcara, de maneiras várias, escritos platônicos e
aristotélicos (BAZIN, 1989). Escritos que inauguram uma escrita teórica acerca da imagem. As
teorias platônicas, de certo modo, negativas do objeto do ver, não deixara de enaltecê-lo pelo seu
risco, pelo seu poder.
Do início de uma História da arte Renascentista até a filosofia da imagem, muitos se
escreveu (DIDI-HUBERMAN, 2010). Muitas foram as verdades, muitas foram as mentiras. As
biografias varsarianas, as problematizações sociais de Winckelman que iniciava uma história critica
de seu próprio conhecimento. Um estatuto de arte contestado ainda no século XIX por Riegl
(PEIXOTO, 2006). O diretor do Museu Austríaco de Arte Decorativa propunha uma história da arte
que abrangesse objetos imagéticos em toda sua amplitude. Estas chamada história da arte veio se
modificando, se alterando, se multiplicando, se findando.
Uma transição na história da arte, não exclusiva obra de Alois Riegl. Se o trabalho de Riegl
ainda prendia a história da arte a questão do tempo linear homogêneo do evolucionismo histórico, o
trabalho de outro historiador da arte que lhe fora contemporâneo desprendia a historia da arte desta
temporalidade. A memória e Aby Warburg. Memória, título dado por Giorgio Agamben a uma
ciência iniciada, ou inventada, por Aby Warburg (AGAMBEN, 2008). O nome da deusa grega –
Mnemosyne - estava escrito em uma placa no adentrar de sua famosa biblioteca. A mesma deusa
dava nome aquele considerado um dos seus mais brilhantes; seu último e inacabado trabalho: o
Mnemosyne Atlas (WARBURG, 2010)
O escritos do historiador da arte Didi-Huberman e a memória de Aby Warburg se cruzam,
se interpenetram nas vertentes teóricas em que o presente trabalho. Aby Warburg utilizou o termo
Nachleben ao referir-se a esta vida póstuma da imagem. Modelo temporal próprio das imagens
marca a heterogeneidade temporal. O Nachleben warburguiniano pode ser considerado um modelo
5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
temporal próprio às imagens. Modelo marcado por tempos heterogêneos. Esta vida póstuma da
imagem fora traduzida por Didi-Huberman como uma sobrevivência. Sobrevivência que não
simplifica nem o passado, nem a história. Ela marca-se por seu caráter complexo e desorientador de
periodização.
O Livro das Passagens em sua vasta gama de montagens traz muitas colocações e
inquietações de Walter Benjamin acerca da imagem. a sua problematização diante do tempo. “Não
é preciso dizer que o passo esclarece o presente ou que o presente esclareça o passado. Uma
imagem, pelo contrário, é aquilo em que o Outrora encontra o Agora num relâmpago para formar
uma constelação [...]” (BENJAMIN, 2006, p.504). As imbricações temporais são sublinhadas por
Benjamin. O encontro de passado e presente, ou melhor, do Outrora com o Agora, marcam uma
concepção temporal não cronológica. A imagem marca-se por este encontro de tempos, de tempos
não homogêneos nem lineares.
Uma imagem transposta de temporalidades. Um tempo montado utilizado por Didi-
Huberman e principalmente pautado nas obras de Aby Warburg e Walter Benjamin. Três nomes
essenciais ao presente trabalho. As imagens dialéticas de Walter Benjamin configuram-se como
imagens autênticas nos escritos de Didi-Huberman. Imagem crítica, imagem em crise. Uma crise
instaurada pela própria imagem. Ela alcança colocação como objeto ativo, de objeto do olhado para,
um também, objeto olhante.
A imagem que se apresenta como encontro do Outrora com o Agora, do que sobrevive com
a novidade. A aflição da imagem dialética na qual o presente pode interpretar, interrogar,
criticamente o passado, ou os passados. O proposto anacronismo imagético de Didi-Huberman tem
causado furor no meio acadêmico. Enaltecido e criticado, propõem a percepção de um tempo
heterogêneo na análise imagética. Aborda a múltipla temporalidade da imagem.
A inquietação diante do distempo de algumas colunas Garotas do Alceu é concomitante. As
bonecas desenhadas por Alceu Penna configuram-se como uma destas tantas imagens quais o
anacronismo demonstra-se fecundo para analisa-las, senão para entende-las, para questiona-las.
Alceu Penna manipulara em suas imagens tempos que não foram exclusivamente os seus. Imagens
de outras temporalidades foram por ele visualizadas, manipuladas. As suas bonecas marcam seu
período de produção. São declaradamente bonecas do gênero ilustrativo de pin-ups. Gênero
ilustrativo marcadamente do século XX. Os traços, o gênero, daquelas bonecas não colocam em
cheque seu período de produção. Boa parte dos leigos, ao visualizarem uma pin-ups, a apontam
como uma imagem produzida, ou referente, a um pré, durante, entre ou pós as Grandes Guerras
6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Mundiais. Entretanto, aquelas imagens manipulam muito mais tempos. Seria resolutivo afirmar que
nelas só existem caracteres, formas, traços, elementos, questões de seu próprio tempo de produção.
Tal afirmação aparentemente resolveria muitos problemas
Aquelas Garotas apresentam imagens de mulheres. Imagens envoltas de beleza, juventude,
erotismo, sedução. Logo, são imagens que não marcam, tão somente, um caráter de novidade
naquele conturbado século. Elas têm um caráter de latência, um caráter de anacrônico. O Agora e o
Outrora se encontram naquelas bonecas. Seu encontrar não é resolutivo, não busca dar simples
respostas a nada, ele não apazigua nosso problema. A latência é a percepção dos ecos de variados
tempos contidos naquela imagem. Entre mais de mil colunas algumas destacavam-se pelo próprio
lapso temporal. Colunas com imagens de mulheres, com imagens personagens, de um tempo que
não era o mesmo de sua produção. Imagens de personagens tão recorridas por imagens escultóricas,
pictóricas, fotográficas, cinematográficas. Mulheres que se consolidam em uma tradição imagética
Ocidental. Imagem do belo, do sedutor, do erótico.
As Garotas apresentaram-se como muitas personagens da “história”, foram “Algumas
Garotas da história”, foram “Mais algumas Garotas da história”. Imagens com referência a uma
Antiguidade foram várias. Foram Artemis, Vênus, Cleópatras, foram Evas.
Uma pin-up despida de Eva
Foram muitas a Garotas Evas tracejada por Alceu. Elas fazem alusão a um enorme
repertório imagético de outras tantas Evas traçadas, pintadas, esculpidas pela arte, como também
fazem referência a imagem de um nu feminino latente neste repertório imagético. A latência do
passado, a imagem dialética. Memórias erráticas, memórias que sobrevivem. Entre a virgem e a
pecadora, entre reprodução e a eroticidade, entre Eva e Maria. As Garotas do Alceu enquadram-se
como Evas. E elas o foram, se vestiram, ou melhor, se despiram como Evas em inúmeras colunas.
As questões como a nudez e a eroticidade são indissociável da imagem de Vênus, de Eva e
das Garotas do Alceu. A oposição de Eva e Maria, trata-se na revista estudada, O Cruzeiro, da
oposição entre as Garotas do Alceu e boa parte das demais colunas femininas. Se as Garotas
dirigiam-se, ou ao menos, ilustrava uma mulher jovem e solteira, muitas das demais páginas
falavam de uma mulher casada, de uma esposa. A eroticidade aponta também nas páginas daquela
revista, quase que como uma quase oposição à reprodutibilidade. “Seja o que for, o erotismo é a
atividade sexual do homem, ela o é na medida em que difere das atividades dos animais. A
7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
atividade sexual dos homens não é necessariamente erótica. Ela o é todas as vezes em que não for
rudimentar, que não for simplesmente animal” (BATAILLE, 2004, p.46). Logo, a atividade sexual
com finalidade exclusivamente reprodutoras, como uma sexualidade sem pudor, coincidiria com
abdicar das atividades eróticas, abdicar da sexualidade vergonhosa, da qual o erotismo decorreu.
Até o século XI, a tradição cristã medieval identificara a figura feminina ao pecado de Eva
que, por sua vez, estendeu-se a todas as mulheres. Segundo Georges Duby, apenas no decorrer do
século XII nota-se uma expansão dos cultos marianos (DUBY, 1995, p. 189). As personagens da
coluna estudada poderiam ser enquadradas como uma destas mulheres marcadamente sedutoras,
envoltas pelo erotismo. Jovens, solteiras, extremamente belas, vaidosas. Elas por vezes pareciam
enfeitiçar os homens. Homens que, na coluna, ao contrário de inúmeras outras páginas de revista de
meados do século XX, apareciam como uma espécie de “sexo frágil”. Eles eram enganados por
aquelas personagens. Elas os enfeitiçavam com sua beleza para alcançarem seus objetivos. Eles,
meros coadjuvantes das historietas em que elas narravam. Elas eram as personagens principais. Em
nenhum momento as Garotas do Alceu foram enquadradas como mães, como educadoras e como
amálgama da família. Elas eram destacadas por outras qualidades femininas.
“Pois ela [Eva] pecou duplamente, contra Deus e contra o homem. Também foi duplamente
punida, não apenas por Adão, pela dor física, mas pela sujeição ao poder masculino” (DUBY, 2001,
p.56). A Eva judaica, tal qual a Pandora na mitologia Grega, disseminaria o mal e o pecado pelo um
mundo. A mítica primeira mulher seduzida pelo diabo em forma serpentina desobedece a ordem
divida. De acordo com o Gênesis, e a uma tradição judaica, cristã e mesmo islâmica, o corpo de Eva
simbolizaria o pecado, ela seria “[...] a origem do mal e da infelicidade, potência noturna, força das
sombras, rainha da noite” (PERROT, 1988, p.168).
Eva sucumbe ao mal, desobedece a Deus e come o fruto proibido. Após comer a maçã, a
mulher priva toda a humanidade da perfeição e da imortalidade. A noção de pecado fora instaurada
com Eva. Após a atitude instauradora do pecado humano, Adão e Eva foram expulsos do Jardim do
Éden. Tiveram ciência que andavam nus e passaram a se vestir afim de esconder seus corpos, agora
pecaminosos.
Evas sem Adão
Desde o início, Eva estava intensa e inteiramente ligada a Adão. Podemos notar que, em
grande parte das esculturas, gravuras e pinturas, Eva divide espaço com a figura humana de Adão.
8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Dentre Eva e Adão costumeiramente figuram-se a maçã, a fruta proibida, e a serpente, uma quase
alegoria do Diabo. Alceu Penna, na coluna A tal Garota Eva de 1942, ilustra Eva sem seu parceiro.
Conta, através da imagem, uma história de muitas Evas, sem nenhum Adão. Em complemento à
imagem feminina, podemos apenas notar a maçã, segurada
pelas mãos de uma das tantas Garotas em forma de Eva, e da serpente, que auxilia os tipos a
darem título à coluna. Alceu Penna parece ter escolhido desenhar apenas a figura feminina, na
forma de protagonista de sua coluna. Seleciona também os elementos que figuram as formas de
pecado na expulsão do paraíso. A maçã, a serpente, a Eva, uma espécie de tríade pecaminosa
feminina. Tríade que faz alusão a uma figurabilidade erótica.
Imagem 1 – A tal Garota Eva. Revista O Cruzeiro de 21 de fevereiro de 1942. Ano XIV, número 17. Acervo: Biblioteca Mario de Andrade.
A multiplicidade de Eva desenhadas na coluna A tal Garota Eva nos remete ao retábulo
Jardim das Delícias de Hieronymus Boch. A Eva figura em boa parte de um repertório imagética de
maneira a sublinhar seu caráter singular, sua unicidade. Unicidade instaurada que ela fora a primeira
de todas as mulheres, ela cometera, em companhia da serpente e de Adão, o ato pecaminoso de
comer o fruto proibido. Naquele momento, ela não estava com mais nenhuma outra mulher, mesmo
porque não existia na terra mais mulher alguma. Só passaria a haver mais mulheres no momento
posterior à expulsão do paraíso, com a reprodução de Adão e Eva. A coluna de Alceu Penna, ao
apresentar seis Evas, leva-nos a criticar se todas elas seriam Evas ou se aquela imagem não estaria
relacionada com a expulsão do paraíso. Mas os gestos, as imagens e os textos nos confirmam que
9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
aquelas eram sim seis Evas e que encenavam um Jardim Éden, e talvez se referissem a uma
expulsão do paraíso.
O Jardim das Delícias, pintado no final do século XV, traz alguns elementos que o
aproximam da imagem de Penna. A cena central do retábulo taz uma espécie de jardim fantástico. A
imagem poderia encenar o momento posterior à expulsão do paraíso. Poderia também remeter-nos a
uma ideia de um mundo que não tivesse sido tocado pelo pecado. . O cenário fantástico faz alusão
ao Éden.
Na porção central da cena uma espécie de lagoa repleta de mulheres nuas. São mais de duas
dezenas de mulheres nuas. As inúmeras Evas que dividem as duas páginas da coluna A tal Garota
Eva perecem assinalar esse mundo fantástico incrivelmente intocado pelo pecado e envolto pela
luxúria. A multiplicidade de Eva faz-nos também supor que a imagem remeta-se a um mundo
fantástico. Ora, faz-nos acreditar ser o mundo sequente à concepção do pecado e à expulsão do
Jardim Éden. Ora, faz-nos crer ser um mundo onde o pecado não fora cometido. Um mundo sem
maçãs mordidas, um paraíso terreno, um mundo que coloca o ideal e o estranho lado a lado. Um
paraíso terreno desprovido de pecado, e ao mesmo tempo, permeado por ele. Um sonho pecaminoso
envolto pela luxúria, por uma sexualidade ativa. Como se todas aquelas Evas fossem as mulheres
que habitavam o Jardim do Éden bíblico ou o Jardim das delícias de Bosch.
A imagem feminina na porção superior da página esquerda da coluna, imagem número 6,
posa de costas, apoiada no chão, sentada sob suas pernas parece cruzá-las. A mão esquerda sob o
joelho esquerdo, a mão direita erguida à face, levantando um fruto, a maçã. Uma maçã intacta
figura na coluna. A fruta proibida não fora mordida. Seria como se o pecado ainda não tivesse sido
efetuado. Em contrapartida, os corpos já têm suas “vergonhas” cobertas por folhas de parreiras.
A maçã intocada e a multiplicidade de Eva faz alusão a um paraíso perdido, ao jardim
fantástico de Bosch. Uma parábola de um mundo não acometido pelo pecado de Eva. O erotismo,
uma sexualidade ativa, envolve todas as seis Evas. Os corpos longínquos e curvilíneos, quadris
voluptuosos, cinturas delgadas, seios fartos e arredondados marcam a figurabilidade corpórea. Os
corpos, apesar de muito delineados e curvilíneos, são corpo extremamente magros fazendo alusão a
uma estética da magreza já ensaiada naquele século XX. As imagens das personagens estão
extremamente adornadas em sua nudez. Olhos expressivos em seus delineados, bocas vermelhas,
rostos corados, unhas pintadas. Elementos que enaltecem o belo figuram em todas as personagens.
Seus corpos e faces marcam uma estética do belo e uma estética do erótico. Elas figuram Eva, que
10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
por sua vez figura a nudez sedutora de Vênus. A deusa da beleza, do amor, do desejo sexual
transmite a luxúria, o erótico.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. ‘Aby Warburg y La ciencia sin nombre’ In La potencia del pensamiento. Barcelona: Editora Anagrama, 2008.
BAZIN, Germain. A história da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BATAILLE, Georges. O Erotismo. São Paulo: Editora Arx, 2004.
BEJMANIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ___ Obras Escolhidas I. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 2010.
CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins, 2005. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Uma história do olhar no Ocidente. Petrópolis: Editora Vozes, 1994. DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon
Aby Warburg. Paris: Minuit: 2002. p.67. DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante la imagen. Pregunta formulada a los fines de una historia del
arte. Madrid: Ediciones Cedeac, 2010.
DIDI-HUBERMAN. Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. DUBY, Georges. Heloisa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Compahia das Letras, 1995. DUBY, Georges. Eva e os padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.56. WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Impresos Cofás S.A. 2010. PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Operarios, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia: Editora da Universersidade Católica de Goiás, 2006.
THUILLIER, Jacques. Teoría General de la Historia del Arte. México: Fondo de Cultura Económica, 2006.
11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
The image of Eva revisited by graphic art of the twentieth century Abstract: The virgin and the sinner. The reproduction and eroticism. Eve and Mary. The Garotas
do Alceu can be considered Eves. The column Garotas do Alceu circulated between 1938 and 1964 in the renowned magazine O Cruzeiro. Between behavior and humor the characters of Alceu Penna dressed, or rather, undressed as Eva in several columns. Maria and Eve, a imagery matter very well placed in the mid-twentieth century. The female images in the Brazilian press of that time often seem full of duality between these two Christian images. The female image duality. Among Eves and Marias. Between celestial and vulgar Venuses. The Venus of Ancient History, markedly nude, was gradually changing place in the subsequent centuries. The Middle Ages condemned the undressed body and with that, the beauty of the nude Venus. The female nudity was reinvented through the body of Eve. The column characters revisit images of many Eves - remarkably seductive and erotic. Keywords: Image, Eva, graphic art.
top related